Horizontes da Arte (Hortas Vertical Saber)

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Horizontes da Arte (Hortas Vertical Saber)
HORIZONTES DA ARTE
práticas artísticas em devir
HORIZONTES DA ARTE
práticas artísticas em devir
organização: Luciano Vinhosa
© NAU Editora
Rua Nova Jerusalém, 320 - CEP 21042-235 - Rio de Janeiro, RJ
Fone: (21) 3546-2838
[email protected]
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7
(GLWRUD©¥RHSURMHWRJU£ˉFR
Flávia Santos de Oliveira e Raquel Stransky Ferreira
Patricia Franca-Huchet
31
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
47
61
10-5580.
CDD: 709.81
CDU: 7.036(81)
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Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta
obra pode ser reproduzida ou transmitida por quaisquer
meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e
gravação) sem permissão escrita das Editoras.
1ª edição: 2011
Tiragem: 1000 exemplares
Laboratório de perceptos e afetos: rituais de
SDVVDJHPHJHRJUDˉDGRVVHQWLGRVGDDUWH
Luiz Guilherme Falcão Vergara
87
Produção estética, emancipação e imagem em Jacques Rancière
Pedro Hussak van Velthen Ramos
101 Tragi-cidade da imagem na arte moderna
Martha D’Angelo
117
Arte e tecnologia: a obra de Krzysztof Wodiczko
e os discursos da democracia
Luiz Sérgio de Oliveira
ISBN 978-85-85936-87-7
1. Arte - Brasil. 2. Artistas - Brasil. 3. Crítica de arte - Brasil. 4.
Arte e tecnologia. 5. Experiência. 6. Estética. 7. Arte e sociedade. I.
Vinhosa, Luciano.
Territórios e perceptos: pesquisa e experimentos para
combinar os sentidos da visão, audição, olfato e tato
Rejane Cantoni
____________________________________________________________________
H785
Horizontes da arte, práticas artísticas em devir / Luciano
Vinhosa (organizador). - 1.ed. - Rio de Janeiro : Nau, 2011.
280p.
Um breve panorama sobre as convergências entre arte e som no Brasil
Felipe Scovino
,PDJHPGDFDSD
"""""""""
Conselho Editorial
Alessandro Bandeira Duarte
Cristina Monteiro de Castro Pereira
Francisco Portugal
Maria Cristina Louro Berbara
Pedro Hussak
Vladimir Menezes Vieira
7
132TXHQDDUWHQRVTXDOLˉFD"
Editoras
Angela Moss e Simone Rodrigues
Revisão de texto
Maria Helena Torres
Apresentação
Luciano Vinhosa
135
Horta vertical como dispositivo relacional
José Luiz Kinceler
147 Poesia disseminada, poesia inseminada: aspectos da criação
poética na web
Lígia Dabul
159
Por uma teoria do dispositivo na arte ou da arte como tecnologia
Luiz Cláudio da Costa
1772TXHDDUWHID]"
Luciano Vinhosa
APRESENTAÇÃO
2V WH[WRV DTXL UHXQLGRV TXH YLVDP UHˊHWLU VREUH RV KRUL]RQWHV GD
prática artística na atualidade, tiveram origem em um seminário que
discutiu a arte sob o impacto das tecnologias. Desde o momento de sua
organização evidenciou-se que nem todos os autores estão de acordo
FRPDLGHLDGHTXHDVPDLVVLJQLˉFDWLYDVPXGDQ©DVTXHY¬PRFRUUHQGR
na prática tenham em seu centro as inovações tecnológicas, mas antes
DUHFRQˉJXUD©¥RGHVHXPRGHORVHQV¯YHOTXHHPDOJXQVFDVRVLQFOXL
sim, o uso das novas tecnologias. É o caso, por exemplo, do texto de
Rejane Cantoni “Territórios e perceptos: pesquisa e experimentos para
combinar os sentidos da visão, audição, olfato e tato” em que a autora
apresenta algumas de suas obras interativas. Também parece ser esse
o caminho apontado por Lígia Dabul em “Poesia disseminada, poesia
inseminada: aspectos da criação poética na web” quando observa os
acréscimos sensoriais que a palavra escrita ganha ao habitar o novo
espaço, diferente daquele das páginas habituais dos livros impressos.
Nos blogues, lugar de intensa interação social, o sentido da leitura
está ativado por cor, som e imagem. Com “Breve panorama sobre as
convergências entre arte e som no Brasil”, Felipe Scovino apresenta
amplo repertório de artistas brasileiros que ousaram cruzar as
fronteiras entre produção sonora, imagem e espaço. Segundo o autor
o experimentalismo fusional e seu consequente caráter provisório
constituem o fator mais fundamental de inserção social da arte. Dessa
IRUPDDREUDSRGHVHUSHQVDGDQ¥RFRPRRSRQWRˉQDOGHXPSURFHVVR
que teve origem no artista, mas antes como vetor de interconexão entre
sujeitos, correlacionando produção, consumo e perpétua atividade de
UHVVLJQLˉFD©·HV
7
8
Os modelos teóricos que parecem estar implícitos na maioria dos
Costurando certas utopias com ações pragmáticas, o papel social
ensaios, no entanto, é aquele de Rancière que propõe a partilha do
da arte passa a ser também o de engendrar uma experiência ampliada
sensível ou aquele de Benjamin que vê nas transformações técnicas a
que se projeta para o campo de todas as atividades humanas e contribui
oportunidade de a arte reencontrar seu destino social amplo, superando
para a formação do cidadão. Com “Horta vertical como dispositivo
as desigualdades no processo de desenvolvimento pleno do homem.
relacional”, texto baseado em projeto homônimo, desenvolvido com os
Nesse sentido, tanto as tecnologias quanto as práticas tradicionais
moradores da Comunidade do Palácio em Niterói, José Luiz Kinceler
estão a serviço da redistribuição equitativa das sensibilidades, de tal
propõe que, em vez de se apropriarem ou de criarem novos símbolos
modo que se veem de mais em mais comprometidas com o processo
para serem apreciados, os artistas possam trabalhar diretamente
de instauração de um regime estético abrangente. No centro do debate
na realidade com o desejo de transformá-la via a valorização das
está a própria noção de experiência estética como fator determinante
competências individuais dos sujeitos implicados na experiência.
na construção de subjetividades, o que não deve ser confundido com
Aqui, as habituais categorias de artista e de público são ultrapassadas
o elogio do artista que se espetaculariza na exaltação de seu eu
para se propor a construção de uma rede de afetos e saberes. Essa
personalístico. Não condeno de todo as posturas subjetivistas; acredito
WDPE«P « D PRWLYD©¥R TXH LPSXOVLRQD DV UHˊH[·HV WHµULFDV GR
TXH HODV WLYHUDP RX DLQGD W¬P XP OXJDU SRO¯WLFR TXDQGR DˉUPDP D
organizador deste livro. Traçando um grande arco histórico, do século
radical singularidade do sujeito em resistência à sociedade de controle
XV à contemporaneidade, argumento ter a prática artística, que desde o
HPTXHVHHQFRQWUD3DWU¯FLD)UDQFDFRPȢ2TXHQDDUWHQRVTXDOLˉFD"ȣ
5HQDVFLPHQWRˉ[RXRVOXJDUHVVHQV¯YHLVGRVVHXVDJHQWHVSURPRWRUHV
chama atenção tanto para a singularidade da experiência intimista que
ȝ DUWLVWD REUD H S¼EOLFRȝ VRIULGR LQˊH[¥R LUUHPHGL£YHO D SDUWLU GH
a arte propicia quanto para a prática distintiva do artista, na qual a
Lygia Clark. Desde então, me parece com total clareza que a dúvida
autora pode perceber certas qualidades diferenciais.
FODVVLˉFDWµULDUHIHUHQWHDXPREMHWRVHURXQ¥RDUWHGHYHULDVHUDJRUD
A experiência trágica com a cidade parece alojar-se exatamente
VXEVWLWX¯GDSRUHVWDRXWUDȢ2TXHDDUWHID]"ȣGHQDWXUH]DPDLV«WLFD
no cerne da vida e obra de muitos artistas modernos. A produção de
A partilha das sensibilidades, antes de pressupor o consenso entre
imagem que acompanha as circunstâncias da vida urbana foi capaz
indivíduos, implica a eles devolver o lugar político de sua expressão.
de estimular a produção do pensamento a ponto de vir substituir o
Parece ser esse o caminho trilhado por Luiz Sérgio de Oliveira em
conceito, sendo esse o aspecto que permitiu a Benjamin estruturar
seu ensaio “Arte e tecnologia: o obra de Krzysztof Wodiczko e os
alguns de seus ensaios com imagens poéticas que tomam a forma ora
discursos da democracia”. Hannah Arendt1DˉUPDTXHDHVIHUDS¼EOLFD
de fragmentos descritivos, ora de colagens de sensações. A relação
caracterizada efetivamente pelo espaço físico de uso comum por
entre a experiência urbana e a colagem – de Baudelaire a Benjamin, dos
onde se pode transitar livremente, nos reune na companhia de outros
cartazistas franceses à pop art inglesa – conduzirá o leitor ao longo do
homens segundo regras de convivialidade. É próprio desse espaço dar
texto “Tragi-cidade da imagem na arte moderna”, de Martha D’Angelo.
a ver e a ouvir; ser visto e ouvido por outros; em suma, é lugar que
Se na sociedade ocidental tradicional toda imagem estava submetida
conjuga e se constrói através dos diferentes pontos de vista. Seria essa,
a um texto que lhe precedia, na sociedade moderna a experiência
aliás, a própria dimensão política dessa esfera. Como tal, é efetivamente
transforma todo texto em imagem.
o espaço de tensão entre as individualidades em disputa. Como,
porém, praticar essa esfera se o acesso ao desenvolvimento pleno da
9
VHQVLELOLGDGHIRLQHJDGRDXPDSDUFHODGDVRFLHGDGH"2SUREOHPDGD
Niterói) como fator determinante na construção de sentidos, na arte e
exclusão não é privilégio de nossa cultura, mas, em se tratando de Brasil,
na vida, naquilo que chama de enunciações pedestres do público.
não podemos tapar o sol com a peneira. Não caberá certamente à arte
promover a igualdade social, mas antes suplantar as desigualdades na
repartição do mundo sensível; tal é a luz que Pedro Hussak nos acende
com seu ensaio “Produção estética, emancipação e imagem em Jacques
Rancière” ao aproximar Benjamin do autor focalizado. Não seria de todo
LPSHUWLQHQWHOHPEUDUPRVDTXLDDˉUPD©¥RGH+XPHTXDQWRDRIDWRGH
o discernimento sensível ser uma delicadeza do espírito humano que
carece ser exercitado para melhor nos esclarecer e ajudar nas condutas
diárias.2
A entrada em cena da experiência tornou a relação da arte com os
espaços expositivos muito problemática. De um lado, certas propostas
não se coadunam ao modelo “exposição” na mesma proporção em que
não se adaptam mais à arquitetura dos museus tradicionais; de outro,
10
YHULˉFDVHDQHFHVVLGDGHGHVHSUHVHUYDUHRUJDQL]DUWRGDHVVDDWLYLGDGH
humana de tal modo que ela ainda possa continuar produzindo efeitos
VRFLDLV QR IXWXUR $R UHˊHWLU VREUH RV WUDEDOKRV GLVMXQWLYRV DTXHOHV
cuja realização se dá em locais outros e são depois apresentados
QRV HVSD©RV LQVWLWXFLRQDLV HP IRUPD GH UHJLVWURV IRWRJU£ˉFRV Y¯GHRV
e textos, Luiz Cláudio da Costa, em “Por uma teoria do dispositivo na
arte ou da arte como tecnologia”, põe à prova os pressupostos da
Crítica Institucional da arte. Em vez de entender a arte a partir de seu
enquadramento institucional, o autor prefere tratá-la como dispositivo
que produz desterritorializações próprias. Assim, a arte, constituindo-se
como instituição social (para usar aqui o termo que amplia a Teoria
Institucional), desenvolveu tecnologia própria para engendrar seus
sentidos, os quais se dão como síntese subjetiva das sensações que
escapa ao rigor das determinações institucionais. Luiz Guilherme
Vergara com “Laboratório de Perceptos e afetos: rituais de passagem e
JHRJUDˉDGRVVHQWLGRVGDDUWHȣWRPDDH[SHUL¬QFLDGRFDPLQKDQWHHP
certas exposições de arte (algumas ele mesmo teve a oportunidade de
organizar quando esteve à frente do Museu de Arte Contemporânea de
***
Paulo Venancio, em texto dos anos 80 chamava atenção para a
LQVXˉFL¬QFLD GR PHLR GH DUWH QR %UDVLO3 Lembrava-nos que no lugar
nenhum do meio de arte no Brasil, em que faltam instituições fortes –
museus, coleções, discursos articulados, história da arte, que em países
ocidentais deram as condições para a emergência de uma prática
IXQGDGD HP XPD VµOLGD WUDGL©¥R FXOWXUDOȝ D DUWH ˉFRX HQWUHJXH DRV
interesses arbitrários de um mercado selvagem. Ora, o meio de arte
QDVFHGRLQWHUHVVHHIHWLYRGHVHXVDJHQWHVHPSURPRYHUXPDUHˊH[¥R
crítica que traga sustentabilidade social para as práticas culturais.
A prática artística como lastro das culturas deve fundamentar-se na
instauração de amplo debate público em que as diferentes vozes possam
tomar suas posições e ser ouvidas. De fato, com o desaparecimento da
crítica de arte das páginas de nossos jornais, essa produção se refugiou
nas academias. É no meio acadêmico que, malgrado os detratores, se
HQFRQWUDPKRMHDVPDLVVXEVWDQFLDLVUHˊH[·HVVREUHRHVWDGRGDDUWH
em especial a brasileira. Tal fenômeno coincide, sem dúvida, com o
incremento das pós-graduações em arte no país desde os anos 90.
Este livro, mais do que espaço de consenso, ao reunir críticos, teóricos
e artistas, todos professores universitários, pretende dar expressão a
posições heterogêneas. Ao trazer o debate que ocorre normalmente em
círculos restritos para a esfera pública, procura contribuir, ainda que
modestamente (pois aqui certamente faltam vozes importantes), para a
consolidação do meio de arte no Brasil. Realizado pelo Laboratório de
Criação Multimídia do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Arte
da Universidade Federal Fluminense, recebeu apoio da FAPERJ a quem
devo os primeiros agradecimentos, estendidos, em seguida, a todos os
autores que gentilmente colaboraram com ele. Agradeço em especial
ao coordenador do Programa de Pós-Graduação, prof. dr. Luiz Sérgio
11
de Oliveira, ao prof. dr.Antônio Cláudio Lucas da nóbrega, pro-reitor de
pesquisa, à prof.ª dr.ª Mara Eliane F. Rodrigues, diretora do Instituto de
Artes e Comunicação Social que desde o início apoioram este projeto
O QUE NA ARTE
NOS QUALIFICA?
com entusiasmo. Agradeço a Guilherme Bueno, diretor do Museu de
Arte Contemporânea de Niterói, que cedeu graciosamente o auditório
do MAC para realizarmos o seminário que lhe deu origem – “Horizontes
Patricia Franca-Huchet
da Arte: as práticas artísticas sob o impacto das novas tecnologias”
Universidade Federal de Minas Gerais
– e que ocorreu entre os dias 14 e 18 de abril de 2010. Finalmente,
agradeço aos mestrandos Lilian Soares, Cláudio Miklos, Marcelo Lopes
e Davi Ribeiro, que me deram apoio na organização do seminário.
“Nenhum artista, em nenhum país, é livre. Ele é uma contestação viva”4
Pierre Paolo Pasolini
Luciano Vinhosa
agosto de 2010
Notas
1
12
13
1
A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
O encontro que gerou este texto, desde sua conceituação, propôs pistas
2
Do padrão do gosto. In Hume. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 333-350. Os
pensadores.
para se pensar o estado da arte, “o esgarçamento das fronteiras e limites
3
Lugar nenhum: o meio de arte no Brasil. In Brito, Ronaldo & Venancio Filho, Paulo.
O moderno e o contemporâneo (O novo e o outro novo). Rio de Janeiro: Funarte, 1980, p
23-27.
minha seção, na manhã de 14 de abril, foi pensar a arte na era da pós-
da arte”, como indica a ementa do evento; e, a questão proposta para
produção. Quando falamos em pós-produção lembramos obviamente
do texto de Nicolas Bourriaud: “Pós-produção: como a arte reprograma o
PXQGRFRQWHPSRU¤QHRȣQRTXDOHOHDˉUPDTXHDDUWHGDSµVSURGX©¥R
corresponderia a
Todas essas práticas artísticas, embora muito heterogêneas
em termos formais, [que] compartilham o fato de recorrer
a formas já produzidas, [que] mostram uma vontade de
LQVFUHYHUDREUDGHDUWHQXPDUHGHGHVLJQRVHVLJQLˉFD©·HV
em vez de considerá-la como forma autônoma ou original
(...) Dizendo ainda que a pergunta artística não é mais: “O
TXHID]HUGHQRYLGDGH"ȣHVLPȢRTXHID]HUFRPLVVR"ȣ5
Eis uma das muitas proposições de Nicolas Bourriaud lançadas em
tais como a indústria, o urbanismo, a política e evidentemente a arte.
seu livro que hoje parece ser uma das referências para muitos artistas
Ele quer aparentemente resgatar alguns personagens históricos, que
e escolas de arte. As proposições de Bourriaud são interessantes, ainda
ˉFDUDPHVTXHFLGRVWDLVFRPR,EXNDRYLFHSUHVLGHQWHGD6RQ\(UDVPXV
que corridas e compactadas, e nelas encontramos várias fórmulas ou
Darwin, o irmão libertário do teórico da evolução das espécies, ou Robert
uma maneira de nomear o que se faz, o que não deixa de ser profícuo.
MacNamara, secretário de Defesa americano – de 1961 a 1968 – durante
Observo que algumas proposições que surgem na Europa e nos
Estados Unidos já haviam sido experimentadas aqui no Brasil nos
anos 60, bem como por artistas estrangeiros em seus respectivos
países. Penso em uma miríade de artistas, como Daniel Spoerri e seus
TXDGURVFRPLGD 5REHUW 6PLWKVRQ H D JHRJUDˉD +«OLR 2LWLFLFD H R
VXSUDVVHQVRULDO+DQV+DDFNHHDI¯VLFD-RVHSK%HX\VHDDQWURSRVRˉD
Tinguely e a mecânica, Lygia Clark e a psicanálise. O que podemos pensar
do ponto de vista histórico é que os artistas dos anos 60 dispunham de
formas e técnicas de trabalho que aconteciam mais localizadamente
e que o mundo ainda parecia maior; as distâncias eram realidades e
14
a circulação da informação muito mais lenta, mas, por outro lado, as
articulações simbólicas e culturais eram muito mais evidentes. Quando
Nicolas Bourriaud aborda Liam Gillik, um de seus artistas favoritos, faz
o seguinte comentário:
(...) Liam Gillik (...) procura dissolver a fronteira
H[LVWHQWH HQWUH RV GLVSRVLWLYRV QDUUDWLYRV GD ˉF©¥R H RV
da interpretação histórica e tenta estabelecer novas
FRQH[·HVHQWUHGRFXPHQW£ULRHˉF©¥R$LQWXL©¥RGDREUD
de arte como instrumento de análise dos enredos lhe
permite substituir a sucessão empírica do historiador (“eis
o que aconteceu”) por narrativas que oferecem outras
possibilidades de pensar o mundo atual, outros enredos
e formas de ação.6
a Guerra do Vietnam. Liam Gillik parece querer reativar acontecimentos
da história recente, que passaram despercebidos, elaborando material
para tentar tornar inteligível nossa época, questionando a fronteira
HQWUHGRFXPHQW£ULRHˉF©¥R2UHVXOWDGRSRU«PQHPVHPSUHDSRQWD
para seus desejos, e muitas vezes a fronteira entre o que se deseja e o
que se vê é bem mais espessa do que se imagina. Quando vemos sua
obra sobre o mundo do trabalho, ela nos parece distanciada demais
dos verdadeiros problemas desse universo. Jacques Rancière lembra
que “o dispositivo crítico se apresenta ele mesmo como mercadoria
de luxo pertencendo à própria lógica que ele denuncia”.7 No entanto,
HVVH WUDEDOKDU FRP D ˉF©¥R FRP D KLVWµULD H FRP D KLVWµULD SHVVRDO
SDUHFHPHXPGRVSRQWRVHVSHF¯ˉFRVTXHVHPRVWUDPPXLWRSURI¯FXRV
no campo da arte. Mais do que “empilhamentos dos arquivos”,8 a relação
com a história é um campo que instiga os artistas: a história em geral
HDKLVWµULDHPSDUWLFXODUDVVLPQ¥RSUHFLVDPRVˉFDUDVˉ[LDGRVFRP
tantos arquivos e podemos instaurar novas proposições. O trabalho
de Bernd & Hilla Becher foi um dos pioneiros nesse sentido, mas
Q¥RRFRQVLGHURDUTXLYRSRLVHPSULQF¯SLR«WUDEDOKRIRWRJU£ˉFRTXH
testemunha o tempo, nossa época via arquitetura. Essa arquitetura
se referencia à economia e ao pensamento econômico industrial
do século XX, mostrando o espírito do tempo e certa mentalidade.
Trata-se de real testemunho do patrimônio industrial do pós-guerra
da Alemanha, da França, da Inglaterra e, seguindo-se, da Pensilvânia,
QRV (VWDGRV 8QLGRV (VVDV LPDJHQV DOLPHQWDP XPD UHˊH[¥R VREUH D
Considero essa observação um dos pontos fortes de seu texto, mas
irreversibilidade do tempo e sobre as relações entre funcionalidade e
não tanto pela obra de Liam Gillik, que penso ser um pouco confusa,
estética. O assunto principal é a indústria pesada envolvendo as minas
principalmente sua referência ao mundo do trabalho, que me parece
de carvão, a siderurgia e a extração de calcário. Claro que essa obra
muito hermética. O artista trabalha sobre alguns saberes paralelos,
HYRFDDFODVVLˉFD©¥RSRLVRVIRWµJUDIRVFODVVLˉFDUDPDVLPDJHQVSRU
15
grupos chamando-as de “Tipologias”, dispondo-as umas ao lado das
alguma coisa, ela é preservada, mas não é mais aquela
outras. Em cada tipologia uma correspondência se estabelece entre,
coisa.10
por exemplo, a primeira e a décima quinta (para um grupo de 15), no
caso de correspondência diagonal (também existem correspondências
horizontais e verticais). Não vejo a necessidade de colocar esse trabalho
2
VRE D «JLGH GR DUTXLYR SHOR IDWR GH RV DXWRUHV WHUHP FODVVLˉFDGR
16
imagens. Sinto-o muito mais próximo da ordem de uma nova conexão
Uma questão que me parece sempre poder receber a atenção de artistas
com o mundo da imagem; uma forma de dar ao outro o que se pode
é a questão do real, que considero fundamental para a arte de hoje, pois
ver e entender a respeito de imagem e tempo. Bernd diz em um vídeo9
nós, artistas, o estamos experimentando mais do que nunca, com suas
TXH HVVH WUDEDOKR « EDVWDQWH DXWRELRJU£ˉFR SRLV VHXV DQFHVWUDLV
diversas possibilidades. O real não fecha a porta para ninguém, está
foram, durante várias gerações, empregados nas minas e nos fornos da
O£VHPSUHDEHUWRHID]PXLWRWHPSR6XDGHˉQL©¥RFRQWXGRGHYHVHU
primeira região fotografada, o que atribui sentido histórico pessoal à
encontrada individualmente, pois o real é como a vida: é amplo e vai
dimensão de sua obra. Percebo-a como imagem, que de certa forma
do muito simples ao extremamente complexo. Em muitos textos e falas
PHTXDOLˉFDKLVWµULFDHDUWLVWLFDPHQWHDWUDY«VGRVGHVHMRVHQXQFLDGRV
encontramos a ideia de rizoma, mas tenho algumas dúvidas quanto ao
de seus autores, sem que, no entanto, tenha importância, nesse caso, a
uso abusivo desse conceito. Se o rizoma é, para escolher duas palavras,
forma de arquivo. Enquadrar essa obra sob a forma do arquivo reduz
conexão e multiplicidade, como estariam os artistas que trabalham em
de fato a percepção apaixonante dos fotógrafos, a intensidade e o
DEVROXWRDQRQLPDWR"+RMHHQFRQWUDPRVXPWLSRGHDUWHTXHQ¥RHVW£
FXLGDGRFRPRPRPHQWRGRDWRIRWRJU£ˉFRDHVFROKDGRFOLPDH[DWR
vinculada a absolutamente nada; são proposições solitárias – artísticas
SDUD TXH DV IRWRJUDˉDV DFRQWHFHVVHP FRP D ˉJXUD©¥R GHVHMDGD DV
e solitárias. Podemos lembrar de uma frase de Allan Kaprow “cada
condições meteorológicas necessárias para tal ou tal resultado, como
um de nós é ao mesmo tempo um animal no centro de uma corja e
foi o caso de uma dupla caixa-d’água, que demandava ser fotografada
XPORERVROLW£ULRȣ9RF¬VVHOHPEUDPGHVHXPDJQ¯ˉFRWH[WRȢ7KHUHDO
no inverno, posto que a densa vegetação que acontecia durante o verão
H[SHULPHQWDWLRQȣ" Nele Kaprow relata uma história; na verdade uma
escondia sua base) e o interesse pelos jardins operários que estavam
atividade que começou devido a preocupações subjetivas de uma artista
em torno das estruturas fotografadas, etc. – que são de fato questões
e terminou por um sentimento mítico com relação à natureza. Uma ação
muito mais interessantes como ponto de contato com a obra de Bernd
que não estava marcada por nenhum caráter artístico. Segundo Kaprow,
& Hilla Becher. Christian Boltanski elucida em parte esse sentimento,
RDUWLVWDTXHID]HVVHWLSRGHWUDEDOKRHHVFROKHˉFDUDQ¶QLPRRID]
discutindo com Catherine Grenier sobre os seus Inventários:
simplesmente para melhor acentuar o aspecto experimental daquilo
(...) não é porque você etiqueta que você arquiva (...). Os
Inventários repousam sobre a ideia de que, a partir do
momento em que se coloca um cachimbo em uma vitrina,
ainda que ele não esteja quebrado, não é um cachimbo.
Tudo que se tenta preservar morre e, tão logo se tente
congelar algo, mata-se esse algo (...) Se se tenta preservar
que estava em curso. Essa mulher, ou artista, escolheu instalar-se em
uma casa, isolada em umas dunas desérticas, durante uma semana,
pois se considerava muito inconstante e acreditava precisar de uma
H[SHUL¬QFLD FRP ULWPRV GHˉQLGRV YLVDQGR DWHQXDU D LQFRQVW¤QFLD
RX YHULˉFDU FRPR VH UHODFLRQDYD FRP D UHSHWL©¥R .DSURZ UHODWD D
experiência em seu texto, do qual cito longo trecho a seguir:
17
A cada dia da semana, por volta de três horas da tarde,
quando o vento se levanta sobre as dunas, uma mulher saía
a passeio e olhava os traços de seus pés serem apagados
pelo vento. A cada noite, ela redigia um texto sobre
o passeio em seu diário e fazia a leitura da história de
suas vivências e, em seguida, no outro dia, tentava repetir
exatamente o que havia acontecido. Ela descreveu essa
H[SHUL¬QFLDGLDDSµVGLDˉHOPHQWHRTXDQWRSRVV¯YHODW«
que a semana terminasse. Quase brincando, ela escreveu
em uma passagem: “…quero ver se consigo parar de mudar
tanto”.
18
As anotações eram ricas em detalhes, incluindo não
somente a relação com seu caminho, subindo e descendo
as dunas, a areia soprada pelo vento, a cor do céu, o tempo
necessário para o passeio, a distância percorrida, etc.,
mas também o que ela sentia. Havia também o medo. Ela
se apavorava com o desequilíbrio e desorientação que
H[SHULPHQWDYDQDTXHOHYDVWRHVSD©RGHˉQLGRSRUULWPRVH
não por limites (...) No segundo dia, por exemplo, ela achou
muito difícil repetir o que havia feito e sentido na véspera.
Pensou que o seu itinerário estava diferente [as dunas,
naturalmente, haviam mudado]. Entretanto, perseverou.
Anotou que fazia a areia voar por sua determinação e
esforço em produzir marcas. Escreveu sobre o “absurdo” de
todo o seu plano e sobre o fato de brincar e rir consigo
PHVPD +DYLD XP GHVDˉR PDQLIHVWR QR VHX SDVVHLR GD
tarde.
Durante os dias seguintes, desenvolveu uma fascinação
pelo trabalho que consistia em recriar o que havia
acontecido no dia anterior, especialmente que o esforço
a teria deixado mais atenta ao caráter inevitável da
transformação.
Terça-feira, me surpreendi em um terreno ondulado
com rosas selvagens que brotavam sobre a descida de
uma duna. Colhi algumas e envolvi seus caules curtos com
o lenço que me servia de cinto. Nesse momento, me perdi
voluntariamente, como havia acontecido na quarta-feira. Mas
na quarta-feira, estava muito angustiada com a ideia de não
reencontrar minha casa antes do anoitecer; na quinta-feira,
senti um prazer de criança redescobrindo as rosas. Os dois
sentimentos estavam em mim ao mesmo tempo. Agora, sexta,
não consegui achar as rosas, pois de novo me perdi.
Uma vez, durante mais de uma hora, ela acreditou que
havia realmente feito o que tinha em mente fazer; parar
de mudar repetindo o mesmo movimento que havia
escrito em seu diário no dia precedente, descrevendo uma
H[SHUL¬QFLD TXH D WHULD GHL[DGR LQVDWLVIHLWD QR ˉQDO GD
tarde, rica em observações sobre a vida das plantas, sobre
RVLQVHWRVVREUHRVS£VVDURVHVREUHXPPDJQ¯ˉFRS¶UGR
sol. O silêncio a tornava sensível ao barulho arrastando os
seus pés na areia e ao som ensurdecido de sua respiração.
Os pássaros gritavam por toda parte. Ela percebia sua
sombra encurtar e esticar enquanto escalava e descia as
dunas. Então, nesse dia, escreveu insistindo no fato de se
sentir estrangeira.
O vento soprava de novo no sexto e no sétimo dias.
Estranhamente, dizia ela, não conseguir lembrar a maior
parte dos detalhes de suas andanças, mas só o que lhe
parecia ser muito claro e evidente. Em outra ocasião ela
se deixou empurrar pelo vento em suas costas ao longo
das bordas de uma duna – milhões de grãos de areia
rodopiavam em torno de seus pés. “As dunas também
mexem quando estão em repouso.”
Ela concluiu em seu diário na última noite: “Jantei em
torno de oito horas, e agora vou deitar e descansar.”
E Kaprow conclui.
2 TXH LVVR VLJQLˉFD" 3DUD R DPDGRU DSDL[RQDGR GD DUWH
(...) as andanças nas dunas não trazem aparentemente
nenhuma conclusão. Não havia nenhum observador, a
referência em relação às caminhadas normais não possuía
nenhuma notoriedade inventiva, e tudo termina com uma
mulher indo se deitar. E aí está a questão. Ela foi para
19
D FDPD TXDOLWDWLYDPHQWH WUDQVIRUPDGD $ VLJQLˉFD©¥R
GH VXD VHPDQD IRL LQWHULRUL]DGD HUD XPD ȢVLJQLˉFD©¥R
REMHWRGHXPDH[SHUL¬QFLDȣQ¥RXPDVLPSOHVVLJQLˉFD©¥R
intelectual. Isso se manifesta na imagem que ela possuía
de si mesma e, talvez, do comportamento que daí surgia,
e não por uma obra de arte objetiva. O leitor pode dizer:
“Ora, ora, tudo então tem um sentido: meu almoço, suas
observações, as notícias meteorológicas nos jornais do
ano passado.” E então, novamente eis a questão! Sim, tudo
tem seu sentido, bastando-nos apenas prestar atenção em
tudo, mas não o fazemos.11
(Pergunto-lhe se essa mulher existiu de fato ou se tudo isso não
SDVVDGHH[SHUL¬QFLDVHˉF©·HVGH.DSURZ
Em Belo Horizonte a vida artística é relativamente efervescente e há
constantemente eventos muito bons e particulares. Temos na cidade
uma chefe de cozinha, Agnés Falkarsvolger, que também é artista.
Vários artistas tentaram e tentam em Belo Horizonte trabalhar com a
questão da comida, mas percebo que ninguém faz tão bem quanto ela,
pois, tendo o conhecimento e a verdadeira experimentação de fato, e
já há algum tempo das duas coisas, consegue a artisticidade necessária
para atingir a sensibilidade do espectador, pois tem o domínio e, de
certo modo, a maneira, a prática, a moral e a paixão para levar a bom
termo sua proposição. Evidentemente o público percebe isso, que é,
DˉQDORTXHGLIHUHQFLDXPDYHUGDGHLUDH[SHUL¬QFLDGHXPDH[SHUL¬QFLD
qualquer. Outro exemplo dessa questão é Marco Paulo Rolla com
seu Banquete, trabalho realizado em 2006. Trata-se de uma grande
20
Estamos falando da experiência. A arte atualmente tem conteúdo
performance coletiva em que a comida – pães em formato das partes do
GLVVHPLQDGRU TXH VH HVSDOKD SRU WRGRV RV ODGRV GD YLGDȝ XP ˊX[R
corpo – feita por ele, muito se aproximava de modelagens e pequenas
que não podemos parar. Cada um tem e dá a sua própria visão estética
esculturas, das quais Marco Paulo é bastante íntimo. Como performance
que pertence à história da pessoa, do sujeito. Trata-se do fato de que a
a experiência é muito espetacular no bom sentido; o bom espetáculo
obra de arte realiza o sujeito (como no caso de Bernd Becher que refez
da arte que envolve o espectador em uma situação dramática e teatral.
o caminho de seus antepassados pela arte e pela imagem). Podemos
GHˉQLUKLVWµULDVHDW«PHVPRQRVVDKLVWµULDSHORVWUDEDOKRVDUW¯VWLFRV$
4XDQGR XP DUWLVWD Q¥R FRQKHFH D FR]LQKD R VXˉFLHQWH SDUD
obra de arte hoje quase sempre é, em um de seus aspectos, um trabalho
enfrentá-la – para citar apenas um campo que é investido – percebemos
sobre si mesmo. Colocar avante seu desejo, seu prazer, sua história, sua
a falta de sensibilidade e desenvoltura. O trabalho vira uma espécie de
herança, e mesmo sua herança moderna. O tempo atual como uma
consumo artístico, em que a “coisa em si” ou, melhor, a artisticidade é
idade democrática da arte com a circulação de diferentes campos de
deixada de lado em favor apenas de mais uma sociabilidade da arte.
valor e que possui enorme porosidade. Hoje, porém, existe o perigo
3RUTXHQ¥R"GLU¥RDOJXQV6LPSRGHPRVRSWDUSHODVRFLDELOLGDGHPDV
de se distanciar muito das fundações. Existe o risco de que desenho,
é preciso que percebamos o conhecimento pela experiência que relata
pintura e outras categorias desapareçam das escolas de arte em prol
Kaprow.
de uma cultura visual (denominação anglo-saxônica) ou performática.
O cuidado crítico é importante, pois vemos muitos slogans universais e
cada um querendo achar o seu slogan. Pós-produção pode ser um deles;
arte e tecnologia também, bem como arte e vida, arte e política.
Penso que às vezes querem vender-nos slogans universais. O
problema de alguns slogans da arte é que eles tentam universalizar
as formas visuais. Quando olhamos bem de perto, observamos que
muitas obras não são nada universais. Os artistas do mercado talvez
tenham escolhido a universalização de suas obras, porque se tornam
3
mais facilmente compreensíveis, mais próximas do público. A maior
21
parte dos artistas, porém, não faz parte do mercado, que é pequeno
a maneira como se constituíram os discursos críticos, as relações de
SDUD WDQWD JHQWH$OJXQV ˉFDP PXLWR IHOL]HV GH M£ RFXSDU HP DOJXP
colonização, etc.12
site, a 6.000a posição. Vários artistas são também pesquisadores, têm
laboratórios, trabalham em academias, estudam, ensinam, organizam
eventos e publicam, e a maioria deles não se importa com o mercado
ou se importa menos ou não se sente tão pressionado, salvo pelas
próprias regras acadêmicas que não raro fazem algum tipo de pressão. A
universidade, entretanto, ainda é compreendida como o lugar de artistas
que fracassaram, posto que a ideia de sucesso e de reconhecimento
pelo valor de mercado ainda é muito forte. Uma pequena população
de artistas pesquisadores reconhece em seus pares seus trabalhos, e
está sendo criada uma rede no Brasil e no mundo. Falta ainda algum
tipo de liderança para dar visibilidade a essa população de artistas.
Podemos também observar a banalização do termo “contemporâneo”. Já
trabalhei muito com essa palavra, mas, atualmente, vejo-a desgastada.
Nesse sentido, escutei uma palestra de Catherine David que disse algo
22
muito próximo disto que anotei: a questão da representação na arte
contemporânea me parece muito pertinente. Em todas as sociedades
modernas, a arte contemporânea se tornou um segmento especializado
de consumo cultural, muito mais do que agrupamento real de produções
contemporâneas heterogêneas. Em qualquer parte do mundo a
encontraremos com certo número de articulações formais. Por isso uma
questão bem real se coloca: parte da história moderna ainda não foi
escrita; existem buracos. Onde estivermos no mundo, encontraremos o
contemporâneo, que não é algo compacto, um pacote fechado. Podemos
pensar no exemplo de Deleuze, a dobra. Abrimos uma dobra e olhamos
o que está lá dentro – há outras coisas, espaços não trabalhados,
GHVˉJXUD©·HV KHWHURJ¬QHDV ( GHVGH TXH DEULPRV XPD GREUD QRV
deparamos com as coisas que reenviam à historicidade. O visual não
se apresenta no mesmo lugar para outros. Hoje, a produção de sentido
passa por uma expressão poética, pelo verbo e por articulações visuais
bastante diferentes nas diversas partes do mundo! Isso tem a ver com
Às vezes a arte quer ser a vida, e a vida é simplesmente o espaço
que abraça a arte. A vida, no entanto, está muito acima da arte; é a
grande arte da qual nos alimentamos. Às vezes gosto da ideia da arte
FRPR DUWH SRUTXH WXGR VH WRUQRX PXLWR O£ELO PXLWR ˊXWXDQWH FRPR
XPDFRQˉJXUD©¥RGDˊXLGH]GRVHQXQFLDGRV2QXP«ULFRID]RFDPSR
explodir, e tudo termina em um universo de proliferações, algumas
conectadas, outras isoladas – duas imagens podem ser o rizoma e a
monada (ou a nonada do Guimarães Rosa). Alguém que queira vender
uma teoria ou ideia reduzida da arte, sintética e universalizada não pode
convencer. Por exemplo “Arte Contemporânea Brasileira” ou “Arte do Ano
2010”, “Arte Política”. Vemos uma luta pelo poder crítico; a arte de hoje é
isto, a arte de hoje é aquilo, eu decido o que é arte. A crítica está aí para
dar nomes, sentidos. Muitas pistas estão por aí. Percebo, entretanto, uma
vontade artística formidável, é realmente interessante constatar que
somos tantos, quanto estrelas no céu, interessados, fazendo, pensando
e estudando a arte. Mas algo também é hiperbólico, essa extraordinária
capacidade de criar formas pode produzir um sentimento de diminuição.
Os trabalhos artísticos ou as obras dos últimos anos parecem nos
mostrar novos signos, que são os signos de nossa capacidade de viver,
uma errância nos signos como um sinal do tempo.
De certa forma, acredito no trabalho da arte que tem um pé no
presente e um olho no passado e outro no futuro. Como pensar a
época, a moda, a moral e a paixão, retomando as palavras de Charles
%DXGHODLUH"$OJXQVV¥RPDLVFRQWHPSRU¤QHRVTXHRXWURVPDVVRPRV
todos contemporâneos. Alguma coisa do passado sempre se impõe a
nós, alguma coisa do tempo que parece nos habitar. Nessa confrontação
com o presente, podemos buscar algo da história de cada um e da
história geral. Vejo as imagens carregando nelas mesmas partes do
passado, mas, paradoxalmente, elas criam um futuro. Como no exemplo
23
que se segue, essa colisão dos tempos heterogêneos que permite
e seus interesses. O pensamento estético das novas tecnologias ainda
produzir um sentido novo.
está por vir. Talvez possamos sonhar com uma dialética fecunda que
Marcel Duchamp quando decide abandonar a pintura
em 1912 parece não a esquecer. Então ele vai começar
o Grande Vidro (La mariée mise à nu par ses celibataires
même(RTXH«R*UDQGH9LGUR"8PYLWUDO7HFQLFDPHQWH
é um vitral, a maneira como as pessoas da Idade Média
faziam pintura. Ele o faz por anacronismo: utiliza o vitral,
técnica da Idade Média, para fazer o futuro. Ele recompõe
a genealogia; procura seu tataravó artista – um simples
artesão medieval.13
Quero terminar com a história de Kaprow. Acho que seu texto
tem uma pista para pensar a questão das novas tecnologias. Talvez o
VDEHUFLHQW¯ˉFRVHGHYHVVHUHQRYDUHVFXWDQGRDGLPHQV¥RGDQDWXUH]D
o lugar em que estamos vivendo, nossos ambientes. Isso poderia dar
ˉP¢SUHWHQV¥RGRKXPDQRVREUHRPXQGRFRPRDQGDUHJHQGRVHXV
24
saberes, conceitos e categorias. Existe uma nova demanda ou forma
para o homem atuar no mundo, um modo dinâmico de participar
com seu saber. As certezas desmoronam, toma-se consciência das
LQWHUD©·HVHQWUHRFDPSRFLHQW¯ˉFRHFXOWXUDOUHQRYDPVHRVPRGHORV
descompartimentam-se as disciplinas e, por isso, surgem novos espaços
de criação e invenção. Um saber mais modesto se constitui frente às
pretensões da ciência clássica, porém mais ambicioso em suas formas
de acontecimento. A famosa disputa pelo poder dos conceitos, pelos
“pós”, “neos” ou..., deixa de ser tão importante a partir do momento
em que lidamos naturalmente com os novos saberes. Saberes que
consideram o novo e o antigo equivalentes e igualmente importantes.
8PD TXHVW¥R ˉFD VHU£ TXH SRGHU¯DPRV GL]HU TXH H[LVWH KRMH XPD
PRGHUQLGDGH DUW¯VWLFD FXOWXUDO RX FLHQW¯ˉFD TXH IRVVH VXEYHUVLYD
R VXˉFLHQWH SDUD DYDQ©DU D FRQVFL¬QFLD" ( RXWUD R TXH GD DUWH QRV
TXDOLˉFD" 2 FXOWXUDO DVVRFLRXVH ¢ FRPXQLFD©¥R H DR FRQVHQVR VH
ajoelhando diante da potência do sistema novo. Donde parte de nossa
cultura estar prisioneira dos bancos, das mídias e do contexto político
estaria na renúncia – a renúncia da arte como detentora da intuição,
da sensibilidade, da criação e a renúncia da ciência em ser a detentora
da verdade.
4 - Zénon Piéters
$SUHVHQWR R WUDEDOKR GH =«QRQ 3L«WHUV 3URGXWR GH XPD ˉF©¥R PHX
heterônimo: o fotógrafo melancólico que fotografa pinturas em museus.
À imagem de Fernando Pessoa, que marcou sua obra com quatro poetas
– Alberto Caieiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Fernando Pessoa
(heteronímio) –, estou também desenvolvendo Os quatro fotógrafos,
TXDWUR SHUVRQDOLGDGHV ˉFW¯FLDV W¥R GLIHUHQWHV TXDQWR V¥R VXDV
IRWRJUDˉDV H R PRGR FRPR WUDEDOKDP FRP D LPDJHP 3DUD =«QRQ D
foto do museu pode estar relacionada com a ideia de enfrentamento
com a imagem da pintura, porque é mais uma de suas espessuras, não
se opondo a ela, mas se sobrepondo; uma superposição, como dois
tenistas que jogam no mesmo campo e fazem parte da mesma luta,
assim como uma oposição especular. Aí encontramos também o lugar
do espectador fotógrafo. Zénon Piéters nasceu em 1965, no seio de
uma família de livreiros em Gent, na Bélgica. Lá passou a infância e a
adolescência, mas uma infância bem particular, pois viajava muito com
os avós e a mãe nos negócios de edição, seu campo de trabalho. Foi em
uma dessas viagens que Ann Z. Piéters, sua mãe, conheceu Marguerite
Yourcenar, que preparava então seu célebre romance L’oeuvre au noir. Ela
contou a Ann o cenário de sua história e o nome de seu protagonista:
=«QRQ /LJUH ˉOµVRIR P«GLFR KXPDQLVWD H DOTXLPLVWD MRJDGR HP XP
mundo hostil e complexo, mas que lhe proporcionou viver seu processo
de iniciação. Nosso Zénon passou a vida com essa questão entre a
cabeça e o coração, como se um desígnio forte trouxesse para sua vida
a dimensão literária da Obra em negro. Ele disse que por isso sempre
25
se sentiu marcado pelo selo do tempo e que a história do personagem
Zénon, lhe deu desde a infância um nome, uma direção e até mesmo
uma iniciação: “o fato de me chamar Zénon, nome advindo de um
romance que se chama L’oeuvre au noir, que se passa na Bélgica, meu
país, em Brugges, perto de onde nasci Gent, me direcionou os sentidos
desde a infância. Já li o livro várias vezes e sempre me pergunto se algo
fenomenal estaria entre essa história e a minha vida. Como um selo ou
marca que vem na nossa pele quando nascemos.” Estou entrevistando
Zénon. Para a construção dessa entrevista, baseio-me em escritos de
artistas e escritores que admiro e que trabalham na esfera de Zénon, a
IRWRJUDˉD9RXFLW£OR
26
Já faz tempo que a pintura é fotografada, especialmente
para ser reproduzida nos livros. Nos livros de escola ou
mesmo em livros de história e em catálogos. Existe uma
espécie de inocência, uma suposta neutralidade e um
hábito quase natural de fotografar uma pintura e de
reproduzi-la nos livros, transferi-la para o papel, reduzir
seu formato, esquecer sua matéria, seu relevo, sua maneira
de aceitar a luz e de impor àquele que a observa justas
distância e posição. Em um livro, todas as imagens são
olhadas de uma só distância. Fotografar a pintura não é
um ato simples e inocente, mesmo quando se trata de
convite para uma exposição, cartaz ou livro.
Considero certas pinturas um universo visual completo,
que oferece ao olhar a totalidade da construção de um
visível. Isso me permite a possibilidade de uma imersão.
Algo como o inconsciente do homem podendo ser visto
em tudo isso. Se cada época guarda um pouco da que a
precedeu, olhar as imagens de uma época é também olhar
o seu passado.
O mundo é muito heterogêneo e complexo. Inventar
outra dramaturgia para poder dar formas ao que sentimos
e experimentamos pode ser um passo para toda essa
complexidade que se oferece. Parto da ideia de que existe
muita teatralidade em nossas trocas com o real (não
podemos ser o tempo todo transparentes, precisamos nos
proteger de muitas coisas, dos outros e de nós mesmos
também). De um lado há a frontalidade do mundo sobre
nós; e do outro, a fabricação, a maneira de imaginar nossa
vida no mundo, de fabricar quem somos, o que queremos,
QRVVDVˉF©·HV$VIRWRJUDˉDVGDDUWHW¬PDYHUFRPHVVH
lugar. Pois o real nunca se apresenta como tal, ele aparece
FRPR XP IDFKR GH ˉF©·HV H SRVVLELOLGDGHV GH D©¥R
percepção e temporalidade.
Gosto de dar uma ideia precisa do objeto fotografado,
com relativa exatidão. É claro que tudo é carregado de
nostalgia, de romantismo da perda e de uma emoção já
SHUFHSW¯YHO PDV TXH QRVVD FRQVFL¬QFLD FODVVLˉFDWµULD
reprime como sendo objetividade ou conceitual. De
IDWR SHQVR TXH D IRWRJUDˉD WHP JUDQGH FDSDFLGDGH GH
ekphrasis, de descrição. Procuro não confundir objetividade
e descrição.
A imagem é como um grande plano descritivo. A experiência
GDGHVFUL©¥R«SUµSULDGDLPDJHPIRWRJU£ˉFD'HˉQLULVVR
seria pensar em uma imagem que vai falar de sua própria
realidade, de sua condição de coisa fotografada. Na
IRWRJUDˉD ROKDPRV D LPDJHP GH DOJX«P TXH YLYHX XPD
experiência, que esteve olhando para o mundo, por isso
DIRWRJUDˉD«XPDGXSODH[SHUL¬QFLD1¥RROKRQDGDVHP
saber que estou olhando com meu corpo, minha história,
minha cultura, meu sentimento – com minha vida. Tenho
a sensação de que os quadros me dizem: você viu? mas
ainda não viu nada… e como fotógrafo quero saber mais.
Me interesso pela reconstrução crítica da tradição pictural.
2 UHDO SRGH HVWDU QD LPDJHP" $WXDOPHQWH SUHIHULPRV D
imagem à coisa em si. Nosso tempo prefere a cópia ao
original, a representação à realidade, a aparência ao ser,
como diz M.J.Mondzain.
É quase uma necessidade fotografar as pinturas e depois
de ter isto feito, tentar separar o que na imagem é pintura
HRTXH«IRWRJUDˉD$VIRWRJUDˉDVDQJXODUHVGRVTXDGURV
27
também me lembram a maneira convencional de olhar a
imagem, o lugar de onde proveem e sua situação espacial
e histórica.
Acredito que as imagens históricas nos penetram e ocupam
HVSD©RVW¥RVLJQLˉFDWLYRVTXHGHL[DPSRXFDPDUJHPSDUD
PRGLˉFD©·HV ‹ QHVVH OXJDU TXH JRVWR GH EXVFDU PLQKDV
imagens, onde algo muito forte já existe e alguém deseja
ali penetrar, provocar um desvio, uma mudança de escala,
uma ressituação. Isso implica sutileza e modo de atuação
sobre a coisa. Por isso uma certa literalidade na imagem
VREUHDLPDJHP6REUHVVDHPDHVFDODDˉJXUDR¤QJXOR
a perspectiva e a cópia como motivo. É como refazer o
TXDGUR SHOD IRWRJUDˉD D FRQWHPSOD©¥R GH LPDJHQV TXH
não são do nosso tempo é um dos meus motivos. A antiga
força simbólica das imagens parece esgotada e a morte
se tornou tão abstrata… a perda de sentido que despenca
sobre as imagens atualmente me preocupa mais do que
a questão de sua invenção, de onde surgem. Acho que
por aí podemos pensar na antropologia do visual que se
encarrega da substância das imagens para compreender
os atos simbólicos que vivenciamos em nosso comércio
com ela.
28
Notas
4
“Aucun artiste, dans aucun pays n’est libre. Il est une vivante contestation.” Qui suis
je? Paris: Arléa, 1994, p.34.
5
Pós-Produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins
Fontes, 2009, p.12,13.
6
Bourriaud, Nicolas. 2009, p.65.
7
Le Spectateur Émancipé. Paris: La Fabrique, 2008. p.36.
([SUHVVV¥R XVDGD SRU 6W«SKDQH +XFKHW QDV GLVFXVV·HV ˉQDLV GR FROµTXLR Ȣ$
FRQVWUX©¥RGRUHDOIRWRJUDˉDGRFXPHQWRˉF©¥RȣFRQFHLWXDGRRUJDQL]DGRHFRRUGHQDGR
por mim na Escola de Belas Artes, em 15 e 16 de abril de 2010.
6«ULHGHˉOPHVGH:LOOLDP.OHLQ$57()UDQFH.69LVLRQV/H&HQWUH1DWLRQDOGH
la Photographie/Le Jeu de Paume. 2008.
10
Boltanski, Christian; Grenier, Catherine. La vie possible de Christian Boltanski. Paris:
Seuil, 2007, p.78.
11
The real experimentation. In Artforum 12, n 4, 1983, p 37-42.
12
Palestra proferida por Catherine David em 20 de dezembro de 2006, na
École National des Beaux-Arts de Lyon, sobre a questão da “Representação árabe
contemporânea na Bienal de Veneza”.
13
Apresentação em colóquio de George Didi-Huberman encontrada na web: Qu’estFHTXHOHFRQWHPSRUDLQ"7UD]HPRVRH[HPSORGH0DUFHO'XFKDPSGDGRSRUHOH
KWWSZZZHQEDO\RQIUUHFKHUFKHUHHOLQGH[BUHHOSKS"LG GLGLKXEHUPDQ
Sobre a autora
Patricia Franca-Huchet – Artista plástica, pesquisadora e professora na Escola
de Belas Artes da UFMG. Coordena o grupo de pesquisa recém-formado BE-IT:
Bureau de estudos sobre a imagem e o tempo. Sua pesquisa versa sobre imagem e
pensamento artístico. Expõe e publica regularmente no Brasil e em outros países.
29
UM BREVE PANORAMA
SOBRE AS CONVERGÊNCIAS
ENTRE ARTE E SOM NO BRASIL
Felipe Scovino
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Os historiadores da arte (ou aqueles que pensam ser isso o seu
dever) muitas vezes cometem o erro de tentar localizar a gênese de
determinado “movimento”, estilo, mídia ou tema. Não pretendo recorrer
a esse repertório. Como em outras pesquisas, é difícil determinar
30
quais foram as primeiras obras que envolveram arte e som no Brasil.14
Iniciarei essa trajetória de forma a estabelecer atravessamentos e como
XPH[HUF¯FLRGHUHˊHWLUVREUHDVGLIHUHQ©DVHVLPLOLWXGHVHQWUHREUDVGH
arte sonora15 realizadas nos últimos 40 anos.
Cabe ressaltar que o campo experimental da música no Brasil
(que permeará a arte sonora e com ela e dialogará de forma profícua)
começa a delinear-se poucos anos antes das primeiras experiências
de arte sonora que serão objeto deste ensaio. A produção artística no
Brasil dos últimos 50 anos é pródiga de exemplos das possibilidades
do encontro e da inter-relação entre as artes visuais e a música.
'R ODGR GD P¼VLFD ˉJXUDP RV LQVWUXPHQWRV FULDGRV FRP ULJRU H
qualidade escultóricos por Walter Smetak e mais tardiamente Naná
9DVFRQFHORVȢD HODERUD©¥R GH QRYRV VLJQRV JU£ˉFRV H REMHWXDLV SDUD
a notação musical”16 (primeiramente, Gilberto Mendes e Hans-Joachim
Koellreutter, e posteriormente Livio Tragtenberg) e o encontro dessas
experimentações com a guitarra e o pop (já deixando de ser pop) de
Tom Zé, Mutantes e Caetano Veloso (especialmente no disco Araçá Azul,
31
de 1972), “regidos” por Rogério Duprat, com o círculo experimental da
No disco de Meireles, transformações em nossa percepção de
música concreta e eletroacústica e, mais tardiamente, com a vanguarda
HVSD©RHYROXPHV¥RH[SORUDGDVSRUPHLRGHHVWUXWXUDVFRPRDˉWDGH
musical paulista dos anos 80, com nomes como Arrigo Barnabé e Itamar
Moëbius.
Assumpção; além do uso corrente de expressões como “paisagem
sonora” e “instalação sonora” para se referir às dimensões exploradas
pela “espacialização” do som.
O campo de experiências que atravessaremos começa com
Guilherme Vaz (que ainda em 1970 é convidado a participar da exposição
seminal de arte conceitual Information, no MoMA, em Nova York) e os
discos Mebs/Caraxia (1970/71), de Cildo Meireles, e The Space Between
(1971), de Antonio Dias. Vaz tem em sua trajetória o desenvolvimento
de projetos de arte sonora fronteiriços com trabalhos de antropologia
e música com os povos indígenas sul-americanos, tais como: ZoróPanganej, Gaviao-Ykolem e Araras. Sua investigação marcada por
Em 1969-70, comecei a relacionar uma série de ideias que
estavam ligadas ao objeto ‘disco’. Uma delas é que achava
que, através do som, poderia avançar um pouco mais em
trabalhos que lidavam com a questão da topologia. O
primeiro foi Mebs/CaraxiaFXMRW¯WXORYHPGHGRLVJU£ˉFRV
sonoros. A ideia era fazer uma escultura sonora (...) Um
ODGR FKDPDYDVHȟPHEVȠ SRU FDXVD GD ˉWD GH 0R­ELXV R
outro lado era uma espiral, e para o título dessa espiral,
eu resolvi usar a união de duas palavras referentes a
estruturas espiraladas: caracol e galáxia. Daí o nome
‘caraxia’.19
Mebs/Caraxia é o registro de frequências sendo alteradas.
experiências que remetem a lugares ou povos ancestrais lança-se além
32
do terreno da arte e encontra a pesquisa sobre arqueologia de sons
e povos. Em 1973, Vaz apresentará na Bienal de Paris, a performance/
obra sonora Música para folha de papel, em que intercala silêncios com
VRQVDPSOLˉFDGRVGHEDIRUDGDVGHFLJDUURHUDVJDGXUDVHPXPDIROKD
de papel.17
Retornando à primeira onda de obras sonoras discutidas neste
ensaio, na obra de Dias, os lados do compacto são divididos em: Teoria
do Contar (lado A) e Teoria da Densidade (lado B). Segundo o artista, o
disco decorre da percepção de uma cena...
através de seu conteúdo sonoro, e de uma tentativa de
recriar a mesma com um meio não visual, além de uma
observação sobre as possibilidades técnicas e físicas de
um disco de vinil. Constitui-se em um estudo sobre o
espaço percebido como escultura, que para atingir a sua
realidade exige a desmaterialização do suporte. É um nó
18
no nó.
33
'XUDQWHDJUDYD©¥RHXWLQKDXPJU£ˉFRHˉFDYDVHJXLQGRR
(VWDEHOHFHPRVXPHL[RHHQW¥RDIUHTX¬QFLDˉFDYDDFLPD
ou abaixo dele. Então, nós fomos reconstruindo aquele
JU£ˉFR D LGHLD HUD OLWHUDOPHQWH ID]HU JU£ˉFRV VRQRURV
&RPRRJU£ˉFROLGDYDFRPDIUHTX¬QFLDHRWHPSRHXWLQKD
dois eixos.20
Em período da arte brasileira no qual as ligações com a arte
conceitual se tornaram mais próximas – início dos anos 70 –, é curioso
observar que essas produções estabelecem uma espécie de zona
autônoma frente a um discurso quase uníssono sobre a aproximação
entre arte e política. Ademais, registra-se nova possibilidade de
circulação da obra e do papel do espectador ao mesmo tempo em que
se funda outro lugar para a assinatura do artista. Como assinala Glória
Ferreira, “o lugar da assinatura se transmuta quando o fazer não é um
valor em si, o que é dado à vista não é mais único, mas singular”.21 A
originalidade da obra está agora em seu espetáculo, em sua prestação,
&LOGR0HLUHOHVRDUWLVWDGHFODUDTXHRHVSD©RWHPVLJQLˉFDGRVI¯VLFRV
em sua própria realidade objetiva.
geométricos, sonoros, topológicos e antropológicos.251XPDˊRUHVWDGH
Em 1975, Meireles produz Sal sem carne, um compacto que
apesar de ter sido concebido em Nova York, tem a maior parte de
seu material coletado durante uma viagem do artista a Goiânia, em
1974, planejada para entrevistar índios remanescentes do brutal
massacre dos Krâos. Esse massacre, realizado por Raimundo Soares a
mando de fazendeiros, foi investigado por seu pai, Cildo F. S. Meireles,
quando trabalhava no Serviço de Proteção aos Índios, resultando no
primeiro caso de condenação por assassinato de indígenas no Brasil.
Sal sem carne foi gravado em oito canais: quatro ligados à “civilização
invasora”,22 a cultura dita ocidental, e outros ligados à “cultura local”,23
indígena. O disco foi gravado de maneira que, mudando o balanço do
som, os quatro canais “portugueses” e os quatro indígenas pudessem
ser ouvidos em speakers diferentes. Imerso nessa torre de Babel, a
34
sobreposição de sons não nos comunica nada diretamente, ainda que
nesse estado alucinatório de vozes, línguas e discursos pouco (ou nada)
reconhecíveis sejamos transportados e colocados em contato direto
com uma cultura de gueto...
ou seja, sobre como algo que começa com a restrição de
alguma natureza – seja étnica, ideológica ou econômica
– e no momento em que a situação de diferença e
redução se estabelece, a troca de informação se acelera
de tal maneira que, depois de certo tempo, sempre há
uma inversão (...) A ideia era usar como exemplo disso
a questão da colonização do Brasil: o confronto entre
a chegada dos portugueses e os nativos e como essas
culturas interagiram.24
A banda sonora pode localizar-se de forma periférica na
composição estrutural da obra de arte, mas sua atuação ou a forma como
FRPS·HDUHGHGHVLJQRVHVLJQLˉFDGRVTXHGHVVDREUDWUDQVERUGDP«
altamente duradoura e representativa. Em Fontes (1992), também de
relógios e réguas de carpinteiro, Meireles subverte esses objetos ao
mesclar distintos modos de mensuração – ora temporal, ora espacial;
alguns são precisos, outros não. A banda sonora que contempla o espaço
da obra26 aliada aos inúmeros relógios instalados nas paredes, nos
transportam para a estranha e surreal condição de habitar o mundo;
os relógios, ademais, fornecem informações corretas e incorretas,
colocando a questão: “o que será do ser humano se perder o conceito
GHWHPSRHHVSD©RVXDVJUDQGHVLQYHQ©·HVSDUDRUJDQL]DURPXQGR"ȣ27
Fontes postula um sistema de mensuração que não é absoluto, mas
ˊH[¯YHO GHVPDWHULDOL]DGR Q¥R IXQFLRQDO ‹ GH GHVWDFDU TXH 0HLUHOHV
trabalhará diretamente com a simbiose entre arte, música e som na obra
Liverbeatlespool (2004) realizada durante a Bienal de Liverpool. “A ideia
para esse trabalho era juntar todas as músicas gravadas pelos Beatles e
sobrepô-las, de maneira a criar um sólido.”28 E o artista continua:
Estabelecemos o eixo, o meio exato ou temporal de cada
música. A partir daí, cronometramos a mais longa, Hey Jude,
com cerca de sete minutos. Então, usamos essa canção
como base, e depois de um certo tempo entrava Help até
ˉQDOPHQWH FKHJDUPRV ¢ FDQ©¥R PDLV FXUWD GH WRGDV Pensei na possibilidade de dispor os CD players e altofalantes nos segundos andares dos prédios (...) mas isso
tornou-se impossível (...) decidi que a maneira factível
de mostrar o trabalho era ter um headphone com um CD
player na Tate Liverpool [museu principal que abrigava a
Bienal] e solicitarmos que produzissem uma bicicleta com
alto-falantes e um chip, que distribuiria as duas bandas
de som.29
O hibridismo que se apresenta em Sal sem carne desloca-se para
esse trabalho mais recente na forma de contrastes, ruídos, cacofonias,
distorções e desvios sobre o que se entende como padrão para “música”.
Hibridismo que resulta de uma aproximação entre desiguais que
jamais se completa, abrindo novo espaço de negociação e convívio
35
entre diferenças que não se conciliam. Ainda em Liverbeatlespool,
HP TXDO WHPSR HVWDYD H DR PHVPR WHPSR UHˊHWLD XPD
Meireles volta a explorar duas ideias que estão contidas em suas obras
experiência tautológica.32
sonoras (assim como em sua trajetória, por excelência). Ele assinala a
inadequação da ideia usual de pertencimento para “a compreensão da
dinâmica do mundo contemporâneo e o consequente rompimento da
associação imediata e exclusiva entre lugar, cultura e identidade”.30
Os trabalhos de Meireles e Dias parecem questionar: é possível
HVFXWDUXPDSDLVDJHP"(LVDLQWHUURJD©¥RHVXDVVXFHVVLYDVFDPDGDVGH
dúvidas que essas obras nos confrontam. Nesse emaranhado de ideias,
projetos e histórias, os sons ganham corpo, constroem densidades,
No terreno dos projetos não realizados (seja pela sua
estados da matéria. “O que é dado a ver, mas também o que é dado
LPSRVVLELOLGDGH W«FQLFD RX ˉQDQFHLUD VHMD SHOR IDWR GHOHV H[LVWLUHP
a ouvir forma imagens, sugere atmosferas, revela paisagens sonoras,
unicamente como projeto utópico), Meireles ainda guarda Ryo/Oyr, que
contrastantes, úmidas e secas.”33 Em Deserto (2006), de Paulo Vivacqua,
o artista assim descreve:
essa questão se desloca para uma possibilidade de a paisagem se tornar
som. Em um efeito de quase desmaterialização da forma, restam-nos
36
2 %UDVLO SRVVXL WU¬V EDFLDV KLGURJU£ˉFDV 6¥R )UDQFLVFR
Paraná e Amazonas. Existe um ponto onde essas três
bacias se unem, onde há uma espécie de continuum. Esse
ponto está a 40 quilômetros do Plano Piloto de Brasília e
chama-se Águas Emendadas. Esse projeto seria um disco
que começaria com o som de Águas Emendadas, ou seja,
XPˉOHWHGHXPULDFKRULEHLU¥RHRVRPGDVWU¬VEDFLDV
que naquele local estão todas juntas. Para mim isso é belo
como fato poético da Natureza. O projeto começaria na
nascente e seguiria até as sete quedas do Iguaçu. Seria
uma colagem de arquivos sonoros. No outro lado do disco,
31
seriam sons de bolsas de risos.
ruídos, não como presença, digamos, agressiva, mas fundamentalmente
delicada, suave e – de maneira antagônica – silenciosa. Um chão de
areia permeado por alto-falantes. Nessa miragem/instalação sonora
Q¥RK£HVSD©RSDUDUHFHLRVˉRVHDOWRIDODQWHVGHGLIHUHQWHVGLPHQV·HV
se espalham pela areia, como uma teia parcialmente submersa, gerando
formas que produzem sons transformados em vozes abstratas. Na parede,
um vídeo exibe continuamente o horizonte interior de um céu azul
que gradualmente se torna branco, para depois retornar à cor original,
FRPR XPD HVS«FLH GH DXURUDFUHS¼VFXOR VHP ˉP $ FRQYLY¬QFLD GH
Vivacqua com Koellreutter – daí um exemplo legítimo da proximidade
da música com as artes visuais, e como a arte sonora se apropriará
Percorrendo esses devires utópicos e estabelecendo conexões
das experiências da música concreta e eletrônica34 – propiciou um tipo
com o elemento do rádio, Meireles nos relata novo projeto sobre a
de qualidade ímpar no artista visual: a capacidade de (des)construir e
operação com o tempo. Ouvindo o rádio, o artista descobriu um dado
deslocar a paisagem física em camadas de som.
de defasagem:
A pergunta do parágrafo anterior será deslocada de modo sutil,
A origem desse trabalho é o MOBRAL. Todas as emissoras
tinham que transmitir o programa e sempre no mesmo
horário, mas sempre havia um delay de segundos entre
as emissoras para a abertura do programa. Então, quando
zapeava o dial, ouvia uma informação que ainda ouviria
na outra emissora. Era uma sensação estranha de
desmaterialização da noção de tempo: você não sabia
perverso e de certa forma arriscado por Romano em sua performance
denominada Falante (2007).35 Munido de uma mochila que emite sons
e de uma câmera de vídeo, o artista perambula pelas calçadas da
cidade, emitindo aos berros a frase “Não preste atenção”, solicitando
comunicação e muitas vezes “ouvindo o vazio” como retorno.36 Com
antecedentes em 4 dias e 4 noites (1970) de Artur Barrio, Romano avalia,
37
questiona e expõe o lado mais degradante e individualista da cidade.
das artes visuais. Não por culpa dos artistas, nem da produção, mas
A incomunicabilidade e o estranho tornam-se frequentes e cômodos
SRU XPD RS©¥R LQVWLWXFLRQDO TXH D LVRORX HP XP WHUULWµULR DUWLˉFLDO
na cidade. Nada desestabilizadores, são situações normais, em que
e cerimonioso. Como questiona Luiz Camillo Osorio, “o que se faz
as pessoas não se deixam mais afetar pelo outro. O som estridente e
necessário, todavia, é a arte dispor-se a rever, sem preconceitos, seu
estranhamente mixado converte-se em normalidade e é incorporado
modo de inserção social”.39 Como multiplicar e potencializar essa
pelo cotidiano. Romano estende esse diálogo entre uma suposta
contaminação sem abrir mão da experimentação nem ser capturado
normalidade e o experimentalismo do encontro entre prática artística
SRUXPDIDOVDUHEHOGLDLQVWLWXFLRQDOL]DGD"
e som na obra Chuveiro sonoro (2008). Esse objeto está situado entre
o fato de ser objeto ordinário de um mundo doméstico, “o glamour do
microfone e a glória do rádio”,37 em fronteira entre o público e o privado
impossível de ser traçada. Nessa representação de um mundo carregado
de humor dos cantores de chuveiro, não há espaço para se pensar
apenas no absurdo ou no estranhamento, mas fundamentalmente esse
“erro” (ou deslocamento de espaço) como lugar de discussão sobre a
espetacularização da obra de arte e tudo que por ela é envolvido.
38
Nesse diálogo entre obras de diferentes gerações que se utilizam
da plataforma do som, chegamos ao disco Entrada da Gruta de Maquiné
(1980), de Waltercio Caldas, e aos trabalhos CD da lixa (1999-2000) e
Sem título (2008) de Marssares. Enquanto Caldas (em parceria com o
músico Sergio Araújo) edita o referido LP contendo um trabalho de
cada artista (o de Caldas chama-se Entrada da Gruta de Maquiné, e o
de Araújo, Três músicas), Marssares produz o som físico que o atrito
do CD causa no player. O trabalho de Caldas pode ser lido como um
38
“acontecimento” e não exatamente uma música, porque ao ouvir esse
lado do LP, o “consumidor/espectador” observa a agulha ir diretamente
SDUDRˉPGDIDL[DHPXPLQWHUYDORGHWHPSRLQVLJQLˉFDQWH(PVXD
dupla possibilidade de existência, o som (como experiência material
e fenomenológica) se constitui como múltipla apreensão de mundo.
Observamos que tanto Caldas quanto Marssares, em seus distintos
tempos, têm em comum a disposição de investigar (um de modo
improvisado e irreverente e outro de forma austera) as possibilidades
poéticas propiciadas pelas novas tecnologias. O que salta à vista é a
disseminação de uma vibração poética pouco vista no campo retraído
Em tempos de estéticas relacionais e de sensibilidade coletiva
na qual se inserem as novas formas da prática artística, as obras aqui
comentadas estão mergulhadas em projetos de sociabilidade para serem
inseridas na esfera inter-humana ao mesmo tempo em que apontam
formas de nos orientarmos no caos cultural e de deduzirmos novos
modos de produção a partir dele. Assim, a obra de arte contemporânea
não se coloca como término do processo criativo (um produto acabado
pronto para ser consumido), “mas como um local de manobras, um
gerador de atividades”.402TXHXQHWRGDVDVˉJXUDVGDSU£WLFDDUW¯VWLFD
do mundo é essa dissolução das fronteiras entre consumo e produção.
Nessa nova forma cultural que pode ser designada como cultura
do uso ou cultura da atividade, a obra de arte funciona como o término
provisório de uma rede de elementos interconectados, como uma
narrativa que prolonga e reinterpreta as narrativas anteriores. Na
vídeoinstalação Ão (1980) de Tunga, um plano-sequência em looping
do túnel Dois Irmãos, no Rio de Janeiro, é exibido tendo o refrão
(homônimo) da música “Night and Day” como trilha sonora (o sentido
LQYHUVR GD IUDVH WDPE«P VHUYH FRPR EDVH SDUD D WULOKD $ ˉF©¥R VH
desforra do real: uma imagem nunca está sozinha, ela existe apenas
sobre um fundo (a ideologia) ou relacionada com as imagens anteriores
ou posteriores. Ao produzir imagens que faltam à nossa compreensão
do real, Tunga faz um trabalho político: ao contrário do que se costuma
pensar, não estamos saturados de imagens; estamos submetidos à
escassez de certas imagens, que têm de ser produzidas contra o “status
39
quo da realidade”. Preencher os espaços em branco que pontuam a
LPDJHPRˉFLDOGRTXHFRQYHQFLRQDPRVFKDPDUGHUHDO
&RPR DˉUPD %RXUULDXG D H[SRVL©¥R M£ Q¥R « R UHVXOWDGR GH
um processo, mas o seu local de produção.41 Vivemos em um estado
de potência em que os artistas misturam arte conceitual e pop art,
antiforma e junk art, rock e vídeo, mas também certos procedimentos
da arquitetura, do design, do cinema, da economia e da indústria:
aqui é impossível dissociar as obras de seu pano de fundo social, os
estilos e a história. Chegamos ao caso Chelpa Ferro. O que eles são
H[DWDPHQWH"8PDEDQGDGHnoise rock"8PFROHWLYRGHSHUIRUPDQFH"
1DGDGLVVR"7XGRDRPHVPRWHPSR"2PDLVVHQVDWRSDUHFHVHUGHL[£
ORVQHVVHWHUULWµULRLPSUHFLVRHLQGHFLVR2FXULRVR«TXHDGLˉFXOGDGH
HPFODVVLˉFDURHVWUDQKRQ¥RRWRUQDGRSRQWRGHYLVWDGRFRQVXPR
ou mercado) desprezível. O nicho do experimental também gera valor
de mercado.
40
1HVVD OLQKD GH SHQVDPHQWR VREUH R TXH VLJQLˉFDULD R HVWUDQKR
no campo das artes, percebemos que ao longo da história da arte as
obras que envolvem o componente do som (podemos citar o futurismo
italiano, grupo Fluxus e mais recentemente Bill Fontana e Christian
0DUFOD\ DWUDY«V GH HPEDUDOKDPHQWRV YLVXDLV ˊX[RV GHVFRQW¯QXRV
ruídos provocados e outros coletados ao acaso, silêncios (como o
trabalho Moby Dick, 200342), estão fundamentalmente expressando a
eles vão se adequando ao espaço e adquirindo função
dependendo de onde estão inseridos (...) Gostamos de
passar a ideia de você poder assistir uma paisagem
(recorrente à sua memória) de uma maneira diferente,
como se estivesse vendo-a pela primeira vez. Quando, por
exemplo, mostramos a imagem da máquina de costura, o
espectador estabelece o vínculo entre imagem e som e
aquele objeto ganha outro sentido e potência. Ele passa
a ser entendido, também, como um produtor de sons. Este
fato acrescenta mais uma informação para o entendimento
do que queremos.43
Tateando por esse território da invenção e do som, chegamos à
REUDGH3DXOR1HQˊLGLR2DUWLVWDFULDHPDREUDBerimbau digital
(que posteriormente originará a peça Telembau, de 2006), acoplando
um mouse a um berimbau por meio de circuitos eletromecânicos. “O
clique no mouse resulta na percussão física da corda por uma solenoide
produzindo som.”44 Em simbiose com os universos popular e digital, e
criando paralelos com a obra de outro artista/inventor da história da
arte brasileira – Abraham Palatnik – que promoveu o diálogo entre arte
e física, o artista se insere no terreno fértil da interdisciplinariedade
em que as artes visuais se colocam nesse início de século e promove
a experimentação sonora através de um mecanismo que não cessa de
criar rizomas:
RWUDEDOKRGR&KHOSD)HUUR«FDSD]GHUHGHˉQLUDFRPSUHHQV¥RGHXP
Batizei com o nome de Telembau RQGH 7(/( VLJQLˉFD
‘distante’ e MBAU vem da terminação da palavra ‘berimbau’,
Telembau então é a obra onde um par de berimbaus se
determinado espaço (cotidiano) que por ser exatamente cotidiano, cai
comunicam distantes um do outro.45
existência de elementos comumente associados à vida. Dessa forma,
no esquecimento. O diálogo entre vídeo, objeto e som no trabalho desse
coletivo amplia uma visão de mundo ao mesmo tempo em que, através
de um olhar próprio, redimensiona o cotidiano.
Nós rejeitamos essa ideia de intocabilidade do objeto
GHDUWHRXVHMDDLGHLDTXH«FRQVWUX¯GDFRPRGHˉQLWLYD
adquire o status de obra de arte e à qual é atribuído um
valor. Nossos objetos estão em constante transformação;
A trajetória do Telembau é cercada de inovações técnicas: o primeiro
TelembauFRQVHUYDYDXPDOLJD©¥RHQWUHRVGRLVEHULPEDXVSRUˉD©¥R
elétrica, lembrando os primeiros aparelhos de telégrafo. No segundo,
a conexão se dava por meio de ondas de rádio. Segundo o artista, “ao
percutir a corda de um objeto, um sinal de rádio era enviado para o
outro resultando num bip. A distância entre os dois pode ser de até 60
41
metros”.46 No terceiro protótipo, o som de um objeto era enviado por
arqueólogo ao artista.48 O chiado indistinto também gradualmente se
walk-talkHRDOFDQFHSDVVRXDVHUGHPHWURV1DFRQˊX¬QFLDHQWUH
esclarece: são músicas, notícias e programas radiofônicos que emitem
VRPDUWHHP¼VLFDDREUDWUDMHWRGH1HQˊLGLRXOWUDSDVVDTXDOTXHUWHPD
diferentes visões e vozes, transformando aquele espaço em um ambiente
ou associação direta para ser deslocada em um determinado campo.
de concerto para a cacofonia. Como ressalta Moacir dos Anjos:
Seus objetos são confundidos com instrumentos musicais (e podem ser
O fato desses sons de origem diversas estarem reunidos
em um só canto parece aludir à existência de um espaço
de negociação – simbólico, econômico, político – sobre o
usados como tal) da mesma forma que circulam livremente pelo mercado
de arte. Recentemente produziu Berimbau eletrônico. No encontro entre
U£GLR DUWH H PHFDQLVPRV VRQRURV H WHFQROµJLFRV 1HQˊLGLR UHWLUD D
que cada lugar julga como lhe sendo próprio.49
cabaça e introduz um sensor de proximidade de ondas de rádio captadas
42
pelo corpo humano. Um circuito que funciona como antena de rádio,
Nesse pequeno atravessamento de obras que convergem
capturando ondas eletromagnéticas. Ao aproximar o objeto do corpo,
arte e som realizadas no Brasil nas últimas décadas, percebemos
um efeito de wah-wah é acrescentado ao som produzido pela percussão
que a experimentação praticada por esses artistas converte-se em
da corda. No diálogo que opera em seu trabalho, entre o devir poético
incomunicabilidade e ruído, extrapolando qualquer visão redutora e
da tecnologia e o devir tecnológico da arte, não há nenhuma nostalgia
acentuando o caráter de ambiguidade ao se colocar como mercado
humanista despercebida nem uma recusa conservadora de nosso futuro
em um mundo regido pelo mass media. Em um tempo no qual a
tecnológico. O que há é uma vontade de inserir invenção e delírios em
experimentação se questiona como periferia, as obras comentadas
nossos usos e práticas (híbridas) da tecnologia.
nesse ensaio estão rindo sarcasticamente da sua própria imagem e
condição.
$V FRQYHUJ¬QFLDV HQWUH DUWH H VRP UHˊHWHP VLPXOWDQHDPHQWH D
paulatina fragmentação e desconstrução dos meios formais das artes
visuais – pintura, escultura e mesmo o objeto enquanto media recente
Notas
– rumo à criação de nova espacialidade do som e do corpo, prática
artística cujo cerne é sua característica ambiental, isto é, o campo do
vivido, do experimentado, do imediato, do que está por ser feito, da
elaboração de espaços abertos, da proposição do por vir e não do que
está completo, estruturado. Seguindo pelo território do rádio e de sua
múltipla capacidade de se refazer como mensagem ou signo no campo
da experimentação artística,47 nos deparamos com Babel (2001-06).
Ao entrarmos na câmara escura onde se encontra essa obra, vemos
uma torre formada pelo acúmulo e sobreposição de dezenas de rádios,
ruidosa (apesar de o volume ser mínimo, o formato coletivo proporciona
um som quase ensurdecedor) e iluminada pelos inúmeros leds, que
atribuem à obra a ideia de “contatos imediatos do terceiro grau”. São
rádios de formato e épocas diversos, transmitindo uma prática de
14
No rigor do termo, “arte sonora” deveria indicar apenas obras cujas propostas
utilizassem o som como matéria. Nesse caso, trabalhos sonoros em artes plásticas
estariam em outra categoria, embora “a percepção atual no campo das artes plásticas
envolva não só a visualidade, o olhar, mas as interferências possíveis neste olhar.
Campo amplo de observação envolvendo linguagens distintas, incorporando cheiros,
luzes, temperaturas, sombras, poesia, dança, emissões radiofônicas... o artista passa a
ˉFDUDWHQWRDHVVHVWHUULWµULRVHQULTXHFHQGRRXDOWHUQDQGRRTXHDQWHVHUDPHUDPHQWH
visual” (Zaremba, Lilian (org.). Entre ouvidos: sobre rádio e arte. Rio de Janeiro: Soamerc
Editora/Oi Futuro, 2009, p.13).
15
Como explicita Paulo Sergio Duarte, “a separação entre som e imagem na
experiência vital nossa, não existe. Mesmo trancado numa câmara completamente
isolada de todo e qualquer som, acaba-se ouvindo os ruídos do nosso próprio corpo
(...) a inserção do som nas artes plásticas tem que ser feita de forma muito inteligente
e sutil porque... se tiver aparência de música vai ser julgada com os paradigmas da
música e muitas vezes não se sustenta diante da História da Música. Acho interessante
TXDQGRRDUWLVWDFRQVHJXHGDUXPDFRQˉJXUD©¥RVRQRUDTXHLQWHUDJHIRUWHPHQWHFRPD
43
materialidade plástica, visual, de seu trabalho (...) ou seja, tanto a manifestação acústica
é necessária à manifestação plástica, quanto a manifestação plástica não produz sentido
sem a manifestação acústica (...) uma experiência de arte que é arte visual e arte sonora
ao mesmo tempo” (idem, ibidem).
16
Duarte, Luisa; Cesar, Marisa Flórido. O ciclope ferido. In Cesar, Marisa Flórido;
Pinheiro, Maria Júlia Vieira (eds.). Arte e música. Rio de Janeiro: Caixa Cultural, 2008, p.45.
17
É de notar que o campo arte sonora tem sido recebido com destaque e atenção
no Brasil em um passado recente. O tema da 7a Bienal do Mercosul, em 2009, foi “Grito
e escuta”, incorporando e atravessando uma série de trabalhos com esse tema. Vaz, por
exemplo, apresentou com Romano a performance Crude.
18
Dias, Antonio. Entrevista. In Scovino, Felipe. Arquivo contemporâneo. Rio de Janeiro:
7Letras, 2009, p.63.
28
Meireles, Cildo. Memórias. In Scovino, Felipe (org.). Cildo Meireles, op. cit., p.290.
29
Idem, ibidem.
30
Dos Anjos, Moacir. Babel. Rio de Janeiro/Vila Velha: Artviva Editora/Museu Vale do
Rio Doce, 2006, p.22.
31
Meireles, Cildo. Memórias. In Scovino, Felipe (org.). Cildo Meireles, op. cit., p.250251.
32
Idem, ibidem.
33
Duarte, Luisa; Cesar, Marisa Flórido. O ciclope ferido, op. cit., p.46.
19
Meireles, Cildo. Memórias. In Scovino, Felipe (or.). Cildo Meireles. Rio de Janeiro:
Azougue Editorial, 2009, p. 249.
34
Outro exemplo desse diálogo é o trabalho desenvolvido pelo SoundSystem,
dupla formada pelos artistas Franz Manata e Saulo Laudares.
20
35
Destaco que em 2002 Romano foi convidado por uma rádio comunitária a produzir
uma obra sonora para transmissão radiofônica e, a partir desse convite, começou a
trabalhar com a ideia de produzir um programa de rádio com o conteúdo voltado para
as artes visuais. Seus desdobramentos (o programa Oinusitado foi realizado de maio
de 2003 a abril de 2004 na Rádio Madame Satã passando a se chamar “Imediação”
ao se transferir para a Rádio Interferência – www.radiolivre.org.br/interferencia -,
onde permanece acontecendo de forma ampliada como RádioAberta) são formas de
intervenção nesse meio que se estabelece de forma veloz (o digital) e em outro já
conhecido, mas um tanto esquecido pela maioria (radiofônico).
Idem, ibidem, p.250.
21
Ferreira, Glória. Anos 70: arte como questão. São Paulo: Instituto Tomie Ohtake,
2009, p.261.
22
Meireles, Cildo. Sal sem carne. In Herkenhoff, Paulo. &LOGR0HLUHOHVJHRJUDˉDGR
Brasil. Rio de Janeiro: Artviva Produção Cultural, 2001, p.66.
44
27
Herkenhoff, Paulo; Mosquera, Gerardo; Cameron, Dan. Cildo Meireles. São Paulo:
Cosac & Naify, 1999, p.71.
&LOGR0HLUHOHVFRPSOHPHQWDDELRJUDˉDGHVVDREUDȢ8PGRVFDQDLVGHGLFDGRV
à cultura branca tem como base a rádio-relógio, o tempo. Outro é parte da missa da
procissão. Tem também depoimentos de romeiros miseráveis, que não eram brancos
QHP¯QGLRV$HOHVHXID]LDGXDVSHUJXQWDV9RF¬«XP¯QGLR"9RF¬VDEHRTXH«XP
¯QGLR" (OHV UHVSRQGLDP TXH ¯QGLR FRPLD FDUQH VHP VDO (VVD UHVSRVWD DSDUHFLD FRPR
grande diferenciador. Havia trechos da música da folia. Acabei também entrevistando
um kraô, sobrevivente dos massacres, que era mendigo em Goiânia” (idem, ibidem).
24
In Meireles, Cildo. Memórias. In Scovino, Felipe (org.). Cildo Meireles, op. cit., p.259.
25
Além das obras de Cildo Meireles comentadas neste ensaio, bandas de som
também aparecerão nas suas obras Eureka/Blindhotland (1970-75), O sermão da
montanha: Fiat Lux (1979) e Marulho (1997).
26
“Quando imaginei os relógios, pensei que se eu tivesse quatro paredes de
relógios, teria a coisa em si: um verdadeiro som (...) [Queria] que fosse reproduzido o
PHVPRJU£ˉFRGRVPHWURVHGRUHOµJLRRXVHMDWUDEDOK£VVHPRVFRPDYHORFLGDGHHD
DOWXUD$OWHUDPRVRVJU£ˉFRVWRUQDQGRRULWPROHQWRRXFRPSDFWDGRHWUDEDOKDPRVFRP
quatro possíveis variações, usando cada uma delas nos quatro alto-falantes. Portanto,
eram quatro situações (...) Foi fundamental ter feito uma banda sonora para a peça,
porque além de acentuar o que existia nos relógios e metros, foi criada uma espécie
de cortina isolante que estabelecia um contraponto com a sensação de isolamento,
TXDQGR YRF¬ ˉFDYD QR FHQWUR GD SH©D TXH HUD R OXJDU RQGH WLQKDP PDLV PHWURV H
portanto tornava-se instransponível.” Meireles, Cildo. Memórias. In Scovino, Felipe (org.).
Cildo Meireles, op. cit., p.282-283.
36
Esse tema também foi abordado por mim no ensaio “Sobre o risco no trabalho de
arte” publicado na revista Tatuí online: http://revistatatui.com/revista-online/sobre-orisco-no-trabalho-de-arte/. Acesso em 28.2.2010.
37
Duarte, Luisa; Cesar, Marisa Flórido. O ciclope ferido, op. cit., p.49.
38
CD da lixa é a associação de duas imagens: um CD forrado de lixa e uma gravação
sonora de um ponto esticado como uma massa, uma célula sonora de tambores
inicialmente com poucos segundos de duração que, depois de esticada, passa a ter
aproximadamente quatro minutos. O CD gira e produz arrasto no player, “uma metáfora,
TXDVHUHDOGRDWULWRDRJLURHGDGDQLˉFD©¥RGRDSDUHOKRȣ&HVDU0DULVD)OµULGR3LQKHLUR
Maria Júlia Vieira (eds.). Arte e música, op. cit., p.26). Já em Sem título, com o uso de uma
furadeira o CD foi perfurado. Uma broca atravessou diversas vezes a superfície da mídia.
Quando o laser do leitor óptico cai em um desses furos, o CD player se perde e tem que
UHLQYHQWDURSHUFXUVRGHOHLWXUD&RPRDˉUPDRDUWLVWDȢRVRPTXHHVW£JUDYDGRDTXL
é o ambiente de um espaço aberto, uma paisagem. Agora existem furos na paisagem
OLJDQGRLQˉQLWRDLQˉQLWRȣLGHPLELGHP
39
Osorio, Luiz Camillo. Chelpa Ferro maverick. In Zaremba, Lilian (org.). Entre ouvidos:
sobre rádio e arte, op. cit., p.112.
40
Bourriaud, Nicolas. Pós-produção. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p.16.
41
Idem, ibidem, p.79.
45
42
“Em uma sala expositiva, o visitante depara-se tão somente com uma agigantada
bateria, repleta de tambores, pratos, címbalos, pedais e um banco para acomodar um
possível músico. O título do trabalho (...) é uma referência à música homônima gravada
pelo Led Zeppelin em 1969, em que o baterista John Bonham faz um longo solo em seu
instrumento. A ausência de baquetas indica que a bateria não está exposta para ser
tocada: nem pelos integrantes do Chelpa Ferro, nem pelo público (...) O instrumento é
mantido mudo.” Cf. Dos Anjos, Moacir. O barulho do mundo. In Ferro, Chelpa. Chelpa Ferro.
6¥R3DXOR,PSUHQVD2ˉFLDOGR(VWDGRGH6¥R3DXORS
43
TERRITÓRIOS E PERCEPTOS:
PESQUISA E EXPERIMENTOS
PARA COMBINAR OS SENTIDOS
DA VISÃO, AUDIÇÃO,
OLFATO E TATO
Zerbini, Luiz. In Scovino, Felipe. Arquivo contemporâneo, op. cit., p.152-153.
1HQˊLGLR 3DXOR 3HTXHQD KLVWµULD VREUH R 7HOHPEDX H REMHWRV UDGLRI¶QLFRV ,Q
Zaremba, Lilian (org.). Entre ouvidos: sobre rádio e arte, op. cit., p.125.
45
Rejane Cantoni
Idem, ibidem.
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
46
O som produzido pela percussão da corda podia ser captado por todo walk-talk
sintonizado naquele canal, em um raio de 300 metros (idem, ibidem).
47
Para uma leitura mais atenta sobre esse assunto, recomendo o ensaio de Lilian
Zaremba denominado “Entreouvidos: sobre rádio e arte”, publicado em Entre ouvidos:
sobre rádio e arte, op. cit.
46
48
Tanto em Helsinque quanto em São Paulo (duas cidades em que essa obra foi
montada), o artista percorreu brechós e lojas que vendem produtos usados procurando
rádios antigos que pudessem ser utilizados na obra. Segundo o artista, “na Finlândia, eu
acho que ‘acabei’ com todo esse mercado, porque a torre tinha 1.000 rádios, e isto de
certa forma, poderia ser entendido como um marco para a história do rádio na Finlândia.
Foi a possibilidade de manter e preservar um acervo que seguramente se perderia”
(Meireles, Cildo. Memórias. In Scovino, Felipe (org.). Cildo Meireles, op. cit., p.287).
49
Imagine entrar em uma sala, caminhar até uma parede e solicitar
informações sobre a Terra e o Sol. Via fala, dispositivos audiovisuais e
táteis, esse sistema fornece um mapa 3D da região, pergunta (falando
com o usuário, é claro) se o output gerado é a informação requerida e
interpreta os gestos do interator em tempo real.
Dos Anjos, Moacir. Babel, op. cit., p.23.
Esse cenário é uma das capacidades propostas nesta pesquisa,
Sobre o autor
cujo objetivo é investigar tecnologias e explorar estratégias artísticas
H FLHQW¯ˉFDV SDUD GHVHQYROYHU QRYRV PRGHORV GH LQWHUIDFHV KXPDQR
máquina. A pesquisa intersecta quatro áreas tecnológicas – realidade
Felipe Scovino – Professor adjunto do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da
UFRRJ e curador independente, escreve sobre arte contemporânea brasileira para
periódicos nacionais e estrangeiros. Autor de Arquivo Contemporâneo (7Letras,
2009) e Cildo Meireles (Azougue Editorial, 2009), recebeu a bolsa estímulo à
produção crítica da Funarte em 2008.
virtual, realidade aumentada, computação ubíqua e cinema do futuro –
aplicadas a experimentos protótipos.
Pesquisa
(QWUH RV F\EHUSHVTXLVDGRUHV « FRQVHQVXDO D DˉUPD©¥R GH TXH DV
tecnologias digitais irão introduzir mudanças que abrangem desde a
47
implementação de novos modelos de representação e de organização
seu estudo. Vale lembrar que muito do que consideramos ser produtos
do conhecimento até nossa transformação ou expansão cognitiva.
da arte, ciência e tecnologia atuais derivam do século XVII.
Exemplo interessante de como isso ocorre, é o argumento
Resumindo, portanto, o que a exótica proposta de Kay sugere é
elaborado por um dos pais do computador pessoal, Alan Kay. No texto
que a invenção de uma tecnologia não coincide com as inovações que
“The computer revolution hasn’t happened yet”, ele formula uma série
ela produz. Segundo argumenta o autor, a imprensa foi criada 200 anos
de perguntas sobre a introdução das interfaces da escrita impressa que,
antes que a literalidade se tornasse um valor para a sociedade. O que
todos concordamos, transformaram consideravelmente a sociedade
também parece acontecer com o computador e com o cinema.
oral. As perguntas de Kay são:
Quando a revolução da escrita impressa realmente
DFRQWHFHX"
Computador
Foi em meados do século XV, quando Gutenberg realizou
sua Bíblia de 42 linhas e exibiu 20 cópias – que tinham a
aparência de um livro escrito à mão – na feira de livros de
1XUHPEHUJ"
No caso do computador (na versão do dia a dia), ele foi criado há
aproximadamente 65 anos e continuamos a utilizá-lo imitando antigas
formas de operar e de interagir com outras máquinas familiares, isto é,
datilografando em máquina de escrever acoplada a aparelho de tevê.
48
Ou foi no século XVI, quando Martin Luther e William
Tyndale realizaram a tradução da Bíblia para o inglês e
SDUD R DOHP¥R GDQGR LQLFLR ¢ 5HIRUPD" SDUD TXHP Q¥R
lembra Tyndale foi estrangulado e queimado por esse
esforço).
Ou foi durante o século XVII, quando novos estilos de
argumentação e formas de pensar o mundo começaram a
VHUHVFULWRVHOLGRV"50
É difícil responder a essas questões, mas Alan Kay prefere a
hipótese do século XVII. Segundo ele, novas formas de pensar o mundo
foram introduzidas pela tecnologia da impressão não por meio da
propagação da Bíblia ou do que Aristóteles possa ter dito no passado.
Na opinião de Kay, o impacto dessa tecnologia realmente se deu porque,
Vale lembrar, no entanto, que muitos dos estudiosos das
interfaces humano/computador apostam que existirá um tempo em
que computadores serão utilizados de modo único, e que hoje não
conseguimos vislumbrar porque não é possível fazê-lo dentro da
tradição e lógica do oral e da escrita.
Exemplo radical desse tipo de proposta é a defendida pelo
cientista e músico Jaron Lanier, frequentemente apontado como “pai
da realidade virtual” e que cunhou a expressão virtual reality, fundou
a VPL Research, Inc., empresa pioneira na comercialização (anos 80)
de sistemas de realidade virtual, e coinventou uma variedade de
tecnologias fundamentais a esses sistemas.
a partir dela, seus usuários tiveram oportunidade de elaborar hipóteses
Lanier entrou para esse ramo com o propósito de melhorar a
e inferências que só poderiam ser construídas por meio de determinada
interface humano/computador em complexas tarefas de programação.
cadeia de pensamentos não passível de ser seguida oralmente e que
No início dos anos 80, criou jogos eletrônicos para a Atari, sendo
demandava ser escrita e reproduzida para efetivar sua transmissão e
o videogame Moondust grande sucesso de público. Com o dinheiro
49
recebido pelos direitos autorais do Moondust, Lanier desenvolveu
de comunicação com que se criaria diretamente uma
realidade compartilhada em tempo real, em estado de
uma ideia radical: implementar uma linguagem de programação
vigília, um sonho improvisado.51
pós-simbólica (post-symbolic programming language), que utiliza, por
notação, desenhos animados musicais.
O interessante vem a seguir: enquanto trabalhava no projeto
da linguagem de programação pós-simbólica, Lanier percebeu que
as implicações derivadas dos avanços tecnológicos das interfaces
Interessante observar que, em palestra proferida na 16a edição
do Festival Videobrasil, o diretor de cinema e artista híbrido Peter
Greenaway revelou que a ideia de Lanier corresponde e muito ao ideal
GHˉOPHLPDJLQDGRSHORFLQHDVWDfranco-suíço Jean-Luc Godard.
humano/computador teriam impacto muito extenso, a ponto de poder
LQˊXHQFLDUWDQWRRdesign das linguagens de programação quanto o uso
e as funções da linguagem natural. Em sua opinião, à medida que nossa
Cinema
realidade se torna “comunicável” (através da evolução das interfaces
humano/computador), torna-se possível imaginarmos no futuro a
A ideia de utilizar técnicas alternativas para desenvolver ambientes
comunicação de ideias sem a interferência de referências simbólicas.
imersivos e interativos e expandir e experiência cinemática data dos
Em entrevista ao editor Corey S. Powell, da 6FLHQWLˉF$PHULFDQ, em
1996, Lanier descreve essa ideia:
50
Tenho a impressão de que poderemos estar nos dirigindo
para um mundo no qual crianças crescem com a habilidade
de programar e desenvolver pequenos mundos virtuais
que representam seus pensamentos; talvez ainda uma
próxima geração de crianças desenvolvessem habilidades
semelhantes, mas com ferramentas muito melhores, de
forma que os conteúdos dos mundos virtuais pudessem ser
criados muito rapidamente, no ritmo de uma improvisação.
Se elas puderem de fato fazer isso e se elas tiverem uma
interface que possibilite compartilhar mundos virtuais,
que é superbarata e de alta qualidade, que permita a
participação de todos, então, enquanto crescem, poderão
criar entre elas uma nova forma de linguagem. Essa é
uma nova forma de comunicação, pela qual pessoas
poderão criar diretamente um mundo compartilhado por
meio de programação, modelando em tempo real, o que
é oposto à mera utilização de palavras, às ferramentas
que hoje temos para descrever as coisas. Isso é como
eliminar a mediação das palavras e encontrar nova forma
anos 50. Um exemplo histórico é o Pavilhão da Phillips, desenhado,
em 1958 para a Exposição Universal de Bruxelas, pelo arquiteto suíço
Le Corbusier. Considerado uma espécie de marco da produção da arte
moderna, dois milhões de visitantes foram expostos a um autêntico
show multimídia (uma tremenda novidade para a época se pensarmos
nos típicos quiosques de apresentação de produtos utilizados até hoje
em feiras do gênero). O programa apresentado exibia 480 segundos
de efeitos de luz, som, vozes e imagens controlados por um sistema
automatizado.
Ainda nos anos 50 surge outro exemplo: sob o impacto da televisão,
D LQG¼VWULD FLQHPDWRJU£ˉFD GHFLGH H[SHULPHQWDU W«FQLFDV LOXVLRQLVWDV
como cinema 3D, som estereofônico e novos sistemas de projeção
em grandes telas. A mais conhecida dessas tecnologias é o Cinerama,
LQWHUIDFHFLQHP£WLFDTXHXWLOL]DYDWU¬VF¤PHUDVFLQHPDWRJU£ˉFDVSDUD
ˉOPDUFDGDFHQDSDUWLQGRGH¤QJXORVOLJHLUDPHQWHGLIHUHQFLDGRV1DV
VDODVGH&LQHUDPDRˉOPHUHVXOWDQWHHUDSURMHWDGRSRUWU¬VSURMHWRUHV
em telas de grandes dimensões, dispostas de maneira a compor uma
espécie de semicírculo. A dimensão da imagem era, na maioria dos
casos, três vezes mais larga e duas vezes mais alta do que a utilizada
51
em salas de projeção tradicionais, o que, para o espectador, resultava em
Quase simultânea à implementação do Sensorama apareceu
H[SHUL¬QFLDFLQHPDWRJU£ˉFDGLYHUVDWLQKDVHDVHQVD©¥RGHYLYHQFLDUD
outra versão dessas ideias. O artista-cientista Myron W. Krueger
cena de um ponto de vista interno. Você era o ator.
idealizou também ambientes imersivos e interativos, só que dessa vez,
2MRYHPFLQHDVWD0RUWRQ+HLOLJLPHGLDWDPHQWHLQˊXHQFLDGRSHOR
&LQHUDPD FRPH©RX D LPDJLQDU PDQHLUDV GH FULDU ˉOPHV LPHUV¯YHLV
que combinassem os sentidos da visão e da audição ao olfato e ao
tato. Supôs que o cinema do futuro seria uma espécie de “teatro
experimental”, cuja audiência poderia tocar, ouvir, sentir o cheiro e ver.
Essa ideia ocupou Heilig por muitos anos. Seu objetivo era desenvolver
um aparato que proporcionasse a uma audiência, mediante estímulos
multissensoriais, viver uma experiência altamente realista. Primeiro ele
estudou os canais sensórios: a visão, a audição, o tato e o olfato. Depois
analisou a tecnologia disponível que poderia ser utilizada para simular
52
o visitante e seus gestos alteravam as imagens. Um exemplo é a obra
Videoplace (1975). Nesse trabalho Krueger utilizou câmeras associadas
a diversos equipamentos (solo sensível e vários tipos de sensores, por
exemplo) para captar os movimentos do corpo dos participantes. A
obra funcionava assim: o computador de Krueger recebia informações
sobre as silhuetas, movimentos e gestos dos participantes, e esses
dados provocavam ‘reações’ no ambiente. Essas reações eram exibidas,
QDPDLRULDGRVFDVRVQDIRUPDGHSURMH©·HVGHLPDJHQVYLGHRJU£ˉFDV
e de imagens computacionais (quase sempre a imagem projetada do
participante, mixada a efeitos de som e luz).
estímulos sensoriais. Esses estudos serviram para esquematizar um
A ideia de “transportar” o observador para dentro de um tipo
plano de ação (que previa a criação do que ele denominou experience
VRˉVWLFDGR GH FLQHPD o, cujas imagens se alteram de acordo com
theater) com base nas peças que estavam faltando.
nossos gestos, acabou gerando ainda muitos outros produtos artísticos,
6HP UHFHEHU DSRLR ˉQDQFHLUR SDUD VHX ȢWHDWUR H[SHULPHQWDOȣ
Heilig decidiu construir, em 1962, uma versão portátil e pessoal como
forma de demonstrar seus conceitos. O Sensorama, nome que recebeu
o protótipo, era uma cabina imersiva, composta de assento vibratório,
guidom, dispositivo de visualização binocular, ventiladores, alto-falantes
FLHQW¯ˉFRVHWHFQROµJLFRV2PDLVDPELFLRVRGHOHVUHFHEHXRQRPHGH
sistema de realidade virtual, um conjunto de equipamentos desenhado
para nos possibilitar experimentar algo similar ao que acontece com
R SHUVRQDJHP LQWHUSUHWDGR SHOR DWRU -HII %ULGJHV QR ˉOPH Tron: uma
odisséia eletrônica, “aspirado” para dentro do mundo computacional.
estereofônicos e dispositivo nasal. Ao sentar na cabina o interator
É interessante lembrar que em 2003, no importante ZKM Center
tinha a experiência multissensorial simulada de conduzir uma moto,
for Art and Media Karlsruhe, os artistas e teóricos das novas mídias
ouvir o som ambiente, sentir o terreno, o vento na pele e o cheiro das
Jeffrey Shaw e Peter Weibel organizaram uma exposição intitulada
dunas da Califórnia ou do centro do Brooklyn. A estimulação sensorial
)XWXUH &LQHPD WKH FLQHPDWLF LPDJLQDU\ DIWHU ˉOP TXH DSUHVHQWRX
HUD SURGX]LGD SRU VHTX¬QFLDV FRPELQDGDV GH ˉOPHV ' VRP HVW«UHR
LQ¼PHURV SURMHWRV HPY¯GHR ˉOPH FRPSXWD©¥R LQVWDOD©·HV LPHUVLYDV
vento, aromas e outros efeitos predeterminados. Esse sistema possuía,
e interativas, etc. A ideia dessa exposição (e do livro que acompanha o
contudo, uma limitação: não era possível controlar seu ponto de vista
projeto), segundo texto curatorial, foi mapear destacados experimentos
ou fazer outro percurso, a não ser aquele estabelecido por Heilig, ou
DUW¯VWLFRVFLHQW¯ˉFRVHWHFQROµJLFRVTXHSURVSHFWDPVREUHRIXWXURGR
seja, não se podia explorar de qualquer outro modo a imagem, nem com
aparato cinemático.
ela interagir.
53
Experimentos
em quatro molas, uma em cada canto. Duas de suas faces giram em seu
eixo central. Uma bascula e outra pivota. A pivotante age também como
O escopo dessa interface cinemática, que inclui todas as formas de
porta de acesso a seu interior.
imagem em movimento, “renderizada” e visível por meio de qualquer
(VSHOKDGR SRU IRUD UHˊHWH R HVSD©R D VXD YROWD (VSHOKDGR SRU
tipo de tela ou de ambiente imersivo e por qualquer tipo de estrutura
GHQWUR DR IHFKDU D SRUWD SURYRFD UHˊH[·HV LQˉQLWDV HP WRGDV DV
lógica narrativa estimulou-me a implementar aplicativos que
direções. As paredes não se tocam, ou seja, o espaço exterior é visível
possibilitem ao interator explorar (em 360º) e interagir de maneira
através de linhas de três centímetros de espessura por três metros de
natural com bancos de dados e ambientes naturais, virtuais, remotos
FRPSULPHQWR (VVDV OLQKDV V¥R UHˊHWLGDV JXDUGDQGR D FRU D OX] H R
RXK¯EULGRV2GHVDˉRSURSRVWRQHVVDSHVTXLVDSRUWDQWRYLVDSHVTXLVDU
PRYLPHQWR GD FHQD H[WHULRU H HP UHˊH[·HV P¼OWLSODV JHUDP HIHLWR
e desenvolver interfaces centradas no humano e que consideram as
FDOHLGRVFµSLFR,PDJLQHHVWDUQRFHQWURGHVVHFXERUHˊHWLGRHPFDGD
capacidades perceptivas e cognitivas do interator. Iniciada em janeiro de
uma de suas seis paredes e por todas as quinas e arestas.
2007, entre outros resultados, os projetos ,QˉQLWRDRFXER, Piso, Espelho e
Solar, concebidos e desenvolvidos em parceira com o fotógrafo, diretor
Quando estiver posicionado no centro, o cubo se alinha em sua
GH IRWRJUDˉD H DUWLVWD /HRQDUGR &UHVFHQWL V¥R DOJXQV GRV SURGXWRV
posição neutra horizontal a 0o DV UHˊH[·HV DJRUD V¥R RUWRJRQDLV 6H
FLHQW¯ˉFRVHDUW¯VWLFRVH[HFXWDGRVGXUDQWHHVVDSHVTXLVD
andar para frente, o cubo todo se inclina em até 3o provocando báscula
com angulação relativa ao conjunto de até 3o na parede a sua frente,
54
Em regra, esses experimentos manipulam aspectos do código
GLVWRUFHQGRRHVSD©RUHˊHWLGRHPVHXLQWHULRUFXUYDQGRRSDUDEDL[R
cinemático via abordagem orientada ao aparato, isto é, nesses protótipos
Se caminhar para trás, a parede bascula em sentido contrário, curvando
a ênfase está no design customizado de interfaces cinemáticas que
o espaço para cima. Deslocando-se para a esquerda, o cubo todo se
possibilitam
multissensoriais
inclina para a esquerda em até 3o pivotando a parede a suas costas
de interação e de agenciamento sujeito/tela. Esses experimentos,
em também até 3o FXUYDQGR R HVSD©R UHˊHWLGR SDUD D HVTXHUGD DR
portanto, divergem dos formatos de aparatos convencionais. No lugar
deslocar-se para a direita, causa o efeito simétrico. Ao andar para
da imagem projetada em tela de uma sala escura, o escopo dessa
uma das quinas o resultado será a composição de dois desses quatro
interface cinemática inclui todas as formas de imagem em movimento,
movimentos. Três graus é a angulação que, multiplicada por três
“renderizada” e visível por meio de qualquer tipo de tela, superfície
UHˊH[·HVID]GHVDSDUHFHUDRVoD¼OWLPDUHˊH[¥R
estimular
diferentes
mecanismos
UHˊH[LYD RX GH DPELHQWH LPHUVLYR H SRU TXDOTXHU WLSR GH HVWUXWXUD
lógica narrativa.
'HVHQKH R HVSD©R LQˉQLWR XWLOL]DQGR D PDVVD GH VHX FRUSR H
através de seu deslocamento no interior do cubo. Construa curvas para
,QˉQLWRDRFXER
cima e para baixo, para a esquerda ou direita, inclinando suavemente
todo o conjunto, rotacionando duas de suas paredes através de um
preciso sistema de contrapeso, roldanas e cabos de aço.
Imagine um cubo espelhado de três metros de lado, suspenso a 25
centímetros do chão, apoiado numa cruzeta no centro de sua base e
55
$ DUTXLWHWXUD UHˊHWLGD GHVOL]DQGR VXWLOPHQWH QDV IDFHV H[WHUQDV
(VSHOKR
torna o cubo quase invisível mimetizado pelo entorno. A sensação de um
HVSD©RIHFKDGRH[SORGLUDRLQˉQLWRID]SHQVDUQDGLPHQVLRQDOLGDGH$
Dispositivo óptico interativo, desenhado para deformar um espelho no
FRPSUHHQV¥RGRLQˉQLWR«SRVV¯YHO,QˉQLWRDRFXERVµPDWHPDWLFDPHQWH
eixo Z a partir da distância relativa de um observador.
impossível.52
Imagine um dispositivo óptico com campo sensório variável de oito
metros a 60 centímetros. Fixo à parede, esse espelho está programado
3LVR
para medir, permanentemente, a distância que você está dele, e a ela
reagir. A oito metros ele será convexo, a 60 centímetros será côncavo
Trata-se de instalação interativa composta por passarela de aço inox
H XWLOL]DQGR FRHˉFLHQWH GH GHIRUPD©¥R PHGLGR HP FHQW¯PHWURV HOH
de 20m de comprimento por 1,25m de largura; carrinho com oito rodas
assumirá, em função de parâmetros de distância gerados por você,
e 750 rolamentos que desliza sob a chapa de aço inox tracionado por
posições intermediárias de um extremo a outro passando (é claro) pela
correia dentada movimentada por motor de 3HP trifásico com redução
SRVL©¥R SODQD $VVLP WRGDV DV IRUPDV UHˊHWLGDV QR GLVSRVLWLYR LVWR
de 20:1 controlado por inversor de frequência e potenciômetro.
« R VHX UHˊH[R H R UHˊH[R GR HVSD©R HP TXH YRF¬ HVW£ FRPH©DU¥R
2FDUULQKRFXMRSHUˉOWHPIRUPDGHXPDRQGDGHVOL]DVREDFKDSD
de aço inox acionado pelo peso do interator numa das extremidades
56
da passarela. O tempo de percurso de uma extremidade à outra pode
variar de 90 a 45 segundos. Ao chegar na extremidade oposta, a onda
a se deformar proporcionalmente. Você e o espaço físico a sua volta,
UHˊHWLGRVQHVVHEspelho, passarão por deformações esféricas dinâmicas,
aumentando ou diminuindo, em função da distância que dele você
mantiver.
SDUDDXWRPDWLFDPHQWHFRPDQGDGDSRUXPȢˉPGHFXUVRȣTXHGHVOLJDR
O dispositivo é composto de uma superfície espelhada emoldurada
motor, aguardando que seja acionado novamente pelo peso desse ou de
por uma estrutura metálica branca, de 1,20 x 1,50 x 0,125m. Na lateral
outro interator nessa extremidade, enviando a onda de volta à posição
inferior da moldura metálica há um sensor ultrassônico, cujo campo
anterior, e assim procede enquanto houver a presença de interatores
sensório é programável entre oito metros, distância máxima, e 60
QDVH[WUHPLGDGHVGDSDVVDUHODb
centímetros, distância mínima, e suas funções são calcular e informar,
$FKDSDGHD©RLQR[UHˊHWHRDPELHQWHHDVSHVVRDVDVXDYROWD
em milesegundos (ms), a que distância do dispositivo está o interator.
que são deformados conforme a passagem da onda. Uma linha de luz
No interior da moldura, por trás do espelho, encontra-se controlador
é projetada lateralmente em uma das paredes. À medida que a onda
lógico programável, motor de passo e braço robótico. O controlador
VH GHVORFD D VXSHUI¯FLH GH UHˊH[¥R VRIUH GHIRUPD©¥R TXH UHˊHWH HP
lógico programável (CLP) é uma interface de processamento. Sua função
curvas a linha formada. A sensação de uma onda passar por baixo do
é acionar o motor de passo em função dos parâmetros posicionais
FRUSROHYDQWDQGRXPS«DSµVRRXWUR«FRPRˊXWXDUQRPDU8PPDU
captados pelo sensor ultrassônico. Quando, como e por quanto tempo o
de aço que desliza lentamente, forte, indiferente e generoso em seu
motor é acionado, depende de scriptFRGLˉFDGRQD&/32DFLRQDPHQWR
movimento.53
do motor coloca em movimento o mecanismo do braço robótico,
desenhado para deslocar a superfície espelhada no eixo Z. A direção da
57
força aplicada em Z é dinâmica, isto é, o braço robótico, em função dos
simular a posição e a intensidade da luz solar relativa ao espaço-tempo
parâmetros captados pelo sensor, empurra ou puxa o espelho. Composto
solicitado.
GHXPDURVFDVHPˉPȢMXQWDȣXPDDODYDQFDȢEUD©RȣXPDJDUUDȢP¥R
espalmada com seis dedos”), todas as ações desse mecanismo ocorrem
principalmente no centro da superfície espelhada. Por meio dos seis
pontos de contato, o braço produz no espelho deformações ópticas
Aos olhos de um observador externo, sem movimento ou sem
comando sonoro do interator, o tempo, nessa máquina, permanece
parado.55
próximas a aberrações esféricas.54
Notas
6RODU
Instalação robótica, imersiva e interativa, desenhada para simular
qualidades e medidas da luz solar na relação humano/espaço-tempo.
O interator pode agenciar a máquina de duas maneiras: controlar com
RVS«VVXDSRVL©¥RJHRJU£ˉFDHRXSRGHIDODUFRPHOD$JHQFLDPHQWRV
via posicionamento possibilitam ao interator informar uma posição
58
JHRJU£ˉFDDREDQFRGHGDGRV
Um exemplo possível desse tipo de interação usuário/sistema
seria: você entra na máquina – uma rotunda preta de 6,30m de diâmetro
por 3,50m de altura, cujo piso apresenta, no centro, uma plataforma
móvel. Ao pisá-la, a força gravitacional de seu corpo é interpretada pelo
sistema que, em função de sua latitude e longitude relativas, altera o
setup original. Por exemplo: quando você pisa a frente da plataforma,
o sistema avança em direção ao Norte, isto é, produz, na parede de
50
Kay, Alan. The computer revolution hasn’t happened yet. In Denning, Peter J.,The
invisible future: the seamless integration of technology into everyday life. New York:
McGraw-Hill, 2001, p.108-115.
51
http://www.well.com/Community/Jaron.Lanier/index.html.
52
,QˉQLWRDR&XER, 2007 - concepção e implementação: Rejane Cantoni e Leonardo
Crescenti / detalhamento do projeto e desenho técnico: Fábio Fernandez de Almeida
/ técnico em efeitos especiais: Guilherme Steger / solda: Almir Viana / torno: Bruno
Roberto Steger / assistente: Luiz Fabiano Caldeira.
53
Piso, 2007 - concepção e implementação: Rejane Cantoni e Leonardo Crescenti /
efeitos especiais: Guilherme Steger.
54
Espelho, 2008 - concepção e implementação: Rejane Cantoni e Leonardo Crescenti
/ técnico em efeitos especiais: Guilherme Steger / técnico em solda: Almir Viana /
programação do CLP: Francisco Deodato / apoio: Schneider Electric Brasil Ltda. –
Divisão Atos e Sense Eletrônica Ltda.
55
Solar, 2009 - concepção e implementação: Rejane Cantoni e Leonardo Crescenti /
programação: Victor Gomes / técnico em efeitos especiais: Guilherme Steger / interface
robot-PC: Gabriel Martinez / assistente: Luis Carlos da Silva / apoio: MIS (Museu da
Imegem e do Som) e Genius Instituto de Tecnologia.
plasmas, feedbacksYLVXDLVTXHVHDSUHVHQWDPFRPRPRGLˉFD©·HVQDV
latitudes das linhas imaginárias que, nesse caso, avançam do Equador
Sobre a autora
para o Círculo Polar Ártico (ver no DVD exemplo de navegação na
direção inversa, Sul).
Agenciamentos via comando de voz, por outro lado, possibilitam
ao interator precisar uma data e o momento de um evento. Por
exemplo: quando o interator diz “3 de agosto às 15h”, o sistema associa
a esse comando a informação da sua posição relativa, o que possibilita
Rejane Cantoni – Artista e pesquisadora de sistemas de informação. Pós-doutora
em Cinema, Rádio e Televisão pela USP, doutora e mestre em Comunicação e
6HPLµWLFDSHOD38&63HPHVWUHHP9LVXDOL]D©¥RH&RPXQLFD©¥R,QIRJU£ˉFDVSHOD
Universidade de Genebra, Suíça. [www.rejanecantoni.com]
59
LABORATÓRIO DE PERCEPTOS
E AFETOS: RITUAIS DE
PASSAGEM E GEOGRAFIA
DOS SENTIDOS DA ARTE
Luiz Guilherme Falcão Vergara
Universidade Federal Fluminense
60
ƒ†ƒ†‡…‹–ƒ”ƒDz‹•’‹”ƒ­ ‘dz’ƒ”ƒŒ—•–‹ϔ‹…ƒ”ƒ‹””‡•’‘•ƒ„‹Ž‹†ƒ†‡Ǥ
inspiração que ignora a vida e é ela mesma ignorada pela vida não é ‹•’‹”ƒ­ ‘ƒ•‘„•‡•• ‘Ǥ•‡–‹†‘…‘””‡–‘‡ ‘‘ˆƒŽ•‘†‡–‘†ƒ•ƒ•
questões antigas, relativas à inter-­relação de arte e vida, à arte pura e etc. é o seu verdadeiro patos apenas no sentido de que arte e vida desejam ˆƒ…‹Ž‹–ƒ”—–—ƒ‡–‡ƒ•—ƒ–ƒ”‡ˆƒǡ‡š‹‹”Ǧ•‡†ƒ•—ƒ”‡•’‘•ƒ„‹Ž‹†ƒ†‡ǡ
’‘‹•±ƒ‹•ˆž…‹Ž…”‹ƒ”•‡”‡•’‘†‡”’‡Žƒ˜‹†ƒ‡ƒ‹•ˆž…‹Ž˜‹˜‡”•‡
…‘–ƒ”…‘ƒƒ”–‡Ǥ”–‡‡˜‹†ƒ ‘• ‘ƒ‡•ƒ…‘‹•ƒǡƒ•†‡˜‡
–‘”ƒ”Ǧ•‡ƒŽ‰‘•‹‰—Žƒ”‡‹ǡƒ—‹†ƒ†‡†ƒ‹Šƒ”‡•’‘•ƒ„‹Ž‹†ƒ†‡Ǥ
Mikhail Bakhtin56
Em tudo interessa o que não é tudo! Interessa na vida o que não é vida. Na arte interessa o que não é arte. No corpo interessa o que não é corpo. ƒϔŽ‘”‹–‡”‡••ƒ‘“—‡ ‘±ϔŽ‘”Ǥ Na alma interessa o que não é alma….
Decio Pignatari
(VFULWDUHˊH[LYDGRHVSD©RJHRJUDˉDVGHD©·HV
‹ GHQWUR GH XPD HVIHUD PLFURJHRJU£ˉFD GH DIHWRV H SHUFHSWRV TXH
esta abordagem busca apontar para cada experiência cultural como
estruturante de sentidos de um cidadão, inauguradora no tempo
61
e espaço de um ritual e laboratório de passagens que seguem um
como agenciadora de uma consciência estruturante, geradora de novas
processo de totalizações entre linguagem e acontecimento, memória e
VLQDSVHVFRJQLWLYDVVHQV¯YHLV(VVDPLFURJHRJUDˉDGHD©·HVQ¥RVHG£
consciência. Ao mesmo tempo, essa experiência-linguagem que remete
isoladamente, e sim como laboratório poético-cognitivo, mas também
aos discursos artísticos contemporâneos também é estruturante de
político e pedagógico, em que, pelo exercício de interações sociais,
uma forma de interação social pela qual esses discursos se aproximam
SHUFHSWRVVHUHVVLJQLˉFDPHPDIHWRV‹SRO¯WLFRHLQVWLWXFLRQDOWDPE«P
do conceito de instituições de oratórias de Giambattista Vico e das
pois o artista é parte de um conjunto crítico instrumental de rituais
enunciações pedestres de Michel de Certeau. A partir dessas relações
agenciadores (juntamente com educadores, pesquisadores-pensadores
entre práticas do espaço e a produção de narrativas múltiplas estaremos
e cientistas sociais, médicos...), parte de uma cultura que sustenta sua
HVWDEHOHFHQGRDVUHOD©·HVFRQFHLWXDLVHQWUHPLFURJHRJUDˉDVGHD©·HV
própria transformação, um lugar de paradoxos que atualiza o legado da
e laboratórios de perceptos e afetos.
contracultura, pela contraglobalização.
Diversas formas de colaborações artísticas com manifestações
alternativas de movimentos coletivos prenunciam a geração de
novas estruturas vitais de agenciamentos de interações sociais, que
0HF¤QLFDGRVRORFXOWXUDO PLFURJHRJUDˉD
GRVOXJDUHVGHFULD©¥R
progressivamente estruturam também o horizonte de seu devir tripartido
entre a emergência poética livre; a responsabilidade e o agenciamento
62
social; e a culminância no sujeito – microcosmo da formação de novas
subjetividades. É nesse jogo que as éticas e estéticas emergentes vêm
reivindicar novos compromissos e formas de experiências de sentidos
e colaborações de saberes, dentro e fora das instituições públicas da
arte e no campo ampliado da existência, daí surgem os horizontes de
PLFURJHRJUDˉDVTXHGHEDL[RSDUDFLPDY¬PFUHVFHQWHPHQWHDIHWDQGR
as macropolíticas culturais, as curadorias de grandes instituições
(incluídas as Bienais e Documentas) e os valores experimentais da arte.
Debater o horizonte da arte contemporânea como laboratório
social de perceptos e afetos, sobrepondo valores estéticos globais e
experiências locais, requer busca equivalente a redescobrir o “ponto de
vista arquimediano” de Hannah Arendt.57 Busca-se um ponto de escrita
UHˊH[LYDVLVW¬PLFDHPTXHSRUXPODGRSHODYLVWDD«UHDSRVVDPVHU
reconhecidas as questões estéticas internacionais alinhadas a um
Zeitgeist ou diásporas da globalização, sem, ao mesmo tempo, esquecer
de inscrever-se no mundo observado das práticas dos espaços de
LQWHUD©·HVDUW¯VWLFDVHVRFLRFXOWXUDLVGHQWURIRUDGRVFLUFXLWRVRˉFLDLV
Propomos, através de alguns casos de territorializações vivenciais,
da arte; por outro lado, o olhar que se propõe é também microscópico-
FKDPDUDDWHQ©¥RGRTXHLGHQWLˉFDPRVFRPRȢHQXQFLD©·HVSHGHVWUHVȣ
RUJ¤QLFRHPTXHRVVHQWLGRVGDHVFULWDUHˊH[LYDGHGHQWURF¼PSOLFH
D SDUWLU GH 0LFKHO GH &HUWHDX HP UHOD©¥R D XPD HVFULWD UHˊH[LYD
e contingente, são tecidos como ato de caminhar junto, como propõe
TXHVHMXVWDS·HDRVVHQWLGRVGDVSU£WLFDVGRHVSD©RHPLFURJHRJUDˉD
Michel de Certeau. O horizonte das práticas artísticas do espaço se
das ações artísticas e interações sociais. O sentido de enunciações e
alcança pelo olhar ao rés do chão, em que tanto se aproxima do geólogo
leituras como atos de caminhar que envolve o campo ampliado da
FRPR GR JHµJUDIRˉOµVRIR OHPEUDQGR 0LOWRQ 6DQWRV HP WUDEDOKRV
H[SHUL¬QFLDDPELHQWDOGDDUWH«HQIRFDGRFRPRFHQWURGHFRQˊX¬QFLDV
de campo. Através dessas lentes multifocais poderão ser mais bem
e entrelaçamentos entre acontecimento experimental e sua potência
abordadas as revoluções invisíveis (grassroots) nos sentidos das práticas
inaugural poiética – de linguagem-infância e a sua criação/recepção
e éticas do espaço que ocorrem nos interstícios dos grandes modelos
63
de narrativas e poderes hegemônicos. Daí trazermos uma imagem da
invenção – imaginação – como agenciamentos indissociáveis entre
geologia, da mecânica dos solos culturais, em que as intervenções
espaço e linguagem, não se desvinculando dos atos cognitivos; da arte
artísticas transformam os grandes espaços em percursos-discursos e
da argumentação e da persuasão.
“enunciações pedestres” (Certeau, 2007, p.177)
58
e os sentidos se dão
enquanto se compartilham, não se descolam com entidades absolutas e
universais. Esse é o ponto de dobraduras entre experiência e existência
D TXH VH MXVWDS·HP DV PLFURJHRJUDˉDV VRFLDLV H SRO¯WLFDV GD DUWH
contemporânea.
64
2 VHQWLGR GH PLFURJHRJUDˉD GH D©·HV RX GH LQWHUYHQ©·HV
situacionista pode ser visto como resgate de uma perspectiva viquiana62
para a arte-arquitetura dos sentidos que torna os museus instituições
da oratória, tendo o poético como parte de sua experiência existencial,
como enunciações pedestres (mesmo que sejam disponíveis visitas aos
É desse ponto de vista ambivalente – entre enunciação escrita e o
museus pela web). Na contramão das mídias de massas, a produção
ato de caminhar, inaugurar poético nomádico (inventor da linguagem,
DUW¯VWLFD VH PDQWHYH FRPR HQXQFLD©·HV SHGHVWUHV DPSOLˉFDQGR QRV
tão bem elaborada por Certeau) – que se resgatam para as práticas
espaços estruturas geradoras de narrativas múltiplas ou polifonias.
espaçotemporais da arte as elaborações de Giambattista Vico (1668-
Os territórios de vivências ambientais (Oiticica e Lygia Clark) são
1744).59 Assim, é potencializado o foco na poiesis – condição inaugural
desdobramentos situacionistas da experiência do espaço inaugurado
da linguagem-oratória – e seu confronto com os métodos cartesianos
pela geração neoconcreta, mas são levados a uma potência relacional de
que negam a aproximação ou afetos mútuos entre sujeito e objeto de
UHGHVFREHUWDVGDVXEMHWLYLGDGHHGDJHRJUDˉDGDVLQWHUD©·HVFROHWLYDV
conhecimento. Vico defende a enunciação-aproximação como práxis
As bases críticas dos discursos e práticas artísticas pós-anos 60, que
GDˉORVRˉDHRUDWµULD'D¯VXDSHUWLQ¬QFLDFRQFHLWXDOSDUDDVSU£WLFDV
hoje são discutidas como estéticas relacionais (Nicolas Bourriaud) ou
dos laboratórios de perceptos e afetos da arte contemporânea –“Que
dialogais (Grant Kester63) podem ser vistas também como retornos
tendo existido os poetas certamente antes dos historiadores vulgares,
«WLFRV ¢V LQVWLWXL©·HV GD RUDWµULD FRPR JHRJUDˉDV GH HQXQFLD©·HV
a primeira história deve ser a poética”.60 Vico aborda o ser humano
pedestres, em princípio como antiarte ou antiestética.
como verbo em ação de humanização,
61
com especial entendimento
para o estado poiético e autopoiético; nesse sentido liga a linguagem
ao situacionismo e existência em sua época (século XVIII) através das
LQVWLWXL©·HVGDRUDWµULDFRPRSU£[LVHˉORVRˉDGD5HWµULFD9LFRSURS·H
uma educação-ciência em que as instituições de oratória estruturam
publicamente em interações dialogais o embate inaugural poiético
(inventor da linguagem-acontecimento) e ético (expressão da verdade)
na formação social humana. A atualidade de Vico como articulador de
XPH[HUF¯FLRGHXQLGDGHHQWUHˉORVRˉDȝDSUHQGL]DJHPHH[SUHVV¥RGD
verdade – e dignidade aponta para o realinhamento ou entrelaçamento
entre linguagem e território ou enunciação e acontecimento como
HVV¬QFLDVRFLDOGRFRQKHFLPHQWRHPˊX¬QFLDQDYLGD(PVHXWUDWDGR
sobre oratória elenca a prática da eloquência juntamente com a
Essas vivências participativas, criação coletiva da contracultura
dos anos 60, ressurgem nos anos 90 amadurecidas em proposições
GH HQJDMDPHQWRV HP JHRJUDˉDV GH LQWHUD©·HV VRFLRDPELHQWDLV
produtoras de novos perceptos e afetos. É justamente a partir das
seguidas rupturas entre forma, objeto e sujeito que se aponta para as
PLFURJHRJUDˉDV GRV DFRQWHFLPHQWRV FRPSDUWLOKDGRV HP TXH HPHUJH
o sentido de discurso, encontro e conversas para enunciação (oratórias
HVSD©RWHPSRUDOSHGHVWUHGHOXJDUHVSHF¯ˉFRSDUDDREUDGHDUWHTXH
remetem também para as elaborações críticas de Foucault, Deleuze e
*DWWDUL1HVVDWUDMHWµULDQ¥RVRPHQWHV¥RLGHQWLˉFDGDVDVSDVVDJHQVGD
escultura modernista para os parâmetros ético estéticos, como também
sua territorialização como processos de intervenções nos interstícios
65
de um campo ampliado da cultura, uma genealogia comum que eclode
como base estética existencialista, da autonomia à polifonia que nos
remete à fenomenologia de Bakhtin, mas também a Feuerbarch ou,
mais longe ainda, Vico.
Nessas preliminares conceituais o enfoque que David Harvey traz
SDUDRVȢHVSD©RVGHHVSHUDQ©DȣPDLVHVSHFLˉFDPHQWHȢDJHRJUDˉDGRV
manifestos”, contribui para a ideia de uma conscientização das condições
KLVWµULFDVHVRFLRSRO¯WLFDVSDUDFRPSRUDVJHRJUDˉDGDVD©·HVDUW¯VWLFDV
e culturais, não mais regidas unicamente pela ambição de suspensão
universal e absoluta para as revoluções estéticas. A fenomenologia
existencialista traz para a natureza do espaço não mais uma visão de
VXVSHQV¥RHVW«WLFDPDVGHJHRJUDˉDGDVD©·HVHˊX[RVVREUHHVWUXWXUDV
HLQVWLWXL©·HVˉ[DVTXHUHPHWHWDPE«P¢VDERUGDJHQVGH0LOWRQ6DQWRV
sobre a condição globalizada. Harvey, porém, ao discutir o Manifesto
de Marx e Engels aponta para a necessidade não só de reconhecer
66
as condições históricas que contaminaram as visões revolucionárias
previstas em suas ideias, mas de se contextualizarem essas vontades
UHYROXFLRQ£ULDVSDUDFDGDVLWXD©¥RKLVWµULFDHJHRJU£ˉFDFRPRSDUWHGH
A aplicação prática dos princípios (...) dependerá, como o
próprio Manifesto declara em várias ocasiões e lugares, das
condições históricas daqui por diante. Enquanto não temos
o direito, eles observam, de alterar o que se tornou um
documento histórico chave, temos todos não só o direito
como também a obrigação de interpretar e revitalizáOR ¢ OX] GH QRVVDV FRQGL©·HV KLVWµULFDV H JHRJU£ˉFDV
(...) Não requer profunda intuição, eles questionam,
para compreender que as ideias dos homens, visões e
FRQFHLWXD©·HVȝ D FRQVFL¬QFLD KXPDQD HQˉPȝ PXGDP
com qualquer mudança sobre suas condições da existência
material, em suas relações sociais e em sua vida social.65
É extremamente oportuno rever o alerta de Marx e Engel diante
de uma sociedade burguesa que estava sendo regida pelo princípio
do novo, do descarte do velho, que por sua vez era cada vez mais
predominante sobre todas as formas e novidades da produção – o que
conduziu também os objetos residuais dos manifestos de ruptura das
vanguardas a sua rápida absorção como relicários de uma era passada
na formação dos museus de arte do século XX.
XPDLQVFUL©¥RUHˊH[LYDVREUHRManifesto.64 A própria leitura do Manifesto
é recomendada por Marx e Engels como experiência fenomenológica
e hermenêutica, que trata do exercício da intuição como também
(QXQFLD©·HV3HGHVWUHVȝ3DUDOHORV7UDQVFXOWXUDLV
0LFURJHRJUDˉDVGRVULWXDLVFRQWHPSRU¤QHRVGHRUDWµULD
da interpretação dos fatores que estão implícitos no texto, mas que
devem ser levados a nova contextualização e agenciamento diante das
FRQGL©·HVJHRJU£ˉFDVHKLVWµULFDVVREUHDVTXDLVVHGHVHMDDWXDU
$VVLP DR VH UHˊHWLU VREUH R KRUL]RQWH GD DUWH SURSRQGR XP
En el acto de caminar se desarrolla toda la potencialidad perceptiva del ser humano, ‡ŽŠ‘„”‡”‡ƒŽ‹œƒ‡Žƒ…–‘˜‹•—ƒŽ‡‘˜‹‡–‘Ǥ Richard Long66
ponto de vista arquimediano, ou sistêmico, buscam-se aproximações
GD RUGHP GD PLFURJHRJUDˉD H HQXQFLD©·HV SHGHVWUHV QDUUDWLYDV H
HVFULWDVUHˊH[LYDVGHGHQWURGRVSURFHVVRVFRPRFRUWHJHROµJLFRQRV
interstícios de uma mecânica dos solos das ações socioculturais. Vale
trazer esta citação de Marx e Engels pelas lentes de David Harvey:
É dessa forma que a recente instalação de Tino Sehgal, This is Progress
(Isto é progresso), no Guggenheim de Nova York (de fevereiro-março
GH WDPE«P FRPS·H HVVH PRVDLFR GH PLFURJHRJUDˉDV H ULWXDLV
das ações e processos entre arte, instituições e sociedade. Ao propor
o esvaziamento completo do Guggenheim, Sehgal transforma todo o
67
68
percurso da rampa em ritual ou uma escultura – caminho e conversa. Em
DFLPDFRQRVFRHSHUJXQWRXȢ2TXHVLJQLˉFDSURJUHVVR"ȣ&RPPHVWULD
fevereiro deste ano tivemos a oportunidade de visitar essa mostra em
e curiosidade sobre nossas respostas, fomos conduzidos a expressar
que, segundo sua chamada nas mídias, Sehgal não só retira do museu
também nossas visões. E não demorou muito nessa “escultura
os objetos estéticos tradicionais da arte, pinturas e esculturas, como
caminho” de conversas, encontrarmos um adolescente que nos recebeu
também transforma, por subtração ou potência negativa, a natureza
com a menina e continuou a subida da rampa e as perguntas. Não
e o sentido da experiência, do espetáculo e do espectador da arte.
houve tempo para sequer avaliarmos se gostávamos ou não, pois
Emancipa radicalmente o campo vazio, sem objetos para contemplação,
REVHUY£YDPRV H DR PHVPR WHPSR «UDPRV SDUWH GH XPD FRUHRJUDˉD
para elevar à categoria de potência estética o espaço, o caminho
de encontros com diferentes faixas etárias, fazendo da peregrinação
e o pensar compartilhado. Sehgal propõe o desaparecimento dos
aristotélica uma estrutura viva em movimento acompanhando o
objetos de fetiches para a materialização de uma escultura no espaço
GHVHQKRYLVLRQ£ULRGDVXELGDGDUDPSDGH)UDQN/OR\G:ULJKW$RˉQDO
ȝ WHPSR FXMD PDW«ULD R YD]LR « D SUµSULD WUDQVIRUPD©¥R H UHˊH[¥R
nosso último inquisidor ou mediador, um senhor, nos questionava sobre
compartilhada sobre os sentidos da arte, cultura e sociedade, dentro
o imperialismo econômico e as perversidades da cultura do próprio
da e com a própria Meca das artes – o Museu Guggenheim. Radicaliza
Estados Unidos. Tivemos uma experiência! Fomos tomados por um
também as estruturas de comportamento e paradigmas do museu de
ˊX[RW¥REHPRUJDQL]DGRGHHQHUJLDVTXHVLPXOWDQHDPHQWHQRVYLPRV
arte, colocando a sociedade diante de seu próprio vazio, de seu medo
integrados aos elos da grande cadeia humana que se movia naquela
de interlocução, de troca de olhares, potencializando como experiência
tarde do Guggenheim.
estética o confronto com as atitudes dialogais entre mediação e público,
percepção de afetos. Os espaços estavam completamente vazios de
objetos, mas plenos para o ritual de encontros peripatéticos. Na rampa,
o encontro com o vazio de obras, apenas uma procissão se via conduzida
pela espiral clinicamente atendida como templários. Se nos prenúncios
do Manifesto de Marx se projeta um futuro em que “tudo que é sólido
se desmancha no ar”, Tino Sehgal transforma em sólido tudo que se
desmancha no ar – as respiração e as palavras – como imagem mental
de uma parábola das fases da vida. Em cada trecho da rampa, o visitante
encontrava uma sequência de intelocutores-mediadores de diferentes
fases da via – desde uma criança ao conselho dos anciãos no topo da
rampa.
Não pude evitar remeter-me aos 12 anos de rituais da rampa
do MAC-Niterói. Que diferenças e que aproximações poderiam ser
IHLWDVȝHQWUHFRQGL©·HVKLVWµULFDVHJHRJU£ˉFDVFRPRWDPE«PHQWUH
LQWHQFLRQDOLGDGHV" 2 ULWXDO GD UDPSD QR 0$& HUD SURSRVWR GR ODGR
de fora, a partir do “passeio arquitetônico” espiral, como iniciação e
estratégia ao mesmo tempo estética, construtivista e fenomenológica de
construção crítica de um leitor e autor móvel de enunciações pedestres,
compartilhando, diante da arquitetura do MAC, o mundo como obra
de arte. A condição de ritual era introduzida como provocação para
uma mudança de atitude diante da paisagem já indissociável da obra
arquitetônica de Niemeyer. Mais ainda, a obra de arte era o próprio
prédio para um museu ou antimuseu; o olhar para fora, caminhando
Assim, logo ao começar a subi-la, fomos interpelados por uma
rampa acima, inscrevia e escrevia a experiência da arte com a existência
graciosa menina de oito anos: “Esta é uma escultura de Tino Sehgal.”
antes mesmo de entrar no museu. Ou o museu é o mundo (lembrando
(...). Sem muito tempo para entendermos o que se passava, fomos
proposição de Oiticica), com seu diálogo ampliado com a paisagem,
completamente cativados pela criança que logo a seguir nos conduziu
tornando o lado de fora do museu o avesso crítico do colonialismo de
para um pequeno espaço ampliado, sem parar de caminhar rampa
nossas instituições. Tanto Oscar Niemeyer como Affonso Eduardo Reidy
69
trouxeram o fora para dentro de seus museus como indagação crítica
através de uma rampa vermelha de acesso para todos como declaração
sobre as fronteiras do que é arte e seus horizontes tropicais. Ao subir
de compromisso com a realidade social brasileira – obra-museu aberta
a rampa do MAC, diferentemente do Guggenheim, no ato de caminhar
ao mundo. A iniciação da rampa é uma conversa compartilhada de
se enuncia ou pronuncia em espiral a grande galeria da história das
entrada para a arte contemporânea, na qual se descobrem relações
raízes e visões do paraíso e contradições do Brasil e suas instituições
LQWHUDWLYDVHQWUHLQGLY¯GXRDUWHHWRGDDVXDDGYHUVLGDGHGDJHRJUDˉD
culturais. Ali também se descobre o ponto de vista arquimediano!!! O
e história do Brasil.
estar fora não é necessariamente não estar dentro e vice-versa.
Pelo ritual, porém, também se iniciava e emancipava o espectador
para uma relação ativa de construtor de leituras diante do mundo – agora
2YD]LRFRPRSRW¬QFLDGRQ¥RHVFXOWXUDVFDPLQKR
HQXQFLD©·HVSHGHVWUHVQR0$&1LWHUµL
também obra de arte – não negando o fora do museu como iniciação
ao olhar, percepção e imaginação participativa. Ao caminhar rampa
acima, a obra de Niemeyer era explorada também como estrutura viva,
‘escultura caminho’ que inaugurava então a experiência dos sentidos da
arte no corpo, perceptos e afetos, ampliada no mundo e na paisagem. O
ritual da rampa no MAC tem simetria com a escultura social e relacional
70
GH6HKJDOPDVVHELIXUFDPVXDVJHRJUDˉDHSURGX©¥RFXOWXUDOSRLVQR
MAC, o ritual é de iniciação permanente de paradigmas que fundam a
arquitetura como obra de arte, forma que inaugura uma intuição e uma
função antropofágica para o museu de arte contemporânea diante da
paisagem tropical. O casulo de Wright para o Guggenheim é protetor,
mas tem também a concepção de espiral – caminho para o visitante
apreciar obras de arte protegido do mundo “lá fora”. Tino Sehgal
radicaliza a negação dessa potência e destino da forma de Wright e
da função museu – templo de espetáculos estéticos e espectadores
passivos – pelo esvaziamento das rampas-galerias, que passam a ser
território único de um processo de totalizações em experiência dos
encontros, dos perceptos em afetos.
Assim, podemos lembrar uma série de projetos especiais que se
sucederam no MAC,67 concebidos também pelo esvaziamento e
“potência do não” como prática do espaço pleno. Os casos trazidos ou
revistos neste artigo foram essenciais para o entendimento das práticas
do espaço contemporâneo quando radicalizam o esvaziamento do
museu como esculturas caminho, em que também pude acompanhar os
artistas diretamente em suas elaborações. Daí também serem revisitados
FRPRPLFURJHRJUDˉDVGHD©·HVRXODERUDWµULRGHSHUFHSWRVHDIHWRVQR
sentido de serem proposições de “enunciações pedestres” – que fazem a
instituição museu não coletora de objetos, mas contingentes – vasos e
vazios – para a dobradura entre experiência e existência. Essas propostas
SDUWHP GRV SUµSULRV DUWLVWDV HP UHVSRVWD LQWXLWLYD VREUH RV GHVDˉRV
GROXJDUHVSHF¯ˉFRGRVGLVFXUVRVHSHUFXUVRVGDDUWHFRQWHPSRU¤QHD
transformando o museu em lugar de processos continuados de criação.
As relações invertidas entre dentro e fora, já trazidas da dobradura em
espiral da rampa pelo artista-arquiteto Niemeyer, invadem agora as
vontades e os impulsos artísticos, igualmente atraídos para o embate
Nos rituais da rampa do MAC também se realiza um campo dialogal
entre a varanda e a paisagem como campo de sentidos liminares
de perceptos e afetos sobre a cosmogonia das relações entre a obra de
(território sensorial e semântico), os quais são abertos para um visitante
1LHPH\HUHRPXQGRFRPˉQVHPXPDSU£WLFDDUW¯VWLFDHSHGDJµJLFD
leitor-autor móvel ou espectador em emancipação.
uma utopia concreta se realiza como processos simbólicos necessários
para a formação do olhar-consciência: estrutura viva, escultura caminho,
71
72
Em 1998, Antonio Manuel e Artur Barrio foram convidados por
caverna e oceano dentro daquela arquitetura futurista. Por uma semana
Luiz Camillo Osório, então diretor da Divisão de Teoria e Pesquisa,
pude conviver com Barrio durante esse processo de “des-instalação” e
a realizar projeto especial para o MAC de Niterói, por ocasião das
apagamento do salão principal do MAC. Ao inaugurar a exposição, o
comemorações antecipadas dos 500 anos do descobrimento do Brasil.
visitante encontrava uma atmosfera de penumbra, anti-iluminismo,
Esse foi o primeiro projeto que poderíamos chamar de “especial” para
no espaço central do MAC. Trouxas, exalando um forte cheiro de
o MAC, isto é, concebido pelos artistas diretamente a partir do diálogo
bacalhau e dependuradas em um varal, habitavam a galeria como
FRPDDUTXLWHWXUDGR0$&HVHXVGHVDˉRV68 Durante um mês, Antonio
um acampamento nômade. Sobre o tapete, então verde, foi espalhada
0DQXHOYLVLWRXR0$&HPWRGRVRVˉQDLVGHVHPDQD3HUSOH[RFRPD
uma camada de laca (asa-de-barata), as luzes do círculo central foram
atração contemplativa da maioria dos visitantes, que se debruçava nas
apagadas dissolvendo toda a arquitetura moderna em espaço de transe
JUDQGHV MDQHODV SDUD D YLVWD GD SDLVDJHP H GHVDˉDGR SHOD IURQWHLUD
e desequilibrante esvaziamento.69 Ao sair do museu à noite, a visão
entre estados passivos de contemplação e a inserção de um discurso
noturna da Baía de Guanabara com algumas fracas luzes dos mastros
contemporâneo de choque, que se opusesse à abstração da pintura
GRV EDUFRV GH SHVFDGRUHV UHˊHWLGDV QR RFHDQR QHJUR UHFRQKHFL FRP
moderna, ali então exibida, que perdia a atenção dos visitantes para
Barrio, caminhando pela orla da praia da Boa Viagem, sua enunciação
a paisagem, Manuel concebe precisamente a partir do próprio lugar
pedestre – a potência metafórica da arte reside na sua capacidade de
um campo labiríntico de atração e desejo para o desconhecido. Sua
transporte existencial. A experiência de vida do artista, que durante anos
ocupação da varanda com sete paredes se interpõe ao ato de caminhar
viveu em barco, estava brilhando ao fundo do salão de vazio oceânico
contemplativo ou percepção natural dos visitantes: “como as ondas do
QRWXUQRHPO¤PSDGDGHZWUDQVˉJXUDQGRRHVSD©RQHRSODW¶QLFRGR
corpo, são passagens abertas estrategicamente, tornando visível a curva,
MAC.
a onda, a reta, o rombo, o desejo.” Dessa forma, Antonio Manuel criou um
circuito labiríntico da curiosidade como leitmotif, oferecendo alternativa
à parada visando à contemplação passiva da paisagem na varanda.
Entre o movimento pelo desejo de saber, atravessando simbolicamente
paredes-obstáculos, e a comunhão com a “natureza”, suspensa pelas
molduras das janelas, o visitante era colocado diante de uma armadilha
entre os desejos da razão – a curiosidade pelo saber – e a completa
entrega à harmonia do belo natural. Paradoxal ou simbolicamente,
porém, o círculo da curiosidade leva ao nada, ao retorno ao início, à
entrada-saída do museu, deixando vários visitantes completamente
perplexos, sem saber onde estava o objeto artístico ou o próprio museu,
O terceiro caso de “enunciações pedestres” é o da instalação de
Élida Tessler, Horizonte provável ou Falas inacabadas, realizada em 20042005 para a varanda do MAC. Em 2003, após frustrada apresentação
das ideias de Élida para homenagear Haroldo de Campos, ao cruzar a
Ponte Rio-Niterói à noite, observamos juntos o “colar de pérolas que
coroa o grande círculo da Baía de Guanabara. Essa imagem marcou a
memória de Élida e a inspirou. Já como curador desse projeto especial
SDUDDYDUDQGDQRˉQDOGHSXGHWHUWRWDOFXPSOLFLGDGHFRP‹OLGD
7HVVOHU -XQWRV VHQWDGRV QD YDUDQGD SXGHPRV GLVFXWLU RV GHVDˉRV H
a potência daquele lugar orgânico, do qual se “ouve o mar”. Élida tira
RXRTXHHVWDYDPSURFXUDQGRFRPRDUWHFRQWHPSRU¤QHD2TXH«LVVR"
partido dessa tensão e extensão entre cultura e natureza para se unir
Simultaneamente, Artur Barrio, em contraponto à ocupação de
a arte no “horizonte provável”, de provas (sabor e teste) com pratos de
Antonio Manuel, em vez de se voltar para fora, transformou o salão
verbos e de probabilidades. Através de uma série de desconstruções do
SULQFLSDO GR 0$& HP WHUULWµULR QRWXUQR GH WUDQVˉJXUD©·HV HQWUH
livro de Haroldo de Campos,70GHVˉDQGROLQKDSRUOLQKDHPXPD¼QLFD
DRSURMHWRGHH[SRVL©¥R3R«WLFDVGR,QˉQLWRFRPXPDJHRJUDˉDSDUD
73
ERELQDPHWULˉFDRWH[WRHDRPHVPRWHPSRXQHDFµSLDGHVHXYROXPH
em que o conhecimento é reinventado à medida que inaugura o ser
original com suas notas de leituras, página por página, transformando
humano através de convivências pela colaboração de saberes.
em contínuo rolo que estende pelas paredes da varanda, literalmente
abraçando o museu para um leitor móvel. A varanda é tomada com
um abraço e caminho literário dentro do território suspenso do museu,
HQWUHRGHQWURHRIRUDHQWUHDUTXLWHWXUDJHRJUDˉDHOLWHUDWXUD(VWH«R
caso da potência múltipla dessa instalação, “uma instauração literal de
um horizonte provável”, que entrelaça duas grandes obras: a literatura
de Haroldo de Campos, A arte no horizonte do provável, e a arquitetura
de Niemeyer, que mereceria também o mesmo nome. Élida toma toda a
circularidade do museu, assim como Niemeyer modelou o seu edifício
diante do grande círculo da Baía de Guanabara, e faz do MAC recipiente
vazio para um voo literal da literatura para a arquitetura, e daí para a
construção de um novo litoral: um colar de pratos brancos (ou lembrando
R FRODU GH S«URODV LPSUHVVRV FRP YHUERV QR LQˉQLWLYR UHWLUDGRV GR
horizonte literário de Haroldo. Com as palavras liberadas do livro, Élida
74
HPDQFLSD RV YHUERV SDUD VXD SRW¬QFLD LQˉQLWD QD H[LVW¬QFLDȝ FRPR
enunciações pedestres. Os pratos brancos vazios tornam-se metáforas
do próprio contingente e conteúdo do museu e de sua arquitetura
circular. Surge outro horizonte suspenso para um leitor caminhante no
limite entre o museu e a paisagem – a literatura e o litoral.
71
Ao acompanhar todas essas intervenções em seus processos, como
educador e curador, pude constatar como esses artistas atuam por
contingência – potência de não (Pelbart, 2008), pregnância e gestação
FROHWLYDTXHQ¥RGHL[DPGHFRQˉJXUDUXPHVWDGRȢGHULVFRXWHULQRGD
linguagem por nascer” – pré-enunciada. O vazio, nesses casos, como
potência plena de inaugurar, ocupar com espaço os limites entre jogos
de subversão e estados de infância: estado de plena contingência,
SOHQD SRVVLELOLGDGH &RP PLFURJHRJUDˉDV GH D©·HV HODV VXEYHUWHP
os grandes monumentos e desenterram para enunciações pedestres
a arquitetura da esperança que subjaz ao entorpecimento de décadas
de individualismos e alienação das relações entre arte-espetáculo e
espectador. Os rituais de enunciações pedestres – de começar com
nada – seguem a tradição do CreLazer de Oiticica, que acompanha as
PLFURJHRJUDˉDV GH JHVWRV GH HVWDU GLVSRQ¯YHO GD WUDQVIRUPD©¥R GR
encontro em poéticas e éticas do estar junto. O espaço-vazio é pleno
SDUD R ˉORVµˉFR SDUD D LQDXJXUD©¥R GR=HQ R )OX[R « R GHVFULDUVH
fenomenológico para envolvimentos, entrelaçamentos, “quiasmas, ser
sujeito e sujeitar-se com, se dar à experiência de sentidos e poiético, que
coexiste na emergência do sentido da experiência”.73 Eu as chamaria de
Vários outros casos poderiam ser apresentados. Aqui são
PLFURJHRJUDˉDVHDUTXHRORJLDGDHVSHUDQ©DSRUVXDUHOD©¥RFRQFUHWD
registradas apenas algumas práticas de inauguração-escrita do espaço
com a existência, inaugurando territórios paralelos de processos e
em enunciações, em potências de territorializações do vazio como
afetos na ocupação do abandono do espectador. Essas foram e ainda
pequenos gestos para uma razão nômade, pedestre poética. Ao mesmo
são as rebeliões utópicas (de raízes, grassroots) com as quais pude
tempo, essas estratégias materializam tendências que emancipam o
conviver e praticar caminhando.
espectador de sua condição de expectativa de contemplação passiva de
um espetáculo. O ato de caminhar, pedestre, junta-se ao respirar a fruição
estética – desmaterialização radical do objeto – também enunciada
+RUL]RQWHVSURY£YHLVSDUDDIRUPDHPD©¥RDUW¯VWLFD
pelo Manifesto Neoconcreto de Ferreira Gullar. Essas pequenas ações
passageiras remetem a utopias emergentes de raízes, se aproximam de
um sentido cognitivo existencial como estado de infância-linguagem,
72
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’”‘…‡••—ƒŽ†‡•‡—’”‘…‡†‹‡–‘‡ǡ–ƒ„±ǡ’Ž‡ƒ‡–‡
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“—‡†‡•†‡•—ƒ’”‹‡‹”ƒ…‘…‡’­ ‘•ƒ„‡“—‡ ‘±•—ϔ‹…‹‡–‡
75
ser contra algo. Precisamos mais de uma versão crítica e …‘•–”—–‹˜ƒ†‘“—‡†‡—ƒ˜‡”• ‘•‹‰—Žƒ”ǡ‡•’‡…Àϔ‹…ƒ‡
’ƒ”–‹…—Žƒ”’ƒ”ƒƒ“—ƒŽ‘’‡“—‡‘‰‡•–‘•‡ƒ‹ˆ‡•–ƒǤ
Mika Hannula74
8PDIHQRPHQRORJLDSDUDDVSU£WLFDVGRVHVSD©RV
A convergência entre enunciação, escrita e prática dos espaços remete
também a uma condição ética e fenomenológica da produção artística.
É interessante observar como, pelo esvaziamento, a pregnância do
espaço se volta para a condição viquiana de materialização poética
(inventor – Homero) e do acontecimento de encontro entre existência
e linguagem emergem as formas radicais de se inverterem as
armadilhas formalistas-burguesas com as quais as utopias europeias,
ou modernistas, foram engessadas nos museus. É na própria instituição
PXVHXGHDUWHFRQWHPSRU¤QHDTXHVHMXQWDPDUTXLWHWXUDHFRUHRJUDˉD
de enunciações pedestres. “Tudo que é sólido” já se desmanchou – o
que resta são novos rituais de antropofagia utópica, de colaboração
de saberes em territórios-laboratórios de processos e afetos. As ações
artísticas tornam-se atos de linguagem e atitudes com o espaço de
76
relações humanas. Não deixam de ser uma potência de não ser (Pelbart75)
– de rejeitar o ser artista ou criadores de patrimônios de pedra e cal,
os monumentos para ser “cobertos de abandono”. Poderíamos então
conceituar, com os rituais de enunciações pedestres e os laboratórios
de processos e afetos, a transformação dos sentidos do espaço em
sua dimensão ética como forças de vontades motrizes nos horizontes
prováveis da arte e da formação dos artistas para o século XXI. A
partir dessas práticas do espaço pode-se elaborar um entendimento
GD GLPHQV¥R PLFURJHRJU£ˉFD GRV KRUL]RQWHV GD H[SHUL¬QFLD DUW¯VWLFD
Se aproximam ou, mais, se fundem, também o ato criador ao campo
espaçotemporal de leituras, decorrendo daí o sujeito penetrante e
penetrável da experiência artística. Tanto para a fenomenologia quanto
para a ciência quântica ou sistêmica é enunciado, de diferentes formas,
HVVH PHVPR ˉP RX IXV¥R GDV UHOD©·HV VXMHLWRREMHWR TXH HTXLYDOHP
à emancipação do espetáculo e do espectador. Jacques Rancière faz
referência a Guy Debord (“The Emancipated Spectator”) como crítica ao
binário que engendra o espetáculo como reino da visão – transforma
todos em espectadores ligados à exterioridade do mundo: despossuídos
de si mesmos –, estado de passividade e contemplação das aparências,
separado da verdade (remetendo a Platão).“Quanto mais ele contempla
mais ele deixa de viver”.76
77
Trazemos para essa genealogia uma abordagem fenomenológica
D ˉP GH SURMHWDU XP KRUL]RQWH GD DUWH FRPR WHUULWµULR GH ˊX[RV GH
perceptos e afetos buscando redimensionar todos os agentes e aparatos
TXHSURPRYHPRHQFRQWURGHDUWHHVRFLHGDGH,VVRVLJQLˉFDWDPE«P
reconhecer nas práticas contemporâneas do espaço uma dimensão de
HVFULWDOHLWXUDFRUSRUDOTXHVHDˉQDFRPRTXHSURS·H5DQFLªUHFRPD
emancipação do espetáculo e do espectador.
no mundo contemporâneo, mas também de alguns paradigmas em
Nesse sentido, as noções fenomenológicas das práticas do espaço
mudança que afetam a formação dos artistas, curadores e educadores
de John Dewey77 e Merleau-Ponty78 contribuem para um olhar sobre
que concebem e cuidam deste laboratório de perceptos e afetos. Com a
o campo de interações mútuas e intersubjetividade tendo como base
aproximação entre enunciação – oratória – e essas práticas do espaço
comum a intencionalidade nas experiências de sentidos e os sentidos
compartilhado como potência de desconstrução-invenção (poética),
das experiências no mundo.
DSDUWLUGHSHTXHQRVJHVWRVȝPLFURJHRJUDˉDVGHD©·HVV¥RWDPE«P
reinaugurados os próprios horizontes de forma e ação do artista, curador
e dos educadores – agenciadores de processos cognitivos da arte.
Consciência não é algo em si próprio que entra em relação
também com algo mais. A relação com os outros está na
própria essência do ato consciente. Segue-se, portanto,
que a consciência é codeterminada pelo conteúdo com o
– artísticos, cognitivos e sociais. Ao mesmo tempo, apontamos para
qual ela se relaciona.79
sua dimensão fenomenológica enquanto inauguração orgânica de
Essas mesmas bases fenomenológicas sugerem a formação de
princípios éticos compartilhados que podem ser aplicados às práticas
artísticas ambientais e às experiências de sentidos envolvidos, desde
a formulação curatorial às estratégias de comunicação e recepção
participativa de uma programação junto ao público – o que também
envolve eticamente a própria instituição pública ao abrigar a experiência
artística e cultural contemporânea que atinge sua culminância
orgânica e sistêmica como máquina cognitiva e autopoiética. Propõese, pelo reconhecimento dessas éticas, a relação indissociável entre
ato intencional e campo intencional que conduzem as práticas do
espaço, entendido como território de processos interativos de criação
e aquisição compartilhada de linguagem. Daí, é possível aplicar-se o
conceito de reciprocidade entre experiência de sentidos e os sentidos
78
linguagem vivida, propondo ligar o sentido das experiências ou, melhor
DLQGD GH XPD JHRJUDˉD H[SHULPHQWDO QD DUWH FRP DV SU£WLFDV GR
HVSD©R FRPR DWRV GH HVFULWD UHˊH[LYD H HQXQFLD©·HV SHGHVWUHV7RGD
inauguração de linguagem é legitimada e compartilhada como parte
das relações sociais na formação de subjetividades. Quando os artistas
oferecem o espaço como campo de enunciações pedestres, o exercício
da linguagem torna-se indissociável da experiências de sentidos e
reciprocamente, dando-se aí a fundação do sentido das experiências
HQTXDQWRDFRQWHFLPHQWRH[LVWHQFLDOHPLFURJHRJUDˉDGHVLJQLˉFD©·HV
6XD GLPHQV¥R S¼EOLFD WUDGX]VH HP JHRJUDˉD HVWUXWXUDQWH GH XP
sistema linguístico de ações formadas e formadoras de uma consciência
perceptual em exercício de si próprio como contingência e infância,
possibilidade e devir junto ao mundo e à sociedade.
da experiência de John Dewey a todas as indagações críticas entre
As práticas do espaço neste enfoque sistêmico resgatam um
expansão conceitual das práticas artísticas e uma construção coletiva
sentido de campo intencional e de reciprocidades de criação e aquisição
GHFRQKHFLPHQWRFRPRJHRJUDˉDGHD©·HVSDUWLFLSDWLYDV
de linguagem indissociável do tempo em que se territorializam como
A reciprocidade que vale para a relação entre ato intencional e
objeto intencional quanto às apropriações artísticas, intervenções e
LQVWDOD©·HV DPELHQWDLV UHˊHWHVH WDPE«P QD P¼WXD LQWHUD©¥R HQWUH
a consciência do sujeito da experiência e a consciência dos conteúdos
da experiência. O que remete também a uma condição fenomenológica
indissociável entre processos de subjetivação e mundo. Propomos essa
genealogia fenomenológica na abordagem das práticas das interações
DPELHQWDLV DUW¯VWLFDV FRPR GLPHQV¥R «WLFD SDUD D UHVVLJQLˉFD©¥R H
DPSOLD©¥RGRVVLJQLˉFDGRVHVHQWLGRVGDVH[SHUL¬QFLDVGRVHVSD©RVGH
interação social da arte e da cultura contemporâneas.
Com os exemplos apresentados neste artigo envolvendo esculturas
caminhos, enunciações pedestres no Guggenheim e no MAC, chama-se
atenção para o lugar da cultura como território de processos sistêmicos
JHRJUDˉD GH D©·HV H SHUFHS©·HV 3RUWDQWR R FRQFHLWR GH OLQJXDJHP
é também micropolítico, pois se trata de um horizonte ético de
ULVFR DR LQGHWHUPLQDGR ȝ D FRQWLQJ¬QFLD ȝ QR VHQWLGR DˉUPDWLYR
de possibilidades e infância80 que envolve também a condição de
potência (de não), sob a perspectiva de Pelbart, para “uma tarefa
eminentemente política”.81 Recuperar para os lugares da cultura sua
HVWDWXUDGHWHUULWµULRGHSURFHVVRVHFRQWLQJ¬QFLD«GHVDˉRTXHHQYROYH
o experimentalismo tanto das práticas artísticas quanto da pedagogia
crítica, pois essas duas instâncias da criação e aquisição de linguagem
no mundo contemporâneo estão separadas por atavismos e taxonomias
imobilizantes de ‘possibilidade e infância’ vinculadas aos interesses
(fetiche) dos mercados da arte e outras estratégias de dominação e
alienação do capitalismo e globalização.
79
2V GLOHPDV H GHVDˉRV GHVVD DSUR[LPD©¥R HQWUH OLQJXDJHP H
Merleau-Ponty, nos últimos anos de sua vida, atribuiu aos sentidos
JHRJUDˉDDFRQWHFLPHQWRVHGHVGREUDPHPRXWUDFRQYHUJ¬QFLDHQWUH
o processo de “mutação na relação entre humanidade e Ser, que está
ética e política. Quando se trata de repensar paradigmas ligados ao
em andamento na nossa época”. Os sentidos (feeling) são tomados pelo
campo ampliado da escultura, não se podem ignorar as condições
autor como corpo emocional, defendido como indivisível do intelectual.
estruturais e estruturantes das práticas dos espaços das instituições
Em Visível e invisível, Merleau-Ponty avança nas questões existenciais
culturais no Brasil. Segundo esse enfoque fenomenológico, não
principalmente preocupado com uma abordagem do sujeito –
podemos tratar isoladamente um pensar crítico que se produz de fora –
subjetividade – diretamente indivisível e pertencente ao mundo.
distanciado – das práticas dos espaços e lugares da cultura. Ao invocar
Romper as relações binárias, sujeito-mundo/sujeito-objeto, faz parte de
por intermédio de John Dewey e Merleau-Ponty bases fenomenológicas
suas maiores inquietações. Nessa obra Merleau-Ponty lança a noção
para essa abordagem, busca-se a construção de pensamento e
de chiasma: “toda relação com um sujeito – Ser – é simultaneamente a
ponto de vista dialético de dentro, ou interno, ao mesmo tempo não
de tomar e ser tomado; o sujeito que toma é ao mesmo tempo objeto
H[WHUQRFRPRSDUWHHSDUWLFLSDQWHGDTXDOLˉFD©¥RHGRFRPSURPLVVR
tomado, é inscrito e inscreve no mesmo Ser – sujeito – que realiza a
conceitual da prática do espaço e da experiência de sentidos que
ação”.
reciprocamente constituirão “o sentido das experiências”. Nessa
LQVHU©¥RHLQVHSDUDELOLGDGHGRVXMHLWRGRSHQVDUHGDHVFULWDUHˊH[LYD
junto às práticas e poéticas dos espaços são também territorializadas as
80
interações recíprocas de vínculos éticos com a consciência perceptual,
sua completa relação de pertencimento e comprometimento com o
campo de possibilidades e contingência.
Justamente sobre as elaborações de Merleau-Ponty e Dewey
fundamentamos com bases fenomenológicas as práticas artísticas
dos espaços como enunciações pedestres, que convergem para uma
dimensão ética da cognição e fruição estética. Nesse sentido apontamos
para a responsabilidade nas práticas dos espaços considerando o
empoderamento de subjetividades dentro e como partes de um
Esse posicionamento orgânico e interno do sujeito da escrita-
território de processos poéticos e cognitivos que compõem uma
enunciação (distância zero) e a experiência é revisto por Françoise
PLFURJHRJUDˉDGDDUWHHD©·HVDPELHQWDLV3DUDWDQWRDVLQVWLWXL©·HV
Dastur,
explorando a abordagem fenomenológica de Merleau-Ponty,
são compreendidas como estruturas vitais de cognições e afeto que
que “promove um tipo de pensamento que não mais opõe interioridade
incorporam a suas práticas dos espaços o compromisso com a formação
com exterioridade, o sujeito com o mundo, as estruturas com a
de uma consciência perceptual e o pensar sistêmico ampliando-se de
experiência viva” (p.25). Daí desenvolvermos a noção de pensar interno,
dentro para um sentido de não exterioridade e pertencimento, como
em que a “não exterioridade (non-exteriority) do vidente e do visível, um
proposta de método e autenticidade essenciais para a inauguração ou
pensar do ser dentro do mundo do sujeito” (p.25) se aplica às práticas
estado inaugural (poiético) do campo de linguagem e possibilidades
do espaço – artísticas e curatoriais – como a suas interações sociais.
de ser. A fenomenologia de Merleau-Ponty é tomada como método, e
Essa dimensão fenomenológica perante o mundo inclui também suas
a de Dewey como ética de organização de energias psíquicas e sociais,
estruturas e instituições como campo de possibilidades éticas, como
mas ambos convergem para a relação recíproca entre estruturas de
Dastur propõe para subverter o que Foucault chama de “pensar de fora
processos e estruturação institucionalizante, em que o elo se dá na
(thinking from outside”) representante de uma época “da exterioridade
subjetividade (linguagem e consciência). Essa reciprocidade pode ser
onde o sujeito que fala desaparece”.84
elaborada também entre experiência de sentidos e os sentidos da
82
83
81
experiência. Em ambos os níveis a relação entre estruturas de processo
Assim, tanto os sujeitos quanto os objetos e as construções ligadas às
(instituição) e subjetividade podem ser considerados indicadores
práticas artísticas e às instituições culturais, ao propor e experimentar
TXDOLWDWLYRVGHXPWHUULWµULRGHˊX[RVFRJQLWLYRVHDIHWLYRVLGHQWLˉFDGRV
essa perda de positividade e alienação, agem como consciência
por suas proposições quanto aos seus modos intrínsecos ou extrínsecos
perceptual estruturante sem exterioridades topológicas; ampliam-se
VXSHUˉFLDLVGHSDUWLFLSD©¥RHDFROKLPHQWR
para ser parte extensiva do campo sistêmico de relações e movimentos
A atualidade de Dewey, em “Criatura viva”,85 se vincula com a
subjetividade, linguagem e infância, fazendo o contraponto com a
fenomenologia de Merleau-Ponty de entendimento e atitude perante
as estruturas como não existentes a priori, e não existem sem nós,
consciência perceptual em ação, sem estabelecer uma relação de
oposição com a exterioridade do mundo – voltada para a formação
dialética da linguagem e consciência perceptual geradora e gerada pelo
da experiência poiética de estados e lugares de pertencimentos. Este é
o ponto ético emergente do sentido fenomenológico que se dá neste
artigo às enunciações pedestres como práticas dos espaços artísticos
– envolvendo artistas, pesquisadores, curadores e educadores, como
WDPE«P R HVSHFWDGRU HPDQFLSDGRȝ LQVFUHYHU UHˊH[LYDPHQWH FRPR
PRELOL]DGRUHVGHPLFURJHRJUDˉDVRVVHQWLGRVKXPDQRVHPSURFHVVRV
de individuações e totalizações compartilhadas.
ato e objeto intencional simultaneamente. Os processos e modos como
se dão a experiência e geração de sentidos, quando compartilhados em
Notas
interações sociais, serão indicadores qualitativos e éticos do sistema e
82
PHF¤QLFDGRVRORGDVPLFURJHRJUDˉDVGDVD©·HVH«WLFDVDUW¯VWLFDV
Porém, para que os territórios de processos formem uma
“estrutura viva”,86 mantendo-se alinhado aos últimos esforços de
Merleau-Ponty, propõe-se uma relação ao ser dentro e com o mundo, a
imagem de um sistema de sistemas de processos de uma consciência
perceptual em ação compartilhada, por colaboração de saberes, com
os movimentos da experiência, de pertencimento e ao mesmo tempo
de comprometimento, que se reconheça com e via as transformações
recíprocas. As bases fenomenológicas são intrínsecas ao método que
torna visível a relação cognitiva e afetiva de todos os agentes de um
pensar de dentro, sem exterioridade com a estrutura, em processo
instituinte (não instituído). O que de novo remete ao pensamento de
Merleau-Ponty sobre “estrutura viva”,87 a dimensão do ser que, ao perder
sua positividade, acaba também por tornar-se una com os próprios
movimentos da experiência. O que vale até hoje para o ser no mundo
contemporâneo que perdeu sua positividade vale também para suas
LQVWLWXL©·HVFXOWXUDLVHVRFLDLVEHPFRPRSDUDRˉPGRREMHWRGHDUWH
56
Bakhtin, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
57
Arendt, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária/
Salamandra, 1981: 269.
58
Certeau, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Petrópolis: Vozes, 2007.
59
Vico, Giambattista. Obras. Retórica (Instituciones de Oratoria). Madri: Anthropos
Editorial, 2004.
60
Vico, Giambattista. Da descoberta do verdadeiro Homero. Excertos. Livro Terceiro.
In Vico, Giambattista. Princípios de (uma) ciência nova acerca da natureza comum das
nações. São Paulo: Nova Cultura, 2005, p.269.
61
Luft, Sandra Rudnick. Embodying the Eye of Humanism: Giambattista Vico and the
Eye of Ingenium. In Levin, David Michael.(org.). Sites of Vision. The Discursive Construction
of Sign in the History of Philosophy. London: The MIT Press, 1997.
62
Décio Pignatari também resgata Giambattista Vico para explorar com a metáfora
GDV HVFDGDV H HVSLUDLV RV FLFORV GH KXPDQL]D©¥R HP 3DWDPDU SDUD9LFR +LHURJO¯ˉFR
Simbólico e Epistolar. In Pignatari, Décio. Semiótica da arte e da arquitetura. São Paulo:
Ateliê Editorial, 2004, p.35.
63
Não tão conhecido no Brasil quanto Nicolas Bourriaud, Grant Kester elabora
excelente enfoque para uma estética dialogal a partir de Bakhtin, ao mesmo tempo
que revisa a trajetória das rupturas estéticas do século XX. Dialogical Aesthetics. In.
Kester, Grant. Conversation Pieces (Community + Communication in Modern Art. California:
University of California Press, 2004, p.82.
83
64
Chapter 2. The Geography of the Manifesto. In Harvey, David. Spaces of Hope.
California: University of California Press, 2000.
65
“The practical application of the principles’, wrote Marx and Engels (1952 edition,
8) in the 1872 Preface to German edition, ‘will depend, as the Manifesto itself states
everywhere and at all times, on the historical conditions for the time being existing.’
While we have not the right, they observe, to alter what has become a key historical
document, we all have not only the right but also the obligation to interpret and recharge it in the light of our own historical and geographical conditions. ‘Does it require
deep intuition’, they asked, ‘to comprehend that man’s ideas, views, and conceptions,
in one word, man’s consciousness, changes with every change in the conditions of his
material existence, in his social relations and in his social life.’(Harvey, op. cite. p 21)
66
Balsa, R, Ramos ; Gibson, Amber, Entrevista com Richard Long. In: W art.
Contemporary Art. n. 3. Portugal/ Espanha/Inglaterra, 2004. Richard Long explora
o conceito de Escultura Caminho em entrevista com Amber Gibson e Ruben Ramos
Balsa. Nessa entrevista fala do encurtamento das distâncias-tempo, contrapondo-se à
desaceleração do olhar.
67
Os casos apresentados estão registrados no livro Museu de Arte Contemporânea 10
anos. Niterói: Fundação de Arte de Niterói, 2006.
84
68
Nas palavras de Luiz Camillo Osório, para a apresentação dessa mostra, chamada
Ocupações/Descobrimentos, o projeto de Antonio Manuel “(...) já foi feito pensando-o
para a ‘varanda’ circular do museu. Em tese, trata-se de um lugar onde não se pode
mostrar qualquer trabalho. Além de estreito e sem pé-direito, tem a competição desigual
da estupenda Baía de Guanabara com o Rio de Janeiro escancarado do outro lado (...)”.
69
Dois títulos indicam os caminhos de ambivalência dessa instalação. Os aspectos
DXWRELRJU£ˉFRV HVW¥R SUHVHQWHV QDV GXDV SRVVLELOLGDGHV GH HQWUDGDV DR XQLYHUVR GH
sentidos existenciais motores de Barrio – na caverna, o “sonho de um arqueólogo”, e
QRQDYHJDQWHVROLW£ULRGLDQWHGRRFHDQRYD]LRDVȢFRQˉJXUD©·HVQRWXUQDVHGLXUQDVȣ
Barrio busca suas mais longínquas lembranças quando recupera um sonho de infância
de ser arqueólogo. Mas, em paralelo, traz o jogo da passagem do tempo de contínuo
movimento do sol para dentro da exposição, abrindo caminho para a penetração dos
raios de luz diurna na caverna, pelo brilho da laca espalhada no tapete desde a entrada
do salão. E, ainda, quanto mais forte o sol batesse na fachada do MAC, mais escura e
cavernosa se tornava a entrada para o grande salão. Ao fundo, a única fraca fonte de
luz que atravessava o grande vazio, de apenas uma lâmpada de 40w, salpicava alguns
W¯PLGRV UHˊH[RV VREUH R RFHDQR GH ODFD QR WDSHWH YHUGH (VWH DQWLJR WDSHWH YHUGH
WDPE«PSDVVRXDVHUSHUFHELGRFRPRIXQGRLQˉQLWRXPDYLV¥RQRWXUQDGRPDURXWUD
forte imagem da vida de Barrio, navegador que, aliás, já viveu em um barco.
70
Campos, Haroldo. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Editora Perspectiva,
1977.
71
Élida tomou o lugar e a forma do museu não só como percurso e discurso
para uma fala inacabada, mas fez um brinde em homenagem a Haroldo de Campos,
VHDSURSULDQGRGHWRGRRHVSD©RDUTXLWHW¶QLFRHJHRJU£ˉFRDYLVWDSDUDDSDLVDJHP
como forma e conteúdo, um recipiente, para criar uma obra de arte, que literalmente
traga a experiência artística para o horizonte do provável. Horizonte provável também
SRGHVLJQLˉFDUWRF£YHOȝRXSDVVDUSHODSURYDQRVHQWLGRGRSDODGDURTXHVXJHUH
uma relação com a construção de um horizonte de sabores e saberes com palavras
LPSUHVVDVHPSUDWRVEUDQFRV3URYD«WDPE«PGHVDˉRȝRXGHVˉDUȝSX[DURˉR‹OLGD
WUDQVIRUPDGHVDˉRHPGHVˉDUHGD¯GHVˉDROLYURLQWHLUDHFLUFXQGDDYDUDQGDFRPRXP
jogo de desconstrução literal, o torna linha de medida que abraça o museu. Mais ainda
OHYDRˉRWH[WRGHDSUR[LPDGDPHQWHPHQRVFRQYLGDSDUDXPULWXDOFRPSDUWLOKDGR
GHWUDQVˉJXUD©¥RGDOLWHUDWXUDHPOLWRUDOD©¥RJHRJU£ˉFDQD3UDLDGD%RD9LDJHP
72
Peter Pál Pelbart. A potência de não. Linguagem e Política em Agamben. In
Furtado, Beatriz e Lins, Daniel. Fazendo Rizoma. Fortaleza: Editora Hedra Ltda, 2008.
73
Merleau-Ponty, Maurice. Quiasma. In Merleau-Ponty, Maurice. O Visível e o Invisível.
São Paulo: Perspectiva, 1992, p.72.
74
Hannula, Mika. The Politics of Small Gestures. Chances and Challenges for
Contemporary Art. Istambul: Art-ist, 2006. “A small gesture is an act that is fully aware of
its procedure of its procedural character and equally fully aware of its situadness within
WKHFRQWH[WLQZKLFKLWWDNHVSODFH$QDFWWKDWIURPWKHYHU\ˉUVWSODQVNQRZVWKDWLWLV
not enough to be against something. What we need is a constructive, critical version of
ZKDWDSDUWLFXODUVSHFLˉFVLQJXODUYHUVLRQRIDVPDOODFWVWDQGVIRUȣ
75
Peter Pál Pelbart. A potência de não. Linguagem e Política em Agamben. In
Furtado, Beatriz e Lins, Daniel. Fazendo Rizoma. Fortaleza: Hedra, 2008.
76
p.6.
Debord apud Rancière, Jacques. The Emancipated Spectator. Nova York: Verso, 2009,
77
Kestenbaum, Victor. The Phenomenological Sense of John Dewey. Habit and Meaning.
New Jersey: Humanities Press, 1977.
78
Merleau-Ponty, Maurice. The Primacy of Perception. Chigago: Northwestern
University Press, 1989.
79
Remy, C. Kwant. The Phenomenological Philosophy of Merleau-Ponty. Pittsburgh:
Duquesne University Press, 1963, p.82. Apud Kestenbaum, Victor. The Phenomenological
Sense of John Dewey. Habit and MeaningRSFLWSȢ&RQVFLRXVQHVVLVQRWˉUVWVRPHWKLQJ
in itself and then enters also into relationship to something else. The relationship
to the other enters into the very essence of the conscious act. Thus, it follows that
consciousness is codetermined by the term to which it is related.”
80
Pelbart, Peter Pál. A potência do não. In Furtado, Beatriz e Lins, Daniel. Fazendo
Rizoma, op. cit., p.20. Perbart cita Agamben: “O homem é o falante, o vivente que tem
a linguagem, porque ele pode não ter a lingual, porque ele pode a infantia, a infância
(…) (A contingência) é um acontecimento (contingit) considerado do ponto de vista da
potência, como emergência de uma cesura entre um poder ser e um poder-não-ser.
Essa emergência toma, na lingual, a forma de uma subjetividade. A contingência é o
possível experimentado por um sujeito.” In Agamben, Giorgio. Ce qui reste d’Auschwitz.
Paris: Payot, 1999, p.191.
81
Pelbart, Peter Pál. A potência do não. In Furtado, Beatriz e Lins, Daniel. Fazendo
Rizoma, op. cit., p.21.
82
Dastur, Françoise. Merleau-Ponty and Thinking from Within. In Burke, Patrik
e Veken, Jan Van Der. Merleau-Ponty in Contemporary Perspective. Dordrecht: Kluwer
Academic Publishers, 1993.
85
3DUD DSUHVHQWDU D WUDMHWµULD ˉORVµˉFD GH 0HUOHDX3RQW\ DWUDY«V GD UHOD©¥R GH
um ser no mundo sem oposição entre exterioridade e interioridade, Dastur abre sua
abordagem citando o artigo de Michel Foucault “La pensée du dedans”. Dastur explora
o conceito de Foucault para contrastar o sentido de “pensar de fora” (thinking from the
outside) com o pensar de dentro (thinking from interiority).
PRODUÇÃO ESTÉTICA,
EMANCIPAÇÃO E IMAGEM
EM JACQUES RANCIÈRE
84
Foucault explorando Maurice Blanchot traça uma genealogia da experiência de
nossa época, aquela em que “of an outside in which the subject who speaks disappears”.
Esse é o ponto com o qual Dastur vai dar o partido diferencial com relação ao pensar de
dentro de Merleau-Ponty.
85
Dewey, John. The Live Creature. In Dewey, John. Art as Experience. Nova York:
Penguin Books, 2005. Recém-traduzido para o português: Dewey, John. Arte como
Experiência. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
Pedro Hussak van Velthen Ramos
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
86
Françoise Dastur, op. cit., p.26. “Merleau-Ponty’s thought, especially in his later
period, is a thought of the living structure for which interiority no longer refers to
a subject closed in itself, but becomes the dimension of a being who in losing its
positivity thereby ends up becoming one with the very movements of experience.”
87
Idem.
Este artigo visa mostrar que o pensamento estético-político de Rancière
é, em grande medida, construído a partir de um debate com Walter
Sobre o autor
Benjamin, seja por aproximação ou por afastamento. Pretende-se, por
um lado, mostrar em que medida o conceito de partilha do sensível se
86
Luiz Guilherme Falcão Vergara – Doutor pelo Programa de Arte e Educação
do Departamento de Arte da New York University, Estados Unidos. Mestre em
Artes e Instalações Ambientais pelo Studio Art and Environmental Program,
Art Department, New York University, 1993. Diretor-geral do Museu de Arte
Contemporânea de Niterói (2005-2008), de cuja Divisão de Arte Educação foi
diretor (1996-2005). É professor adjunto do Departamento de Arte e do Programa
de Pós-Graduação em Ciência da Arte e Coordenador do Curso de Graduação em
Produção Cultural da Universidade Federal Fluminense.
aproxima da visão comunitária e da ideia de escritor operativo, tal como
apresentada no texto “O autor como produtor”; por outro, esclarecer a
crítica de Rancière à concepção de Benjamin de que é possível deduzir
dimensões estéticas e políticas das propriedades técnicas da obra. Feito
esse percurso, apontam-se as consequências que Rancière retira para
pensar o atual regime de imagens.
9DQJXDUGDSRO¯WLFDYDQJXDUGDHVW«WLFD
O livro A partilha do sensível (Le partage du sensible) consiste, na
realidade, em uma “entrevista” em que Rancière desdobra suas análises
sobre a relação entre arte e política, apresentadas em seu livro O
desentendimento (La Mésentente). Na segunda das cinco questões
colocadas por Muriel Combes e Bernard Aspe, Rancière disserta sobre
modernidade e pós-modernidade e em que medida essas poderiam ter
87
algum interesse na ligação entre arte e política.88 No que concerne
que surgia – a “revolução” precisava romper com os parâmetros estéticos
à modernidade, Rancière aponta duas grandes narrativas que
“burgueses” estabelecidos. Tanto no caso da política quanto no da
frequentemente são confundidas: l’art pour l’art, a busca de uma forma
estética, há uma analogia com a origem militar do termo vanguarda:
SXUDSDUDDDUWHHDTXLORTXH5DQFLªUHTXDOLˉFDGHModernitarismo, a
aquilo que marcha à frente. Transpondo para o plano político, o partido
saber, a valorização da determinação da arte como autoformação da
é o que concentra as forças capazes de conduzir e direcionar a história
vida. No primeiro caso, com a conquista da autonomia da arte, houve
no sentido do progresso. No plano artístico, a novidade artística aponta
uma exploração e experimentação dos poderes da linguagem artística,
utopicamente para a nova forma de vida.
liberando a arte de sua tarefa comunicacional. Nessa modernidade
haveria um retorno aos elementos mais próprios de cada expressão
artística: na pintura, o pigmento colorido; na música, a linguagem de 12
sons. Já o modernitarismo está veiculado com a concepção schilleriana
de educação estética do homem, que busca articular em única realidade
D DWLYLGDGH GH SHQVDPHQWR H D UHFHS©¥R VHQV¯YHO D ˉP GH IRUPDU
homens capazes de viver em comunidade política livre.
88
Rancière, de maneira geral, recusa a novidade da vanguarda
DUW¯VWLFDSRUYHULˉFDUDOLVHPHOKDQ©DFRPDLGHLDGLULJHQWHGRSURFHVVR
revolucionário da vanguarda política. Apesar disso, ele não recusa a
proposta estética de antecipação do futuro e da invenção de formas
sensíveis e materiais de uma vida por vir, pois era isso que originalmente
a vanguarda “estética” acreditava ser sua contribuição para a vanguarda
“política”. Rancière se coloca, assim, dentro de uma tendência comunitária
Rancière adota postura crítica em relação a essas duas tendências
da arte, mas retirando a concepção de que a arte pode apontar a direção
do modernismo: em primeiro lugar, a “autonomia” da arte como superada
para as massas ainda não conscientes; portanto, o pensador considera
SHODPLVWXUDGHJ¬QHURVHVXSRUWHVHSHORSROLPRUˉVPRGDVWHQG¬QFLDV
que é preciso romper a relação entre o partido e os movimentos
contemporâneas da arte; em segundo lugar, a maneira como o paradigma
estéticos. No entanto, ele acredita que o regime estético deve manter
schilleriano foi apropriado pelo marxismo. Essa apropriação tinha como
as experiências sensíveis como antecipação da comunidade que vem.
objetivo encontrar convergência entre a revolução das formas de vida e
Esta concepção está na base da proposta de Rancière de desfazer o
a revolução das formas do sensível. O Construtivismo soviético tentou
desentendimento entre arte e política, segundo a qual a potencialidade
realizar essa integração, mas o fracasso da revolução política incluiu
política não estaria em um processo de direcionamento, mas sim de
o fracasso da proposta estética uma vez que esta última só se poderia
compartilhamento.
realizar aqui em contexto de novas relações de produção.
A veiculação da arte com a política aqui acontecia por uma tentativa
Partilha do sensível
GHHQFRQWUDUXPSRQWRGHLQˊH[¥RHQWUHGRLVVHQWLGRVGHYDQJXDUGD
um político, outro estético. Como se sabe, o “partido” se autoproclamava
ȢYDQJXDUGDȣ DOHJDQGR TXH DVȢPDVVDVȣ Q¥R HVWDULDP VXˉFLHQWHPHQWH
esclarecidas a respeito de seus próprios interesses e precisariam ser
dirigidas no caminho da revolução. A vanguarda estética, por seu turno,
aparece ligada à ideia de que era preciso uma “novidade artística” uma
vez que foi preciso criar uma analogia estética para a nova sociedade
5DQFLªUH VH LQVHUH HP XPD WUDGL©¥R ˉORVµˉFD TXH R FRORFD DR ODGR
por exemplo, dos teóricos da Escola de Frankfurt – a crítica cultural.
Seu pensamento não visa realizar uma teoria geral da arte; portanto,
não busca um conceito universal sobre a obra, mas, sim efetuar um
modo de articulação entre as práticas culturais e o pensamento
89
sobre essas práticas. A teoria, aqui, não é pensada nos limites de um
de diferentes manifestações artísticas, com diferentes conteúdos e
horizonte disciplinar; parte-se antes das práticas e dos procedimentos
suportes.
artísticos e culturais, negando o abstracionismo conceitual em termos
estéticos. Analisando o material simbólico da cultura, deve-se formar
uma constelação de conceitos que não busque uma explicação, mas uma
ressonância da cultura.
de crítica de arte. A tradicional disjunção entre “artista” e “crítico de arte”
é embaralhada, já que se cria uma zona de convergência entre ambos os
papéis. O “estético” é atravessado por uma postura “ética” no sentido de
Em contraposição ao dirigismo político incorporado na vanguarda
promoção da partilha do sensível. Ao artista-crítico cabe a articulação
revolucionária, Rancière considera que a articulação entre arte e política
de uma rede de produção estética, na qual o espectador emancipado
deve promover não a direção, mas a emancipação do espectador”.
VHVLQWDFDSD]GHSURGX]LURSUµSULRˉOPHRXHVFUHYHURSUµSULROLYUR
89
1HVVD SHUVSHFWLYD HOH FRQIHUH LPSRUWDQWH SDSHO ¢ ˉJXUD GR FU¯WLFR
&RPLVVRYLVDVHHPSUHHQGHUXPSURFHVVRGHWURFDVDˉPGHLQWHUYLU
que não pode ser reduzido ao de especialista em arte. Aqui, o discurso
e combater a exclusão do sensível. Naturalmente, trata-se de rede de
ressoa apenas entre os conhecedores de arte, o que exclui os não
produção, recepção e interpretação das formas sensíveis que se opõe à
versados em arte das formas do sensível. No horizonte da partilha do
universalização do mercado.
sensível, ao contrário, o crítico possui caráter eminentemente político,
ou seja, sua interpretação deve procurar entrar na vida do espectador90
Com efeito, esse pensamento ultrapassa a compreensão comum
leitor não especialista. A crítica emancipatória deve sempre se orientar
pela articulação dos conteúdos culturais que visem a um processo
de construção da autonomia intelectual do espectador-leitor. Assim,
Rancière exige do crítico mais do que alguma explicação da obra;
exige a capacidade de proporcionar uma “conversa” em torno da obra,
Segundo Rancière, a reorganização do sensível é processo
contínuo de mediação nas exclusões do sensível; daí a importância
GHDˉUPDUSROLWLFDPHQWHRSDUDGLJPDGHPRFU£WLFRHFRPXQLW£ULR1R
entanto, a atividade artística e a práxis cultural não visam estabelecer
SURFHVVRVGHLGHQWLˉFD©¥RPDVRGHVORFDPHQWRGDVKLHUDUTXLDVHGRV
lugares socialmente estabelecidos.
propiciando a livre troca das interpretações. Os efeitos emancipadores
da crítica só podem ser sentidos quando os próprios espectadores
tomarem a palavra, saindo de sua posição passiva e se colocando
Construtivismo
ativamente no jogo das disputas hermenêuticas.
Por isso, a crítica não pode ter a pretensão de revelar algo àqueles
que supostamente não são capazes de compreender as manifestações
artísticas. O crítico não se pode colocar em posição hierarquicamente
superior à dos “não cultivados”, mas, ao contrário, deve buscar repercutir
determinadas formas do sensível. Nesse sentido, a orientação em
direção à emancipação não consiste na adesão a uma estética radical
e antiburguesa, mas na construção de uma práxis cultural a partir
Ainda que implicitamente, a crítica à missão revolucionária da
YDQJXDUGD « HQGHUH©DGD D :DOWHU %HQMDPLQ 1R HQWDQWR VH ˉ]HUPRV
a leitura de um texto como “O autor como produtor” sem acentuar um
pretenso caráter “revolucionário”, veremos grande proximidade entre os
dois autores. Como foi dito, Rancière mantém a necessidade da troca
das formas sensíveis dentro de uma esfera comunitária, dela retirando
todo o “dirigismo” das vanguardas. Sem este caráter “revolucionário”,
a distinção que Benjmain faz, em relação a Tretiakov, entre o escritor
91
operativo e o informativo casa-se bem com a concepção do pensador
partilha do sensível como a redistribuição dos lugares e a eliminação
francês.
das hierarquias e exclusões. De acordo com Rancière, é exatamente
A missão do primeiro [o escritor operativo] não é relatar,
mas combater, não ser espectador, mas participante ativo.
Quando na época da coletivização total da agricultura, em
1928, foi anunciada a palavra de ordem “Escritores aos
colcoses!”, ele viajou para a comuna Farol Comunista e
em duas longas estadias realizou os seguintes trabalhos:
convocação de comícios populares, coleta de fundos
para a aquisição de tratores, tentativas de convencer os
camponeses individuais a aderirem aos colcoses, inspeção
de salas de leituras, criação de jornais murais e direção
do jornal do colcós, reportagens em jornais de Moscou,
introdução de rádios e de cinemas itinerantes, etc.90
Como visto, não se trata de conduzir a um processo revolucionário,
mas de estabelecer um programa emancipatório, em que o próprio
leitor-espectador tenha voz. Benjamin, porém, prevê essa dimensão
92
precisamente quando fala sobre o papel do jornal na imprensa soviética
na medida em que perde em profundidade “a distinção convencional
HQWUHDXWRUHS¼EOLFRTXHDLPSUHQVDEXUJXHVDSUHVHUYDDUWLˉFLDOPHQWH
começa a desaparecer na imprensa soviética. Nela, o leitor está sempre
pronto igualmente, a escrever, descrever e prescrever”.91
Essa aproximação dos pensadores é possível já que Rancière, tal
HVVHRSHULJRTXH3ODW¥RYHULˉFDQRVSRHWDV
No terceiro livro da República, o fazedor de mímesis é
condenado não mais apenas pela falsidade e pelo caráter
pernicioso das imagens que propõe, mas segundo um
princípio de divisão de trabalho que já havia servido para
excluir os artesãos de todo espaço político comum: o
fazedor de mímesis«SRUGHˉQL©¥RXPVHUGXSOR(OHID]
duas coisas ao mesmo tempo, quando o princípio de uma
sociedade bem organizada é que cada um faça apenas
uma só coisa, aquela à qual sua “natureza” o destina.92
A partilha do sensível perturba a ideia do trabalho como a
impossibilidade de se fazer “outra coisa” por falta de tempo. O mimético
é, precisamente, aquele que faz duas coisas, redistribuindo a esfera
comum ao eliminar a obrigação de uma ocupação única. A prática
artística, portanto, desloca os lugares estabelecidos, dando visibilidade
ao trabalhador como um ser duplo. Essa dimensão coloca o artesão,
outrora excluído da esfera comum em função de sua ocupação
HVSHF¯ˉFD FRPR FLGDG¥R QR PXQGR GHPRFU£WLFR FDSD] GH WRPDUYR]
na assembleia. A poesia e o teatro enquanto esferas públicas realizam
a partilha do comum e, rompendo com as hierarquias sociais, revelam
que qualquer um pode participar das decisões políticas.
como Benjamin, adere a uma proposta estética ligada ao Construtivismo.
Sem o dirigismo revolucionário, esse movimento torna-se atual já que
a “obra”, aqui, não aparece como algo apartado. Em outras palavras,
$HPHUJ¬QFLDGRDQ¶QLPR
não há um lugar especial para a arte, mas um espaço de mediação
de uma práxis cultural que opera na materialidade das coisas e em
Se há convergência entre esses autores quanto à adesão ao
suas relações. A dimensão propriamente política do construtivismo
Construtivismo, outro ponto os afasta. Em diversos momentos de sua
aparece na busca da reconstrução da aparência sensível no mundo. A
obra, Rancière mostra discordância de uma das principais teses de
DUWH DVVLP WRUQDVH RXWUD YH] XP V¯PEROR GR WUDEDOKR LGHQWLˉFDQGR
“A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, a de que
um processo de efetuação material para que a comunidade possa, na
transformações técnicas também produzem transformações estéticas.
produção estética, apresentar-se a si mesmo. Nesse sentido, ocorre a
Segundo Benjamin, a perda da aura e o aparecimento das técnicas
93
GH UHSURGX©¥R TXH FXOPLQDUDP QR FLQHPD H QD IRWRJUDˉD DOWHUDUDP
primeiramente no cinema, mas na literatura, notadamente no romance
também os modos de produção/recepção da obra. Se a obra aurática
do século XIX. Em Balzac, por exemplo, aparecem as vestimentas e os
era caracterizada por sua unicidade e autenticidade, sua reprodução
gestos de um indivíduo qualquer; em Hugo, o esgoto aparece como
mecânica permitia o acesso de grande número de pessoas. Assim, a
revelador da civilização. No entanto, poderíamos citar outras artes que
principal transformação em termos estéticos pelo aparecimento das
WDPE«P ˉ]HUDP D SURPR©¥R GR DQ¶QLPR FRPR « R FDVR GD SLQWXUD
técnicas de reprodução é a emergência da massa, que se torna “a matriz
com, por exemplo, Comedores de Batatas de van Gogh.
da qual emana, no momento atual, toda uma atitude nova com relação
à obra de arte. A quantidade converteu-se em qualidade. O número
substancialmente maior de participantes produziu um novo modo de
Futuro da imagem
participação”.93
Rancière, ao contrário, não aceita que seja possível derivar
propriedades políticas e estéticas das propriedades técnicas do suporte
utilizado. Em sua opinião não há dúvida de que o que as artes mecânicas,
RFLQHPDHIRWRJUDˉDSURPRYHUDPQRFDPSRGDVDUWHVIRLRDQ¶QLPRD
massa, no dizer de Benjamin). No entanto, ele considera que a visibilidade
94
do homem comum não ocorreu graças ao aparecimento de novas
técnicas, mas sim pela decisão, ao mesmo tempo política e estética,
de colocar o indivíduo anônimo como tema artístico. Naturalmente,
tal visibilidade é fundamental para as exigências desse pensamento
estético-político de Rancière, já que, com esse fenômeno, rompem-se os
processos hierárquicos sociais. Se o herói de Hollywood foi substituído
pelo homem sem qualidadesQRVˉOPHVGR1HRUUHDOLVPRLWDOLDQRHGR
Cinema Novo brasileiro, nas décadas de 1950 e 1960, isto não ocorreu
graças à transformação da técnica, mas sim, segundo Rancière, devido
a uma revolução estética que acabou com a hierarquia que comandava
o sistema das artes.
Nessa perspectiva, a revolução técnica é posterior à revolução
artística. De modo geral, a história da arte ocidental que privilegiava
a representação dos grandes acontecimentos, das grandes narrativas
e dos grandes homens deu lugar à representação de acontecimentos
banais e de homens comuns. Essa decisão, que operou uma revolução
QDV KLHUDUTXLDV GR VLVWHPD GDV DUWHV Q¥R DFRQWHFH DˉUPD 5DQFLªUH
A dimensão da partilha do sensível possui estreita relação com a atual
circulação de imagens e com a forma como se pensa seu estatuto na
sociedade. O Construtivismo de Rancière atribui papel fundamental
ao regime de imagens na constituição dos sistemas de relações dos
homens entre si e com as coisas. Nessa perspectiva, ele estabelece
lógica diferente para a produção e recepção cultural da imagem com
vistas a ir além tanto da imagem midiática, criticada na década de
1960 a partir de uma teoria do “espetáculo”, quanto das tendências
antirrepresentacionais do modernismo e do pós-modernismo. Rancière
mantém a crítica à imagem publicitária, mas não o faz em nome da
forma pura. Não se trata de negar a publicidade comercial como crítica
ao regime representacional da imagem, mas de desfazer lugares
estabelecidos em que se situam o autor, a obra de arte, a imagem, o
espectador, a cultura de massa.
Nesse sentido, Rancière faz importante distinção entre a imagem
e o visual.94 O visual se caracteriza por remeter-se exclusivamente
a si mesmo, estando sempre veiculado ao que mostra. A imagem, ao
contrário, sempre possui um enigma, um segredo, e se refere a um outro.
Os signos que a imagem engendra aparecem sempre no jogo daquilo
que ela mostra e encobre, entre o que nela está presente e ausente.
Dessa forma, a imagem não é exclusivamente visível e necessita das
palavras para desvendar seu segredo. A interpretação revela o outro
95
oculto naquilo que a imagem mostra, reforçando, atenuando ou
estética”, Rancière não poderia aceitar, por exemplo, que regime de
dissimulando a expressão de uma ideia silenciosa na imagem que,
imagens seja uma consequência do aparecimento da “técnica” digital.
assim, precisa ser interpretada. Esse é seu caráter eminentemente
crítico, pois sua circulação implica, portanto, a necessidade da troca
de interpretações necessárias para a constituição da rede de produção
estética.
não é o fato de ele ser veiculado por determinada técnica ou suporte,
mas sim de realizar uma série de operações que articulam as imagens
entre si. Ocorre que, em seu jogo de identidade e alteridade, a imagem
A imagem nunca é simples realidade, mas antes um jogo de
jamais pode ser pensada de modo isolado, mas necessariamente dentro
manifestação e ocultamento, um conjunto de relações entre o dizível
de uma imagerie, ou seja, um regime de relações entre elementos e
e o visível$VVLPTXDQGRDIRWRJUDˉDDSDUHFHQRV«FXOR;,;Q¥RID]
funções das imagens. Essas operações consistem em estabelecer
outra coisa senão operar este mecanismo de duplicação da imagem.95
relações do todo com as partes, entre a visibilidade e o poder de
1DV FHQDV FRWLGLDQDV D IRWRJUDˉD PRVWUDYD DR PHVPR WHPSR SXURV
VLJQLˉFD©¥RHQWUHRVDIHWRVDFRSODGRV¢LPDJHPHRVHIHLWRVTXHHOHV
blocos visuais, impermeáveis a qualquer narrativa e dava o legítimo
criam, entre as expectativas e as realizações ou frustrações.
testemunho da história sendo escrita nas faces e nos objetos. Essa dupla
poética não foi inventada pelo aparecimento da técnica IRWRJU£ˉFDPDV
encerrava uma situação típica do século XIX: simultaneamente a cena
96
Na opinião desse autor, o que caracteriza um regime de imagens
particular e progresso universal da história. Segundo Rancière, essa
dupla poética já aparecia na literatura de então, bem como, na pintura,
podemos dizer. Essas suas linguagens redistribuíram as relações entre o
GL]¯YHOHRYLV¯YHODRFULDUUHJLPHHVSHF¯ˉFRUHSUHVHQWDWLYRSRUFRORFDU
em jogo a situação comum.
Naturalmente, tal descrição se parece bastante com o princípio da
montagem no cinema, que garantiu a formação de uma obra de arte
não mais como um todo orgânico, mas sim de modo fragmentário. A
DUWLFXOD©¥R GH IRWRJUDˉDV HP SULQF¯SLR VHP QHQKXPD UHOD©¥R HQWUH
VL H R XVR GD P¼VLFD HP PRPHQWRV HVSHF¯ˉFRV SRU H[HPSOR FULDP
uma ligação de percepções e afetos, a partir do estabelecimento de
certas ligações entre causa e efeito, em que a imagem nunca é uma
simples realidade, mas sim um conjunto de relações entre o dizível e
É tentador estabelecer relação entre essas considerações sobre
RYLV¯YHOHQWUHRDQWHVHRGHSRLVHQWUHDFRQˉUPD©¥RRXDIUXVWD©¥R
a imagem e o aparecimento daquilo que hoje chamamos de arte
de uma expectativa criada. Assim, cada fragmento isolado desempenha
digital 2 EDUDWHDPHQWR GRV DSDUDWRV GLJLWDLV H D VLPSOLˉFD©¥R GDV
igualmente importante papel à medida que é articulado na produção
técnicas e de seus usos abriram a possibilidade de levar a produção
GH XPD VHTX¬QFLD VLJQLˉFDWLYD &DGD SDUWH FRQWULEXL HTXLWDWLYDPHQWH
a um grande número de pessoas. Do ponto de vista da recepção, a
na construção do todo.
LQWHUQHW SRVVLELOLWRX TXH XP ˉOPH SURGX]LGR GLJLWDOPHQWH VHMD YLVWR
por milhares de pessoas, por exemplo, no youtube, sem a necessidade
de pagar tributos às grandes distribuidoras. Os blogues permitem que
cada um que escreve possa dar visibilidade global a seus trabalhos
sem ter de cobrir os custos de publicação. No entanto, coerente com
o pensamento de que “a revolução técnica vem depois da revolução
O problema é que, para Rancière, essas operações com as imagens
Q¥R DSDUHFHUDP FRP D W«FQLFD FLQHPDWRJU£ˉFD 2 FLQHPD Q¥R «
PHUDȢIRWRJUDˉD HP PRYLPHQWRȣ PDV D FRQVWUX©¥R GH RSHUD©·HV TXH
também são possíveis em outras artes. Quando aparece a técnica
FLQHPDWRJU£ˉFD WDLV SURFHGLPHQWRV HVW«WLFRV M£ HUDP XWLOL]DGRV SRU
exemplo, no romance do século XIX. A construção fragmentária da
97
PRQWDJHPFLQHPDWRJU£ˉFDWDPE«PDSDUHFHSRUH[HPSORHPMadame
Bovary. Independente da invenção do cinema, como mostra Peter Bürger,
88
Rancière, J. A partilha do sensível: estética e política. Trad. Mônica Costa Netto. 2ª. ed.
São Paulo: Editora 34, 2009, p.27.
em seu Teoria da vanguarda, os dadaístas já tinham produzido efeitos
89
FLQHPDWRJU£ˉFRVFRPRVPHLRVGDOLWHUDWXUDHGDSLQWXUD1RSULPHLUR
90
Magia e técnica, arte e política. 10a imp. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo:
Brasiliense, 1996, p.123.
caso, graças a suas “saladas de palavras” no campo da literatura; no
segundo, graças ao procedimento da colagem, em que elementos
heterogêneos, como botões e bilhetes de passagem de trem, eram
FRODGRVDˉPGHVHSURGX]LUXPVHQWLGR96
&RQFOXV¥R
Segundo Rancière, a política sempre realizou uma organização
do sensível; por isso, apostar no compartilhamento do sensível
Cf. Rancière, J. Le Spectateur émancipé. Paris: Fabrique, 2009.
91
Idem, ibidem, p.124.
92
Rancière, 2009, p.65.
93
Benjamin, 1996, p.192.
94
The Future of the image. Trad. Gregory Elliott. London: Verso, 2007, p.2.
95
Idem. ibidem, p.11.
96
Bürger, P. Teoria da vanguarda. Trad. José Pedro Antunes. São Paulo: Cosac Naify,
2008, p.123.
Sobre o autor
implica uma decisão política do artista e do crítico de arte. Não se
WUDWD SRUWDQWR GH DGHULU D XPD HVW«WLFD SDUWLFXODU PDV VLP YHULˉFDU
98
determinados procedimentos no âmbito estético que visam eliminar
as exclusões do sensível e combater as hierarquias. A tematização do
homem comum, do anônimo, nas artes foi uma maneira de realizar a
partilha do sensível. Por isso, ele não aceita que este fenômeno tenha
RFRUULGR JUD©DV D XP IDWR HVSHF¯ˉFR R DSDUHFLPHQWR GDV W«FQLFDV GH
reprodução, o que não implica que ele não concorde com Benjamin na
adesão a uma proposta estética que aponte para uma práxis cultural
ligada às formas sensíveis e materiais de uma vida por vir. Desfeitas
as ilusões revolucionárias, Rancière aposta na emancipação como um
caminho para refazer a articulação entre arte e política. Se ele escolhe
Benjamin como interlocutor, é porque ele é um dos pensadores que
talvez realize melhor as exigências desta articulação.
Notas
3HGUR+XVVDNYDQ9HOWKHQ5DPRVȝ'RXWRUHPˉORVRˉDSHOD8QLYHUVLGDGH)HGHUDO
do Rio de Janeiro, professor de estética na Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro, colaborador no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Arte da
Universidade Federal Fluminense.
99
TRAGI-CIDADE
DA IMAGEM NA
ARTE MODERNA
Martha D’Angelo
Universidade Federal Fluminense
‡–‡”‘ǡ†‡“—ƒŽ“—‡”‘†‘±ǡƒ–‡•ǡ um drapeado de vestido do que uma ideia. Walter Benjamin97
100
Meu objetivo é abordar a relação pensamento/imagem, seus
envolvimentos com a cultura urbana e as linguagens da arte. Em
meu percurso investigo o modo como a atividade do pensamento,
que sempre esteve associada à criação e ao uso dos conceitos, foi
estimulada pela produção de imagens. No âmbito dessa temática a
obra de Walter Benjamin trouxe uma das contribuições mais originais e
VLJQLˉFDWLYDVSDUDDYLGDLQWHOHFWXDOGRV«FXOR;;2SRGHUHRDOFDQFH
da conexão pensamento/imagem revelam-se sobretudo em Rua de mão
única (1923-1926), Imagens do pensamento, Diário de Moscou (19261927), Infância em Berlim por volta de 1900 (1932-1938) e no trabalho
de Passagens (1927-1940).
Tomando como ponto de partida a ideia de aura e sua perda,
aspectos centrais em Baudelaire e Benjamin, introduzimos nossa
questão nos reportando, inicialmente, à dedicatória de Baudelaire em
Pequenos poemas em prosa,98 a Arsène Houssaye,99 em especial ao trecho
em que se refere ao desejo de alcançar o sonho de realizar o milagre de
101
uma “prosa poética musical sem ritmo e sem rima, bastante maleável e
plásticas no texto “O pintor da vida moderna”,104 em que observa as
bastante rica em contrastes para se adaptar aos movimentos líricos da
particularidades dos desenhos e pinturas de Constantin Guys (1805-
alma, às ondulações do devaneio e aos sobressaltos da consciência”.100
1892), modelo por excelência do artista moderno, segundo o autor. Essa
2SRHWDWDPE«PLGHQWLˉFDORJRDVHJXLUDRULJHPGHVVHGHVHMRPDLV
avaliação se constrói a partir do próprio ideal do pintor, pois o que
profundo: “É sobretudo da frequentação das grandes cidades que nasce
sua arte efetivamente busca, segundo Baudelaire, é algo mais elevado
esse ideal obsessor”.
do que o prazer efêmero objetivado pelo ˊ¤QHXU. “Trata-se, para ele
101
Essas duas passagens estabelecem um vínculo entre o ritmo da
vida urbana e a construção de uma nova linguagem, própria ao artista
no histórico, de extrair o eterno do transitório”.105
moderno. Para falar sobre o mundo de forma verdadeira o poeta precisa
Por conseguir combinação tão extraordinária, Constantin Guys,
GHL[DUVXDWRUUHGHPDUˉPHPLVWXUDUVH¢PXOWLG¥R$VFRQVHTX¬QFLDV
que iniciou sua atividade autodidata como desenhista e pintor com
desse deslocamento são o tema do poema em prosa “Perda de
mais de 40 anos, é considerado um modelo. Ele encarna a teoria do belo
Auréola”,
em que Baudelaire constrói uma alegoria sobre a condição
de Baudelaire, segundo a qual o belo é constituído por um elemento
do artista na modernidade através de uma imagem, uma cena urbana do
eterno e invariável e por um elemento circunstancial e histórico,
cotidiano, aparentemente banal. Trata-se da narrativa de um encontro,
dualidade que também é inerente ao homem.
102
num lugar mal frequentado, de um poeta e uma pessoa de seu círculo
102
[Constantin Guys], de tirar da moda o que esta pode conter de poético
GH UHOD©·HV 2 SRHWD MXVWLˉFD D VXD SUHVHQ©D QHVVH OXJDU FRQWDQGR R
que acabara de lhe acontecer. Fugindo do caos urbano, da lama da rua
e da agitação do trânsito, num movimento brusco escorrega da cabeça
do poeta sua auréola. Preferindo perdê-la a se arriscar a recuperá-la e
ter os ossos quebrados por algum veículo, o poeta segue seu caminho
deixando a auréola na lama. A condição de igualdade com as pessoas
comuns, perdidas no burburinho da cidade, e a possibilidade de algum
mau poeta recuperar a auréola para tirar vantagens de seu uso são
admitidas como uma espécie de compensação da perda.
Esse episódio mostra a rua como espaço em que acontecem
experiências e situações capazes de transformar radicalmente as
condições materiais do artista e da arte. Essas transformações geram
um antissubjetivismo e um abalo no próprio conceito de subjetivo. Na
tragi-cidade da imagem do poema “Perda de Auréola”103 ˉFD H[SRVWD
a correlação entre a transformação técnica da escrita poética e as
transformações urbanas na modernidade. Baudelaire também trata
da relação entre a transformação da cidade e das imagens nas artes
Em “O pintor da vida moderna” Baudelaire revela que esperou
10 anos para ver realizado seu desejo de conhecer pessoalmente
&RQVWDQWLQ*X\V4XDQGRˉQDOPHQWHHVVHHQFRQWURRFRUUHXRLPSDFWR
foi muito grande: “logo vi que não se tratava precisamente de um artista,
mas antes de um homem do mundo”106JULIRQRRULJLQDO'HˉQLQGRD
GLIHUHQ©D HQWUH R DUWLVWD H R KRPHP GR PXQGR R SRHWD DˉUPD TXH
o primeiro é um especialista, um homem subordinado a seu ofício,
enquanto o segundo busca compreender o mundo inteiro e as “razões
misteriosas e legítimas dos seus costumes”.107 A curiosidade que guia
seu pensamento é semelhante à da criança, daí sua genialidade. Sempre
atento às mais sutis manifestações da vida, ele consegue extrair da
moda o eterno.
A distinção entre “artista” e “homem do mundo” sugere a
YDORUL]D©¥RGRVHJXQGRHUHVWUL©¥R¢ˉJXUDGRHVSHFLDOLVWDH¢GLYLV¥R
social do trabalho, que começava a se acentuar em diferentes campos
de atividade na segunda metade do século XIX. A agilidade da técnica
de CG acompanha o ritmo da vida moderna. Como todos os bons
103
desenhistas, ele desenha de memória, informa Baudelaire, e não a
de arte como fenômeno relacionado às transformações da cidade e à
partir do modelo. Na verdade a partir da imagem gravada dentro dele
mercantilização da vida. O impacto da cultura urbana revelou-se pela
próprio, o que lhe permitia trabalhar em 20 desenhos ao mesmo tempo.
primeira vez na linguagem de Walter Benjamin – com força equivalente
Comentando a força de suas imagens sobre a Guerra da Crimeia para
à que encontramos em Baudelaire, Mallarmé e nos surrealistas – no livro
o jornal Ilustrated London News, Baudelaire declarou: “nenhum diário
Rua de mão única. Referindo-se à percepção de Mallarmé das tensões
nenhum relato escrito nenhum livro exprime tão bem em todos os seus
JU£ˉFDVGDSXEOLFLGDGHQDFRQˉJXUD©¥RGDHVFULWD%HQMDPLQDYDOLDTXH
detalhes dolorosos e em sua sinistra amplitude”108 essa grande epopeia.
essa descoberta do poeta foi possível porque ele soube reconhecer o
2TXHHQWUHWDQWROHYRX%DXGHODLUHDGHˉQLU&*FRPRȢRSLQWRUGD
vida moderna” não foi seu registro da Guerra da Crimeia para o jornal
inglês, e sim as suas imagens da vida urbana de Paris durante o Segundo
Império (1852-1870). A partir da observação dessas imagens surgiu
o conceito de “arte moderna” e de “arte mnemônica”, que mediante
evocador esforço de memória consegue ressuscitar as coisas como se a
cada uma delas dissesse: “Lázaro levanta-te”.109
Em “Quadros parisienses”, integrantes do chamado ciclo urbano
104
de $V ˊRUHV GR PDO, o fascínio do poeta pela cidade de Paris, com
suas luzes, seus personagens, suas construções e até seus ruídos, foi
imortalizado em imagens e alegorias reveladoras da experiência do
choque. Benjamin considera essa experiência determinante na obra
de Baudelaire. Nos poemas “Paisagem”, “A uma mendiga ruiva”, “Os sete
velhos”, e “A uma passante”, por exemplo, o tema da multidão anônima
e o fervilhar das ruas é central na arquitetura dos textos. A construção
dos versos em $VˊRUHVGRPDO foi comparada por Benjamin à planta de
uma grande cidade: “Neste mapa, as palavras têm, como conspiradores
que se passava em sua época:
A escrita, que no livro impresso havia encontrado um asilo
onde levava sua existência autônoma, é inexoravelmente
arrastada para as ruas pelos reclames e submetida às
brutais heteronomias do caos econômico. Essa é a rigorosa
escola de sua forma. Se há séculos ela havia gradualmente
começado a deitar-se, da inscrição ereta tornou-se
manuscrito repousando oblíquo sobre escrivaninhas, para
DˉQDO DFDPDUVH QD LPSUHVV¥R HOD FRPH©D DJRUD FRP
a mesma lentidão, a erguer-se novamente do chão. Já o
MRUQDO « OLGR PDLV D SUXPR GR TXH QD KRUL]RQWDO ˉOPH
e reclames forçam a escrita a submeter-se de todo à
ditatorial verticalidade. E, antes que um contemporâneo
chegue a abrir um livro, caiu sobre seus olhos um tão denso
YROXPHGHOHWUDVFDPELDQWHVFRORULGDVFRQˊLWDQWHVTXHDV
chances de sua penetração na arcaica quietude do livro
se tornaram mínimas. Nuvens de gafanhotos de escritura,
que hoje já obscurecem o céu do pretenso espírito para os
habitantes das grandes cidades, se tornarão mais densas a
cada ano seguinte.111
antes de estourar uma rebelião, os seus lugares indicados com toda
A cultura urbana e a linguagem das ruas foi adquirindo importância
precisão. Baudelaire conspira com a própria linguagem. Passo a passo
crescente na escrita de Benjamin desde Rua de mão única. Por isso
calcula seus efeitos”.110
mesmo, Rainer Rochlitz considera esse livro uma espécie de divisor de
A aguda percepção de Baudelaire a respeito do que estava
acontecendo na cidade e no mundo artístico em sua época é muito
FRPHQWDGDHYDORUL]DGDSRU%HQMDPLQ+£SURIXQGDDˉQLGDGHHQWUHRV
dois, manifestada sobretudo na compreensão da perda da aura da obra
águas na trajetória de Benjamin.
Ao lado dos conselhos dispensados aos escritores e
das observações sobre as mutações da mídia, podemse distinguir alguns temas recorrentes em Rua de mão
única XPD HWQRJUDˉD GDV FLGDGHV UHˊH[·HV VREUH R
105
amor, lembranças de infância, anotações de sonhos e
comentários sobre a crise revolucionária da humanidade.
Cada vez, Benjamin confronta-se com as fronteiras
comumente admitidas entre as esferas do real. Metafórica
ou literalmente, ele apaga a oposição entre vida pública e
vida privada, exterior e interior (os móveis e a alma daquele
que os habita), o humano e o animal, o pensamento
consciente e o sonho; essas separações são, a seu ver,
características do pensamento “burguês’, responsável por
toda abstração.112
O sentido dessa virada, com sua concentração nos documentos,113
está próximo do que veio a se manifestar no surrealismo e na primeira
fase (1947-1958) da arte pop inglesa. No ensaio “O surrealismo”
(1929) Benjamin refere-se a Paris como o mais onírico dos objetos.
O desvendamento dessa cidade e de seu rosto surrealista só poderia
ser feito através da subversão da ordem nela inscrita. O destaque
de Benjamin ao livro Nadja, de Breton, publicado um ano antes do
106
ensaio “O surrealismo”, está relacionado ao fato de o personagemtítulo representar a possibilidade de experimentação de um estado de
embriaguez capaz de revelar a face surrealista da cidade.
$V IRWRJUDˉDV TXH %UHWRQ XVD QR OLYURYLVDYDP ¢ HOLPLQD©¥R GR
texto descritivo.114 No primeiro manifesto, escrito por Breton em 1924,
encontramos dura crítica à forma do romance por seu emprego corrente
da descrição e da informação.115 Esse recurso, típico da estrutura do
romance, faz dele um gênero inferior. Poucos romances, segundo o autor,
se distanciam da pobreza típica de sua forma, e isto só acontece quando
o sopro do maravilhoso DQLPDRF«UHEURGRHVFULWRU$ˉPGHUHVROYHU
a estrutura narrativa, sem se perder em descrições, Breton contratou o
fotógrafo Jacques-Andre Boiffard para captar imagens dos lugares que
percorreu com Nadja em sua ˊ¤QHULH guiada pelo desejo, que é sempre
fugidio, sem objetivo e sem consciência. O encontro com a cidade e com
Nadja acontece ao mesmo tempo no livro.
Dirigindo o olhar para as imagens de revistas e cartazes de rua,
DOJXQV DUWLVWDV LQJOHVHV FRPH©DP D WUDEDOKDU QR ˉQDO GD G«FDGD GH
FRP FRODJHQV H IRWRJUDˉDV 3UHQXQFLDQGR D DUWH SRS (GXDUGR
Paolozzi reuniu num trabalho de 1947 (I Was a Rich’s Man Playing Thing)
as seguintes imagens: uma pin-up, uma garrafa de Coca-Cola, pedaços
de um anúncio de alimentos e a palavra “pop”,que, escrita em um balão
de revista em quadrinhos, aparece disparada por uma arma. Um traço
dos artistas da primeira geração da pop art inglesa (como Eduardo
Paolozzi, Richard Hamilton e Peter Blake), que também é comum a
Benjamin, é o deslocamento operado em relação aos sistemas de arte
H GD ˉORVRˉD LQVWLWXFLRQDO DVVLP FRPR R LQWHUHVVH SHOD IRWRJUDˉD
imagens de anúncios e outros documentos da cultura urbana. Pela
maneira como são apropriados, passam a sugerir ideias que subvertem
suas proposições comerciais e se transformam em arte.116 A respeito da
atitude desses artistas, o crítico Lawrence Alloway, membro ativo desse
grupo, posteriormente conhecido como Grupo Independente (GI), assim
se pronunciou:
Não sentíamos desagrado pelos padrões da cultura
FRPHUFLDOFRPRVHYHULˉFDYDQDPDLRULDGRVLQWHOHFWXDLV
aceitávamo-los como um fato, discutíamo-los em pormenor
e esgotávamo-los com entusiasmo. Um dos resultados das
nossas conversas foi retirarmos a cultura pop do domínio
da “evasão”, da “pura distração”, da “descontração”, e abordála com a seriedade com que se discute a arte.117
A primeira fase da pop art inglesa foi marcada por três importantes
exposições: “Paralelo da vida e da arte” (1953), “Homem, máquina e
movimento” (1955) e “Isto é amanhã” (1955-1956). A primeira teve como
motivação central o desejo de expandir os limites da arte colocando em
questão o que era considerado “vida” e “arte”. Não se tratava nesse caso
de retomar a tentativa dos surrealistas de abolir as fronteiras entre a
vida e a arte, mas de rever o sentido de ambas. Essa revisão semântica
pode expandir-se para todos os objetos e imagens porque, como
observou Eduardo Paolozzi, objetos e imagens podem ser incorporados
107
e assimilados de diversas maneiras: “O relógio como uma máquina de
A forma como os documentos da cultura urbana são apropriados
calcular ou uma joia, uma porta como um painel ou um objeto de arte,
por Richard Hamilton e Peter Blake, por exemplo, produz uma reviravolta
DP£TXLQDIRWRJU£ˉFDFRPRXPOX[RRXXPDQHFHVVLGDGHȣ118
HPVXDVLJQLˉFD©¥RK£XPDHVS«FLHGHFRQYHUV¥RGRVGRFXPHQWRVHP
“Paralelo da vida e da arte” reuniu 100 imagens que em seu
FRQMXQWR FRQWLQKDP JUDQGH YDULHGDGH GH IRWRJUDˉDV H UDGLRJUDˉDV
Trabalhos de grande formato foram colocados nas paredes e no teto da
galeria do Instituto de Arte Contemporânea (ICA), de Londres, dispostos
sem qualquer relação, semelhante ao procedimento adotado por
Benjamin em Rua de mão única. A intenção era apresentar as imagens
FRPR GRFXPHQWR VHP PHGLD©¥R GH WHRULDV 7DQWR SHOD LFRQRJUDˉD
quanto pela organização do espaço, a exposição conseguiu produzir,
segundo Alloway, um “deslocamento” no mundo da arte.
Em 1955, “Homem, máquina e movimento”, também no ICA,
aprofundou o aparente anti-intelectualismo revelado na mostra
anterior explorando a diversidade e quantidade de imagens da cultura
108
urbana. Nesse mesmo ano, o mais notável acontecimento da pop art
inglesa, a exposição “Isto é amanhã”, por intermédio dos 12 grupos que
participaram do evento na Galeria Whitechapel, deu maior visibilidade
às questões ambientais latentes nas duas primeiras mostras do GI. Do
conjunto apresentado merece destaque o grupo de Richard Hamilton,
McHale e John Voelcker. Eles “construíram um modelo de arquitetura de
parque de diversões com falsa perspectiva, pavimento liso e luz escura
no interior; o exterior, coberto de citações da cultura popular, incluía
Marilyn Monroe, uma enorme garrafa de cerveja, um robô recortado
GHPGHDOWXUDFRPXPDUDSDULJDGRˉOPHSXEOLFLW£ULRUHODWLYRD
Planeta proibido. O catálogo incluía colagem de Hamilton, Que é que
Torna os Lares de hoje tão diferentes, tão atraentes?, inventário da cultura
popular: teto lunar, homem musculoso, rapariga nua, uma imagem de
Al Jolson do Cantor de Jazz, uma inovação tecnológica do cinema (o
DGYHQWRGRVRPHRXWUDLQRYD©¥RˉWDPDJQ«WLFDQRSULPHLURSODQRȣ119
obras de arte. Os elementos da cultura de massa que mais interessam
a Blake fazem parte do mundo infantil e juvenil: brinquedos, parques
de diversão, histórias em quadrinhos, cantores de rock (Elvis Presley e
Cliff Richard, principalmente) e artistas de cinema. Tudo isso envolto
em clima de nostalgia e com carga emocional bem diferente do tom
irônico e da frieza de Hamilton. On the Balcony (No Balcão), pintada por
Blake entre 1955 e 1957, é considerada uma das primeiras obras-primas
do pop britânico. Em exposição no Instituto de Arte Contemporânea, de
Londres, em 1960, Blake mostrou uma série de trabalhos misturando
pintura e colagem, imagens de artistas de cinema, cantores, emblemas
e pin-ups dividiam o espaço com superfícies pintadas em esmalte. Um
ano depois, em 1961, Blake reúne na colagem Love Wall (Muro do Amor)
grande diversidade de imagens do amor, e, em 1962, em Toy Shop (Loja
de Brinquedos), um conjunto de objetos relacionados ao universo infantil
aparece através de estrutura que é vitrina e janela ao mesmo tempo. A
seu lado, uma porta em tamanho natural; e entre as duas uma bandeira
da Inglaterra, colocada em posição vertical, indica a raiz cultural desse
mundo em miniatura.
A forma como as cidades e a cultura urbana aparecem na obra de
Walter Benjamin Imagens do pensamento também é muito sugestiva. A
vida em Nápoles, Moscou, Paris e Marselha foi gravada em imagens nas
quais se encontram em perfeita união observação e comentário. Sobre
Nápoles Walter Benjamin escreveu:
Travessas permitem que o olhar resvale, por sobre degraus
sujos, para dentro de botequins, onde bebem três ou quatro
homens sentados, isolados e ocultos atrás de tonéis como
se fossem colunas de igrejas (...) Usam-se prédios como
palcos populares. Toda gente os divide num sem-número
de áreas de representação simultaneamente animadas.
Balcões, átrios, janelas, portões, escadas, telhados são
109
ao mesmo tempo palco e camarote (...) toda a alegria é
transportável: música, brinquedo, sorvete se alastram pelas
ruas (...) No alto, por cima das ruas, se estendem varais
RQGHDVURXSDVVHSHQGXUDPFRPRˊ¤PXODVRUGHQDGDV
A pantomima é aqui mais usada do que em qualquer outra
parte da Itália. Para o forasteiro a conversa é insondável.120
A cidade é simultaneamente vista e pensada. A acuidade para os
detalhes e pormenores revelada em “Nápoles” também está presente
em “Moscou”. A estada conturbada de Benjamin nessa cidade aconteceu
QR SHU¯RGR GH GH GH]HPEUR GH DR ˉQDO GH MDQHLUR GH Gershom Scholem considera “Diário de Moscou” escrito único porque
é o documento “mais pessoal, total e impiedosamente franco que
possuímos sobre um período importante”121 da vida de Benjamin.
Em carta enviada a Martin Buber em fevereiro de 1927, Benjamin
faz declarações muito interessantes a respeito da forma do ensaio
110
“Moscou”, escrito para a revista de Buber Die Kreatur (A Criatura).
Especialmente importante para a questão que estamos tratando é sua
revelação de que tinha a intenção de pensar através de imagens, sem a
mediação de conceitos e teorias, indo direto ao fato, como revela este
trecho da carta que reproduzimos em seguida:
A Moscou hibernal é uma cidade silenciosa. A enorme
movimentação de suas ruas transcorre sem ruído. A neve
é que faz isso. Mas também o faz o atraso no tráfego.
Sinais de trânsito regem a orquestra da cidade grande.
Mas, em Moscou, antes de tudo, há poucos automóveis.
Só são mobilizados em matrimônios e falecimentos ou
pela apressada administração. À noite, de fato, dispõem
de faróis mais fortes que os permitidos em qualquer
outra metrópole. E o cone de luz investe de modo tão
ofuscante que quem é por ele atingido, desamparado,
não ousa sair do lugar. Em frente ao portão do Kremlin,
permanecem na luz ofuscante as sentinelas, que trajam
insolentes peliças amarelo-ocre. Sobre elas cintila o sinal
vermelho que coordena a passagem do tráfego. Todas as
cores de Moscou se reúnem aqui, no centro do poder russo,
prismaticamente. Feixes de luz de faróis superpotentes
caçam na multidão.123
Além dessas referências sobre a conexão de pensamento, imagem
e cidade, incluo no recorte deste trabalho os cartazistas franceses
pela importância que tiveram em sua época, pela atualidade de suas
posições e também pela postura crítica que assumiram no contexto da
*XHUUD)ULDHHPUHOD©¥R¢DˉUPD©¥RGDKHJHPRQLDFXOWXUDODPHULFDQD
após a Segunda Guerra Mundial. Não por acaso, nosso percurso na
Minha colocação guardará distância de toda e qualquer
teoria (...) Quero, neste momento, apresentar a cidade de
Moscou de tal forma que “todo o factual já seja teoria”, e,
assim, me abster de qualquer prognóstico, e até, dentro de
Europa começa com a ˊ¤QHULH de Baudelaire e termina com a ˊ¤QHULH
certos limites, de qualquer julgamento.122
meados do século XX, em plena “ditadura do abstracionismo” e triunfo
A força das imagens captadas da cidade de Moscou por Benjamin
faz justiça às intenções reveladas nessa declaração. Em inúmeras
passagens as referências ao movimento das pessoas, aos sons, ao ritmo
da vida e às cores são sugestivas e luminosas, como atestam os trechos
reproduzidos:
de Raymond Hains.
De acordo com os estudos de Catherine Bompuis sobre o tema, em
da action paintingDVGLVSXWDVQD)UDQ©DHQYROYLDPDDUWHˉJXUDWLYDR
realismo socialista e a arte abstrata. Nesse contexto apareceram jovens
artistas na arte francesa que, seguindo o princípio da apropriação,
colocaram em questão a redução da interrogação artística ao espaço
do quadro. Na forma de apropriação dos cartazes de rua por Raymond
+DLQVH-DFTXHVGH/D9LOOHJO«H[LVWHˉQDLURQLDHPUHOD©¥RDRPXQGR
da arte, uma postura iconoclasta semelhante à do dadaísmo. A técnica
111
de ambos é bem diferente da que era usada pelos artistas ingleses
passou da pureza visual para fruição em que o corpo inteiro se entrega
do Grupo Independente em suas apropriações das imagens da cultura
a uma total sensorialidade. Como observa Mário Pedrosa:
urbana. Bompuis ressalta nas ações dos cartazistas a postura crítica:
Hains e Villeglé olham o mundo como um quadro. A atitude
provocadora e intercambiável dos papéis e das regras do
jogo leva estes experts a designar como arte os objetos
que expõem à crítica do mundo. O cartaz dilacerado
testemunha uma consciência coletiva e política, simboliza
uma forma de protesto. O artista escolhe aquilo que, da
história do mundo, deve ser salvo (...) A apropriação supõe
XP SURFHVVR GH LGHQWLˉFD©¥R DVVLP DQXQFLDGR SHORV
dois artistas: “Nós não descobrimos os cartazes, fomos
descobertos por eles” (Villeglé). “Inventar é ir além de
minhas obras. Minhas obras existiam antes de mim, mas
ninguém as via porque cegavam os olhos” (Hains).124
2 DQWLVVXEMHWLYLVPR « IXQGDPHQWDO QHVVDV DˉUPD©·HV $
apropriação da cultura visual urbana feita pelos cartazistas não
112
pretende extrair do real elementos para a pintura, mas substituir o
pictural pelo real. Plasticamente os cartazes dilacerados têm a mesma
DSDU¬QFLD VRˉVWLFDGD GDV SLQWXUDV GR H[SUHVVLRQLVPR DEVWUDWR R TXH
em nada reduz a proposta desses artistas, potencializadores desde
seu título – action non-painting – de sua crítica ao sistema de arte e a
Com efeito, a pura e crua totalidade sensorial, tão
deliberadamente procurada e tão decisivamente
LPSRUWDQWH QD DUWH GH +«OLR 2LWLFLFD « DˉQDO PDUHMDGD
pela transcendência a outro ambiente. Neste, o artista,
máquina sensorial absoluta, baqueia vencido pelo homem,
convulsivamente preso nas paixões sujas do ego e na
trágica dialética do encontro social.126
Atribuindo ao inconformismo de Hélio Oiticica uma ancestralidade
anarquista, o crítico reconhece nos bólides, capas, estandartes, tendas
e parangolés a criação de um espaço novo, que combina um radical
UHˉQDPHQWR HVW«WLFR FRP DJXGD SHUFHS©¥R VRFLDO 1HVWH SHUFXUVR GH
Baudelaire a Hélio Oiticica, nos reportamos a obras de arte de diferentes
épocas que têm em comum profunda sintonia com as transformações
urbanas. A partir das observações registradas podemos concluir que
foi no embate com a cidade e suas instituições que o artista moderno
UHGHˉQLX VHX SDSHO KLVWµULFR DPSOLRX VXD FDSDFLGDGH GH HODERUD©¥R
teórica e se politizou. O alcance dessas transformações indica a
existência de vasto campo de pesquisa empírica sobre a arte moderna
a ser explorado pelos estudiosos.
algumas produções que elegem como referência para a arte em geral.
Concluo minhas observações sobre a conexão de pensamento,
Notas
imagem e cidade destacando no coração da arte pós-moderna, que
também é chamada de antiarte, a “arte ambiental” de Hélio Oiticica.
Como salientou Mário Pedrosa, no marco entre modernidade e pósmodernidade, iniciado com a pop art, o Brasil tem participação
fundamental. Reforçando o antissubjetivismo em voga na época, Hélio
Oiticica, cujo padrinho longínquo é o poeta de $V ˊRUHV GR PDO,125
entrega-se a um rito de iniciação na periferia da cidade do Rio de
Janeiro, no Morro da Mangueira. Foi com essa experiência que Oiticica
97
Benjamin, W. Passagens. Organização da edição Willi Bolle, tradução do alemão de
Irene Aron; tradução do francês de Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte/São
3DXOR(GLWRUD8)0*,PSUHQVD2ˉFLDOGR(VWDGRGH6¥R3DXORS
98
Livro póstumo de Baudelaire, publicado pela primeira vez na edição das obras
completas de 1869. A organização dos poemas foi feita por Theodore de Banville e
Charles Asselineau, executores testamentários do autor.
99
Editor literário de La Presse, periódico em que publicou os 20 primeiros poemas
em prosa de Baudelaire, em 1862.
100 Baudelaire, C. Poesia e prosa, volume único, edição organizada por Ivo Barroso. Rio
de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p.277.
113
101 Idem.
102 Baudelaire, 1995, p.333.
103 Ensaio publicado pela primeira vez no Figaro em 26 e 29/11 e 3/12 de 1863. A
modéstia de Constantin Guys era tão grande, que durante muito tempo ele se recusou
a ler o ensaio de Baudelaire, constrangido com os elogios que lhe são feitos.
104 Baudelaire, C. 1995, p.851.
105 Idem, ibidem, p.859.
106 Idem, ibidem, p.855.
117 Alloway, Lawrence. O desenvolvimento da arte pop britânica. In Lippard, Lucy. A
Arte Pop Lisboa: Editorial Verbo, 1973, p.35.
118 Apud Alloway, op. cit., p.41.
119 Alloway, L., op. cit., p.45.
120 Benjamin, 1995, p.148-154.
108 Idem, ibidem, p.864.
121 Scholem, Gershom. Walter Benjamin: a história de uma amizade. Tradução de
Geraldo Gerson de Souza, Natan Norbert Zins e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva,
1989, p.11.
109 Idem, ibidem, p.863.
122 Apud Schlolem, G. In Benjamin, 1989, p.13.
110 Benjamin, W. Paris do Segundo Império em Baudelaire. In: Walter Benjamin/
Sociologia. Tradução, introdução e organização de Flávio Kothe. São Paulo: Ática, 1991,
p.120.
123 Benjamin, 1995, p.157.
107 Idem, ibidem, p.855.
111 Benjamin, Walter. Rua de mão única/Walter Benjamin. Tradução de Rubens
Rodrigues Torres Filho e José Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1995, p.28.
112 Rochlitz, Rainer. O Desencantamento da arte: DˉORVRˉDGH:DOWHU%HQMDPLQ. Bauru:
Edusc, 2003, p.164.
114
de helicópteros. No ano seguinte o GI não se reuniu, mas em 1954-1955 retomou suas
atividades sob a orientação de John McHale e de Alloway para tratar do tema da cultura
XUEDQDGHPDVVDˉOPHVSXEOLFLGDGHP¼VLFDHWF
113 Benjamin faz uma importante distinção entre arte e documento nas “Treze
teses contra esnobes” de Rua de mão única (1995, p.32). Inserida no conjunto da obra,
essa passagem permite ao leitor imaginar um cruzamento de fronteiras, isto é, a
transformação de documentos da cultura em obras de arte, assim como das obras de
arte em documentos. A “linguagem de prontidão” que ele valoriza e à qual se refere no
texto de abertura do livro aponta para essa possibilidade.
114 Comentando o uso da informação e da descrição nos romances, antes de as
H[HPSOLˉFDUDWUDY«VGDFLWD©¥RGHXPWUHFKRGRURPDQFHCrime e castigo, de Dostoievski,
Breton registrou no primeiro manifesto do Surrealismo: “Nada se compara ao seu vazio;
são superposições de imagens de catálogo, o autor as toma cada vez mais sem cerimônia,
aproveita para me empurrar seus cartões-postais, procura fazer-me concordar com seus
lugares-comuns” (Breton, A. Manifestos do Surrealismo. São Paulo: Brasiliense, 1985,
p.37).
115
Atualmente o texto citado de Breton é editado pela Nau Editora. (NE)
116 De acordo com o crítico de arte Lawrence Alloway, que participou ativamente da
construção da pop art inglesa, o GI nasceu dentro do Instituto de Arte Contemporânea
(ICA é a sigla em inglês), de Londres, com o objetivo de debater novas ideias e apresentar
novos conferencistas para um público mais amplo. O ICA passou a ser, no início dos anos
50, ponto de encontro de intelectuais e jovens artistas que ainda não tinham espaço
no circuito de arte existente na época. O GI assumiu-se formalmente como grupo pela
primeira vez no inverno de 1952-1953, em encontros, sob a orientação de Peter Reyner,
que tinham como tema programático as técnicas. Alloway (1973, p.34) revelou que foi
convidado para falar num encontro, ao qual ele não compareceu, dedicado ao desenho
124 Bompuis, C. In Poiesis n. 11, Niterói: Programa de Pós-Graduação em Ciência da
Arte, IACS/UFF, 2008, p.179.
125 Pedrosa, Mário. Arte ambiental, arte pós-moderna, Hélio Oiticica. In Ferreira,
Glória (org.). Crítica de arte no Brasil: temáticas contemporâneas. Rio de Janeiro: Funarte,
2006, p.144.
126 Idem, ibidem, p.145.
Sobre a autora
0DUWKD'Ƞ$QJHORȝ0HVWUHHP)LORVRˉDSHOD38&5LRHGRXWRUDHPˉORVRˉDSHOD
8)5-«SURIHVVRUDGHˉORVRˉDGD)DFXOGDGHGH(GXFD©¥RGD8))HGR3URJUDPD
de Pós-Graduação em Ciência da Arte da UFF, onde coordena o grupo de pesquisa
Teoria estética, arte e política. Autora do livro Arte, política e educação em Walter
Benjamin (Loyola, 2006); organizou, com Luiz Sérgio de Oliveira, a coletânea Walter
Benjamin: arte e experiência. (Nau/ EdUFF, 2009).
115
ARTE E TECNOLOGIA:
A OBRA DE KRZYSZTOF WODICZKO
E OS DISCURSOS DA DEMOCRACIA
Luiz Sérgio de Oliveira
Universidade Federal Fluminense
‡”…‡‹”‘—†‘˜ƒ‹‡š’Ž‘†‹”Ǥ—‡‡•–‹˜‡”
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‘‰±”‹‘‰ƒœ‡”Žƒǡƒ†‹†‘†ƒ—œ‡”‡ŽŠƒ127
116
No dia em que Niterói, ainda em estado de perplexidade, tentava
controlar os efeitos das tragédias das chuvas que fecharam, com atraso,
o verão de 2010, e ainda contava seus mortos envoltos em mar de
lama, atravessava eu a Zona Sul da cidade em um coletivo quando
uma música, que me soava algo estranha, me despertou de minhas
abstrações. Aquelas sonoridades multiplicavam sua redundância a
partir de um dispositivo eletrônico, desses que fazem quase tudo e
ainda funcionam como telefone móvel. A empunhar o dispositivo, um
jovem em traje esportivo todo em preto, com exceção do tênis de grife,
prateado. Cabelo curto, brinco na orelha esquerda e namorada – que
eu não podia ver, mas ouvia – a seu lado direito. Uma cena certamente
banal caso aquela música que me soava algo estranha não me levasse
D RXWUDV UHˊH[·HV 8PD P¼VLFD TXH SRU VXD SUHFDULHGDGH PHOµGLFD
VHULDFDSD]GHSURYRFDUDUUHSLRVDW«HPRXYLGRVSRXFRUHˉQDGRVFRPR
os meus, e que simplesmente repetia, sem qualquer cerimônia – assim
como o jovem de camiseta e calça de moletom pretas que a ouvia em
117
volume muito além do individualizado, sem se importar com o entorno
(VVDV UHˊH[·HV DFHUFD GDV LQMXVWL©DV TXH FDUDFWHUL]DP D
ȝȢYDLYDLYDLYDLYDLYDLYDLYDLȣHTXDQGRID]LDVXSRUTXHˉFDULDQHVVH
sociedade brasileira, das tensões cotidianas que nos atormentam e
“vai, vai, vai”, mostrava o complemento: “vai pra puta que pariu”.
das muitas desgraças que nos deixam perplexos e impotentes com
Aquela cena, em que o jovem aparentemente não se abalava
com o incômodo provocado nas pessoas a sua volta, parecia explicitar
a perspectiva de confronto implícito entre aqueles que, tendo algo,
querem preservá-lo, e aqueles que, tendo pouco, querem mais e,
eventualmente, acabam por perder o pouco que têm. RevelavaVH VXˉFLHQWHPHQWH H[SO¯FLWR R IDWR GH TXH R HTXLO¯EULR SUHF£ULR TXH
permeia as relações tensas em nossa sociedade, com suas injustiças
históricas, tende a explodir – sem aviso prévio – em cobranças
violentas, clamores de ressarcimento e de correção. Algo que parece
gritar a plenos pulmões que, mais cedo ou mais tarde, “o Terceiro Mundo
vai explodir e quem estiver de sapato não vai sobrar”, menção à ideia
de que apenas os descamisados, os desalojados, os despossuídos, os
118
“destudo” serão poupados. A atitude do jovem de preto, com a namorada
ao lado direito, parecia sugerir iminente confronto entre mundos que
coabitam precariamente os espaços sociais brasileiros.
Enquanto o ônibus cruzava as ruas de Icaraí, o jovem difundia
compulsoriamente sua música “comunitária”, e as pessoas em torno mal
conseguiam disfarçar seu desconforto, meus pensamentos vagavam
sobre essas questões sem imaginar que na tarde daquele dia teríamos
uma pequena amostra (e nem por isso menos aterrorizante) do que
SRGHULD VHU D ȢH[SORV¥R GDV FRPXQLGDGHVȣ LGHQWLˉFDGDV SRU 0LZRQ
Kwon, como o Terceiro Mundo no Primeiro Mundo,128 ou que, para alguns
de nós, seria simplesmente a presença do Terceiro Mundo no Terceiro
Mundo. Naquela tarde, uma onda de boatos asseverava a existência de
arrastões, saques e tiroteios, levando pânico à cidade, encurralando a
classe média diante do encontro indesejável e não domesticado com o
outro, esse outro que se quer mantido a distância.
suas marcas trágicas, levaram-me a outras, sobre as desigualdades
de desenvolvimento tecnológico em escala planetária, trazendo à
lembrança o dito em um simpósio no Rio de Janeiro, ainda nos últimos
anos do milênio passado, quando um dos participantes observava
que a Ilha de Manhattan, o coração da cidade de Nova York, tinha
linhas telefônicas instaladas em número superior ao de toda África
subsaariana. Portanto, parte de uma cidade norte-americana tinha
potencial tecnológico de comunicações superior à quase totalidade de
um continente: a África negra. Não tivesse a informação sido trazida
por autoridade ligada à Unesco seguramente ela não me teria causado
tamanho impacto, como o fez e ainda o faz, passados mais de 10 anos.
Isso em função da fantástica assimetria entre povos que a informação
carreia.
(VVDVUHˊH[·HVVXVFLWDGDVSRUGLVSDULGDGHVFRPDVTXDLVHVWDPRV
fadados a conviver em nossos cotidianos, se apresentam como
subsidiárias para o pensamento em torno da interação entre arte e
tecnologia na contemporaneidade. Neste contexto nos perguntamos se
HVWDDSUR[LPD©¥RȝDUWHHWHFQRORJLDȝGHYHVLPSOHVPHQWHFRQˉJXUDUVH
como o alargamento do campo da arte diante das novas possibilidades
trazidas pelas inovações tecnológicas, ampliando o processo de
experimentação que tão bem caracterizou parte da produção de arte
do século XX, ou se, ao contrário, devemos considerar o diálogo entre
DUWHHWHFQRORJLDDWUDY«VGDLQWHQVLˉFD©¥RGHVHXVDVSHFWRVSRO¯WLFRV
em consonância com as perspectivas de outra parcela da produção
modernista, empenhada em conectar arte, cotidiano e sociedade.
Decerto não desconhecemos o fato de que as complexidades
que se abrem a partir das articulações entre arte e tecnologia não
FRPSRUWDP VLPSOLˉFD©·HV GR WLSR « LVWR RX « DTXLOR 1R HQWDQWR
pretendemos correr alguns riscos ao privilegiar uma abordagem dessas
119
articulações que, em consonância com o momento político da arte
à disseminação do uso dos cavaletes portáteis, tornaram a tarefa dos
contemporânea, aponte para vislumbres mais democráticos, que aponte
pintores impressionistas muito menos custosa em suas peregrinações
para as reais possibilidades de reconexão da arte com o mundo, com o
em busca do frescor da pintura ao ar livre.
mundo-mundo, distante da redoma asséptica do mundo da arte. Nesse
sentido, não nos interessa pensar o acercamento da arte com as novas
tecnologias – biológicas, médicas, informacionais, comunicacionais,
computacionais, telemáticas, et coetera – como mera aliança do ateliê
do artista com o laboratório tecnológico do cientista, espaços míticos
dedicados à experimentação, eventualmente percebidos como lugares
de isolamento e de exclusão.
120
'H TXDOTXHU PDQHLUD SURFXUDPRV DUWLFXODU QRVVDV UHˊH[·HV
em concordância com a perspectiva apresentada pelo artista
polonês Krzysztof Wodiczco, professor do Massachusetts Institute
RI 7HFKQRORJ\ 0,7 QRV (VWDGRV 8QLGRV DR DˉUPDU Q¥R VHU XP
WHFQRHQWXVLDVWDQHPWDPSRXFRXPWHFQRFDWDVWURˉVWD131 Entendemos
que, independentemente do grau ou tipo de tecnologia envolvido na
produção de arte, o que merece ser salientado é o comprometimento
Antes de qualquer elaboração é necessário que reconheçamos ter
com práticas e processos democráticos que promovam melhor interação
a arte, de uma maneira ou de outra, sempre estado dependente, em
entre artista, arte e sociedade, em situações nas quais os artistas tenham
graus variáveis, das inovações tecnológicas, se apropriando dos avanços
“a oportunidade de continuar a tradição das vanguardas [europeias do
das tecnologias para instaurar suas próprias novidades, mesmo em
início do século XX], que sempre se comprometeram com as questões
épocas em que o novo não aparecia ainda como o valor supremo da
públicas”.132 Conforme apontado por Adrian Piper,
arte. A disseminação da técnica da pintura a óleo, por exemplo, a partir
técnica a óleo logo seduziriam Leonardo da Vinci, um dos primeiros
o formalismo da arte euroétnica tem sido associado
tradicionalmente ao seu conteúdo social, visto que o
GHVDˉR GD DUWH HXURSHLD WHP VLGR XVDU DV IHUUDPHQWDV
formais de maneiras expressivas e inovadoras que possam
GHVSHUWDU R REVHUYDGRU SDUD D VLJQLˉF¤QFLD GR WHPD
representado (...) Assim, o impulso para inovação está
embutido na função social da arte euroétnica e antecede
sua emergência como um artigo direcionado para o
mercado (...) Dessa maneira, inovações de forma não
determinam o sacrifício do conteúdo social em Guernica
de Picasso mais do que em Dejeuner sur l’herbe de Manet,
a adotá-la na Itália: “a pintura a óleo, de secagem mais lenta [do que
ou em Desastres de la guerra de Goya.133
dos experimentos dos holandeses Jan van Eyck e Robert Campin entre
1420 e 1430, acabou por alijar por completo o uso, antes hegemônico
na Europa, da técnica da têmpera a ovo. Os pintores do início do século
XV foram atraídos pelas qualidades dos óleos (de linhaça, de noz ou
de papoula): “brilhantes, viscosos, de secagem lenta e altamente
UHIUDW£ULRV $V FDPDGDV GH WLQWD SRGHP VHU JURVVDV RX ˉQDV RSDFDV
ou transparentes, e as pinceladas marcadas e dramáticas ou fundidas
imperceptivelmente até que desapareçam”.129 As propriedades da nova
a têmpera] atraía os perfeccionistas: ela realçava a luminosidade da
pintura e permitia representação mais detalhada e acurada”.130
1RHQWDQWRDWUDGL©¥RTXHQRVFKHJRXDSDUWLUGRˉQDOGDG«FDGD
GH TXDQGR VH LQWHQVLˉFRX D SUHVHQ©D H D LQˊX¬QFLD QRUWH
Também as inovações tecnológicas que levaram ao processo de
americanas no cenário artístico internacional, distanciou-se dessa
industrialização da tinta a óleo ainda na primeira metade do século
perspectiva de “combinar conteúdo social com forma inovadora”.
XIX, que a partir de então passava a ser oferecida em tubos de metal
Segundo Adrian Piper, “o equivalente norte-americano ao modernismo
em substituição às antigas bolsas feitas com bexiga de porco, aliadas
europeu, o formalismo greenberguiano, constitui um afastamento
121
radical. De sua posição como peça-chave de uma obra, o conteúdo
passado. E essas ideologias – naturalizadas – até muito recentemente
social – e em particular o tema explicitamente político – foi rebaixado
vinham orientando as pesquisas artísticas, quer fossem aquelas que
pelo formalismo greenberguiano à condição de irrelevância”.134
se valem das novas tecnologias ou aquelas que, afeitas aos métodos
Seguramente não devemos confundir inovações formais no
campo da pintura modernista com inovações tecnológicas aplicadas no
122
mais tradicionais de produção de arte, procuram novas formas que lhes
valessem sua própria reinvenção.
campo ampliado da produção da arte. Não se pode desconhecer, no
Ao mencionarmos o “momento político da arte contemporânea”
entanto, que tanto as inovações formais quanto as tecnológicas são
ID]¯DPRVUHIHU¬QFLD¢ȢYLUDGDSDUDRVRFLDOȣGHˉQLGRSRU&ODLUH%LVKRS
informadas e estão fundadas em ideologias que parecem parasitar a
FRPRȢSDQRUDPDGLYHUVLˉFDGRGHREUDVVRFLDOPHQWHFRODERUDWLYDVTXH
criação artística e o pensamento crítico, acabando por criar subtextos
forma a vanguarda que temos hoje: artistas que usam situações sociais
que norteiam práticas e modos de acercamento e produção da arte.
para produzir projetos desmaterializados, antimercado e politicamente
1HVVHVHQWLGRFRQVWUXLXVHXPDˉF©¥RTXHDSDUWDDUWHHVRFLHGDGHDUWH
comprometidos, que dão continuidade ao chamamento modernista pelo
e política, para a qual seguramente contribuíram as ações da direita
borrar entre arte e vida”.137 Esta virada para o social é, seguramente, uma
norte-americana ao longo dos anos 50 em resposta à Guerra Fria, que
das propriedades mais consistentes da produção de arte contemporânea
no plano interno inventou o maccarthismo e no plano externo projetou
recente, na qual as articulações da arte parecem estabelecer novos
DˉF©¥RGHXPDVRFLHGDGHQRUWHDPHULFDQDOLYUHHGHPRFU£WLFDSDUDR
eixos de interesse e conexão entre arte e sociedade, ao mesmo tempo
que contribuiu, em muito, o mito da liberdade do artista, simbolizado
em que subsidiariamente parecem promover a reintegração do artista
pela produção dos expressionistas abstratos, com destaque para
em si mesmo, com o idealismo radical e romântico que o caracteriza
Jackson Pollock.135 Com isso, buscavam marcar seu distanciamento da
e norteia. Essa realidade tem suscitado fortes reações da crítica
arte produzida na sociedade soviética, francamente dominada pelas
mais conservadora, tanto no Brasil quanto em diferentes partes do
forças do Estado socialista. Levando ao extremo essa perspectiva de
mundo, que resiste em aceitar a possibilidade de que a arte se possa
impedir que a arte fosse contaminada pelas mazelas do cotidiano, o
desvencilhar de questões que a aprisionavam em círculos fechados de
pintor norte-americano Ad Reinhardt diria, no início dos anos 60, que
um processo de exclusão que acabava por excluir – primeiro e acima
“uma coisa que se pode dizer sobre arte e vida é que arte é arte e vida
de tudo – o próprio artista, a quem são destinados pequenos mimos
é vida, que arte não é vida e que vida não é arte”.
FRPSHQVDWµULRV3DUDHVVDFU¯WLFDFRQVHUYDGRUDDDˉUPD©¥RGH*XVWDYH
136
Fato é que essas ideologias parasitárias do campo das artes,
que, em nome da experimentação e da instauração do novo, estavam
GLVSRVWDVDVDFULˉFDUXPDLQVHU©¥RPDLVDJXGDGDDUWHQDVRFLHGDGH
que pareciam não se importar com a apartação entre arte e cotidiano,
Courbet, ainda em 1850, de que “minha solidariedade é com o povo, a
quem devo falar diretamente, e com quem devo aprender, dele provendo
meu sustento”,138 soa inapropriada, simplória e empobrecedora dos
processos da arte.
foram sendo naturalizadas sob a rubrica das vanguardas, disseminando
No entanto, em passado recente (2003) que pode ser compreendido
e perpetuando a percepção de que a arte está e permanecerá imersa
como o “passado contemporâneo”, o polonês Krzysztof Wodiczco sugere,
em um universo a ser usufruído por poucos, em oposição frontal
de forma conceitualmente bem mais elaborada, que “os artistas estão
aos anseios e utopias das vanguardas históricas do início do século
123
em uma posição especial para contribuir com a investigação de novas
oportunidade única de criar artefatos práticos que ajudem
formas de democracia” e que, para tanto,
os outros neste mundo migratório e transitório.142
precisam entender, como a maioria dos ativistas políticos
e sociais entende, que o espaço público é minado e
monopolizado pelas vozes daqueles que nasceram para
falar e nesse sentido foram preparados. Primeiro, isto se
dá à custa daqueles que não podem falar porque não têm
a segurança de que serão ouvidos. Historicamente, têm
ERDVUD]·HVSDUDQ¥RHVWDUFRQˉDQWHV6HJXQGRHOHVQ¥R
possuem linguagem articulada. Terceiro, frequentemente
estão trancados em silêncio pós-traumático.139
+LURVKLPD3URMHFWLRQHiroshima, Japão (1999)
Em 1999, Krzysztof Wodiczko recebeu o Hiroshima Art Prize, conferido
àqueles artistas cujas obras contribuem para a paz mundial. Uma das
condições do prêmio era a organização de mostra retrospectiva das
obras do artista, o que lhe deu motivação extra para realizar uma
projeção na cidade de Hiroshima. O projeto foi desenvolvido como
124
A obra de Wodiczko tem-se caracterizado por essa busca de gerar
parte do aniversário do bombardeio da cidade, que na Segunda Guerra
condições para aqueles que, desempoderados, têm tradicionalmente
Mundial sofreu o primeiro ataque nuclear da história. Por ordem do
sido excluídos dos discursos públicos. O artista acredita que esses
presidente norte-americano Harry Truman, na segunda-feira 6 de
excluídos “são os oradores mais importantes em uma democracia. Eles
agosto de 1945, a bomba atômica, batizada com intensa carga de
devem falar porque têm experimentado objetivamente os fracassos
deboche de Little Boy, foi lançada pela Força Aérea norte-americana
e a indiferença da democracia”.
Dessa maneira, o artista, que se
sobre a cidade de Hiroshima, deixando mais de 250 mil mortos, vítimas
tornou mundialmente conhecido por suas projeções em escala pública,
tanto da explosão da bomba quanto das consequências à exposição
tem desenvolvido projetos de arte em diferentes partes do planeta
à radiação. Três dias depois, uma segunda bomba foi lançada sobre a
– Saint Louis, Boston, Tijuana, Hiroshima, entre outras cidades – em
cidade de Nagasaki, com efeitos igualmente devastadores.
140
que procura articular arte e tecnologia na criação de mecanismos de
empoderamento para aqueles que não têm sido ouvidos, mesmo que
O projeção de Wodiczko para Hiroshima teve o Memorial da
tenham muito a contar, a testemunhar, a partir de suas histórias de vida;
Paz como suporte. Também conhecido como A-Bomb Dome (cúpula
projetos de arte que trazem “esses oradores não ouvidos, não visíveis e
da bomba atômica), o memorial localiza-se à beira do Rio Ota. Nos
não convidados para o espaço público”.141
momentos subsequentes ao bombardeio, o rio que corta a cidade
chegou a ser escolhido pela população ferida como refúgio e alívio
Em seus projetos de arte, o artista desenvolve dispositivos
para suas queimaduras, o que acabou por lhes acelerar a morte.
protéticos para esses indivíduos silenciados, de maneira que possam
“mais efetivamente quebrar o silêncio”:
O artista polonês também teve experiência extremamente
traumática na Segunda Guerra Mundial. Tendo nascido em Varsóvia
Eu não proponho como tudo isso deveria ser solucionado,
apenas sugiro que o artista, situado entre a tecnologia,
os discursos da democracia e as vidas das pessoas, tem a
HP ˉOKR GH P¥H MXGLD FXMD IDP¯OLD IRL WRWDOPHQWH GL]LPDGD
no levante do gueto, Wodiczko lembra que sua “infância foi passada
inteiramente nas ruínas da guerra [ruínas] físicas, políticas, talvez morais
H GHˉQLWLYDPHQWH SVLFROµJLFDVȣ143 Para Hiroshima, o artista relembra,
125
desenvolveu projeto em torno da ideia de reatualizar o A-Bomb Dome,
tão logo começavam os relatos, tamanha a dor provocada pelas
XPD GDV SRXFDV HVWUXWXUDV HGLˉFDGDV TXH UHVLVWLUDP DR ERPEDUGHLR
lembranças dos traumas de mais de 50 anos.
junto ao epicentro da explosão:
[A ideia era] reanimar [o monumento] com as vozes e
gestos dos habitantes de várias gerações da Hiroshima
atual, começando com aqueles que sobreviveram ao
ERPEDUGHLR TXH R SUHVHQFLDUDP VHXV ˉOKRV TXH WDOYH]
DLQGD VH OHPEUHP VHXV QHWRV H ELVQHWRV HQˉP WRGDV
essas gerações de alguma maneira conectadas através
dessa projeção não estão necessariamente de acordo com
os termos pelos quais o bombardeio é importante nem
FRP D PDQHLUD FRPR R VLJQLˉFDGR GDTXHOH ERPEDUGHLR
se conecta com suas experiências atuais. A precipitação
radioativa da bomba é física e psicológica.144
126
Certamente, porém, essas não foram as únicas situações delicadas
enfrentadas pelo artista polonês em seu projeto em Hiroshima, assim
como em outros que vem realizando em articulação com diferentes
comunidades. Algumas dessas situações, que se apresentam sob a forma
de riscos, exigem manejo e atenção especiais por parte dos artistas.
A historiadora da arte norte-americana Patricia C. Phillips lembra que
“os artistas são criticados com frequência por penetrar a comunidade
e, inconsciente ou deliberadamente, usar um grupo de pessoas para
executar um projeto”;146 a isso podemos acrescentar a crítica de Grant
Kester, historiador da arte e professor da Universidade da Califórnia
em San Diego, ao questionar “a retórica dos artistas comunitários que
Na elaboração de Hiroshima Projection (Fig. 1), Krzysztof
se posicionam como veículo para uma expressividade não mediada da
:RGLF]NR HQIUHQWRX GLˉFXOGDGH FRPXP D WRGRV RV DUWLVWDV TXH QR
parte de uma comunidade”, o que pode acarretar “abusiva apropriação
desenvolvimento de suas ações / projetos / intervenções, necessitam
da comunidade para a consolidação e a promoção da agenda pessoal
relacionar-se com comunidades que desconhecem: como penetrar
do artista”.147
esses universos que lhes são estranhos e ao mesmo tempo granjear a
FRQˉDQ©DGHVVHȢRXWURȣFRPRTXDOYDLHVWDEHOHFHUUHOD©·HVHPWRUQR
do projeto de arte, sem o que os projetos de arte desse tipo em geral
VH WRUQDP DEVROXWDPHQWH LQYL£YHLV 1R FDVR HVSHF¯ˉFR GH +LURVKLPD
Wodiczko precisou enfrentar ainda outra relutância da “comunidade”
GRV VREUHYLYHQWHV R TXH VH FRQˉJXURX FRPR FRPSOLFDGRU HP QDGD
RUGLQ£ULR ȢIRL XP GHVDˉR VXSHUDU XP VLO¬QFLR LPSRVWR SHOD SUµSULD
comunidade”.145
Para romper esse silêncio autoimposto pelos remanescentes da
tragédia de Hiroshima e por seus descendentes, Wodiczko procedeu a
cautelosa aproximação por intermédio de associações de sobreviventes,
GHPDQHLUDDLQVWDXUDUUHOD©¥RGHFRQˉDQ©DTXHRVHVWLPXODVVHDUHODWDU
suas histórias de vida. Também nesse ponto de desenvolvimento de
Hiroshima Projection, Krzysztof Wodiczko teve que superar as recorrentes
LQWHUUXS©·HVFDXVDGDVSHODVO£JULPDVGRVSDUWLFLSDQWHVTXHDˊRUDYDP
Mesmo quando consegue superar essa noção de exploração que
SDUHFHSHUPHDUHVVDVUHOD©·HVRXWUDGLˉFXOGDGHVHLPS·HDRDUWLVWD
DTXLORTXHRFU¯WLFRLQJO¬V6WHSKHQ:ULJKWHQWUHRXWURVLGHQWLˉFDFRPR
a pretensão messiânica, explícita ou dissimulada, que estaria presente
em parte dos projetos de arte desenvolvidos com as comunidades,
lembrando que essas práticas precisam estar fundadas no “interesse
mútuo, estabelecido em ganhos recíprocos”.148
Além desses riscos, partilhados por todos os artistas que se
aproximam de comunidades com a intenção de arte, Krzysztof Wodiczko
acaba exposto ainda a outras formas de risco, uma vez que seus projetos
envolvem memória e traumas, como no caso de Hiroshima Projection e
Tijuana Projection, por implicar comunidades violentamente marcadas
pela dor, tanto no plano individual como no coletivo. E o artista explica
127
como procura se acautelar para que não sofra, ele mesmo, um processo
de transferência e absorção dessa dor à qual acaba exposto:
Eu preciso fazer esboços; eu preciso da certeza de que
o corpo do orador caberá corretamente na estrutura
do monumento [sobre o qual a imagem do orador será
SURMHWDGD@ GH PDQHLUD TXH HOHV ˉTXHP LQWHJUDGRV 3RU
outro lado, com o tempo me dei conta de que deveria
KDYHU RXWUD UD]¥R SDUD TXH HX ˉFDVVH W¥R RFXSDGR FRP
esses desenhos; na verdade, preciso manter certa distância
do que as pessoas falam. De alguma maneira, o processo
de fazer esboços serve para manter minha própria
sanidade, uma vez que não consigo me aliviar do que
ouço. Para qualquer um que ocupe minha posição, esse
processo disparará suas próprias experiências e, talvez,
traumas. Assim, eu preciso de algo como um anteparo, uma
proteção. Para eles [os participantes], esse anteparo é a
câmera; para mim, talvez seja o caderno de esboços.149
128
7LMXDQD3URMHFWLRQ7LMXDQD0«[LFR
O projeto Tijuana Projection (Fig. 2), desenvolvido por Krzysztof Wodiczko
no contexto da mostra inSITE2000 e realizado na cidade de Tijuana,
México, em fevereiro de 2001, teve como objetivo gerar condições
para, se não a superação, pelo menos o transbordamento da dor
enraizada no silêncio das vítimas, que, desestimuladas pela indiferença
e insensibilidade da sociedade, recolhem os traumas das violências
sofridas aos escaninhos de suas memórias. Mulheres que sofreram
incesto, estupro, abusos domésticos; vítimas de constrangimentos
nos ambientes de trabalho e em outras esferas de poder – situações
tão presentes no cotidiano das periferias do mundo: Tijuana, Cidade
do México, Rio de Janeiro, São Paulo, Fortaleza, Joanesburgo, Manilha,
Bangkok, Nova Deli, Luanda...
Mulheres que, em fenômeno comum à face contemporânea das
economias das corporações transnacionais globalizadas, descentradas,
SµVPRGHUQDVY¬PVXEVWLWXLQGRDP¥RGHREUDPDVFXOLQDQDVˉOHLUDV
das montadoras que, como parasitas, se instalam mundo afora sempre
no encalço de força de trabalho abundante e barata – só na cidade
de Tijuana, localizada na fronteira do México com os Estados Unidos,
que concentra o maior número de montadoras para exportação e é o
maior centro de produção de televisores do mundo, estavam instaladas
exatamente 820 maquiladoras em fevereiro de 2001.
Para Wodiczko, a ideia de fronteira não se limita aos interesses
econômicos de exploração da mão de obra mexicana a poucos
quilômetros do maior mercado consumidor do mundo. Segundo o
artista polonês, radicado entre Nova York e Boston, o nosso cotidiano é
demarcado por diferentes barreiras e fronteiras, tanto no plano social
como no político e existencial:
(…) aquelas que se criam ao delimitarem-se as diferenças
de classe, as más relações e as “margens” que se enfrentam
de forma existencial, internamente, além das que existem
na mesma cidade. As realidades distintas em que vivem
extratos sociais como o da classe média e média alta em
comparação com a classe baixa são dois mundos dentro
de uma mesma entidade em que se criam barreiras.150
No desenvolvimento de Tijuana Projection, Wodiczko procedeu
a uma série de entrevistas, gravadas, regravadas, apresentadas às
próprias entrevistadas que, nesse processo dialético de entranhamento
HHFORV¥RȢIRUDPFDSD]HVGHRSHUDUFRPJUDQGHFRQˉDQ©DHPPHLRDRV
espectadores durante a projeção, assim como enfrentando equipes de
cinema, rádio e televisão, que transmitiam a projeção para a cidade”.151
Visível de diferentes pontos da cidade de Tijuana nas noites
chuvosas de 23 e 24 de fevereiro de 2001, a obra de Wodiczko empregou
tecnologia avançada desenvolvida pelo artista em suas pesquisas no
129
0,7FRPRRUHFXUVRGHYLGHRSURMHWRUHVGHDOWDGHˉQL©¥RHGHJUDQGH
marginalizadas, oprimidas, com pouca ou nenhuma representação nas
potência, controlados por sistemas que permitiam a alternância entre
esferas de poder, tenham acesso a meios que permitam a difusão de
projeção ao vivo, realizada pela primeira vez pelo artista, e depoimentos
suas preocupações, anseios e infortúnios, característicos das situações
pré-gravados. Durante três horas em cada uma das duas noites, mais
de desassistência na periferia do mundo.
de 600 pessoas se aglomeraram sob guarda-chuvas na esplanada de
entrada do Centro Cultural Tijuana (Cecut) para ver La Bola transmutada
em cabeça falante.
Ou tal como expressou Krzysztof Wodiczko, cuja infância foi
violentamente marcada pelas escabrosidades militares, políticas,
sociais e psicológicas que ultrajaram a Europa pelo longo período entre
Nesse cenário da cidade de Tijuana, centrado na forma esférica do
D6HJXQGD*XHUUD0XQGLDOHRˉPGD*XHUUD)ULDDTXHODTXHPHVPR
Cecut, Wodiczko cedeu vez e voz para seis mulheres mexicanas, vítimas
Q¥RVHFRQFUHWL]DQGRFRPRFRQˊLWRDEHUWRHGLUHWRGHL[RXSURIXQGDV
de vários tipos de violência nessa região de fronteira que, distantes
cicatrizes em quem viveu cotidianamente sob seu terror:
GD ˉF©¥R WURX[HUDP SDUD H[SRVL©¥R S¼EOLFD R WHVWHPXQKR GH VXDV
Existe uma sociedade de pessoas maltratadas que precisa
ser assistida em vez de negligenciada. E eu acredito que
posso ser um agente que contribua para esse processo de
mudança. Houve um tempo em que as pessoas, por ameaça
ou medo das consequências políticas, permaneciam
em silêncio. Agora elas podem falar sem medo. Elas
podem falar em favor de vítimas potenciais, assim como
aos perpetradores da violência. O silêncio acabou. Elas
encontraram o meio de falar tanto aos vencedores quanto
histórias de vida, de traumas extraídos de seus percursos privados.
De acordo com Wodiczko, permanece a expectativa de que, através do
impacto dessas revelações públicas dentro da própria comunidade, do
rompimento do silêncio e da exposição da dor, a lógica de impunidade
130
desse círculo vicioso seja desarticulada, para que os familiares dessas
mulheres não passem por situações semelhantes: “quizá sea una visión
un tanto utópica pero mi intención es que los hijos de estas mujeres no
repitan esas historias y que a través de lo que van a ver les motive a no
às vítimas.154
dejar que eso suceda”.152
Com Tijuana Projection, mais uma vez o artista polonês desenvolvia
VXDSURGX©¥RGHDUWHHPˉUPHIULF©¥RFRPTXHVW·HVSRO¯WLFDVDVTXDLV
estariam, segundo alguns críticos, distantes do plano e das preocupações
estéticas da arte, tendo como outro exemplo o projeto Homeless
Projection (1986), elaborado em torno do processo de mobilização
urbana da cidade de Nova York.153
O processo de articulação e conexão comunitárias presente
na obra de Wodiczko é consistente com práticas contemporâneas
de arte na esfera pública que se desenvolvem em estreita interação
com os contextos e suas comunidades, cedendo o espaço central,
tradicionalmente
reservado
ao
artista,
para
que
populações
Notas
5RJ«ULR 6JDQ]HUOD ˉOPRX O Bandido da Luz Vermelha em 1968, quando tinha
DSHQDV DQRV GH LGDGH 2 ˉOPH FRP PLQXWRV GH GXUD©¥R SDUHFLD HQFRQWUDU
“o equilíbrio entre o popular e o experimental”, tornando-se um sucesso de público
e crítica no Brasil”. Outras informações e análise podem ser encontradas em (http://
lucidez.blog.com /2010/03/03/cine-lucidez-o-bandido-da-luz-vermelha/).
128 A respeito, ver Kwon, Miwon. 2QH3ODFH$IWHU$QRWKHU6LWH6SHFLˉF$UWDQG/RFDWLRQDO
Identity. Cambridge: The MIT Press, 2002.
129 Lamb, Trevor e Bourriau, Janine (eds.). Colour: Art & Science. Nova York: Cambridge
University Press, 1999 [1995], p.14-15.
130 Sassoon, Donald. Mona Lisa: The History of the World´s Most Famous Painting.
Londres: Harper Collins Publishers, 2001, p.36.
131
131 Phillips, Patricia C. Creating Democracy: A Dialogue with Krzysztof Wodiczko. Art
Journal (College Art Association), v. 62, n. 4, inverno de 2003, p.46.
132 Idem, ibidem, p.33.
Homeless Projection and the Site of Urban ‘Revitalization’. In Evictions: Art and Spatial
Politics. Cambridge: The MIT Press, 1996, p.3-48.
154 Phillips, 2003, p.37.
133 Piper, Adrian. A Lógica do Modernismo. Poiésis (Revista do Programa de PósGraduação em Ciência da Arte, UFF), n. 11, novembro de 2008, p.170.
134 Idem, ibidem, p.172-173.
135 A respeito ver o já citado artigo de Adrian Piper, assim como o trabalho de Serge
Guilbaut, How New York Stole the Idea of Modern Art: Abstract Expressionism, Freedom, and
the Cold War. Chicago: The University of Chicago Press, 1985.
136 Rose, Barbara (ed.). Art as Art: Selected Writings of Ad Reinhardt. Berkeley: University
of California Press, 1991, p.54.
137 Bishop, Claire. The Social Turn: Collaboration and Its Discontents. Artforum, v. 44, n.
6, 2006, p.179.
Sobre o autor
Luiz Sérgio de Oliveira – Artista, doutor em Artes Visuais (História e Teoria da
Arte) pela UFRJ, mestre em Arte pela Universidade de Nova York, EUA, professorassociado do Departamento de Arte e coordenador do Programa de Pós-Graduação
em Ciência da Arte da UFF.
138 Trecho de carta de Gustave Courbet para Francis Wey datada de 1850, publicado
por Clark, T.J. On the Social History of Art. In Frascina, Francis e Harrison, Charles (eds.).
Modern Art and Modernism: a Critical Anthology. Nova York: Harper and Row, 1987, p.249.
139 Phillips, 2003, p.33 e 36.
140 Idem, ibidem, p.36.
132
141 Idem, ibidem, p.36.
142 Idem, ibidem, p.38.
143 O depoimento do artista aparece no episódio Power da série Art:21 – Art in the
Twenty-First Century – Session Three, produção da PBS, Estados Unidos, 2005.
144 PBS, Art:21, 2005.
145 Phillips, 2003, p.38.
146 Idem, ibidem, p.40.
147 Apud Kwon, op. cit., p.139.
148 Wright, Stephen. The Delicate Essence of Artistic Collaboration. Third Text, v. 18, n.
6, 2004, p.535.
149 PBS, Art:21, 2005.
150 Paredes, Karina. Bola de imagénes. Frontera, Tijuana, 22-28 fev. 2001. La Brújula, n.
82, p.13.
151 Wodiczko, Krzysztof. Instruments, Projections, Monuments. AA Files, n. 43, inverno
de 2001, p.48.
152 Paredes, 2001, p.13.
153 O projeto de Wodiczko para a cidade de Nova York, assim como suas complexidades
e implicações, foi examinado em análise aprofundada de Rosalyn Deutsche no ensaio
133
HORTA VERTICAL
COMO DISPOSITIVO
RELACIONAL
José Luiz Kinceler
Universidade do Estado de Santa Cantarina
Considerando que cada período histórico gera seu próprio paradigma
estético no enfrentamento com mundos de vida marcados por formas
de representação múltiplas, atualmente provocar acontecimentos que
134
produzam devires complexos na subjetividade individual e coletiva é
de urgência vital para formas de arte que não estejam dispostas a se
inserir neste panorama efêmero e líquido que nossa modernidade não
tem nem mais como abarcar.155 Por outro lado, se reconhecemos que a
arte atual transita entre a desconstrução e novas formas de traduzir esta
UHDOLGDGHFRPRID]HUGHQRVVDH[LVW¬QFLDXPDIRUPDGHDUWH"4XHWLSR
de técnica, aqui entendida por processo criativo, pode produzir sentido
SDUD XP FRWLGLDQR TXH QHFHVVLWD VHU UHLQYHQWDGR HFRVRˉFDPHQWH" ‹
SRVV¯YHODLQGDKRMHID]HUGHQRVVDH[LVW¬QFLDXPDIRUPDGHDUWH"&DVR
SRVV¯YHOTXHW£WLFDVHSURFHVVRVFULDWLYRVWUDPDU"
Frente a estas perguntas nos vem novamente a indagação feita
por Nietzsche já no século XIX: Como a arte pode reinventar a vida e
SURGX]LUVHQWLGR¢H[LVW¬QFLD"4XHVWLRQDQGRHPVHXWHPSRTXHDUD]¥R
não era a única forma de se representar um mundo que acreditava
SLDPHQWHQDLGHLDGHSURJUHVVRRˉOµVRIRDOHUWDYDTXHȢFRPRIHQ¶PHQR
estético a existência ainda nos é suportável, e por meio da arte nos são
dados olhos e mãos e, sobretudo, boa consciência, para poder fazer de
135
nós mesmos um tal fenômeno”.156 Em nossa modernidade onde tudo se
Para atuarmos fora da zona de conforto na qual conscientemente
transforma em mercadoria, até mesmo as relações, será possível levar a
somos seduzidos a permanecer por esta sociedade, a técnica criativa a
H[LVW¬QFLDDSHQDVDDUWLFXODQGRFRPRIHQ¶PHQRHVW«WLFR"2XWHU¯DPRV
ser empregada hoje exige processos que produzam “acontecimentos”,
TXHDWXDUHVWHWLFDPHQWHGHIRUPDFRPSOH[D"(VWDLQTXLHWD©¥RIXQGRX
devires. Reconhecendo que o vir a ser ocorre quando uma imagem
uma série de articulações pelas quais a proposta Horta vertical vem
mental é produzida por experiências vitais que tocam o Real, o jogo
adquirindo sua forma.
representacional da arte contemporânea vai buscar outras formas para
À medida que cada contexto cultural amplia a visão de si mesmo,
o processo criativo ativa atos contínuos de desconstrução daquilo que
136
rearticular as complexas relações entre o propositor, a proposta e um
público que necessita ser reinventado e envolvido no acontecimento.
tem pretensão de se instalar na realidade como verdade naturalizada.
Neste sentido, o propositor ao atuar como um mediador estabelece
Novas formas em arte passam a jogar com complexidades que em última
e cria novos vínculos com outras formas de representação: política,
LQVW¤QFLDY¥RUHˊHWLUFRPRRSURSRVLWRUH[SHULPHQWDDFRQVWUX©¥RGD
ciência, religião, educação, etc.... Guattari nos indica que o “novo
VXDSUµSULDUHDOLGDGH3DUDQ¥RFDLUQDˊXLGH]GHXPDPRGHUQLGDGHTXH
SDUDGLJPDHVW«WLFRSURFHVVXDOWUDEDOKDFRPRVSDUDGLJPDVFLHQW¯ˉFRV
dissolve relações entre os sujeitos, experimentar em arte hoje é se lançar
e éticos e é por eles trabalhados”.158 Nesta nova condição o artista
em abismos, interstícios pulsantes da realidade, articulando durante a
supera limites deterministas passando a ter sua produção desvinculada
TXHGDRSURFHVVRFULDWLYR6LJQLˉFDWHFHURSUµSULRSDUDTXHGDVDSDUWLU
de sistemas de representação dados a priori. Ou seja, em seu processo
do conhecimento que dispomos da própria arte e de como desejamos
criativo o propositor, agora mediador, assume outros papéis para o jogo
praticar este mundo, em consonância com as experiências que em
representacional em arte. O professor de teoria e crítica da Arte da
nosso percurso vamos construindo na vida. É estar disposto a correr
Universidade de Castilla La Mancha, José Luiz Brea, nos alerta a respeito
riscos, pela sempre tensionada e frágil corda do desejo a materializar
destas novas formas em arte:
de forma sensível o que ainda está no campo do irrepresentável, o Real,
aquilo que desconhecemos de nós mesmos, do outro ou daquilo que
tenta se esconder entre as várias esferas da realidade. Ou seja, se em
FDGD«SRFDR5HDOVHPDWHULDOL]RXGHIRUPDHVSHF¯ˉFDHPIXQ©¥RGH
como o simbólico é afetado por nosso imaginário, com este processo
acelerado e contínuo de pasteurização do coletivo e espetacularização
da cultura,157 saberes construídos como experiência de risco não
encontram mais tempo nem espaço para serem praticados, e vão a
cada dia sendo minimizados. Em seu lugar assistimos à disseminação
avassaladora pela mídia de uma forma de subjetividade criativa
homogeneizada que leva o imaginário do indivíduo a ser formatado
segundo a lógica de uma sociedade baseada no controle.
Por três vias diferentes as novas práticas artísticas estão
assumindo esta responsabilidade. Em primeiro lugar,
pela via da narração. A utilização da imagem-técnica e a
imagem-movimento, em sua capacidade para expandir-se
num tempo-interno de relato, multiplica as possibilidades
da geração de narrativas. Em segundo lugar, pela via da
geração de acontecimentos, eventos, pela produção de
situações. Mais além da ideia de performance – e por
suposto muito mais além da de instalação – o artista atual
trabalha na geração de contextos de encontro direto, na
SURGX©¥RHVSHF¯ˉFDGHPLFURVVLWXD©·HVGHVRFLDOL]D©¥R$
terceira via é uma variante desta segunda: quando essa
produção de espaços de conversação, de sociabilização
da experiência, não se produz no espaço físico, senão
no virtual, mediante a geração de uma mediação. O
137
artista como produtor é: a) um gerador de narrativas
de reconhecimento mútuo; b) um indutor de situações
LQWHQVLˉFDGDVGHHQFRQWURHVRFLDELOL]D©¥RGHH[SHUL¬QFLD
e c) um produtor de mediações para seu intercâmbio na
esfera pública.159
138
Transbordando seus limites e invadindo a cultura de
uma maneira ampla, as propostas em arte a partir dos
DQRVVHDˉUPDPQRˊX[RHQWUHRHVW«WLFRHRSRO¯WLFR
Em consequência tornam-se híbridos referenciais e
vivenciais capazes de interagir em diferentes contextos
econômicos, sociais e culturais. Com isto, a representação
em arte moderna que mantinha o artista como centro do
processo criativo, sendo a obra fundada em princípios
formalistas que induziam o público a uma contemplação
fechada dentro do cubo branco, como entes separados e
cumprindo cada um sua função estética, é traduzida na
arte contemporânea pela relação complexa e interativa
entre essas partes, através da qual podem ser agenciadas
estratégias criativas onde o jogo representacional
reinventa suas regras no sentido de propor novas formas
de fazer este mundo ser experenciado perante uma
radical transformação de como a subjetividade pode ser
construída complexamente.
Para entender a noção de descontinuidade em arte devemos
considerar o fato de que recebemos uma cultura em movimento, que
cabe a nós, em nossa presente condição vivenciar, e, deste espaçotempo articular conjuntamente a nossos desejos e percepções outras
possibilidades de habitar este mundo que agora nos toca praticar. Em
GHˉQLWLYRGDUIRUPDDRXWURLPDJLQ£ULRDSDUWLUGHSU£WLFDVDUW¯VWLFDV
FRPSOH[DV5HˊHWLQGRFRP0LW[HOHQDH,PD]UHYLVWDZehar):
Devemos assumir por isto que a obra de arte pode
ser algo que surge em qualquer parte e por meio de
qualquer coisa. Sua qualidade artística não radica no
procedimento utilizado, senão em sua particular forma de
incidir em nossa maneira de conceber o mundo e de nos
relacionarmos com ele. Esta incidência se poderia medir
em sua capacidade para estabelecer uma descontinuidade
na percepção, inevitavelmente condicionada pelo que
culturalmente entendemos como realidade.160
Para materializar uma descontinuidade, antes de tudo, o
propositor deve estar sintonizado com a cultura na qual está inserido,
seu plano simbólico, sua herança cultural. Saliento que somente estar
informado não é garantia para que o processo criativo possa catalisar
as necessidades de representação sentidas por modos de fazer arte
Como vivenciado por vários artistas e coletivos de arte, o trabalho
KRMH SRLV DR KHUGDU H XVDU HVWUXWXUDV GH OLQJXDJHQV UHLˉFDGDV HP
direto a partir de um referente em vez da apropriação dos signos da
códigos alienantes já assimilados pelas instituições, o propositor pode
cultura exige a desaceleração do tempo. O propositor ao invadir campos
cair vítima do espetacular da imagem em detrimento de materializar
representacionais em busca dos referentes que necessita e desconhece,
propostas que estejam em sintonia com necessidades de representação
se vê obrigado, mesmo que somente em nome de seu processo
condizentes ao nosso tempo. Necessidades a serem cuidadas no
criativo, a conviver com alguém que pensa diferente. Neste processo
microssocial, e que envolvem a desconstrução de todo tipo de relações.
de alteridade sua liberdade criativa se amplia provocando uma série
de descontinuidades criativas no cotidiano, capazes de ensaiar formas
Hoje, vivemos numa sociedade na qual a informação brota
modélicas para a realidade. Modelos temporários que transitam entre a
por todos os lugares. Entretanto, estar informado requer um tempo
ˉF©¥RHDWUDQVIRUPD©¥RGDUHDOLGDGHSRVV¯YHO
deslocado de vida que na maioria das vezes não é traduzido em
conhecimento sensível, em produção de subjetividades complexas.
$OLPHQWDVHGHXPVLPEµOLFRM£ˉOWUDGRHQTXDQWRRUHDOSRGHGHL[DU
139
de ser saboreado. Ou seja, uma descontinuidade está fundada em
pública. Laddaga nos indica que o presente das artes está marcado
experiências de vida que materializam novas relações no mundo. Uma
pela proliferação de um certo tipo de projetos que visam, segundo este
imagem nasce. Retira algo do Real. “Algo que nos toca, nos passa”, nos
autor:
dirá Larrossa Bondia.
161
Esta seria a primeira condição para estar num
estado de arte. Uma descontinuidade em arte consegue materializar
um complemento imaginário capaz de gerar uma forma diferente
de praticar o cotidiano. Quando materializada a partir das relações
com o outro, num plano mais crítico e participativo, gera vivências
capazes de promover contaminação.162 Ou seja, uma descontinuidade
DOWHUD PDQLSXOD H FULD QRYRV VLJQLˉFDQWHV ‹ XP SURFHVVR QR TXDO R
S¼EOLFR WHP D FRQGL©¥R GH YHU UHˊHWLGR TXHVWLRQDPHQWRV LQFHUWH]DV
e diferenças de toda ordem o qual provoca novos modos de fazer este
mundo ser experienciado com outra intensidade. Quando acontece uma
descontinuidade, alterações se processam na forma como o sujeito se
compreende a si mesmo neste mundo. Produção de subjetividade nos
dirá Guattari, devires nos dirá Deleuze.
140
Analisando de forma complexa o jogo representacional da arte
a partir de coletivos de artistas que realizam práticas artísticas pósdisciplinárias, Reinaldo Laddaga nos mostra diferenças que situam o
campo da arte contemporânea em um novo patamar.163 Neste jogo, o
papel do propositor, da proposta artística e do participante acontece
HP FRQWH[WRV HVSHF¯ˉFRV SRU SHU¯RGRV GH DWXD©¥R SURORQJDGRV
gerando descontinuidades locais que têm a potência de alterar a
realidade imediata. Neste sentido o propositor, agora mediador de
narrativas contextuais de reconhecimento mútuo, costura relações com
outros campos representacionais compartilhando responsabilidades
FLHQW¯ˉFDV «WLFDV H HVW«WLFDV FRP R RXWUR $JRUD D SURSRVWD DUW¯VWLFD
DR SUDWLFDU D UHDOLGDGH FRPR XPD ˉF©¥R PRG«OLFD GH PXQGRV
possíveis, leva o participante a gerar representatividade a seu contexto.
Empoderamento. Passando a atuar de forma complexa estas formas
HPHUJHQWHV GH DUWHYLDELOL]DP LQWHUD©·HV UHˊH[·HV H SULQFLSDOPHQWH
ensaiam modos de vida mais dignos de serem vivenciados junto à esfera
LQLFLDURXLQWHQVLˉFDUSURFHVVRVDEHUWRVGHFRQYHUVD©¥R
(de improvisação) que envolvam não artistas durante
XP ODUJR SHU¯RGR GH WHPSRV HP HVSD©RV GHˉQLGRV
onde a produção estética se associe ao surgimento de
RUJDQL]D©·HV GHVWLQDGDV D PRGLˉFDU R HVWDGR GDV FRLVDV
em um ou outro espaço, e que apontem a constituição de
ȢIRUPDVDUWLˉFLDLVGHYLGDVRFLDOȣPRGRVH[SHULPHQWDLVGH
coexistência.164
Projetos como “Park Ficcion”, mediados por Chistoph Shaefer
e Cathy Skene, “The Land”, laboratório de práticas colaborativas
formulado por Rikrit Tiravanija, “Quietude da Terra”, de Francis Morin,
“Musée Precarie Albinet”, agenciado por Thomas Hirschorn, “A fé move
montanhas”, de Francis Alys, “Kissarama”, de Asier Perez Gonzalez, “La
FRPXQDȣ GH 3HWHU :DWNLQV Ȣ&ROHWLYR $9/9LOHȣ R &ROHWLYR 6XSHUˊH[
atuam na fronteira da arte como reinvenção do cotidiano. Criam zonas
dialógicas de atuação temporárias, sabem que por meio deste espaço
P£JLFRGHˉQLGRFRPR$UWHDUHDOLGDGHSRGHVHUPRGHOL]DGDIRUPDWDQGR
o que Laddaga pontua como um novo paradigma para processos de
arte colaborativa, a de instaurarem novas ecologias culturais.165
Considerando com Laddaga que “uma emergência é a ocasião
de uma aprendizagem”,166 estes processos são entendidos como
experiências de arte colaborativa que se moldam na medida em que
as situações e os desejos vão se apresentando. Devido à complexidade
dos acontecimentos, estas propostas se realizam em tempo real. Isto
VLJQLˉFD FRPSUHHQGHU VXDV FRQVWUX©·HV FRPR XPȢOXJDU SUDWLFDGRȣ167
TXH VH FRQˉJXUD FRPR YHUGDGHLUD SODWDIRUPD GH VDEHUHV H GHVHMRV
compartilhados.
141
Reconhecendo que a arte de cunho colaborativo, aquela que para
sentido cada participante está tendo a liberdade de materializar outros
acontecer depende da participação do outro, atravessa hoje um grau
desejos em relação ao que esta plataforma de saberes compartilhados
de transparência inclusiva dentro da própria instituição arte e que, no
poderá projetar sobre sua subjetividade. Está aberta inclusive a não
entanto, está marcada por proposições que necessitam ser vivenciadas
DFRQWHFHUSRLVDˉQDOGHSHQGHGRGHVHMRGRRXWURHPTXHUHUMRJDU
por períodos de tempo mais abrangentes, em que o mais importante
são as descontinuidades que podem gerar, a proposta da Horta vertical
lança mão da noção de dispositivo relacional que tem como linhas de
força o afeto, a convivência e a troca de saberes durante seu ensino,
confecção e manutenção de conjuntos de módulos de hortas a serem
instaladas nas residências da comunidade do Morro do Palácio em
Niterói/RJ. Vários são os conhecimentos e enunciados que uma horta
vertical absorve e repassa para que tenha sentido enquanto dispositivo
relacional no momento em que é construída: precisa ser projetada
visando ao aproveitamento de pequenos espaços; requer a assimilação
da tecnologia do ferro-cimento artesanal empregada em sua confecção,
o que permite estar integrada à experiência pautada na tática construtiva
142
local do pouco e sempre; fazer uso do saber popular que implica virar
um pneu pelo avesso, técnica empregada no Nordeste brasileiro para
a confecção de bacias caseiras; a necessidade de preparar o adubo
a partir dos resíduos domésticos, que invariavelmente acabariam
poluindo o meio ambiente; o reaproveitamento e redistribuição
inteligente da água em função da própria gravidade; a preparação
de mudas e os cuidados para com o crescimento das plantas. Todas
essas atapas de aprendizados e trocas são linhas de força que, ao
JHUDUYLVLELOLGDGHVHVSHF¯ˉFDVSURGX]HPSURFHVVRVGHVXEMHWLYD©¥RHP
que outras imagens mentais desaceleram e provocam relações mais
HFRVµˉFDVQRFRWLGLDQR
A técnica, entendida como processo criativo, passa então a ser
eminentemente pautada no afeto. Está baseada no encontro e na troca
de saberes a partir da materialização do desejo individual que as hortas
verticais, e toda tecnologia envolvida no processo, conseguirem projetar
sobre o imaginário dos participantes. Por outro lado esta proposta
tem a pretensão de gerar um espaço-tempo inserido na realidade
capaz de causar uma desestabilização no jogo representacional. Neste
jogo, o papel do propositor, da proposta artística e do participante
DFRQWHFHQXPFRQWH[WRHVSHF¯ˉFRDFRPXQLGDGHGR0RUURGR3DO£FLR
em Niterói/RJ por um período relativamente prolongado de atuação
e tem a pretensão de gerar descontinuidades locais visando alterar a
realidade imediata.168 Neste sentido a confecção artesanal de tampas
de caixa d’água em ferro-cimento surge como um deslizamento e
necessidade vital para o Outro. Fazê-las com os parâmetros apontados
DFLPD D SDUWLU GH XPD IRUPD FRPSOH[D VLJQLˉFD WRFDU R UHDO DWUDY«V
GH XP UHIHUHQWH TXH « VLJQLˉFDQWH SDUD WRGD D FRPXQLGDGH $ OXWD
contra a dengue. A descontinuidade acontece não por estar pintada
ou desenhada de forma colaborativa, mas sim porque no seu fazer a
produção de subjetividade está ocorrendo a partir de parâmetros que
envolvem experimentação nas relações e simultaneidade nos afetos
desde o campo da arte. Neste processo de materialização de mundos
de vida possíveis de serem praticados no aqui e agora, outros desejos
se fazem presentes que requerem doação e envolvimento transversais,
A Horta vertical é o referente inicial, o gatilho propulsor para que
que por sua vez potencializam o emergir de novos delizamentos, como
RXWURVGHVHMRVDˊRUHP&RPRGLVSRVLWLYRRSURFHVVRFULDWLYRGDVKRUWDV
a criação de um bloco de bonecos carnavalesco para jovens e crianças
verticais está aberto a outras estratégias e táticas criativas que levem o
envolveu a colaboração de vários interessados. Da música, ensaios,
desejo dos outros a novas paisagens e deslizamentos criativos. Ou seja,
FRUHRJUDˉDV GDQ©D FRQIHF©¥R GH LQVWUXPHQWRV HP FHU¤PLFD H IHUUR
entender a Horta verticalFRPRXPGLVSRVLWLYRVLJQLˉFDHVWDUDEHUWRD
cimento, a montagem e construção dos bonecos, vários são os saberes
diluir o que é tão caro ao sistema da arte, o princípio da autoria. Neste
que necessitam da desaceleração do tempo para serem efetivamente
143
vivenciados. Estes deslizamentos surgiram no convívio e fazem com
– para que a sequência de lugares que habitamos durante a
nossa vida não se torne generalizada em uma serialização
que uma plataforma de desejos ative formas de colaboração nas
indiferenciada, um lugar após o outro.169
quais o propositor enlaça e cria novas articulações realizando uma
desconstrução de sua própria proposta inicial
3DUD WHQWDU ˉQDOL]DU FXPSUH UHVVDOWDU TXH VH D DUWH VHPSUH IRL
um jogo que anula e reinventa suas próprias regras, o propositor,
agora mediador de narrativas contextuais de reconhecimento mútuo,
FRPSDUWLOKD UHVSRQVDELOLGDGHV «WLFDV FLHQWLˉFDV H HVW«WLFDV FRP R
outro. Por sua vez a proposta artística ao praticar a realidade como
$YDQ©DUVREUHQRVVDVOLPLWD©·HVVLJQLˉFDHQFRQWUDUVLQJXODULGDGHV
Enfrentar-nos a interstícios mal resolvidos da realidade, fazer de nossa
existência uma forma de arte, reinventar relações, ou experienciar este
mundo de forma solidária e colaborativa, somente tendo como proteção
QRVVD FULDWLYLGDGH UHTXHU XPD SRVWXUD HFRVµˉFD QR FRWLGLDQR FRPR
bem salientou Guattari já em 1989.170
XPDˉF©¥RPRG«OLFDGHPXQGRVSRVV¯YHLVOHYDRVSDUWLFLSDQWHVDJHUDU
UHSUHVHQWDWLYLGDGH D XP FRQWH[WR HVWUDWLˉFDGR GH FRQˊLWRV$R DWXDU
como potencializador de criatividade compartilhada, estabelece e cria
Notas
vínculos com outras formas de representação, gerando um fenômeno
144
artístico complexo capaz de potencializar as difíceis relações da arte
155 Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar Editor Ltda, 2000.
para com a vida. Para tanto, o propositor engajado neste novo jogo
156 A Gaia Ciência. Trad. Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
p.132
formal deve controlar desde dentro e incorporar novos referentes
para exercer plenamente sua criatividade. Passando a atuar de forma
FRPSOH[DHVWDIRUPDHPHUJHQWHGHDUWHYLDELOL]DLQWHUD©·HVUHˊH[·HVH
principalmente ensaia modos de vida mais dignos de serem vivenciados
junto à esfera dinâmica da vida.
Nesta situação supera limites deterministas passando a ter sua
produção desvinculada de sistemas de representação dados a priori.
A Arte hoje se aproxima de acontecimentos e situações inseridos
nos mundo de vida cotidiana, disponibilizando ao artista novas
possibilidades de atuação na realidade que materializem espaços de
YLGD TXH JHUHP SDUWLFLSD©¥R UHˊH[¥R GL£ORJR H FRODERUD©¥R DWLYD D
partir do convívio em tempo real. Miwon Kwon salienta a importância
de se dilatar o tempo da experiência:
Somente essas práticas culturais que têm essa
sensibilidade relacional podem tornar encontros locais em
compromissos de longa duração e transformar intimidades
passageiras em marcas sociais permanentes e irremovíveis
157 A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
158 Caosmose um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 1992, p.136.
159 Disponível em http://www.alfonselmagnanim.com/debats/84/quadern04.htm.
Acessado em 25.4.2007.
160 Debemos asumir por ello que la obra de arte puede ser algo que surge en cualquier
parte y por medio de cualquier cosa. Su artisticidad no radica en el procedimiento
utilizado, sino en su particular modo de incidir en nuestra manera de concebir el
mundo y relacionarnos con él. Esa incidencia se podría medir en su capacidad para
establecer una discontinuidad en la percepción, inevitablemente condicionada por
lo que culturalmente entendemos como realidad. Construir la intermediación - Ser
artista. Revista Zehar Disponível em http://www.arteleku.net/secciones/enred/zehar/
zehar2/42/Zehar42Imazalt.pdf.
161 Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Disponível em http://www.
miniweb.com.br/atualidade/INFO/textos/saber.htm.
3RU FRQWDPLQD©¥R HQWHQGHVH R FRQFHLWR GHˉQLGR SRU 6XHO\ 5ROQLN HP TXH
“contaminar-se pelo outro não é confraternizar-se, mas sim deixar que a aproximação
aconteça e que as tensões se apresentem. O encontro se constrói – quando de
IDWR VH FRQVWUµLȝ D SDUWLU GRV FRQˊLWRV H HVWUDQKDPHQWRV H Q¥R GH VXD GHQHJD©¥R
humanista”. Alteridade a céu aberto: O laboratório poético-político de Maurício Dias &
Walter Riedweg. Posiblemente hablemos de lo mismo, catálogo da exposição da obra
de Mauricio Dias e Walter Riedweg. Barcelona: MacBa, Museu d’Art Contemporani de
Barcelona, 2003.
145
163 Estética da Emergência. Buenos Aires: Adriana Hidalgo Editora, 2006.
LQLFLDU R LQWHQVLˉFDU SURFHVRV DELHUWRV GH FRQYHUVDFLµQ GH LPSURYLVDFLµQ
TXH LQYROXFUHQ D QR DUWLVWDV GXUDQWH WLHPSRV ODUJRV HQ HVSDFLRV GHˉQLGRV GRQGH OD
SURGXFFLµQHVW«WLFDVHDVRFLHDOGHVSOLHJXHGHRUJDQL]DFLRQHVGHVWLQDGDVDPRGLˉFDU
estado de cosas en tal o cual espacio, y que apunten a la constitución de “formas
DUWLˉFLDOHVGHYLGDVRFLDOȣPRGRVH[SHULPHQWDOHVGHFRH[LVWHQFLD,GHPLELGHPS
POESIA DISSEMINADA,
POESIA INSEMINADA:
ASPECTOS DA CRIAÇÃO
POÉTICA NA WEB
165 Idem, ibidem, p.9.
166 Idem, ibidem, p.288.
167 Certeau, A invenção do cotidiano, op. cit.
Lígia Dabul
168 O projeto foi desenvolvido em um pós-doutorado realizado junto ao Programa de
Pós-Graduação em Ciências da Arte da Universidade Federal Fluminense, tendo como
supervisor o prof. dr. Luiz Sérgio de Oliveira, que me incentivou e auxiliou na formatação
dessa plataforma de desejos compartilhados.
Universidade Federal Fluminense
169 2QH3ODFH$IWHU$QRWKHU 6LWH6SHFLˉF$UW DQG /RFDWLRQDO ,GHQWLW\ Cambridge: The
MIT Press, 2002.
170 As três ecologias. Campinas: Papirus, 2004.
Talvez por permitirem novas possibilidades de expressão e criação,
Sobre o autor
146
José Luiz Kinceler – Propositor de táticas criativas complexas, professor de artes
visuais do Centro de Artes da UDESC, professor na graduação e no PPPAV (Mestrado
em Artes Visuais do CEART/UDESC), doutor em Escultura como Prática e Limites na
Facultad de Bellas Artes de la Universidad Del Pais Vasco (1997-2001). Coordena
o Grupo de Pesquisa CNPq/UDESC: Arte e Vida nos limites da representação.
Desenvolve pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Arte/
UFF junto à comunidade do Morro do Ingá, Niterói, RJ.
bem como alargamento no volume de contatos, encontramos na arte,
na literatura e em muitos outros âmbitos da vida social a adoção dos
comportamentos criados com a web. A naturalização de uma série
de procedimentos de comunicação e formas de conviver na internet
parece sempre vir junto e se sobrepor à surpresa diante de inovações
que apressadamente nos são apresentadas e incorporadas. A poeta e
artista visual Laura Erber, no site de relacionamentos Facebook, assim
formulou o incômodo – em geral pouco explicitado, provavelmente não
muito comum – frente ao extensivo avezar-se aos modos de interagir
que acompanham quase automaticamente o pertencimento a redes
desse tipo:
Uma idéia arreganhada
Compartilhar
quinta, 25 de fevereiro de 2010 às 12:53
147
alguém aqui já conseguiu entender a ideia de amizade
na qual se baseia o Facebook, digo, a amizade que nos
OLJD GHQWUR GHVWDV PDUJHQV MXVWLˉFDGDV DLQGD VRIUR GD
HVSHUDQ©DQDLQFOXV¥RGRLW£OLFRHGDTXHEUDGHYHUVRV"
V¥RPXLWDVFODURHFDGDXPG£XPDLQˊH[¥RSUµSULDPDV
me pergunto (ainda sem resposta) por que essa corrente
« HP FHUWD PHGLGD DˊLWLYD WHQWR LPDJLQDU D IRUPD
dessa amizade arreganhada. circuito tremendamente,
assustadoramente vasto e ilimitado. pura monotonia.
W«GLRVHPVSOHHQRTXHID]HU"GDUXPEDVWDVHQWDUP¥R
QR GHOHWH" PDV FRPR GHˉQLU HVVH ˉOWUR" OHW LW EH HX
nunca consigo. a vida virtual segue seu estranho curso de
agregados. não existiria um certo alívio quando pintam por
aqui os velhos e bons melindres, rusgas, coices, versinhos
d’escárnio & maldizer, HUMPFS e PAFS e bloqueios. sinais
GHYLGD"VDOYHJHUDO
Quem acompanha a produção poética feita e veiculada na
internet também tem como familiares as consideráveis inovações e
148
transformações que vêm ocorrendo nesse campo já há cerca de 20 anos.
Mas, como em tantas outras áreas da vida social, o estudo da poesia e
de poetas por meio do que se mostra na web é de grande importância,
por viabilizar, mais do que acesso a dados, tocar realidades inusitadas,
baseadas em elementos originais, com nova natureza, por assim dizer.
Além disso, a internet é conformadora de realidades que reverberam
e criam acontecimentos para bem além de suas telas, tecnologias,
linguagens, hábitos, conduzindo a diversidade de experiências que
ainda não processamos com perguntas e aparato conceitual adequados,
voltados para a singularidade desses fenômenos. Neste trabalho,
apontamos algumas formas por meio das quais poetas e não poetas
interagem na internet em função de avaliações e práticas vinculadas
¢SRHVLDHDSUHVHQWDPRVDOJXPDVQRYDVFRQˉJXUD©·HVTXHDFULD©¥R
poética vem assumindo nesse meio.171
A observação da produção poética recente na internet propicia visualizar
dimensões e acontecimentos relevantes da poesia contemporânea
brasileira, incluídos os de muitos dos novos mecanismos de constituição
de identidades e de consagração de poetas. Na web redes de poetas
são formadas e simultaneamente conduzem redes preexistentes, não
virtuais, que por sua vez não se mantêm as mesmas depois de visitar
esses espaços virtuais, que também já são outros, lidos de outra forma,
lidos de muitíssimas maneiras, diferentes, e que mudam muito e com
rapidez. Um exemplo é o blogue As Escolhas Afectivas,172 organizado
no Brasil173 por Aníbal Cristóbo,174 em que cada poeta se apresenta e
a sua poesia, e indica poetas de suas relações, e estes indicam outros,
TXHLQGLFDU¥RRXWURVH[SOLFLWDQGRGHIRUPDQGRUHGHˉQLQGRPDSDVGH
SUHIHU¬QFLDV UHYHU¬QFLDV H LGHQWLˉFD©·HV HQWUH SRHWDV ȝ R TXH VHU£
comentado, incorporado à vida deles, por diferentes meios, e por toda
parte.175 Blogues de poetas também selecionam e sugerem outros
blogues de poetas, seguindo procedimento comum de indicações,
geralmente cruzadas, baseadas em franca reciprocidade, junto a
blogueiros não poetas.176 Essas relações e formas de interação tão
visíveis entre poetas – em blogues que envolvem tantos poetas, como
o As Escolhas Afectivas, em blogues nos quais o autor, o dono, interage
com leitores, com visitantes, poetas e não poetas, em espaços como o
Facebook, no qual poetas interagem com outros poetas – desenrolam-se
em boa medida tal como em outras áreas da vida social. Mas podemos
nos perguntar sobre as repercussões da criação da web para a produção
poética – formas de transformação e de constituição de identidades de
poeta e de seus mecanismos de criação.
Um dos efeitos de a comunicação na web ser feita em considerável
medida por meio da escrita177 é o de dar lugar a muitas e diferentes e
novas formas de escrever, poesia entre elas. E, ao lado de uma profusão
de meios de divulgação da poesia, assistimos à repetição da consagração
dos poetas reconhecidos largamente como tais e já há muito veiculados
Por todos os lados
pelo sistema escolar e editorial, e por críticos, estudiosos e poetas. Em
língua portuguesa, escritos de Fernando Pessoa, Carlos Drummond
149
de Andrade, Clarice Lispector, Cecília Meireles, muitos não autênticos
Decorrência direta da ocupação e criação, por poetas (mas não apenas
ou em reproduções inexatas, povoam mails, blogues, sites, notícias e
por eles), de espaços na internet por meio de blogues é a retirada
eventos on line. Assistimos também, entretanto, a mudanças importantes
GR SRHPD GR VXSRUWH EUDQFR GD S£JLQD D VLJQLˉFDWLYD DEHUWXUD GH
na escrita e nas formas“leigas” de consagração, menos valorizadas
possibilidades de uso de cores nas até então pretas letras e a explicitação
pelos atores sociais e instituições que estudam e zelam pela chamada
da existência de um corpo do poema, maleável nos tipos de fontes, em
OLWHUDWXUDȝ FRPR DFDGHPLDV XQLYHUVLGDGHV HYHQWRV RˉFLDLV HGLWRUDV
VXDQLWLGH]QRWDPDQKRQDMXVWLˉFD©¥RQDUHOD©¥RFRPRIXQGRFRP
&RPDJHQHUDOL]DGDLQWHQVLˉFD©¥RGRWU¤QVLWRGHLQIRUPD©·HVGDweb
o fundo que invade o poema em variações e intensidades até pouco
também na poesia, ao lado de poemas e poetas que passaram pelo crivo
tempo desconhecidas. Além disso, o poema solta-se do livro, referência
daqueles sistemas e atores sociais especializados e tradicionalmente
que aparece – embora nem sempre – a sua antiga habitação e que às
TXDOLˉFDGRVSDUDSURGX]LUUHSURGX]LUHLQRYDUF¤QRQHVV¥RYHLFXODGRV
vezes nem existe, como quando poemas são dados ao conhecimento do
e aceitos amplamente os poemas e poetas que, em outros tempos,
público antes ou sem que habitem uma casa de poemas, que pertençam
só teriam lugar junto a relativamente poucos atores sociais, talvez
a uma família de poemas, um livro. Na realidade, o poema mudou de
agregados a esses poetas por relações de muita proximidade, de
endereço.179
amizade, parentesco, coleguismo, vizinhança.
150
Nos blogues de poetas, os poemas costumam também misturar-
0RVWUDPVH DˉUPDPVH H DODUJDPVH SRUWDQWR R FKDPDGR
se com outros poemas de outros autores, e com recados e notícias
público e os produtos “leigos” da literatura. A produção poética,
da vida pessoal do poeta, com avisos de eventos ligados à poesia –
disseminada por todos os lados,
aumentou no sentido de tornar-
ODQ©DPHQWRV FXUVRV RˉFLQDV OHLWXUDV ȝ FRP WH[WRV GH OLWHUDWXUD H
se visível (e talvez tenha aumentado mesmo quantitativamente para
por vezes, como no blogue de Ademir Assunção, Espelunca,180 com
além de na sua relevância social) e no de apresentar-se quando quer e
crônicas e avaliações contundentes de políticas públicas voltadas para
colocar-se lado a lado com os poetas tradicionalmente consagrados e
a literatura, entre diferentes assuntos. Em parte considerável dos casos
com os que hoje são consagrados pelos especialistas. Os mecanismos
não há mais somente letras no ambiente do poema. Além daquelas
de delimitação do que seja poesia e de quem seja poeta – como As
variações de tamanho, textura e cor que perpassam diretamente seu
Escolhas Afectivas – permanecem existindo, como há muito existem e,
corpo, poetas lançam mão de material visual, e não apenas como
parece, vão existir, podendo agora estar ao fácil alcance de muitos mais
ilustrações. O blogue Cantar a pele do lontra,181 do poeta Claudio Daniel,
olhos até então não abertos nesses espaços. Mas também são visíveis
apresenta regularmente, em todas as postagens, fotos, normalmente
e convivem, e têm igual facilidade de acesso a uma diversidade grande
GH IRWµJUDIRV SURˉVVLRQDLV RX GH WUDEDOKRV GH DUWLVWDV SO£VWLFRV QD
de listas, agregados, redes de poetas que não são aceitas por aqueles
sessão “Galeria”. E há poetas que incluem predominantemente em seus
que compõem ou aprovam mecanismos tradicionais e/ou institucionais
EORJXHVVXDVSUµSULDVSURGX©·HVIRWRJU£ˉFDVDRODGRGHVHXVHVFULWRV
de hierarquização de poetas e da poesia – eles mesmos, quase sempre,
como o português João Miguel Henriques, no Quartos escuros.182 Ou,
com seus sites, comunidades e listas.
ainda, no blogue do Projeto Cultural Literatura no Brasil,183 criado em
178
2004 e agregando diversos escritores, poemas podem ser apresentados
junto a fotos de inúmeros eventos e participantes. Tanto poetas como
Disseminados, inseminados
não poetas desfazem a quarta parede do poema, alocando-o junto a
151
imagens as mais diversas. Talis Andrade, no blogue Poesia e Pintura:
Arte Versos,
184
volta-se para a apresentação conjunta de pinturas e
poemas, associação comentada por seus leitores.
Em revistas de literatura com vida exclusivamente virtual parece
haver especial aproximação dos poetas editores com o que até então
não pertencia de maneira tão generalizada ao campo da poesia, mas
ao trabalho de artistas visuais. Na Zunái. Revista de Poesia & Debates,185
criada por Claudio Daniel e Rodrigo Souza Leão, com arte produzida
pela artista visual e poeta Ana Peluso, na sessão “Poesia” os poemas são
chamados de esculturas sonoras. Também nas publicações de poesia
que já existiam impressas e agora se replicam na internet, encontramos
o apuro visual, e aquele novo corpo e o novo campo semântico, com
marcadores também visuais, que passaram a abrigar os poemas. Veja-se,
por exemplo, o Panorama da Palavra,186 já no número 69, editado pela
poeta Helena Ortiz.
152
Há, ainda, a produção poética que explora a visualidade e a
sonoridade como processos que traspassam, incluem-se e determinam
a criação por meio da palavra. O poeta e músico Cid Campos marca
o impacto já do advento da tecnologia digital para desenvolvimentos
da criação poética, associada especialmente à música.187 Andre Vallias,
SRHWDHDUWLVWDJU£ˉFRIRLGRVSLRQHLURVGHVVDSURGX©¥RYLVXDOHVRQRUD
no Brasil. Na Revista Errática188 são publicados materiais audiovisuais
envolvendo a escrita de diversas maneiras. Por exemplo, o poema “Alegria
e dor”,
189
de Armando Freitas Filho, é incluído ainda inédito na Errática
com tratamento sonoro e visual, proporcionando leitura de poesia
muito distinta da que costuma ser feita nos livros do poeta. Já Arnaldo
Antunes concebe e faz a “colagem sonora” do poema “Tradição”,190 que
UHFHEHWUDWDPHQWRJU£ˉFRHDQLPD©¥RGH$QGU«9DOOLDV1HVVHSRHPD
as possibilidades de apresentação estão submetidas a escolhas feitas
pelo leitor-espectador-participante, que as elege e imprime ritmo em
mixagens a seu gosto clicando sobre a imagem.
A participação do público leitor/espectador na produção poética
virtual é estimulada não apenas pela abertura, mas também pela
SHUPDQHQWHSRVVLELOLGDGHGHPXGDQ©DHPWUDEDOKRVˉQDOL]DGRVFRPR
“Tradição”. Já é comum a apresentação de poemas em andamento, ainda
SRUˉFDUSURQWRV/DX6LTXHLUDSRHWDJD¼FKRUHVLGHQWHHP-R¥R3HVVRD
mantém até hoje os blogues Poesia Sem Pele191 e Poesia Sim.192 No
Poesia Sim expõe, junto com poemas de outros poetas, comentários,
notícias de eventos culturais e ilustrações, os chamados “poemas
vermelhos”, que são poemas em construção, facilmente reconhecíveis,
por conta da cor, no blogue. A escritora Rosana Caiado,193 que manteve
por alguns anos o blogue Pseudônimos,194 criou o Complete a Frase,
voltado diretamente para a participação dos leitores, convidados a
completar frases que ela inicia. De alguma maneira essa apresentação
GR WUDEDOKR Q¥R ˉQDOL]DGR FRP RX VHP D SDUWLFLSD©¥R GD HVFULWD GR
leitor nele, cria acesso à condição do poema usualmente guardada
pelo poeta ou exposta a círculo reduzido de poetas de sua relações
e amigos. E já esse compartilhar restrito pode tornar-se público, como
o Oui! à l’inspiration, da poeta Claudia Roquette-Pinto.195 Voltando-se
diretamente para um conjunto de pessoas – na maioria poetas – com
quem pretendia dialogar a respeito de sua produção literária – agora
associada a colagens que transpõe para o computador –, envia o mail
“meu novo blogue” noticiando o blogue no qual apresentará trabalhos
em andamento:
meu novo blogue
olá, amigos,
acabei de criar um blogue (oui! à l’inspiration), onde
venho postando trechos avulsos (e aleatórios) do meu
novo livro, em prosa, ainda em vias de ser escrito – e que,
provavelmente, vai se chamar entre lobo e cão.
também estou divulgando nele, blogue, o meu trabalho de
colagens.
espero que gostem – e, se puderem, me mandem uma
opinião...
um grande abraço da
153
claudia
avatares especialíssimos perduram e atuam a partir de seus próprios
http://ouialinspiration.bloguespot.com/
anseios, algo constituídos no uso das ferramentas que lhes chegam
às mãos e ao pensamento, e nas respostas ao contato dos leitores ou
Sair
espectadores, no caso dos que já mesclam à poesia uma produção
sonora e visual para além da existência, evidente e constitutiva, dos
Indicamos aqui algumas variações nas formas de produção de
identidades de poeta e de critérios de aferição do que é poesia surgidos
aspectos visuais e sonoros de qualquer escrita. Mas já estaríamos, assim,
HPRXWURWHPDFRQWLQXDQGRHH[WUDSRODQGRQRVVDUHˊH[¥R
com a web. Apontamos também mudanças no corpo do poema, incluído
o desnudamento de seus estados de incompletude. Mais de perto
poderíamos encontrar na web o poeta misturado, em todos os lugares,
interagindo e vagando em velocidades estipuladas em boa medida por
inovações tecnológicas e por seus próprios ímpetos de criar sinais de
171 E nos deteremos, como se verá, sobretudo na poesia escrita em português por
poetas brasileiros.
vida.
172 http://www.asescolhasafectivas.bloguespot.com/
Na última postagem que fez no Pseudônimos, Rosana Caiado nos
dá a dimensão do conjunto de espaços de exposição de trabalhos e de
154
Notas
interação criados e/ou ocupados por escritores:
1.3.10
FIM
173 Há blogues de poetas, organizados como esse, em diversos países da América
Latina e na Europa.
174 O poeta Aníbal Cristóbo mantém também o blogue Kriller 71 http://kriller71.
blogspot.com/2009/08/lektion-4-por-favor-quien-es-usted.html
2EVHUYDUTXHQDFRQIRUPD©¥RGHVVDUHGHLGHQWLˉFD©·HVHPDUFDGRUHVGHSUHVW¯JLR
estão vinculados não apenas ao número de indicações que um indivíduo recebe, mas
à autoria dessas indicações e à rapidez com que o poeta foi indicado, situando-o mais
SUµ[LPRGRFHQWURGHSRHWDVHPWRUQRGRTXDODUHGHIRLGHˊDJUDGD
O Pseudônimos perdeu o sentido há muito tempo, mas só
agora veio a coragem de terminar com ele.
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Ou, a qualquer momento, mande um email
para [email protected]
176 Érica Peçanha do Nascimento, em Vozes marginais na literatura (Rio de Janeiro:
Aeroplano, 2009), elenca as indicações de sites e blogues que encontrou no blogue
do Projeto Cultural Literatura do Brasil http://www.literaturanobrasil.blogspot.com/
GHˉQDOGHDRˉQDOGHKWWSZZZTXLORPEKRMHFRPEUKWWSZZZ
capao.com.br; http://www.enraizados.com.br; http://www.cotaeditorial.cjb.net; http://
www.suburbanoconvicto.blogger.com.br; http://www.leialivro.com.br; http://www.
recantodaspalavras.com.br/autores/sacolinha; http://www.leiabrasil.org.br; http://
www.1dasul.blogspot.com; http://www.movimentoliterario.com.br; http://www.ferrez.
blgspot.com.
Escrito por Rosana Caiado Ferreira, que detesta despedidas.
178 Comentamos a existência de poesias e de poéticas ao lado da concentração social
de atributos de poeta em entrevista a Thiago Ponce no Algaravaria, http://algaravaria.
bloguespot.com/2006/08/algaravariaes-12-lgia-dabul.html.
Junto com isso, poetas constroem personas mantidas pelo tempo,
embora transitando e escrevendo (em) diferentes espaços na rede. Esses
177 Aqui já imaginamos não haver separação estrita entre escrita, imagem e
sonoridade: a escrita, e por isso o poema, tem corpo e carrega uma sonoridade em todos
os casos. Mais adiante incluiremos essa preocupação em nossa análise.
179 Em certa medida, essa individualização do poema e sua soltura acompanham
o deslocamento feito por outros materiais escritos no ambiente da rede, afastados
155
das publicações em que aparecem originalmente, recontextualizando-se e por isso
DGTXLULQGRQRYRVVLJQLˉFDGRV-RV«$IRQVR)XUWDGRHPO papel e o pixel. Do impresso
ao digital: continuidades e transformações. Florianópolis: Escritório do Livro, 2006, indica
R TXDQWR WDLV XQLGDGHV DJRUDȢOLYUHVȣ QD ZHEȝ FRPR SRHPDV H DUWLJRV FLHQW¯ˉFRVȝ
consistem em fragmentos do livro, cujo estilhaçamento acompanharia esse despregar
de suas partes.
180 http://zonabranca.blog.uol.com.br/.
Lígia Dabul – Professora adjunta do Departamento de Sociologia e do Programa
de Pós-Graduação em Ciência da Arte da Universidade Federal Fluminense, onde
coordena o Núcleo de Estudos Cidadania, Trabalho e Arte. Desenvolve a pesquisa
“A criação artística como prática social”(CNPq). É também poeta; publicou os livros
Som (Rio de Janeiro, Editora Bem-Te-Vi, 2005) e Nave (São Paulo, Lumme Editora,
2010), e a plaquete Algo do Gênero (São Paulo, Arqueria Editorail, 2010).
181 http://cantarapeledelontra.blogspot.com/.
182 http://www.quartosescuros.bloguespot.com/.
183 http://www.literaturanobrasil.blogspot.com/.
184 Ver por exemplo, nesse blogue, poema de Adélia Prado ao lado de pintura de W.
Kandinsky http://fotolog.terra.com.br/talisandrade:559.
185 http://www.revistazunai.com/.
186 http://www.panoramadapalavra.com.br/.
187 Ver Cid Campos “Processos artítico-criativos na evolução tecnológica:
música/poesia e outras artes”. In Barbosa, Ana Mae Barbosa e Amaral, Lilian (orgs.).
Interterritorialidademídias, contextos e educação. São Paulo: Editora Senac/Edições SescSP, 2008.
188 http://www.erratica.com.br/.
156
189 http://www.erratica.com.br/opus/74/index.html.
190 http://www.erratica.com.br/opus/89/index.html.
191 http://www.lau-siqueira.bloguespot.com/.
192 O Poesia Sim, http://www.poesia-sim-poesia.bloguespot.com/, é apresentado
FRPR ȢXP HVSD©R GH FULD©¥R H EUHYHV UHˊH[·HV VREUH R IDWR VHPSUH GHVDˉDGRU GD
Poesia e seus processos dentro da Literatura e dos contextos culturais”.
193 No Complete a Frase http://www.completeafrase.blogger.com.br/, a escritora
registra: “Rosana Caiado Ferreira nasceu no Rio de Janeiro em 1977. É roteirista,
colunista do MSN Mulher e está escrevendo um livro.”
194 http://www.pseudonimos.blogger.com.br/.
195 Claudia Roquette-Pinto tem diversos livros publicados. Com Corola (São Paulo:
Ateliê Editorial, 2001) recebeu o Prêmio Jabuti de Poesia 2002. Publicou recentemente
o livro infantil Botoque e Jaguar: a origem do fogo (Rio de Janeiro: Língua Geral, 2009). É
também tradutora. O blogue “oui! à l’inspiration” não está mais na rede.
Sobre a autora
157
POR UMA TEORIA
DO DISPOSITIVO NA ARTE
OU DA ARTE COMO TECNOLOGIA
Luiz Cláudio da Costa
Universidade Estadual do Estado do Rio de Janeiro
Em 1972, Anna Bella Geiger produziu, junto com alunos do MAMRJ (localizado no Centro da cidade do Rio de Janeiro), uma vivência
corporal com a terra em local distante e inabitado à época. Realizado
158
na Barra da Tijuca, o trabalho foi apresentado no Museu carioca na
forma de registros em imagens sob o título Circumambulatio. No
conjunto exposto, a expressão apresentava-se fragmentada em dois
atos: as ações, vivenciadas em local exterior ao Museu e em tempo
cronologicamente anterior à exibição; a instalação, produzida com os
UHJLVWURV IRWRJU£ˉFRV H I¯OPLFRV $ IUDJPHQWD©¥R GD LQVWDOD©¥R SRGLD
WDPE«PVHUSHUFHELGDQDYDULHGDGHGRVVXSRUWHVXWLOL]DGRVIRWRJUDˉD
DXGLRYLVXDO ˉOPH VXSHURLWR WH[WR HQWUHYLVWDV 2 WUDEDOKR PRVWUDYD
interesse nos problemas simbólicos e arquetípicos vivenciados pelo
corpo (a questão do “centro”), mas sua divisão espacial, temporal e
material revelava uma expressão disjuntiva à qual se prestava a questão
conceitual do enquadramento institucional. A arte estava agora dividida
entre o exterior como lugar das ações e o interior como um dos lugares
de apresentação.196
Esta forma disjuntiva da expressão artística – as ações em
OXJDUHV HVSHF¯ˉFRV H D DSUHVHQWD©¥R QD IRUPD GH UHJLVWURV GLYHUVRV
ȝ « FDUDFWHU¯VWLFD GD SURGX©¥R FRQFHLWXDO TXH UHˊHWLX DV FRQGL©·HV
159
do discurso e da prática de arte. Quando ainda na forma da ação, os
por modos discursivos que operam subjetiva e produtivamente nos
trabalhos podiam exibir certa independência do lugar institucional
indivíduos e na coletividade pertence à teoria dos dispositivos.197
de exposição. No momento em que eram exibidos para o público, eles
UHˊHWLDP D WHQV¥R GH VXD GLYLV¥R H R HQTXDGUDPHQWR LQVWLWXFLRQDO
que determinava sua condição de arte. Na produção, na teoria, bem
como no pensamento crítico contemporâneo, a compreensão da
importância do condicionamento e enquadramento institucional do
que experimentamos como arte tem sido fundamental. É preciso dar
QRYRSDVVRQHVVDUHˊH[¥RHFRPSUHHQGHUTXHDDUWHQ¥R«DSHQDVXPD
instituição que enquadra e condiciona, mas também um dispositivo
que pode produzir suas próprias desterritorializações, conduzindo os
signos e os acontecimentos do mundo atual por lugares e tempos
não necessariamente determinados. As disjunções – material espacial,
temporal e técnica – de certa produção artística contemporânea revelam
um modo particular da movimentação do sentido, um interesse nas
possibilidades das transferências de imagens e signos entre ambientes
160
e suportes variados. A arte tornou-se uma tecnologia bastante singular
FRP R SRWHQFLDO GH SURPRYHU GHVORFDPHQWRV QD HVWUDWLˉFD©¥R
dos sentidos, produzindo e fazendo circularem diferenciações nas
VLJQLˉFD©·HV H[LVWHQWHV QR PXQGR $ H[SUHVV¥R SURGX]LGD SHOD REUD
contemporânea parece tornar-se um resultado, uma síntese desses
múltiplos deslocamentos e diferenciações.
Este artigo tem o propósito de pensar esse lugar em que a arte
sendo uma instituição, a ela não se reduz. Trata-se, portanto, de pensar
a função social da arte como tecnologia produtora de subjetividades,
de corpos e modos de vidas que possam expandir as determinações
previstas pelas instituições e pelos biopoderes contemporâneos que
controlam nossas experiências com o mundo. Ainda que a Teoria
Institucional da Arte tenha tido suas origens numa vertente distinta
GDVEDVHVWHµULFDVTXHIXQGDPDVUHˊH[·HVFRQWHPSRU¤QHDVVREUHRV
dispositivos, o problema de uma instituição fortemente territorializada,
materializada em lugares determinados de visibilidade e estabilizada
(QTXDQWRDTXHVW¥RGRGLVSRVLWLYRDSDUHFHHVHPRGLˉFDDRORQJR
da trajetória do pensamento do historiador francês Michel Foucault, a
7HRULD ,QVWLWXFLRQDO GD $UWH VXUJLGD HQWUH ˉOµVRIRV QRUWHDPHULFDQRV
WHP VHXV IXQGDPHQWRV WHµULFRV QD ˉORVRˉD DQDO¯WLFD )RUWHPHQWH
movida pelos problemas conceituais que promoviam o retorno das
problemáticas de Duchamp mediante as produções do Fluxus e
da pop art, a Teoria Institucional da Arte desenvolveu-se a partir de
proposição feita por Arthur Danto em The Artworld, ensaio publicado
em The Journal of Philosophy em 1964. Nesse artigo, Danto já enunciava
o paradoxo que acompanharia seu pensamento por muito tempo: o que
distingue a Brillo Box de Andy Warhol para que ela seja considerada arte
quando outra caixa, semelhante do ponto de vista material e perceptivo,
HQFRQWUDGDQRVVXSHUPHUFDGRVQ¥RRVHMD"$GHˉQL©¥RGRˉOµVRIRGD
arte naquele momento, ainda que rejeitada em seus livros posteriores,
foi a seguinte: “Para ver alguma coisa como arte é necessário algo
que o olho não pode discernir – uma atmosfera de teoria artística, um
conhecimento da história da arte: um mundo de arte”.198
8PDGHFLV¥RQRLQWHULRUGRPXQGRGDDUWHGHˉQLULDXPREMHWRFRPR
arte. Segundo as argumentações de Danto em “The Artworld”, um novo
“predicado relevante” para distinguir obras de arte só surge quando um
artista determina que assim o seja. Em 7UDQVˉJXUD©¥RGROXJDUFRPXP
(1981), entretanto, Danto desvia daquele deslize indesejado emitido em
1964, preferindo defender, então, que o objeto de arte expressa uma
LGHLD2ˉOµVRIRYROWDDVHXSDUDGR[RVREUHREMHWRVLQGLVFHUQ¯YHLVGR
SRQWRGHYLVWDPDWHULDOHSHUFHSWLYRPDVUHMHLWDRDUJXPHQWRTXHDˉUPD
VHUVXˉFLHQWHȢDGHFODUD©¥RȣYLQGDGRLQWHULRUGRPXQGRGDDUWHSDUD
GHˉQLUXPREMHWRFRPRDUWH3DUD'DQWRK£FDUDFWHU¯VWLFDVDLQGDTXH
não do próprio objeto (formais, materiais, estéticas), que permitiriam tal
discernimento – os atributos semânticos vinculados aos atos do artista
e às ideias que o objeto expressa.199
161
Foi George Dickie quem estabeleceu os termos e os caminhos
em suas argumentações sobre as vanguardas – uma negativa, outra
principais da vertente institucional da teoria da arte norte-americana em
positiva – foram capazes de criticar a arte enquanto instituição, pois os
VHXDUWLJRȢ'HˉQLQJ$UWȣSXEOLFDGRHPQRAmerican Philosophical
dois falaram de dentro da instituição e, portanto, sem distanciamento.
Quaterly. Seguindo a trilha traçada por Danto em “The Artworld”, Dickie
Bürger defende o argumento, em consonância com Althusser, de que a
DˉUPD TXH V¥R FHUWDV GHFLV·HV GH DUWLVWDV RX GH RXWURV VXMHLWRV GD
categoria “arte como instituição” não teria sido de fato inventada pelos
instituição os fatores responsáveis pela determinação de um objeto
movimentos de vanguarda, mas acrescenta, contudo, que essa categoria
como arte. Nas palavras do autor: “Um trabalho de arte no sentido
só se tornou reconhecida depois que os movimentos de vanguarda
descritivo é (1) artefato (2) sobre o qual uma sociedade ou um subgrupo
criticaram o status de autonomia da arte na sociedade burguesa
de uma sociedade conferiu o status de candidato para apreciação”.
desenvolvida.205
200
Dickie elabora sua teoria institucional com maior desenvoltura
no livro Art and the Aesthetic, de 1974,
162
(PERUDVHSRVVDLQIHULUXPDLQVSLUD©¥RPDWHULDOLVWDQDVGHˉQL©·HV
voltando a usar o termo
propostas pela Teoria Institucional da Arte nos Estados Unidos, a base
ȢDSUHFLD©¥Rȣ 2 ˉOµVRIR UHFHEHU£ FU¯WLFDV GH DOJXQV WHµULFRV HQWUH RV
GH VXD PHWRGRORJLD IRL D ˉORVRˉD DQDO¯WLFD YHUWHQWH GR SHQVDPHQWR
TXDLV 'DQWR TXH EXVFDYD GHVHQYROYHU FRQFHLWRV SDUD GHˉQLU D REUD
FRQWHPSRU¤QHRTXHUHLYLQGLFDDLGHLDGHTXHDˉORVRˉD«DQ£OLVHȝD
de arte com independência das noções provenientes da estética.
DQ£OLVHGRVLJQLˉFDGRGRVHQXQFLDGRVGHOLQJXDJHPTXHUHGX]RVHQWLGR
Danto creditou a fórmula de Dickie da “apreciação das qualidades”
ao entendimento dado na proposição como lógica. Historicamente, a
como demasiadamente condicionada aos aspectos estéticos. Isso
ˉORVRˉD DQDO¯WLFD VXUJH QD ,QJODWHUUD FRP %HUWUDQG 5XVVHOO H HVWDYD
Q¥R VLJQLˉFD GL]HU TXH HOH UHMHLWH D LGHLD GH TXH XP REMHWR VHMD
estreitamente relacionada aos desenvolvimentos da lógica formal
H[SHULPHQWDGR HVWHWLFDPHQWH $R FRQWU£ULR DSHQDV DˉUPD TXH SDUD
GD PDWHP£WLFD PRGHUQD 2XWUD IRQWH GHVVD YHUWHQWH ˉORVµˉFD IRL R
podermos experimentar algo esteticamente é preciso que saibamos
SRVLWLYLVPR OµJLFR GR &¯UFXOR GH 9LHQQD HVSHFLDOPHQWH D ˉJXUD GH
antes se se trata ou não de um objeto de arte, ou seja, é preciso que
:LWWJHQVWHLQ 2 FDPSR GD ˉORVRˉD DQDO¯WLFD RULHQWRXVH WDPE«P
já se tenha estabelecido a distinção.
George Dickie incorporou as
por outro lado, para a direção da lógica da linguagem comum. Nesse
críticas e insistiu na categoria do trabalho de arte autônomo das ideias
VHQWLGRDȢOµJLFDȣQDˉORVRˉDDQDO¯WLFDGHYHVHUHQWHQGLGDHPVHQWLGR
provenientes da estética, formulando de modo mais preciso sua teoria
amplo e não apenas como teoria das linguagens formais. Ela engloba
da arte como instituição. Em The art Circle: a theory of Art (1984),
o
os problemas da natureza da proposição bem como da constitução do
ˉOµVRIRGHˉQLXHQW¥RȢRWUDEDOKRGHDUWHFRPRDUWHIDWRGRWLSRFULDGR
VLJQLˉFDGR'HVVHPRGRDOµJLFDGHYHVHUSHQVDGDWDPE«PFRPRXPD
para ser apresentado ao público de arte”.204
semântica.
202
201
203
Seria interessante notar que o livro de Peter Bürger Teoria da
1¥R REVWDQWH R REMHWR GD ˉORVRˉD DQDO¯WLFD « D OLQJXDJHP
vanguarda, estava sendo publicado na Alemanha no mesmo ano em
segundo a forma da proposição lógica. A proposição revela um saber
que Art and the Aesthetic era lançado nos Estados Unidos. O autor
TXHHQXQFLDXPDLGHQWLGDGHLVWR«XPVLJQLˉFDGRM£FRQKHFLGRSHOD
alemão havia formulado o tema da relação arte e instituição relendo
proposição estudada na origem. É verdade que há perspectivas distintas
as avaliações de teóricos marxistas, especialmente Lukács e Adorno,
QRLQWHULRUGDˉORVRˉDDQDO¯WLFD1XPDYHUWHQWHDDQ£OLVH«YLVWDFRPR
sobre as vanguardas. Segundo Peter Bürger, nem Lukács nem Adorno
o procedimento que revela a natureza da linguagem, determinando
163
a relação entre os signos linguísticos e a realidade, examinando a
GHDUWHGLVMXQWLYRȝGHFRPSRVWRHPWH[WRVIRWRJUDˉDVGRFXPHQWRVHWF
estrutura da linguagem. Em outra tendência, a análise tem por objetivo
– não é, porém, simples proposição lógico-analítica, pois o sentido na
SURGX]LUHVFODUHFLPHQWRˉORVµˉFRVREUHDVSHUSOH[LGDGHVJHUDGDVQRV
arte se constitui como síntese, coagulação e acúmulo de sensações e
diferentes campos da experiência humana.
Ainda que haja sutilezas
HPR©·HV‹YHUGDGHTXHDFRQWULEXL©¥RUHˊH[LYDGDYHUWHQWHDQDO¯WLFD«
H GLIHUHQ©DV D DQ£OLVH SURSRVWD SHOD ˉORVRˉD DQDO¯WLFD WHQGH D XPD
considerável, especialmente a crítica às noções modernas de unicidade
tautologia dada na e pela proposição lógica que é distinta da frase
formal e material da obra e a inclusão do regime de enunciados verbais
JUDPDWLFDO2VHQWLGRSDUDDˉORVRˉDDQDO¯WLFD«VHPSUHXPDGLPHQV¥R
na arte. A multiplicidade de suportes, meios e técnicas na produção
GDGHVLJQD©¥RRXGDVLJQLˉFD©¥RHLQGHSHQGHGDH[SHUL¬QFLD
artística não denota puramente uma análise.
206
164
A noção de análise é decomposição que separa um complexo
Desde os anos 60, a obra contemporânea tem-se caracterizado
qualquer em suas partes simples constitutivas. Numa acepção
por certa disjunção material, seja em sua divisão entre ações e
moderna, a diferença entre o analítico e o sintético remonta a Kant, que
documentações, seja em sua tendência a diferenciar-se e multiplicar-se
GHˉQLXRSULPHLURJUXSRGHMX¯]RVFRPRDTXHOHVTXHV¥RSURGX]LGRV
em diversos meios. Entre 1968 e 1972, Marcel Broodhaers desenvolveu
independentemente da experiência, ao passo que o juízo sintético
XPDˉF©¥RVREUHRPXVHXDWUDY«VGDFULD©¥RGHXPGHSDUWDPHQWRGDV
FRQVWLWXLVH QD H FRP D H[SHUL¬QFLD $ GHˉQL©¥R TXH D ˉORVRˉD GD
águias com 12 seções. Seu Museum of Modern Art, Eagles Department
arte com base analítica e, especialmente, a teoria institucional da arte
opera análise paródica da situação curatorial que esvazia o sentido de
atribuem ao trabalho de arte não aborda o momento sintético crucial
FODVVLˉFD©¥RGHWRGDIRUPDGHFROH©¥R1DPXOWLSOLFLGDGHGHPHLRVH
da constituição do sentido no campo da arte, mesmo que a proposição
PDWHULDLVTXHXWLOL]DȝIRWRJUDˉDVSDODYUDVWH[WRVSURMH©·HVREMHWRV
artística seja materialmente analítico-disjuntiva. A oposição entre o
todos marcados pela insígnia “Fig.” – é impossível encontrar uma lógica
analítico e o sintético não pertence ao campo da arte. Mesmo quando o
SDUD R VHQWLGR GHVVD RUGHQD©¥R 6RE D SHUVSHFWLYD GH XPD UHˊH[¥R
trabalho de arte analisa, ele o faz como dimensão de uma experiência
voltada para o problema da heterogeneidade de todo meio, Rosalind
do corpo e da sensação. A sensação – voltada, segundo Gilles Deleuze,
Krauss analisa essa multiplicidade em Broodthaers não como mera
por um lado, para o sujeito (o sistema nervoso, o temperamento, o
GLVSHUV¥RSRLVDFRQGL©¥RGHVHXWUDEDOKR«DȢHVSHFLˉFLGDGHGLIHUHQFLDOȣ
instinto) e, por outro, para o objeto (“o fato”, o lugar, o acontecimento) –
de todo meio.208&RPHIHLWR%URRGKDHUVHQFRQWUDHVVDHVSHFLˉFLGDGH
tem um caráter irredutivelmente sintético: toda sensação é “sensação
GLIHUHQFLDO QD ˉF©¥R PHLR H[SUHVVLYR TXH DWUDYHVVDY£ULDV W«FQLFDV H
acumulada”, “sensação coagulada”.
VXSRUWHVSRUPHLRGRVTXDLVHOHSURGX]VHXPXVHXˉFW¯FLR$ˉF©¥RQ¥R
207
Vários trabalhos da fase originária da produção artística que
ˉFRX FRQKHFLGD FRPR &U¯WLFD ,QVWLWXFLRQDO FRQVWLWXHP HVSD©RV
SRGHˉ[DUVHHPXPDW«FQLFDRXOLQJXDJHPRXVHMDQ¥RWHPVHXOXJDU
necessariamente na literatura.
disjuntivos, cumulativos, serializados, isto é, procedem por divisões
A obra de arte contemporânea é, portanto, um modo de expressão
e decomposições que promovem análises do sistema da arte. Certos
singular justamente porque na disjunção promove sínteses e conjugações
artistas da crítica institucional de base analítica consideraram a obra
transversais. Mesmo quando a expressão procede por análise disjuntiva,
uma proposição lógica – artistas vinculados à publicação britânica Art
separando regimes expressivos, distinguindo séries, dividindo a obra
& Language, bem como o norte-americano Joseph Kosuth. O trabalho
em técnicas e meios heterogêneos, a síntese é solicitada no processo da
165
leitura. Outro trabalho disjuntivo importante desse período de crítica
e técnicas, etc. O sentido que a obra de arte constitui produz-se como
institucional é a instalação sem título que Michael Asher propôs para a
corpo que sintetiza, acumulando sensações, matérias, impressões, ideias
exposição The museum as site, no Museu do Folclore em Los Angeles. O
que atravessam estratos, saberes, dimensões, meios, diferenciando-se
trabalho de Asher que se desdobrava em uma parte interna, na parede
em cada passagem. A obra em certa produção contemporânea é um
do pátio de entrada do museu, e em outro componente exterior ao
composto de ações e documentos, acontecimentos e imagens, afetos
museu, num jardim, possuía basicamente três partes: (1) no jardim do
e materialidades, percepções e ideias, sentimentos e contextos.
museu, Asher recolocou uma placa que havia sido roubada do parque
Desmaterializado em ações físicas e em imagens, em imagens-
nos arredores com a inscrição “os cães devem estar seguros por correias.
GRFXPHQWRV H LPDJHQVˉJXUDV R WUDEDOKR H[SRVWR GLDORJD FRP R
Ord. 10309”. (2) No painel da entrada principal do museu, usado para
dispositivo material (galeria, livro, revista, DVD, internet, etc.) e com o
GLYXOJD©¥RGHHYHQWRVDˉ[RXXPPDSDHPTXHLQGLFRXDORFDOL]D©¥R
contexto social em que aparece. A disjunção não desenvolve um corpo
da placa no jardim. Junto a esse mapa, colou um cartaz colorido do
orgânico, pois as partes repetidas circulam e diferenciam-se nos meios
ˉOPH The Kentuckian, estrelado por Burt Lancaster, além de uma
diversos em que aparecem, podendo desse modo abrir os sistemas por
IRWRJUDˉDHPSUHWRHEUDQFRFRPDPHVPDFHQD1DSDUWHLQWHUQD
onde passa. Profanando os dispositivos e sistemas, a obra pode produzir
do museu, havia uma tela pintada por Thomas Hart Benton e doada
ações e pensamentos ainda não formados.
pelo próprio Lancaster. Parece que não havia qualquer indicação de
que estava ligada aos outros elementos da instalação de Asher. Esse é
166
um trabalho materialmente disjuntivo que analisa as operações da arte
como instituição para permitir que o espectador, como bem reconheceu
Benjamin Buchloh, “reunisse e sintetizasse os vários elementos de sua
instalação”.209
Se a obra de arte contemporânea é extraestética isso não se deve
ao fato de ela operar com proposições lógicas autorreferenciais sobre
seu próprio sistema, mas antes porque sua estratégia de fronteira separa
e conjuga diversos meios, técnicas, materiais, impressões, documentos,
D©·HV ȝ HQˉP DFXPXOD EORFRV KHWHURJ¬QHRV GH VLJQRV VHQVD©·HV
imagens. Desse modo, o que ocorre nessas obras é uma articulação
entre signos-documentos, imagens-sensações e relações expressivas –
um regime ativo na produção de modos de leitura e na constituição de
sentidos. A lógica da obra de arte contemporânea é estar na fronteira,
estratégia que lhe permite separar, mas também conjugar; distinguir,
mas também conectar; repetir para se diferenciar; diferenciar para criar
vínculos indeterminados, seja entre dois tempos descontínuos – o da
produção e o da recepção –, entre as sensações múltiplas, entre meios
***
A Crítica Institucional da Arte nos Estados Unidos não teve
VXDV EDVHV WHµULFDV QD )LORVRˉD$QDO¯WLFD FRPR D7HRULD ,QVWLWXFLRQDO
Benjamin Buchloh em seu artigo “Allegorical procedures: appropriation
and montage in contemporary art”, publicado na Artforum em 1982,
apresenta outras fontes, demonstrando que a leitura de Peter Burger já
havia sido digerida.210 Burger, em sua revisão das posições da Escola de
)UDQNIXUWFRQVLGHUDPDLVHˉFD]DQR©¥RGHDOHJRULDSURSRVWDSRU:DOWHU
Benjamin para iluminar certos aspectos do efeito estético dos trabalhos
da Vanguarda.211 No artigo “Procedimentos alegóricos”, Buchloh explora
as articulações entre as teorias modernas da montagem/colagem e
a noção de alegoria de Walter Benjamin para pensar as construções
estéticas no âmbito institucional, isto é, os trabalhos de arte que
revelam as condições materiais da instituição como ideologia. O autor
SHUFHEH TXH R VLJQLˉFDGR GR REMHWR DSURSULDGR « GHSUHFLDGR FRPR
ocorre com a própria mercadoria, sendo outro sentido a ele adicionado
como emblema. Analisando Ready-mades de Duchamp, trabalhos de
5DXVFKHQEHUJHGDSRSDUWRFU¯WLFRDˉUPDHPFRQVRQ¤QFLDFRP3HWHU
167
%XUJHUTXHHVVDSURGX©¥RIDOKDHPȢH[SOLFDUDVFRQGL©·HVHVSHF¯ˉFDV
conceitos de Michel Foucault operada por Crimp reduziu o problema
GHVHXSUµSULRHQTXDGUDPHQWRHGHVXDUHLˉFD©¥RFRPRDUWHQRLQWHULRU
da instituição Arte às formas espaciais e discursivas do saber, ou seja,
da estrutura institucional do museu, da ideologia do modernismo e
do arquivo moderno da arte. Além de ter sido arquivista, voltando
da forma de distribuição da mercadoria”.
Em vista dessa restrição,
seus estudos para uma arqueologia do saber, Foucault produziu várias
Buchloh privilegia os trabalhos contemporâneos de Michael Asher,
pesquisas genealógicas sobre o poder, sendo Vigiar e punir uma das
Marcel Broodhaers, Dan Graham, Hans Haacke e Lawrence Weiner, em
mais citadas. Contudo o que interessa ao crítico norte-americano em seu
cujas propostas percebe “tanto o indício de uma revisão do contexto
DUWLJRȢ2QWKHPXVHXPȠVUXLQVȣ«FRPSUHHQGHUROXJDUGHFRQˉQDPHQWR
TXHGHˉQHRVLJQRGDLPDJHPTXDQWRXPDDQ£OLVHGRVSULQF¯SLRVGH
que dá visibilidade às produções artísticas, organizando-as de modo
estruturação do próprio signo”.
homogêneo no espaço expositivo e no discurso da história da arte. Dito
212
213
Dois anos antes da publicação de “Allegorical procedures”, em
1980, Douglas Crimp já havia apresentado em seu artigo “On the
museum’s ruins”, publicado na October, outras bases conceituais, não
analíticas, para pensar a relação entre arte e instituição.214 A revista
October foi fundada em 1976 por Rosalind Krauss e Annette Michaelson
para fazer frente à ortodoxia conceitual da hegemônica Artforum.
168
A nova publicação desejava incorporar conceitos vindos da teoria
pós-moderna francesa, especialmente de Foucault e Derrida. Desse
de outro modo, Crimp restringe a arte ao território da instituição, às
formações discursivas do arquivo moderno da arte, seus regimes de
visibilidade e de expressão. A arte, contudo, ultrapassa seu território,
o que as diversas tendências da arte pós-minimalista, contextual e in
situ têm mostrado. Isso porque a arte é antes um dispositivo e não
mera instituição. Enquanto instituição, ela é territorializante; enquanto
dispositivo, a arte é também tecnologia de desterritorialização, uma
técnica expressiva de produção de sentido e de subjetivação.
modo, a crítica institucional seria, no artigo de Crimp, objeto de uma
No artigo intitulado “O que é o dispositivo”, Gilles Deleuze217
interessante releitura. O crítico desenvolve uma análise do museu
esclarece que, segundo Foucault, o dispositivo tem quatro dimensões.
como pertencendo à instituição arte através de uma metodologia
Primeiro, o regime de visibilidade não é só pintura, mas arquitetura: o
inspirada em Arqueologia do saber, de Michel Focault: “A arqueologia
“dispositivo prisão” é a máquina óptica que permite ver sem ser visto.
de Foucault pressupõe a substituição das unidades do pensamento
2UHJLPHGHHQXQFLD©¥RGHˉQHXPFDPSRH[SUHVVLYRGLVFXUVLYRFRPR
KLVWRULFLVWD WDLV FRPR WUDGL©¥R LQˊX¬QFLD GHVHQYROYLPHQWR HYROX©¥R
os enunciados sobre a delinquência produzidos pelo direito penal. Em
fonte e origem por conceitos como descontinuidade, ruptura, limiar,
terceiro lugar, o dispositivo comporta as forças que dimensionam o
limite e transformação”.
SRGHUHSRUˉPDGPLWHSURFHVVRVGHVXEMHWLYD©¥RTXHGL]HPUHVSHLWR
215
Foucault analisou o hospício, a clínica e a prisão como instituições
PRGHUQDVGHFRQˉQDPHQWRHDORXFXUDDGRHQ©DDFULPLQDOLGDGHFRPR
as respectivas estruturas discursivas. Com base na análise arqueológica,
a proposta de Crimp era investigar uma “instituição similar de
FRQˉQDPHQWRȣRPXVHXHDKLVWµULDGDDUWHFRPRRVDEHUGLVFLSOLQDUTXH
lhe correspondia: “Elas são a precondição do discurso que conhecemos
como arte moderna.”216 Como se pode deduzir, a apropriação dos
a grupos ou pessoas. A subjetivação, sugere Deleuze, não é saber nem
um poder, mas processo que escapa tanto às forças estabelecidas como
aos saberes constituídos. Deve-se lembrar, a favor de Crimp, que à época
em que escrevia e publicava “On the museum’s ruins”, as questões
de Foucault sobre a subjetivação ainda eram muito novas e pouco
conhecidas entre os estudiosos norte-americanos. A primeira palestra
que Foucault proferiu nos Estados Unidos sobre essa questão, “Verdade
169
e subjetividade (Howison Lectures)” foi na Universidade da Califórnia,
em Berkeley, em 1980, ano da publicação do artigo de Crimp.
Na palestra em Berkeley, Focault insinua o novo campo em que
sua pesquisa deverá engajar-se: a genealogia do sujeito moderno.
O historiador argumenta que, para esse estudo, “temos de levar em
conta não apenas as técnicas de dominação, mas também as técnicas
do eu”.218 Foucault parece abrir-se à ideia de que a subjetivação do
tipo disciplinar e coercitivo permite resistências por processos de
transformações em que “o indivíduo age sobre si próprio”. “É sempre
XPGLI¯FLOHYHUV£WLOHTXLO¯EULRGHFRPSOHPHQWDULGDGHHFRQˊLWRHQWUH
técnicas que asseguram a coerção e processos por meio dos quais o eu
«FRQVWUX¯GRHPRGLˉFDGRSRUVLSUµSULRȣ219
O privilégio dado ao lugar não leva Crimp a uma investigação
dos processos de subjetivação através dos quais internalizamos e
PRGLˉFDPRV DV RUGHQV QR©·HV H SHUFHS©·HV GR GLVSRVLWLYR GD $UWH
170
Compreendemos apenas a homogeneização como função do “lugar”:
o museu ordena o heterogêneo da produção em arte. Ao mesmo
tempo em que dá visibilidade, disciplina essa mesma visibilidade,
homogeneizando aquilo que dá a ver. Nas palavras de Crimp:
E a história da museologia é a história das diversas
tentativas de negar a heterogeneidade do museu, de
reduzi-lo a um sistema ou a uma sequência homogêneos.
A fé na possibilidade de ordenar o ‘bric-a-brac’ do museu
(...) persiste ainda hoje.220
Como discurso de saber vinculado a estratégias de poder, a
história da arte, segundo Crimp tecida a partir do museu, forjou noções
como sujeito criador, gênero, obra, originalidade e autenticidade que
a tecnologia de reprodução da arte pós-moderna vai dispensar. Crimp
não localiza na subjetivação, entretanto, a possibilidade de resistência
a essas formas do saber institucional da arte.
4XDQWRDUHˊH[·HVQRLQWHULRUGDFU¯WLFDLQVWLWXFLRQDOTXHPPDLV
chegou perto dessa proposição foi Andrea Fraser em “From the Critique
of Institutions to an Institution of Critique”, publicado na Artforum em
2005. Nesse artigo a artista faz uma reavaliação da concepção de crítica
institucional no momento em que essa vertente do pensamento e da
SU£WLFDHPDUWHVFDQRQL]RXVHHUHFHEHFHQVXUDVGHWHUˉFDGRREVROHWD
'HDFRUGRFRP)UDVHUDSU£WLFDGDFU¯WLFDLQVWLWXFLRQDO«GHˉQLGDSRU
seu objeto aparente, “a instituição”, entendida primordialmente em
referência a lugares estabelecidos e organizados para a apresentação
da arte. A artista enxerga uma transformação de concepção que
começaria a emergir em 1969, o que levaria a crítica institucional a
compreender a arte como dimensão mais ampla no interior do campo
social. Fraser cita textualmente o trabalho de Michael Asher, Installation
Münster (Caravan) e argumenta que, para Asher, a institucionalização
da arte não depende apenas de sua localização dentro dos limites
físicos de um enquadramento institucional, mas de enquadres
“conceituais e perceptivos”. A instituição arte não é só institucionalizada
em organizações como museus e objetos de arte, ela é “também
internalizada e incorporada nas pessoas”.221
Para um entendimento da arte como “dispositivo” no sentido
pensado por Foucault seria necessário incluir esta outra dimensão
fundamental, a subjetividade. A obra de arte como tecnologia
produtiva (sintética) e não apenas como proposição analítica é a
SRVVLELOLGDGHGHˉUPDUUHVLVW¬QFLD¢VGHWHUPLQD©·HVVRFLDLVTXHKRMH
FLUFXODPYHOR]PHQWHHLGHQWLˉFDPRVVXMHLWRVSDUDRVTXDLVWUDQVIHUH
VLJQRV H FRPSRUWDPHQWRV GHWHUPLQDGRV HQˉP RV PRGRV GH YHU H
de viver desejados pelas sociedades globalizadas. O arquivo digital
contemporâneo – a formação de saber e as estratégias de controle
GRVLQGLY¯GXRVHGDFROHWLYLGDGHȝPRGLˉFRXVHHDLQVWLWXL©¥RDUWH«
PDLV PµYHO GR TXH MDPDLV IRL GHVGH D LQYHQ©¥R GRV PXVHXV QR ˉQDO
do século XVIII e início do século XIX. Ela é um produto da economia
globalizada, e seus lugares próprios de exposição e produção de
discurso já não se limitam aos museus, pois incluem também os centros
171
culturais sustentados por grandes bancos e empresas internacionais.
Assim os processos de subjetivação poderiam ser pensados de
A multiplicação dos mecanismos tecnológicos de reprodução da era
duas maneiras: (1) a subjetivação como tecnologia de determinação
digital permite transferências velozes de imagens que aceleram as
dos corpos e da subjetividade individual e coletiva – dos afetos, da
determinações e as escolhas dessa nova Instituição Arte. Pode-se dizer
percepção, das ações, do pensamento –, estratégia para disciplinar e
que atualmente a velocidade que permite o capital ser transferido de um
controlar os desejos e a vida segundo as necessidades dos poderes; e
lugar a outro da terra é a mesma que produz os desejos e as percepções
(2) a subjetivação como uma tecnologia de produção e deslocamento
dos indivíduos e das coletividades das cidades internacionalizadas.
dos afetos, visando aos espaços habitados por alteridades ainda
Trata-se, portanto, de saber como a quarta dimensão do dispositivo,
informes, cuja estratégia é a resistência produtora de modos de vida
desenvolvida na última fase do trabalho de Foucault, a subjetividade, é
não determinados. Se considerarmos que a obra de arte pratica sua
fundamental na arte hoje.
experiência de pensamento através de sínteses de sensações, mesmo
O tema da subjetividade é tratado por Foucault nos três livros da
História da sexualidade e em diversos Ditos e escritos, mas principalmente,
no vol. V da edição brasileira. Sua pesquisa volta-se, nessas publicações,
para o que ele chamou de “tecnologias do eu”. Seu ponto de partida
é a ideia de que as técnicas de dominação que ele havia estudado
172
não são as únicas formas de governabilidade, mas apenas algumas
das formas possíveis de governar pessoas nas sociedades. O governo
de si inclui outras técnicas: o autoexame, o exame de consciência e a
FRQˉVV¥R(PHistória da sexualidade 2: o uso dos prazeres, a “relação de
quando se divide analiticamente em partes que se desdobram
no interior de séries e modos de apresentação – como no caso dos
trabalhos de Broadthaers, Asher e Anna Bella Geiger aqui citados –
podemos considerar a arte tecnologia de subjetivação que participa dos
deslocamentos de sentido e da transformação nos modos de pensar e
viver. Considerada, portanto, para além de seu lugar institucional, a arte
pode promover práticas de si não normatizadas e deslocar camadas
de sentidos determinados pelas diversas instituições do mundo
contemporâneo.
si consigo” como um autogovernar-se dos gregos torna-se dimensão
Rejeitar a autonomia da arte e o formalismo estético das práticas
irredutível às relações de poder e às relações de saber. A grande
DUW¯VWLFDV PRGHUQDV Q¥R VLJQLˉFD QHJDU ¢ REUD GH DUWH VHX OXJDU
mudança de perspectiva se dá nesse segundo volume da História da
singular na produção de sentido. A mudança se dá na compreensão
Sexualidade posto que se trata de estudar “de que maneira o indivíduo
da obra como pura materialidade sensível, noção moderna da arte.
moderno podia fazer experiência dele mesmo enquanto sujeito de
Na concepção contemporânea, o trabalho é pensado como signo. A
uma ‘sexualidade’”.
Os modos de subjetivação se desenvolvem e se
materialidade é também signo e não pura forma. Sobretudo, o signo
transformam na história no interior das formas de saber e das práticas
artístico não é mera proposição analítica, nem o predicado de arte mera
de poder, mas as práticas de si são descontínuas historicamente, e seu
decisão institucional. Ainda que fraturado em vários meios e suportes,
potencial de resistência advém desse fato, pois ainda que recuperadas
o signo de arte produz sínteses nessa disjunção. Esta é sua forma de
pelas relações do saber/poder, elas se transformam e escapam
pensar: a experiência da tensão entre a ação do corpo que se fragmenta
FRQWLQXDPHQWH&RPRDˉUPD'HOHX]HȢDUHOD©¥RFRQVLJRQ¥RSDUDGH
nos diferentes contextos e o pensamento que sintetiza o fragmentado
renascer, em outros lugares e em outras formas”.
no tempo e na imagem. Esse é processo que pode ser percebido pela
222
223
importância das séries nos trabalhos de vários artistas desde os
anos 70. A compreensão das condições institucionais que atribuem o
173
predicado de arte a um objeto não diz tudo sobre o ato de sentido na
Notas
arte. Não basta voltar-se tautologicamente para a explicitação dessa
predicação. Arthur Danto compreendeu a circularidade presente na
WHRULDLQVWLWXFLRQDOHSRULVVRUHFXVRXVHDGHˉQLUDREUDGHDUWHVHJXQGR
as decisões operadas no interior do enquadramento institucional. De
acordo com seu ponto de vista, a obra de arte se distingue de um objeto
semelhante – a Brillo Box de Warhol comparada a uma caixa idêntica
na prateleira do supermercado – pela ideia que expressa, por seu ato
singular de constituição de sentido no mundo. A ideia, sugere Danto,
não está na obra materialmente, mas naquele que a interpreta, o que
VLJQLˉFDDˉUPDUTXHRSHQVDPHQWRRFRUUHQDUHOD©¥RFRPDREUD
O sentido, seguindo a acepção de Gilles Deleuze em seu livro
A lógica do sentido,224 é relação: o acontecimento que se produz na
fronteira entre a expressão e o estado de coisas. A obra de arte acontece
entre a matéria e o tempo, entre os corpos e o pensamento, ou seja,
174
a condição da obra de arte é a produção de subjetividade (individual
ou coletiva). Essa é a condição política sobre a qual a obra investe
196 Para compreensão mais extensa do trabalho da artista, ver Jaremtchuk, Dária.
Anna Bella Geiger: passagens cariocas. São Paulo: Edusp, 2007.
197 Michel Foucault utilizou o termo “dispositivo” em diversos de seus livros para
pensar um conjunto heterogêneo de forças e tecnologias de poder e de subjetivação.
*LRUJLR $JDPEHP H *LOOHV 'HOHX]H HVFODUHFHP H PRGLˉFDP SUREOHPDV YLVXDOL]DGRV
RULJLQDOPHQWH SRU )RXFDXOW 9HU $JDPEHP *LRUJLR 2 TXH « XP GLVSRVLWLYR" ,Q O
que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. Neste artigo, baseio
minhas proposições, principalmente, no ensaio de Deleuze. Ver Deleuze, Gilles. O que é
dispositivo. In O mistério de Ariana. Lisboa: Passagens, 1996.
198 Danto, Arthur. “The Artworld”. The Journal of Philosophy, v. 61, n. 19, 15.10.1964,
p.571-584.
199 Danto, Arthur. 7UDQVˉJXUD©¥R GR OXJDUFRPXP XPD ˉORVRˉD GD DUWH. São Paulo:
Cosac Naify, 2005. Nesse livro, Danto argumenta contra a Teoria Institucional que se
desenvolveu a partir de seu artigo de 1964, citando diretamente um dos principais
QRPHVȝ *HRUJH 'LFNLHȝ GR FDPSR TXH GHVSRQWDUD QR ˉQDO GD G«FDGD HP TXH IRL
publicado “The Artworld”.
'LFNLH *HRUJH 'HˉQLQJ $UW. American Philosophy Quartely, v.6, n 3, jul. 1969,
p.253-256.
201 Dickie, George. Art and the Aesthetic. New York: Cornell University Press, 1974.
para fazer surgir uma diferença no mundo. É seu modo de atuação
202 Danto. 7UDQVˉJXUD©¥RGROXJDUFRPXPXPDˉORVRˉDGDDUWH, op. cit., p.147.
prática na vida. A arte é, por um lado, instituição social e como tal
203 Dickie, George. The art Circle: a theory of Art. [cidade]: Haven Publications, 1984.
comporta conteúdos e expressões: lugares de visibilidade, modos
204 Apud. Erler, Alexandre. Dickie’s Institutional Theory and the openness of the
concept of art. Postgraduate Journal of Aesthetics, v.3, n.3, December 2006.
discursivos e subjetividades. Como instituição, os territórios da arte são
EHP GHOLPLWDGRV H WHQGHP D VH HVWDELOL]DU D FDGD QRYD PRGLˉFD©¥R
205 Bürger, Peter. Theory of the Avant-Garde. Minneapolis: University of Minnesota,
1996.
surgida, a cada novo predicado relevante sobre o conceito de obra. Por
206 Marcondes, Danilo. )LORVRˉDDQDO¯WLFD. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
outro lado, a desestabilização é possível enquanto a obra, os artistas
207 Deleuze, Gilles. Francis Bacon: lógica da sensação. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p.45.
individualmente e os agenciamentos coletivos enunciem diferenças que
desterritorializem a instituição e suas convenções. Na era dos arquivos
digitais e das técnicas de transferências, a obra de arte pode ser exposta
em diferentes dispositivos e contextos, o que permite que ela convoque
sujeitos, espaços e modos de exposição antes restritos à galeria e ao
208 Krauss, Rosalind. A voyage on the north sea: art in the age of the post-medium
condition. Nova York: Thames & Hudson, 1999.
209 Buchloh, Benjamin. Procedimentos alegóricos: apropriação e montagem na arte
contemporânea. Arte & Ensaios, Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais
EBA/UFRJ, ano VII, n. 7, 2000, p.187.
um território de determinações, um signo informe que toma diversas
210 Idem, ibidem. É preciso esclarecer que a primeira publicação nos Estados Unidos
de Teoria da Vanguarda de Peter Burger data de 1984, mas Benjamin Buchloh, sendo de
origem alemã, certamente leu o livro no original.
formas, ocupa diferentes meios, circula por várias camadas do saber e
211 Burger, Peter, op. cit, p.68.
da cultura, transforma-se no tempo.
212 Buchloh, Benjamin, op. cit., p.182.
museu. Este é seu novo potencial: um signo desterritorializado em
175
213 Idem, ibidem, p.183.
214 Crimp, Douglas. Sobre as ruínas do museu. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
215 Idem, ibidem, p.44.
O QUE A
ARTE FAZ?
216 Idem, ibidem, p.45.
217 Deleuze, Gilles. O que é dispositivo. In O mistério de Ariana. Lisboa: Passagens,
1996.
Luciano Vinhosa
Universidade Federal Fluminense
218 Foucault, Michel. Verdade e subjetividade (Howison Lectures). In Revista de
Comunicação e Linguagem. n. 19. Lisboa, dez. 1993, p.207.
219 Idem, ibidem.
220 Crimp, op. cit. P.50.
221 Fraser, Andrea. Da crítica às instituições a uma instituição da crítica. Concinnitas,
revista do Instituto de Artes da UERJ, ano 9, v. 2, n.13, dezembro de 2008.
222 Foucault, Michel. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro:
Graal, 1984, p.11.
1
223 Deleuze, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1991, p.111.
224 Deleuze, Gilles. A Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974.
É inevitável não perceber como uma parcela da arte de nossos dias
vem aos poucos perdendo o interesse social à medida que se rende ao
176
Sobre o autor
comércio dos objetos, tornando-se, com efeito, condescendente com o
mercado. O cenário é às vezes de desolador conformismo. São pinturas,
esculturas, instalações que, por mais críticas que se pretendam, não
Luiz Cláudio da Costa – Professor adjunto do Instituto de Artes – UERJ, desenvolve a
pesquisa “A gravidade da imagem: apropriação e repetição na arte contemporânea”
integrada a projetos que investigam problemas contemporâneos como tempo,
memória, dispositivos, práticas de apropriação e arquivamento, e, especialmente,
o emprego de diferentes tecnologias de reprodução e registro de imagem e som
nas artes plásticas.
PXGDPQHPGHVORFDPHPQDGDDIRUPDGHSURGX©¥RHRGHVWLQRˉQDOGR
objeto. As grandes feiras de arte que ocorrem mundo afora constituem
o retrato nu dessa realidade. Negligenciando o público interessado,
porém sem poder de compra, elas se endereçam diretamente aos
investidores e aos diretores das grandes instituições culturais. A
transferência dos produtos dos ateliês para as coleções privadas ocorre
ao mesmo tempo em que são aureolados pelo aval institucional. Com
esta manobra acrescenta-se ao produto a indispensável camada de
YHUQL] FXOWXUDO VXˉFLHQWH SDUD LQˊDFLRQDU R YDORU GH PHUFDGR GH XP
determinado artista. Com efeito, temos uma arte inócua do ponto de
YLVWDVRFLDOSRUTXHFLUFXODHPXPXQLYHUVRUHVWULWRHTXHDˉQDODVVXPH
uma forma artística que atende, às vezes com entusiasmo, à demanda
da especulação de capital, do mercado de decoração e do luxo,
conferindo prestígio e distinção a quem a possui. De outro lado, temos
177
XP DPDGRULVPR DYDVVDODGRU TXH EHQHˉFLDQGRVH GDV WHFQRORJLDV GH
mas de evidenciar a intrínseca relação entre as contingências sociais
ponta e das novas possibilidades de circulação que elas promovem,
e a capacidade que a prática artística tem de se reformular no devir
JHUDWRGDXPDUHGHGHEDL[RFRQVXPRTXHVHEHQHˉFLDGRGLVFXUVRGD
desses contextos.
democracia cultural. São imagens de todo tipo que nos fazem crer que
os tempos chegaram lá onde todo ser humano é um artista. Diante desse
TXDGURID]VHQHFHVV£ULRSHUJXQWDURTXHDLQGDSRGHHRTXHID]DDUWH"
2
A arte tal como a conhecemos pelo menos até a segunda metade do
178
(QWUHRFDPSRSURˉVVLRQDOIRUWHYROWDGRSDUDRPHUFDGRGHEHQV
século XX, como atividade autônoma que põe em cena um sujeito dotado
HSURGXWRVHXPPDUVHPˉPGHDPDGRULVPRTXHLQXQGDQRVVDYLGD
GHGRPȝRDUWLVWDȝHFXMRSDSHOVRFLDO«SURGX]LUXPEHPHVSHF¯ˉFRȝ
cotidiana, emerge aqui, bem perto de nós, um tipo de prática que coloca
a obra de arte – e que, a seu turno, deveria mobilizar sujeitos – o público
¢SURYDRVLJQLˉFDGRVRFLDOGRSUµSULRID]HUDUW¯VWLFRSRLVHVW£VHQGR
– aptos a julgá-la segundo as qualidades intrinsecamente artísticas do
FDSD]GHSURPRYHUVLJQLˉFDWLYRGHVORFDPHQWRQDVIRUPDVWUDGLFLRQDLV
objeto, não existiu sempre. Essa arte é, de fato, um produto histórico
de se produzir e de se destinar a arte. Trata-se de uma prática que,
que atende a certas conjunturas determinantes para emergência da
embora encontre resistência em ser percebida como arte, põe em
sociedade burguesa, percebidas pela primeira vez na Europa, mais
curso a experiência no lugar do julgamento; o fortalecimento das
precisamente no âmbito das democracias incipientes da península
subjetividades no lugar do fetiche do objeto; a participação no lugar
itálica no século XV.
da interpretação. Embora se possa alinhá-la com certa categoria que
vem sendo praticada mundo afora, não se pode, a meu ver, reduzi-la
rapidamente a um rótulo, antes seria necessário reconhecer o potencial
GHXPDSU£WLFDTXHQDVFHGHFRQWLQJ¬QFLDVVRFLDLVHVSHF¯ˉFDV
Sabemos que o Estado democrático burguês tem na liberdade
individual seu princípio fundante, mas essa liberdade mostra-se, na
ocorrência, de forma muito singular pelo viés da mobilidade social.
Nesse caso, pautando-se nas competências e habilidades de cada
Neste ensaio mostro que essas propostas, quando apontam para
indivíduo em particular, essa sociedade o promove como agente e,
DˊH[LELOL]D©¥RGDVKLHUDUTXLDVKDELWXDLVDEUHPQRYRVKRUL]RQWHVTXH
consequentemente, personalidade de projeção pública – qualidades que
podem recuperar para a arte parte do interesse social que vem perdendo.
lhe conferem poder e o fazem ascender social e economicamente, tudo
Recuperam também seu espaço político não porque as vejo implicadas
ao mesmo tempo. Claro, essa situação será estritamente dependente
abertamente em algum engajamento, mas porque inauguram um
da existência não só do espaço público, mas de sua efetiva construção
sensório comum ancorado no regime estético da arte. Nesse sentido,
pelos cidadãos. Espaço entendido aqui como rede de relações
traço, ainda que de forma esboçada, um arco histórico que mostra como
francamente urbana, em que os indivíduos, confrontados uns com os
as tradicionais posições dos sujeitos – artista e público – em relação
outros, podem circular livremente. Espaço que lhes disponibiliza acesso
ao objeto dessa prática – a obra de arte – emergiram e, agora, estão
ao conhecimento, aos bens simbólicos e aos de consumo. Aberto, com
sendo questionadas e deslocadas. Não se trata, no entanto, de associar
efeito, às opiniões, às críticas e aos gostos individuais; espaço que lhes
esse fenômeno ao esgotamento das narrativas históricas ocidentais,
179
VHUYHHQˉPGHIHUUDPHQWDSRO¯WLFD1HVVHVHQWLGRFRXEH¢DUWHHSRU
TXHGRLQ¯FLRSDUDRˉQDOGRV«FXOR;9DVFRQGL©·HVGHSURGX©¥RGR
consequência, aos artistas um papel crucial na invenção desse espaço.
artista tinham mudado. Observa que, se antes o valor do trabalho estava
A arte que adveio nessas condições liberais erigiu-se como obra225
entre duas entidades frontais, simétricas e interdependentes: artista e
público. Podemos apontar aqui alguns sintomas desse contexto apenas
observando alguns aspectos que assumiram a prática artística naquela
época. Baxandal226 chama atenção, primeiramente, para o fato de que
em meados do século XV em Florença, a educação regular, voltada
para a formação média do cidadão, enfatizava o ensino da geometria,
GD DULWP«WLFD H GD JHRJUDˉD YLVDQGR GHVHQYROYHU FHUWDV KDELOLGDGHV
no indivíduo. Se por um lado essas instruções preparavam o sujeito
SDUDXPDSURˉVV¥RSRVWRTXHWUDEDOKDULDSURYDYHOPHQWHQRFRP«UFLR
varejista, no qual se fundava grande parte da economia local), por
outro, puderam contribuir para a formação de um público para a arte.
De fato, a invenção da perspectiva linear e consequente redução do
180
espaço pictórico às relações aritméticas de proporção – o espaço dito
homogêneo – disponibilizou um método acessível, permitindo tanto
sua aplicação prática pelos artistas quanto o fornecimento ao cidadão
médio de um instrumento conceitual que o tornou apto a avaliar,
discutir e julgar o objeto segundo critérios de adequação artística
fundados nos padrões do espaço geométrico. A perspectiva, aliás, sendo
GLVSRVLWLYRGHGHPRQVWUD©¥RFLHQW¯ˉFDGHVGHVHXDGYHQWRIRLWDPE«P
objeto do gosto. Daí a necessidade de argumentação em torno da forma
mais adequada de executá-la; mas não só a perspectiva, também o uso
da cor, da luz, das massas e dos volumes foi objeto de controvérsias.
Alberti227 não nos deixa mentir quando, ao colocar-se de um ponto de
YLVWD SHVVRDO DˉUPDYDȢGLUHL DSHQDV R TXH ID©R TXDQGR SLQWRȣ S
e, mais à frente, alega que seu método de “colocar o ponto cêntrico e
daí traçar linhas até as divisões da linha de base do quadrângulo é o
melhor” (p.90). Adverte, no entanto, que, ao se servir da geometria, não a
tomará como um matemático: “[Peço], porém, ardentemente, que durante
toda minha dissertação considerem que escrevo essas coisas, não como
matemático, mas como pintor” (p.71). Baxandal,228 por seu turno, mostra
fundado no custo dos materiais empregados – o ouro, por exemplo, para
DV VXSHUI¯FLHV GRXUDGDVȝ M£ QR ˉQDO GR V«FXOR YDORUL]DYDVH PDLV D
habilidade. Nesse caso e segundo as próprias recomendações de Alberti,
eram mais prodigiosos os artistas que, no lugar do ouro para o brilho
intenso, chegassem a esse resultado pelo uso das técnicas da cor, de
tal forma que imitassem seu efeito luminoso: “[Há] os que empregam
muito ouro em suas histórias, pois pensam que isso confere majestade.
Não os louvo (...) pois há muito mais admiração e elogio para o artista
que imita os raios de ouro com as cores” (p.125). A essa altura, todo
XPYRFDEXO£ULRHVSHF¯ˉFRYLQKDVHQGRHPSUHJDGRSDUDDSRQWDUFHUWRV
predicados estéticos no objeto, a ponto de às vezes confundirem-se
com as qualidades associadas ao próprio artista, como gracioso, viril,
variedade, facilidade, este último para referir-se a uma execução ligeira
HVHPGLˉFXOGDGHV$SURGX©¥RGHPDVVDFU¯WLFDGLVFXUVLYDHPWRUQRGD
arte demarca bem a emergência de um discurso autônomo, de certa
forma disponível no campo social. É ainda de chamar atenção o fato de
que grande parte da arte, sobretudo a escultura e a arquitetura, tenha
VLGRSHQVDGDSDUDRVHVSD©RVDTXHRS¼EOLFRDˊX¯DEHPFRPRGHTXH
os projetos artísticos e os monumentos fossem objetos de concurso
público, como faz prova a porta do Batistério e o domo de Santa Maria
das Flores, disputados por Ghiberti e Brunelleschi. Não obstante, o
próprio espaço pictórico, a partir do artifício da fuga, coloca em cena
o homem citadino, ao inscrevê-lo no centro de sua representação pelo
efeito de contiguidade. Implicado nele pela ausência, esse se abre como
cena ilusória e se estende, através do prologamento imaginário da
perspectiva, no espaço real em que ele habita, abraçando-o. Esse breve
FRQWH[WRGHHYHQWRV«VXˉFLHQWHSDUDHOXFLGDUQ¥RVµDHPHUJ¬QFLDGD
ˉJXUDGRDUWLVWDHGRS¼EOLFRQRFDPSRVRFLDOFRPRDSRVL©¥RIURQWDO
que cada uma dessas instâncias deve assumir diante de obra de arte
que se insinua com veemência no espaço público nascente.
181
1RHQWDQWRHSDUDDYDQ©DUQRFDPSRGHUHˊH[¥RFRQWUDVWDGDODQ©R
Apesar de o projeto burguês que surge na península itálica ter
a hipótese de que esse homem público é forjado na arte renascentista
perdido fôlego em meados do século XVI, ele continuará a expandir-
como persona mais do que não será ainda o sujeito psicologizado da
VH D SDUWLU GR ˉQDO GR V«FXOR ;9,, QD )UDQ©D DLQGD TXH GH IRUPD
arte moderna nem mesmo o indivíduo que emerge com a sociedade
FRQˊLWXRVD DPSDUDGR QRV DXVS¯FLRV GD DULVWRFUDFLD FRQˉJXUDQGR
iluminista do século XVIII. Jung
esclarece que o termo “designa
aquilo que Hauser231 chama de arte cortesã. Embora a pintura e a
RULJLQDOPHQWHDP£VFDUDXVDGDSHORDWRUVLJQLˉFDQGRRSDSHOTXHLD
literatura se tenham emancipado mais prematuramente em relação à
GHVHPSHQKDUȣ S 7UDQVIRUPDQGRD HP FDWHJRULD DQDO¯WLFD DˉUPD
música,232HVVDVDUWHVWLYHUDPLJXDLVGLˉFXOGDGHVLQLFLDLVSDUDVHLPSRU
que a persona não passa de “máscara da psique coletiva, máscara que
todavia iriam cumprir papel-chave no processo de transformação
aparenta uma individualidade, procurando convencer aos outros e a
das mentalidades, crucial na transição de uma sociedade tradicional,
si mesma que é uma individualidade, quando, na realidade, não passa
IXQGDPHQWDGDQDHVWUDWLˉFD©¥RGHFODVVHVSDUDDVRFLHGDGHPRGHUQD
de um papel, no qual fala a psique coletiva” (p.32). A persona, assim
e democrática, pautada na liberdade individual. Hauser233 aponta, já no
GHˉQLGD UHSUHVHQWD XPȢFRPSURPLVVR GR LQGLY¯GXR FRP D VRFLHGDGH
período da Regência,234 alguns sintomas dessas transformações. A vida
acerca daquilo que alguém parece ser: nome, título, ocupação, isto ou
na cidade cintilava. Filipe de Orléans e o jovem rei deixam Versailles
aquilo” (p.32). Por outro lado, a hipótese que Baxandal levanta quando
para viver em Paris. Outros membros da nobreza encontram-se
sugere que a arte do QuatrocenttoLWDOLDQRHVWDYDFDOFDGDHPFRUHRJUDˉD
dispersos em castelos e palácios retirados, mas frequentam os teatros,
que remetia possivelmente a certas gesticulações bastante difundidas
bailes e salons da cidade. A aristocracia e a alta burguesia quase já
dos predicadores tanto quanto aos movimentos da dança, por exemplo,
não se diferenciavam nos hábitos que cultivavam e se frequentavam
nos é particularmente reveladora.
Se para o autor os movimentos
nas festas promovidas por esta última. Como consequência de fatores
da dança, o gestos teatrais, as convenções das posições das mãos nas
combinados, o interesse pela arte difundiu-se e ultrapassou as estreitas
representações assinalavam um contexto de recepção pautado em
circunscrições palacianas.
229
182
230
certas práticas, podemos supor, em contrapartida, o quanto essa arte
exercia também papel educativo, reorientando o sujeito quanto ao
comportamento no espaço social. Auxiliando-o no aprimoramento de
seu gestual e no esmero no emprego das etiquetas, a arte lhe poderia
fornecer o arsenal necessário para forjar sua persona, favorecendo-o
no desembaraço frente a uma sociedade principesca. Podemos deduzir
que a arte do Renascimento não só atendeu às demandas da sociedade
EXUJXHVDHPDVFHQV¥RFRPRDMXGRXDHGLˉFDUVHXVYDORUHV(QFRQWUDQGR
se em seus primórdios, no entanto, se realizará plenamente à medida
que essa sociedade avançar, auxiliando-a a construir-se modelarmente.
Primeiramente, o enriquecimento de certos setores da burguesia
aumentou consideravelmente o leque de colecionadores privados. Em
segundo lugar, o desenvolvimento de uma metodologia adequada
propiciou a aparecimento de uma história da arte,235 de certa forma
sistematizada, permitindo a organização das coleções privadas e,
posteriormente, dos museus. Os salões de arte, que vinham acontecendo
regularmente desde 1737, passam a contar com um público ampliado e
instituem-se como um dos principais eventos da vida cultural parisiense
e europeia. A despeito do mundo pré-moderno que a viu surgir, também
a crítica encontra-se, já no início do século XVIII, a meio caminho de
uma consciência moderna de arte.236 Finalmente, o incremento das
3
publicações e a consequente difusão do hábito da leitura favoreceu
sobremaneira a disseminação das ideias liberais.
183
-£QRˉQDOGRV«FXOR;9,,QD)UDQ©DRLPDJLQ£ULREDUURFRFRPWRGD
regras “naturais”240 que iriam ao encontro de um espectador apto a
a ideologia beatizante que o acompanha, é substituído pela exaltação
reconhecer o belo na justa medida que se colocasse entre “uma perfeita
à vida. Os temas, iluminados pelo gosto profano e que encontram
serenidade de espírito, concentração do pensamento e a devida atenção
SDUDOHORV QD SURGX©¥R ˉORVµˉFD GD «SRFD Y¥R GHVGH RV DSHWLWHV
ao objeto”.241 O tom geral, no entanto, é a propensão ao jogo, o qual pode
sensoriais à delicadeza do gosto; dos amores corteses aos da alcova;
ser tomado como exercício para o desenvolvimento da espiritualidade
da natureza hospitaleira e acolhedora à curiosidade pelo exótico e
humana.
GLVWDQWHGDFXULRVLGDGHFLHQW¯ˉFD¢LQWXL©¥RQDWXUDOLVWDGDGLVFLSOLQD
corporal ao comportamento social; do retrato à simples naturezamorta. Esses assuntos liberais e irredutivelmente mundanos, ainda que
estivessem inicialmente marcados pela afetação e o requinte do estilo
aristocrático, mais tarde vão encontrar no realismo e no naturalismo,
próprios ao gosto burguês, lugar privilegiado da expressão artística.
Hauser aponta Wateau como precursor desses ideais quando elimina
de suas pinturas toda alusão fantasiosa e tudo aquilo que não fosse
“concebido como uma simples e direta reprodução da realidade”.237
Mesmo a obra de um artista canônico como Boucher, marcada pelo uso
184
de clichês alegóricos e pelo tema mitológico, funda-se na observação e
na representação naturalista quando se debruça sobre os temas da vida
doméstica. A abordagem da intimidade, aliás, revela gosto nascente pela
SVLFRORJL]D©¥RGRVSHUVRQDJHQVWDOYH]SRULQˊX¬QFLDGDOLWHUDWXUDFXMR
gênero dominante é o romance.
Nessas condições, a criança passa a ser objeto de atenção particular
nas pinturas de um Chardin, por exemplo, porquanto ela representa
a passagem entre natureza e cultura, espaço privado e público que,
na época, se mostram como lugares absolutamente distintos,242 mas
interligados no processo continuado que desvela a socialização. Ali, em
posturas austeras e concentradas, as crianças se apresentam sempre
em situações de jogos, o que nos faz constatar o quanto a submissão
não só da mente, mas também do corpo a uma disciplina rigorosa
está sendo pensada como forma de preparação desse indivíduo para
o bom desempenho social. As pinturas de Chardin não se limitam a
representá-lo; prestam-se elas mesmas ao jogo. Em situação intimista
e compenetrada, alocadas em cenários interiores, o modo como suas
personagens se mostram ao público já o predispõe a uma atitude
diferenciada. Solicita acuidade de atenção primeiramente para discernir,
nos volumes dos corpos representados, a geometria precisa da qual faz
Por outro lado, a consciência de que somos integrados à natureza
uso o pintor. Em segundo lugar, sobre a superfície em que o olho oscila
pelo aspecto animal e dela distanciados pelo cultural conduz à
com vaguidão, ora se descobrem certas zonas mínimas onde o “ver” se
concepção de uma natureza humana que deve ser aprimorada e
aguça e ganha nitidez em cores claras e brilhantes, ora essas cores se
diferenciada pelo uso equitativo da razão, da moral e da sensibilidade.
esmaecem em tons esfumaçados e cinzentos, mergulhando a vista no
O gosto, que em Kant238 é uma instância dos livres jogos da imaginação,
silêncio introvertido da imagem.243 Todavia, o cenário doméstico, a casa
mas que, de alguma forma, restabelece o laço entre sujeito e sociedade
VLPSOHVRDIHWRHQWUHSDLVHˉOKRVDF«OXODIDPLOLDUWHPDVUHFRUUHQWHV
DWUDY«V GH VHX PRGR UHˊH[LRQDQWH H WUDQVFHQGHQWDO VH DSUHVHQWDULD
de suas pinturas, são também o apanágio de um ideal pequeno-burguês
em Hume
que ali se concretiza.
239
como um aspecto da delicadeza humana que deveria ser
cultivada para melhor se aplicar aos atos cotidianos de discernimento.
Em contrapartida, ao atender à demanda das faculdades intuitivas
do espírito, a arte, não pendendo ainda para a expressão radical da
subjetividade do artista, parece apresentar predisposição ao uso de
$DUWHGRURFRFµDLQGDTXHWLSLˉFDGDHVWLOLVWLFDPHQWHHGLVWDQFLDGD
GH XPD DWLYLGDGH HPDQFLSDGD GH IRUPD GLIHUHQWH GD ˉORVRˉD WUD]
consigo todo um arcabouço de ideias que pensam a dialética indivíduo
185
e sociedade e preparam as sensibilidades para as transformações
VLPEROL]D©·HV LQWHJUDP DTXLOR TXH SRGH VHU LGHQWLˉFDGR FRPR MRJR
que viriam. Elias,
TXDQGR WUDWD GD ELRJUDˉD GH 0R]DUW PRVWUD TXH
esses aspectos, que primeiramente atravessam a arte, desejavelmente
esse foi um artista à frente de seu tempo. Vivendo inicialmente sob a
deveriam permear toda a atividade humana. Por seu exercício, supera-se
proteção da corte de Salzburgo, encarnava, no entanto, o gênio, este
a barbárie e alcança-se a plenitude: “o ser humano brinca apenas onde
LGHQWLˉFDGRFRPDSU£WLFDDUW¯VWLFDOLEHUDOTXHVµYHULDDOX]GRVGLDV
ele corresponde plenamente ao conceito do ser humano, e ele é apenas
com as frentes românticas. Sofreu, por isso, com a insensibilidade de
completamente humano quando brinca”,246DˉUPD&XPSULQGRVHFRPR
seus mecenas aristocratas, que o tratavam como um artesão subalterno,
XPDˉQDOLGDGHHPVLDDUWHVHRIHUHFHFRPRPRGHORSDUDDYLGDTXDQGR
o qual, enquanto músico, deveria atender à demanda de um gosto
recupera, para ela, o sentido de totalidade e liberdade obscurecido pelo
convencional e canônico.
utilitarismo capitalista. O trabalho revigorado no prazer do puro jogo
244
Somente com a virada para o século XIX, pressionada pelas
WUDQVIRUPD©·HVUDGLFDLVQRVSURFHVVRVGHSURGX©¥R«TXHEHQHˉFLDQGR
se do exílio do mundo utilitarista, a arte reclamará autonomia. Só então
se poderá conceber como atividade emancipadora, voltada para a
produção do eu cujo pressuposto é tão somente a original expressão
da interioridade.
devolve ao homem a força de sua expressão. Também em Schlegel
e Novalis o ideal de uma sociedade estética parece condensar-se
na noção de arte menos como produto do que circunstância poética
imiscuída nas instâncias da vida. Schlegel “quer tornar a poesia vital e
sociável e tornar a sociedade poética”.247 Novalis, entusiasmado com a
revolução, queria que a energia revolucionária agisse na instância do
espírito para com ela forjar o mundo novo. Segundo esses autores, a
própria vida deve ser vivida, em sua realização máxima, como obra de
186
4
arte.
Se até então na arte acadêmica a ideia de expressão estava
2URPDQWLVPRTXHFRORFDGHˉQLWLYDPHQWHHPFHQDRsujeito, representa,
em sua postura antiburguesa, o ápice e o declínio do projeto burguês.
Percebendo que a sociedade de sua época vivia sob o imperativo da
utilidade, Schiller propõe a arte como alternativa a essa realidade que
avilta o homem. Escreve: “o jogo da arte deve – quando não superar –
pelo menos compensar essa lesão cancerígena na sociedade trabalhista
que torna o homem um fragmento, uma mera cópia de seu negócio”.245
A princípio encantado com as transformações em curso na França,
reavalia seu ponto de vista quando percebe a situação de descontrole
e selvageria para a qual suas forças foram canalizadas. Propõe então
que a arte ocupe o lugar da ação política para operar antes a revolução
estética. Em sua opinião, a transformação espiritual do homem
deve anteceder as mudanças exteriores. Se os rituais, os tabus e as
DVVRFLDGD¢VWLSLˉFD©·HVGHVHQWLPHQWRVLPSHVVRDLVFRPRFµOHUDGRU
alegria, paixão) que podiam ser remarcadas em suas representações, no
romantismo – e poderíamos mesmo dizer a partir do romantismo – é o
artista que se exprime. O conceito de um eu em oposição ao objeto ganha
sua força máxima na relação dinâmica que esse eu, paradoxalmente,
mantém com o mundo. Em situação contínua de experiência, o eu
se constrói como identidade singular que em si é, para Fichte, uma
potência criadora de mundos.248 Esse aspecto idiossincrático que entra
HPFHQDQDSU£WLFDDUW¯VWLFDYDLPRGLˉFDUGHˉQLWLYDPHQWHDUHOD©¥RTXH
artista e espectador vinham assumindo diante da obra de arte desde o
Renascimento. De fato, o artista romântico não mais se coloca diante
do mundo para o representar, mas antes para viver uma experiência.
Tampouco o observador encontra seu lugar diante de uma cena que se
abre para ele na medida e proporção do mundo real que habita. A obra
187
é, para o artista que a realiza, o meio de transferência dessa experiência,
por exemplo, e se emocionar com ele e por seu intermédio. Também a
por princípio intransitiva, mas que solicita do espectador tal agudeza de
DUTXLWHWXUD GD VDOD VRIUH WUDQVIRUPD©·HV VLJQLˉFDWLYDV $ VDOD HVFXUD
espírito, que só a alcança aquele que for tocado interiormente por ela.
isola cada espectador e o põe em relação intimista com o ator ou a
Portanto, a obra aqui é o lugar da experiência espiritual que o espectador
cena. A própria casa de espetáculo passa a ser lócus de uma experiência
partilha intimamente com o artista. Nessas condições, não é gratuidade
sublime. No Teatro Bayreuth, concebido por Wagner, os assentos estão
a preferência que artistas como Turner ou Caspar Friedrich demonstram
dispostos de tal forma que cada membro do público tem visão direta
não só pelo gênero, mas pela busca de inspiração na paisagem quando
da cena; a orquestra, mergulhada em um fosso e fora do ângulo de
realizam suas pinturas. A experiência direta com as forças da natureza
visão da plateia contribui para criar o “abismo místico”, necessário ao
expõe o homem a suas fragilidades e vulnerabilidades. É pondo à prova
funcionamento do espetáculo. O distanciamento que a atitude estética
os limites do racionalismo iluminista que o romantismo aproxima a
exige do espectador faz com que, em vez de se exprimir em público,
vida de seu aspecto mais obscuro e inefável.
como no século XVIII,250 viva suas emoções de forma contida através da
$RHQIDWL]DUDH[SUHVV¥RGRHXLQGLYLGXDOHPUHD©¥R¢PDVVLˉFD©¥R
provocada pelos processos racionais que passam a reger o mundo do
trabalho, a prática artística se verá aos poucos tragada por um efeito
perverso: o solipsismo da personalidade carismática. Esse processo é
188
acompanhado de contínuo emudecimento do público comum e, em
FRQWUDSDUWLGD GD HPHUJ¬QFLD GD FU¯WLFD SURˉVVLRQDO 5HGX]LQGR VXDV
proporções, recolhendo-se às salas de museus e galerias, instaurando
uma relação intersubjetiva, a obra de arte se propõe desde então a um
contato solitário, íntimo e silencioso com o espectador. Este se verá no
lugar daquele que realiza uma experiência altiva, muito singular, que
lhe exige abstração de espírito e atitude distanciada.
Sennett,249 estudando a sociedade francesa do século XIX,
mostra que, apesar da intensa urbanização, da vida metropolitana e
da ocupação das ruas pela multidão, o domínio público sofre naquela
«SRFD VLJQLˉFDWLYD UHWUD©¥R SRUTXH VH Y¬ LQYDGLGR VXELWDPHQWH
pela vida privada. Faz suas observações remarcando inicialmente as
transformações no comportamento que a cena teatral impõe a seu
público. Comparando-a com o teatro do século precedente, cujo texto se
elevava sobre a interpretação, mostra que, se naquele as personagens
HUDPWLSLˉFDGDVQRGHDJRUD«RDWRUTXHLPS·HVXDSHUVRQDOLGDGHDR
WH[WR7RGRVDˊX¯DPDRWHDWURQRV«FXOR;,;SDUDYHU/HPD°WUHHPFHQD
expressividade do ator: “aqueles que vão assistir ao livre jogo expressivo
do ator se preparam para um ato de apagamento e supressão de si”,
observa Sennett.251 O ator, mergulhado em si, interpreta para si como
se a plateia não existisse. Situação talvez similar àquilo que Michael
)ULHG LGHQWLˉFD FRPR R WUD©R PDLV FDUDFWHU¯VWLFR GD DUWH PRGHUQD D
antiteatralidade.252 Sennett faz a passagem do teatro para a esfera
pública mostrando como esse aspecto se transferirá para o campo
GD SRO¯WLFD QD ˉJXUD GR ¯GROR FDULVP£WLFR $R FRORFDU VXD DWXD©¥R
personalística à frente do texto que enuncia, o líder carismático reprime
as individualidades ao manipular os sentimentos de muitos homens
através de sua eloquência expressiva, convertendo-os em massa de
manobra. Ele toma como exemplo a meteórica ascensão de Lamartine
nas frentes revolucionárias de 1848. Servindo-se de discurso vazio,
permeado pela retórica poética, Lamartine impõe seu estilo suave
aos hábitos ruidosos do povo. Maltratando-a com palavras ofensivas,
humilhando-a publicamente, ele consegue calar os anseios da classe
operária e, dessa forma, submetê-la aos caprichos e equívocos de sua
personalidade forte. Malgrado a multiplicação dos meios de impressa,
o político carismático assimila o ator e tira proveito da incapacidade
de expressão pública das camadas populares quando as inibe. Se a
persona, que surge no Renascimento, representa a máscara social que
189
HVFRQGHRVXMHLWRDSHUVRQDOLGDGHFDULVP£WLFDSRGHVHUGHˉQLGDFRPR
5
o próprio eu que se exprime grandiloquente na esfera pública.
190
Essa vulnerabilidade do homem comum foi acompanhada, no
(PUHOHYDQWHVSURSRVL©¥RHUHˊH[¥R/\JLD&ODUNQRVDQRVFKDPDYD
domínio da arte, de progressivo crescimento da crença no superpoder
D DWHQ©¥R SDUD R QRYR SDSHO TXH R DUWLVWD GHYLD DVVXPLU 5HˉURPH
de expressão do gênio. Não fosse esse ideal o próprio sentido que
a Caminhando, “obra” em que a artista privilegia o ato poético, e ao
alimentou a concepção de uma arte romântica, talvez se tivesse mais
pequeno ensaio que a acompanha: “A propósito da magia do objeto”.253
bem concretizado no expressionismo abstrato norte-americano em
Em 1965, Lygia se perguntava qual era o papel do artista naqueles
meados do século XX. O artista emblemático é sem dúvida Pollock. Sua
dias e responde em seguida: “dar ao participante o objeto que em si
personalidade, sua vida privada, o alcoolismo, suas crises emocionais
mesmo não tem importância, e que só virá a ter na medida em que o
são inseparáveis de sua arte. Não se sabe bem o que é maior ou mais
participante agir”. Caminhando, para quem não sabe, consiste em uma
espetacular, se sua pintura ou sua conduta revelando sensibilidade
cinta de Moëbius, e a artista se limita a instruir o sujeito como executá-
diferenciada. À diferença do artista romântico que buscava a experiência
la em papel para, em seguida, pedir que a corte no sentido longitudinal
no mundo, o expressionista se basta em sua própria experiência
até onde não possa mais prosseguir. Assim, Lygia pretende oferecer
interior. Diante de tão grande implacabilidade expressiva cabe ao
ao executante uma experiência simples e direta, proporcionando-lhe
espectador a perplexidade de constatar sua afasia enquanto o crítico
a oportunidade de se concentrar totalmente na ação que realiza. No
SURˉVVLRQDOVHDUWLFXODDWUDY«VGHSUROL[RGLVFXUVRWHµULFRTXHMXVWLˉFD
OXJDUGHLQWHUSUHW£ORFDEHOKHUHˊHWLUVREUHVHXSUµSULRDWRHQTXDQWR
suas preferências de gosto.
age. Por isso é importante oferecer-lhe uma experiência gratuita de
que, depois de concluída, não reste outra coisa senão a lembrança
Se o expressionismo abstrato representa o momento privilegiado
daquela ação que se inscreveu em seu corpo, antes brutalizado pelo
daqueles poucos sujeitos que se exprimem no lugar de muitos, não é
pragmatismo do cotidiano. A artista oferece o Caminhando ao “homem
mera coincidência, no entanto, que o esplendor da cultura burguesa
cujo trabalho, cada vez mais mecanizado, automatizado, perdeu toda
tenha acontecido no século XX ao mesmo tempo em que a pintura
expressividade que tinha antes, quando o artesão dialogava com sua
vivia sua época de ouro. Se o triunfo da personalidade é seguido de
obra”.
perto pelo declínio do homem público, também a arte que se realiza
nos moldes dessa sociedade encontra seu limite quando não mais se
Essa tomada de posição, que a princípio recupera certos
investe de interesse social. Entretanto, e felizmente, na mesma medida
pressupostos do romantismo, vem acompanhada da necessidade de
em que a experiência do espectador foi sendo engolida pelo buraco
enfraquecimento da personalidade do artista e consequentemente
negro da personalidade grandiloquente, outros artistas estão operando
da implacável impositividade da obra a favor de maior liberdade do
LPSRUWDQWH LQˊH[¥R QR FRQFHLWR GH H[SHUL¬QFLD TXH DEULU£ QRYRV
ȢHVSHFWDGRUDXWRUȣ FRPR D DUWLVWD R TXDOLˉFD 0HVPR TXH WDO D©¥R
caminhos para se repensar a prática artística. No entanto, é necessário
não seja percebida como arte, através dela, ensina Lygia, o homem se
advertir o leitor apressado de que se trata menos de condenar aqui a
transforma e se aprofunda. “Ao mesmo tempo em que ele se dissolve
pintura do que de apontar o esgotamento de um modelo de prática que
no mundo, em que ele se funde no coletivo, o artista perde sua
ela ajudou a erigir.
individualidade, seu poder expressivo. Ele se contenta em propor aos
191
outros de serem eles mesmos e de atingir o singular estado de arte
O problema aqui não é saber se o pudor ou a dor pode nos atingir
sem arte”.
de alguma forma. Mesmo que a dor seja entre as experiências, uma
Quando Lygia chama o sujeito da ação de participante, não é mais
possível pensá-lo como espectador ou público, porquanto lhe cabe
experimentar em vez de julgar ou praticar um gosto. Também o artista,
percebido como entidade separada do público pela obra, se dissolve
na experiência que propõe. Com efeito, a frontalidade histórica que o
posicionava de um lado e o espectador de outro, tendo entre eles a obra,
tende a desaparecer senão por completo pelo menos na experiência
HVSHF¯ˉFD TXH UHDOL]DP MXQWRV 6RPRV WRGRV experienciadores.
Experiência, eis aqui o termo que une a arte do passado recente à do
presente.
das mais íntimas, todos já puderam experimentá-la e, portanto, podem
ressenti-la através de um registro que seja, ainda que alguns artistas
nos neguem até mesmo essa possibilidade. Ora, às vezes esquecemos
que cabe ao artista promover o trânsito de suas experiências ou pelo
PHQRVJHUDUXPUHJLPHGHVHQVLELOLGDGHSDUWLOKDGDLGHQWLˉFDGRGHVGH
Schiller, com o espaço propriamente político da arte. Se, entretanto,
existe uma ação micropolítica que se transfere para o plano macro, em
alguns casos seria pertinente perguntar como uma experiência privada,
radicada no corpo de um artista, pode de alguma forma contribuir para
a construção de um espaço sensório coletivo.
'R ˉQDO GRV DQRV SDUD F£ W¬P VXUJLGR SU£WLFDV LGHQWLˉFDGDV
6
com as poéticas da vida e que colocam em curso a importância da
experiência na transformação individual, mas que apostam no alcance
192
Os anos 60 e 70 foram férteis de experimentalismo que deve ser
compreendido aqui nos dois sentidos: uma arte que experimenta novas
formas de expressão e que ao mesmo tempo propõe a experiência como
produto em si. Nesse caso, além de extrapolar os habituais limites que
as separam, foi comum o trasbordamento das artes para além de seus
circuitos tradicionais (museus e galerias) ou ainda de manifestações
ampliado dessa transformação no social. Suas iniciativas, como em
Lygia Clark, põem em xeque a tradicional posição do artista em relação
DRS¼EOLFR2SWDPSHORˊX[RGHWURFDVUHF¯SURFDVTXDQGRDWUDYHVVDP
fronteiras e as diluem. Estão aí, para serem conferidos, os trabalhos da
dupla Walter Riedweg & Maurício Dias e os de Rosana Palazyan, entre
outros artistas bastante conhecidos no mundo da arte de nossos dias.254
incompatíveis com o modelo “exposição”. Experiências muitas vezes
Recentemente tomei conhecimento do projeto “Terra Doce”
realizadas nos espaços em continuidade com os da vida cotidiana ou,
coordenado pela artista Isabela Frade desde 2008. Esse projeto tocou-
ao contrário, em círculos privados, não raro em situações de intimidade
me particularmente não por propiciar em mim alguma experiência
absoluta, tornam-se corriqueiras. O propósito atende em alguns casos
poética elevada, mas pela capacidade que revelou de pôr em ação a
à necessidade de recuperar para a prática artística o espaço de ação
construção de um espaço comum para produção de subjetividades sem
política e a amplitude pública; em outros, no que me parece, privar a arte
propriamente visar à grande obra de arte. Direcionado para atender a
de sentido público quando oferece de si apenas documentos no lugar
XPD GHPDQGD VRFLDO HVSHF¯ˉFD QDVFH GD QHFHVVLGDGH GH HULJLU XPD
da experiência. Se em parte essas iniciativas obtiveram sucesso, por
ponte humana entre a Universidade do Estado do Rio de Janeiro
outro lado me colocam dúvidas quando as vejo de novo enclausuradas
(UERJ) e as mulheres da comunidade do Morro da Mangueira, próximas
nas instâncias corporais ou mentais do próprio artista. Tenho em mente
espacialmente, mas socialmente distantes. Tendo, a princípio, como
certas ações intimistas de Vito Acconci ou de Gina Pane, por exemplo.
função motivadora a produção de cerâmica, “Terra Doce” constitui-se de
193
194
XPDV«ULHGHLQLFLDWLYDVTXHORJRHYLGHQFLDUDPRGHVHMRGHHGLˉFDUXP
DOXQRVHQYROYLGRVFRQˉGHQFLD,VDEHODTXHSDVVRXDVHDUUXPDUPDLV
lugar coletivo para o exercício de poéticas ampliadas.
quando as encontrava.
A iniciativa, como era de esperar, teve que lidar com várias
Por motivos de tensões na comunidade, a Casa de Arte fechou-
QHJRFLD©·HV H GLˉFXOGDGHV LQLFLDLV HQWUDU HP XPD FRPXQLGDGH
se ao projeto que se viu obrigado a transferir-se de local. Reunindo-
“estrangeira”; atrair voluntárias, cujo ritmo e necessidade são movidos
se agora no ateliê de cerâmica da UERJ, o grupo realiza o primeiro
por interesses outros, mais imediatos do que os de produzir arte;
trabalho coletivo Lembrancinhas. Associando o desejo de produzir arte
enfrentar a estrutura de violência, já conhecida de nossas favelas;
em vínculo direto com a vida, Lembrancinhas consistiu na fabricação
encontrar espaço adequado para seu desenvolvimento, entre outras. O
de potes e outros objetos decorativos ou utilitários para ser doados ou
contato foi inicialmente mediado pela ONG Casa das Artes da Mangueira,
vendidos. No decurso, surge a ideia de verdejar a cidade universitária
que selecionou 20 mulheres interessadas em colaborar e ofereceu o
e a Mangueira. Os potes passam a ser utilizados para a distribuição de
espaço necessário para a implementação do projeto. Além dessas 20,
mudas e sementes visando à criação de um jardim utópico, religando
seis alunos
da UERJ e mais quatro mulheres vindas de diferentes
idealmente a Mangueira e o campus da UERJ através de um corredor
lugares da região metropolitana passaram a integrar o grupo. Embora
verde. Obtidas no Departamento de Paisagismo, elas são levadas para
WHQKDˊXWXDGRSDUDPDLVRXSDUDPHQRVDJUHJDQGRFXULRVRVGXUDQWHR
as casas das voluntárias, são distribuídas em exposições, no morro e na
seu desenvolvimento, o projeto pôde encontrar sua linha de devir com
cidade, ou são semeadas nos jardins da própria universidade. O trabalho
um número inicial de 35 colaboradores, incluindo a propositora.
culmina com a sagração da primavera no campus, evento promovido
255
Entre as estratégias de aproximação mútua, foram recolhidos
pelo grupo.
relatos pessoais através de desenhos (muitas mulheres da comunidade
Com seu desdobramento, por razões diversas, o número inicial
eram analfabetas); visitas a exposições de arte, entre elas a de Yves
GH YROXQW£ULDV IRLVH UHWUDLQGR H ˉQDOPHQWH VH FRQVROLGRX HP Saint-Laurent, na ocasião exibida no CCBB.256 Nesse momento, segundo
SDUWLFLSDQWHV ˉ[DV GDV TXDLV Vµ GXDV PXOKHUHV GD FRPXQLGDGH
,VDEHOD KRXYH LPHGLDWD GHˊDJUD©¥R HQWUH R XQLYHUVR GH IDQWDVLDV
continuam seguindo com total entrega. A essa altura, porém,
pessoais daquele grupo de mulheres e o encanto e brilho das roupas
considerando o processo de transformação que cada uma vivencia, o
GRHVWLOLVWD$SDUWLUGHHQW¥RFULRXVHXPOD©RGHFRQˉDQ©DSHUPLWLQGR
que importa realmente é o entusiasmo das envolvidas. As gigantas é
observar com mais atenção o cotidiano dessas mulheres desde o
o segundo trabalho desenvolvido pelo grupo. Trata-se de escultura
interior de suas realidades. O cuidado com o “corpo social”, que pode
monumental realizada com a colaboração de todas. Essa obra coletiva,
ser observado em seu hábito de frequentar salões de beleza para
em argila crua, é composta de roletes cilíndricos cuja espessura na
recobrir as unhas com pinturas minuciosas ou no uso de apliques
base é igual à circunferência do braço de quem os realiza. Superpostos
para realçar o penteado, por exemplo, é algo notável como prática de
FRQFHQWULFDPHQWH HOHV VH Y¥R GLYHUVLˉFDQGR HP PHGLGDV FRUSRUDLV
autovalorização e estima. Nessas condições, a arte e a vida não estão
à proporção que se erguem para construir um vaso monumental. O
de forma alguma separadas, mas integram a mesma esfera. Tudo isso
HQWUHOD©DPHQWR GH WRGRV RV FRUSRV WRPD D IRUPD ˉQDO GH XP WURQFR
revelou um universo até então estrangeiro para a artista e o grupo de
feminino. Na expressão de Isabela quando apresenta a exposição Artes
da terra: gênero identidade e cultura257 essas experiências “se agrupam
195
na ânsia da possível circunscrição de uma qualidade compartilhada.
mundo da arte, precisam ter suas vidas transformadas. Chegando até
Substâncias intangíveis – mas pressentidas – de realidades íntimas
onde a vida já perdeu seu viço, essas práticas tentam recuperar o fôlego
que ao mesmo tempo nos dividem e nos igualam no jogo das
GHˊDJUDQGR IRU©DV FULDWLYDV DGRUPHFLGDV (YLGHQWHPHQWH TXH Q¥R
motivações e diferenças”. As atividades do grupo tomam assim a forma
se trata mais de mudar o mundo, mas de mudar o mundo de certas
de uma economia de afetos que potencializa o poder criativo de cada
SHVVRDVTXHKDELWDPDVERUGDVGDVRFLHGDGH'DUOKHVHQˉPDFKDQFH
participante. Só a elas importa a experiência que constroem juntas.
de alcançar a emancipação expressiva, de atingir “o estado de arte sem
Ainda vacilante e cambiante, desconforto próprio das iniciativas
experimentais, o projeto se reavalia à medida que segue. Quem daí
espera obras de arte para serem apreciadas por homens de gosto raro,
arte”. A arte pode fazer a diferença quando atravessa as fronteiras e
ajuda a superação das desigualdades que o liberalismo burguês acabou
por engendrar.
talvez se decepcione e apresse em alegar que não se trata de arte e nem
de verdadeiros artistas, mas de assistencialismo social, arte-educadores,
Notas
terapia ocupacional ou algo pior. Sempre foi tão mais fácil rotular do
que enxergar horizontes largos naquilo que é estranho a nossas formas
habituais de repartir as sensibilidades. Depois, porém, que o sistema
das Belas Artes implodiu, depois que a obra de Lygia Clark atravessou
196
225 É importante frisar aqui que o termo está sendo usado em sua acepção moderna
em que um objeto é produzido para ser exposto ao olhar do outro e ao julgamento
público.
as fronteiras da arte, que Gordon Matta-Clark abriu seu restaurante e
226 Baxandal. L’œil du quattrocento. Paris: Gallimard, 1985.
se engajou em causas sociais, não estou tão certo se podemos ainda
227 Alberti. Da pintura. Campinas: Unicamp, 1992.
delimitar com precisão o que é ou não da competência do artista, o que
228 Baxandal, op. cit.
é ou não do regime estético da arte. O que tais iniciativas de imediato
229 O Eu e o Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2002.
me colocam é que a questão de saber se tal proposta é arte ou não é
230 [ele (o pintor)] sabia que seu público estava em condição de conhecer,
medianamente, alguns pequenos índices, que tal personagem no quadro era o Cristo,
tal outro São João Batista e que este estava batizando o Cristo. Sua pintura constituía
em geral uma variação sobre um tema que o espectador já conhecia através de
outros quadros tanto quanto pela mediação privada e pelas exposições públicas dos
predicadores. (op. cit., p 117)
menos relevante do que a de reconhecer o que a arte ainda é capaz de
fazer.
Em todo caso, a proposta discutida não é exemplo isolado e nem
de longe a única direção a seguir. Poderia, decerto, citar aqui inúmeras
231 História social da arte e da cultura. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
iniciativas contemporâneas, dentro e fora do Brasil, que se encaixam
232 “Em 1777, aos 21 anos, Mozart pediu dispensa a seu empregador, o príncipebispo de Salzburgo (depois de lhe ter sido recusado um pedido de férias); partiu, então,
animado, feliz, cheio de esperanças, para tentar um posto, primeiro na corte de Munique,
depois com os patrícios de Augsburgo, em Mannheim e em Paris, onde esperou em
vão...” Elias, Nobert. Mozart: sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Zahar, 1994, p.19.
QHVVDV PHGLGDV H SURSRU©·HV PDV SUHˉUR WHUPLQDU UHPDUFDQGR R
SRWHQFLDO TXH YHMR QHVVHV WUDEDOKRV QR FRQWH[WR HVSHF¯ˉFR GH QRVVR
país. Pela primeira vez, me parece, estando em sintonia com uma
insatisfação mais global, essas práticas encontram terreno fértil de ação
aqui dentro, em nosso contexto. Se o apanágio da arte, pelo menos desde
a era moderna, é a transformação da vida, de fato em nossa sociedade
existem pessoas ou grupos que, mais do que aquelas que habitam o
233 Op. cit.
234 Período que vai de 1715 a 1723, quando Pilipe de Orléans ocupa o trono francês
enquanto Luís XV não atinge a maioridade.
235 Hauser relata que um dos admiradores de Watteau foi o conde Caylus, arqueólogo
e um dos primeiros historiadores da arte (op. cit., p.519).
197
236
Por exemplo os conceitos de teatralidade, antiteatralidade e de absorção
empregados por Diderot em suas notas sobre os Salões de Arte irão balizar a crítica de
uma estética moderna (ver Fried, Michael. La place du spectateur: esthétique et origines
de la peinture moderne. Paris: Gallimard, 1990).
237 Hauser, 2003, op. cit., p.518.
238 Crítica da Faculdade do Juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993.
estética na arte contemporânea brasileira. Rio de Janeiro: Escola de Belas Artes, Programa
de Pós-Graduação em Artes Visuais, 2010. Inédita.
255 Nesse grupo de colaboradores, em sua maioria mulheres, encontram-se dois
alunos.
256 Centro Cultural Banco do Brasil
257 Extraído do folder de apresentação da exposição.
239 Do padrão do gosto. In Hume. São Paulo: Nova Cultural, 1996. Os pensadores.
240 Com esse termo quero apontar uma certa agilidade e leveza do artista ao aplicar
as regras de tal forma que não se impusessem imediatamente ao olho do espectador,
tudo de modo a dar a impressão de que a obra foi realizada com espontaneidade pelo
artista.
241 Hume, op. cit., p.337.
242 Senett, R. Les tyrannies de l’intimité. Paris: Seuil. 1979.
243 Baxandal argumenta que esse aspecto da pintura de Chardin encontra paralelo
QRV HVFULWRV FLHQW¯ˉFRV GH VXD «SRFD TXH GLVVHUWDP VREUH RV IXQGDPHQWRV GR ROKR
humano (Padrões de intenção: a explicação histórica dos quadros. São Paulo: Companhia
das letras, 2006).
244 1995, op. cit.
198
245 Apud Safranski, R. Romantismo, uma questão alemã. Rio de Janeiro: Estação
Liberdade, 2010, p.46.
246 Apud Safranski, op. cit., p.43.
247 Safranski, op. cit., p.56.
248 Safranski, op. cit., p.70.
249 1979, op. cit.
250 Sobre esse aspecto, Sennett relata que era comum no século precedente a plateia
reagir chorando, rindo, aplaudindo ou vaiando o ator quando este se dirigia a ela em
cena aberta.
251 Op. cit., p.161.
252 Fried, apoiando-se em Diderot, sustenta a tese de que autonomia plástica da obra
de arte moderna foi um exercíco contínuo de exclusão do espectador da representação.
A concentração das personagens de um quadro no assunto representado, as absorvia
a tal ponto que, voltando suas atenções para o interior da ação representada, não se
davam conta do espectador, que se viu continuamente excluído da cena. A esse efeito,
Diderot chama antiteatralidade. La place du spectateur: esthétique et origines de la
peintura moderne. Paris: Gallimard, 1990.
253 Clark, Lygia. Lygia Clark. Rio de Janeiro: Funarte, 1980, p. 27-28.
254 Travei maior conhecimento com os trabalhos desses artistas ao integrar a banca
de julgamento da tese de doutorado de Beatriz Pimenta Velloso: Alteridade experiência
Sobre o autor
Luciano Vinhosa – Artista, professor adjunto do Departamento de Arte e do
Programa de Pós-Graduação em Ciência da Arte da Universidade Federal
Fluminense, é editor da revista Poiesis e coordenador do Laboratório de Criação
Multimídia PPGCA/FAPERJ. Doutor em Études et pratiques des arts pela Université
du Québec à Montréal, Canadá. Tem ensaios e críticas de arte publicados em
revistas no Brasil, França, Canadá e Estados Unidos. É lider do grupo de pesquisa
Estudos e práticas artísticas contemporâneas.
199
200
201
Este livro foi composto com as fontes
PT Sans e Cambria e impresso em
papel cartão supremo 250 g/m2 (capa)
e papel off set 75 g/m2 (miolo).

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