estudo comparativo entre videogame e histórias antigas
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estudo comparativo entre videogame e histórias antigas
KAMI AO LONGO DOS ANOS: ESTUDO COMPARATIVO ENTRE VIDEOGAMES E HISTÓRIAS ANTIGAS Bella Cardoso de Carvalho RESUMO: O objetivo deste trabalho é comparar as representações dos kami em jogos de videogame com representações encontradas em textos japoneses. As principais fontes foram o jogo Okami, o livro Kojiki e estudos que discutem o conceito de kami. Por meio desta comparação, procura-se entender a interpretação dos mitos feita pelos criadores do jogo, levando em conta a necessidade de adaptar as histórias para que o enredo do jogo seja interessante. PALAVRAS-CHAVE: Kami, Videogame, Kojiki, Cultura Japonesa. Introdução O videogame se popularizou a partir da década de 1980. Também nessa época estudos sobre jogos digitais começaram a surgir. Agora o campo de game studies tem três áreas em crescimento: artes e humanidades, ciências e ciências sociais [2, p. 2-3]. Há trabalhos sobre o uso de jogos eletrônicos no aprendizado [13], os aspectos social e ideológico [5] e também a representação de fatos históricos [8; 21]. Sobre este último, Gish diz que os jogos “oferecem uma nova maneira de refletir sobre o passado” [8, p. 168-169]. Em relação ao mangá, Furuyama diz que reproduzir fielmente a história não é essencial “mas a interpretação que se tira dela ou da forma como os leitores percebem essa realidade” é o que importa [6, p. 297]. Este trabalho trata do mesmo tema, porém aplicado ao videogame: ver a interpretação dos fatos feita pelo jogo. É importante realizar mais estudos nessa área para aproveitar melhor o videogame como uma ferramenta de transmissão de diferentes culturas. Existem vários jogos com alusões aos kami. Em The Legend of Zelda: Majora’s Mask, o protagonista procura em uma caverna uma máscara que simboliza o sol, referência a quando Ama-terasu se esconde em uma caverna. Em Shin Megami Tensei: Persona 4, a responsável pelos eventos trágicos da história é Izanami-nomikoto, um dos kami ancestrais. Okami foi o jogo escolhido pois vários personagens são kami e porque é um jogo do estilo ação e aventura, ou seja, a ênfase está na história e seus personagens, possibilitando melhor análise de seu conteúdo. O trabalho está dividido em três seções. A primeira explica o processo de interpretação da literatura antiga, apresenta o que são esses textos, em especial o Kojiki e tenta explicar o que é um kami tomando como base os pontos em comum de diversos estudos. A seção seguinte mostra a análise do jogo Okami através de indicadores tais como personagens, lugares, objetos, eventos, etc. Por fim, a conclusão aponta os caminhos que podem ser tomados em pesquisas futuras. Interpretação, Kojiki e kami Isomae diz que “a interpretação é mais a visão de mundo do intérprete do que o texto em si” [12, p.109] e de acordo com Inoue os mitos explicam as origens de um grupo [11, p. 44]. Essas ideias mostram a importância do estudo da interpretação. Para falar desse assunto, Isomae usa o Kojiki e o Nihon Shoki, chamando-os de Kiki. Os dois textos foram compilados no início do século VIII, baseados em registros regionais, para legitimar o governo do clã imperial. O Kojiki era o texto oficial para ser transmitido às futuras gerações japonesas [12, p.49-50]. O objetivo do Nihon Shoki era mostrar a outros povos o Japão e sua formação. No início, esses registros se aplicavam somente aos clãs poderosos, mas a perda do poder imperial no período medieval inicia a identificação das pessoas da classe não-governante com o Kiki. Por isso, o Kokugaku de Motoori Norinaga associou no período Edo o Kiki à memória de uma “comunidade étnica pura e contínua (minzoku)” [12, p. 30-31 e p. 119-120]. Com o tempo, a tendência de reler o Kiki valorizando os sentimentos das personagens cresceu e se mantém até hoje. Assim, vemos que uma interpretação pode influenciar épocas posteriores. Em jogos de videogame não é apenas a grandeza das histórias que cativa o jogador, ter personagens carismáticas também é muito importante. Outro exemplo dessa influência é o fato de que hoje o Kojiki é mais valorizado que o Nihon Shoki, talvez por no período Edo ter sido mais interpretado [12, p. 110]. O Kojiki foi escolhido como base para este trabalho devido à sua atual valorização e ao interesse pelas personagens. A tradução para o inglês mais usada para kami é “deity”, palavra que sugere um conceito como o do Deus judaico-cristão. [19, p. 317]. Os kami não são como o Deus onipotente das tradições monoteístas e não necessariamente são imortais [4, p. 190]. Por causa de influências externas sua interpretação sofreu mudanças ao longo do tempo [11, p. 01]. Atualmente, estudiosos ocidentais do xintoísmo tendem a aceitar a definição de Motoori Norinaga: “Kami são, acima de tudo, deidades do céu e da terra e espíritos venerados em santuários, assim como humanos, pássaros e animais, plantas e árvores, oceanos e montanhas que têm poder excepcional e devem ser reverenciados. Kami inclui não apenas seres misteriosos que são nobres e bons, mas também espíritos malignos que são extraordinários e merecem veneração” [19, p. 318]. Kami podem ser bons ou maus, de acordo com a natureza de cada um. São elementos naturais, animais ou plantas e também pessoas, ainda vivas ou que se tornaram deidades após a morte, desde que sejam especiais. Um kami poderia residir em santuários, no sol, na lua e nas estrelas, em forças da natureza como vento ou chuva, oceanos, rios e montanhas, ou até objetos manufaturados [19, p. 318]. Montanhas em especial eram consideradas a moradia dos kami. Por isso os santuários muitas vezes eram construídos nesses locais [4, p. 189-190]. Análise do jogo É importante primeiro falar que o jogo Okami passou pelo processo de localização (localization), a tradução e a adaptação do contexto para evitar choques culturais [1]. Os nomes foram adaptados para facilitar a memorização por pessoas não acostumadas com o idioma japonês. Outro fato a ser notado é que a discussão sobre kami não cabe ao jogo e provavelmente por isso kami foi traduzido como “deus” simplesmente. O jogo se passa em Nakatsukuni, alusão a Ashi-hara-no-naka-tsu-kuni, nome pelo qual se faz referência ao Japão imediatamente após sua criação [16, p. 464] e foi adaptado para Nippon na versão em inglês. A personagem principal é Amaterasu, representada como um lobo branco com marcas vermelhas que a caracterizam como kami. Porém, muitos veem somente um lobo comum, pois é uma época em que poucos acreditam nos kami. Esse é o ponto de partida da história. Susano não acredita nas lendas e desperta o monstro Orochi que espalha a escuridão pelo Nippon. É então que o espírito de Amaterasu, residindo em uma estátua no alto da vila de Kamiki, é despertado para expulsar a escuridão do Nippon. Apesar de o Susano do jogo não ser um kami, ele é similar a Susa-no-o, kami do Kojiki: possui uma barba longa, é descendente do kami Nagi assim como no Kojiki Izanagi-no-mikoto é seu pai e fica junto com Kushi, como no livro ele se une a Kushinada-hime. Isomae une diversos registros da briga de Susa-no-o com Ama-terasu para analisar se ele tem bom coração e menciona que no Nihon Shoki ele é mau, enquanto no Kojiki é apenas infantil [12, p. 43-46]. No jogo fica claro que ele possui boas intenções, apesar de preguiçoso, desajeitado e um tanto medroso, assemelhando-se mais à descrição do Kojiki. As semelhanças continuam na luta entre Susano e Orochi. No livro, Susa-no-o derrota um dragão de oito cabeças para salvar Kushi-nada-hime, filha de um casal idoso que faz um saquê especial para embebedar o dragão e ajudar a derrotá-lo. A descrição do monstro e a luta no jogo são como no livro: ele possui oito cabeças, olhos vermelhos, um corpo gigantesco e sangue escorre constantemente pelo seu ventre. Ele toma as mulheres de um vilarejo como sacrifício e é derrotado com ajuda de um saquê especial. Porém, no jogo Susano recebe ajuda também de Amaterasu para derrotar Orochi. A necessidade de Amaterasu participar de todos os eventos para sempre haver interatividade com o jogador deve ter motivado esta alteração. O jogo apresenta kami celestes e kami terrestres como o Kojiki [16, p. 88]. Há os brush gods, que residem em constelações, totalizam 13 kami (os animais dos signos do zodíaco chinês mais o gato) e também têm o pelo branco coberto por marcas vermelhas. Há também os “Seres Celestiais”, kami da Planície Celeste, “ilha no céu em que todos os grandes deuses supostamente vivem”. Esses seres morreram após serem atacados por monstros, mostrando que os kami não são imortais. Um caso interessante é o de Ninetails, raposa branca de nove caudas e um dos inimigos de Amaterasu. Aparentemente ela é kami no jogo, já que reside em uma constelação e possui grandes poderes. Dentre os kami terrestres há Nagi, que passou a ser reverenciado como kami porque ajudou Amaterasu a derrotar Orochi no passado e Sakuya, espírito da árvore Konohana, protetora do Nippon e quem desperta Amaterasu no presente. Há também o reino aquático, governado pelo Rei Wada e sua esposa Otohime. Provavelmente o Rei Wada representa Wata-tsu-mi-no-kami, já que ambos possuem um luxuoso palácio debaixo do oceano e são representados como dragões do mar [19, p. 340]. Também são encontrados objetos da literatura antiga no jogo. Em certo ponto, aparece a Arca de Yamato. Diz-se que a Planície Celeste foi atacada por monstros e seus moradores fugiram na Arca. Entretanto, foram seguidos e mortos, fazendo a Arca de Yamato cair na terra. Amaterasu a usa para retornar à Planície Celeste, referência à Ame-no-uki-bashi, ponte usada pelos kami para transitar entre os céus e a terra [16, p.49]. Outro objeto é o pêssego. Logo no início, Sakuya salva os aldeões colocandoos dentro de um pêssego. Izanagi-no-mikoto os usou para distrair os perseguidores que Izanami-no-mikoto colocou em seu encalço na terra de Yomi [16, p. 65]. Nem todos que no Kojiki são kami o são no jogo também, mas os que são seguem as “regras” de o que define um kami. Os brush gods são invisíveis aos humanos, especiais por terem pelagem branca com marcas vermelhas, residem em constelações e possuem grandes poderes. Até Ninetails está de acordo com a definição de Motoori: é um espírito maligno, mas é tratado como kami por ser fora do comum. As personagens Konohana, Sakuya e Tsukuyomi, mesmo sendo muito diferentes do Kojiki, não passaram por alterações sem sentido. Ko-no-hana-no-Sakuya-hime foi dividida em dois kami no jogo, porém os dois estão ligados, visto que Sakuya é o espírito da árvore Konohana. Tsuku-yomi-no-mikoto, filho de Izanagi-nomikoto e irmão de Ama-terasu no Kojiki, no jogo é uma espada que pertencia a Nagi e pertence a Amaterasu no presente. A uniformidade também é mantida no tempo da história, ao deixar Nagi no passado e Susano no presente, apesar de Amaterasu estar presente em ambos os tempos, pela necessidade de tê-la em todos os momentos do enredo, como já mencionado. Conclusão As características mais importantes encontradas na literatura antiga foram mantidas no jogo Okami. As maiores mudanças parecem ter ocorrido devido à necessidade de ter a personagem principal atuando o tempo todo e sendo reconhecida por essa atuação. Observou-se que a intenção do jogo não é recontar as histórias com fidelidade. Ele busca usar a riqueza cultural para criar um enredo coerente com o qual os jogadores que conhecem as antigas histórias possam se identificar e, ao mesmo tempo, busca torná-lo interessante o suficiente para encorajar pessoas que não tenham esse conhecimento a procurar mais informações. Neste trabalho viu-se que as interpretações definem o que era importante para a geração que a fez e para as gerações seguintes, já que em várias épocas visões de mundo são construídas a partir delas. Em Okami foram usados vários indicadores para comparar o jogo aos mitos e lendas do Japão antigo. Este trabalho tomou como centro os kami, explorando uma pequena parte do todo. Espera-se que trabalhos mais completos sejam criados utilizando também textos como o Nihon Shoki e contos folclóricos, além de outros jogos em que haja referências a tais textos, para descobrir mais da mitologia japonesa presente em jogos de videogame e depois estudar a interpretação e aceitação dos jogos por diferentes receptores, por exemplo, jogadores que possuem algum conhecimento da cultura japonesa e outros que não têm conhecimento nessa área. Ressalta-se que realizar tais estudos é importante para entender como a cultura transmitida é entendida e aceita em diversos contextos na sociedade atual. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Jogos citados Atlus (2008) Shin Megami Tensei: Persona 4. Atlus (PlayStation 2) Clover Studio (2006) Okami. Capcom (PlayStation 2). Nintendo (2000) The Legend of Zelda: Majora’s Mask. Nintendo (Nintendo 64) Livros e artigos consultados [1]BERNAL-Merino, M. "On the Translation of Video Games". The Journal of Specialised Translation, 2006, Issue 6: 22-36. [2]BRYCE, Jo; RUTTER, Jason. “An introduction to understanding digital games”. In: Understanding Digital Games. Londres: SAGE Publications, 2006. [4]DEAL, William E. Handbook to life in medieval and early-modern Japan. Nova York: Oxford University Press, 2006. [5]FULLERTON, Tracy. “The Play’s the Thing: Practicing Play as Community Foundation and Design Technique”, 2005. Apresentado em International DiGRA Conference, 2005, Vancouver, Canadá. [6]FURUYAMA, Gustavo. “Mangá e a transmissão de cultura: o exemplo de Rurouni Kenshin”. In: Estudos Japoneses, n. 28, 2008, p. 295-304. [8]GISH, Harrison. “Playing the Second World War: Call of Duty and the Telling of History”. In: Eludamos. Journal for Computer Game Culture. 2010; vol 4, n°2, p. 167-180. [11]INOUE, Nobutaka (org.). Kami - Contemporary Papers on Japanese Religion. Trad: Norman Havens. Tóquio: Institute for Japanese Culture and Classics, Kokugakuin University, 1998. [12]ISOMAE, Jun’ichi. Japanese Mythology: Hermeneutics on Scripture. Trad: Mukund Subramanian. Londres: Equinox Publishing Ltd, 2010. [13]KAFAI, Yasmin B. Minds in play: computer game design as a context for children's learning. Nova Jersey: Lawrence Erlbaum Associates, 1995. [16]PHILIPPI, Donald L. Kojiki. Tóquio, University of Tokyo Press, 1968. [19]TAKESHI, Matsumae. “Early Kami Worship”. In: Brown, D. M. (org) Cambridge History of Japan. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. [21]URICCHIO, William. (2005) “Simulation, history, and computer games”. In: Raessens, J.; Goldstein, J. (org.) Handbook of computer game studies. Massachusetts: The MIT Press, p.327-340.
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