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«Oh no no no, dead broad OFF THE TABLE!»
O ogre Shrek, referindo-se à inanimada Branca de Neve, que os 7 anões
haviam acabado de depositar sobre a sua mesa (2001)
O Cinema de Animação enquanto Indústria Cultural
Quando, em 1944, Max Horkheimer e Theodor Adorno publicaram a seminal obra Dialektik der
Aufklärung (“Dialéctica do Iluminismo”), dedicaram um capítulo inteiro ao que chamaram
“Indústria da Cultura”. Esta designação, como nota Hesmondhalgh (2002), pretendia manifestar
um certo valor de choque, ao justapor a noção mecanicista, repetitiva e suja de Indústria ao
domínio da Cultura, que, para os dois fundadores da Escola de Frankfurt (tal como para todos os
seus contemporâneos, a bem da verdade), ainda relevava do conceito novecentista de um reino
espiritual e etéreo que coalescia com o da Arte. Sendo que esta se afirmaria sempre como uma
instância crítica ou idealizadora (através da produção de utopias e paradigmas éticos) do resto da
existência humana, formando, à boa maneira hegeliana, uma clara oposição dialéctica com a
Indústria: espírito vs. matéria, repetição vs. criação de objectos únicos, fumo e suor vs.
transparência e beleza. Horkheimer e Adorno, recentemente fugidos da Alemanha nazi para os
EUA, sentiam-se horrorizados pela mercantilização dos bens culturais que testemunhavam na
sua pátria de acolhimento, vendo-a talvez como uma forma embrionária e mitigada, mas não
menos ominosa, de fascismo. A frase escolhida, logo no título do capítulo respectivo, para
descrever este processo, é esclarecedora: O Iluminismo como decepção de massas – a chamada
“cultura de massas” não passaria portanto de um instrumento de engano e sujeição das massas
aos interesses do capital e das suas indústrias mercantilizantes.
Eis alguns exemplos do inapelável pessimismo dos autores: «a cultura apõe agora o mesmo
carimbo em tudo. Filmes, rádio e revistas erigem um sistema que é uniforme como um todo em
cada parte. Até as actividades estéticas de opostos políticos são unas na sua obediência
entusiástica ao ritmo do sistema de ferro»; «o passo do telefone para a rádio distinguiu
claramente os papéis. O primeiro ainda permitia ao assinante desempenhar o papel de sujeito, e
era liberal. O segundo é democrático: transforma todos os participantes em ouvintes e sujeita-os
de forma autoritária a programas emitidos que são todos exactamente o mesmo». E, num excerto
quase profético: «a Televisão almeja ser uma síntese de rádio e filme (...) as suas consequências
serão enormes e prometem intensificar o empobrecimento da matéria estética tão drasticamente
que amanhã a tenuemente velada identidade de todos os produtos da indústria da cultura poderá
sair triunfantemente para a vista de todos» (tradução minha a partir da versão em Inglês). Tal
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representaria apenas mais um epifenómeno do triunfo universal da razão instrumental, da
redução de todos os valores civilizacionais às partículas elementares que são os números,
rebaixando Arte e Cultura à condição de mercadorias prontas a embalar, traficar e exportar.
Sobretudo partir de Bernard Miège (1989), a noção diabolizada de “Indústria da Cultura” viu-se
matizada e ampliada, até se transformar na expressão hoje corrente: “Indústrias Culturais”.
Como esclarece Hesmondhalgh, o plural não é inocente nem acidental: assinala o
reconhecimento da complexidade deste sector, que acolhe instituições de carizes muito diverso
entre si, enquanto nega o carácter essencialmente maligno da massificação da cultura. Mais:
longe de hoje ser vista como uma mera ferramenta do imperialismo cultural, a proliferação
destas indústrias é encarada como albergando possibilidades positivas para culturas e agências
periféricas.
Ainda de acordo com este último autor, estas indústrias continuam alvo de acesa controvérsia,
distinguindo-se ontologicamente por serem «complexas, ambivalentes e contestadas»; a haver
alguma definição suficientemente abrangente e pacífica para ser hoje operacional, será a de se
tratar das instituições «mais directamente envolvidas na produção de significado social».
Englobando sempre as entidades difusoras de transmissões de Rádio e TV, as indústrias fílmicas,
as actividades articuladas sobre a internet, o mercado de produção e divulgação musical, a
indústria da publicação, impressa ou electrónica. Esse entendimento tenderá a excluir os campos
produtores de bens mais utilitários: como casos-limite, inclusos para alguns autores, excluídos
para outros, teremos a publicidade e a moda – embora a primeira lide directamente com a
produção de conteúdos simbólicos, e a segunda possua sub-campos de actuação quase isentos de
preocupações utilitárias, as duas actividades podem ser vistas como dependentes de actividades
apenas instrumentais e coisificantes. Por outro lado, e por razões da mesma ordem, campos
como o desporto profissional, o hardware da electrónica de consumo e o software, tenderão a
ver-se excluídas do universo dos produtores simbólicos.
A ascensão das indústrias culturais à predominância e poder de que hoje desfrutam é vista como
subproduto do choque petrolífero de 1973. A subsequente consciência da escassez das matériasprimas e da finita capacidade do Ambiente para suportar o anterior paradigma industrialista
acabou por levar à emergência da Informação como instância central de uma nova ordem; ela
não se degrada espontaneamente, não contribui para esgotar recursos ou condições de
sobrevivência. Passou assim a ser, mais que um meio, um fim – rentável, partilhável e
multiplicável: em bens culturais e simbólicos, serviços noticiosos, entretenimento, toda uma
indústria à escala planetária.
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A sociedade em rede, composta em grande parte sobre a infra-estrutura proporcionada pela
Internet, veio maximizar a influência da comunicação na criação e reprodução das nossas
identidades e estilos de vida. Algo que é hoje evidente mesmo que não adiramos à leitura que
levou Jean Baudrillard (1991), em dois célebres artigos de jornal, a proclamar que a primeira
Guerra do Golfo não foi real, pois teria sido um evento que, mais do que mediado, se viu
apropriado pela Televisão, eclodindo em milhões de lares sob a forma hiper-real de um
simulacro feérico, estilizado e asséptico, não de uma guerra como as outras, sangrenta, suja,
assombrada pelos espectros das suas vítimas.
Agora, mais do que nunca, pegando na feliz formulação de Castells (2007), «a batalha da mente
humana é largamente travada nos processos de comunicação». Pois estes não se configuram hoje
como um mero suporte dos media; antes afectam e contaminam «todos os domínios da vida
social numa rede que é ao mesmo tempo global e local, genérica e personalizada num padrão
sempre cambiável».
O Cinema de Animação pode ser visto como a personificação plena desta visão de Castells: cada
novo herói que é lançado pelos grandes estúdios nasce logo como muito mais do que apenas uma
personagem fictícia, de relevância e durabilidade finitas e desprezíveis. Das refeições no
McDonald’s ao material escolar, as crianças vêem-se submersas por ondas constantes de
merchandising, muito para lá do tempo passado nas salas de cinema. Uma major como a Disney
encara cada uma destas novas famílias de personagens como lucrativas franchises, a explorar até
à exaustão: parte significativa do seu lucro já provém das receitas de licenciamento, parques de
diversões e outros proveitos colaterais. De Lisboa a Xangai, milhões de crianças convivem com
os mais recentes cidadãos das fábricas de blockbusters animados, mesmo que nunca os cheguem
a conhecer no grande ecrã – os seus valores são plasmados em coloridos autocolantes,
lancheiras, cadernos, skates, mil e um adereços hiper-significantes mas vácuos, emblemas das
paisagens culturais em que vivem e circulam. Como assinala Abercrombie (1998), as crianças
comportam-se como “fãs”, sendo consumidores de bens culturais que «incorporam produção
textual nas suas vidas quotidianas, mas que produzem algo “material” que pode ser passado a
outros»; integrando personagens a situações nas suas brincadeiras e desenhos, mesmo que só os
conheçam de forma indirecta, podendo nem ter visto os filmes de onde eles emigraram.
A propósito deste fenómeno – aqui sim, de verdadeira mercantilização – Lash e Lury (2007),
inscrevem o Cinema de Animação numa tendência central que denominam «coisificação dos
media»: a corporização de textos dos media em coisas como jogos e brinquedos leva esses media
a perder o seu carácter exclusivamente cultural – adquirem «valor de uso e valor de troca»,
autonomizando-se e ganhando por vezes mais significado do que no contexto original. O caso de
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Buzz Lightyear, citado por estes autores, é exemplar: esta personagem de Toy Story, a primeira
longa-metragem de animação inteiramente digital, é um brinquedo em forma de astronauta. Um
dos pontos-chave da ficção jaz na sua inconsciência da sua condição de brinquedo, que o leva a
comportar-se como se fosse um verdadeiro ranger espacial – cabe ao seu parceiro de acção, o
cowboy Woody, levá-lo a reconhecer a sua realidade ontológica. Ora a narrativa do filme foi
propositadamente centrada nesta última personagem, que passava por um processo de
amadurecimento clássico (típico dos buddy movies), sendo este o suposto foco de identificação
por parte dos espectadores. Mas as vendas de brinquedos derivados do filme desmentiu essa
expectativa: as figuras de Buzz bateram todos os recordes de vendas da Disney, no Natal de
1997, levando até a uma ruptura de stocks. Algo se passava no reino da Animação.
O ancien régime da Animação
Qualquer nativo das décadas de 50 e 60 cresceu numa companhia bastante peculiar: os desenhos
animados oriundos dos estúdios Disney. Sobrevivendo através de contínuas reposições em
cinemas espalhados por todo o país, clássicos como O Livro da Selva ou 101 Dálmatas
moldaram em grande parte as primeiras experiências do Cinema – e da Arte em geral – de
incontáveis crianças. Certo é que a Televisão já tratava de povoar os nossos labirintos mentais
com hordas de heróis da animação americana: de Popeye a Daffy Duck, passando pela completa
zoologia Disney. Mas a TV proporciona, pela sua própria essência operativa, experiências bem
diversas, em intensidade e duração, das que o Cinema medeia; uma curta-metragem absorvida
entre as garfadas do almoço não se podia comparar ao assombro do ecrã gigante, abrindo
passagens duradouras para universos visuais cujo detalhe e onirismo pouco tinham em comum
com a alegria simplista dos fundos bidimensionais esquemáticos e das personagens das Merrie
Melodies. Esta longas narrativas recriavam obras complexas e em parte “adultas”, do exotismo
de Kipling às assustadoras fábulas dos Grimm, operando a primeira grande metamorfose
qualitativa da animação. Esta passou a integrar também conteúdos ideológicos, juntando
prescrições morais e éticas às cabriolas e peripécias da comédia puramente física, até então
dominante. E não foi certamente por acaso ou apenas para minimizar os riscos da aposta que a
Disney sempre privilegiou o mundo das fábulas clássicas, poderosas instâncias de reprodução de
padrões de comportamento; educativos catálogos de riscos, castigos, recompensas e vilanias que
ajudaram gerações e gerações de pais a transmitir medos e noções de comportamentos
adequados às suas proles. Assim, entre a musicalidade inocente de Steamboat Willie (a primeira
animação com som síncrono, datada de 1928) e o assustador espelho mágico da madrasta da
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Branca de Neve, algo de ponderoso e prenhe de significado entrou no mundo de fantasia da
animação cinematográfica.
Heróis mutantes?
No presente, o cânone dominante no Cinema de Animação já não é composto, em rigor, por
“desenhos”, mas sim por criaturas bem mais animadas: falo das catadupas de filmes em 3D que
os processadores da Pixar e estúdios afins vão “renderizando” com uma velocidade assombrosa.
As crianças de hoje talvez já nem sejam capazes de prestar grande atenção aos universos foscos e
à limitada agitação do cinema animado tradicional: o meu rebento de 4 anos não lhe concede
sequer a graça mínima da curiosidade.
Mas julgo que algo mais se transformou com a passagem das cenas pacientemente intercaladas
para os planos tão detalhados e complexos das aventuras geradas por computador. Imagino
detectar uma mudança de paradigma, uma rotação suave mas tenaz no posicionamento
ideológico das fábulas catódicas com que embalamos as nossas crianças.
Uma legião de heróis, de Pinóquio à sereia Ariel, lutou, durante a sua hora e meia de glória, pela
integração num modelo dominante de normalidade. Pinóquio queria migrar da madeira para a
carne; Ariel desejava largar as escamas e ascender ao mundo da superfície; Cinderella suspirava
pela escalada social da cozinha para o salão de baile; a Bela lutou para fazer do seu Monstro
gente, etc, etc. Esta ânsia de mimesis do Outro, de aderência à norma, levava sempre ao mesmo
clímax: o momento da Transformação. A cúspide do arco narrativo de todas estas histórias é a
sequência em que tudo se vê invadido por uma cegante luz branca e cânticos celestiais. Fosse por
intervenção das proverbiais fadas ou simplesmente pelo anular de maldições arcanas, todos os
heróis conseguiam metamorfosear-se no seu ideal de normalidade: o “menino de verdade”, a
cortesã elegante, o belo príncipe, o menino da selva que regressa à aldeia… a lista é quase
infinda.
E o que aconteceu ao mais notório herói da nova geração digital, o verde ogre Shrek? O primeiro
filme, de 2001, presenteia-nos com um surpreendente e revelador desenlace: quando tudo fazia
crer que o culminar da narrativa incluiria a passagem permanente da princesa Fiona para o reino
dos entes normais, ultrapassando o fado da sua maldição, ela acaba por decidir que será mais
feliz como monstro. A segunda prestação da saga mostra-nos o casal de ogres, em conjunto, a
virar costas a essa normalidade antes desejável. E eis a “mensagem” central de tantos destes
filmes recentes: importa hoje não aderir à norma mas sim aceitar as nossas diferenças e erigi-las
em novo e orgulhoso pilar da nossa identidade.
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Nada há de errado com a monstruosidade; esta é apenas mais um ponto de vista sobre a vida –
eis a moral clara do êxito Monsters Inc., igualmente datado de 2001. Mesmo o profético e
pioneiro Toy Story, de 1999, já nos apresentava uma outra reivindicação de paridade: os
brinquedos têm tanta autonomia e vontade como os seres humanos. Num episódio revelador, os
bonecos “diferentes”, vistos primeiro como ameaças sinistras, revelam-se “bons” e acabam por
organizar uma assustadora manifestação para impor respeito ao seu sádico proprietário.
Esta translação de um sonho de “direito à igualdade” para o domínio do “direito à diferença” é a
marca de inúmeros sucessos entre a pequenada. E sucedem-se os heróis que já não representam
um ideal alcançável pela via do sacrifício e auto-aperfeiçoamento (notável exemplo desta galeria
é o boneco de madeira, Pinóquio, que sonha ser “um menino de verdade”), sendo sim prova de
que os que antes viviam fora do território da normalidade também são capazes de feitos
transcendentes: o pombo Valiant é minúsculo mas impõe-se como herói de guerra; Nemo tem
uma barbatana atrofiada; o tubarão Lenny (de O Gangue dos Tubarões) é patentemente gay;
Rémy, de Ratatouille, chega a chef consumado mesmo sendo um rato; Timão (de O Rei Leão e
depois protagonista da sua própria série animada) é um desastrado que sai da sua colónia para
encontrar a felicidade e a relevância em simbiose com o igualmente proscrito Pumba. Em Robots
encontramos uma transparente explicitação da tendência: os heróis são ferrugentos pedaços de
lixo resistindo contra a obrigatoriedade dos upgrades. Todos recusaram perseguir a normalidade;
todos acabaram por impor as suas idiossincrasias como peças-chave de destinos fadados à glória.
Não que esta mudança de paradigma se tenha operado por corte, eliminando do dia para a noite
todas as tendências anteriores. Entre os recentes astros digitais, alguns mantêm o perfil clássico
de heróis da auto-superação, da conquista de um lugar no mundo pelo aperfeiçoamento espiritual
e pela obtenção de novas virtudes. Temos, por exemplo, o protagonista de Cars, empenhado
numa odisseia clássica de auto-descoberta e aperfeiçoamento espiritual. De forma pouco
surpreendente, acabou por perder o Oscar de 2006 para um herói muito mais sintonizado com o
zeitgeist: o pinguim Mumble (de Happy Feet), o aleijão incapaz de cantar e sapateador
compulsivo, que transforma a sua “diferença” num factor salvífico para toda a sua raça. Alguém
que vive nos antípodas do esforçado Pinóquio, sempre pronto a ultrapassar provas que lhe
dessem direito a entrar na Humanidade.
Em resumo, é como se antes a indústria do entretenimento tivesse passado décadas sussurrando
aos nossos filhos algo como “esforça-te e vence a adversidade que algum poder superior, sejam
as fadas ou Deus, há-de tornar-te mais semelhante ao Outro”; hoje, a nova moral da história
dominante impôs-se com clareza: “esforça-te por te reconciliar com a tua adversidade, que o
Outro vai acabar por reconhecer o teu valor único.”
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De que falamos quando falamos de valores?
Como Hitlin e Piliavin (2004) notaram, «nas últimas décadas o conceito de valores tem estado na
moda e dela saído, dentro da Sociologia». Convém antes de mais explicitar, recorrendo a estes
autores, o que é que os valores não são: atitudes, traços, normas ou necessidades. Servirão sim
para «delimitar os parâmetros dos comportamentos considerados aceitáveis (ou justos) e servem
para estruturar as nossas experiências. Os valores carregam consigo uma positividade inerente,
em contraste com as atitudes, que carregam valências positivas e negativas.»
Schwartz (1992) chegou a um esquema empírico que organiza o que se supõe ser um sistema
universal de valores pessoais (pelo menos tendo em vista a realidade da nossa civilização
moderna e ocidental), focado em dois eixos primordiais: a abertura à mudança versus a
conservação; o auto-reforço versus a auto-transcendência. Em termos gráfico, teremos:
Valores situados em zonas adjacentes partilham factores motivacionais. “Realização” e “Poder”
valorizam o êxito social e o reconhecimento; “Segurança” e “Tradição” focam-se na
estabilidade.
Uma abreviada análise qualitativa
Em busca de alguma confirmação para a suspeita antes identificada, procedi a uma sumaríssima
análise de conteúdo dos enredos das principais longas-metragens de animação estreadas entre
1937 (ano de lançamento de Branca de Neve, dos estúdios Disney). Desta amostra (sem que tal
termo assuma aqui, naturalmente, qualquer conotação probabilística) fazem parte todas as obras
cinematográficas do género que tenham obtido mais de 20 milhões de receitas só no mercado
americano (embora várias sejam oriundas de outros países); fica assim assegurada a inclusão de
todas as obras mais relevantes, em termos de exposição, de impacte no público infantil e também
de alastramento para mercados conexos como os videojogos, o sponsoring e o merchandising
variado. Todos os filmes em apreço foram por mim, in illo tempore, visionados; os dados
complementares relativos aos mesmos foram obtidos através da Internet Movie DataBase.
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A classificação de cada obra seguiu um único eixo: o tipo de percurso seguido pelos
protagonistas de cada história. A oposição pré-estabelecida foi esta:
A. Trajectórias de obediência a padrões exteriores, de sujeição à norma, de adaptação do self
às exigências que o enredo colocava a essas personagens.
B. Percursos de independência, de afirmação dos protagonistas de desafio à norma. O self
mantém-se inalterado, devendo o mundo adaptar-se às suas exigências.
Cada filme recebeu assim uma classificação numérica de acordo com a seguinte grelha:
A. Sujeição e Adaptação
No decurso da acção, o/a protagonista sofre mudanças na sua essência, necessárias
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concretização de um objectivo central à narrativa.
Mudanças significativas, apenas em termos de atitudes/comportamentos ou de
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circunstâncias, mas sempre em busca de conformidade a uma norma, idealizada ou não.
Mudanças notórias mas decorrentes de processos naturais e inevitáveis: crescimento,
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amadurecimento individual, envolvimentos românticos etc.
B. Independência e Auto-afirmação
O protagonista afirma-se precisamente pelo mérito das suas idiossincrasias (que antes o
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poderiam ter penalizado), contra tudo e todos.
O que no início da acção é visto como um handicap acaba sendo reconhecido por todos
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como um traço vantajoso.
A auto-afirmação decorre sobretudo da persistência do protagonista, que prefere a
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manutenção dos seus valores pessoais à sua transformação.
Para simplificação do que é apenas uma análise bastante informal e dependente de interpretações
diegéticas sempre carregadas de alguma subjectividade, os valores atribuídos foram sempre
inteiros. O zero foi classificação atribuída a narrativas neutras do ponto de vista da
transformação pessoal dos seus protagonistas – como é o caso dos 101 Dálmatas – e a histórias
de alguma forma ambivalentes; como a Branca de Neve, que permanece opaca e imutável do
início da sua história até ao inevitável final feliz, embora todo o seu percurso a encaminhe para
um clímax que é uma celebração da conformidade à norma idealizada: a restituição da sua
condição real através do matrimónio com o Príncipe Encantado.
Esta análise encontra-se sistematizada no gráfico seguinte:
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Conclusões?
Este rascunho de análise basta para explicitar de forma óbvia alguns dados evidentes: a partir do
meio da década de 90, a animação para crianças (pelo menos no formato de longa-metragem)
começou a multiplicar-se num tipo de histórias qualitativamente diversas das anteriores. Entre 95
e 2007, para cada filme centrado no auto-aperfeiçoamento do protagonista foram estreados pelo
menos dois que assentavam as suas premissas narrativas na afirmação das peculiaridades dos
“heróis”, contra todos os percalços e armadilhas do destino.
Se inscrevêssemos esta evolução no esquema de Schwartz, este seria talvez o trajecto proposto:
Note-se que, apesar de tudo, o primeiro tipo de narrativas fílmicas animadas não desapareceu.
Longe disso: Por exemplo, os buddy movies continuam a constituir um relevante sub-género na
animação; e, como mandam as regras desse dispositivo, as suas narrativas evoluem sempre no
sentido da superação de diferenças entre tipos ou grupos heterogéneos. São assim resistentes a
esta mudança de modelo. E outro ponto importante: um êxito televisivo de animação como os
Simpsons já transforma os defeitos do underachiever (Bart e o seu pai) em virtudes e em chaves
para o sucesso desde 1987 – não estamos assim em presença de um fenómeno nascido nas
longas-metragens.
Por fim, a análise realizada manifesta evidentes brechas e debilidades. Centrando-se apenas nos
valores mais evidentes em cada história, perde de vista pormenores que poderiam tornar este
panorama ainda mais revelador, caso tivesse sido sujeito a uma exegese de parâmetros mais
finos. Por mero exemplo, mesmo quando o leão Alex (de Madagascar) se obriga, por amizade, a
deixar a sua condição de carnívoro, ele está a operar uma radical fuga do natural, escolhendo a
mais contra natura das mudanças para se afirmar como cidadão de pleno direito da utopia
construída pelos fugitivos do zoo de Nova Iorque na ilha africana que dá o nome ao filme.
Mesmo o já citado protagonista de Cars aperfeiçoa-se em dissonância com o modelo do
american dream, aprendendo que a competição não é tudo e que nem sempre ganhar é um
objectivo de vida fulcral. Isto basta para deixar claro que mesmo alguma das narrativas mais
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conformes ao modelo tradicional de herói apresentam peculiaridades oriundas do novo
paradigma, não sendo “puras” afirmações de conformidade a modelos tradicionais de status quo.
Em resumo: pressentimos por vezes grandes correntes que fluem sob a nossa cultura e que
poderão vir à tona nestes pequenos mas reveladores epifenómenos. Mas será esta aparente
tendência um caso assim ou apenas um fruto efémero de uma moda lucrativa, a ser descartada ao
primeiro estudo de mercado adverso?
A esta questão, naturalmente não cabe aqui contrapor respostas definitivas. Mais como
curiosidade, indícios de coincidências talvez relevantes, termino com duas menções a artigos
recentes sobre a evolução dos valores pessoais nas sociedades ocidentais.
No gráfico que se segue, Inglehart (2008) parece localizar no final da década de 90 um ponto de
acentuada inflexão, patente nas várias gerações, em direcção a valores pessoais mais «pósmaterialistas» (menos centrados em questões ligadas à sobrevivência):
Na última figura, Almeida et al (2006) esquematizam, utilizando o já citado inventório de
valores de Schwartz, o panorama corrente dos valores dos europeus, dividindo-os por classes. É
difícil não encontrar no trajecto das classes dominantes (justamente as que, de acordo com estes
autores, têm «mais capacidade de espalhar os seus valores e atitudes, opiniões e gostos numa
escala mais alargada») um flagrante paralelo com a evolução que aparentemente tem vindo a
verificar-se nos argumentos das animações de longa metragem: os valores de Auto-determinação
são, de longe, os mais importantes no campo da Abertura à Mudança.
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Tudo somado, uma questão permanece, bem antiga, aliás: será o desejo do público que cria a
tendência ou é a estratégia calculada de quem detém o poder cultural que guia estes ligeiros, mas
talvez ponderosos, terramotos culturais?
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Bibliografia
Abercrombie, Nicholas e Brian Longhurst (1998), Audiences, Londres, Sage
Adorno, Theodor e Max Horkheimer (1944), Dialektik der Aufklärung, Nova Iorque, Social
Studies Association, Inc.
Almeida, João Ferreira, Fernando Luís Machado e António Firmino da Costa (2006), Social
classes and values in Europe, Portuguese Journal of Social Science, Volume 5, n.º 2.
Castells, Manuel (2007), Communication, Power and Counter-power in the Network Society,
International Journal of Communication 1 (2007), 238 - 266
Hesmondhalgh, David (2002), The Cultural Industries, Londres, Sage.
Inglehart, Ronald F. (2008), Changing Values among Western Publics from 1970 to 2006, West
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Hitlin, Steven e Jane Allyn Piliavin (2004), Values: Reviving a Dormant Concept, Annual
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Schwartz, Shalom (1992), Universals in the content and structure of values: theoretical
advances and empirical tests in 20 countries. In Advances in Experimental Social Psychology,
ed. MP Zanna, pp. 1–65. San Diego.
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