A Harpa e a Sombra: Um Exercício Barroco

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A Harpa e a Sombra: Um Exercício Barroco
I Congresso Internacional de Pesquisa em Letras no Contexto Latino-Americano e
X Seminário Nacional de Literatura, História e Memória
21 a 23 de Setembro de 2011
UNIOESTE – Cascavel/PR
A Harpa e a Sombra: Um Exercício Barroco
MACHADO, Janer Cristina. (Programa de Pós-Graduação em Letras – UFSM – Universidade
Federal de Santa Maria)
RESUMO: O cubano Alejo Carpentier é apontado nos estudos de Seymour Menton como o
pioneiro da chamada Nova Novela Histórica na América Latina. Também é adepto manifesto
do barroquismo, traduzido em suas obras por meio, sobretudo, da conjunção entre os claros e
escuros de relatos que reinventam a História Oficial. Tal recriação promove uma simbiose
entre os contextos telúrico e épico-político, assim como suscita reflexões sobre as diferenças
entre Velho e Novo Mundo, enfatizando uma ótica carnavalizada da existência de terras e
gentes. Partindo dessa caracterização do autor e de sua obra, escolhemos como objeto de
investigação o romance A Harpa e a Sombra (1979), que narra em estrutura tripartite a saga
de Cristóvão Colombo na vida e na morte, apresentando-nos uma narrativa autobiográfica do
genovês que descobriu a América, bem como os intentos do papa Pio IX por canonizá-lo e o
malogro dessas intenções. O mote de nossa discussão é a delimitação de um espaço de
intersecção entre a escritura do texto e a construção de uma trama metafórica, espaço este
para o qual convergem as concepções de barroco, neobarroco e realismo maravilhoso,
intrínsecas à criação carpentieriana. Neste espaço, delineia-se também o diálogo entre ficção e
História, com a experiência histórica tendo como fio condutor de sua revelação o oximoro,
encarnado em pares como cultura global e cultura local, publicidade e privacidade, certeza e
incerteza, realidade e representação.
PALAVRAS-CHAVE: Neobarroco; História; escritura do texto; trama metafórica; oximoro
ABSTRACT: The Cuban Alejo Carpentier is pointed in the studies of Seymour Menton as
the pioneer of the so-called New Historical Novel in Latin America. It is also clear supporter
of the Baroque, translated into their works by means, above all, the conjunction between dark
and light of reports that reinvent the Official History. Such recreation promotes a symbiosis
between telluric and epic and political environments and raises thoughts about the differences
between Old and New World, emphasizing the carnivalesque like a privileged perspective
about the existence of lands and people. From this characterization of the author and his work,
the present text chooses as the object of investigation the novel A Harpa e a Sombra (1979),
which tells the saga in tripartite structure of Christopher Columbus in the life and death,
presenting us with an autobiographical narrative by the Genoese discoverer of America, as
well as the intents of Pope Pius IX to canonize him and the failure of these intentions. The
theme of this discussion is the delineation of an area of intersection between the writing of the
text and the construction of a metaphorical plot, a space for which converge to the concepts of
Baroque, neo-Baroque and marvelous realism, intrinsic to the Carpentier’s creation. In this
space, this work also situates the dialogue between fiction and history, with historical
experience having its guiding principle of revelation in the oxymoron, embodied in pairs as
global culture and local culture, public and private, certainty and uncertainty, reality and
representation.
KEYWORDS: Neo-baroque; History; textual writing; metaphorical plot; oxymoron
O conceito de barroco é algo que tem atravessado as fronteiras da periodização
temporal e espacial para ingressar, cada vez mais, no âmbito das manifestações ligadas à
construção de um modus vivendi e de toda uma atitude perante a existência humana e as
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transformações da História. Deixando de ser exclusivamente uma perspectiva sob a qual se
analisar as expressões artísticas de um povo e de uma época, passa a trair o olhar, geralmente
estarrecido, de um ser que busca se identificar e também reconhecer o orbe ao qual pertence,
cônscio apenas de que navega entre as vagas tempestuosas de uma transição não de todo
pacífica entre Modernidade e Pós-Modernidade.
Tal estado de coisas só faz intensificar quando adentramos o espaço-tempo
latinoamericano, cujas especificidades comportam a constante interrogação da vigência
barroca e\ou neobarroca em suas demandas pela assunção de uma identidade cultural própria,
sobretudo no que tange à criação literária. No entanto, estudiosos como Sánchez (2006,
p.137), não se furtam a salientar:
Ciertamente, dentro del amplio espectro de los estudios literarios
contemporáneos, referir-se a la “cuestión del Barroco” o al Neobarroco, y
em particular a la elaboración criolla del primero neobarroquismo
hispanoamericano, significa enfrentar complejas problemáticas que
comprometen saberes cruzados de teoria, história y crítica literarias. Por una
parte, es necesario actualizar la discussión sobre la naturaleza del Barroco, si
es estilo de época, formalización estética específica, código cultural,
constante metahistórica del espíritu humano que reencarna ciclicamente em
circunstancias determinadas. Por otra, es necesario repensar las dinâmicas de
la história literaria dentro de la História General de la Cultura, com el objeto
de percibir las condiciones de producción y de recepción de textos literarios
e objetos culturales que hoy reconocemos como barrocos.
Neste ato de repensar o conceito de Barroco, confrontamos o mesmo, primeiramente,
como possível período artístico vinculado a um determinado recorte espaço-temporal, inserto
no auge do século XVII e parte do século XVIII ocidentais. Aqui julgamos ser oportuna a
transcrição do pensamento de Pfandl e Sáinz – na interpretação de Coutinho (1997, p.22),
para descrever o pensar e o agir de toda uma época:
O naturalismo barroco exprime-se em ávido impulso vital, brutalidade,
imoralidade, crueldade, cínico espírito de burla, criminalismo, ao lado de
desengano, truculência, melancolia, hipocondria. O ilusionismo é a parte da
espiritualidade que persistiu e constitui uma das contradições da época, o
que explica o bifrontismo dos homens, santos e libertinos a um tempo, as
festas mistas, religiosas e profanas, bailes sacramentais em catedrais e
procissões, o deleite da meditação sobre a morte e o inferno, as misturas de
blasfêmias e atos de contrição e exaltação religiosa, etc(...). O homem
barroco é dotado de “furor ingenii”, pelo qual é levado à egolatria e ao
egocentrismo, ao gosto da polêmica, do panfleto, da intriga. Por último, o
homem barroco humaniza o sobrenatural, ligando o céu e a terra, misturando
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os dois planos na sua vida cotidiana, sem que seja preciso deixar de ser
pícaro para participar da visão das coisas celestiais.
Esta identidade simultaneamente pícara e mística pode muito bem ser transladada
para o homem da transição entre Modernidade e Pós-Modernidade, especialmente o cidadão
latinoamericano, em quem o dito Neobarroco sublinha as contínuas tensões entre cultura local
e cultura global, privacidade e publicidade, certeza e incerteza, realidade e representação.
Neste sentido, as manifestações reconhecidas como barrocas, em pleno curso do
século XX, surgem como reações a uma Modernidade equiparada ao Classicismo, na medida
em que apregoam o equilíbrio, a harmonia e a certeza do sucesso como corolários do boom
científico-tecnológico, malgrado a vigência de um abismo entre as realizações da ciência e da
tecnologia e a condição sociocultural marginalizada de grandes estratos da sociedade. Aqui,
Chiampi (1994, p.5) toma o conceito de alegoria barroca proposto por Walter Benjamin e
insiste em uma alteridade barroca da atualidade, a qual compreende uma modernidade
totalmente diversa daquela que sustem concepções progressistas, pois emerge, quase sempre
violentamente, de uma crise abissal. Sarduy (apud CHIAMPI, 1994, p.5) acrescenta:
El barroco actual, el neobarroco, refleja estructuralmente la inarmonia, la
ruptura de la homogeneidad, del logos em tanto absoluto, la carencia que
constituye nuestro fundamento epistêmico. Neobarroco del desequilíbrio,
reflejo estructural de um deseo que no puede alcanzar su objeto, deseo para
el cual el logos no ha organizado más que una pantalla que esconde la
carência (...) Neobarroco: reflejo necesariamente pulverizado de um saber
que ya no está “apaciblemente” cerrado sobre si mismo. Arte del
destronamiento y de la discusión.
Outrora, o tempo seiscentista requisitou o retorno do passado sobre o presente, em um
processo reiterativo da identidade divina, enquanto ordenadora ad aeternum dos vários
recortes históricos que convergem para o ápice da salvação. Outra, porém, é a visão do tempo
neobarroco, despido da onipresença da deidade, conforme destaca Hansen (2008, p.214):
Hoje, quando as utopias iluministas foram postas de lado, a analogia das
produções contemporâneas com a representação seiscentista é determinada
pelas novas formas que a existência do tempo vem assumindo na troca
generalizada. Agora também o tempo aparece como estacionário e “frio”,
porque o futuro, donde até ontem o moderno irrompia como negação
revolucionária do presente, aparece bloqueado. No presente, em que ficou
chato ser moderno, a cultura é a eternidade do arquivo que acumula tudo o
que foi e é como multiplicidade disparatada de ruínas
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Neste viés de desestruturação/reestruturação dos arcanos temporais, a América
Latina neobarroca, espaço-tempo de fracionamento e de discussão, revela-se como
caleidoscópio de formas e faces, em uma leitura que atinge também seu fazer literário. Obra
aberta – cunhando-se a já clássica terminologia usada por Umberto Eco – à construção e
reconstrução das vivências de distintas línguas, raças, credos, tradições, mitos e práticas, a
literatura latinoamericana da segunda metade dos novecentos tece engenhos de aparência e
profundidade únicas. Mais uma vez, comenta Sarduy (apud CHIAMPI, p.7):
Espacio de dialogismo, de la polifonia, de la carnavalización, de la parodia y
de la intertextualidad, lo barroco [y el neobarroco] se presentaría, pues,
como una red de conexiones, de sucesivas filigranas, cuya expresión gráfica
no sería lineal, bidimensional, plana, sino em volumen, espacial y dinâmica.
O tempo deste neobarroco filigranado aplaude a reinvenção da linguagem e da
cultura americanas, confrontando-as com o Velho Mundo no que tange ao poder de
reelaboração da história. Assim, a América possui uma história única não pela sua
originalidade, mas sim pelo poder de criação/recriação do futuro, inscrito na carnavalização
das temporalidades do Novo Mundo. Como acrescenta Sánchez (2006, p.146):
La reorganización de la memória cultural deviene em una poética del
entendimiento histórico: el indiano antes de suprimir la tradición europea, la
evalúa desde la parodia de um concierto que diluye el tiempo y el espacio,
hasta redefinir la identidad como figuración fluctuante de um lenguaje
metamórfico y transformador.
A partir de uma linguagem carnavalizada, polimórfica e multifacetada, nasce uma
literatura que comporta amplos processos poéticos, abrangendo desde a construção metafórica
até a organização textual, em um exercício que vai muito além das reciclagens paródicas,
cenarizações, reiterações organizadas, ilusionismos, representações ambíguas e perversões
arquetípicas. Sua matriz fractual amplia-se ao ponto de cindir a proposta temática,
determinando o oximoro como fio condutor da revelação da experiência histórica. Como
destaca Sánchez (2006, p.151):
La factura neobarroca del lenguaje se deleita en enunciados antitéticos, los
cuales, a la postre, debilitan la contradicción de sus proposiciones: mientras
el relato histórico contiene una naturaleza fictícia, el discurso ficcional
encarna um incuestionable principio de realidad.
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É desta convivência ímpar entre ficção e realidade na literatura latinoamericana que
nascem concepções como a do real maravilhoso de Alejo Carpentier, que, de acordo com
Barreda-Tomás (1972, p.43), ressalta o caráter cíclico e imprevisível da História em uma
simbiose de contextos telúricos e épico-políticos, com a narrativa desprendendo-se
paulatinamente da experiência histórica para a constatação da força da lenda e da
sobrevivência do mito enquanto expressões privilegiadas da condição humana.
De Carpentier, que Sánchez (2006) e Chiampi (1994) destacam como mestre do
barroquismo na literatura latinoamericana do século XX, assim como Menton (1993) aponta
ser o pioneiro da chamada Nova Novela Histórica, escolhemos o romance A Harpa e a
Sombra (1979) como objeto de estudo do presente texto. Nossa meta compreende a
investigação da presença de matizes de barroco e\ou neobarroco nesta que pode ser
classificada como uma visão muito particular da descoberta da América, pois que se propõe a
desnudar a alma do célebre genovês em uma viagem antitética aos arcanos da condição
existencial de homens e de povos. Buscamos, na intersecção entre os espaços de escritura do
texto e de construção da metáfora, encontrar a imago da terra americana e de seu dito
descobridor, imago esta que vislumbramos colorida com tintas barrocas na riqueza
contraditória de seu ser.
A ESCRITURA DO TEXTO
Obra romanesca dividida em três partes, A Harpa e a Sombra
relata, em um
primeiro capítulo, o início de um processo eclesiástico em prol da beatificação do navegante
genovês, proposta esta advogada pelo então papa Pio IX. O segundo capítulo traça uma
narrativa autobiográfica do passado de Colombo, que rememora seus feitos já às portas da
morte, enquanto aguarda a chegada de um confessor. O último segmento do romance retrata o
julgamento da proposta de beatificação do descobridor da América, enfatizando os libelos
defensivos de prosélitos do almirante e as invectivas veementes de seus opositores de diversos
períodos da História, ao passo que, em um plano sobrenatural, Colombo assiste a tudo na
forma de um espectro errante e desiludido.
Tal condição tripartite da narrativa remete diretamente à estética barroca, se
considerarmos a valorização do fractual e do dissoluto, instaurando uma polifonia de vozes
que recuperam os diversos sujeitos de um discurso que compreende a identidade do
continente americano.
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Segundo Moreira (1993, p.78), por meio do relato cuidadosamente documentado da
saga do cônego Mastaï, mais tarde papa Pio IX, na América, divisamos uma faceta da História
que se quer realística, pois recorre constantemente ao aporte cronológico e geográfico; já na
narrativa autobiográfica de Colombo, o fato histórico se dissolve na autoreferência de um
sujeito que toma o leitor como cúmplice de suas rememorações e reflexões, muitas vezes
postas em dúvida ou ironizadas; por fim, o julgamento do processo de beatificação do
navegador oblitera definitivamente a História Oficial ao conclamar discursos do presente e do
passado, mesclando pessoas e fantasmas em uma cena carnavalizada. Porém, é da união
aparentemente incoerente destas três visões da terra e do homem que vai se construir o todo
da obra, com o coro das diversas vozes perseguindo a unidade final, assim como a obra de
arte barroca procura a manifestação do todo através da expressão – ainda que conflituosa – de
cada uma de suas partes.
A fragmentação do discurso caminha pari passu a outra característica acorde com os
preceitos barrocos, qual seja a do texto em tomadas assimétricas, com longos parágrafos
quase beirando à verborragia, mas plenos de imagens e de sentidos, em que se privilegiam a
vírgula, o ponto-e-vírgula e o ponto final sobre todos os outros signos de pontuação. Vejamos
uma passagem extraída do primeiro capítulo, a qual narra o percurso de Mastaï em meio à
natureza americana:
E logo começou a lenta e trabalhosa subida aos cumes que, engendrando e
distribuindo rios, dividiam o mapa, por caminhos em beiras de precipícios e
quebradas aonde se arrojavam fragorosas torrentes caídas do alto de algum
invisível pico nevado, entre nevadas sibilantes e ululantes respirações de
abismos, para conhecer, acima, a desolação dos páramos, e a aridez das
punas, e o pânico das alturas, e a fundura das covas, e o estupor diante dos
alocamentos graníticos, a pluralidade de escarpas e penhasqueiras, as lajes
negras alinhadas como penitentes em procissão, as escalinatas de xistos, e a
mentirosa visão de cidades arruinadas, criada por rochas muito velhas, de tão
longa história que, soltando farrapos minerais, acabavam mostrando,
desnudas e lisas, suas ossamentas planetárias (CARPENTIER, 1987, p.29).
Aqui, sente-se a força do fluxo verbal que, qual as torrentes descritas, se despenha
em orações intercaladas, batendo-se na reiteração contínua da conjunção “e”, assim como
vivifica a imagética natural por meio do recurso aos símiles, metáforas e prosopopéias
vigorosas, capazes de retratar à perfeição o furor de uma natureza que se faz barroca em seus
contornos tanto agressivos como belos.
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Da abundância discursiva que caracteriza a obra, podemos ainda aventar traços
conceptistas, ao nos reportarmos à valorização da palavra como instrumento de sedução e de
convencimento, tão bem utilizada, de modo confesso, pelo navegante genovês. Como ressalta
Moreira (1993, p.72), “ A Harpa e a Sombra constitui também um lugar de discussão da força
da palavra e da construção do texto ficcional (e do texto histórico)”. É assim que lemos:
E como o importante é começar a falar para continuar falando, pouco a
pouco, ampliando o gesto, retrocedendo para dar maior amplitude sonora às
minhas palavras, meu verbo se foi acendendo e, escutando-me a mim mesmo
como quem ouve outro falar, começaram a rutilar em meus lábios os nomes
dos mais rutilantes monarcas da história e da fábula (CARPENTIER, 1987,
p.115).
Da sanha discursiva de Colombo, impulsionada por “diabólica energia interior”
(CARPENTIER, 1987, p.116), brota o tecido de ouropéis com que ele encanta as majestades
católicas e os marinheiros de suas expedições, calando dúvidas e vencendo resistências, em
um exercício barroco das habilidades da palavra.
A sedução do verbo também se deixa capturar no recurso do narrador – seja a
entidade heterodiegética do primeiro e terceiro capítulos, seja o autodiegético Colombo no
segundo capítulo – às passagens em latim, as quais recuperam algo do tom dos sermonários
barrocos em sua intenção de conferir credibilidade ao discurso. Leiamos:
“Post hominum salutem, ab incarnatio Dei Verbo, Domino Nostro Jesu
Christo, feliciter instauratam, nullum profecto eventum extitit aut
praeclarius, aut utilius incredibili ausu Januensis nautae Christophori
Columbi, qui omnium primus inexplorata horrentiaque Oceani aequora
pertransiens, ignotum Mundum detexit, et ita porro terrarum mariumque
tractus Evangelicae fidei propagationi duplicavit” ... Bem dizia o Primado de
Bordéus: o descobrimento do Novo Mundo por Cristóvão Colombo era o
acontecimento máximo contemplado pelo homem desde que no mundo se
havia instaurado uma fé cristã e, graças à Proeza Ímpar, se dobrara o espaço
das terras e mares conhecidos aonde levar a palavra do evangelho ...
(CARPENTIER, 1987, p.15).
No entanto, se o narrador-cronista do primeiro capítulo reproduz ciosamente o
discurso do bispo de Bordéus para encampar a veracidade das inclinações do papa Pio IX em
favor de Colombo, o narrador-descobridor-confitente que se apresenta no segundo tomo
prefere recorrer à tragédia clássica para ilustrar suas veleidades premonitórias, escolhendo a
Medeia de Sêneca como porta-voz de seu fado grandioso: assim é que virá um “Tethysque
nouos”, capaz de alargar as dimensões do mundo conhecido para além do que se considerava
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a “ultima Thule”, um novo Tífis cujo talento agourado pelos deuses levaria à descoberta de
novas terras (CARPENTIER, 1987, P.64).
Imbuído da força da palavra, Christo-Phoros, predestinado a conduzir o Evangelho
até os confins do mundo conhecido e desconhecido, se deixa revelar através da escritura do
texto, que tece uma malha barroca à qual ainda falta entrelaçar a tessitura metafórica,
desvendando o ser integral do descobridor e de sua descoberta.
A CONSTRUÇÃO DA METÁFORA
Qual efígie barroca se desvelando entre a luz e a obscuridade, o Cristóvão Colombo
que se desnuda para os leitores no segundo capítulo de A Harpa e a Sombra se apresenta
como construto pleno de antíteses, imago de um homem torturado pelas lembranças, mas que
não perde a capacidade de ironizar suas próprias realizações e seu próprio destino:
Dentro desse corpo derrubado pelas fadigas e achaques, está o eu do fundo,
ainda claro de mente, lúcido, memoriado e compendioso, testemunha de
portentos, sujo de fraquezas, promotor de escarmentos, arrependido hoje do
feito de ontem, angustiado diante de si mesmo, sossegado diante dos demais,
por sua vez medroso e rebelde, pecador por Divina Vontade, ator e
espectador, juiz e parte, advogado de si mesmo perante o Tribunal da
Suprema Instância onde também quer ocupar cadeira de Magistrado para
ouvir-se os argumentos e olhar-se no rosto cara a cara. E erguer as mãos e
clamar; e alegar e responder, e defender-me diante do dedo tenso que me é
fincado no peito, e sentenciar e apelar, alcançar as últimas instâncias de um
juízo onde, ao final das contas, estou só, só com minha consciência que
muito me acusa e muito me absolve ... (CARPENTIER, 1987, p.46-47).
Este Colombo da hora derradeira propõe-se, em um primeiro olhar, à purgação de
uma vida de pecados e engodos por meio do rito confessional: “E haverá que se dizer tudo.
Tudo, mas tudo. Entregar-me em palavras e dizer muito mais do que desejaria dizer ...”
(CARPENTIER, 1987, p.45).
O “dizer tudo” remeterá fatalmente à exposição de uma existência em que sobraram
todos os vícios – excetuando-se a preguiça – destacando-se, sobretudo, a luxúria exercitada
com “fêmeas” de todas as partes e de todas as cores, e a soberba, diligentemente praticada na
construção de uma rede de mentiras, com vistas a seduzir para seu empreendimento marítimo
os poderosos de seu tempo. Nas palavras do próprio e autointitulado almirante:
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Armava meu teatro diante de duques e altezas, financistas, freis e homens
ricos, clérigos e banqueiros, grandes daqui, grandes de lá, erguia uma cortina
de palavras e, no instante, aparecia em desfile deslumbrante, o grande
entrudo do Ouro, do Diamante, das Pérolas, e, sobretudo, das Especiarias
(CARPENTIER, 1987, p.68).
A contínua montagem de seu “Retábulo de Maravilhas” (CARPENTIER, 1987, p.78)
logo converte Colombo em “grande e intrépido embusteiro” (Idem, p.67). Parco conhecedor
dos fundamentos náuticos (os quais deve à sabedoria de Mestre Jacob), institui-se como
experimentado marinheiro. Por último, torna-se incapaz de ler um texto sem enxergar
presságios subliminares de sua grandeza, convertendo-se no mentiroso que se deixa enredar
em sua própria mentira.
Neste contexto de perpétua fraude, o navegante genovês sublinha a artificialidade de
um mundo barroco, no qual o herói se assume como pícaro inveterado, useiro e vezeiro na
arte de manipular a vontade alheia por meio da “cortina de palavras”: “Me fui fazendo gente
e, como gente que era, manejava a intriga com maior sorte do que antes” (CARPENTIER,
1987, p.74). É assim que convence os reis católicos de Aragão e Castela – acrescendo-se
ainda um parêntese para seu interlúdio amoroso com a rainha Isabel – a financiarem-lhe uma
expedição às terras desconhecidas, na intenção de proclamar o evangelho ( e muito
certamente de amealhar riquezas) na “aleluia de geografias deslumbrantes” (Idem, p.78) do
oeste ainda ignorado.
Adepto da Docta ignorantia (CARPENTIER, 1987, p.87), creditando seu sucesso à
audácia e esperteza capazes de abrir portas mais rapidamente que a lógica e a sabedoria
formalmente adquirida, Colombo acredita mais do que tudo na força da palavra, cujo encanto
fluido seduz e contagia, convertendo o homem em metáfora daquilo que escapa de seus
lábios, construto indelével de suas habilidades verbais.
Neste sentido, o apreço do descobridor da América pela Medeia de Sêneca não se
revela gratuito, pois Colombo se equipara plenamente ao herói grego Jasão, que, na leitura de
Brandão (1993, p.156), vence os perigos de uma travessia para terras desconhecidas
enganando todo um reino estrangeiro, assim como obtendo a riqueza almejada através da
sedução de sua princesa.
Qual novo Jasão, Colombo exercita sua loquacidade persuasiva em vida e também
se sente assegurado por ela no post mortem , quando, convertido em espectador invisível,
chega a ter certeza de sua promoção à entidade hagiográfica:
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Oh, grande, grande grande Christophoros, ganhaste a partida, tua auréola
está nas portas, haverá Consistório, terás altares em todas as partes, serás
como o gigante Atlas, cujos potentes ombros já carregam, para sempre, um
mundo que tu fizeste redondo, posto que, graças a ti, veio a se arredondar
uma terra que era plana, limitada, circunscrita ... (CARPENTIER, 1987,
p.155).
Porém, é a desmedida de sua própria vaidade que acaba por sabotar os projetos de
beatificação, pois seus detratores logo inventariam a ganância de quem quis comerciar com a
escravidão indígena, assim como a luxúria daquele que não se negou os amores ilegítimos. O
Invisível, avatar sobrenatural do célebre navegante, em ideia tão cara à concepção de
simulacro, acorde à estética de inspiração seiscentista, logo se depara com a derrubada de
suas pretensões à santidade. É então que exclama:
Me fodi (...) Antes de abandonar a estância, dirigiu um último olhar à pintura
que mostrava o martírio de São Sebastião. – Como tu, fui flechado ... Mas as
flechas que me trespassaram me foram disparadas, afinal de contas, pelos
arcos dos índios do Novo Mundo, aos quais eu quis agrilhoar e vender
(CARPENTIER, 1987, p.169).
Em sua vida terrena, à semelhança do mito helênico, o genovês se deixa levar por
sua ganância e ânsias de glória, acabando por terminar seus dias solitariamente. E, ainda mais
do que Jasão, continua execrado por muitos, como atesta o terceiro capítulo do romance de
Carpentier, no qual a pretensa santidade do navegador é definitivamente descartada diante de
seus olhos espectrais, para que sua sombra de “Homem-condenado-a-ser-um-homem-comoos-demais” (CARPENTIER, 1987, p.175) se dilua em meio aos destinos mais banais de um
Tífis obscuro. Tal dissolução se coaduna à concepção barroca da efemeridade da existência e
da glória humanas, do homem metaforizado em pó, que é sombra e cinzas de qualquer sonho
de grandeza, assim como joguete inevitável da inconstância dos fados.
Tanto quanto a construção da metáfora humana, a obra de Carpentier também
responde pela instituição de símiles da terra, pois é na América e pela América que Colombo
se revela como descobridor de seu próprio destino. Leiam-se aqui as palavras do genovês ao
fim do segundo capítulo:
Fui o Descobridor-descoberto, posto ao descoberto; e sou o Conquistadorconquistado, já que comecei a existir para mim e para os outros no dia em
que cheguei lá e, desde então, são aquelas terras as que me definem, cospem
em minha figura, me param no ar que me circunda, me conferem, perante
mim mesmo, uma estatura épica que todos já me negam, e mais agora que
morreu Columba, unida a mim em uma façanha o já bastante povoada de
prodígios para ditar uma canção de gesta apagada, antes de ser escrita, pelos
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novos temas de romances que se oferecem à avidez da gente
(CARPENTIER, 1987, p.140).
Neste espaço de revelação de identidade que são as terras americanas, não encontra
Colombo sua pátria, ele que toda a vida foi um estrangeiro, vivendo de simulacros e engodos.
Para o fingido almirante, a América, antípoda completo da Europa, apresenta-se além da
compreensão, locus “onde nada se te definiu jamais em valores de nação verdadeira”
(CARPENTIER, 1987, p.141).
Mesmo o encantamento do primeiro contato com o Novo Mundo já trai a
incapacidade de compreensão deste por parte do navegador europeu, imbuído de todo um
universo de referências que não encontra lugar na América recém descoberta, para a qual
Colombo se confessa incapaz de tecer um código próprio:
Fui sincero quando escrevi que aquela terra me pareceu a mais formosa que
olhos humanos teriam visto. Era rija, alta, diversa, sólida, como que talhada
em profundidade, mais rica em verdes-verdes, ,mais extensa, de palmeiras
mais em cima, de arroios mais caudalosos, de altos mais altos e ribanceiras
mais fundas, que o visto até agora em ilhas que eram para mim, confesso,
como que ilhas loucas, ambulantes, sonâmbulas, alheias aos mapas e noções
que me haviam nutrido. Havia que descobrir essa terra nova. Mas, ao tentar
fazê-lo, me achei diante da perplexidade de quem tem de dar nomes a coisas
totalmente diferentes de todas as conhecidas – coisas que devem ter nomes,
posto que nada que não tenha nome pode ser imaginado, mas esses nomes
me eram ignorados e eu não era um novo Adão, escolhido por seu Criador,
para dar nomes às coisas (CARPENTIER, 1987, p. 99).
O fausto hiperbólico da natureza americana, em que tudo é “mais” em relação aos
parâmetros europeus, acaba por se converter em motivo de decepção para o genovês, na
medida em que lhe nega a posse dos tesouros que cobiça. A conquista das novas terras logo se
converte em mascarada barroca, na qual Colombo finge aceitar e tomar posse do Novo
Mundo que lhe é oferecido, ao passo que os nativos parecem não reconhecer suas reais
intenções, tampouco colaborando para que o genovês encontre seu tão ansiado ouro. Do
fastio da hipérbole, passa então o navegador para as teias da ilusão, espelhando mais uma das
facetas de sua incapacidade em reconhecer as alteridades de terra e gente americanas:
E eu ficava em posse de suas terras sem que eles se inteirassem de nada e,
sobretudo, sem que aquela tomada de posse, em nome de etcétera, etcétera,
etcétera (o mesmo de sempre!), me trouxesse maiores benefícios. (E eu
regressava a minha nau, em bote que passava lentamente sobre bancos de
coral que sob o sol cambiante daqui, se tornavam para mim uma miragem
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imersa, onde tudo parecia outra coisa e, vendo tais jogos de cores, se podia
acreditar que neles entravam as cintilações mágicas da esmeralda e dos
adamas, do astrião e dos crisóprasos das Índias, da selenita da Pérsia, e até
do lincúrio que, como é sabido, nasce da urina do lince, e da dracontita, que
se extrai do cérebro do dragão ... Mas só “se podia acreditar”, porque se
metias a mão e agarravas algo, teus dedos ficavam ensanguentados sem
maior benefício do que o de tirar alguma coisa que, ao secar-se, tornava-se
algo como um pedacinho de ramo apodrecido ... E o que era tido como
magnífica crisocola, que é das terras asiáticas onde as formigas, sozinhas,
tiram o ouro do solo, virava, para teu grande despeito, crisopéia – e que me
perdoem a piada de mau gosto (CARPENTIER, 1987, p.105).
À sedução da hipérbole, sucede o desencanto da miragem: as duas faces da
representação barroca encarnam aqui o encontro entre o exagero e a carência, com o
deslumbramento e a decepção se entrelaçando em um abraço que não pode ser outro que não
o da incompreensão, num primeiro momento disfarçada, mas logo em seguida escancarada
no esboroar de lendas que se convertem em vestígios como o do coral putrefato.
Contudo, se a América deixa de ser o legendário Eldorado para Colombo, continua
sendo terra prometida para muitos. País da cocanha de seus primeiros descobridores – os
vikings -, o Novo Mundo se faz esperança de futuras glórias da religião para o cônego
Mastaï, fascinado pela desmedida de suas paisagens e pela impulsividade de seus povos:
Uma natureza assim só podia engendrar homens diferentes – pensava – e o
futuro diria que raças, que empenhos, que ideias sairiam daqui quando tudo
isso amadurecesse um pouco mais e o continente adquirisse uma consciência
plena de suas próprias possibilidades (CARPENTIER, 1987, p.29).
Nesta América:
Havia mais, muito mais do que gaúchos e gaudérios, índios pérfidos,
portentosos, boleadores, ginetes de um magnífico aspecto, repentistas que,
rasgando o violão, cantavam a imensidão, o amor, o desafio, a macheza e a
morte. Por cima de tudo isso, havia uma humanidade em efervescência,
inteligente e voluntariosa, sempre inventiva, embora às vezes desonesta,
geradora de um futuro que, segundo pensava Mastaï, seria preciso
emparelhar com a Europa (CARPENTIER, 1987, p.36).
Porém, é novamente o descobridor-colonizador Colombo que, na tentativa de
“emparelhar” à Europa a exuberância peculiarmente barroca do continente americano, grassa
em falhas, definindo pela negação a sua “descoberta”: é uma terra que não tem ouro, nem
especiarias, não é Cipango, nem Catai, pouco ou nada oferecendo ao europeu ávido de
riquezas. Nas palavras do próprio Colombo:
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Irritado perante esses índios que não me entregam seus segredos, que já
ocultam suas mulheres quando nos aproximamos de seus povoados porque
nos têm por gente desonesta e luxuriosa; perante esses desconfiados e
atrevidos que já, de vez em quando, nos disparam flechas – embora sem nos
causar maiores danos, para dizer a verdade – deixo de vê-los como seres
inocentes, bondosos, inermes, tão incapazes de malícia como a de ver a
nudez como indecorosa, que idilicamente pintei a meus amos no regresso da
primeira viagem. Agora lhes vou dando, cada vez mais amiúde, o nome de
canibais – embora jamais os tenha visto alimentar-se de carne humana
(CARPENTIER, 1987, p.123).
É assim que, habitada por “índios sacanas” (p.106), que não têm religião, nem
utilizam língua conhecida, a “Índia das especiarias” se transforma logo na “Índia dos
canibais” (p.123), inferno de almas ignorantes da santa fé cristã, metáfora de uma terra
selvagem e de alteridades perigosas, que precisa ser dominada, submetida, por fim chacinada
para ser compreendida.
Por outro lado, a América incompreendida devolve a Colombo seu olhar de espanto
mesclado ao desprezo, pontuando seu rechaço ao conquistador por meio da crítica
desapiedada de um modus vivendi que lhe é tão estranho quanto indesejável:
Eu soube que esses homens nem gostavam de nós nem nos admiravam: nos
encaravam como pérfidos, violentos, mentirosos, coléricos, cruéis, sujos e
fedorentos, estranhados por quase nunca nos banharmos, eles que, várias
vezes ao dia, refrescavam seus corpos nos riachos, cascatas e canhadas de
suas terras. Diziam que nossas casas eram empestadas de gordura rançosa;
de merda, nossas ruas estreitas; de cheiro de sovaco, nossos mais lúcidos
cavalheiros, e que se nossas damas vestiam tantas roupas, corpinhos,
babados e enfeites, era porque, certamente, queriam ocultar deformidades e
chagas que as tornavam repulsivas – ou então se envergonhavam de suas
tetas, tão gordas que sempre pareciam prestes a lhes saltar para fora do
decote. Nossos perfumes e essências – também o incenso – lhes faziam
espirrar; se afogavam em nossos estreitos aposentos, e imaginavam que
nossas igrejas eram lugares de escarmento e espanto pelos muitos
entrevados, inutilizados, piolhentos, anões e monstros que se apinhavam em
suas entradas. Tampouco entendiam por que tanta gente que não era da tropa
andava armada, nem como tantos senhores ricamente ataviados podiam
contemplar, sem se envergonhar, do alto de suas reluzentes montarias, um
perpétuo e gemente mostruário de misérias, purulências, cotos e andrajos
(CARPENTIER, 1987, p.121).
No encontro destes dois mundos tão díspares, avulta o oximoro inconciliável entre o
que vive de aparência e o que se faz verdadeiro, entre o que se oculta nas alcovas e o que se
revela nu, entre o que valoriza a posse e o que ama a experiência. E dos pares antitéticos
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emanam a impossibilidade de comunicação que não pela força, o intento de suplantar a
linguagem do desconhecido pelo dialeto da conquista, buscando sufocar a polifonia das
alteridades na ilusão do unificar e do civilizar.
Ao optar pelo discurso do conquistador, Colombo se converte em representante
daquilo que Todorov (1993, p.138) chama de sociedade de massacre, renunciando para
sempre a encontrar sua identidade ou sua pátria na América “por ele” descoberta. É então
que, figura inadequada à santidade dos altares de dois mundos, se vê relegado ao ostracismo
da e na eternidade pelos mesmos indígenas que quis escravizar, povos para quem foi um
estranho vindo de uma terra estranha, ator de mascaradas convencido de sua parte na epopeia,
mas que, ao desvelar para o Velho o Novo Mundo, quis cingir uma terra que acabou lhe
ficando grande demais.
Ao encerrarmos nosso périplo pelos caminhos que Alejo Carpentier traçou como
coordenadas da vida de Cristóvão Colombo, não podemos deixar de compreender A Harpa e
a Sombra como um grande e singular exercício barroco. A escritura do texto se coaduna à
construção da metáfora para desvelar um jogo de claros e escuros que reproduz fielmente as
incertezas de identidade de homens e terras, considerados sob a ótica de olhos estranhos,
olhos que ora enxergam, ora ignoram as profundezas do ser.
Encontramos um Colombo que se entrega ao rito confessional como tentativa de
catarse de toda a sua trajetória, mas não consegue renegar seu status de permanente fingidor,
pois segue hesitante em relação ao teor de suas revelações, temendo trair de algum modo
aquilo que não poderia “ficar escrito em pedra-mármore” (CARPENTIER, 1987, p.144).
Artífice da palavra enganosa durante toda a sua existência, encarna o mundo como
representação, tão caro à estética barroca, assim como recorre à fabulação épica na ânsia de
reconstruir sua gesta de navegações, embora não escape da reflexão irônica sobre as vaidades
e ganâncias que moveram suas peripécias. Despido de pátria tanto no Velho como no Novo
Mundo, resta-lhe procurar a “única pátria possível”, “aquela que ainda não tem nome”
(CARPENTIER, 1987, p.141) e que lhe mostrará quem verdadeiramente ele é.
E se Colombo mergulha na incerteza de sua identidade, para depois fixar-se como
Invisível sem face e sem altares, também permanece a América – sua “descoberta” – como
uma incógnita identitária. Ela define seu “descobridor”, mas permanece sem definir a si
própria, qual pérola barroca de superfície irregular, exibindo tantas faces quantas são as
possibilidades de vê-la. De certa forma, ainda continua sendo a terra da Cocanha dos vikings,
aquela de natureza exuberante e povos impetuosos, construindo sua história à sombra do
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sincretismo entre telúrico e político. País de “entresueños y sueños”, para cunhar versos
borgianos, somente pode ser compreendida à luz de um olhar atemporalmente barroco, que
divise a maravilha como parte integrante do real, olhar que Carpentier consegue
magistralmente registrar por sobre os séculos de História que nos separam de um navegador
genovês cujos sonhos também eram barrocos.
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