coreia do sul

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É um país a duas velocidades, dividido entre a tradição milenar, que faz questão
não só de manter no presente como também de preservar para as gerações vindouras,
e a modernidade, sem a qual já não vive. Um país na dianteira tecnológica do mundo,
com os pés fincados na Ásia, mas o olhar fixo no Ocidente.
NIRVANA
COREIA DO SUL
PÓS-MODERNO
TEXTO E FOTOGRAFIAS DE RAFAEL ESTEFANIA
Volta ao Mundo outubro 2012
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A dedicação das jovens à aprendizagem das disciplinas de outros séculos
é o lado oposto da Coreia do Sul futurista, viciada
na última tecnologia, moderna e consumidora da cultura ocidental.
C
om a destreza de um barbeiro, o
movimento rítmico circular do pincel da professora mistura o pó verde
à água quente, criando uma fina
capa de espuma na superfície do líquido. O arranjo
floral, a delicada toalha de seda que adorna a mesa,
os movimentos precisos das mãos, a temperatura
exata da água... cada ação é parte de uma coreografia
rigorosa, desenhada como instrumento de meditação
do budismo zen e transmitida de professores a alunos
ao longo de séculos.
O resultado desse ritual é um aromático chá
Matcha, servido com cerimónia em chávenas de porcelana
e recebido pelos presentes com uma respeitosa inclinação
de cabeça e as mãos unidas em clássica reverência budista.
Por fim, os presentes admiram o viço do chá, a sua
fragrância e, finalmente, levam a chávena aos lábios
para saboreá-lo em silêncio e com os olhos fechados.
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Como um bonsai
retorcido de
grandes proporções, a árvore
centenária (nas páginas
anteriores) empresta
maior bucolismo às casas
tradicionais da pitoresca
aldeia de Yongin.
Enquanto observo esse ritual, numa outra parte do
templo uma fila de mulheres impecavelmente uniformizadas com hanboks dourados aprendem a cerimónia
do chá Panyaro, uma versão menos elaborada do que
a ancestral Matcha, de joelhos sobre as suas pequenas
mesas e sob o olhar implacável da instrutora.
Num quarto ao lado do templo, outras alunas estudam
caligrafia através da escrita de poemas e de provérbios
budistas com delicados traços sobre papel de arroz.
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Protegida pela sua
sombrinha, uma
mulher contempla a paisagem
serena do parque Tumuli, na
fotografia à esquerda; em baixo,
podemos ver um homem em traje
de festa na aldeia de Gyeongju
e as belas cores outonais.
A dedicação das jovens à aprendizagem dessas
disciplinas de outros séculos é o lado oposto da Coreia do Sul futurista, viciada na última tecnologia,
moderna e consumidora voraz da cultura ocidental.
Aqui, protegidos pelas milenares paredes do templo,
sem telemóveis, tablets ou outras formas de conexão
que não a espiritual, os coreanos vêm para se encontrarem a si mesmos e, no interim, com as suas
próprias tradições.
Como ir
A Emirates Arlines
(emirates.com/pt)
voa para Seul,
a partir de Lisboa,
desde 686 euros.
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ALOJAMENTO COM
VISTA AO NIRVANA
Com mais de novecentos templos budistas espalhados pelo país, estando cinquenta
deles inscritos no programa Temple Stay, os caminhos para a luz são muitos.
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Templo de Beomeosa
na região de Busan. Uma estada focada
na meditação Seon, que inclui cantos,
prostrações, cerimónias de chá e
conversas com os monges.
Templo de Jogyesa
localizado a menos de meia hora de Seul,
oferece um programa de meio dia aos
visitantes que queiram uma experiência
express da vida monástica.
Templo de Golgosa
templo numa cova e no qual se pratica um
intenso programa que combina meditação
com o Sunmudo, uma arte marcial zen
transmitida de geração a geração.
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Templo de Yonggungsa
com vista para o mar. Um dos poucos
templos budistas na costa da Coreia.
É certamente mais fácil relaxar com o som
das ondas em fundo.
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Templo de Myogaksa
situado nas montanhas de Naksan,
nos arredores de Seul. De lá é possível
admirar a grande metrópole sem ter
de sofrer com o seu caos.
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Ninguém me disse que o caminho para a luz era fácil, mas, após dois dias de regime
monástico, a dormir no chão ou a comer frugalmente (...)
comprovo o que suspeitava: a minha vida interior é uma lástima.
É um contraste extremo entre duas realidades de
um mesmo país de dupla personalidade. Esse pensamento passa pela minha cabeça às quatro da manhã,
enquanto permaneço sentado sobre os meus joelhos,
tentando, em vão, libertar a minha mente com a
repetição de 108 prostrações matinais e o duvidoso
consolo de que, depois delas, me espera um dia dedicado à meditação e ao trabalho. O mesmo templo onde
fui testemunha de aulas magistrais oferece também
a possibilidade de experimentar a vida dos monges
budistas, já que é possível a hospedagem com eles e
acompanhá-los na sua rotina diária.
Ninguém me disse que o caminho para a luz
era fácil, mas, após dois dias de regime monástico,
a dormir no chão, a acordar antes do Sol, a fazer
trabalhos comunitários, a comer frugalmente e a
submeter o corpo e a mente a uma luta constante
contra as suas vontades (o meu corpo, com o seu
anseio por um colchão de molas e travesseiros de
penas; a minha mente, com a sua facilidade para
divagar), abandono o templo com uma sensação
mista de satisfação, por ter pelo menos conseguido
debruçar-me sobre a janela do meu próprio ser, e com
certa inquietação, ao comprovar o que suspeitava: a
minha vida interior é uma lástima.
Apesar do esforço, a estada em templos budistas
é uma forma incrível de entrar na história da religiosidade coreana e em mosteiros ancestrais que, como
o Jeondeungsa, o templo mais antigo da Coreia, nos
ligam a um passado de mais de 1700 anos. A experiên­
cia do Temple Stay (estada em templos), iniciada há
quase uma década, sem dúvida funciona: os escassos
mil estrangeiros que meditaram nos 33 templos em
2002 passaram a setenta mil aspirantes à espiritualização em 2006, vindos do mundo todo para buscar a
luz em cinquenta templos.
Fora do perímetro dos templos, o passado da Coreia
segue vivo em Gyeongju, no Sudeste do país, a quatro
horas de distância de Seul. Antiga capital do império
Silla, que dirigiu os destinos da Coreia entre os séculos
xvii e xix, é o lugar do país onde é conservado o maior
e mais importante acervo de vestígios arqueológicos da
península coreana. O mausoléu nacional, o templo de
Bulguksa, a cova de Seokguram, o povoado tradicional
de Yandong e os túmulos de Tumuli Park contribuem
para que esta região seja a mais visitada pelos turistas
interessados em mergulhar na história do país. Apesar
disso, e diante do modesto número de turistas estrangeiros que visitam a Coreia (em comparação com os
vizinhos Japão e China), a sensação é a de que este
lugar está ainda por descobrir.
Tempo de explorar a outra face da moeda e ir
para Seul. Nenhuma metáfora é mais apropriada para
ilustrar esta viagem ao futuro do que o comboio supersónico KTX que me leva da estação de Dongdaegu a
mais de trezentos quilómetros por hora, cortando o ar.
O ritual da
preparação
e da degustação do chá
é levado muito a peito e ponto
de honra na cultura sul-coreana,
tanto que muitas jovens fazem
questão de aprendê-lo com
todos os preceitos.
A meditação não
é para todos, mas
vários templos na Coreia do Sul
proporcionam esta experiência,
que vai muito além da simples
transcendência, e implica toda
uma disciplina e força
de vontade quase férreas.
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Nenhuma metáfora é mais apropriada para ilustrar esta viagem ao futuro do que o
comboio supersónico KTX que me leva da estação
de Dongdaegu a mais de trezentos quilómetros por hora, cortando o ar.
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A fronteira DMZ é mais uma atração turística para os estrangeiros do que um
motivo de preocupação para os sul-coreanos. Para a nova
geração, a verdadeira ameaça seria uma hipotética reunificação.
Não é que Seul não tenha vestígios históricos (os
palácios de Gyeongbokgung e Changdeokgung são duas
amostras imponentes), mas na atitude coletiva dos seus
habitantes o passado parece mais um obstáculo, uma
mala pesada a ser arrastada na corrida vertiginosa para
a frente. Nem mesmo o passado recente e o inacabado
conflito com a vizinha Coreia do Norte, que rachou
a península em dois, perturbam os seus habitantes.
A fronteira DMZ é mais uma atração turística para
os estrangeiros do que um motivo de preocupação
para os sul-coreanos. De facto, para muitos da nova
geração, a verdadeira ameaça do outro lado seria uma
hipotética reunificação que travasse o crescimento
e o padrão de vida.
Ao passear pelas ruas do bairro de Itawon, nota-se logo que a alma da cidade rendeu-se, faz tempo, à
modernidade: endereços da moda estão por todo o lado
e fazem do consumo um desporto nacional.
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Manda a tradição
local que não se
coma nem se beba sozinho.
Por isso mesmo, não estranhe se,
tal como num filme, for abordado
por grupos de jovens bem-dispostos
que tratarão de o chamar para a
sua mesa.
As omnipresentes armações de óculos (na maioria
das vezes usadas sem lentes graduadas) são o acessório
preferido dos jovens e a marca cool das novas gerações, responsáveis em grande parte pelas mudanças
vertiginosas que Seul tem vivido na última década,
até tornar-se uma referência de vanguarda made in
Asia. Mesmo o Japão, símbolo da modernidade do
continente, move-se agora ao ritmo da música pop
coreana (chamada de k-pop). Grupos musicais como
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O bairro de
Myeongdong,
na capital sul-coreana,
converteu-se, como as
fotografias o comprovam, numa
verdadeira babel de néons, só
comparada a outras metrópoles
como Tóquio ou Hong Kong.
Girls Generation e KARA ocupam o topo das listas de
vendas e as suas melodias pegajosas são as mais pedidas
nos karaokes de Tóquio e Osaka. Coreografias e vídeos
sexy que repetem a fórmula do pop americano abalaram
o mercado internacional, começaram a dividir a cena
com Lady Gaga e chegaram – no caso das coreanas
Bigbang, nos prémios europeus da MTV em 2011 – a
desbancar a própria «inventora» do género, Britney
Spears, da categoria de melhor artista mundial.
Tradição
e progresso.
Esta dicotomia faz hoje parte
da génese sul-coreana. Nas
páginas seguinte, de cima para
baixo: Ssamziegil Shooping
Center; estátua de Yi Sunsin
no boulevard Sejongro;
pagode e anexo moderno junto
ao palácio Gyeongbokgung;
restaurante em Hongdae.
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­ oda e
M
tendências são
um assunto muito sério na Coreia
do Sul. Entre os mais novos,
como a jovem retratada no bairro
de Insadong (à esquerda),
o último grito é usar armações
de óculos sem lentes graduadas.
Enquanto
esperam
a chamada para o seu voo,
no aeroporto de Seul, as
assistentes de bordo, pelo seu
aprumo e acessórios coquetes,
não passam despercebidas.
Margens do rio Han: o que era há alguns anos praticamente
um esgoto a céu aberto é hoje um exemplo
de regeneração urbana com espaços verdes e cafés.
Alentada pela prosperidade de uma economia baseada na tecnologia (a Coreia do Sul está entre as 12
economias mais fortes do planeta) e com uma população
jovem permanentemente ligada à rede, Seul passou de
uma cidade hermética (custa acreditar que em 1970 era
mais pobre do que a sua vizinha do Norte e que, até final
dos anos de 1980, os sul-coreanos estavam proibidos
de viajar ao exterior) a uma urbe moderna, ávida por
modernidade e pelas novas tendências do Ocidente.
Passeio pelas margens do rio Han. O que era há
alguns anos praticamente um esgoto a céu aberto é
hoje um exemplo de regeneração urbana com espaços verdes, cafés e galerias nos arredores. No centro
da cidade, arquitetos internacionais como Koolhas
(que assina o museu de arte moderna) e Zaha Hadid
(o projeto cultural, comercial e de estacionamento de
novecentos mil metros quadrados em Dongdaemoun
promete ser uma das obras mais vanguardistas da Ásia)
encontram um território propício à inovação.
Ao caminhar sob uma paisagem de néon no distrito
de Myeongdong (traduzido como «distrito luminoso»,
pela maior concentração de luzes de néon do mundo,
juntamente com Hong Kong), surgem grupos de jovens
que parecem saídos de uma revista de moda. Bastariam
talvez os primeiros acordes de uma canção k-pop para
que estes jovens começassem a dançar, em plena rua,
as coreografias repetidas até à exaustão nos açucarados
vídeos musicais. A moda é coisa séria em Seul, e não
são poucos os que vaticinam uma revolução similar à
ocorrida no Japão nos anos de 1980, nas mãos de Issey
Miyake ou Yohji Yamamoto.
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Enquanto isso, no bairro de Sogyeok-dong, a norte
do rio Han, são inauguradas exposições de arte quase
diariamente. A cena de galerias abertas com a caraterística agitação dos openings é parte da paisagem deste
distrito artístico.
Em Hongdae, escolho um pequeno lugar com tentadoras bandejas repletas de tempura. Comer e beber
sozinho na Coreia vai contra as leis da boa etiqueta
(parece que servir álcool a si mesmo é símbolo de arrogância). Felizmente, dois jovens convidam-me para a
sua mesa e dão-me as boas-vindas com uma cerveja, à
qual misturam um copo de soju (popular licor destilado,
com um gosto entre o sake e a gasolina).
Depois de uma agradável conversa em inglês rudimentar, vários pratos de vegetais em tempura, bulgogi
(vitela marinada) e, como não, kimchi (couve com
paprika e alho, prato essencial da cozinha coreana)
acompanhados por cerveja abundante e uma quantidade excessiva de soju, damos a noitada por encerrada
quando um dos meus novos amigos cai da cadeira, com
a garrafa nas mãos, ao tentar, sem sucesso, servir-se
de outra dose. Deduzo que se trata de algo comum,
porque poucos comensais levantam as cabeças de seus
pratos, apesar do barulho. Ao sair do restaurante, e
entre abraços de despedida etílica, o mais sóbrio dos
meus amigos coreanos tira do bolso da jaqueta uns
óculos de armação preta (ele já usa um par) e faz-me
usá-los: «Very cool», diz-me, enquanto eterniza a cena
com o seu Samsung Galaxy. Olho a foto, que parece
desfocada. Uma perceção que tem mais que ver com o
soju do que com a graduação inexistente das lentes. n
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