A Vila - Faculdade de Educação da UFMG

Transcrição

A Vila - Faculdade de Educação da UFMG
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
ROTEIRO DE ANÁLISE DO FILME – A VILA
TRABALHO REALIZADO POR MATHEUS GUEDES DE PAULA* PARA O GRUPO SÉTIMA
ARTE DE CINEMA E EDUCAÇÃO – FAE UFMG.
* Aluno de graduação do curso de Cinema de Animação e Artes Digitais da UFMG e
bolsista do projeto “tecnologias da informação: cinema e educação - repensar e produzir
inovações didático-pedagógicas para o ensino universitário” da Faculdade de Educação
da Universidade Federalde Minas Gerais.
SETEMBRO DE 2013
ROTEIRO DE ANÁLISE DO FILME – A VILA
ÍNDICE
CAPA.................................................................................................................................01
ÍNDICE ............................................................................................................................02
FICHA TÉCNICA ......................................................................................................... 03
1.RESUMO DO FILME “A VILA”..............................................................................05
2-
Reflexões filosóficas gerais inspiradas no filme:
2.1- A cor ruim ................................................................................................................08
2.2- A questão da crítica e da consciência .....................................................................09
2.3- Conhecimento finito e vontade infinita. Uma análise filosófica do filme a Vila..10
2.4- As muitas vilas espalhadas pelo mundo .................................................................11
2.5- Sair da caverna é sair da vila: Ivy Walker e a caverna de Platão........................12
3- Considerações finais: Nossa vila interior e o medo do desconhecido. ....................13
4- Bilbliografia ................................................................................................................14
Ficha técnica do filme:
Nome: A Vila
Ano de lançamento: 2004
Título original: The Village
Duração: 108 min
Gênero: drama/suspense
Diretor: M. Night Shyamalan
Roteirista: M. Night Shyamalan
País: Estados Unidos
Língua: Inglês
Elenco:
Bryce Dallas Howard
...
Ivy Walker
Joaquin Phoenix
...
Lucius Hunt
Adrien Brody
...
Noah Percy
William Hurt
...
Edward Walker
Sigourney Weaver
...
Alice Hunt
Brendan Gleeson
...
August Nicholson
Cherry Jones
...
Mrs. Clack
Celia Weston
...
Vivian Percy
John Christopher Jones
...
Robert Percy
Frank Collison
...
Victor
Jayne Atkinson
...
Tabitha Walker
Judy Greer
...
Kitty Walker
Fran Kranz
...
Christop Crane
Michael Pitt
...
Finton Coin
Jesse Eisenberg
...
Jamison
Fonte da ficha técnica:
http://www.imdb.com/title/tt0368447/?ref_=fn_al_tt_1
1- Resumo do filme “A vila”
Apresentarei a seguir um resumo escrito que compreende todas as partes do filme “A
vila”. É vital que aqueles que desejarem lê-lo, ou a sua posterior análise filosófica, vejam
anteriormente o filme, pois tanto o resumo quando a análise filosófica revelam partes
importantes do enredo do mesmo, o que prejudicaria muito a surpresa, envolvimento e
importância que o filme teria para alguém que ainda não o tivesse visto.
O filme começa com o enterro de uma criança que morreu em decorrência de uma
doença, em uma vila isolada cujos moradores trajam vestimentas que nos remetem a tempos
antigos. Essa vila está cercada por uma floresta, que os moradores acreditam ser habitada por
monstros que são temidos por eles. Em uma cena posterior todos os moradores da vila
aparecem em um almoço de domingo, reunidos em torno de uma longa mesa. Há também
uma cena onde mulheres enterram uma flor vermelha, que possui uma cor que os habitantes
temem por associarem com as criaturas que os cercam.
O professor da vila e seus alunos encontram um animal com pele completamente
removida. Ao voltarem para a sala de aula, o professor conversa sobre o achado com as
crianças. Ele diz que elas devem temer “aqueles que não falamos os nomes” e que eles não
podem invadir a fronteira dessas criaturas como condição para que a fronteira da vila também
não seja invadida por elas.
Um dos personagens principais da história, Lucius Hunt, aparece no conselho dos
anciões e pede para atravessar a floresta proibida em busca de medicamentos que
melhorassem a vida dos moradores que estivessem doentes, mas seu pedido é negado.
Posteriormente, ele conversa com um amigo, que fica em uma torre no período noturno
vigiando as fronteiras como forma de assegurar que essas não fossem invadidas.
Um novo animal é encontrado morto, o que provoca uma reunião com todos da vila.
Na reunião, uma conselheira fala que a morte do animal deve ter sido provocada por um
predador, possivelmente um lobo ou coiote. Desse modo, ela afirma não acreditar que as
fronteiras da vila tenham sido invadidas pelas criaturas que eles tanto temiam.
A personagem Kitty Walker fala com seu pai que está apaixonada por Lucius, e se
declara para seu amado. Há uma elipse (recurso de linguagem cinematográfica que pode
ocorrer através da omissão de uma cena, que fica subtendida pelo espectador), e na cena
seguinte ela já está chorando no colo de sua irmã cega, Ivy, confessando ter sido rejeitada por
seu pretendente.
Lucius encontra com o pai de seu amigo vigia da torre e os dois conversam. Ele diz
que, um dia, a tristeza encontrará Lucius, e olha para um baú misterioso que todos os anciões
possuem.
Jovens locais se desafiam a ficar próximos da fronteira com a floresta, em cima de um
toco. Um tempo depois, Noah, um personagem que tem retardo mental e é amigo e admirador
da cega Ivy Walker, está brigando com os outros. Ivy o interrompe e quase o coloca no quarto
de castigo, mas ele promete não bater em ninguém novamente. Os dois apostam uma corrida
até uma pedra, e lá encontram com Lucius Hunt. Ivy diz que mesmo sendo cega, sabia que
Lucius estava lá, pois o reconheceu por sua cor, e que tem a capacidade de ver cor em
algumas pessoas, mas que não dirá qual é a de Lucius. Diz saber também porque ele recusou
sua irmã: “As vezes não fazemos o que queremos e os outros não saberão o que queremos
fazer”, completa a garota. Nesse intervalo, Noah entra na floresta e de lá traz para Ivy
frutinhas vermelhas. Lucius então revela para Ivy que as frutas são vermelhas e, assustada, ela
alerta que essa cor atrai os monstros e, portanto, afirma que as frutas devem ser enterradas.
Lucius Hunt relata ao conselho que Noah entrou na floresta, pegou as frutas vermelhas
e afirma que devido a sua inocência, as criaturas não o atacaram. Disto Lucius conclui que ele
tem uma chance de atravessar a floresta sem ser atacado, dado que as criaturas podem
perceber que ele é bem intencionado e, daí, decidir não agredi-lo. Mais tarde, em sua casa, a
mãe de Lucius conta que seu pai foi assassinado na cidade por ladrões. Lucius diz que há
segredos em toda a vila, apontando para o baú de sua mãe, que é uma das anciãs. Sua mãe diz
que o baú é para ela não esquecer os segredos do seu passado, e não cometer os mesmos erros
novamente. Lucius diz que Edward Walker (pai de Ivy) guarda sentimentos pela mãe de
Lucius, e que ele notou isso porque ele nunca a toca.
Em outro momento, Lucius atravessa a fronteira entre a vila e a floresta e pega frutas
vermelhas. Na vila, ele encontra com Ivy e a deixa em casa, conversando sobre uma possível
ida à cidade e o casamento da irmã da cega, que encontrou um novo amor.
À noite, o amigo de Lucius que fica de vigília na torre, vê um monstro e toca o sino.
Moradores se desesperam e se escondem em seus porões. Ivy espera por Lucius, e os dois
também vão para o porão. No dia seguinte, no conselho, uma anciã lê uma carta de Lucius
dizendo que atravessou a fronteira e que, por isso pede perdão. Isso explicaria porque os
monstros invadiram a vila. Em uma tentativa de evitar nova invasão, os moradores jogam
pedaços de carne para as criaturas na floresta.
No casamento de Kitty, que ocorre em um galpão mais afastado das casas, a senhora
Clarck conversa com Ivy e diz que também teve uma irmã quando era jovem, mas que essa
foi assassinada. Sr Walker não cumprimenta a mãe de Lucius e ela nota que ele realmente
mantem um distanciamento dela. Gritos de criança cessam a festa de casamento. Elas dizem
que os monstros estão na vila, que deixaram mais sinais e querem que os moradores partam.
Vários animais mortos e sem pele estão espalhados pelo local.
Em outro momento, durante a noite, Ivy e Lucius se sentam na varanda. Eles se
declaram um para o outro, e se beijam.
No outro dia, moradores conversam com os conselheiros que tentam descobrir porque
a barreira entre a vila e a floresta foi violada pelas criaturas. Na conversa também surge a
notícia de que Ivy irá se casar com Lucius. Mas os planos do casal são violentamente
quebrados: Noah esfaqueia Lucius por ciúme. Noah mostra as mãos de sangue para familiares
e diz “a cor ruim!”. Todos procuram por algum ferido e Ivy encontra o corpo machucado de
Lucius. Desesperada, ela diz que não consegue ver a cor dele. Uma conselheira diz que, em
breve, Lucius vai morrer. Ivy bate em Noah, e pede permissão aos conselheiros para
atravessar a floresta, pegar medicamentos na cidade e salvar a vida de Lucius. O médico da
vila diz que os medicamentos da cidade são a única chance de salvá-lo.
Tentando impedir a viagem, uma conselheira diz ao pai de Ivy que ele prometeu não
voltar à cidade, mas ele ressalta que Ivy não fez a promessa. Ele conta a sua filha que seu avô
foi assassinado e era muito rico, e que diz isso para que ela entenda suas razões; Mostra para
sua filha que os monstros que aterrorizam a vila se tratam apenas de fantasias, e que ele as
inventara a partir de lendas do povo criadas para impedir que as pessoas fossem para a cidade.
Ivy, seu cunhado e o amigo da torre entram na floresta trajando um capuz amarelo
considerado uma cor de proteção contra os monstros. Ela dá pedras aos seus companheiros de
jornada e diz que são pedras mágicas capazes de proteger o grupo. Com isso ela conquistaria
companhia para sua ida até a cidade. Seu cunhado, Cristoph, desiste de acompanha-los. Ivy e
Finton (o amigo da torre) ficam na floresta, na chuva. Finton diz que as criaturas terão pena
dela por ser cega, e não a matarão, mas o que mesmo não vai acontecer com ele. Ele vai
embora e Ivy fica sozinha.
Edward, pai de Ivy, fala para Alice, mãe de Lucius, que deixou Ivy ir para cidade
salvar seu filho porque isso era tudo o que ele poderia lhe oferecer. Ela aceita. E os dois
continuam sem se tocar. Ele diz aos conselheiros que Ivy e Lucius são a esperança de
continuar com a tradição da vila depois que os anciões morressem: “Ivy é mantida pela
esperança, deixe-a ir”, “Ela é mantida pelo amor, e o mundo se move pelo amor, ajoelha-se
diante dele em referência”.
Na floresta, a mulher cega continua sua jornada e cai em um buraco. Ela consegue
sair, mas começa a temer que as criaturas realmente existam. Ela corre, esbarrando em
gravetos, desesperada. Encontra-se, então, rodeada de frutos vermelhos. Surge um monstro
que corre atrás dela, mas ela percebe que está próxima do buraco, e arma uma emboscada
para tentar fazer o inimigo cair dentro dele. A criatura era Noah, que havia achado uma
fantasia que ficava sobre o assoalho do local onde ficou de castigo. Noah cai no buraco e fica
preso dentro dele. Ivy, então, encontra a estrada que a levará a cidade.
Na vila, Edward abre seu baú. Nele há jornais e lembranças dos parentes assassinados
dos anciões, sendo que nessa cena é possível ouvir esses membros da vila “em off” dando
seus depoimentos de como os parentes morreram, bem como a sugestão de Edward, na época
professor da Universidade da Pensilvânia de criação da comunidade da vila.
Um guarda de uma reserva florestal encontra Ivy batendo em um muro, e dizendo ter
vindo da floresta. Ela dá a lista de medicamentos para o guarda e pede que ele os encontre
para ela rapidamente. Ela lhe dá um relógio de ouro como pagamento e ele acha que está
sendo enganado. Pergunta a Ivy seu nome, no que ela responde. A cega fica tranquila, pois
nota bondade na voz do homem da cidade, algo que ela não esperava.
O guarda vai aos postos que têm medicamentos caso alguém receba uma mordida de
algum animal. Um colega de trabalho diz que eles só têm que manter os demais afastados da
floresta, sendo que até o governo foi pago uma época para manter aviões longe de lá, e que
não é para ele se meter em conversas. Ele pega os medicamentos discretamente, e vai embora,
para entrega-los a mulher que veio da floresta.
Na vila, um garoto diz que Ivy voltou da cidade com medicamentos e também que ela
encontrou um dos monstros na floresta e o matou. A mãe de Noah se lamenta, pois sabendo
que Noah fugiu do castigo com uma das fantasias, deduz que ele foi o monstro assassinado.
Walker diz que vai dar um bom enterro a Noah e falar que as criaturas o mataram, e que
graças a ele, a vila e sua história prosseguiriam, caso todos os anciões estivessem de acordo.
Ivy entra no quarto com os medicamentos. Ao pé da cama, diante de seu amado, diz as
palavras finais do filme: “Eu voltei Lucius!”.
2- Reflexões filosóficas gerais inspiradas no filme
2.1- A cor ruim
Algo a se refletir, a partir do filme, é o comportamento que os moradores têm com a
cor vermelha que eles consideram ruim, por estar associada às criaturas que os apavoram. O
livro de teoria da cor “Da cor a cor inexistente” de Israel Pedrosa (PEDROSA, 1977), fala do
uso místico e simbólico do vermelho que “está relacionado com necessidades afetivas, afetos
e suas manifestações, das mais suaves às mais violentas, em direção extroversiva”(isto é, na
direção de uma atitude mais extrovertida). Fazendo uma analogia entre a escolha de vida do
povo que se isolou na vila e a relação dessa escolha com o vermelho, podemos julgar que os
moradores da vila evitavam uma vida com maiores extroversões e sentimentos. Por temerem
o ódio que levou parentes dos anciões a serem assassinados, eles também evitavam qualquer
outro tipo de manifestações intensas de afeto, tais como o amor (por isso Edward Walker não
consegue nem mesmo cumprimentar a mãe de Lucius Hunt, por exemplo). O bloqueio em
relação ao vermelho é também uma metáfora de como a maioria dos personagens do filme
eram bloqueados em relação aos seus sentimentos mais profundos, tantos positivos, quanto
negativos.
Na obra citada acima, Pedrosa afirma que o amarelo tem o significado de corresponder
“a anseios volitivos e liga-se à disposição afetiva e à iniciativa”. Podemos entender como
volitivos, o processo cognitivo em que uma pessoa toma uma decisão para praticar uma ação
específica. Então acho que o amarelo poderia estar associado diretamente com essas fortes
decisões tais como o anseio ou vontade de isolamento dos anciões, sustentando a iniciativa
que criar uma mentira pensando em proteger seus conterrâneos. Para os moradores da vila o
amarelo é considerado uma cor de proteção e serve para repelir os monstros.
Ainda sobre o vermelho, o mesmo autor diz ser “a cor que mais se destaca visualmente
e a mais rapidamente distinguida pelos olhos”. Além disso, ainda no livro de Pedrosa, são
exibidas também as seguintes observações de Kandinsky “O vermelho, tal como o
imaginamos, cor sem limites, essencialmente quente, age interiormente como uma cor
transbordante de vida ardente e agitada. No entanto, ela não tem o caráter dissipado do
amarelo, que se espalha e se desgasta de todos os lados. Apesar de toda a sua energia e
intensidade, o vermelho dá prova de uma imensa e irresistível força, quase consciente de seu
objetivo”. Os moradores da vila então, ao evitarem essa importante cor que está muito
presente na vida de todos, talvez estivessem evitando também uma vida mais rica em ações e
força, mais aberta, ardente e ilimitada.
“Cor de fogo e do sangue, o vermelho é a mais importante das cores para muitos
povos, por ser a mais intimamente ligada ao princípio da vida”. Talvez por isso, na vila do
filme dirigido por Shyamalan, com o medo da violência, os anciões reprimiam as pessoas de
viverem suas vidas em plenitude, ao criar uma violência psicológica muito mais terrível: o
medo do desconhecido.
2.2- A questão da crítica e da consciência
Podemos estabelecer também relação entre o filme “A vila” e um trecho em que
Gramsci ilustra, em seu caderno 11, o problema da crítica e da consciência:
“Após demonstrar que todos são filósofos, ainda que a seu modo,
inconscientemente - já que, até mesmo na mais simples manifestação de uma
atividade intelectual qualquer, na "linguagem", está contida uma determinada
concepção do mundo -, passa-se ao segundo momento, ao momento da crítica
e da consciência, ou seja, ao seguinte problema: é preferível "pensar" sem
disto ter consciência crítica, de uma maneira desagregada e ocasional, isto é,
"participar" de uma concepção do mundo "imposta" mecanicamente pelo
ambiente exterior, ou seja, por um dos muitos grupos sociais nos quais todos
estão automaticamente envolvidos desde sua entrada no mundo consciente (e
que pode ser a própria aldeia ou a província, pode se originar na paróquia e
na "atividade intelectual" do vigário ou do velho patriarca, cuja "sabedoria"
dita leis, na mulher que herdou a sabedoria das bruxas ou no pequeno
intelectual avinagrado pela própria estupidez e pela impotência para a ação),
ou é preferível elaborar a própria concepção do mundo de uma maneira
consciente e crítica e, portanto, em ligação com este trabalho do próprio
cérebro, escolher a própria esfera de atividade, participar ativamente na
produção da história do mundo, ser o guia de si mesmo e não mais aceitar do
exterior, passiva e servilmente, a marca da própria personalidade?”
A grande maioria dos moradores da vila, preferiam pensar de acordo com o que os
anciões impunham, acreditando nos dogmas e mentiras que lhes foram impostos. Eles
optaram pela atitude, mencionada por Gramsci, de serem moldados pela sociedade na qual
estavam inseridos, pensar sem ter consciência crítica, participar de uma concepção de mundo
“imposta” mecanicamente pelo ambiente. Dessa forma, adotaram a concepção de que eles
estavam cercados por criaturas ameaçadoras e que deveriam viver na base do medo. Ivy e
Lucius fogem à regra e, portanto, são aqueles citados no trecho de Gramsci como sujeitos que
preferem elaborar a própria concepção de mundo de maneira consciente e crítica. Quando eles
decidem atravessar a floresta para pegar medicamentos na cidade, eles estão participando
ativamente da história da vila, são guias de si mesmo e saem de um papel servil para irem a
um papel de agente transformador. Como disse o pai de Ivy no momento do filme em que ele
vai revelar para ela que os monstros eram meras fantasias, “Seu avô (...) me disse para
comandar quando os outros apenas seguiam (...) você é forte Ivy, você comanda enquanto os
outros seguem, você vê luz onde só há escuridão. Eu confio em você. Eu confio em você
dentre os demais”.
Na sua nota Nota I do caderno 11 Gramsci ainda completa:
“Pela própria concepção do mundo, pertencemos sempre a um determinado
grupo, precisamente o de todos os elementos sociais que compartilham um
mesmo modo de pensar e de agir. Somos conformistas de algum conformismo,
somos sempre homens-massa ou homens-coletivos. O problema é o seguinte:
qual é o tipo histórico de conformismo, de homem-massa do qual fazemos
parte? Quando a concepção do mundo não é crítica e coerente, mas ocasional
e desagregada, pertencemos simultaneamente a uma multiplicidade de
homens-massa, nossa própria personalidade é compósita, de uma maneira
bizarra: nela se encontram elementos dos homens das cavernas e princípios da
ciência mais moderna e progressista, preconceitos de todas as fases históricas
passadas estreitamente localistas e intuições de uma futura filosofia que será
própria do gênero humano mundialmente unificado. Criticar a própria
concepção do mundo, portanto, significa torná-la unitária e coerente e elevála até o ponto atingido pelo pensamento mundial mais evoluído. Significa
também, portanto, criticar toda a filosofia até hoje existente, na medida em
que ela deixou estratificações consolidadas na filosofia popular. O início da
elaboração crítica é a consciência daquilo que é realmente, isto é, um
"conhece-te a ti mesmo" como produto do processo histórico até hoje
desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços acolhidos sem análise
crítica. Deve-se fazer, inicialmente, essa análise”.
Trazendo essa recomendação de Gramsci ao contexto ficcional do filme A Vila,
poderíamos imaginar que ele sugere que temos de ser cada vez mais como Ivy e Lucius, que
questionam a realidade imposta para eles a fim de transformá-la, e, por conseguinte, sermos
cada vez menos como os anciões da vila, que mantêm uma estrutura de limitação intelectual e
mentiras. Devemos sempre criticar nossa própria concepção de mundo e criar novas, se
quisermos construir uma concepção mais evoluída.
2.3 -Conhecimento finito e vontade infinita. Uma análise filosófica do filme a Vila
Um interessante paralelo entre o filme “A vila” e uma teoria apresentada por Descartes
em seu livro “meditações sobre filosofia primeira” é exibida na obra “Cine filô – as mais
belas questões da filosofia no cinema”, de Ollivier Pourriol (POURRIOL, 2009). Em
“meditações sobre filosofia primeira”, Descartes expõe a ideia de que os seres humanos têm
duas faculdades: uma finita que é o entendimento ou a compreensão; a outra, infinita, que é a
vontade. Todos nós vivenciamos diariamente essa dicotomia, de querermos infinitamente as
coisas, mas termos uma capacidade cognitiva limitada. “Não podemos saber de tudo, mas
podemos querer tudo”.
Uma das personagens principais do filme, Ivy Walker, como qualquer ser humano,
tem um conhecimento finito. Além disso, ela é cega, e essa limitação torna seu contato com o
mundo material ainda mais limitado. Quando colocada em uma situação limite com o seu
noivo à beira da morte, ela terá, então, de usar de sua vontade infinita para tirá-lo desse risco
de morrer. E essa vontade infinita é capaz de vencer barreiras, ultrapassar limites, transpor
desafios. Quando Ivy, apesar das suas dificuldades físicas e psicológicas, pensando em salvar
a vida de Lucius, atravessa a floresta para pegar medicamentos para seu amado que está
ferido, ela encara o seu temor pelo desconhecido e através da vontade infinita de salvar o
amado, vence as barreiras do medo mesmo tendo um conhecimento com finitude.
Lucius Hunt também têm um conhecimento muito limitado do mundo ao seu redor.
Ele não tem ideia, por exemplo, de que os monstros que tanto teme não são reais. Porém, sua
vontade de mudança, sua gana por saber mais sobre o desconhecido em uma sociedade
acomodada, revelam nele uma força de vontade sem limites. Além disso, a imensa vontade
dos anciões da vila de proteger seus entes queridos da violência faz com que eles limitem
ainda mais o conhecimento de todos que estão ao seu redor, com a imposição da mentira de
criaturas imaginárias para amedrontar os demais.
2.4 As muitas vilas espalhadas pelo mundo
O filme “A Vila” retrata a que ponto o ser humano pode chegar para se defender de
seus medos, no caso em questão, do medo da violência. Apesar de nem sempre os
protagonistas da formação das culturas e das ideologias chegarem ao extremo de criarem
monstros para imporem medo às comunidades às quais pertencem, é possível constatar a
criação de outras estratégias por meio das quais surgem pelo mundo pequenas “vilas”, ou seja,
comunidades que buscam se isolar para se protegerem de algum tipo de violência.
Condomínios residenciais poderiam de certo ponto de vista, serem considerados “vilas”.
Neles são instalados diversos equipamentos de segurança e subterfúgios para deixar os
moradores relativamente isolados do resto do mundo. Assim, de certo modo, habitantes de
condomínio vivem em suas próprias “bolhas” ou universos particulares.
Outro tipo de vila metafórica que pode ser associada aquela apresentada no filme são
os países que criam um clima de terror e pânico aqueles que são diferentes e aos estrangeiros
através da xenofobia. Alguns países vêm demonizando certos estrangeiros, de forma a tratálos como verdadeiros monstros e impedem que os mesmos saiam de seus territórios e
“invadam” as terras que não são as suas de origem. Como na Vila de Shyamalan é criada uma
cultura do medo pelo desconhecido desde cedo, através até mesmo dos ensinamentos nas
escolas, e essa cultura é reforçada por diversos dogmas passados pelas figuras de maior
credibilidade e prestígio perante a sociedade, que na vila do filme são representados pelos
anciões. Para ilustrar, com pelo menos um exemplo, podemos citar o caso dos Estados
Unidos, que após o onze de setembro, com o trauma da violência que sofreu, transformou
muçulmanos em monstros para justificar a xenofobia e descriminação contra eles.
2.5- Sair da caverna é sair da vila: Ivy Walker e a caverna de Platão
Há outro paralelo filosófico que é possível realizar a partir do filme “A vila”, ao
resgatarmos a alegoria da caverna de Platão. Nessa alegoria presente no capítulo 7 do livro “A
República”, o filósofo imaginava os seres humanos como estando presos em uma caverna,
aprisionados por correntes, desde seu nascimento e de costas para a entrada dela. Uma chama
proveniente do exterior da caverna permitia a projeção nas paredes da mesma das sombras de
tudo o que havia no mundo real, do lado de fora dela. Além de observar essas sombras, os
humanos podiam ouvir os ecos das vozes dos seres que passavam próximos da porta da
caverna. Os prisioneiros voltados de costas para a realidade exterior à caverna conheciam
apenas as sombras dessa realidade e acreditavam que essas sombras constituíam a própria
realidade, por não poderem conhecer formas verdadeiras e ideais. Desse modo, os seres da
caverna viviam em um mundo ilusório, que continha cópias imperfeitas das formas ideais.
Para Platão, o único mundo não ilusório é o mundo das ideias. Esse mundo do lado de fora da
caverna têm as formas ideais, diferente de tudo o que os habitantes da caverna conheciam que
eram baseados na experiência de sombras imperfeitas. Assim sendo, eles não tinham um
conhecimento genuíno da realidade, que é a externa.
Essas pessoas presas na caverna não são muito diferentes dos moradores da vila.
Enquanto na alegoria da caverna elas veem o mundo através das sombras projetadas na
parede, os moradores da vila veem o mundo através do medo dos monstros. Nas duas
situações, o conhecimento acessado é ilusório e o conhecimento da realidade está obstruído.
Ainda no mito de Platão, um dos seres que está acorrentado, se liberta após muita
dificuldade, e sai da caverna. Ele se depara com o mundo lá fora e não pode acreditar que
tudo aquilo que ele viveu era uma mentira. O clarão do sol que ele nunca havia visto, o deixa
perturbado e ofusca sua visão, o que faz com que ele volte para a caverna a fim de mostrar
para os outros sua descoberta. Mas ao regressar, seus amigos não acreditam nele, dizendo que
aquilo que ele diz é um devaneio. Após uma discussão, eles o matam e, assim, esgotam toda a
possibilidade que eles tinham de encontrarem a verdadeira realidade.
Essa pessoa que consegue sair da caverna pode ser associada à personagem Ivy, que,
devido a sua persistência de sair da floresta para salvar seu noivo, conseguiu quebrar as
correntes que a prendiam à realidade ilusória criada e propagada pelos anciãos. Ela consegue
se libertar de sua “caverna de Platão”, com a diferença que não será assassinada ao regressar
do mundo exterior, como na alegoria do filósofo. Mas, o futuro da vila é incerto, porque a
cega parece ter ficado em dúvida sobre a existência dos monstros, após o ataque de Noah,
bem como porque os próprios anciões depositam a esperança de que ela vai continuar
iludindo os moradores de maneira a manter coesa a comunidade da vila. Portanto, como o
filme acaba antes de sabermos no que ela está acreditando, e se ela vai ou não libertar os
outros moradores “das correntes que os prendem”, o espectador do filme fica sem saber se ela
libertará seus conterrâneos de viver uma mentira. Isso fica como nosso encargo: imaginarmos
nós mesmo um fim para essa história.
3- Considerações finais: Nossa vila interior e o medo do desconhecido.
A partir do filme A Vila, realizei algumas reflexões filosóficas e existenciais a partir
das quais pretendi mostrar que o filme é interessante e pode nos fazer pensar em diversos
aspectos da vida. Eu acredito que todos nós temos uma espécie de vila do Shyamalam dentro
de nós: criamos nossos próprios medos a partir de nossos traumas e muitas situações
desagradáveis que acreditamos ser causadas por fatores externos têm origem dentro de nós.
Para nos livrarmos dessas amarras e do medo do desconhecido, precisamos achar dentro da
gente nosso lado Lucius Hunt, questionador e que quer quebrar paradigmas e barreiras. Caso
o Lucius dentro de nós corra risco de vida precisamos mobilizar, então, nosso lado Ivy
Walker, capaz de vencer o limite do conhecimento finito com uma força de vontade infinita.
Além disso, nosso lado Ivy deve ser capaz de criticar a própria concepção de mundo para
criarmos novos paradigmas e ampliarmos essa concepção de maneira consciente e melhor. É
apenas enfrentando nossos próprios monstros interiores e o desconhecido que seremos
capazes de evoluirmos de forma a trazermos benefícios para nós mesmos e para aqueles que
estão ao nosso redor.
Bibliografia:
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, 3ª
edição
PEDROSA, Israel. Da cor a cor inexistente. Rio de Janeiro: Léo Christiano Editorial ,Ltda.
1997
PLATÃO. A República. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 2004.
POURRIOL, Ollivier. Cine filô – as mais belas questões da filosofia no cinema. Trad. André
Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009
DESCARTES, René. Meditações sobre filosofia primeira. Trad. Fausto Castilho.
Campinas: Editora da UNICAMP, 2004.
Sites de apoio:
http://filosofilmes.blogspot.com.br/2010/04/vila-e-m-mito-da-caverna.html acessado dia
29/09/2013
http://www.imdb.com/title/tt0368447/?ref_=fn_al_tt_1
Filme:
- A vila (The Village_Estados Unidos_2004), M. Night Shyamalan