Elas por Elas
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Capa Elas por elas 2015b.pdf 1 27,13,2015 16:15 C M Y CM MY CY CMY K Filiado à Fitee, Contee e CTB www.sinprominas.org.br REVISTA ELAS POR ELAS - ABRIL DE 2015 - NÚMERO 8 MARÇO 2015 NÚMERO 8 Ciganas Entre o mito e a realidade SER MÃE Mães em restrição de liberdade POLÍTICA Longe das cotas de gênero Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:44 Page 3 3 Elas por elas mesmas Em sua oitava edição, a revista Elas por Elas traz muitas histórias de mulheres que vivem realidades diversas. São ciganas, circenses, escritoras, sindicalistas, cabeleireiras, professoras, políticas, quadrinistas, presidiárias, feministas, etc. Não importa quais papéis exerçam na vida ou na sociedade, são mulheres de fibra que enfrentam o desafio de lutar contra o machismo, a violência e a discriminação. Elas por elas mesmas descrevem a dor e a delícia de serem mulheres. E assim, como numa colcha de retalhos multicolorida, essas diferentes vivências nos trazem encantamento e importantes reflexões sobre o universo feminino. Cabelo, imagem, maternidade, sexualidade, educação, violência, seja qual for o tema abordado, em todas as reportagens há sempre uma personagem guerreira. Uma mulher que superou desafios, que foi à luta, que não esmorece diante de uma sociedade que dá passos lentos em direção à igualdade de gênero. Ser mãe em situação adversa é um dos destaques dessa edição. Falamos das mães que vivem nas ruas e convivem com as drogas, das que são impedidas de parir em sua própria cidade, das que sofrem restrição de liberdade e são obrigadas a se separar de seus filhos, assim como daquelas que tornam suas as crianças que outras mães não puderam cuidar. São mulheres de coragem e mães por vocação. A revista traz a triste realidade das mulheres em situação de abandono nas ruas, assim como aborda o mundo controverso das ciganas e das mulheres que vivem no circo. Também debatemos sobre a participação das mulheres no sindicalismo e na política, um universo onde as mulheres driblam o machismo e sonham em ocupar cada vez mais espaços de poder. O feminismo também é evidenciado por uma nova geração de mulheres na América Latina que, a exemplo das lutadoras do passado pela emancipação feminina, são aguerridas e fazem a gente acreditar que o futuro pode ser diferente. A propósito, esse ano faz 20 anos que feministas de todo o mundo se encontraram em Pequim para a conferência da ONU que estabeleceu uma plataforma de ações pela igualdade de gênero. Nesse cenário, a violência ainda é um dos maiores desafios a serem enfrentados. A notícia boa é que no Brasil a Lei Maria da Penha reduziu em 10% os homicídios contra as mulheres e o feminicídio se tornou crime hediondo. Com cada vez mais exemplos de autoestima, beleza, raça e cultura, as mulheres negras têm seu espaço garantido na revista, pois suas bandeiras são de todos/as que lutam por uma sociedade mais justa e igualitária. Também estamos de olho na aplicação da lei 10.639, que determina o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas do país, e recomendamos a leitura da entrevista com a professora Mara Evaristo. Na literatura, a história imperdível é a da catadora de papel que virou escritora com repercussão internacional. Carolina de Jesus foi uma idealista que, mesmo diante do preconceito por ser mulher, negra e favelada não desistiu de seus sonhos. Com tantas histórias e exemplos, desejamos que essa publicação seja mais que um entretenimento. Possa ser um material de reflexão e instrumento para a educação e formação de uma consciência pela igualdade e diversidade de gênero, raça/etnia e sexo. Boa leitura! Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:44 Page 4 Pág RECONHECIMENTO 7 Elas por Elas recebe menção honrosa em prêmio nacional de jornalismo Pág POLÍTICA 24 Longe das cotas de gênero Pág DIREITOS 50 Em busca de um novo rumo Pág HOMENAGEM 8 Celina Arêas Exemplo de dedicação Pág ENTREVISTA Pág SINDICAL 10 Pela igualdade de gênero 38 Pág SER MÃE 56 Mães em restrição de liberdade Pequim+20 Nadine Casman Pág HOMENAGEM 42 Uma mulher impossível Rose Marie Muraro Pág SER MÃE 64 Mãe coragem Pág FEMINISMO Feminismo na América Latina 18 Pág Pág ARTIGO Em Gaza, nada a comemorar Revista Elas por Elas - Abril 2015 46 ARTIGO Mães de Noronha 68 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:44 Page 5 Pág 72 CAPA Dora Alves Entre o mito e a realidade Pág REALIDADE 80 A vida no circo não é brincadeira Pág ENTREVISTA 88 A gente tem uma força que desconhece 94 Pág LITERATURA 116 Uma idealista do lixo Pág AUTOESTIMA Debaixo dos caracóis, muita história pra contar Pág EDUCAÇÃO 100 Diversidade é assunto de criança Mara Evaristo Pág VIOLÊNCIA Pág 112 PERFIL 107 Pág 130 ARTIGO Muito além do feminino e do masculino Profissão docente: uma escolha de valor Pág 132 POUCAS E BOAS Pág 134 RETRATO Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:44 Page 6 6 Departamento de Comunicação do Sinpro Minas: [email protected] Diretores responsáveis: Aerton Silva e Marco Eliel de Carvalho; Editora/Jornalista responsável: Débora Junqueira (MG05150JP); Redação: Cecília Alvim (MG09287JP), Denilson Cajazeiro (MG09943JP), Nanci Alves (MG003152JP e Saulo Martins (MG15509JP); Programação visual/Diagramação: Mark Florest; Design Gráfico: Fernanda Lourenço e Mark Florest; Revisão: Aerton Silva e Maria Izabel Bebela Ramos Estagiária: Pollyana Bitencourt Foto capa: Lais Rodrigues (cigana Dara Amaral) Conselho Editorial: Antonieta Mateus, Clarice Barreto, Lavínia Rodrigues, Maria Izabel Bebela Ramos, Marilda Silva, Liliani Salum Moreira, Soraya Abuid, Terezinha Avelar e Valéria Morato. Impressão: EGL-Editores Gráficos Ltda - Tiragem: 2.000: Distribuição gratuita: Circulação dirigida REVISTA ELAS POR ELAS PUBLICAÇÃO DO DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO DO SINPRO MINAS ANO VIII - Nº 8 - ABRIL DE 2015 ACESSE AS EDIÇÕES ANTERIORES EM www.sinprominas.org.br Elas por elas - nº 7 Diretoria Gestão 2012/2016 Adelmo Rodrigues de Oliveira, Adenilson Henrique Gonçalves, Aerton de Paulo Silva, Albanito Vaz Júnior, Alessandra Cristina Rosa, Altamir Fernandes de Sousa, Ângelo Filomeno Palhares Leite, Aniel Pereira Braga Filho, Antonieta Shirlene Mateus, Antonio de Pádua Ubirajara e Silva, Antonio Sergio de Oliveira Kilson, Aparecida Gregório Evangelista, Aristides Ribas Andrade Filho, Benedito do Carmo Batista, Bruno Burgarelli Albergaria Kneipp, Carla Fenicia de Oliveira, Carlos Afonso de Faria Lopes, Carlos Magno Machado, Carolina Azevedo Moreira, Cecília Maria Vieira Abrahão, Celina Alves Padilha Arêas, César Augusto Machado, Clarice Barreto Linhares, Cláudia Cibele Souza Rodrigues, Clédio Matos de Carvalho, Clóvis Alves Caldas Filho, Daniel de Azevedo Teixeira, Débora Goulart de Carvalho, Décio Braga de Souza, Dimas Enéas Soares Ferreira, Diva Teixeira Viveiros, Edson de Oliveira Lima, Edson de Paula Lima, Eliane de Andrade, Erica Adriana Costa Zanardi, Estefania Fátima Duarte, Fábio dos Santos Pereira, Fábio Marinho dos Santos, Fátima Amaral Ramalho, Fernando Antonio Tomaz de Aquino Pessoa, Fernando Dias da Silva, Fernando Lucio Correia, Geraldo Magela Ribeiro, Gilson Luiz Reis, Gislaine dos Santos Silva, Grace Marisa Miranda de Paula, Haida Viviane Palhano Arantes, Heleno Célio Soares, Henrique Moreira de Toledo Salles, Humberto de Castro Passarelli, Idelmino Ronivon da Silva, João Francisco dos Santos, João Marcos Netto, Jones Righi de Campos, José Carlos Padilha Arêas, José Geraldo da Cunha, José Heleno Ferreira, José Mauricio Pereira, Josiana Pacheco da Silva Martins, Josiane Soares Amaral Garcia, Juliana Augusta Rabelo Souza, Laércio de Oliveira Silva, Lavínia Rosa Rodrigues, Liliam Faleiro Barroso Lourenço, Liliani Salum Alves Moreira, Luiz Antonio da Silva, Luiz Cláudio Martins Silva, Luiz Henrique Vieira Magalhães, Luliana de Castro Linhares, Marcelo José Caetano, Marco Eliel Santos de Carvalho, Marcos Gennari Mariano, Marcos Paulo da Silva, Marcos Vinicius Araújo, Maria Aparecida Penido de Freitas Zandona, Maria Célia da Silva Gonçalves, Maria Celma Pires do Prado Furlanetto, Maria da Conceição Miranda, Maria da Glória Moyle Dias, Maria das Graças de Oliveira, Maria Elisa Magalhães Barbosa, Maria Goretti Ramos Pereira, Maria Helena Pereira Barbosa, Maria Nice Soares Pereira, Marilda Silva, Marília Ferreira Lopes, Marisa Magalhães de Souza, Mateus Júlio de Freitas, Messias Simão Telecesqui, Miguel José de Souza, Miriam Fátima dos Santos, Moisés Arimateia Matos, Murilo Ferreira da Silva, Nalbar Alves Rocha, Nardeli da Conceição Silva, Neilon José de Oliveira, Nelson Luiz Ribeiro da Silva, Newton Pereira de Souza, Orlando Pereira Coelho Filho, Paulo Roberto Mendes da Silva, Paulo Roberto Vieira Junior, Pitágoras Santana Fernandes, Renata Titoneli de Aguiar, Renato César Pequeno, Rodrigo de Paula Magalhães Barbosa, Rodrigo Rodrigues Ferreira, Rogério Helvídio Lopes Rosa, Romário Lopes da Rocha, Rossana Abbiati Spacek, Rozana Maris Silva Faro, Sandra Lucia Magri, Sebastião Geraldo de Araújo, Simone Esterlina de Almeida Miranda, Siomara Barbosa Candian Iatarola, Sirlane Zebral Oliveira, Terezinha Lúcia de Avelar, Valdir Zeferino Ferreira Júnior, Valeria Nonata Teixeira, Valéria Peres Morato Gonçalves, Vera Lúcia Alfredo, Vera Lúcia Freitas Moraes, Wagner Ribeiro, Warley Oliveira Drumond, Wellington Teixeira Gomes SINDICATO DOS PROFESSORES DO ESTADO DE MINAS GERAIS SEDE: Rua Jaime Gomes, 198 - Floresta - CEP: 31015.240 Fone: (31) 3115 3000 - Belo Horizonte - www.sinprominas.org.br SINPRO CERP - Centro de Referência dos Professores da Rede Privada Rua Tupinambás, 179 - Centro - Cep: 30.120-070 - BH - Tel: (31) 3274 5091 [email protected] SEDES REGIONAIS: Barbacena: Rua Francisco Sá, 60 - Centro, CEP: 36.200-068 - Fone: (32) 3331-0635; Cataguases: Rua Major Vieira, 300 - sala 04 - Centro - CEP: 36.770-060 - Fone: (32) 3422-1485; Coronel Fabriciano: Rua Moacir D'Ávila, nº 45 Bairro dos Professores - CEP: 35.170-014 - Fone: (31) 3841-2098; Divinópolis: Av. Minas Gerais, 1.141 - Centro CEP: 35.500-010 - Fone: (37) 3221-8488; Governador Valadares: Rua Benjamin Constant, n° 653/ Térreo, Centro CEP: 35.010-060, Fone: (33) 3271-2458; Montes Claros: Rua Januária, 672 - Centro, CEP: 39.400-077 - Fone: (38) 3221-3973; Paracatu: Rua Getúlio de Melo Franco, 345 - sala 14- Centro - CEP: 38.600-000 - Fone: (38) 3672 1830; Poços de Caldas: Rua Mato Grosso, nº 275 - Centro, CEP: 37.701-006 - Fone: (35) 3721-6204; Ponte Nova: Av. Dr. Otávio Soares, 41 - salas 326 e 328, Palmeiras - CEP: 35.430-229 - Fone: (31) 3817-2721; Pouso Alegre: Rua Dom Assis, 241 - Centro, CEP 37.550-000 - Fone: (35) 3423-3289; Sete Lagoas: Rua Vereador Pedro Maciel, 165 A - Bairro Nossa Sra. das Graças - (Atendimento: Quartas-feiras - 8h às 17h - Fone: 93685999 - Fernanda); Teófilo Otoni: Rua Pastor Hollerbarch, 187/201 - Grão Pará, CEP: 39.800-148 - Fone: (33) 3523-6913; Uberaba: Rua Alfen Paixão,105 - Mercês, CEP: 38.060-230 - Fone: (34) 3332-7494; Uberlândia: Rua Olegário Maciel, 1212 - Centro, CEP: 38.400-086 - Fone: (34) 3214-3566; Varginha: Av. Doutor Módena, 261 - Vila Adelaide, CEP: 37.010-190 - Fone: (35) 3221-1831. Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:44 Page 7 7 RECONHECIMENTO Em 2014, a revista Elas por Elas do Sinpro Minas esteve mais uma vez em evidência numa premiação nacional. A matéria “O parto é da mulher – movimentos denunciam a violência e propõe mudanças para promover o parto ativo e humanizado”, da jornalista Maria Cecília Alvim Guimarães, publicada na edição de 2013, recebeu uma menção honrosa no Prêmio Nacional de Jornalismo sobre Violência de Gênero. O prêmio, promovido pela Casa da Mulher Catarina e pela Rede Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, de Santa Catarina, contou com o apoio da Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres da Presidência da República. A premiação aconteceu no dia 16 de maio de 2014, em Florianópolis, juntamente com a abertura do Seminário Internacional sobre Mídia e Violência de Gênero. “Fico muito feliz com o reconhecimento desse trabalho que repercutiu na minha vida pessoal. O propósito da reportagem foi evidenciar um tipo de violência contra a mulher, muito comum na atualidade, mas ainda pouco conhecida e combatida, a violência obstétrica. Com isso, colaborar com a conscientização das mulheres sobre o problema, a fim de que se tornem protagonistas de suas experiências de parto e assim, contribuir também com a perspectiva MARK FLOREST Elas por Elas recebe menção honrosa em prêmio nacional de jornalismo Premiação é comemorada em reunião do conselho editorial. de que é possível evitar condutas inadequadas na assistência ao parto”, explica Cecília Alvim. Após escrever a reportagem, a jornalista passou pela experiência do parto natural. Foram inscritas 82 reportagens e 15 foram selecionadas entre os primeiros lugares de cada categoria, que receberam R$ 5.000, e as menções honrosas. O prêmio faz parte da Campanha “Jornalistas dão um ponto final na violência contra mulheres e meninas”, desenvolvida em outros países da América Latina e Caribe, incluindo o Brasil. De acordo com Clair Castilhos, secretária executiva da Rede Feminista de Saúde, a proposta da campanha é contribuir para que jornalistas possam olhar para o tema da violência de gênero com sensibilidade. “O objetivo da campanha é dialogar com jornalistas, de maneira que o tema não seja somente pautado nos meios de comunicação, mas que quando tratado, considere as relações de gênero, os aspectos culturais que estão ligados a todos os atos de violência contra meninas e mulheres”, destaca.ø Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:44 Page 8 8 HOMENAGEM POR SAULO ESLLEN MARTINS FOTO MARK FLOREST Exemplo de dedicação Celina Arêas recebe condecoração da Justiça do Trabalho Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:44 Page 9 9 A diretora do Sinpro Minas e da CTB nacional, Celina Alves Padilha Arêas, foi condecorada com a Ordem do Mérito Judiciário do Trabalho Ari Rocha em 2014. A medalha é uma iniciativa do Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais (TRT-MG) – 3ª Região e destaca as personalidades que atuam de forma brilhante no mundo do trabalho. A indicação da professora e sindicalista mineira foi feita pelo desembargador do TRT/MG, Marcelo Lamego Pertence. Para ele, Celina é um exemplo de dedicação ao mundo do trabalho e ao trabalhador. “Seriedade, competência e compromisso são as premissas dessa medalha e essa mulher tem esse algo a mais que precisa ser ressaltado. Pessoa mais indicada não haveria para receber essa medalha”, frisou. Celina é sindicalista desde a década de 1980 e sua história é marcada pela luta em defesa dos direitos dos professores(as) e demais trabalhadores(as). Foi diretora de Comunicação Social da Contee, por duas gestões – de 1997 a 2000 e de 2000 a 2003 – e também diretora de Assuntos Educacionais por uma gestão, de 2006 a 2009. Nascida no Vale do Jequitinhonha, na cidade de Rubim/MG, começou a trabalhar como professora primária, lecionando Língua Portuguesa e Inglês. Veio para Belo Horizonte em 1972, quando começou a dar aulas também no setor privado. Filiou-se ao PCdoB em 1973, com o partido na clandestinidade, e em 1977 ingressou na militância sindical, participando da onda grevista que ocupou o país em 1979. Sua caminhada junto aos professores culminou em dois mandatos como presidenta, nas gestões entre 1995 a 2000. A desembargadora Maria Laura Franco Lima de Faria, presidente do TRT- MG, destacou a importância do momento como a oportunidade de reverenciar os “cidadãos e entidades que prestam relevantes serviços ao bem comum e que contribuem ou contribuíram com ações de engrandecimento da Justiça do Trabalho e promoção das instituições livres e da democracia”. Para a vice-presidenta do Sinpro Minas, Valéria Morato, a homenagem representa o reconhecimento do trabalho do sindicato dos professores na pessoa da Celina. “Ela é uma grande lutadora, foi presidente do Sinpro numa época em que as mulheres ainda encontravam muitas dificuldades para ocupar espaços de poder e nem por isso deixou de lutar pela categoria e por melhores condições de vida para os trabalhadores. Assim, é uma honra para todos nós essa homenagem do Tribunal do Trabalho”. De acordo com Celina, a medalha é de extrema importância para o sindicalismo mineiro e nacional, porque reconhece o trabalho coletivo que vem sendo feito: “essa medalha não é individual, ela sintetiza o trabalho do sindicato dos professores, da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras (CTB) e de outras entidades das quais participamos. Eu vou levar essa honraria como um prêmio à luta coletiva dos trabalhadores por uma sociedade mais justa, humana e igualitária”. Você ocupa cargos de destaque no sindicalismo, fato que a maioria das mulheres não alcança. O que é preciso para que as mulheres consigam superar o machismo e ocupar os espaços de poder? Quando participei pela primeira vez da direção do Sindicato dos Professores do Estado de Minas Gerais já atuava na luta política e sindical. A minha história confunde-se com a luta por mais liberdade, democracia e direitos iguais entre homens e mulheres. Desde minha vida estudantil. Nem sempre estive em cargos de “poder”. Na primeira vez que participei da diretoria do Sinpro Minas era suplente. Penso que espaço se conquista com muita luta e coerência. Devemos ter convicção que a luta pela emancipação da mulher é uma luta de classe. Não é fácil ocupar lugar de destaque no regime capitalista. Somos maioria da sociedade e não somos maioria em nenhuma instância de poder. Na sua opinião, quais iniciativas podem ser eficazes para romper as barreiras de gênero no movimento sindical? As mulheres não devem ter medo de errar. Devem ter confiança em si e cuidar da formação ideológica, além de vencer a timidez e sempre cuidar da autoestima. Você acha que quando há mulheres na direção, as questões de gênero ganham mais ênfase nas políticas do sindicato? Não. Penso que não basta ser mulher, negro ou pobre. Precisamos sim, ganhar, no local em que atuamos, a convicção de que a luta por direitos iguais é cotidiana. Você já sofreu algum preconceito por ser mulher, dentro do movimento sindical? Já. Principalmente pelo patronal. Quanto aos companheiros sindicalistas, de uma forma velada, são muitos educados, mas na maioria das vezes se julgam mais capazes, mais preparados do que nós.ø Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:44 Page 10 foto SAULO ESLLEN MARTINS 10 Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:44 Page 11 11 SINDICAL POR DÉBORA JUNQUEIRA Pela igualdade de gênero Mesmo sub-representadas, as trabalhadoras superam desafios e buscam mais espaços de poder Em contraste com a crescente participação das mulheres no mundo do trabalho, que representa 50% da população economicamente ativa, a luta sindical ainda é marcadamente masculina. É o que se pode constatar através de pesquisas sobre as mulheres no mercado de trabalho e no movimento sindical. O que se vê é que a desigualdade de gênero, presente principalmente nos espaços de poder, se repete nas instituições que atuam em defesa dos/das trabalhadores/as. Conforme levantamento do Dieese, feito em 2009, a mulher não tem assento em 26% das diretorias de sindicatos, sejam urbanos ou rurais. E mesmo quando está presente, a participação da mulher ainda é bem menor que a do homem. No topo da representação sindical, ou seja, nas centrais sindicais, as mulheres representam apenas 21,18% de suas diretorias. “A pesar da sub-representação nas direções, nos cargos decisórios das entidades sindicais, a participação das mulheres têm pavimentado uma estrada que é longa e íngreme, haja vista, a conquista de secretarias da mulher na maioria dos sindicatos, federações, confederações e centrais sindicais”, garante a dirigente da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), Raimunda Gomes, mais conhecida como Doquinha. Na CTB, foi estabelecida a cota de 30% de gênero em todos os cargos e instâncias de direção, conforme seu Estatuto Social e resolução aprovada no 1º encontro nacional de mulheres da CTB. “É uma exigência o seu cumprimento e orientamos que os sindicatos filiados à central apliquem o dispositivo estatutário”, afirma. (Leia a entrevista) “a mulher não tem assento em 26% das diretorias de sindicatos, sejam urbanos ou rurais”. As mulheres são mais de 50% entre os/as professores/as do ensino superior, 71% no ensino médio e 85% no ensino fundamental, de acordo com dados da pesquisa do Ministério da Educação, realizada em abril de 2010. Mesmo na categoria de trabalhadores/as em educação, majoritariamente feminina, essa representatividade ainda não se reflete nas organizações sindicais educacionais. Segundo pesquisa realizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee), em 2011, entre os 1838 dirigentes que formam as diretorias das 81 entidades filiadas à Confederação, 60,07% são homens e 39,93% mulheres. A diferença torna-se ainda mais expressiva quando se foca na participação das sindicalistas nos cargos de presidência e coordenação das entidades. Nestes casos, os homens ocupam 78% dos postos de mais poder na direção das entidades. Nos sindicatos da região sudeste, 422 são homens (58,6%) e 297 (41,4%) são mulheres. Nas federações de trabalhadores/as em educação ligadas à Contee, a situação não é diferente. Um levantamento de Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:44 Page 12 12 MARK FLOREST gênero feito nessas entidades mostra que dos 218 dirigentes, 153 são homens (70,2%) e 65 mulheres (29,8%). “Existem diversos fatores que impedem ou dificultam a participação das mulheres nas esferas públicas, seja a questão da dupla jornada de trabalho, a segmentação das mulheres em atividades ou funções ditas femininas, as disparidades salariais e a ausência de políticas públicas como creches, entre outras. Entretanto, através da nossa vivência, e de conversas com diversas companheiras, podemos observar a falta de incentivo, seja através de discursos ou de práticas, que não favorecem o rompimento dessas barreiras”, afirma a professora Nara Teixeira, dirigente da Contee, em artigo sobre a pesquisa de gênero feita pela entidade. Sindicalistas mineiras Na base do Sinpro Minas, que representa os/as professores/as das escolas particulares de Minas Gerais, exceto Juiz de Fora, há 42.342 mulheres (67%) e 20.935 (33%) homens, entre os/as professores/as sindicalizados/as. A representação na diretoria eleita para a gestão 2012/2016 composta por 129 dirigentes, 54 são mulheres (41,8%) e 75 são homens (58,2%). Para a vice-presidenta do Sinpro Minas, Valéria Morato (foto), o problema da desigualdade de gênero não é exclusivo do movimento sindical. Ela também entende que é uma questão que afeta as mulheres nos espaços de poder em geral. “A participação na vida pública, em qualquer tipo de militância, nos ocupa nos horários não convencionais, exigindo a nossa participação à noite e nos finais de semana. Não é Revista Elas por Elas - Abril 2015 fácil para as mulheres conciliar as atividades políticas e a vida familiar. Com a predominância dos homens, é mais difícil para a mulher ocupar os espaços decisórios. As mulheres têm que se esforçar mais que os homens para se estabelecer. Quando agem de forma mais firme são criticadas, se não se impõem, são consideras ‘mulherzinhas’, avalia. Valéria conta que quando entrou no movimento sindical, há 12 anos, não tinha a dimensão do trabalho dentro do sindicato. “O trabalho nos envolve 24 horas. Não tive medo de mudar a minha vida pessoal para me adaptar, mas entendo que muitas mulheres têm dificuldade de fazer isso, porque dentro de uma sociedade machista o espaço privado ainda é considerado prerrogativa da mulher e somos cobradas quando não o assumimos dentro dessa cultura”. É consenso que a ausência de mulheres nos espaços de poder e de decisão significa um déficit na democracia e uma dívida da sociedade em relação às mulheres. A representação política e sindical é fundamental para se avançar na construção de uma sociedade mais democrática e mais igualitária. É o que também reforça a vereadora e sindicalista Vera Lúcia Alfredo. Vera iniciou sua militância política na juventude quando participava da diretoria do DCE na faculdade. Em 1979, período importante do movimento sindical, entrou para a diretoria do Sindicato dos Trabalhadores em Educação (SindUTE-MG) e em 2007, como professora de escola privada, passou a participar da diretoria do Sinpro Minas. Em sua trajetória, ela conta que foi rotulada de “largada”, “comunista” e até ouviu que sua militância política era uma fuga Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:44 Page 13 13 da obrigação com os serviços domésticos. Para seguir em frente, ela teve que superar várias barreiras para assumir a tripla jornada de uma mulher sindicalista. “Dava aula, fazia faculdade, cuidava da casa, marido e filhos e ainda participava de reuniões, assembleias e greves. Muitas vezes, levava as crianças junto comigo, que dormiam nos sofás do sindicato, nem sempre preparado para acolher as mulheres e suas necessidades. Quando eu chegava em casa, o meu marido reclamava muito. O fim do casamento foi inevitável, mas não me arrependo, gosto do que faço e me sinto realizada”, afirma. Por outro lado, Vera diz que nunca sentiu preconceito por ser mulher dentro do sindicato. “Não me intimido com os homens e sei me impor”, declara. Se as entidades de classe do movimento sindical de trabalhadores lutam por mais democracia, diversidade e emancipação feminina, a pergunta que se faz é se há apoio à maior participação da mulher nas diretorias, seja por meio de cursos de formação política ou em outras formas de atuação que possibilitem a inserção das mulheres nos espaços de poder. Tema que instiga e merece uma investigação mais ampla. “Muitas vezes, levava as crianças junto comigo, que dormiam nos sofás do sindicato”. Atuação das mulheres no movimento sindical é invisibilizada No artigo Práticas Invisíveis: o Movimento Feminista e o Sindicalismo no Brasil, de Luanda de Oliveira Lima, mestranda em Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro –UFRJ, disponível na internet (https://strabalhoegenero.cienciassociais.ufg.br/up/24 5/o/LUANDA.pdf), a autora faz uma análise sobre a participação feminina nos movimentos de trabalhadores no Brasil. O trabalho da pesquisadora mostra que, apesar da intensa participação das mulheres na vida sindical e nos movimentos sociais no país, essa atuação é igualmente invisibilizada e marcada pelo falocentrismo, o que influencia na forma como essa história é ‘‘contada”. O texto recorda que, no final do século XIX, embora as mulheres fossem grande parte da classe trabalhadora, elas não eram bem vindas nos sindicatos. Contudo sempre estiveram presentes no movimento operário e sindical brasileiro, inclusive em momentoschave como na greve geral de 1917, que começou com tecelãs que reclamavam dos abusos sexuais cometidos pelos capatazes e das más condições de trabalho. Lutaram pela incorporação de alguns de seus direitos na Consolidação das Leis do Trabalho – CLT – em 1937, e conseguiram garantir alguns importantes, como da proteção à maternidade e da igual remuneração. Em 1968, nas greves de Contagem e Osasco, marcos da resistência no período da ditadura, é possível observar a partici- Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:44 Page 14 14 vitórias no patamar político e jurídico. Nas greves da década de 1980, como na greve de 1988, em Volta Redonda, as mulheres atuaram não só como apoio, mas também ativamente nas mobilizações, articulações e divulgação do movimento grevista. Já na década de 1990, a “década neoliberal”, o mundo do trabalho vive sua fase de enxugamento, com a reestruturação produtiva, a flexibilização e a precarização do emprego os sindicatos se fragmentam, aumentando as dificuldades e as barreiras para ampliar a participação e as conquistas das trabalhadoras. A autora defende a necessidade uma atuação conjunta e articulada da classe trabalhadora para garantir a aplicação das Convenções 100 e 111 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, respectivamente acerca do salário igual para trabalho igual e sobre a igualdade de oportunidades entre homens e mulheres no mercado de trabalho. Ela conclui que a luta das mulheres sempre esteve diretamente ligada à luta dos trabalhadores, no entanto, parece estar invisível, como se estivesse escondida sob uma “dominação masculina” (BOURDIEU, 1999). Na sociedade contemporânea a ideologia predominante ainda é marcada por uma visão masculinizada na qual a imagem feminina é um estereótipo sem voz (SOUZA-LOBO, 1991), a maioria dos movimentos, seja sindical, popular ou partidário, reproduz, de alguma forma, essa ideologia. INTERNET pação de mulheres dirigentes sindicais. Na década de 1970, com o aumento da força de trabalho feminina, houve também um significativo aumento das mulheres sindicalizadas, índice que era superior ao aumento da sua participação no mercado de trabalho. Ainda segundo o artigo, o mundo do trabalho viveu nas décadas de 1980 e 1990 momentos antagônicos. No Brasil, a década de 1980 é marcada pela redemocratização, pela intensa participação popular e pela expansão do movimento sindical, que, com mais de 700 greves vive sua “época de ouro” (SANTANA, 2004). A luta pela democratização das relações de gênero persistiu e, com a Constituição Federal de 1988, as mulheres conquistaram importantes Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:44 Page 15 15 O Sindicato dos Auxiliares de Administração Escolar (SAAEMG), com 33 anos de existência e 60% de mulheres na base, nunca havia sido presidido por uma mulher. No dia 13 de dezembro de 2014, o SAAEMG começou a escrever uma nova história com a posse da advogada Rogerlan Augusta de Morais (foto). Rogerlan, 46 anos, é a quinta presidente do sindicato. Antes de assumir a presidência, coordenou o Departamento Jurídico durante 12 anos. Rogerlan também fez parte da diretoria da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB/MG) como secretária geral até 2013. Hoje ocupa o cargo na diretoria plena da CTB Nacional. Elas por Elas - Como você vê a atuação das mulheres no movimento sindical dos Auxiliares de Administração Escolar? Somos a maioria da população, somos a maioria de trabalhadores nas instituições de ensino (em torno de 60%) e, para o mandato de 2014/2018 a categoria elegeu pela primeira vez uma mulher para presidir o SAAEMG. Neste mandato representamos percentual de 42% de mulheres na diretoria e conselho fiscal. A pretensão é que a representação de gênero seja de 50% o que, entendemos, confere maior legitimidade e equidade na condução da entidade sindical. O SAAEMG, em várias oportunidades, tem ressaltado a importância da FOTO CRÉDITO Pela primeira vez, SAAEMG tem uma mulher na presidência mulher para a categoria e incentivado sua participação nas demandas do sindicato e registrado que é um direito dela assumir essa bandeira, que a sociedade (machista) não faz nenhum favor em apoiá-las. Aliás, é um dever já que lutamos por direitos iguais em todas as áreas e sabemos da dedicação e influência da mulher na formação da sociedade em todos os níveis, familiar e profissional. Você acredita que há preconceito de gênero, mesmo numa categoria majoritariamente feminina? O aumento da participação feminina nos postos de trabalho viabilizou as demandas de igualdade de gênero também no meio sindical, que antes era predominantemente masculino. Infelizmente, ainda há preconceito que não se manifesta abertamente (já que se tornou politicamente incorreto pormenorizar a mulher). Isso ainda ocorre por meio de piadinhas que ao serem contestadas pelas mulheres, são justificadas como uma brincadeira inocente pelos homens. Sabemos que, no fundo, é preconceito sim. Na nossa categoria esse preconceito não é tão acentuado, pois a maioria são mulheres que, a cada dia, mais se apoderam do seu espaço de forma natural e consciente. A pretensão é que, agora, com maior número de mulheres na diretoria, possamos criar uma secretaria ou diretoria de políticas para mulheres. Dessa forma, teremos condições de pensar a mulher no mundo do trabalho e no meio sindical, discutindo e desenvolvendo atividades que valorizem e defendam ainda mais sua importância na sociedade. Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:44 Page 16 ARQUIVO PESSOAL 16 ENTREVISTA RAIMUNDA GOMES “Não há igualdade de oportunidade para a mulher exercer o poder” Para a professora e dirigente da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), Raimunda Gomes (Doquinha), que já esteve à frente da Secretaria de Mulheres da entidade, a luta não é só de uma classe contra outra, ela é também de gênero, raça e orientação sexual. Segundo ela, no caso especifico das mulheres, está com- Revista Elas por Elas - Abril 2015 provado que elas possuem a mesma capacidade política e administrativa dos homens, o que lhes falta é igualdade de oportunidade para exercer o poder. Ela afirma que ao romper com o estereotipo de passiva e subserviente e assumir o espaço público, as mulheres disputam com seus próprios companheiros homens e também com as próprias mulheres, que por falta de compreensão do papel da mulher na sociedade patriarcal, acabam reproduzindo a discriminação contra a mulher no movimento sindical, criando armadilhas para as mulheres não ascenderem politicamente. Doquinha acredita que há um jeito masculino e outro feminino de fazer sindicalismo. “Os homens pensam mais na universalidade das lutas e as mulheres pensam para além disso, elas conciliam a pauta geral do movimento sindical com as especificidades que brotam das questões subjetivas da luta, principalmente em relação à sua condição no mundo do trabalho”, afirma. Confira a entrevista. Elas por Elas: Como você avalia a participação das mulheres no movimento sindical? Determinante no processo de democratização dos espaços e valorização das opiniões que as mulheres possuem acerca dos mais diversos assuntos, principalmente seus direitos no mundo do trabalho. A pesar da sub-representação nas direções, nos cargos decisórios das entidades sindicais, a participação das mulheres tem pavimentado uma estrada que é longa e íngreme, haja vista, a conquista de secretarias da mulher na Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:44 Page 17 17 maioria dos sindicatos, federações, confederações e centrais sindicais. Na CTB, há alguma resolução sobre paridade de gênero ou cotas nas gestões dos sindicatos? Na CTB, a cota de 30% de gênero em todas os cargos e instâncias de direção, é cláusula pétrea, nasceu com a central, somos uma Central Sindical de Trabalhadores e Trabalhadoras, está em seu Estatuto Social e, na resolução aprovada no 1º Encontro Nacional de Mulheres da CTB, é uma exigência o seu cumprimento. Orientamos que os sindicatos filiados à central apliquem o dispositivo estatutário. Sobre a paridade, eu diria que o assunto ainda precisa de debate no interior da central, para ser de fato uma conquista e não uma imposição, a paridade exige que os homens também estejam convencidos da legitimidade do pleito, e não apenas apoiem, mas, fundamentalmente, entendam que para as mulheres atuarem paritariamente, implicaria em uma mudança de postura e mentalidade. Você acredita que no sindicalismo as mulheres no poder precisam provar sua capacidade política e que as exigências são maiores do que com os homens? Tem sido a tônica até então, aos homens o direito de aprender fazendo e até errar, às mulheres o dever de fazer certo, com perfeição, o que é muito injusto, porque a condição militante é extremamente diferente entre homens e mulheres. O cenário é mais desfavorável às mulheres, pela construção histórica do seu papel cultuado pela sociedade machista e patriarcal, que lhe reserva como locus de atuação o espaço privado para um ser conciliador, passivo e subserviente, o que, por si só, já caracteriza discriminação de gênero. Ao romper com esse estereótipo e assumir o espaço público, as mulheres disputam com seus próprios companheiros, os homens, e são eles em maior quantidade, mas também as próprias mulheres, por falta de compreensão do papel da mulher na sociedade patriarcal, que reproduzem a discriminação contra a mulher no movimento sindical, criando armadilhas para as mulheres não ascenderem politicamente. Em síntese, a luta não é só de uma classe contra outra, ela é também de gênero, raça e orientação sexual, essas ditas minorias, não aceitam mais serem tratadas como alguém que precisa de outro para lhe defender, estão na condição de protagonistas da própria luta. No caso específico das mulheres, está comprovado que possuem a mesma capacidade política e administrativa dos homens, o que lhes falta é oportunidade e igualdade de oportunidade para exercer o poder. Na sua opinião, há um jeito ou um estilo diferente entre as mulheres quando elas participam do movimento sindical ou estão na liderança dessas entidades? Com certeza, como já dizia Elizabeth Souza Lobo, há jeito masculino e um jeito feminino de fazer sindicalismo, os homens pensam mais na universalidade das lutas, as mulheres pensam para além da universalidade, elas conciliam a pauta geral do movimento sindical com as especificidades que brotam das questões subjetivas da luta, principalmente, em relação à sua condição no mundo do trabalho. Pela sua própria condição e feminilidade as mulheres quando assumem as direções das entidades criam ou recriam ambientes que possibilitem maior conforto e interlocução na relação de gênero, ampliam a participação das mulheres e pautam nas negociações tanto salariais como políticas as questões específicas do universo feminino. Óbvio, que muitas mulheres ainda reproduzem o pensamento machista ocasionado pela ausência de formação política que possibilita a consciência de classe e gênero. De modo geral, as mulheres são bastante comprometidas com a democratização dos espaços e formação de novas lideranças.ø Revista Elas por Elas - Abril 2015 foto UNE Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:44 Page 18 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:44 Page 19 19 POR SAULO FEMINISMO ESLLEN MARTINS Feminismo na América Latina Uma nova geração de lutadoras ganha espaço nos movimentos sociais e políticos Inspiradas pelas mulheres que, pela liberdade feminina, queimaram sutiãs em praça pública, lutaram pelo direito ao voto e a favor do uso de contraceptivos, elas estão na cidade, no campo, escolas e empresas, demonstrando o seu poder. A exemplo das feministas que fizeram história em várias partes do mundo, ganha força uma nova geração de mulheres que lutam pela emancipação feminina. São jovens, inteligentes, trabalhadoras e engajadas em movimentos sociais e políticos. Esse é um pequeno perfil das feministas que surgem na América Latina. Muitas delas não militam diretamente em movimentos, essencialmente de gênero, mas onde atuam defendem a bandeira da igualdade de direitos entre mulheres e homens. A partir do olhar de mulheres em quatro países: Brasil, Argentina, Nicarágua e Venezuela, é possível traçar um quadro da atuação feminista contemporânea no continente. Elas representam seus países e organizações, todavia, também são as vozes de muitas estudantes, sindicalistas, artistas, jornalistas e outras cidadãs que compartilham desejos co- muns, entre eles a vontade de viver em um mundo mais igualitário e menos preconceituoso. Cada uma, a seu modo, imprime uma nova maneira de ser feminista. De toda forma, não estão só nos bastidores, são protagonistas e recebem os holofotes do trabalho que desenvolvem. Mulheres diferentes, que atuam em culturas distintas, mas que compartilham muitos sonhos em comum. Amantes da liberdade, defensoras da equidade de gênero, feministas por essência e trajetória. Escritoras de suas próprias histórias. Falam por elas mesmas o que pensam sobre o contexto político e a luta feminista em seus países. Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:44 Page 20 Virgínia Barros Movimento estudantil Presidenta da União Nacional dos Estudantes no Brasil, cursou a faculdade de Direito, em Recife. Foi presidenta da União Estadual dos Estudantes daquele estado. É militante da União da Juventude Socialista (UJS) e do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). O movimento estudantil é uma escola capaz de ampliar a nossa visão da educação e o nosso entendimento sobre o Brasil. Eu sempre senti que o conhecimento assimilado na sala de aula tem limites. Temos mais possibilidades de entender a sociedade a partir do momento em que incorporamos a luta dos movimentos sociais. Daí em diante, cria-se a possibilidade de compreender e interferir nos rumos da sociedade. Na história brasileira, podemos fazer referência a uma série de mulheres que se destacaram pela luta política e social. Contudo, uma, em especial, é a Patrícia Galvão (Pagu). Foi uma das figuras mais importantes do modernismo brasileiro. Através da arte e da mi- Revista Elas por Elas - Abril 2015 litância política, ela contribuiu para um país melhor. É uma mulher que me inspirou com sua rebeldia e sensibilidade. É uma história que deve ser contada para as próximas gerações. Outra mulher que provocou mudanças na forma de participação das brasileiras na política é a presidenta Dilma. Ela tem uma trajetória marcante, desde a juventude, quando resistiu de forma tão brava à ditadura militar. Abriu portas para que muitas outras possam percorrer esse caminho. Ainda existe resistência à participação das mulheres em diversos espaços de poder. Isso acontece no ambiente das universidades, no ramo empresarial, na área científica e também na política. As mulheres que se destacam nas esferas de poder, infelizmente, ainda sofrem preconceito. Só que cada vez mais mulheres têm vencido essas barreiras e contribuído para naturalizar a presença feminina nesses espaços. As universidades brasileiras ainda reproduzem as contradições sociais. A estrutura destas instituições de ensino ainda não está adaptada para a nossa presença. Isso faz com que ainda tenhamos casos de violência de gênero nestes espaços. A violência é um braço do machismo, mas não é o único. Ainda temos muito a avançar na luta feminista em nosso país. Eu me considero uma feminista e a UNE é uma entidade feminista. Nós temos objetivos gerais em torno do curso da luta política brasileira, em especial, no debate sobre a universidade. Consideramos que não é possível debater a sociedade brasileira sem inserir nesse contexto a luta pela emancipação das mulheres. Ser feminista é compreender que homens e mulheres devem ter direitos iguais e oportunidades compatíveis para desenvolver suas potencialidades. É somar à luta para fazer com que as mulheres possam estar em um campo que é seu de direito. Ser protagonista na sociedade, sem nenhum tipo de resistência e preconceito de gênero, classe, orientação sexual ou raça. É lutar por uma sociedade igualitária. ARQUIVO PESSOAL ARQUIVO UNE 20 Diana Broggi Movimentos populares Graduada em psicologia, milita no movimento Popular Pátria Grande da Argentina e na Associação dos Trabalhadores do Estado. Foi integrante da Direção das Políticas de Gênero da cidade de La Plata, província de Buenos Aires. Na América Latina, as expressões dos movimentos de mulheres e feministas são heterogêneas e amplas. O processo histórico do feminismo não é o mesmo na Venezuela, Argentina, Brasil ou Nicarágua. Contudo, ainda assim, com as diferenças e origens próprias em cada território, há um Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:44 Page 21 21 lhar contra elas de uma maneira integral. O feminismo popular tem uma forte âncora nos territórios, não é um mero posicionamento ideológico, por causa disso devemos construir laços de resistência onde habitamos, isto é: escolas, sindicatos, famílias, locais de trabalho. O feminismo é uma ferramenta privilegiada contra o patriarcado e o sistema capitalista, por isso dizemos que “sem feminismo não existe socialismo”. SAULO ESLLEN MARTINS dado inegável que é o avanço na organização e o crescimento do movimento feminista em nossos países. Isso tem um impacto integral, na medida em que incorporamos a luta das mulheres em todos os movimentos. Um exemplo claro disso é a Marcha Mundial de Mulheres, da qual somos parte junto a outras organizações na Argentina. Estrategicamente nos reunimos desde a perspectiva feminista na luta contra a mercantilização dos nossos corpos e a exploração do trabalho feminino. Hoje, temos algumas lutas que são centrais em nosso país, tais como o aborto legal, livre, seguro e gratuito e o fim da violência de gênero. Nos organizamos para conquistar direitos para as diversas identidades de gênero, não só para as mulheres. A partir de Pátria Grande somos parte desse processo na Argentina. Nos consideramos feministas populares e apostamos no crescimento dos movimentos para potencializar mudanças verdadeiras em nossa sociedade dominada pelo machismo em um sistema capitalista e patriarcal. Exercemos um papel de protagonistas das organizações, articuladoras, parte da coluna vertebral dos movimentos: nós garantimos, e não apenas contribuímos. Muitas vezes, tornamos possível a vida orgânica das entidades, levamos adiante debates e lutas que não se limitam a reivindicações particulares. Por isso, lutamos também pela terra, habitação e trabalho digno. Devemos soar o alarme acerca da invizibilização do papel fundamental das mulheres na história dos movimentos e organizações em processo de luta. Entendemos que as organizações necessitam do feminismo para compreender as múltiplas formas de opressão a que estamos expostos/as e bata- Patricia Zuniga Movimento de mulheres no campo Jornalista e radialista na cidade de Carazo, Nicarágua. Faz parte do Club Metamorfosis, uma organização que reúne homens e mulheres na luta por igualdade de gênero. Representa o movimento de mulheres campesinas do estado de Rosário e integra a Alba Movimentos em seu país. Em relação ao lugar que as mulheres ocupam na Nicarágua, nos últimos anos tivemos alguns avanços, mas ainda existem barreiras que devem ser destruídas. A luta árdua e contínua para erradicar a violência de gênero é uma delas. Contudo, os índices são menores, pois as condições de vida melhoraram em pequena parte, no entanto, de forma significativa. Considerando que 52% da população nicaraguense é de mulheres, diversos movimentos sociais e coletivos de mulheres estão preocupados com a reivindicação de direitos e com a equidade de gênero na sociedade. Esperase, não só que a mulher exerça seus direitos constitucionais, mas também que tenha voz na política e ocupe cargos públicos importantes. A maioria das mulheres se dedica ao trabalho não remunerado, pois estão ocupadas com tarefas reprodutivas e produtivas que não lhes geram rendas, todavia, contribuem, sobremaneira, para que os homens possam desempenhar funções em que ganham dinheiro. Cuidam dos lares, dos filhos e dos idosos. Existem outras desigualdades que atingem principalmente as mulheres pobres, que geralmente vivem em condições precárias e raras vezes têm acesso à educação, o que limita suas opções profissionais. Houve um crescimento dos postos de trabalho remunerado para a mulher, mas quando consegue emprego em uma empresa, oficina ou até mesmo como doméstica, ela fica sobrecarregada com a dupla jornada ou é obrigada a pagar outra pessoa para cuidar de sua casa. É preciso elaborar políticas que atinjam homens e mulheres. Já existe uma lei que aplica 50/50 em cargos públicos, entretanto, o sistema capitalista e individualista tem uma forma de poder machista e isso nos afeta sobremaneira. Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:44 Page 22 22 SAULO ESLLEN MARTINS Desde o momento em que ainda usam fraldas, homens e mulheres deveriam ter as mesmas oportunidades, pois é em casa que as desigualdades de gênero devem desaparecer e dessa maneira todas as pessoas seriam educadas para servir a sociedade. As bandeiras de luta dos movimentos de mulheres reivindicam principalmente Vanessa Rangel Militância política Comunicadora popular, fotógrafa, redatora e editora, participa da Corrente Revolucionária Bolívar e Zamora, na Venezuela, uma entidade dos movimentos sociais, com intensa inserção na esfera política. Com a chegada do presidente Hugo Chávez, em 1999, o governo bolivariano ficou marcado pela preocupação em atender as reivindicações de todos os setores que por décadas haviam sido excluídos e maltratados, dedicando especial atenção à emancipação da mulher. Em parte, isso pode ser confirmado com a aprovação da Lei Or- Revista Elas por Elas - Abril 2015 uma mudança no olhar da sociedade que nos vê como objetos sexuais, sobretudo, através da mídia televisiva, onde somos coisificadas. Temos campanhas que unem homens e mulheres para erradicar também o assédio sexual sofrido nas ruas. Muitas vidas de mulheres foram perdidas nas mãos de homens, porém, isso não foi em vão, porque muitas deixaram um caminho que seguimos para avançar a cada dia, apesar de enfrentarmos diversos desafios. No entanto, as mulheres não podem desistir, mas, sim, continuar lutando por seus direitos. Como seres humanos temos os mesmos direitos e eles devem ser respeitados. gânica sobre os direitos das mulheres a uma vida livre de violência, em 2007, e a criação do Ministério do Poder Popular para a Mulher e a Igualdade de Gênero, em 2009, que tem dentro de suas funções proteger os direitos das mulheres e impulsionar projetos socioprodutivos. Ao longo da história mundial, o papel da mulher tem sido essencial para as revoluções. Os historiadores, seguindo o sistema patriarcal, têm se encarregado de apagar a imagem de todas aquelas que tiveram um papel de protagonista. Na Venezuela isso está mudando, o comandante Chávez entendeu a importância da mulher em todos os processos e compreendia a luta pela equidade de gênero e a necessidade de mudança desse sistema patriarcal dentro do marco da revolução, por isso, em diversas ocasiões se proclamou feminista. Trouxe à tona as histórias de mulheres guerreiras, ele sabia que esses exemplos nos dariam força para as batalhas que viriam. e Chávez, do Partido Socialista, são mulheres. Essas mudanças vão além das instituições governamentais e dos processos produtivos. É importante ressaltar os números mencionados, porque demonstram que hoje em dia a mulher venezuelana tem um papel vital dentro do processo revolucionário, pessoas que anos atrás estavam dedicadas somente ao cuidado com seus filhos e à manutenção da casa, agora são grandes lideranças para as comunidades em que habitam e para o país. Exercem suas funções com a ternura que nos caracteriza, mas, ao mesmo tempo, com a firmeza necessária. Prefeitas, ministras, governadoras, deputadas, assessoras, dirigentes de partidos políticos, são alguns dos papéis que atualmente são desenvolvidos. Não tem sido fácil, sendo que nossa batalha diária também é com essa realidade machista latino-americana que nos persegue. Ainda que os avanços tenham sido significativos, existe um longo caminho a ser percorrido. O mais importante, contudo, é que contamos com muitos companheiros/as que se questionam e entendem que não se trata de uma questão separatista, muito antes pelo contrário, o feminismo é uma questão complementar ao processo revolucionário que estamos vivendo.ø Segundo dados oficiais, desde o início da revolução, até 2014, a taxa de desemprego da mulher diminuiu 9%. Outro dado importante é o fato de 55% dos Conselhos Comunais serem dirigidos por mulheres e 60% dos chefes das Unidades de Batalha Bolívar Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:44 Page 23 23 Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:44 Page 24 LUCIO BERNARDO JR. /C.D 24 POLÍTICA POR NANCI ALVES Longe das cotas de gênero Mulheres continuam minoria na representação política Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:44 Page 25 25 Representando mais de 50% da população e do eleitorado, a mulher responde também por mais de 45% da produção brasileira e pelo sustento de 1/3 das famílias, mas esse protagonismo ainda não se reflete na representação política feminina. De acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), nas eleições de 2014, o voto feminino teve o maior peso da história: 52% dos 142 milhões de eleitores brasileiros são mulheres. Nas últimas eleições, houve aumento também da participação feminina em quase todos os cargos, o que significa um crescimento de 46,5% de candidatas em comparação a 2010. A proporção de candidatas aptas a disputar algum cargo, em 2010, incluindo vices e suplentes, foi de 22,43% ou 5.056 candidatas. Já em 2014, foram 8.131 postulantes, ou seja, 31,07% do total de 26.172 candidatos/as. Porém, ao se considerar apenas as candidaturas aptas, esse número cai para 6.475 mulheres, num total de 22.530 registros, fazendo com que o percentual de candidaturas femininas (28,62%) ficasse abaixo da cota (30%) garantida por lei desde 2009. Mesmo com a campanha lançada pelo TSE, em março de 2014, “Mulher na Política”, vários partidos tiveram suas candidaturas indeferidas por falta de cumprimento da cota de gênero. Para o cargo de deputada federal, foram 1.755 candidatas; para deputada estadual e distrital, foram 4.617; para o Senado, apenas 33 mulheres e para o governo de Estado, 20 candidatas e 44 à vice, além de 03 candidatas à presidente e 03 a vice. Apesar de ter crescido o número de eleitoras e de candidatas, e ainda que o cargo mais importante do país seja ocupado por uma mulher, elas permanecem minoria em termos de representação política. O resultado do último pleito eleitoral mostrou que o parlamento brasileiro continua masculino, branco e empresarial - uma realidade difícil de se mudar no Brasil. Na Câmara dos Deputados, houve um pequeno aumento do número de mulheres, mas ainda não ultrapassa os 10%. Para o mandato que se iniciou em 2015, foram eleitas 51 deputadas federais, o que significa uma proporção de uma mulher para cada dez deputados eleitos, pois são 513 cadeiras. Os estados de Alagoas, Espírito Santo, Mato Grosso, Paraíba e Sergipe não tiveram nenhuma mulher eleita deputada federal. Minas Gerais foi o estado em que as mulheres tiveram menos destaque, sendo que a primeira na lista de contagem de votos aparece apenas na trigésima quinta posição. Nas assembleias estaduais e na Câmara Legislativa do Distrito Federal, o número de eleitas caiu de 139 em 2010 para 120 deputadas em 2014. Ou seja, a representação popular nos estados continua predominantemente masculina, já que apenas 11,3% dos “o parlamento brasileiro continua masculino, branco e empresarial” deputados estaduais e distritais são mulheres. A bancada feminina cresceu apenas no Ceará, Distrito Federal, Goiás, Minas Gerais e Mato Grosso do Sul. Em 17 estados, houve diminuição no número de candidatas eleitas. No Senado, foram eleitas apenas cinco mulheres para as 27 vagas disponíveis, o que representa apenas 18,5% do total dos senadores eleitos e 13% da Casa (são 88 cadeiras), já que outras seis senadoras cumprem mandato até 2019 (em 2014, foi renovação de um terço apenas). E o pior: para governo de estado, somente uma mulher foi eleita. Tratase de Suely Campos (PP), em Roraima, que, na verdade, substituiu o marido, Neudo Campos, considerado inelegível pela Justiça Eleitoral em função da Lei da Ficha Limpa. Historicamente, o número de governadoras nunca passou de 11%. A representatividade feminina nos governos estaduais não é tão pequena desde 1998, quando foi eleita apenas uma mulher governadora. Em 2002, foram duas; em 2006, três governadoras e, em 2010, apenas duas novamente. Na disputa para a presidência da República, o segundo turno se deu entre um homem e uma mulher, mas entre as 11 candidaturas apresentadas, as 3 candidatas ficaram entre os 4 primeiros colocados no primeiro turno. De acordo com dados do TSE, Dilma Rousseff ficou com 41,6% dos votos, Marina Silva com 21,3% e Luciana Genro com 1,6%. Juntas, conseguiram somar cerca de 67 milhões de votos, ou seja, 64,5% dos votos válidos. O Partido dos Trabalhadores (PT) segue como o partido que mais elege mulheres no país (9 deputadas) seguido pelo PMDB (7) e PSDB (5). Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:44 Page 26 26 Quem são as novas parlamentares? A Secretaria de Políticas para as Mulheres publicou, recentemente, uma nota técnica (Mulheres nas Eleições de 2014), em que analisa a participação, o perfil das eleitas e os constrangimentos à sua atuação no Congresso, dada a composição desta nova Legislatura. Segundo o documento, diante dos entraves à entrada das mulheres nas arenas decisórias, algumas usam do prestígio de suas famílias, assim como fazem alguns homens. Assim, das 51 novas deputadas federais, 21,5% são esposas, ex-esposas ou filhas de homens que ocupam ou já ocuparam cargos eletivos ou Ministérios. Entre os deputados eleitos, 16% são herdeiros políticos. E entre as 5 novas senadoras, 3 possuem capital delegado das famílias que possuem tradição política contra 3 senadores dos 27 eleitos. Das 51 deputadas eleitas, 29 exercerão o cargo pela primeira vez, sendo que três delas conseguiram atingir o quociente eleitoral com seus próprios votos, não dependendo do total de votos de seus partidos ou coligações: Christiane Yared (PNT/RJ), Clarissa Garotinho (PR/RJ) e Shéridan (PSDB/RR). Com relação à faixa etária das eleitas, apenas duas são consideradas jovens, ou seja, menos de 29 anos. De acordo com a nota técnica da SPM, a faixa etária de maior concentração das deputadas está entre 30 e 59 anos, com 38 deputadas (74,55%). A mais jovem é a deputada Brunny da Silva do PTC/MG, com 25 anos, e a mais velha, Luiza Erundina, com 79 anos, em 2014. Também no Senado Federal, das eleitas, 60% se concentra ente 30 Revista Elas por Elas - Abril 2015 e 59 anos. A senadora mais velha é Maria do Carmo do DEM de Sergipe, com 73 anos. “Acima dos 60 anos, tem 101 homens e 11 mulheres. As mulheres eleitas para a Câmara são mais jovens que os homens, o que pode significar que as gerações mais novas de mulheres têm maior entrada na política do que as mais velhas”, diz o documento da SPM. Sobre as profissões mais frequentes entre as deputadas eleitas, estão empresárias (11), seguido de professoras (6), advogadas (6) e médicas (5). Ao passo que entre as novas senadoras, há duas advogadas, uma pedagoga, uma empresária e uma jornalista. De acordo com o TSE, entre as principais ocupações das candidatas estão professoras, donas de casa, empresárias e estudantes. “Foram 430 candidaturas de donas de casa, mas apenas Dulce Miranda conseguiu se eleger para o cargo de deputada federal, pelo PMDB de Tocantins. O que reforça a hipótese, sugerida anteriormente, de que o recrutamento de donas de casa serve apenas ao cumprimento da cota”, diz a nota técnica. “entre as principais ocupações das candidatas estão professoras, donas de casa, empresárias e estudantes” Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:44 Page 27 27 ARQUIVO PESSOAL Dessa forma, sobre a escolaridade, com nível superior completo estão 84,3% das deputadas eleitas e 80% das senadoras. Apenas uma senadora tem nível superior incompleto e uma deputada não terminou o ensino fundamental. Raça: desigualdade ainda maior Além da sub-representação de gênero, também chamou a atenção a grande desigualdade de “raça”/cor na legislatura eleita neste ano. As candidaturas ao cargo de deputada/o federal significam 41% de candidatos do sexo masculino e brancos, as mulheres brancas foram 17,4%, ao passo que os homens negros correspondem a 6,2% das candidaturas e as mulheres negras um percentual de apenas 3,7%. Para o demógrafo e professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE/IBGE), José Eustáquio Diniz Alves, a situação é bem melhor do que há 30 anos, antes do processo de redemocratização, mas ainda falta um longo caminho para se atingir a equidade “racial” e de gênero. Uma ampla reforma política poderia mudar o quadro desigual das instituições representativas da república brasileira”, afirma. Os dados preliminares do TSE indicam que, entre as/os 513 deputadas/os eleitas/os, 410 (79,9%) se autodeclararam brancas/os, 81 deputados (15,79% ) se disseram pardas/os e 22 (4,29%), pretas/os. “O que demonstra que os negros (pretos + pardos) ficaram apenas com 20% dos assentos da Câmara. Assim, os pardos e pretos estão também sub-representados na representação parlamentar. Nenhum candi- Vera Soares coordenadora da elaboração da nota técnica da SPM. dato que se autodeclarou como amarelo ou índio foi eleito para a Câmara dos Deputados para a atual legislatura. As pessoas que se autodeclaram amarelos (orientais) possuem os melhores níveis educacionais, mas não conseguiram assentos no Congresso”, afirma o professor. Segundo ele, outro dado alarmante diz respeito aos povos indígenas que, mais uma vez, foram excluídos da Câmara dos Deputados. “As mulheres indígenas continuam sendo o grupo social mais discriminado do país e há 500 anos sofrem com as consequências da colonização portuguesa em terras tupiniquins e com a violência real e simbólica de gênero. A população indígena sofreu um genocídio nos primeiros 300 anos da história do Brasil, sendo hoje o grupo populacional em pior condição social e o mais excluído da política e dos espaços de poder”, reforça. Mais mulheres no Poder De acordo com a nota técnica As Mulheres nas Eleições de 2014, da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), o cenário decepcionante de candidaturas e das eleições que continuam excluindo a mulher e, em especial a negra e a indígena, é um indicativo da insuficiência do sistema eleitoral e político, presente hoje no Brasil. “Esse sistema necessita de mudanças urgentes para incluir de forma efetiva as mulheres na política, não só porque os partidos políticos são comandados por homens, mas também porque as candidaturas femininas não são prioritárias em termos do recebimento de financiamento por falta de apoio partidário”, diz a nota. Para a coordenadora da elaboração da nota técnica da SPM, Vera Soares, Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:44 Page 28 ainda não alcançamos a paridade de gênero na política, nos espaços de poder, porque a cultura brasileira é machista e discriminatória. “Esta cultura patriarcal que isola as mulheres do mundo da política está refletida nos partidos que, por sua vez, não têm a mínima preocupação em mudar esta realidade. Não incentivam as mulheres a participar, não compartilham estes espaços e não se incomodam com a pequena representação feminina nos poderes, pois já está naturalizada a exclusão da mulher também no mundo da política. Um contrassenso, pois ela tem papel fundamental na economia e inclusive nos movimentos sociais, dando enorme contribuição para a transformação deste país”, afirma. Na avaliação de Vera Soares, não há como votar em mulheres se elas aparecem pouco, exatamente porque os partidos não abrem oportunidades iguais às oferecidas aos homens. “Os partidos divulgam os candidatos que querem eleger e na maioria das vezes, aceitam as candidaturas femininas por exigência da lei, apenas para cumprir cotas. Assim, elas não têm visibilidade e enfrentam muito mais dificuldades como, por exemplo, obter recursos para financiar suas campanhas”, destaca. Segundo Vera Soares, a reforma política com enfoque de igualdade entre homens e mulheres, é o caminho para mudar esta realidade. “Precisamos de uma reforma política que inclua, por exemplo, o financiamento público de campanha e a mudança no formato das listas de candidaturas apresentadas pelos partidos políticos que contemple a alternância de nomes entre homens e mulheres, chegando à paridade entre os sexos”, afirma. Ela reforça que é necessário também estimular que as Revista Elas por Elas - Abril 2015 NANCI ALVES 28 definições internas dos partidos políticos sejam tomadas em coletivos e não continuem nas mãos dos chefes políticos, que em geral são homens. Vera Soares destaca ainda o papel dos professores para a mudança dessa realidade. “A escola, desde a educação infantil, nas suas práticas educativas, precisa estar atenta para não reforçar estereótipos machistas, pois isso contribui para o fortalecimento da política patriarcal. E, no ensino médio, a escola precisa ajudar as meninas a perceberem que não precisam, necessariamente, escolher apenas profissões que têm a ver com cuidado e/ou educação como enfermeiras, assistente social, professoras e que podem ocupar espaços, historicamente masculinos, como as engenharias, a física, a matemática, etc. Com certeza, a escola não é determinante, mas pode reforçar estereótipos. É preciso que crie um ambiente de cultura, de respeito às diferenças, que valorize a diversidade, uma cultura igualitária. Com certeza, isso vai contribuir diretamente para a igualdade de gênero”, finaliza. A historiadora Renata Rosa (foto) e ex-candidata à deputada estadual por Minas (PCdoB), em 2014, também defende uma reforma política urgente, pois considera que a luta por mais espaço na política para as mulheres é pesada e chega a ser cruel, em muitas situações, uma vez que não só as razões econômicas, sociais e culturais impedem uma participação mais efetiva Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:44 Page 29 29 das mulheres na política. Na sua avaliação, boa parte das mulheres desconhece o funcionamento dos diferentes sistemas eleitorais e as diversas maneiras desenvolvidas para organização da participação política no mundo. “O poder é um domínio ainda ocupado hegemonicamente por homens e essa condição cria dificuldades para a disputa feminina no processo. As mulheres são tratadas como coadjuvantes: coordenam as campanhas dos homens, mobilizam, escrevem seus materiais de divulgação, mas quando resolvem participar como candidatas, dificilmente têm apoio efetivo, com garantia de tempo de TV, com financiamento necessário, com a presença de quadros militantes com experiência para coordenar e acompanhar suas candidaturas. São poucas as que podem contar com uma estrutura básica para sustentar sua experiência de disputa e assim fortalecer sua atuação política de modo a construir as bases para uma futura eleição”, ressalta. Desde 2009, Renata Rosa coordena a Secretaria Estadual sobre a questão da Mulher do PCdoB, em Minas Gerais, e garante que “não é fácil organizar essa luta, diante do abismo político que naturaliza a sub-representação política feminina e a dicotomia entre os espaços públicos e privados para a vida das mulheres, sem questionar suas triplas jornadas de trabalho, o tempo colossal gasto com o cuidado e manutenção de seus lares, tantas vezes marcado pela violência. Trabalho não remunerado que sustenta e garante as bases do sistema capitalista e da atuação dos homens na sociedade, com suas roupas limpas e passadas, com sua alimentação garantida, com seus lares administrados e seus filhos criados”. Portanto, segundo a historiadora, o debate sobre Reforma Política precisa ser pensado sob o ponto de vista do fortalecimento das mulheres neste processo. “Reforma é uma palavra ampla e pode nos jogar em uma armadilha. Não desejamos qualquer Reforma, mas uma reforma política que leve em consideração o cotidiano feminino nas cidades e pressuponha condições reais de igualdade na disputa política. Desejamos uma reforma política que elimine a influência do poder econômico nas eleições”, defende. REFORMA POLÍTICA DEMOCRÁTICA Caminho para aumentar a representação feminina Alterar a desigualdade de gênero na política é uma das propostas da Coalizão Democrática para a Reforma Política e Eleições Limpas. O movimento propõe a instalação de uma Constituinte Exclusiva para a consolidação da mudança do sistema político do país através de um projeto de lei de iniciativa popular (PL nº 6.316, de 2013) encaminhado, ao Congresso. A Coalizão reúne mais de 100 instituições como Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), Conic (Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil), Movimento de Combate a Corrupção Eleitoral (MCCE), União Nacional dos Estudan- tes (UNE) e Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA Brasil). “A proposta é de um projeto de tramitação ordinária, não implica em emenda constitucional. É de iniciativa popular, ou seja, não é de situação ou oposição e sim algo que pretende ser representativo de todos os segmentos democráticos da sociedade. Procuramos encontrar identidade em torno de número pequeno de questões, mas que são decisivas para destravar o processo democrático brasileiro, para criar um sistema de representação mais identificado”, explica Aldo Arantes, exdeputado na Constituinte de 1988 e coordenador da Comissão Especial da OAB de Mobilização para a Reforma Política. Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:44 Page 30 ARQUIVO PESSOAL 30 Entre as propostas do projeto de iniciativa popular, Aldo Arantes destaca a que se refere ao financiamento de campanha. “A influência do poder econômico nas eleições, mais especificamente o papel das empresas privadas é um grave problema. Em 2014, o volume de recursos foi de 5 bilhões de reais; só para eleição de deputados federais foi de 1 bilhão de investimento, sendo que 77% foi contribuição de empresa. E aí está a gravidade da situação. A empresa contribui, mas depois quer contrapartida”, ressalta Aldo Arantes ao reforçar que o financiamento de campanha por empresas degrada o sistema político na medida em que é o canal de corrupção eleitoral. “O que vemos é essa situação produzir uma mágica de conteúdo antidemocrático: o poder do dinheiro faz com que a minoria da sociedade, os poucos Revista Elas por Elas - Abril 2015 que têm muito dinheiro, se transforme em maioria no Congresso e a maioria, ou seja, os professores, estudantes, trabalhadores em geral, desempregados, se tornem a minoria no Congresso. Por isso, propomos a proibição do financiamento de campanha por empresa e propomos a adoção do financiamento democrático: público, mas que permite financiamento de pessoa física, desde que limitado a R$700,00 por pessoa e, na somatória, não mais de 40% da contribuição pública”, explica. Outro ponto importante do projeto defendido pela Coalizão é o fim do sistema de votação em lista aberta, com a realização de eleições por um sistema proporcional em lista pré-ordenada e em dois turnos. “No primeiro, eleição em torno de propostas do partido, de ideias. E, no segundo turno, o eleitor escolhe o seu candidato. Isso fortalecerá os partidos, grandes ou pequenos, que realmente têm representação da sociedade, impedindo os tais partidos de aluguel, reduzirá o custo das campanhas e a quantidade de candidato, permitindo uma efetiva fiscalização eleitoral. Com base no quociente eleitoral você define o número de candidatos e esse será o objeto da escolha da sociedade, no segundo turno”, explica. E para aumentar a representação feminina, o projeto de iniciativa popular propõe a alternância de gênero na composição da lista partidária, visando garantir que 50% dos cargos sejam ocupados por mulheres. De acordo com Aldo Arantes, a paridade garantirá um homem e uma mulher no primeiro turno e, no segundo turno, o eleitor escolhe. Para Vic Barros, presidenta da União Nacional dos Estudantes (UNE), uma reforma política precisa estar sintonizada com o problema da sub-representação de parcelas significativas da população. “Nós, mulheres, somos maioria da população, mas temos pequena participação na composição do Congresso. Os pretos e os pardos também são maioria e sua participação ainda é menor que a das mulheres; assim como trabalhadores e trabalhadoras do país. Vimos que cresceu a bancada empresarial, do agronegócio, etc. Precisamos de medidas, do ponto de vista legal, que garantam que a diversidade da nossa população esteja representada no Congresso Nacional por meio de uma reforma. Com uma reforma política, acredito que daremos um salto significativo para aproximar o Congresso da identidade do nosso povo”, afirma. www.reformapoliticademocratica.org.br Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:44 Page 31 31 ARQUIVO PESSOAL Depoimentos de Deputadas Federais Jô Moraes - PCdoB ARQUIVO PESSOAL Comecei minha atividade política no movimento estudantil como participante da Juventude Estudantil Católica. Depois, fui presidente de Diretório Acadêmico na Escola de Serviço Social. Veio a ditadura e, no ambiente de perseguição, fui presa e fiquei clandestina por 10 anos. Quando veio a anistia, pude retomar a atividade aberta. Naqueles 10 anos, militei no Partido Co- Bruniele Ferreira - PTC Não venho de berço político, mas sou casada com um ex-deputado estadual. Vendo o exemplo do meu marido, o compromisso que ele tinha e o belo trabalho que ele desenvolvia, passei a munista do Brasil, na ilegalidade. A luta da juventude pela liberdade foi muito forte em nosso país naquele período. O cotidiano da vida política é marcado por disfarçadas atitudes machistas. As mulheres têm que se preparar muito para que possam ser escutadas, principalmente quando chegam num ambiente novo. Quando uma mulher fala, os homens escutam mais por educação do que por respeito ao que as mulheres dizem. Só depois de muito tempo e comprovada a competência é que elas passam a ser ouvidas. O centro da minha luta está focada na construção de um novo projeto nacional de desenvolvimento que supere as desigualdades e inclua as mulheres. Isso exige mais espaços de poder; equidade no trabalho; autonomia na família; e incorporação das mulheres na economia em melhores condições e com mais qualificação. Esses aspectos têm que vir acompanhados de políticas públicas que garantam seus direitos sexuais e reprodutivos, igualdade no trabalho e apoio às mulheres vítimas de violência. Todo mundo fala em reforma política, mas há grandes diferenças nas propostas que estão circulando. No âmbito das demandas femininas, lutamos por paridade e equidade, ou seja, por ter a mesma proporção de homens e mulheres nas cotas e vagas partidárias. Demanda que está contemplada no Projeto de Lei nº 6.316, de 2013, elaborado por integrantes de mais de uma centena de organizações da sociedade civil, entre elas a OAB, a CNBB, a UNE, a UBES. O mais importante aspecto a ser garantido na Reforma Política é livrar o voto da intervenção do poder econômico. admirar o seu trabalho e achei que ingressando na política poderia seguir os seus passos e lutar por um país melhor. Como apresentadora de TV, vivenciei muitas situações e acredito que, por meio da política, posso batalhar em prol das pessoas mais carentes e mudar o descaso com que são tratadas. Até agora não tive obstáculos, pelo contrário, fui muito bem recebida durante toda a campanha, por onde passava. Nós, parlamentares, sofremos ataques e sabemos respeitá-los. Sou favorável ao PL 3888, de 2012, que está pronto para ser pautado em plenário e que proíbe o abrandamento de pena nos casos de crimes de violência doméstica e familiar contra as mulheres. Além disso, a sub-representação da mulher na política é um fator que muito me preocupa e estarei engajada na luta para mudar esta situação. Tem também a PEC 590, de 2006, que obriga a Mesa Diretora da Câmara e do Senado a ter em sua composição ao menos uma mulher. Considero que nós, mulheres, temos e exercemos os mesmos direitos que os parlamentares homens, mas é natural que nós, mulheres, nos unamos, em especial quando o assunto envolve as políticas e programas direcionados para as mulheres, como a aprovação da lei Maria da Penha, a campanha do outubro rosa e outros. [email protected] [email protected] Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:44 Page 32 ARQUIVO PESSOAL 32 Dâmina Pereira -PMN ARQUIVO PESSOAL Meu marido Carlos Alberto é quem é o político. Ele já foi deputado federal e prefeito, e eu sempre participei da política ao lado dele. Ao mesmo tempo Raquel Muniz - PSC Eu e meu marido, Ruy Muniz, hoje prefeito de Montes Claros, fundamos o PT em Montes Claros. Ele foi o primeiro candidato a prefeito do PT na cidade. Não foi eleito, mas logo depois se elegeu vereador. Eu o acompanhei, ajudando nos atendimentos do gabinete e a resolver as demandas. Depois, foi eleito deputado estadual. O ajudei neste Revista Elas por Elas - Abril 2015 em que acompanhei sua trajetória, me dediquei à Secretaria de Assistência Social de Lavras e realizei diversos trabalhos que contribuíram bastante para essa minha decisão de enfrentar, pela primeira vez, uma vaga como deputada federal. No caso da última eleição, seria meu marido o candidato por Lavras, mas, até mesmo por perseguições políticas, ele decidiu não mais concorrer. Percebendo essa injustiça e a importância da causa, eu, como mulher, companheira de uma vida inteira, decidi enfrentar este novo desafio. Considero que, apesar de concorrer na política pela primeira vez, fui muito bem aceita, justamente por ser mulher. Estou no começo dos trabalhos na Câmara dos Deputados e por enquanto também não encontrei nenhuma rejeição. Na Câmara dos Deputados há a Secretaria da Mulher, que é uma estrutura institucional que une a Bancada Feminina e a Procuradoria da Mulher no Congresso Nacional. Nesta Secretaria, tenho acompanhado o trabalho das parlamentares na luta pela promoção da igualdade de gênero. Isto incentiva muito o meu empenho na defesa dos nossos direitos, na luta contra a violência doméstica, na igualdade de salários, enfim, tantas lutas e batalhas que nós precisamos vencer e que, com certeza, serão causas que irei defender. Meu dever como parlamentar será legislar em defesa de nossos direitos e levantar debates para a sociedade. novo desafio e colaborei na criação/elaboração da Lei Estadual da Saúde do Homem. Ruy, então, foi eleito prefeito de Montes Claros e eu me tornei sua chefe de gabinete, até o início de 2013. Neste período, ajudei a sanar as demandas do município e percebi que, como deputada federal, eu poderia fazer muito mais pela minha região, que é pobre. Quero mudar este quadro. Com quase 100 mil votos, fui a deputada federal mais votada de Minas, além de ser a primeira mulher eleita, pelo, norte Minas para exercer um mandato federal. Os obstáculos foram os normais, enfrentados por qualquer candidato. Não me senti discriminada por ser mulher. No entanto, sinto não ter podido entrar antes na política, em função das responsabilidades de mulher, de jornada tripla de esposa, mãe/dona de casa e profissional. É preciso que as mulheres se conscientizem do seu papel, que descubram que política também é coisa de mulher e que somos tão capazes quanto os homens. É através da política que decidimos, definimos que país vamos deixar para as próximas gerações. Depois, é preciso que os partidos apoiem as mulheres, que não sejam apenas um número para preencher a cota determinada por lei. Na Comissão da Reforma Política, da qual faço parte, vamos discutir outras formas de ampliar a representação feminina, como a questão do número de cotas de mulheres a serem eleitas, para que possamos vencer a barreira dos 10% - 15% de representatividade atual. Mas sem uma conscientização das mulheres, as cotas ficarão apenas no papel, como muitas das nossas leis. [email protected] [email protected] Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 33 Margarida Salomão - PT Minha militância começou na universidade, nos anos 1980, como professora universitária e como liderança sindical. Nos anos 1990, ingressei na política acadêmica, como pró-reitora e reitora, com um enfrentamento muito grande aos governos tucanos e sua concepção equivocada e perigosa sobre o ensino superior. A partir desse acúmulo, passei a militar também fora da universidade, buscando mudanças para além do quadro institucional. As dificuldades de todas as mulheres militantes que não derivam, nem são herdeiras, de uma militância masculina. Primeiro, tem que praticar uma quebra de expectativa, porque o ambiente e as relações interpessoais na política são fundamentalmente masculinas. Em segundo lugar, precisa convencer o eleitorado de que, mesmo sendo mulher, pode ser uma boa representante. A mulher é desacreditada na política, muitas vezes com apelo sexual, ou questionando a sua capacidade, como o caso das campanhas recentes extremamente violentas sobre a Dilma e Graça Foster, que tentam denotar que elas “não dão conta” da função pública que assumiram. Duas pautas são consensuais na bancada feminina: o combate à violência contra a mulher e a ampliação da participação feminina nos espaços de poder. Em relação à violência, a luta está no campo microfísico, das microrrelações, em casa. Por isso é necessário o agravamento das penas e o cumprimento da Lei Maria da Penha. Sobre o empoderamento na política, eu defendo a paridade de gênero. A pauta feminina na Câmara hoje é uma pauta subordinada, porque nós somos minoritárias e dependemos da boa vontade dos homens. Quando se pode ter o estupro tratado como premiação, “você não merece ser estuprada”, declarado publicamente e impunemente na Câmara, fica evidente que a nossa luta pela garantia de direitos é enorme. Minha contribuição é defender nossas pautas, a ampliação e o aperfeiçoamento dos nossos direitos, e ser contrária, evidentemente, a todas as pautas que tentam reintroduzir o poder patriarcal, as quais devem reaparecer com essa nova composição mais conservadora da Casa. [email protected] LUCIO BERNARDO JR. /C.D ARQUIVO PESSOAL 33 Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 34 34 ARQUIVO PESSOAL Bancada Feminina da Assembleia Legislativa de Minas Gerais Rosangela de Oliveira PROS ARQUIVO PESSOAL Professora, orientadora e supervisora escolar. É graduada em Pedagogia e pós-graduada em Didática. Começou sua carreira política em 2000, quando foi eleita vereadora em Ipatinga (Vale Geisa Gomes - PT Assistente Social. Foi presidente da Fundação CDCA (Centro de Desenvolvimento da Criança e do Adolescente), entre 2001 e 2008. É graduada em Revista Elas por Elas - Abril 2015 do Aço), reelegendo-se em 2004. Em 2010, foi eleita deputada estadual. Participei desde cedo de movimentos sociais e, mesmo antes de meu primeiro mandato de vereadora em Ipatinga, já trabalhava com entidades para a prestação de serviços comunitários. Há mais de 17 anos desenvolvo um projeto social de capacitação e ensino profissionalizante para jovens e adultos. Esse trabalho me levou para a vida pública porque acredito na boa política como forma de transformar, para melhor, a vida das pessoas. Conciliar a criação dos filhos, de dona de casa e participação política, realmente não é fácil. Por outro lado, culturalmente ainda enfrentamos muitos preconceitos, mas Serviço Social e pós-graduada em Gestão de Responsabilidade Social. É viúva do ex-prefeito de Varginha, Mauro Teixeira, eleito em 2000 e reeleito em 2004. No ano 2000, meu saudoso esposo, Mauro Teixeira, foi eleito prefeito de Varginha, no Sul de Minas. Já tinha participado de trabalhos em movimentos de igreja e senti que seria uma oportunidade de realizar o que tanto almejava: um trabalho social e voluntário voltado para crianças, adolescentes e famílias em situação de risco social. Este trabalho me encantou e me motivou a entrar para a política. Acredito nas boas práticas das políticas públicas como forma de emancipação humana. O universo político é constituído em seu grande per- estamos aqui para mudar essa história. Considero que a reforma política com a ampliação da participação da mulher nos espaços de poder é a pauta mais importante atualmente. Isso terá repercussão em todas as demais pautas e dará empoderamento para que as mulheres reivindiquem, com mais força, melhores condições de trabalho, saúde, educação, etc. O que estamos realizando na Assembleia de Minas é um fato histórico e trará muitos resultados positivos. Não basta apenas conquistar o espaço como vereadora, prefeita, deputada, presidente ou gestora de uma grande empresa. É preciso atuar com vigor nesses espaços e buscar o avanço na igualdade de gênero. [email protected] centual por homens. A mulher tem que provar a sua capacidade empreendedora e fazer-se respeitar. Felizmente tive o reconhecimento do meu trabalho de forma incondicional. Todos me respeitam, mas reconheço que existe um preconceito arraigado contra a mulher na política. Por isso precisamos buscar uma maior participação e ter uma representatividade verdadeira, cumprindo as cotas de forma adequada e não apenas simbólica. Apoio todas as pautas das mulheres. São tantas! O assunto é amplo, mas a representatividade dos movimentos femininos precisa ser aumentada para que tenhamos poder de reivindicação. No meu mandato, pretendo apoiar as causas femininas de várias formas. [email protected] Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 35 ARQUIVO PESSOAL 35 Comecei no movimento estudantil. Estávamos saindo do regime militar e minha luta foi motivada para superar os traumas desse regime. Os ambientes e os espaços de poder são dominados pelo mundo masculino. Então, isso, por si só, é um constrangimento. Há o jeito de fazer do masculino e o jeito de fazer do feminino. E isso gera sempre um certo conflito. Por isso que essa diversidade é democrática, traz o debate e contribui para consolidar um processo democrático. A outra questão é que ser mãe, dona de casa, ir a uma reunião na escola do filho, estar na vida política e no mercado de trabalho é bastante Marília Campos - PT ARQUIVO PESSOAL Psicóloga. Militante do PT desde a década de 1980. Nessa época, em Uberlândia, iniciou a militância social como integrante do movimento estudantil e foi uma das fundadoras do PT e da CUT na região. Presidiu o Sindi- Celise Laviola - PMDB cato dos Bancários de Belo Horizonte por dois mandatos (1990 e 1995). Foi candidata a deputada estadual em 1998 e tornou-se vereadora por Contagem em 2000. Em 2004, foi eleita a primeira mulher a governar a cidade, sendo reeleita em 2008. Advogada. Servidora aposentada da Assembleia de Minas, é formada em História, Filosofia e Direito e especializada em Direito Público. Assumiu, em 2015, seu primeiro mandato como deputada estadual. Natural de Belo Horizonte, é filha de José Laviola Matos, que foi vice-prefeito e prefeito de Conselheiro Pena, além de deputado estadual em Minas Gerais por seis legislaturas consecutivas. É cunhada do ex-deputado estadual do PMDB José Henrique (1956-2013). Estou no meu primeiro mandato eletivo. Mas minha família tem uma história complexo. Mas sempre fomos acostumadas a trabalhar e isso é um desgaste permanente, mas que, com a solidariedade dos companheiros, com a divisão de tarefas, se torna possível. Apoio toda e qualquer pauta que lute contra a discriminação, que seja de interesse coletivo, que ajude a emancipar as mulheres, que lute contra o preconceito e a favor da inclusão das mulheres no mercado de trabalho, nas políticas públicas ou na política. Elas precisam trabalhar, estudar, precisam de creches e escolas infantis para seus filhos. Quero lutar para que, no orçamento do Estado, estejam incluídas rubricas orçamentárias que promovam as mulheres. E a polêmica referente ao corpo da mulher, como o aborto, para mim, é uma questão de saúde pública. Esse tem que ser um direito assegurado à mulher. Se ela fizer essa escolha, que faça e tenha apoio do poder público. [email protected] política muito bonita, pautada no trabalho para o povo, sempre com transparência e dedicação. Com o falecimento do meu cunhado, minha família e o nosso partido decidiu que meu nome seria o mais viável para substituí-lo. Para ser sincera, tenho que dizer que o fato de ser mulher não foi obstáculo na minha campanha. Meu partido me acolheu com muito carinho e o os eleitores da nossa região também. Como parlamentar pretendo discutir e buscar soluções para as demandas femininas, atenta aos problemas da mulher e com um olhar isento, sem discriminações. [email protected] Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 36 ARQUIVO PESSOAL 36 Em 2004, ingressei na vida política e, a partir daí, fui coordenadora de diversas campanhas do PT. Com isso, me veio uma vontade muito grande de fazer parte disso, mas de dentro, com voz ativa. Fui candidata a prefeita de Santa Luzia em 2012, onde obtive ex- ARQUIVO PESSOAL Mirian Cristina - PT Ione Pinheiro - PMDB Empresária. Assume em 2015 seu primeiro mandato na Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Irmã do presidente da ALMG e deputado estadual Revista Elas por Elas - Abril 2015 Professora de história com MBA em Gestão Pública e Responsabilidade Fiscal. Filiada ao PT desde 2005, foi secretária de Formação do partido em Santa Luzia. Em 2012, foi candidata a prefeita desse município pelo mesmo partido, ficando em 2º lugar na disputa. É irmã do deputado federal Miguel Corrêa (PT) e atuou como coordenadora de campanha do parlamentar desde o primeiro mandato, a partir de 2007. Dinis Pinheiro, foi chefe de gabinete durante o primeiro mandato do parlamentar, na 13ª Legislatura, a partir de 1995. Também ocupou cargo semelhante quando o outro irmão, Toninho Pinheiro, se tornou prefeito do município mineiro de Ibirité. As motivações para ingressar na vida política retomam a minha história de vida. Tomo como exemplo os meus pais, para quem o trabalho e o servir ao bem comum sempre estiveram presentes. Sedimentada nesse alicerce familiar, percorri o caminho que me trouxe a esse momento atual. Como em toda profissão, a vida política requer compromisso, renúncias e o aprendizado da conciliação. Ser mãe, esposa, trabalhadora é sempre um desafio para qualquer pessoa, e para a mulher, pela celente votação. Muitas vezes enfrentei o machismo e o preconceito de alguns homens que ainda acham que política não é lugar de mulher, mas enfrentei, principalmente, as dificuldades de ser mãe e muitas vezes ter que deixar meu filho aos cuidados de outras pessoas para trabalhar e fazer política. A igualdade de oportunidades, de salário, o fim da violência doméstica e principalmente das mulheres serem o que quiserem sem o estigma do machismo. A luta por mais espaço das mulheres na política é essencial, para isso a política de cotas será um grande avanço para as mulheres já que democratizará o acesso de nós, mulheres, aos cargos políticos. [email protected] grande expectativa de transformação e superação de preconceitos, a missão é mais árdua. Diante dessa realidade, na Assembleia, buscamos ocupar o nosso espaço, por meio da bancada feminina, e apresentamos à Mesa Diretora a proposta de criação de uma comissão especial para promover a participação da mulher na política. A minha atuação está pautada na verdade e transparência, o meu engajamento em medidas que alcancem melhorias para todos, a minha disposição em ouvir e conhecer cada vez a necessidade do outro, certamente me conduzirão a lutar para que não só a mulher, mas todos indistintamente possam ascender à condição de dignidade com a superação das dificuldades que ainda remanescem em nossa sociedade. [email protected] Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 37 Arlete Gonçalves - PTN Participo da vida política há muitos anos, sendo que nosso grupo político elegeu pela terceira vez o meu irmão, Wellington Magalhães, vereador de Belo Horizonte. Minha motivação para entrar na vida política foi o fortalecimento desse grupo, que trabalha sério em prol da qualidade de vida do nosso povo. Trabalhando sempre muito próximo à comunidade, nunva tive problemas quanto à discriminação por ser mulher e garanto que, na base, as mulheres são muito ativas. A campanha eleitoral é que é um grande obstáculo. Disputei duas eleições e enumero a desigualdade de financiamento, as distâncias territoriais e a infidelidade partidária como grandes desafios para se chegar até aqui. Não considero que uma parlamentar, pelo fato de ser mulher, tenha obrigatoriamente atuação dferenciada da atuação de um político do sexo masculino. Acho que depende do perfil de atuação de cada parlamentar. Algumas mulhe- res, inclusive, militam em setores dominados por homens e se dão muito bem. No setor social e comunitário em que milito, não vejo diferença na atuação de homens e mulheres. Já no que diz respeito aos mandatos eletivos, principalmente no Executivo, as oportunidades ainda são desiguais. Acredito que, agora com mandatos voltados preferencialmente à defesa dos direitos das mulheres, nós temos muito mais a acrescentar do que eles. Coloco meu mandato à disposição de todas as causas justas que venham a evidenciar a grande contribuição que as mulheres podem e irão acrescentar, não só na política, mas também em todas as áreas de desenvolvimento de um país melhor".ø LÚCIO BERNARDO JB/C.D ARQUIVO PESSOAL 37 Revista Elas por Elas - Abril 2015 8 de março de 2015 - Comemorações pelo Dia da Mulher em Nova York foto UN WOMEN - J CARRIER Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 38 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 39 39 Pequim+20 Igualdade de gênero: uma promessa ainda não cumprida ENTREVISTA NADINE GASMAN Duas décadas após a 4ª Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Pequim (Beijing), em 1995, os desafios para a igualdade de gênero em todo o mundo continuam. “É possível identificar um progresso significante nas diferentes áreas de preocupação da Plataforma de Pequim, porém ainda não é suficiente. Ainda há muitos desafios a serem superados para conquistar a igualdade política, econômica e social de gênero”, afirma a representante da ONU Mulheres no Brasil, Nadine Gasman. A Conferência Mundial sobre a Mulher de Pequim teve a presença de 17.000 participantes, 30.000 pessoas assistiram ao fórum de ONGs e resultou em um acordo entre 189 governos que adotaram a Declaração e a Plataforma de Ação de Pequim de 1995. A Plataforma prevê ações pela igualdade de gênero e eliminação da discriminação contra mulheres e meninas. O docu- mento lista 12 pontos prioritários de trabalho, além de ações detalhadas para alcançar seus objetivos estratégicos. Uma promessa ainda não cumprida, segundo a ONU Mulheres, que coordena a Campanha Pequim+20. Para Nadine Gasman, a violência contra a mulher é um dos maiores desafios a serem enfrentados. “Os presentes esforços para reduzir a violência contra as mulheres não são suficientes. É preciso ter em mente que esse problema cria desafios de curto e longo prazo, por isso a educação e as políticas públicas devem ser inovadoras e ousadas para promover o respeito de todos os direitos humanos e das mulheres”. Uma comissão com representantes de várias partes do mundo revisa a Declaração e Plataforma de Ação de Pequim e faz um balanço sobre os avanços e desafios para a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres, desde a implementação do documento. Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 40 Elas por Elas - 20 anos após a histórica 4º Conferência Mundial de Mulheres, em Pequim, quais os avanços e desafios para a igualdade de gênero e empoderamento das mulheres no mundo e no Brasil? É possível identificar um progresso significante nas diferentes áreas de preocupação da Plataforma de Pequim, porém ainda não é suficiente. Ainda há muitos desafios a serem superados para conquistar a igualdade política, econômica e social de gênero. A Plataforma de Pequim permanece muito atual no sentido de orientar os governos e as sociedades a conquistar a igualdade substantiva e eliminar a discriminação contra mulheres e meninas. Mas, infelizmente, nenhum país atingiu esse objetivo até hoje. As mulheres ainda ganham salários menores que os dos homens de mesma idade e nível de instrução e estão mais propensas a empregos de baixa qualidade. No mundo, um terço das mulheres já sofreu violência física ou sexual e 800 mulheres morrem por dia durante o parto devido à falta de assistência médica adequada ou porque não têm direitos reprodutivos garantidos. Das doze áreas temáticas que foram abordadas na Plataforma de Ação de Pequim (Mulheres e pobreza; Educação e Capacitação de Mulheres; Mulheres e Saúde; Violência contra a Mulher; Mulheres e Conflitos Armados; Mulheres e Economia; Mulheres no Poder e na liderança; Mecanismos institucionais para o Avanço das Mulheres; Direitos Humanos das Mulheres; Mulheres e a Mídia; Mulheres e Meio Ambiente e Direitos das Meninas) quais mais precisam avançar? Revista Elas por Elas - Abril 2015 SÉRGIO ALMEIDA 40 Nós temos um desafio urgente de construir mecanismos institucionais para assegurar que homens e mulheres sejam igualmente representados na política e na tomada de decisões, nos níveis global, regional e nacional, nos setores público e privado. A economia também é uma área de profundas desigualdades. As mulheres ainda encontram maiores dificuldades que os homens para conseguir empregos. Além disso, no mundo todo, mulheres ganham um salário de 10 a 30% menor que homens com a mesma idade e nível de instrução, o que reflete que a contribuição das mulheres para a eco- nomia é subestimada. Por exemplo: quando empregadas, as mulheres apresentam maior tendência de investir em suas famílias e comunidades. Esses esforços reduzem a fome, a pobreza e a desnutrição. Além de tudo, milhões de mulheres correm o risco de contrair doenças sexualmente transmissíveis e gravidez indesejada devido aos escassos serviços de saúde sexual e reprodutiva bem como políticas de contracepção inadequadas. Mas a violência contra as mulheres talvez seja a área de maior preocupação. Muitos países não têm políticas públicas que incentivam a mudança de Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 41 41 comportamento para que mulheres e homens tenham o direito de viver livres de violência e fazer progressos para acabar com a violência de gênero. Os presentes esforços para reduzir a violência contra as mulheres não são suficientes. É preciso ter em mente que esse problema cria desafios de curto e longo prazo, por isso a educação e as políticas públicas devem ser inovadoras e ousadas para promover o respeito de todos os direitos humanos e das mulheres. Qual balanço a ONU faz sobre a situação das mulheres no Brasil? O Brasil é um país em que a desigualdade de gênero, raça e etnia é um elemento estrutural da sociedade, por isso a necessidade de se construir estratégias que promovam o combate às desigualdades. A sociedade brasileira também apresenta um perfil racista, sexista e patriarcal, o que dificulta a inserção da igualdade de gênero no senso comum. Outro problema grave é a violência contra as mulheres. Estima-se que entre 2001 e 2011 ocorreram mais de 50 mil feminicídios. Por outro lado, as políticas brasileiras de cotas e combate à pobreza afetaram as mulheres positivamente, permitindo que suas famílias tenham maior acesso à alimentação, à saúde e à educação, o que é essencial para a conquista dos direitos da mulher e da igualdade de gênero. Além disso, 98% dos brasileiros já conhecem a lei Maria da Penha, o que torna a população mais consciente da gravidade da violência doméstica. A sra. acredita que as reflexões sobre a Pequim+20, no momento em que os países buscam alcançar os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, com meta até 2015, pode ser uma boa oportunidade para estabelecer uma agenda que beneficie a luta das mulheres por mais igualdade? Sim, é uma excelente oportunidade. Uma das propostas para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável é justamente aprofundar o compromisso dos países em relação à igualdade de gênero, a garantia de todos os direitos humanos das mulheres e o empoderamento das mulheres. Também é uma oportunidade para integrar a questão de gênero na agenda pós-2015, assim transversalizando essa perspectiva em todos objetivos, metas e indicadores. Estamos trabalhando no processo de consulta pública em nível nacional para assegurar que as lacunas sejam preenchidas tanto no Brasil quanto nos outros países do mundo. As mulheres são 51% da humanidade e a igualdade de gênero é um tema transversal a todas as áreas e setores, o que significa que conquistar a igualdade de gênero é essencial para atingir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. A evidência de que empoderar mulheres significa empoderar a humanidade é que as economias crescem mais rápido “conquistar a igualdade de gênero é essencial para atingir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável” quando as famílias têm acesso garantido à saúde e à educação. A nova agenda de desenvolvimento precisa abordar a questão da desigualdade de uma maneira muito mais sistemática para preencher as lacunas entre a desigualdade de gênero e as outras áreas de desenvolvimento. Qual o papel da ONU no debate e ações sobre a Pequim+20? A ONU Mulheres está trabalhando para que a igualdade de gênero seja integralmente refletida nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável bem como em qualquer plataforma que venha a ser adotada. O vigésimo aniversário da Plataforma de Pequim é uma oportunidade para renovar compromissos e interesse político, preencher as lacunas e mobilizar a população global em busca de um objetivo comum. A 59ª Sessão da Comissão sobre a Situação da Mulher (9-20 de Março de 2015) foi organizada pela ONU Mulheres em Nova York para reunir Representantes de Estados-Membros, Entidades da ONU e Organizações NãoGovernamentais de todos os cantos do mundo. O assunto central dessa sessão foi a Declaração e Plataforma de Ação de Pequim, incluindo os atuais desafios que afetam sua implementação e a conquista da igualdade de gênero e do empoderamento das mulheres. A comissão avalia o progresso feito desde a implementação da Declaração e Plataforma de Ação de Pequim, 20 anos após sua adoção na Quarta Conferência Mundial para as Mulheres, em 1995. A revisão, chamada de Pequim+20, também incluirá os resultados da 23ª Sessão Especial da Assembleia Geral da ONU, que determinou iniciativas e ações para a igualdade de gênero.ø Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 42 42 HOMENAGEM ARQUIVO PESSOAL POR CECÍLIA ALVIM “Uma mulher impossível” Rose Marie Muraro superou diversas barreiras em defesa da emancipação feminina Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 43 43 Uma mulher que “enxergava” à frente de seu tempo, que “via” longe, mesmo sem enxergar… Assim era Rose Marie Muraro, escritora e feminista brasileira, que faleceu em junho de 2014, aos 83 anos. Intelectual que lutava pela igualdade de direitos entre homens e mulheres, Rose Marie foi reconhecida pela Lei 11.261 de 2005, durante o governo Lula, como Patrona do Feminismo Brasileiro. Rose Marie nasceu no Rio de Janeiro, em 1930, com uma visão muito baixa e que piorou ao longo dos anos até ficar cega nos últimos tempos. No entanto, essa limitação não a impediu de viver uma vida intensa e militante em prol de um mundo mais justo e igualitário. Sua trajetória sempre marcada pela defesa da emancipação feminina repercutiu fortemente no Brasil do século XX. Sua atuação no movimento feminista e sua extensa obra propagaram conceitos libertários que foram sementes de mudanças que atingiram a realidade das mulheres brasileiras desde a década de 60 até hoje. “A minha militância começou em meados da década de 40 quando tomei consciência da injustiça social”, relatou Rose Marie em um memorial, disponibilizado por sua filha, Tônia Muraro, para essa reportagem. Rose participou do movimento estudantil desde o ensino médio. Escreveu o primeiro número do jornal Roteiro da Juventude, da Juventude Estudantil Católica (JEC). “Foi aí que me lancei no mundo. E já não me interessava mais ser feliz e sim fazer o que tinha que ser feito. Minha vida se abria para algo maior que ela mesma”, contou Rose. Em 1949, entrou para a Universidade do Brasil (hoje UFRJ) para estudar Física. “Eram cerca de 70 homens e umas dez mulheres. Fui recebida por eles com grande susto porque era a mais jovem e tinha passado em primeiro lugar, vinda de um colégio de freiras desconhecido. Foi aí que tive conhecimento das outras classes sociais. Saí de um mundo elitista para um mundo misturado, porque a nossa era uma universidade pública”, relatou Rose. Inquieta militante Participou da Campanha o “Petróleo é Nosso”, na época da Fundação da Petrobras. “Eu estava começando a participar de movimentos políticos, mas ainda estava muito ligada à minha vida pessoal, porque já casada, tinha filhos pequenos a quem adorava, embora detestasse minha vida de casada”, contou, sem constrangimentos, em seu memorial. Da experiência da vida de inquieta militante para o início do trabalho como editora e difusora de novas ideias, se passaram três décadas. Em 1961, com 31 anos, começou a trabalhar na Editora Vozes. A partir de então, Rose escreveu 40 livros e editou cerca de “E já não me interessava mais ser feliz e sim fazer o que tinha que ser feito. Minha vida se abria para algo maior que ela mesma”. 1.600 títulos. Atuou na Vozes por 17 anos, onde foi diretora junto com o teólogo Leonardo Boff, e também na Rosa dos Tempos, única editora dedicada ao Estudo de Gênero na América Latina, entre os anos de 1990 e 2000. Em 1966 saiu o seu primeiro livro, A Mulher na Construção do Mundo Futuro, que vendeu dez mil exemplares em três meses. Em 1968, escreveu sua segunda obra: Automação e o Futuro do Homem, e em 1970, Libertação sexual da Mulher, ambas pela Editora Vozes. Vigiada pelos militares Em 1971, Rose Marie trouxe ao Brasil a estadunidense Betty Friedan, considerada uma das feministas mais influentes do século XX, vinda essa que gerou grande repercussão na opinião pública da época. “Foram três dias de loucura. Quando ela foi embora, parecia um país devastado e os militares me vigiaram durante seis meses”, comentou Rose. Segundo ela, a visita de Betty inaugurou um novo tempo na história feminista brasileira. Hildete Pereira de Melo, professora de Economia da Universidade Federal Fluminense e ex-assessora da Secretaria de Políticas para as Mulheres, conheceu Rose na década de 70, período de efervescência do feminismo no Brasil. “Ela era extremamente inteligente, alegre e arguta. E muito avançada em suas posições. Sua dificuldade física nunca a impediu de realizar uma vida política militante, baseada em uma grande erudição”, disse. Em 1975, Rose participou da fundação do Centro da Mulher Brasileira. Ainda nesse ano, os militares, por Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 44 ARQUIVO PESSOAL causa da liderança feminista que Rose havia se tornado, proibiram seus livros classificando-os como pornográficos, embora estivessem maciçamente sendo adotados em escolas e universidades brasileiras. “Falar de mulher naquele período era difícil. A gente falava baixinho”, conta Hildete. Afastada da Igreja Junto de Boff, Rose colaborou para o surgimento de outro dos mais importantes movimentos sociais do século XX: a Teologia da Libertação. Por essa atuação libertária e pela publicação, por Rose, do livro Por uma erótica cristã, ela foi afastada da Editora Vozes em dezembro de 1986, junto com o teólogo. “Esses movimentos nasceram com o objetivo fundamental de promover a equidade de gênero, a liberdade de expressão e a democratização. Apesar de termos sido excomungados da Igreja Católica, e de termos nossos livros proibidos durante o regime militar, seguimos trabalhando incansavelmente com esses movimentos e seus conceitos até os dias atuais” relatou Rose em seu memorial. “Mesmo com sua formação religiosa, ela irradiava essa perspectiva de libertação da mulher, até mesmo na questão da sexualidade, de não suprimir os próprios desejos. Ela acreditava no amor sem amarras”, destacou Hildete Pereira. “Seu maior legado foi promover a reflexão sobre a condição feminina e a sociedade patriarcal, que oprime mulheres em todo o mundo”, completou. Em 1985, Rose foi membro fundador do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, órgão ligado ao governo federal, que conseguiu inserir na Cons- Revista Elas por Elas - Abril 2015 tituição de 1988 alguns dos itens mais progressistas em âmbito internacional sobre a condição da mulher. Em 2003, voltou ao Conselho, nomeada pela Presidência da República, por notório saber em matéria de gênero. Valores femininos Em 1983, publicou A Sexualidade da Mulher Brasileira: corpo e classe social no Brasil; em 1990, Os seis meses em que fui homem e, em 1992, A Mulher no Terceiro Milênio. Em 1999, publicou ainda Memórias de Uma Mulher Impossível, sua autobiografia. Em 2002, trabalhando novamente em parceria com Leonardo Boff, publicou Masculino/Feminino: uma nova consciência para o encontro das diferenças. Em 2010, teve seu último livro publicado: Reinventando o Capital/Dinheiro, que trazia uma visão feminina para uma nova forma de economia solidária. “Ao contrário dos países desenvolvidos, onde o movimento feminista só tratava de gênero, o Brasil lutou e precisa continuar lutando pelos três pilares da opressão de homens e mulheres: classe social, gênero e etnia. O feminino ultrapassa a mulher assim como o masculino também ultrapassa o homem. Daí a possibilidade de se construir através dos tempos, diversos femininos e diversos masculinos. Mas, na minha opinião, devido a experiência de gerar e manter a vida humana vivida pela mulher, acho que o mundo deveria caminhar para esses valores ditos “femininos”, como o cuidado, o altruísmo, Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 45 45 Coragem de transgredir Como conferencista, Rose deu mais de 1.500 palestras no Brasil e no exterior em várias instituições, sempre disseminando ideias feministas. Preocupada com a mudança possível através da educação, Rose colaborou ativamente com a formação na temática de gênero de professores da rede estadual de educação do Rio de Janeiro, entre 1998 e 2003. Uma poeta e mulher visionária, que viveu do impossível, Rose sempre dizia: “entre homens e mulheres deve haver diferenças, mas não desigualdades”. E ainda: “Eu mudei a cabeça de várias gerações... Quem educa uma mulher educa uma geração inteira...” , relata sua filha, Tonia Muraro. Rose Marie recebeu diversas condecorações por sua atuação na sociedade. Em setembro de 1999, recebeu o Troféu Teotônio Vilella como a mais importante editora na resistência à Ditadura Militar. Em junho de 2005, foi indicada com mais cinquenta e uma mulheres para o Prêmio Nobel da Paz. Em abril de 2014, foi condecorada pelo Itamarati com o grau de Oficial da Ordem do Rio Branco. Em 2009, fundou o Instituto Cultural Rose Marie Muraro, para conservar e difundir o seu acervo cultural. Um dos projetos do Instituto, que hoje é coordenado por Tonia Muraro, é a criação da Biblioteca Rose Marie Muraro, que pretende ser a primeira biblioteca brasileira especializada em estudos de gênero. “A maior lição que minha mãe me deu foi sua coragem de transgredir e buscar a plenitude da vida. Rose Muraro foi uma mulher transgressora desde o dia em que nasceu. Foi condenada à morte, à cegueira, a não ter filhos, a não ler e nem trabalhar, mas transgredindo as leis físicas e as do homem, aprendeu a ler sozinha, começou a escrever aos 15 anos, trabalhou desde então, teve cinco filhos, foi militante ativa e escritora de mais de quarenta títulos. Estudou e pesquisou ao longo de seus oitenta e três anos. E ainda venceu duas vezes o câncer, mas na terceira partiu deste mundo”, conta Tonia. Prêmio Rose Marie Muraro “Intelectual notável, Rose Marie foi uma mulher determinada em tudo, na luta contra a barreira da cegueira, na luta pelas suas ideias. Ela é um ícone da luta pelos direitos das mulheres”, disse a presidenta Dilma Rousseff, lamentando a sua morte, em 21 de junho do ano passado. Para homenagear a escritora e reconhecer a atuação de outras mulheres feministas históricas, foi instituído o Prêmio Rose Marie Muraro pela Secretaria de Políticas para as Mulheres, da Presidência da República. Em 28 de novembro de 2014, receberam a premiação Clara Charf, Herilda Balduino de Sousa, Lenira Maria de Carvalho, Mireya Suárez, Moema Viezzer e Neuma Aguiar. O prêmio é destinado a mulheres com mais de 75 anos que atuaram ou atuam na vida pública nacional em ações científicas, tecnológicas, culturais, educacionais ou artísticas, em gestão pública e privada, em movimentos sociais e sindicais e partidos políticos. Tem por objetivo reconhecer o papel desempenhado pelas mulheres que lutaram pela cidadania feminina, pela ampliação dos direitos humanos das mulheres e efetivação de mudanças na sociedade brasileira.ø ARQUIVO PESSOAL se quiser reverter o processo de destruição a que foi submetido pelo patriarcado/capitalismo”, alertou Rose em seu Memorial. Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 46 46 POR LUCIANA ARTIGO GARCIA DE OLIVEIRA Em Gaza, nada a comemorar “Nós não podemos exigir que os outros nos libertem se nós não somos livres”. Foram essas as palavras expressadas por Asma al-Ghoul, uma jovem jornalista palestina cujos artigos foram, por diversas ocasiões, editados ou mesmo censurados em sua Terra Natal, a Faixa de Gaza na Palestina. O Revista Elas por Elas - Abril 2015 depoimento de Asma no documentário Diaries, de May Odeh, pode ilustrar bem a situação da mulher em Gaza, muito além dos prejuízos causados pelo bloqueio físico e econômico na região. Nessa obra, May Odeh ultrapassa a fronteira comum da abordagem dos filmes sobre a questão internacional da Palestina e investiga a fundo acerca das angústias e frustrações das mulheres que são obrigadas a viver sob os códigos religiosos que, por diversas vezes, são impostos contra a sua vontade. May Odeh foi muito bem sucedida ao expor um olhar crítico à imposição política e religiosa, sem adotar vícios Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 47 foto ISTOCK 47 “Apesar do avanço nas iniciativas feministas, práticas discriminatórias prevalecem”. maniqueístas, de forma a também evitar observações de caráter discriminatório e islamofóbico. Em Diaries, o confronto ao uso do hijab (o véu islâmico) aparece em respeito ao debate sobre o modo como cada mulher lida com suas concepções religiosas particulares. Muito provavelmente, caso o cenário do filme fosse outro, nas ruas de Paris, por exemplo, a questão do código de vestimenta islâmico não seria tratada sob o ponto de vista da imposição, mas sob o ângulo do sentimento de resistência cultural. Historicamente, muito embora o grupo Hamas tenha entrado em cena na Faixa de Gaza em decorrência da primeira Intifada em 1987, foi após a vitória nas eleições de 2006 que o movimento de resistência nacional islâmico deteve formalmente o controle político, cultural e social na Faixa palestina e trouxe consigo uma agenda religiosa e militante, de modo a restringir a rotina da juventude e sobretudo das mulheres palestinas. O clima de censura política e cultural aliado ao bloqueio político e econômico imposto pelo governo de Israel desde a incidência dos ataques suicidas e o lançamento de foguetes em algumas cidades israelenses, impede até hoje que a economia na faixa palestina seja autossuficiente, pois todos os carregamentos e suprimentos humanitários atualmente passam necessariamente por minucioso controle de Israel. O aumento do índice de pobreza e miséria após o bloqueio permitiu o aparecimento de inúmeros túneis que, em sua maioria, ligam a Faixa de Gaza ao Egito com fins de comércio de alimentos, medicamentos, materiais de construção e outras utilidades. Ainda, através desses túneis irregulares muitos palestinos e palestinas de Gaza fugiam da região na esperança de obter visto para outros estados através do Egito ou na necessidade de serem atendidos nos hospitais e pronto socorros ou mesmo conseguirem estudar nas escolas e universidades tradicionais egípcias. O permanente conflito com o Estado de Israel, muito além do aumento do extremismo, tem afetado diretamente a vida de milhares de pessoas, principalmente das mulheres palestinas. O documento Social and Economic Situation of Palestinian Women – 19902003, produzido pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2004, pôde revelar por meio de estudos e dados numéricos um quadro real da situação Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 48 48 enfrentada pelas mulheres palestinas, com atenção à Faixa de Gaza, local de grande periculosidade e muita insalubridade. Ao longo do texto é mencionado que a rotina permeada pela morte repentina de alguns membros da família, como filhos e maridos durante as chamadas operações israelenses na região, como as de julho de 2014, ocasionam traumas profundos, difíceis de serem superados. A perda abrupta de pessoas próximas torna-se ainda mais crítica quando essas mulheres passam a sobreviver sem o provedor financeiro da família, em uma situação em que são obrigadas a exercer um papel diverso daquele pela qual foram educadas. Ainda é apontado que as mulheres grávidas particularmente são o alvo mais vulnerável do conflito e das punições coletivas; a maioria das gestantes é diariamente exposta a inúmeros tipos de violência, ao estresse diário e a gases tóxicos que, em última instância, ocasionam abortos prematuros. Ao levarmos em consideração que os índices de fertilidade na Faixa de Gaza é um dos mais altos do mundo, a região tornou-se oficialmente a região mais densamente populosa do planeta. A manutenção das práticas tradicionais de casamento entre mulheres muito jovens é justificada pela sensação de segurança fornecida pelo matrimônio, sobretudo em tempos de conflitos e intensas convulsões políticas e a preferência por filhos do sexo masculino ainda é bastante prevalecente dentro de um contexto ainda muito conservador e patriarcal. Em certa medida, essas questões explicariam o alto índice de fertilidade nessa estreita faixa palestina. Normalmente o nascimento de cada criança é muito comemorado, pois entre os palestinos, cada criança que nasce Revista Elas por Elas - Abril 2015 faz parte de uma campanha de resistência cultural e política palestina frente à crescente ocupação territorial e à supressão da existência do estado palestino. E, diante de famílias muito numerosas, muitas mulheres passam a permanecer em casa e a viver em função dos filhos e do marido. Muito embora, atualmente exista um maior número de universitárias na Faixa de Gaza, o número ainda é inferior em comparação à região da Cisjordânia, por exemplo, cujo controle vegetativo é maior, mesmo sob a permanente ocupação militar2. O completo e escandaloso isolamento de Gaza tornou a região um terreno fértil para o aparecimento de fundamentalismos tendentes a limitar a vida e o cotidiano dessas mulheres. 2. Os índices referentes ao aumento do controle vegetativo na Cisjordânia em detrimento da Faixa de Gaza pode ser explicado em função da Cisjordânia estar mais próxima das cidades israelenses. Mesmo sob controle militar, muitas palestinas ainda têm acesso aos hospitais israelenses, referência em inúmeros tratamentos. Ainda, muitas palestinas da Cisjordânia estudam em escolas e universidades mistas e laicas ou mesmo nas instituições israelenses, o que permite que as mulheres dessa região tenham um maior acesso a uma educação de ponta. A prioridade pela carreira profissional faz com que muitas mulheres da Cisjordânia, principalmente das grandes cidades como Ramallah, Haifa e Nablus, passem a engravidar mais tardiamente e terem menos filhos. Frente ao progressivo cerceamento da liberdade, as mulheres, consideradas maioria tanto na Faixa de Gaza como na Cisjordânia, redigiram conjuntamente uma carta oficial em 1993, pela qual puderam reafirmar solenemente pela defesa da condição de igualdade de gêneros e pela manutenção do secularismo na esfera política, frente ao tratamento dos assuntos concernentes ao gênero. No texto do documento, foram destacados trechos que aludiam à imposição religiosa em Gaza, nesse caso foi aclamado o “fim da legislação discriminatória contra as mulheres” e pelo “direito de poderem transferir a cidadania palestina para os filhos e maridos” no caso de matrimônio com homens estrangeiros. A cidadania palestina, até então, poderia tão somente ser concedida através da figura masculina, assim somente poderiam ser considerados cidadãos palestinos os filhos de pais palestinos ou caso a mulher estrangeira fosse casada com um homem palestino. Apesar do documento ter sinalizado um avanço nas iniciativas feministas, muitas práticas discriminatórias ainda são prevalecentes com relação às mulheres na região. Ainda é bastante comum homens se divorciarem de suas esposas de maneira unilateral e obterem preferência judicial pela guarda dos filhos. Em muitos casos, a mulher passa a viver sozinha, sem qualquer apoio financeiro e a mercê da ajuda de parentes e amigos. As denúncias sobre diversas formas de violência doméstica também são bastante frequentes, casos de estupro, incesto e outras formas de agressão e violência também figuram nas estatísticas oficiais do mapa da violência contra a mulher da Palestina na Faixa de Gaza. Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 49 INTERNET 49 Os impedimentos internos e externos na rotina feminina em Gaza contribuíram para que muitas mulheres passassem a exercer papel ativo dentro dos movimentos nacionalistas palestinos. Atualmente é bastante comum encontrar mulheres envolvidas em assuntos políticos ao lado dos seus maridos, filhos e irmãos, em inúmeras manifestações de rua, sit-ins, na organização de petições públicas e nos partidos políticos palestinos. A progressiva politização feminina possibilitou que as bandeiras nacionais passassem a ser diretamente relacionadas às reivindicações de gênero. Foi durante os acordos de paz de Madrid, em 1991, que muitas lideranças femininas invadiram o cenário que antes estava ocupado, em quase sua totalidade, por homens. Nessa ocasião, um conselho de mulheres apresentou ao Congresso Legislativo palestino uma proposta de fixação de uma quota mínima de um terço de mulheres no parlamento. É estimado que a militância feminina tenha aumentado vertiginosamente em decorrência da segunda Intifada, em 2000. Mesmo sob condições bastante adversas, como a falta de emprego, a maioria das mulheres na Faixa de Gaza pode ser considerada grande provedora e militante política. Geralmente ocupam, na maior parte dos casos, o setor da educação, como professoras primárias e universitárias, e o setor têxtil como costureiras. E, mesmo obtendo salários inferiores aos dos homens, ainda conseguem dispor de tempo para o ativismo político, seja nas manifestações contra a ocupação, seja por intermédio da linguagem escrita sob o ofício de escritoras, poetisas e jornalistas. Vale ressaltar que grande parte das mulheres jovens de Gaza, mesmo vivendo abaixo do nível de pobreza, aprenderam a se comunicar em inglês e mantêm contato frequente com outras ativistas estrangeiras pela internet. Muitas inclusive são bem avaliadas em cursos no exterior e nos programas de pós-graduação, mestrado e doutorado, mundo afora. E, mesmo distante da Palestina, seguem com o ativismo político na diáspora. Diante da impossibilidade de viver dignamente no que se tornou a Faixa de Gaza, muitas mulheres passaram a viver no exílio e muitas gerações nasceram e ainda nascem no exílio, sem ao menos conhecer sua terra natal. Esse imenso refúgio passou a ser o local onde as vozes femininas ecoam pela reafirmação da identidade e pela sua existência ao mesmo tempo em que, quando sufocadas, gritam por socorro e atenção. A mulher palestina está em todos os lugares e em cada canto do mundo existe um pouco da Palestina, caberá a nós mesmos prestar atenção e evitar que essas histórias testemunhadas por tantas mulheres sejam esquecidas e a existência da Palestina continue a ser negada.ø Luciana Garcia de Oliveira Pós-graduada em Política e Relações Internacionais pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP), mestranda no Programa de Estudos Árabes e Judaicos do Departamento de Letras Orientais da Universidade de São Paulo (DLO-USP), integrante do grupo de pesquisa “Conflitos Armados, Massacres e Genocídios da Era Contemporânea” da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e pesquisadora associada da Interdisciplinary Research Network on Latin America and the Arab World (RIMAAL). Email: [email protected]. Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 50 50 POR SAULO DIREITOS ESLLEN MARTINS fotos SAULO ESLLEN MARTINS Em busca de um novo rumo Vulneráveis às violências e perdas afetivas, essas mulheres ainda conseguem dar a volta por cima Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 51 51 “Naquele dia, tudo parecia normal. Acordei cedo e fui para o trabalho. De lá, segui direto para a escola. Até aí, nenhuma surpresa. Mas a minha vida sofreria uma grande mudança de percurso. Em algumas horas, tudo estaria diferente. Sozinha, na rua, sem saber para onde ir”. Tudo aconteceu há mais de 30 anos, mas aquela noite ainda é viva na memória da ex-moradora de rua Anita Gomes dos Santos. O ano era 1977. Naquele fim de tarde, Anita deixou de seguir a sua rotina habitual. Ao invés de pegar o ônibus escolar e ir para casa, decidiu acompanhar uma amiga até outro ponto da cidade. Alguns acontecimentos no caminho fizeram com que ela demorasse muitas horas para chegar em sua residência, o que mudaria a sua história para sempre. “Quando cheguei, me deparei com papai na sala e um saco de linhagem no chão, contendo todas as minhas roupas e pequenos objetos. Não tive a oportunidade de me explicar. Infelizmente, recebi uma criação muito rígida e com pouco diálogo”, lembra Anita. Foi a primeira noite fora de casa. Contudo, Anita não ficou na rua. Dormiu na casinha dos cachorros. Conta que passou a madrugada em claro, sentindo muita dor e desespero. “Minha vida era trabalho e escola. Eu era uma menina, não tinha experiência de vida. Nasci em uma família estruturada, recebi uma boa educação. Quando fui expulsa de casa, eu tinha 17 anos, estudava no Colégio Comercial, na região da Pampulha e trabalhava na Escola de Engenharia. Você acredita?”, comenta, aos risos. Anita perdeu o rumo, seu mundo desmoronou. “Quando ia amanhecendo o dia, então criei coragem e sai em busca de um abrigo. Muitas portas se fecharam. Tive uma vida de animal, dormia no meio do mato. Só consegui algum apoio quando conheci outras pessoas em situação de rua. Me acolheram, respeitaram e defenderam. Com o surgimento da Pastoral de Rua, recebi um acompanhamento social, assistência mesmo”, enfatiza. A educadora social Claudenice Rodrigues acompanha a trajetória de muitas mulheres na Pastoral de Rua de Belo Horizonte. “A maioria da população que está nas ruas é composta por homens. Aqui na Capital mineira, dos 1.827 cidadãos nessa condição, cerca de 20% são mulheres. No entanto, por si só, o fato de uma mulher estar na rua já é um elemento que dificulta ainda mais sua sobrevivência. O risco de sofrer algum tipo de violência é muito maior. Devemos pensar que o fato de não ter um lugar para cuidar da própria privacidade é uma agressão, elas se sentem humilhadas, expostas”, aponta. Claudenice esclarece que outra questão marcante é a degradação da figura feminina. “Quando vemos uma mulher em situação de rua, muitas vezes, ela está em um estágio muito avançado de perda da autoestima. Com a questão do aumento do uso de “Tive uma vida de de animal, dormia no meio do mato. Só consegui algum apoio quando conheci outras pessoas em situação de rua” drogas, acontece também a prostituição, para manter o vício”. A educadora lida todos os dias com esse público e consegue identificar diversos fatores que provocam essa mazela da sociedade. “Existe um mito social de que todos que estão nas ruas chegaram nesta situação por causa das drogas. São muitos e relevantes dilemas pessoais e coletivos que levam uma pessoa a morar na rua. A questão das drogas é só mais um. Os conflitos familiares, as condições socioeconômicas, o desemprego e a falta de estabilidade emocional são outros”, afirma Claudenice. Mães da Rua A vida dos moradores de rua não é nada linear, é uma população bem heterogênea e já passou por diversos períodos históricos. Entretanto, segundo relatos, em todas estas fases, as mulheres exerceram um papel central. “Nós tivemos um período em que as pessoas construíam malocas, barracas debaixo dos viadutos, onde se formavam comunidades chefiadas por mulheres. Eram as chamadas Mães da Rua. Os grupos se organizavam em torno dessa mulher. Ela coordenava as ações de organização e sobrevivência e era tratada e respeitada como uma mãe. Dona Ângela, Dalva, Geralda, foram figuras marcantes para muitos”, considera a educadora social. “Não são apenas histórias tristes que moram nos relatos que ouvimos. As mulheres são bem peculiares, quando aparece uma oportunidade de superar essa situação elas agarram, planejam e conseguem vencer, até com mais facilidade do que os homens”. É o que pensa Claudenice. Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 52 52 Políticas públicas Anita (foto) é um bom exemplo, depois de décadas em situação de rua, conseguiu superar os desafios. Hoje, faz parte do Movimento Nacional da População em situação de Rua e ajuda outras pessoas com sua história de superação. Ela conta que na rua se tornou invisível, entrou no mundo das drogas, sofreu com a violência de um companheiro, foi separada de seus filhos, caiu no rio Arrudas e quase morreu, passou por todo tipo de humilhação. “As pessoas passam e nem te percebem. É como se você fosse um objeto jogado ali na calçada. É uma dor tão profunda que não tenho palavras para expressá-la. Quantas vezes recebi cantadas. Então eu dizia: - Você pode me levar para a sua casa para eu lavar minha roupa, tomar banho... A resposta era sempre não! Aprendi uma lição nessa caminhada. Você pode descer do topo para o Revista Elas por Elas - Abril 2015 fundo do poço, em uma fração de segundos. Hoje, tenho minha casa, meus lindos filhos estão comigo, mantenho um relacionamento há 20 anos com um ex-morador de rua. Recuperei a relação com meu pai e sei que ele sente orgulho de mim. Entro na casa do governador, no Palácio do Planalto. Sou uma vitoriosa. Construímos uma nova história, bem mais bonita e feliz”, sintetiza Anita. “As pessoas passam e nem te percebem. É como se você fosse um objeto jogado ali na calçada”. Egídia Maria de Almeida Aiexe é advogada e atua em uma série de organizações que defendem os Direitos Humanos. O Fórum de População de Rua e o Comitê Municipal de Acompanhamento e Monitoramento da População de Rua são algumas delas. De acordo com ela, a temática das mulheres demorou a ganhar espaço nos fóruns de discussão sobre essa parcela da população de Belo Horizonte. “Não tem sido pensada uma política para esse público. Como os números apontam para uma maioria de homens, os projetos de abrigamento, por exemplo, não são realizados para receber mulheres. Então, uma primeira questão seria criar unidades de atendimento para mulheres solteiras e casais também, ampliando esse setor. Só existem dois abrigos na cidade para elas”, complementa. A promoção de ações de assistência específicas é um outro ponto colocado pela advogada. “No abrigo elas apenas dormem, é necessário criar repúblicas onde possam morar. Temos apenas a república Maria Maria que foi criada para recebê-las, mas a sua capacidade é muito reduzida. Elas estão em uma zona de extrema vulnerabilidade, frisa Egídia. Drogas Uma questão muito discutida sobre os moradores de rua é o consumo de drogas. A advogada e militante Egídia Aiexe destaca, contudo, que o álcool é predominante, mas antes de qualquer droga está o conflito familiar. “Geralmente, esses rompimentos afetivos estão na raiz de muitos problemas. Em Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 53 53 alguns casos, o álcool vem antes, em outras situações é a consequência. Nesse meio está, inclusive, a violência doméstica. É difícil dizer se foi a droga que levou uma pessoa para a rua ou se foi na rua que ela se envolveu com os entorpecentes”. Um dado relevante, fornecido pela advogada, contraria as manchetes de muitos jornais e programas de televisão: “Apenas uma parcela vai ter contato com outras substâncias ilegais, mas não é a maioria. Eles mesmos se dividem entre os que fazem uso de drogas ilegais e os demais. Os que trabalham na rua, por exemplo, geralmente consomem álcool e cigarro. Essas coisas são usadas para suportar os sofrimentos físicos, emocionais, etc”. Claudenice Rodrigues, educadora social, acompanha a trajetória de muitas moradoras de rua em BH. Abandono O caminho de Rosângela Pires começou a se tornar sinuoso quando o marido a deixou com uma filha, em um barracão de aluguel. “Cheguei na rua com a minha menina no colo. Peguei apenas as nossas roupas e deixei os móveis para trás, para pagar o aluguel que eu devia. Conheci um pipoqueiro e ele foi a primeira pessoa que me ajudou. Eu estava desesperada, chorando. O medo tomou conta de mim. As coisas ruins não saíam da minha cabeça”. No dia seguinte Rosângela conseguiu o endereço de um albergue. Ela nem sabia o que era isso. Pensava que fosse algo parecido com uma prisão. “Fui, então, para o Tia Branca. Chegando lá, vi aquela confusão, homens e mulheres pra lá e pra cá. A minha maior preocupação era com a minha filha Amanda. Aos poucos fiquei mais tran- quila, conversei com as funcionárias do lugar e passei a frequentar a casa de apoio. Só que, lá, era apenas para dormir. Eu tinha que encontrar um lugar onde eu pudesse tomar banho, lavar as roupas e fazer os cuidados com a minha filha”. Aos poucos, a ex-moradora de rua fez algumas amizades, com pessoas que já estavam na mesma situação. Elas a levaram para outras instituições. “Eu tinha que encontrar um lugar onde eu pudesse tomar banho, lavar as roupas e fazer os cuidados com a minha filha”. Depois disso, chegou a morar na casa de apoio Maria, Maria. “Nesse processo acabei colocando a minha filha na Febem, porque eu não queria deixá-la na rua. Quando ela tinha 4 anos, consegui retirá-la. Foi aí que conheci o trabalho da Pastoral de Rua. Depois de um tempo, no dia do meu aniversário, eu ganhei um presente que nem imaginava. Os assistentes sociais me perguntaram: – Rosângela, você quer um lugar para morar? Era um barracão de um cômodo na Pedreira Prado Lopes. Eu aceitei, é claro! Para mim era um palácio! Nisso, eu estou lá até hoje”. Rosângela tem uma vida normal. Mora com a filha, genro e netos. Mas ela guarda algumas marcas desse período em que esteve perdida, em busca da sua própria identidade. Contraiu o vírus HIV e deu três filhos para a adoção. Um deles morreu, por também ter desenvolvido a doença. Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 54 54 “Quando vejo uma mulher passando por tudo isso que já vivi, meu coração enche de tristeza. Às vezes, busco até ajudar, mas é difícil, tenho medo da violência que rola. Tenho dó, principalmente, quando são mulheres grávidas. Dá vontade de pegar e levar para a minha casa. Só eu sei o que passei. Não é fácil. Com muita luta, consegui sair dessa e dar um futuro digno para a minha filha. Tenho 44 anos e muito para contar”, explica Rosângela (foto). No caso dessa ex-moradora de rua, ela não teve condições financeiras e emocionais para cuidar dos filhos, por isso, optou por entregá-los a alguém que lhes desse uma vida melhor. No entanto, em algumas situações, as mulheres não tiveram a chance de escolher. A perda dos filhos trouxe ainda mais sofrimento para vidas marcadas pela dor. Revista Elas por Elas - Abril 2015 Maternidade É difícil falar de mulheres e não mencionar a maternidade. Em 2014, duas recomendações da Promotoria da Infância do Ministério Público trouxeram novos elementos para esse debate. Os textos recomendam aos hospitais que os bebês de usuárias de álcool e outras substâncias, como a cocaína e o crack, sejam retirados das mães e encaminhados para abrigos. Até meados de janeiro deste ano, mais de 150 crianças já foram afastadas de suas mães. A população em situação de rua tem sido afetada diretamente. Formou-se um círculo, em que a mãe que vai até a maternidade pode sofrer uma medida compulsória por parte da própria instituição de saúde. Com isso, o Ministério Público e o Jui- zado da Infância e Juventude determinam o afastamento entre mães e filhos. No hospital, a gestante passa por uma triagem de verificação. Se ela estiver em situação de rua, já é um indício de má qualidade da saúde familiar. Também é feito um questionamento sobre o histórico do uso de drogas. Se constatada a dependência, ela não vai ter chance de conviver com seus filhos. Egídia Aiexe relata que não está sendo avaliado se o uso da droga realmente incapacita essa mãe para cuidar da criança. “Pode ser que ela faça o consumo esporádico. Está sendo feita uma generalização, violando o direito do bebê e da mãe. A questão central é o estereótipo, o preconceito que se coloca sobre a mulher. É preciso avaliar caso a caso para se chegar a uma decisão. Além do mais, o estado tem que fornecer ferramentas para que essa família consiga superar as dificuldades, que podem ser momentâneas”. O Estatuto da Criança prevê que a falta ou a insuficiência de recursos materiais não pode, por si só, determinar a perda da guarda ou do vínculo familiar. Nesses casos, essas famílias devem ser incluídas em programas de auxílio. A legislação obriga o Estado a possibilitar que aquela mãe tenha condições de cuidar do filho. Para Egídia Aiexe, o problema é que as mães não sabem disso e as assistentes sociais das maternidades também desconhecem essa informação. “Temos um outro problema que são os abrigos. É um serviço de execução indireta. São entidades que se cadastram na Prefeitura para realizar o serviço. Isso precisa ser repensado, por que essa instituição não é acompanhada pelos órgãos públicos, além disso, não participam das discussões Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 55 55 públicas com os demais técnicos da rede para pensar soluções sobre o tema. Atua como um terceiro, com sua lógica própria e isso não é saudável para essa relação. O Município transfere a responsabilidade, o que dificulta o diálogo e o controle social sobre o serviço que é prestado”, afirma Egídia. Os principais atores dessa discussão tem sido a Defensoria Pública e o Ministério Público. “Nesse momento o MP está dividido. Uma parte tem uma visão muito autoritária e fascista. É um fato ruim porque a instituição costuma ser um defensor dos direitos humanos. Mas, a verdade é que os procuradores que tomaram essa decisão representam uma parcela da sociedade que julga essas mulheres de forma arbitrária e acredita que retirar os filhos do seu convívio é a melhor solução. Pensam como um problema de Polícia ou de Justiça e não de saúde pública ou de políticas públicas, como nós entendemos”, destaca Egídia. Em contraponto à ação do Ministério Público, a Defensoria Pública da União e do Estado de Minas Gerais, por meio de seus setores especializados em Infância e Juventude e Direitos Humanos, Coletivos e Socioambientais publicou uma recomendação conjunta no sentido de proteger essas mães e seus filhos e evitar a quebra dos laços familiares. Além disso, foi criada uma rede de profissionais que estão em debate constante sobre esses casos. O grupo reúne psicólogos, assistentes sociais, advogados, agentes de saúde, entre outros representantes envolvidos nessa causa. Uma das reivindicações desse grupo é que a Defensoria seja comunicada sobre os casos, assim como é feito com o Ministério Público. Para que o processo possa ser acompanhado desde o início. Da maneira como tem sido feito o procedimento, a Defensoria só é informada quando a criança já está no abrigo. “Estamos estudando formas legais, possivelmente uma ação civil pública, para que o Município atenda a essa mulher que realmente tem dependência química, de forma que ela não tenha que passar pela perda da criança. Queremos, ainda, dialogar com o Juizado da Infância. Estamos correndo o risco de adoções sumárias, o que pode ter ligações com o tráfico internacional de pessoas”, reivindica Egídia. Esse debate coloca em foco a situação das mulheres em situação de rua. Não é uma questão de direito individual apenas, envolve as demandas coletivas e o aspecto conservador da sociedade brasileira. Para a advogada Egídia Aiexe, a educação em direitos humanos é fundamental para mudar esse quadro de preconceito e discriminação. “Precisamos ensinar o que é democracia. Pensar a realidade considerando que ela tem vários olhares e perspectivas e que cada um vai somar em um mesmo espaço, construindo alguns consensos e promovendo o debate a todo o tempo, porque é assim que a humanidade deve caminhar”.ø “Para a advogada Egídia Aieixe, a educação em direitos humanos é fundamental para mudar esse quadro de preconceito e discriminação”. Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 56 56 SER MÃE POR CECÍLIA ALVIM fotos MARK FLOREST Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 57 57 Mães em restrição de liberdade Mulheres passam a gravidez e criam filhos por um ano dentro do presídio Um muro alto pintado de rosa parece indicar algo diferente, mas um guarda fortemente armado no portão lateral confirma: ali é mesmo um presídio feminino. Ao adentrar a instituição, no entanto, é possível perceber que lá não estão apenas mulheres, mas também crianças bem pequenas e gestantes. Roupinhas de bebê penduradas no varal secam ao sol e colorem uma cinzenta realidade: a do aprisionamento. Assim é o Centro de Referência à Gestante Privada de Liberdade, localizado em Vespasiano, região metropolitana de Belo Horizonte. Abrigando atualmente 65 mulheres, o local é destino de mulheres que tiveram envolvimento com drogas e crimes. Ali elas pagam suas penas em condições um pouco mais dignas do que em penitenciárias tradicionais. A ideia é proporcionar um ambiente mais saudável para que as crianças se desenvolvam um pouco melhor dentro e fora da barriga, que possam ser amamentadas e reforcem o vínculo com suas mães, condutas fundamentais no primeiro ano de vida. Neste presídio não há grades nem celas. As mulheres dormem em alojamentos coletivos e berços de ferro ficam ao lado das camas. Há desenhos nas paredes, brinquedos e utensílios infantis. Crianças estão no colo de suas mães ou de outras mulheres presas, que se ocupam do cuidado Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 58 enquanto as mães trabalham na oficina de fabricação de móveis ou na preparação das refeições. Para ajudar na cozinha, o histórico e o perfil da mulher são avaliados. Elas recebem uma remuneração pelo trabalho, que é gerenciado pela direção do Centro para compra de itens como fraldas e produtos de higiene. Ao trabalhar, elas ocupam suas mentes e reduzem o tempo de aprisionamento. Para cada três dias trabalhados, um dia é remido em suas penas. A alimentação, segundo a direção do Centro, é definida por uma nutricionista, em função das gestantes e bebês. Atualmente, há 24 mulheres grávidas e 41 crianças com suas mães. Uma delas, no colo de sua mãe, mama e faz valer o seu direito e a recomendação da Organização Mundial de Saúde para o aleitamento exclusivo até os seis meses de idade. O direito à amamentação é Revista Elas por Elas - Abril 2015 cabível à mulher em qualquer situação, mesmo que ela se encontre privada de sua liberdade. Existem previsões legais na Constituição Federal, bem como na Lei de Execução Penal e no Estatuto da Criança e do Adolescente. Ainda segundo a OMS, o aleitamento deveria ser mantido até os 2 anos de idade, com alimentação complementar, realidade que o Centro não contempla integralmente. Mães 100% As grávidas recebem visitas regulares de uma equipe de saúde da Maternidade Sofia Feldman para ter acompanhamento pré-natal, e saem escoltadas para ganhar seus filhos lá. Depois, retornam com os bebês para o Centro de Referência, onde eles ficam até completar um ano de vida. Esse é um momento difícil: a separação das mães de seus pequenos. “Quando estão lá com seus filhos, antes e depois do parto, essas mulheres são mães 100% do tempo. Meses depois, quando os filhos saem, elas deixam de exercer a função de mãe, o que gera impactos imprevisíveis para elas e seus bebês”, aponta o advogado criminalista e professor universitário, Virgílio de Mattos. Essas crianças geralmente são entregues aos cuidados de outras mulheres da família: mães, irmãs, avós, tias, primas. Segundo a diretora de Segurança do Centro, Maurília da Silva Gandra, 95% das crianças ficam com seus familiares. “O Conselho Tutelar averigua, com antecedência, as pessoas indicadas pela mãe, para saber se elas têm condições socioeconômicas e psicológicas de assumir o cuidado dessas crianças”. Há bebês, porém, que Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 59 não têm familiares interessados ou em condições de assumi-los. Esses têm um destino ainda mais triste e incerto: um abrigo público da região, onde serão cuidados por pessoas desconhecidas. “A criança cuja mãe não tem respaldo feminino em sua família, está fadada à exclusão”, alerta Virgílio. Embora com uma proposta positiva de melhorar o ambiente de privação de liberdade dessas mulheres-mães, o Centro de Referência à Gestante Privada de Liberdade é mais uma peça na engrenagem do sistema prisional, marcado pela lógica de severas punições previstas na legislação penal brasileira, que atinge mais fortemente mulheres e homens de classes populares, e também seus filhos. “A política de justiça social para o neoliberalismo é o encarceramento em massa. Essa lógica, oriunda dos Estados Unidos e Inglaterra, está falida há mais de 30 anos”, aponta Virgílio de Mattos. Diferença de gênero Atualmente, segundo a Secretaria Estadual de Defesa Social, há 2.983 mulheres presas em Minas Gerais. Além do Centro de Referência à Gestante Privada de Liberdade, há outras unidades prisionais que recebem exclusivamente mulheres em Minas Gerais: Complexo Penitenciário Feminino Estevão Pinto, Presídio Feminino José Abranches Gonçalves, Presídio de Caxambú, Ceresp Centro Sul e Presídio de Paraopeba. De acordo com os últimos dados do Departamento Penitenciário Nacional, do Ministério da Justiça, havia aproximadamente 540 mil presos no país em 2013, sendo mais de 32 mil mulheres. Baseados nesses dados, e no aumento expressivo de presas no país, o professor Virgílio de Mattos faz uma projeção de que em 2015 já haja mais de 700 mil pessoas encarceradas no país, e de que apenas cerca de 8,5% delas sejam mulheres, o que mostra uma acentuada diferença de gênero nessa questão. Segundo ele, mais de dois terços dessas mulheres estão reclusas por ações relacionadas ao comércio de drogas, muitas vezes por influência de namorados, companheiros, filhos e maridos. “Quando eles são presos, elas passam a tomar conta dos negócios”, comenta. Histórias de silêncio e sonhos Roberta*, 35 anos, conta que estava na “hora errada e no lugar errado...” Cumpre pena porque foi pega numa casa onde estavam pessoas envolvidas com o tráfico de drogas. Mãe de 10 filhos, ela diz que era usuária desde os 15 anos, e que sempre saía Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 60 60 de casa para “fazer uso” longe deles, para não influenciá-los. Segundo ela, nenhum tem o mesmo problema. Sua tia sempre a ajudou a criar os filhos. O mais velho tem 21 anos e o mais novo está na barriga. Ela está grávida de 8 meses. O pai do neném que está sendo gestado também está preso. Enquanto tece o assento de uma bela cadeira, que será vendida pela fábrica parceira da oficina, ela sonha em tecer um futuro melhor: “Saindo daqui, quero renovar a minha vida, recuperar o tempo perdido, viver para meus filhos”. Maria*, 33 anos, também está grávida. Seu quarto filho nascerá em breve. Ficará entregue aos cuidados da família, até ela cumprir o restante de sua pena por envolvimento com drogas. Ela diz que preferiria estar em um presídio comum, onde as crianças são retiradas das mães bem antes de um ano de vida. “A gente se apega e de- Revista Elas por Elas - Abril 2015 pois é muito duro separar do filho da gente”, diz, com os olhos marejados. Pede licença da sala onde acontecia a oficina. “Preciso respirar. Passar por tudo isso não é fácil...”, relata. Joana*, 20 anos, troca a fralda de uma bebezinha em cima de sua cama, e está grávida de 8 meses. Ela explica: “Essa é filha da minha irmã, que está trabalhando na oficina. Estou cuidando pra ela”. Não só ela e a irmã estão pre- “A gente se apega e depois é muito duro separar do filho da gente”. sas. Seus bebês também estão ali, dentro e fora da barriga. Outra irmã, o pai, e o cunhado estão encarcerados também. Sua história traduz a triste sina da desigualdade social e racial que penaliza famílias inteiras, sem perspectivas de futuro. É possível perceber que um número significativo de mulheres ali são negras ou morenas. Iara*, 23 anos, também é negra e está gestante. Diz que sua prima ficará com o neném quando nascer. “Ainda não falei com ela por telefone, só por carta. Mas ela vai cuidar dele sim, porque gosta muito de mim”. Recém-chegada, parece mais disposta que as demais. Diz que quer que o tempo passe logo, para ela ser transferida para o presídio feminino em sua cidade, no Triângulo Mineiro, onde mora seu filho de 3 anos, que sonha poder ver com frequência. “Estou com muitas saudades dele”, diz emocionada. Ela quer tirar fotos. “Vocês vão tirar fotos da gente? É bom porque eu não tenho foto de mim grávida”, pede e se ajeita para mostrar a barriga. Ela quer ter uma recordação de uma fase que é pra ser bonita na vida da mulher, mas que é diferente no caso dela e de tantas outras que ali estão. As tradicionais fotos de mulher grávida, cheia de roupas, adereços e mimos infantis, dá lugar ao que é possível: algumas breves poses, com o uniforme branco e verde claro do Centro de Referência. Ainda assim, o momento guarda certa alegria, a da espera maternal, da vida nova que se anuncia nas curvas daquela barriga. E nas curvas da vida, um futuro melhor se aproxima para Antônia*, 34 anos. Sua espera já está perto do fim. Chegou ao Centro há um ano e alguns meses para cumprir o fim de sua pena. Passou a gravidez e ganhou sua filha Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 61 61 lá. A menina já está com 1 ano e 2 meses. “Aqui é diferente de outro presídio onde estive, porque posso ficar com minha filha, cuidar dela”. Como Antônia está prestes a “ganhar a liberdade”, a direção permitiu que a menina ficasse um pouco mais para sair junto com sua mãe, prática que se repete em casos semelhantes. “Quando sair daqui quero colocar minha filha no jardim, voltar a trabalhar”. Ela conta, sorridente, que seu casamento também foi realizado ali, no fim de 2014. Uma cerimônia simples oficializou a sua união com o pai da menina, com quem já se relaciona há cerca de 7 anos. Segundo ela, o marido a visita semanalmente no presídio. Vai ver a mulher e a filha, e levar um pouco do que elas precisam: itens de higiene, afeto, carinho... “Ele tá na luta comigo...” Situação diferente de boa parte das mulheres presas ali. Poucas recebem visitas de seus maridos. “Geralmente, quando o homem é preso, recebe visitas regulares de sua mulher. Já a mulher não costuma receber visitas de seu companheiro, pois muitas vezes ele está preso, com mandado de prisão ou envolvido com atividades ilegais”, analisa Virgílio. [ * ] nomes fictícios para preservar a identidade das mulheres presas. “Saindo daqui, quero renovar a minha vida, recuperar o tempo perdido, viver para meus filhos” Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 62 62 Estigma da exclusão Uma agente penitenciária mostra um outro lado da história. Sob sua ótica, boa parte dessas mulheres não é tão maternal quanto parece. “Exercem a maternidade integralmente apenas enquanto estão aqui entregues a essa função. Do lado de fora, agem diferente, têm outras condutas que as distanciam de seus demais filhos e de uma vida tranquila”. Ainda que o Centro de Referência à Gestante Privada de Liberdade pareça uma ilha no submundo dos presídios brasileiros, uma dura realidade salta aos olhos: os filhos dessas mulheres são crianças que já nascem presas, Revista Elas por Elas - Abril 2015 cumprem penas por ações e crimes que não cometeram... E uma questão fica no ar: qual será o destino delas? O que o futuro reserva para quem já nasce sob o estigma da exclusão? Enquanto algumas mulheres esperam o parto de seus bebês, outras esperam, angustiadas, o dia em que vão se separar de seus filhos, mas todas, invariavelmente, esperam pelo dia em que ganharão a tão sonhada liberdade. “Liberdade − essa palavra, / que o sonho humano alimenta: / que não há ninguém que explique / e ninguém que não entenda!”, versos da poetisa Cecília Meireles, estampados no muro rosado do pátio interno da instituição prisional. Especialista defende anistia Para Virgílio de Mattos, que é também membro da Comissão Nacional de Controle Social na Execução Penal do Ministério da Justiça, uma medida humanitária poderia mudar essa triste história das mulheres presas gestantes e mães. Uma revisão das penas impostas a elas identificaria quais poderiam cumprir penas sem restrição de liberdade, para poderem gestar e criar seus filhos longe da cadeia. “A maioria é ré primária. Mais de 75% delas não cometeram crimes com violência ou com grave ameaça contra a pessoa. Há os casos de mulheres que cometeram crimes para se defenderem de homens violentos, para não morrerem, para não apanharem”, destaca Virgílio. De acordo com ele, mulheres sem antecedentes criminais, e que não cometeram crimes violentos, poderiam cumprir suas penas de outra forma, fora da cadeia, sem colocar em risco a sociedade e o futuro de seus filhos. “Seria possível anistiar mais de dois terços das mulheres presas, mas o preconceito faz com que todo mundo se cale e essa situação se mantenha assim...”, analisa Virgílio de Mattos. Sua proposta de uma anistia para essas presas parece utópica, mas em sua visão, deveria ser replicada de uma forma mais ampla no sistema prisional brasileiro, com cadeias superlotadas e em condições ruins de funcionamento. “A cada dia que passa, prende-se mais e mal. Muitas pessoas que estão presas poderiam estar soltas, cumprindo medidas alternativas sem restrição de liberdade, tendo a chance constante de recriar a própria vida, como é comum a todo ser humano”, vislumbra Virgílio.ø Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 63 “algumas mulheres esperam o parto de seus bebês, outras esperam, angustiadas, o dia em que vão se separar de seus filhos, mas todas, invariavelmente, esperam pelo dia em que ganharão a tão sonhada liberdade”. Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 64 foto CECÍLIA ALVIM 64 SER MÃE POR CECÍLIA ALVIM Mãe coragem Eva Maria da Silva constrói a sua família com crianças que precisam de um lar Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 65 65 Uma história absolutamente singular. Essa é a síntese, que não diz tudo, sobre a vida de Eva ... Uma mulher que abraça muitos filhos e acolhe muitas pessoas, independentemente de idade, condição, escolhas... Há 31 anos, Eva Maria da Silva recebe em sua casa crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos que se encontram em situações difíceis ou que perderam suas referências familiares. Em uma nova moradia, eles têm a chance de reconstruir suas vidas, baseadas em afeto, colo de mãe e valores de família. Diferente de um abrigo convencional, onde as crianças são cuidadas por funcionários, nessa casa todos são criados como filhos e netos, como parte integrante de uma família de verdade. Eva conta com simplicidade: “aqui é um lar e nós somos uma família”. Tudo começou em 1984, quando Eva, casada com Vivaldo Elias de Souza, já tinha um filho de 3 anos e outro com cerca de 6 meses. Ela trabalhava como auxiliar de enfermagem na Copasa. Ao visitar famílias de funcionários, em vilas e periferias, ela percebeu muitas histórias de sofrimento e abandono e começou a se perguntar: “Com a profissão que eu tenho, o que posso fazer a mais neste mundo?”. E desde então, Eva fez mais, muito mais do que imaginava e do que se possa acreditar. Com dois filhos pequenos, ela foi a uma creche buscar uma criança que lhe havia sido indicada para adoção. No entanto, ao chegar se deparou com um outro menino pequeno e franzino de cerca de 1 ano. “Era só cabeça e barriga. Estava desnutrido e carente. Senti que era ele. Com tempo e cuidado, ele se reestabeleceu, teve uma infância tranquila, estudou”, relata. Depois disso, ela adotou mais quatro crianças, até ter mais um filho “de barriga”, como ela chama seus três filhos biológicos, já que trata todos igualmente como seus filhos. “A comida é igual para todos. Nada é separado”, diz um dos filhos. Com um neném de colo, ela prosseguiu sua missão de cuidar dos filhos de outras pessoas. Junto com o marido, adotaram mais 11 crianças e mantiveram muitas outras sob guarda provisória, concedida pela Justiça, até que tomassem seu rumo. Vivaldo, casado com Eva há 35 anos, resume sua percepção sobre sua esposa em poucas palavras: “Ela é uma mãe no máximo do dinamismo que a vida se apresenta”. Em muitos casos, o casal conseguiu apoiar e promover a reaproximação e o retorno da pessoa à sua família de origem. No entanto, muitos ficaram, pois encontraram ali o que não tinham experimentando antes: amor de mãe, de pai, de irmãos, uma cama para dormir sossegado e sonhar com uma vida pela frente. “Quando se dissolvem os laços familiares, você percebe o medo, a fragilidade, a desconfiança entrar. As pessoas passam a acreditar que não podem mais ser amadas. E então elas precisam ter uma experiência de amor verdadeiro para voltarem a acreditar em si mesmas e seguirem adiante”. Filhos de Eva Ao todo, Eva tem 17 filhos adotados legalmente, sendo 6 deles especiais, pessoas com alguma deficiência. Sobre quantas pessoas já acolheu, parece até ter perdido a conta, mas lembra de um levantamento feito há 10 anos, quando já tinham passado por sua casa, por algum tempo, cerca de 1380 pessoas. Depois de mais uma década, ela estima que esse número chegue hoje a 2000 pessoas que, de alguma forma, fizeram e ainda fazem parte dessa imensa família. “Sempre acolhi as pessoas que precisavam de uma casa, de uma família, e nunca tive restrições de origem, condição, idade, opção sexual. A gente tem que respeitar as pessoas. Não podemos agir com egoísmo”. Todos a consideram como mãe, porque veem nela a referência de amor incondicional e cuidado constante que as mães geralmente dedicam a seus filhos. “Para mim, ser mãe é amar e respeitar os filhos, independente de suas escolhas e de suas identidades, mas é também impor limites, incentivar para que estudem, tenham profissão, trabalhem e se desenvolvam”. Ela conta que alguns dos filhos já têm família e, destaca, com orgulho de mãe, que cinco de seus filhos especiais estão trabalhando. “Eles têm horário de trabalho, obrigações, vão de ônibus, e têm seus próprios salários. Gosto de ver eles progredindo”. Dois de seus filhos se formaram em Direito, uma em Gastronomia, e um em Ciências Contábeis, e todos os outros são sempre incentivados a estudar. Questionada sobre como manter a paz numa casa com tantas pessoas diferentes, de diversas origens e condi- Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 66 66 ções, Eva responde com serenidade: “Aqui em casa, nós cultivamos valores como respeito, afetividade, diálogo, colaboração, espiritualidade. Resolvemos os conflitos conversando. Embora haja as diferenças, há um somatório de aprendizado”. Seu conceito de família é muito mais amplo do que vivem atualmente as famílias tradicionais, ligadas por relações sanguíneas de parentesco. Vendo a realidade de Eva, é possível perceber que, para ela, família é quem vive junto, buscando o apoio mútuo para superar as adversidades. “Família é toda a força que a gente precisa. É o apoio que as pessoas necessitam para enfrentar a vida com mais segurança”. Casa cheia de afeto Filhos contam a diferença que Eva fez em suas vidas Sônia Maria da Silva, 51 anos, mora na casa de Eva há mais de 1 ano, onde diz ter começado sua vida novamente. “Eu era alcoólatra. Vivi nas ruas por 26 anos. Depois trabalhei em casa de família. O álcool só me trouxe destruição. Já não estou mais fazendo uso dele. Aqui eu achei o meu lugar. Tenho carinho de mãe e pai. Eles cuidam de mim, e eu cuido deles. Passo boa parte das roupas da casa, principalmente dos especiais. Acho que minha velhice vai ser aqui”. Outra história que ilustra a grandeza das ações de Eva é a de seu sobrinho biológico e “filho”, Israel Williano Marcelo da Silva, de 27 anos. Sua mãe, irmã de Eva, morou na casa por alguns anos criando seus filhos e ajudando a criar as demais crianças. Há alguns anos mudou-se para o interior. Ele ARQUIVO PESSOAL Os filhos contam, com alegria, que a casa fica ainda mais cheia, quando é aniversário de alguém, ou em datas festivas como o Natal. “Vem muita gente que já passou por aqui, e que mora longe”. Um deles relata que as viagens anuais da família à praia são sempre uma festa. “Quando o ônibus chega com aquele tanto de gente, o pessoal pensa que é excursão, mas não, é uma família em férias”. Para acolher e cuidar de tanta pessoas, Eva sempre contou com a ajuda de inúmeros amigos que constantemente traziam doações e colaboravam de diferentes maneiras. Ela ressalta que nunca teve apoio de órgãos governamentais, porque não quis institucionalizar o que fazia. Sempre fez com o coração, sem outras intenções. Atualmente, a residência grande e modesta abriga 33 pessoas em 5 quartos femininos e 6 quartos masculinos. O mais novo da casa é um neto de 5 anos. A obra, que não havia sido terminada, foi doada à família no ano 2000 por uma associação que viu na atuação de Eva o merecimento e a necessidade de espaço para tanta gente e afeto. No entanto, foi preciso muito trabalho da família e de amigos para colocá-la em condições de ser habitada. Movida pela esperança e pelo desejo de um futuro melhor para seus filhos, como toda mãe, Eva vislumbra novos tempos em uma moradia ainda melhor. Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 67 CECÍLIA ALVIM 67 Mulher... Mãe! Que traz beleza e luz aos dias mais difíceis Que divide sua alma em duas Para carregar tamanha sensibilidade com força Que ganha o mundo com sua coragem Que traz paixão no olhar. ficou para continuar os estudos. Com o apoio de Eva, Israel estudou e conseguiu um bom emprego. “Eva me incentivou a fazer o vestibular. Quando me preocupei sobre como ia pagar a faculdade, ela disse: Comece, que o dinheiro virá”. E veio. Uma amiga da família, que mora na Suécia, ajudou a custear a faculdade de Israel, como de outros jovens da casa. Ele diz que considera essa senhora como uma de suas três mães, além de sua mãe biológica, e de Eva, por quem ele tem muito respeito e gratidão. “Eva exerce mesmo o papel de mãe, de colocar a pessoa na sociedade, através da educação. Escola e saúde nunca faltaram para ninguém, ela sempre acompanhou de perto. Impressionante é que ela reconhece todos pela voz, até aqueles que ficam um tempo distantes”, conta. Israel afirma que Eva tem uma forma diferente de ver a vida. “Ela enxerga o que as pessoas normalmente não vêem: que todas as pessoas têm dificuldades, mas têm talentos, que só precisam de apoio, de alento, de direcionamento. Se tivesse mais pessoas no mundo com essa mentalidade, o mundo seria diferente”. Hoje, Israel é graduado em Ciências Contábeis, pós-graduado em Gestão Financeira e trabalha com consultoria de sistemas. “Graças ao voto de confiança que Eva me deu, eu tenho consciência que não sou apenas mais um, que eu tenho o meu valor e o meu lugar no mundo”. Israel viaja a trabalho constantemente, mas sempre volta para casa, para perto da sua “grande família”, como ele diz. “Gosto de estar perto dos pequenos. Vejo os olhos deles brilhando e lembro de mim, quando criança. Quero ser uma referência para eles, assim como Eva e Vivaldo foram e são para mim até hoje”. Segundo Israel, esse convívio familiar faz com que todos da casa aprendam a olhar o mundo de forma diferente. “Cresci assim e pretendo seguir minha vida com essa visão”.ø Mulher Que luta pelas suas ideias Que dá a vida pela “família” Que ama incondicionalmente Que se arruma, se perfuma Que vence sempre o cansaço. Que chora, que ri E que sonha. Todas as mulheres (mães), beleza única, vivas, cheias de mistérios e encantos! Mulheres (mães) que deveriam ser lembradas, amadas, admiradas todos os dias. Para você, mulher, mãe tão especial. Obrigado por existir. Nós te amamos e te respeitamos, nossa querida mãe Eva! Cláudio Soares, um dos inúmeros filhos de Eva, escreveu para ela em nome dos demais irmãos no Dia das Mães de 2014 Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 68 ARTIGO POR ANAMARIA NASCIMENTO fotos TERESA MAIA/DP/D.A.PRESS Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 69 69 Mães de Noronha Gestantes do arquipélago vivem “exílio da maternidade” Numa manhã ensolarada em Fernando de Noronha, ouvi um relato que me deixou sem sono por muitos dias. Foi num passeio de barco entre a Praia da Cacimba do Padre e a Praia do Sancho que escutei de uma moradora do arquipélago um comentário natural para quem vive na principal ilha do estado de Pernambuco, mas assustador para os que vivem no continente. Numa conversa informal, ela contava ao condutor da embarcação como uma noronhense havia burlado o sistema de controle de natalidade da ilha para ter o filho em casa. Chocada com o relato brutal de violência contra as mulheres, perguntei o que aquilo significava para ela. “Não podemos ter filho aqui. Aos sete meses de gestação, somos literamente expulsas da ilha para termos o bebê no continente. Normalmente vamos para o Recife ou Natal, mas nem sempre temos familiares lá”, contou. Minha viagem de férias em Noronha não foi mais a mesma. Não conseguia esquecer o que tinha escutado e não entendia como nós, pernambucanos, morando no mesmo estado que aquelas mulheres, sequer conhecíamos aquela realidade. Retornando da folga, resolvi investigar a trajetória das mães de Noronha para o jornal onde trabalho, o Diário de Pernambuco. Após cerca de três meses de ligações, agendamento de entrevistas e recusas do governo do estado para que eu continuasse tocando a pauta, desembarquei no arquipélago para descobrir o que havia por trás da negação dos direitos das mulheres a terem os filhos perto de casa, com o apoio do marido e dos familiares. Longe de parecer um paraíso, a Noronha daquelas mulheres não tem os atrativos que encantam os cerca de 60 mil turistas que passam por lá todos os anos. O resultado dos dias dedicados a ouvir aquelas mães foi o especial multimídia Mães de Noronha, que reuniu os depoimentos de mulheres que lutam por um único direito: o de ter os filhos perto de casa. Os partos começaram a ser proibidos em Fernando de Noronha quando a maternidade do Hospital São Lucas, o único do arquipélago foi desativado em 2004. É obrigação do poder público evitar a explosão populacional para “Não podemos ter filho aqui. Aos sete meses de gestação, somos literamente expulsas da ilha para termos o bebê no continente”. preservar o Parque Nacional Marinho de Fernando de Noronha, área que corresponde a 70% do território da ilha oceânica. Oficialmente, o estado nega que esse tenha sido o motivo da desativação da maternidade. A pequena quantidade de partos registrada por ano em Fernando de Noronha é a justificativa da administração da ilha para a proibição de partos no hospital. Os espaços que já foram as salas de parto e de recém-nascidos do Hospital São Lucas estão, hoje, abarrotados de caixas com prontuários, equipamentos sem uso e cadeiras. A emergência do hospital recebe, de acordo com a Secretaria Estadual de Saúde, cerca de 800 pessoas por mês. Poucos pacientes, porém, conseguem sair de lá com um diagnóstico preciso. Faltam médicos, remédios e máquinas para realizar exames. Sem saída, muitos pacientes precisam recorrer ao Tratamento Fora do Domicílio (TFD) e viajar ao continente. A estrutura precária do hospital e a ausência de profissionais de saúde em Noronha foram denunciadas pelos próprios funcionários e por moradores da ilha. “As paredes estavam rachadas, e o teto caindo. A direção do hospital precisou tomar providências sem a ajuda do estado”, revelou uma funcionária que não quis se identificar. Nas décadas de 1960 e 1970, o atendimento era feito por médicos da Aeronáutica. Hoje, a gestão está nas mãos Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 70 70 da coordenadoria de saúde de Fernando de Noronha, ligada à Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco. Cerca de 40 mulheres de Noronha dão à luz por ano. É uma média de três partos por mês. A coordenadora de saúde do arquipélago, Fátima Souza, acredita que esses números são ínfimos frente aos riscos que as mães correriam sem um hospital de alta complexidade. “Os custos para manter uma maternidade para, no máximo, quatro partos por mês seriam muito altos. Além disso, temos um déficit de profissionais permanentes na ilha e de estrutura física”, afirmou. Ela faz as contas. Para manter a maternidade em Noronha, seriam necessários 21 médicos por mês, sendo sete obstetras, sete anestesistas e sete neonatologistas. O plantão de um médico custa R$ 1,8 mil, totalizando R$ 151.200 apenas com a folha de pagamento desses profissionais. “Isso sem contar com os enfermeiros, técnicos de enfermagem, impostos, material médico, passagem, hospedagem e alimentação das equipes. É muito mais vantagem mandar as mulheres para o continente”, pontuou. A médica gestora garante que, no Recife, as grávidas são acompanhadas desde o desembarque até o parto. As recifenses são levadas para a casa de familiares que permaneceram na capital pernambucana. As que não têm parentes na cidade são hospedadas em um hotel pago pelo estado. “Elas são orientadas por uma equipe formada por assistente social, nutricionista e enfermeiras. Para os exames, um carro da administração faz o transporte dessas mulheres”, explica Fátima Souza. Os depoimentos das mães, no entanto, contradiziam essa informação. Revista Elas por Elas - Abril 2015 Maternidade do único hospital virou depósito, após ser desativada em 2014. A cozinheira Marinalva Fonseca confidenciou que foi abandonada pelo estado quando chegou ao continente. No oitavo mês da gestação de Tayná, hoje com 4 anos, Marinalva deixou Noronha com a promessa de que seria hospedada num hotel em Boa Viagem, Zona Sul do Recife. Ao chegar à capital pernambucana, porém, foi encaminhada para um dos quartos da Casa do Estudante, no Derby, área central da capital pernambucana. Dividia o espaço com centenas de jovens de todo o estado, mas se sentia isolada. “Passei mal numa noite e decidi voltar para casa. Pensei, já que me levaram para o Recife na base da mentira, que eu podia retornar do mesmo jeito”, relatou. Três dias depois que retornou à ilha, a auxiliar de cozinha deu à luz de parto normal, feito por uma equipe médica improvisada, no São Lucas. O Salve Aéreo que atende à ilha foi chamado. “Disseram que eu estava com restos de placenta no organismo, não me deixaram ver minha filha depois que ela nasceu”. Levada de volta ao Recife, foi atendida por médicos do Cisam, uma maternidade pública ligada à Universidade de Pernambuco (UPE). Conforme o relatório da equipe da maternidade, o parto aconteceu normalmente, sem a necessidade de internamento. “Acho que a administração quis me punir”. Thayná mora na Paraíba com a avó. Nunca conseguiu o status de moradora permanente da ilha. Já Marinalva continua em Noronha e ainda sonha com a possibilidade de viver ao lado da filha. Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 71 71 O drama das mães de Noronha nem sempre começa no momento de deixar a ilha. Muitas vezes, os problemas só aparecem na hora do retorno. Permanecer no arquipélago nem sempre é uma opção para as mulheres que não nasceram lá e engravidam. A copeira Leyliane Silva morava em Fernando de Noronha há dois anos quando descobriu que teria que deixar para trás o sonho de construir uma família. Como residente temporária, Leyliane não pode voltar à ilha com a filha sem pagar a Taxa de Preservação Ambiental (TPA), valor cobrado a todo turista que visita a ilha. A taxa custava R$ 45,60 por dia quando a menina nasceu (hoje o valor é R$ 51,40). Para manter a primeira filha, Beatriz Catarina, no arquipélago, ela precisaria desembolsar R$ 1.368,00 mensalmente. O preço para manter a família unida, no entanto, não cabia no bolso da copeira. O pai de Beatriz também é morador temporário da ilha e não conheceu a filha até os 4 meses. “Vamos para lá sabendo que a situação das mulheres é complicada, mas é muito difícil quando chega a nossa vez”, disse. Por conta do diagnóstico de diabetes gesta- “A maior herança que um noronhense consegue deixar para o filho é a possibilidade de ele ser morador permanente da ilha”. cional, Leilyane viajou cedo para o continente. “A ilha é uma fantasia. Quando cheguei, achei que estava no paraíso. Com o tempo, nos damos conta de que a vida lá é mais complicada do que se possa imaginar”, revelou. Sem poder voltar para Fernando de Noronha e reencontrar o marido, Leilyane vive em Escada, município da Zona da Mata de Pernambuco. Nascer em Noronha é quase como ter um green card. Foi o que contou a mulher que ajudou quase 50 mães de Noronha a dar à luz, mas não conseguiu ter os seus perto de casa. Auxiliar de enfermagem do Hospital São Lucas de 1998 a 2007, Francinete Lins nasceu em Fernando de Noronha. Os filhos dela, Ruan e Eloá, no entanto, tiveram que nascer no Recife. Na certidão de nascimento, consta que eles são noronhenses. Filhos de nativos têm o direito de serem registrados como se tivessem nascido na ilha. “A maior herança que um noronhense consegue deixar para o filho é a possibilidade de ele ser morador permanente da ilha”, afirmou. De acordo com Francinete, há uma grande incidência de casos de depressão pós-parto entre as mulheres de Fernando de Noronha. “Não há estudo que comprove isso, mas já observei que muitas mulheres acabam tendo sintomas de depressão após terem dado à luz”, observou. No Brasil, cerca de 40% das mães desenvolvem depressão, sendo que em 10% dos casos, o problema aparece de forma mais severa. “Ficamos longe da família, do marido, de tudo para termos nossos filhos. Nossa licença maternidade começa aos sete meses de gestação. Temos que retornar ao trabalho quando o bebê ainda tem dois meses de vida, mas a única creche da ilha só aceita as crianças a partir do quarto mês. Tem como não se desesperar?”, questionou. Francinete era auxiliar do médico José de Arimathea, o último a realizar partos no arquipélago. Nos anos 1990, ele foi chamado pelo governo de Pernambuco para uma missão amplamente rejeitada por colegas de profissão: atuar em Fernando de Noronha, ilha situada a mais de 500 km do Recife, onde ele vivia. Como já estava aposentado, decidiu aceitar o convite. Mesmo não sendo ginecologista e obstetra, o médico é referência no arquipélago quando o assunto é parto. “Eu era médico generalista. Tratava desde os doentes mais simples até as pessoas que precisavam de cirurgia. De menino pequeno a gestante”. Quando chegou à ilha, não havia farmácia ou equipamentos para fazer exames. “Mandávamos buscar tudo de avião. Os medicamentos só chegavam no dia seguinte”, recorda. No ano em que ele precisou retornar ao Recife por motivos pessoais, o governo desativou a maternidade do Hospital São Lucas. “Eu mesmo sugeri que não houvesse mais parto na ilha. As poucas parteiras que atuavam lá não tinham orientação. Hoje, só se faz parto com pediatra, anestesista. Na minha época não tinha isso”, disse. Atualmente, não existem parteiras em Fernando de Noronha. Todos os relatos foram publicados numa série de reportagens de três dias do Diário de Pernambuco, em 2013. As histórias também estão disponíveis em vídeo pelo site hotsites.diariodepernambuco.com.br/vidaurbana/2013/ maes-de-noronha.ø A autora é jornalista e repórter do Diário de Pernambuco Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 72 foto LAIS RODRIGUES 72 POR SAULO CAPA ESLLEN MARTINS Entre o mito e a realidade Ciganas sonham com um futuro sem discriminação Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 73 73 “O que era não deixa de ser; modifica. Cigano nunca deixa de ser cigano”. A tradição familiar é uma marca dos povos ciganos que carregam estigmas e mitos que aguçam o imaginário popular. No nascimento, a menina cigana já tem marcado o seu próprio destino. Valores como virgindade, casamento e maternidade fazem parte do universo dessas mulheres que sonham com um futuro sem discriminação. A adolescência é uma fronteira atravessada muito cedo pela jovem cigana, que é vigiada não só pelos seus familiares, mas também por toda a comunidade e precisa sair da escola para se casar. Quando se fala em ciganos, é preciso saber que existe uma enorme diversidade de comportamentos que variam conforme a organização da comunidade. Fatores políticos, socioeconômicos, religiosos, regionais e familiares podem interferir em um determinado grupo, acampamento ou etnia. Não é possível fazer uma análise, classificando todos os ciganos sob a mesma ótica. Nem mesmo a condição das mulheres pode ser generalizada, sob o risco de se fazer um julgamento precipitado. Muitas perguntas ainda ficam sem resposta quando o assunto é a história dos ciganos no Brasil. No livro Ciganos em Minas Gerais, do professor Rodrigo Corrêa Teixeira, é relatado que a documentação sobre ciganos é escassa, dispersa e parcial. Sendo ágrafas, as comunidades ciganas não deixaram registros escritos sobre sua origem. Ao longo do tempo, a impressão documentada sobre eles foi construída por chefes de polícia, religiosos e viajantes, que traçaram um perfil hostil e estereotipado. De acordo com o professor Rodrigo, foram 500 anos de perseguição do próprio estado contra os ciganos. Por serem itinerantes, não eram reconhecidos como cidadãos e, por isso, arcaram com toda a sorte de injúrias sobre o seu povo. Somente com o governo Lula, foram elaboradas políticas públicas para atender às demandas dessas minorias na sociedade brasileira. “É impressionante como essas pessoas sobreviveram a tantas formas de perseguição, nos últimos séculos. Escravizados na Romênia, expulsos da Europa por causa do holocausto, destinados a vagar sem rumo. A trajetória das comunidades ciganas, que possuem fortes indícios de uma origem Hindu, foi marcada pela discriminação”, comenta Rodrigo Teixeira. Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 74 MARK FLOREST 74 O professor explica que nesse universo de contradições e mitos, a imagem da mulher cigana é cheia de nuances. Enquanto o homem nega a sua identidade, em alguns casos, para fugir do preconceito, elas precisam de indumentária típica para exercer o papel de uma figura mística e enigmática, principalmente, quando o seu trabalho está voltado para as questões esotéricas como a leitura de mãos (quiromancia) e de cartas (cartomancia). Mulheres Calon vivem sob as regras da tradição “Somos muito diferentes das outras mulheres. A questão do respeito aos pais e ao esposo é uma tradição que guardamos”. Cristina Amaral Revista Elas por Elas - Abril 2015 Em Minas Gerais, desde a sua chegada e apesar das muitas restrições relativas à ocupação do espaço por essas comunidades ciganas, a etnia Calon resistiu e é maioria entre os acampamentos no estado. Lutam por seus direitos e pela manutenção de sua cultura. “O que era não deixa de ser; modifica. Cigano nunca deixa de ser cigano”. A frase é de Carlos Amaral, líder da comunidade de ciganos da etnia Calon, situada no bairro São Gabriel em Belo Horizonte. São cerca de 100 famílias que moram no lugar há mais de 30 anos. As mudanças na forma de viver trouxeram o desafio de enfrentar as interferências culturais sofridas ao longo dos anos e manter a identidade cultural do grupo. O nomadismo deixou de ser uma necessidade. Em 2014, conquistaram a posse do terreno. Moram em barracas e casas simples em meio à metrópole, contudo, tentam manter tradições ancestrais. Na comunidade Calon são os homens que ditam as regras. Eles cuidam dos negócios e da organização Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 75 coletiva. As mulheres ficam por conta da casa e dos filhos. Os casos em que elas possuem algum tipo de independência são escassos. Sandra Magalhães (foto) é um exemplo de como a tradição cigana dos Calon determina o modo de vida das mulheres. “Casei-me com 14 anos. Minha rotina se resume em cuidar da casa, dos filhos e do marido. É uma vida boa, eu não trocaria por outra. Dou aos meus filhos uma criação de acordo com o que aprendi. Todavia, acho que minha menina vai ter mais possibilidades de escolha”. Ela faz parte de uma das poucas famílias que ainda moram em barracas. Considera esse tipo de moradia uma mistura de opção e necessidade. “Possuímos tudo que se tem numa casa: televisão, aparelho de som, cama, até carro. Só não temos as paredes”, brinca Sandra. A jovem cigana não tem receio de morar em um local aberto, considerado inseguro por muitos. O que ela tem mais medo é do preconceito. “Quando preciso levar minha filha ao médico ou fazer alguma outra coisa fora do bairro, não uso minhas roupas tradicionais. Chama muita atenção, parece que sou de outro mundo. Não gosto de como os outros me olham. Meu maior sonho é o fim da discriminação contra o nosso povo”, afirma. Para Cristina Amaral, ser cigana é estar junto com uma comunidade, aprender os costumes, usar as roupas e utensílios. “Somos muito diferentes das outras mulheres. A questão do respeito aos pais e ao esposo é uma tradição que guardamos. Quem cuida de mim é o meu marido. Por isso, tudo que eu faço tem que ser com o consentimento dele”. Ela confronta esta MARK FLOREST 75 ideia de que sair pelo mundo sem destino é ter liberdade. “Não é bem assim. Existia muita perseguição aos ciganos e as mulheres sofreram e sofrem ainda mais com o preconceito. Morar em uma casa é um sonho realizado. Quando eu vivia debaixo da lona era muito so- “Meu maior sonho é o fim da discriminação contra o nosso povo”. frimento. Todo mundo quer um pouco de conforto. A vida da minha mãe foi totalmente diferente, bem mais complicada. Ela viveu todo o tempo em barraca, sempre viajando a cavalo. Hoje, temos casa, podemos construir nossas vidas em um lugar que é nosso”, comemora Cristina. Nem todas as mulheres ciganas estão em uma situação de total dependência dos maridos. De uma geração que enfrentou muitas dificuldades, Marilene Lopes passou a maior parte da vida na estrada. Casou-se com 14 anos, passou muitas humilhações, segundo ela, por que era mulher. Trabalhava para comprar comida. Nos últimos 15 anos sua vida mudou. Hoje, está estabilizada e trabalha com o comércio Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 76 LAIS RODRIGUES 76 de tecidos. “Não fico muito parada. Sou independente, viajo sozinha, gosto de ter meu próprio dinheiro. Não gosto de dar muita explicação sobre o que vou fazer. Tem hora que me dá vontade de cair no trecho de novo, vou e volto, estou muito feliz aqui”. Uma mulher experiente, mãe de quatro filhos, com um certo grau de feminismo em suas posturas, Marilene não é submissa ao seu companheiro, mas faz questão de manter alguns princípios. “Nossa tradição permite que os homens estudem até se formarem, porém, as mulheres são retiradas da Revista Elas por Elas - Abril 2015 escola logo após os dez anos de idade, para que não passem a adolescência junto a outros jovens de culturas diferentes. As moças têm que se casar virgens, não podem ser desencaminhadas. Então evitamos que isso aconteça”. As meninas estudam até 12 ou 13 anos, de acordo com Marilene, com essa idade já estão prontas para o matrimônio. Elas não devem buscar uma profissão. “Isso não quer dizer que sejam infelizes. Casam-se com quem gostam e levam uma vida boa. Para uma mulher fazer faculdade é muito difícil, raridade mesmo”, acredita. Marilene relata apenas uma tristeza: o preconceito contra os ciganos. “Posso usar qualquer roupa, mas por causa dos meus dentes de ouro, sou reconhecida como cigana em qualquer lugar. E muitas vezes isso não é bom. As pessoas me reparam de uma maneira diferente, com medo, despeito, não sei...”. Em sua dissertação de mestrado, a professora Camila Similhana pesquisou sobre as comunidades ciganas e constatou traços machistas na cultura de algumas comunidades, durante a sua pesquisa. “Quanto às mulheres ciganas, é inegável a opressão que sofrem. Em populações ciganas tradicionais, elas vivem sob o controle da sogra – que as tratam como se fossem serviçais –, são cruelmente punidas caso sejam insubordinadas, em caso de separação ou traição perdem o poder e o direito de conviver/criar seus filhos (que são considerados pertencentes à família dos maridos), têm sua vida sexual severamente controlada e são rigidamente banidas caso se unam a homens nãociganos”, opina. Uma das representações da cultura cigana que a pesquisadora destaca é a dança. Conforme relatou Camila, a dança cigana está intimamente ligada aos ritos e festas familiares e não à exibição pública, de maneira semelhante ao que ocorre em meio aos povos árabes. “Além disso, se você consultar diversas danças ciganas femininas ao redor do mundo, verá que elas não se movimentam de forma tão solta, tamanha a opressão masculina sobre elas. Em geral são passos mais contidos. Algumas ciganas, de locais específicos como a Índia, têm mais desenvoltura ao mostrar e usar o quadril. A saia e o lenço no cabelo, por exemplo, também tem suas razões: a saia demarca que a Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 77 menina menstruou e entrou num processo que culminará no casamento e o lenço no cabelo é um sinal de submissão ao marido”, descreve. LAIS RODRIGUES 77 Um outro olhar A fotógrafa Laís Rodrigues é vizinha da comunidade cigana do bairro São Gabriel. Atualmente desenvolve um trabalho que retrata o dia a dia das pessoas que moram ali, com o objetivo de dar mais visibilidade às demandas sociais. Ela conta que superou alguns preconceitos para se aproximar. “Minha família mora no bairro há 40 anos, sempre os vi e ouvi histórias sobre eles, mas precisei crescer, amadurecer, para conhecê-los de fato. Foi uma boa surpresa. Tive a certeza de que não eram nada do que falavam por aí. Primeiro, é impossível não se encantar com o quanto são receptivos. Segundo, muitos amam ser fotografados, principalmente as crianças. Eles acreditam no poder da imagem. Dizem: – Pode fotografar, claro! Ajuda a gente! Ao citar o papel das mulheres, Laís é cuidadosa. “Às vezes, evito falar muito sobre minha impressão porque venho de uma cultura diferente. Muita gente critica o fato de terem traços machistas. Descobri que muitas coisas são boatos, não existem mais. Algumas, ainda sim. E aí me pergunto se por acaso esqueceram que milhares de outras sociedades também são patriarcais (pra não falar todas)”. A fotógrafa diz não se sentir no direito de julgar o modo de viver da comunidade. “Não podemos interferir, assim como não mudamos a cultura das tribos indígenas, mesmo que para nós seja algo ‘errado’. Os costumes são deles”. Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 78 78 Elas são descendentes de ciganos, mas não vivem em comunidades. Seus antepassados saíram do convívio comunitário e iniciaram uma caminhada em busca de melhores condições de vida. Cinco mulheres independentes e que tiveram a oportunidade de concluir o ensino superior. Nenhuma delas é casada. Vivenciaram experiências fora da cultura cigana. Juntas, são as responsáveis pela criação da Associação Internacional Maylê Sara Kali, uma organização que atua em defesa dos direitos dos ciganos, promove o resgate cultural das etnias e tem uma preocupação particular com a questão de gênero. Depois de estudar e conquistar uma profissão retornaram ao convívio com as comunidades para auxiliar na garantia de direitos como educação, saúde, entre outras conquistas sociais que não chegam aos ciganos. Fazem parte de uma geração de mulheres que não abriu mão da identidade, no entanto, está inserida no mundo convencional. Lucimara Cavalcanti é uma delas. Especialista em Marketing, a descendente de uma família de ciganos Kalderash percebeu que poderia utilizar a dança e os costumes tradicionais para falar de diversidade e cidadania. “Desde 2012, quando iniciamos a realização de um Ciclo de Debates na Universidade de Brasília, nossa atuação foi ampliada e agora conseguimos ter inserção em dezoito estados brasileiros e em outros países. Se pensarmos que nossa trajetória é marcada pela defesa dos direitos das mulheres, pelo fim da violência de gênero, respeito, igualdade e crescimento profissional, podemos dizer que somos feministas”. Revista Elas por Elas - Abril 2015 LAIS RODRIGUES Ciganas independentes e feministas Em relação às mulheres ciganas, Lucimara esclarece que é importante ressaltar a criação de um estereótipo desde a chegada dos ciganos ao Brasil, por volta de 1500, como ressonância do que já era feito na Europa. “Não são raras as representações da cigana nas artes plásticas e na literatura européia, pautadas na ideia de uma mulher fácil, fatal, sensual, enganadora. Essas informações foram disseminadas e os ciganos nunca se levantaram para se defender”. A militante da causa cigana destaca que existem grupos familiares sustentados por mulheres através da arte de ler as mãos e da cartomancia. “Esse é um dado. No entanto, em cada família as coisas acontecem de uma maneira. Não estou dizendo que todas as ciganas são assim. Cada comunidade tem suas próprias tradições e costumes”, esclarece. De acordo com a descendente de ciganos, em muitos lugares são as mães e avós que têm a responsabilidade de manter a cultura do grupo ao qual Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 79 pertencem. Nesses núcleos, os homens consultam suas mulheres e elas possuem um papel importante na tomada de decisões. “Em outras circunstâncias elas são excluídas desse processo. Existem também casos de violência familiar. As ciganas não estão isentas dessas ocorrências”, conta Lucimara. Outro problema mencionado é o analfabetismo acentuado entre crianças e jovens. “As mulheres estão no centro dessa situação. Temos meninas lindas que não sabem ler nem escrever o próprio nome. Contudo, as escolas devem estar preparadas para receber a diversidade da nossa cultura. Além disso, é preciso incluir o ponto de vista dos ciganos nos livros didáticos”, frisa. Segundo ela, no caso dos casamentos, algumas famílias permitem que as jovens se casem após os 18 anos. Eles têm entendimento que as questões biológicas e emocionais podem interferir no desenvolvimento dessas garotas. Lucimara enfoca que a cultura cigana tem muitos contextos e, em todos eles, a mulher tem um papel central, cita o exemplo de um acampamento em Joinville, Santa Catarina, onde elas estão mudando o modo de vida. São cinco irmãs que ficaram viúvas e não querem mais obedecer às ordens dos homens. Tornaram-se líderes do acampamento. É importante compreender que dentro de um país multicultural como o Brasil, as mulheres ciganas fazem parte do imaginário social e, mais do que isso, auxiliam na construção da identidade do povo brasileiro. Portanto, lutar contra o preconceito e a discriminação étnica é também um ato de contribuição por uma sociedade que respeita a sua história e os atores que ajudaram a construí-la.ø LAIS RODRIGUES 79 Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 80 INTERNET 80 REALIDADE POR NANCI ALVES A vida no circo não é brincadeira Entre o picadeiro e os bastidores, a mulher se desdobra em vários papéis Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 81 81 A arte circense, que encanta a todos, é milenar. Passou por incontáveis experiências, recebeu influências de várias culturas, mas uma realidade nunca mudou: a paixão de quem sobe no picadeiro, a alegria e acolhida do público de todas as idades e a falta de apoio dos governos. Na grande maioria, os circos tradicionais são formados por famílias que, como micro empreendedoras, aprendem e fazem de tudo. Quando entram em uma cidade significa uma vitória. Quer dizer que conseguiram o alvará de autorização da prefeitura, pagaram várias taxas e alugaram um lote, mesmo que nem sempre com preço acessível. Passada esta etapa, buscam garantir o acesso à água e energia elétrica, montam a estrutura do circo, divulgam o espetáculo em toda a região, cuidam da bilheteria e da praça da alimentação, fazem fotos durante o espetáculo para serem vendidas ao final e, claro, depois de toda esta batalha, apresentam, com alegria, suas atrações no picadeiro. E o mais impressionante é que essa rotina é diária, sem intervalo, pois a cada 15 dias o circo é obrigado a se mudar para garantir um bom público. Em meio a tudo isso, a rotina da mulher circense é um verdadeiro exercício de equilíbrio na corda bamba. Exatamente por ser seu lugar de trabalho e moradia, a mulher sincroniza o papel de esposa e de mãe com a de artista, além de acumular as funções de bordadeira, costureira, divulgadora e vendedora dos alimentos que ela mesma prepara para a praça da alimentação – maçã do amor, algodão doce, pipoca, batata frita, etc. Uma rotina bem conhecida pela pernambucana Rosa Roma, que sempre viveu no circo. “Nasci de parto natural, dentro do circo. Minha mãe, Zuleide, que saiu de cena apenas para eu nascer, era dançarina e o meu pai, Orlando, palhaço de um circo dos ciganos. Sou a terceira geração de circenses em minha família, que continua a tradição por meio de meus filhos e neta. A minha mãe, aos 17 anos, conheceu meu pai e, pensando em se casar com ele, fugiu com o circo. Porém, ele já era casado e acabou ficando com duas esposas até que a primeira o largou, levando seus três filhos”, conta. Assim, minha mãe continuou com ele e tiveram seis filhos. “Na medida em que crescíamos, começávamos a trabalhar no circo também. Éramos a Trupe família Roma. Passamos por vários circos fazendo números de altura, vôo, trapézio, arame esticado”, lembra Rosa ao revelar que, desde bem pequena, se levantava às 4h30 para ensaiar: “a gente tinha que tomar um banho gelado para despertar e um pouco de vinho para não ter anemia e, só depois do ensaio, a gente tomava café”. Entre as histórias, Rosa se recorda de um acidente que marcou sua vida. Quando tinha 14 anos, durante um espetáculo, caiu do trapézio, junto com “a rotina da mulher circense é um verdadeiro exercício de equilíbrio na corda bamba. seu pai, porque uma mulher circense cortou o suporte do circo. “Ela, com ciúme, queria atingir o meu pai. A lona caiu em cima de todos, mas apenas nós dois nos machucamos muito, a ponto de ficarmos dois anos em tratamento, na cama. O dono do circo, com raiva, foi embora nos abandonando. Ficamos morando em barraca. Minha mãe teve que sustentar a família sozinha fazendo tapioca, até que chegou um novo circo na cidade e nos contratou. Ela trabalhou como bailarina, cantora, porteira, cuidávamos dos animais. Ficamos neste circo por 8 anos com todos nós trabalhando. Como tinha banda de música, comecei a cantar também”, recorda . Aos poucos, a família Roma conseguiu montar o próprio circo. “Era muito simples, tudo com lençóis e se chamava B1 (Bom e Único). Dois anos depois, já tínhamos a lona e carroça com cavalo para o transporte. Fizemos sociedade com outras pessoas. Nossa arte era imensa, mas muito mal pagos. Quando fiz 20 anos, me casei com um homem que não era de circo, um policial militar”, conta Rosa. Nessa época, como teve que ficar na cidade do marido, largou o circo e investiu no canto. Seu marido contratou um sanfoneiro (conhecido como a Voz do Acordeon), para acompanhá-la nos shows. “Com ele, aprendi outra profissão e virei compositora. Cheguei a ser vocalista do Luiz Gonzaga. Fiz muito shows e me conheciam como Rosinha do Xaxado, diz. Rosa teve dois filhos e por um tempo deixou de cantar para cuidar da casa. Após sete anos de casada, veio a separação e o retorno ao circo. “Mas não foi fácil, pois perdi minha mãe logo em seguida. Assim, não tinha com quem Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 82 CARLA PORTUGAL 82 Rosa Roma, sua neta Ranyelle e sua filha Ramyrez deixar as crianças. Fazia tudo sozinha e enfrentava a discriminação de estar sem marido. Muita dificuldade de ser contratada, pois muitos acham que mulher separada quer arrumar homem. Se for casada, a situação é bem melhor. Para evitar problemas de ciúme, no circo, sempre a própria esposa é a dupla do marido ou sua assistente de palco”, explica. Segundo Rosa, a cada lona levantada, mil histórias para contar. “Me recordo de uma vez, em Campina Verde, e eu já era conhecida no nordeste pela música. Uma emissora de rádio descobriu meu aniversário e me chamou para uma entrevista. Ao vivo, contei minha vida e que estava enfrentando a doença do pânico. Quando foi à noite, o circo estava lotado, como nunca. E as pessoas Revista Elas por Elas - Abril 2015 gritavam pelo meu nome e chamavam de guerreira, quando entrei no picadeiro. Foi emocionante”, lembra Rosa. Depois de rodar por vários circos e cidades, seus filhos, já adolescentes, foram contratados pelo circo do ator Marcos Frota, em Maceió. “Pouco depois, também trabalhei com vendas, fotografias, fui camareira e até dirigi espetáculo deste circo. Hoje minha filha, com 24 anos, está no Broadway, se casou com um globista de lá, e tem uma filha de 4 anos, Ranyelle. Estou com eles neste circo fazendo recepção, número musical com dublagem e minha neta entra junto. Tudo que faço, ela faz. E meu filho trabalha no Circo dos Sonhos, no Rio de Janeiro”, conta. Após a morte da mãe da Rosa, seus irmãos foram aos poucos, deixando o circo. Hoje apenas ela e uma irmã, em São Paulo, seguem a tradição da família. “Tenho 50 anos e não me vejo fora do circo. Estudei magistério, cheguei até a dar aula, mas não era isso que queria. O circo é o meu lugar. Costumo dizer que quando chegar a minha hora de partir, meu velório será dentro do circo, todos, com figurino, cantando música circense”, finaliza. De acordo com a sua filha Ramyrez, o sonho da família é ter seu próprio circo. “Estamos trabalhando para realizar este projeto ainda este ano. Eu e meu marido somos de famílias circenses tradicionais e queremos dar continuidade a esta cultura tão importante. Nós, nossa filha, minha tia, mãe, irmão, meu padastro, que é iluminador e sonoplasta de circo, enteados...a turma é grande e será um circo que unirá o antigo ao moderno, com muita criatividade”, conta Ramyrez. Respeitável Público O sonho de ser dona do próprio circo tornou-se realidade para a família da amazonense Andréia Carvalho Atiares (40 anos). “Depois de trabalharmos a vida toda para outros, conseguimos o nosso Atiare’s Cirkus há menos de um ano. O mais importante para mim é mantermos a família no mesmo circo. Isso é uma vitória e uma bênção de Deus!”, diz Andréia ao afirmar que o circo é sua vida. “Comecei aprendendo a arte aos cinco anos, com balé aéreo, depois trapézio, até que fui contratada, aos 15 anos, pelo Big Circo. Aos 18 anos, fui para o Gran Dallas Lincoln Circos e, ao fazermos uma apresentação na Bolívia, conheci meu marido, Raomir Atiares, que já era trapezista. Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 83 83 gamos R$4.000,00 para apenas três semanas”, desabafa. O filho mais velho, Roamir Júnior, 20 anos, diz que poder ter o circo foi a realização de um sonho e que seus pais são um exemplo para ele. Ao falar da mãe, ele conta que ela é o pilar da família. “Se precisar de alguma coisa, pode ter certeza que ela vai saber – desde um remédio para algum problema a um conselho, além, é claro, do carinho e do colo”, diz. Amor e circo Assim como na vida de Rosa Roma, na história de Andréia Atiares (foto) também tem caso de gente que fugiu para se casar com circense. “Quando eu tinha dois anos, minha tia fugiu para se casar com o filho do dono de um circo que ficou um tempo em minha cidade. Assim, quando eu fiz cinco anos, sempre passava as férias com eles. Meu tio me ensinou tudo. Aos 15 anos, a história se inverteu: eu, contratada, vivia no circo e ia passar as férias com minha família”, lembra. Outra fuga romântica que gerou uma família tradicional do circo é a vivida por antepassados dos Irmãos Simões. Mas a história de amor que sabem de cor é a dos seus pais, sr. Francisco e dona Rita de Freitas Simões. Ao se apaixonar, em meados do século XX, pelo moço bonito do circo, o violinista, trapezista e também Palhaço Beija Flor, dona Rita, hoje com 75 anos, não teve dúvidas. Abriu mão do seu conforto da cidade de Lima Duarte e, com consentimento dos pais, NANCI ALVES Ele foi contratado pelo circo onde eu trabalhava e depois de um ano, nos casamos. Trabalhamos em vários circos ao longo da nossa vida (Real Brasil, Las Vegas, Circo Castelli, Gran Circo Popular do Brasil, Circo Mundo Mágico, etc), viajamos com eles para Colômbia, Peru, Bolívia, além de várias regiões do Brasil. Conheci muita gente e fiz amigos, apesar de sermos itinerantes. Hoje as redes sociais ajudam muito a manter esta amizade”, conta. No Atiares Cirkus, o espetáculo é feito pelo marido de Andréia, os três filhos do casal, dois sobrinhos e artistas contratados, de acordo com o lugar onde vão. Segundo Andréia, ela só deixou o picadeiro recentemente. “Mesmo grávida, atuava nos espetáculos. Só depois do sétimo mês de gravidez, quando a barriga aparecia muito é que eu parava de fazer o trapézio. Hoje, assim como meu marido, faço mil acrobacias para manter o circo, mas deixei o picadeiro, pois não tenho tempo para ensaiar. Sempre fui feliz no circo e não trocaria minha história com a de ninguém. Claro que fico cansada, pois lavo roupa, cuido da limpeza da nossa casa (os trailers), costuro, divulgo o circo na cidade durante o dia e, na hora do espetáculo, assumo a bilheteria e, em seguida, a praça de comida. Além da correria do dia para levar e buscar filho na escola. Isso quando a gente não tem também que correr atrás da Secretaria de Educação para conseguir vaga na escola, pois existem diretores que nos negam este direito. Mas o mais difícil é conseguir entrar nas cidades, pois as prefeituras fazem de tudo para nos impedir. Sem falar no custo do aluguel do lote, pois as cidades não têm lugar específico para circos. Aqui, onde estamos, pa- Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 84 84 passamos a usar os trailers”, afirma dona Rita, que diz sentir saudades de tudo que viveram”. Depois de muitos anos, fixaram residência em Contagem (MG), onde os filhos e, agora, até os netos fazem espetáculos. Uma família de quatro gerações de circo e muita história para contar. Para Patrícia Simões, filha de dona Rita, fazer circo sempre foi uma paixão. “Comecei ainda criança, fui equilibrista e dançarina. Hoje sou auxiliar de mágico e apresento dança do ventre”, conta. Também para a nora da dona Rita, Marta Simões, o circo é “fascinante e vai sequestrando as pessoas”. Atualmente, trabalha com estética, mas foi artista circense por muitos anos. “Desde o namoro, já participava dos espetáculos com malabares, mágica, esquetes hu- moradas, etc. Claro que para minha família foi uma surpresa e meus pais ficaram inseguros pela vida nômade que é a do artista circense. Mas o circo foi um divisor de água em minha vida. Aprendi a conviver com uma cultura diferente da minha, um desafio positivo. Mudei a forma de enxergar o outro. Consigo olhar para uma pessoa e ver sua história”, conta Marta. Na família da dona Rita, todos aprenderam muito, até cozinhar e cuidar da casa. Para seu filho Lindomar, um aprendizado para toda vida. “Há anos, eu faço nossos figurinos. Até a ter fé aprendi com minha mãe. Posso dizer que a mulher é fundamental no circo. Além da beleza feminina, que é importante no picadeiro, ela é ótima para administrar também.”, diz. MARK FLOREST casou-se, se tornando-se artista também, ao mesmo tempo em que foi dona de casa e mãe de 13 filhos. Com certeza, uma vida de muita luta e resignação. Hoje, viúva, avó de 20 netos e 5 bisnetos, ela relembra com emoção toda sua história. “Eu fui artista todo tempo, parando somente quando os filhos já estavam grandes, mas nunca sofri preconceitos por ser mulher de circo. Como era familiar, éramos bem recebidos. Mas enfrentamos muitas dificuldades para sermos um circo tradicional, itinerante. Falta de conforto, água, luz, problemas com as escolas para filhos... Várias vezes, o caminhão estragava e tínhamos que dormir na estrada de terra, mas fomos felizes. No início, alugávamos casas em cada lugar que chegávamos por uns três meses. Depois, Dona Rita Simões entre sua filha Patrícia, a neta Yhaninha e, à direita a nora Marta Simões. Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 85 85 DIVULGAÇÃO Um olhar de fora da lona Falta de políticas públicas aumenta os desafios das artistas circenses A estimativa é que ainda existam no Brasil mais de dois mil circos itinerantes. Só em Minas Gerais, há cerca de cem. É o que fala a presidenta da Rede de Apoio ao Circo (RAC) e autora da obra Encircopédia - Dicionário Crítico Ilustrado do Circo no Brasil, Sula Kyriacos Mavrudis(foto). “Trabalhamos com estimativas porque, infelizmente, o circo e as famílias circenses não entram na contagem do IBGE. Na hora do censo, o pesquisador pula o circo e vai para a próxima casa. Isso é um desrespeito com eles. Como não são levados em conta, não existe também uma política pública que cuide dessa parcela da população. Assim, se enfrentam, por exemplo, uma tempestade e perdem seu equipamento de trabalho, não terão amparo legal. Não podem participar de qualquer outro programa de assistência social como receber a cesta básica das prefeituras ou o Bolsa Família e nem participar de projetos culturais por meio da lei de isenção fiscal porque não têm endereço fixo”, revela. Assim, da mesma forma, a mulher circense não pode, por exemplo, fazer o pré-natal nos hospitais públicos das cidades onde chega para uma temporada. “A circense é uma guerreira, pois é uma educadora sem ter tido acesso à escola, ensina valores e profissão a partir do que aprendeu no circo com suas famílias. E ela sabe brigar pelos direitos dos filhos, por atendimento em hospital, pela vaga na escola. É comum ter que ir para a “O circo e as famílias circenses não entram na contagem do IBGE”. Delegacia de Ensino cobrar o cumprimento da Lei 6533/78, quando diretores não aceitam seus filhos na sala de aula”, explica. Mesmo compartilhando as responsabilidades da casa e do picadeiro, a mulher circense ainda enfrenta o machismo e sofre com preconceito por onde passa. “Mas, em geral, não sofre violência doméstica, porque os familiares estão juntos, no trailer ao lado. Nunca vi usuários de droga e não tem alcóolatras, a não ser alguns que vêm de fora. Já vi até separação de casal, mas muitas vezes, continuam no mesmo circo. Os casamentos são mais longos e a relação familiar é boa, pois vivem e trabalham juntos. Existe uma cumplicidade profissional, de criar, ensaiar e executar juntos, números acrobáticos com precisão”, conta Sula Mavrudis. Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 86 86 Na avaliação de Sula Mavrudis, a falta de políticas públicas para o circo e a falta de legislação específica, em todos os níveis, que garantam o direito ao trabalho, saúde, educação e moradia têm gerado frustação e, consequentemente, abandono da profissão por parte de muitos circenses, impactando na vida das famílias. “É triste ver circenses, para sobreviver, fazendo outras atividades que não as que aprenderam pela sua tradição familiar e que, ao longo da história, lutam sozinhos para preservar. Isso é uma degradação do status”, denuncia. Segundo Sula Mavrudis, muitos deixaram de ser itinerantes e, mesmo com residência fixa, tentam viver de sua arte, realizando apresentações avulsas ou oficinas de circo em escolas, clubes e eventos em geral. E este tem sido um dos papéis da Rede de Apoio aos Circos – além de lutar por acesso a políticas públicas, ajuda as famílias circenses a conseguirem retomar suas atividades. Para isso, há muitos anos, fazem uma reunião com todos os circenses interessados, às primeiras quartas-feiras do mês, na sede da RAC. Atualmente, são 60 circos integrantes da Rede. As novas gerações de circenses, desanimadas com a falta de apoio legal, sonham em ser contratadas por um circo estrangeiro como os da França, Portugal, Las Vegas, onde os circenses são mais valorizados. Para a coordenadora da RAC, a conclusão é clara: “O Brasil precisa, urgente, de políticas públicas para o circo. A técnica é eterna, mas não o circo. Ele e suas famílias tradicionais estão em risco de extinção, pois sempre foram esquecidas pelos governantes”. Revista Elas por Elas - Abril 2015 ASACAMPOS Apoio aos circenses Circo contemporâneo A arte milenar experimenta agora uma ramificação chamada de circo contemporâneo. Os novos artistas aprendem em escolas e não mais com a família, como antigamente. A primeira escola de circo surgiu no Rio de Janeiro em 1982, chamada Escola Nacional de Circo. Em todo o país, escolas e projetos sociais ensinam as técnicas circen- ses e, quando formados, os jovens que participaram criam grupos e passam a se apresentar ao público. É o que viveu, por exemplo, a mineira Luciana Menin(foto) que fez sua formação em Belo Horizonte e Londres, com balé, teatro e circo. Depois, já em São Paulo, trabalhou em espaço aberto por muito tempo com o Circo Amarillo. Após dez anos assim, e já casada com o argentino Pablo Nordio, se uniram a sete Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 87 87 ao acrescentar que o seu sonho é chegar o dia em que toda a família, o casal e os filhos, formarem a trupe para “cair no mundo com o circo”. Outra atriz mineira que também atuou em um circo contemporâneo é Teuda Bara, do Grupo Galpão de Teatro. Por quatro anos (2002/06) atuou em Kà, espetáculo do Cirque du Soleil. Após passar alguns meses em Montreal (Canadá) para formação, foi morar em Las Vegas (EUA), onde apresentava o espetáculo duas vezes ao dia. “Me admirei quando fui convidada, pois minha história é com teatro de rua. Foi muito bom, mas muito diferente de tudo. As atrações são modernas e trazem muitas novidades tecnológicas. A única coisa comum e que não muda, em todo o mundo, é o palhaço”, conta. Segundo Teuda(foto), outra grande vivência foi fazer a Dona Zaira no filme O Palhaço, de Selton Mello (foto). “Além de ser uma linda personagem e uma bela história, pude viver como se fosse realmente artista circense. Muito emocionante. E depois do filme, fui convidada várias vezes para participar de eventos ou manifestações sobre circo. Dói saber e perceber que o circo tradicional está sendo minado no Brasil. As prefeituras estão dizimando o circo. Sempre que posso falo isso com as autoridades com as quais encontro por aí. O circo está abaixo da linha da miséria. Por tantos problemas, os grandes circos vão se acabando e sobrevivendo apenas os pequenos, de uma ou outra família. As prefeituras falam que o circo vai tirar o dinheiro da cidade. Uma total falta de entendimento. Eles também consomem na cidade e, muito mais importante, trazem cultura, diversão e arte”, afirma.ø Rede de Apoio ao Circo - RAC Rua da Bahia, 1.148 - sala 1910 - Centro Cep: 30160-906 - Belo Horizonte - MG Brasil - TeleFax: (31) 3224.4743 [email protected] DIVULGAÇÃO O PALHAÇO/ BANANEIRA FILMES artistas e criaram o Circo Zanni, com lona que os possibilita fazer um espetáculo para 480 pessoas. Depois de tentarmos bilheteira por algum tempo, partimos para o trabalho com temporada paga, espetáculos vendidos. Por ser caro o transporte de tudo, ficamos mais em São Paulo e viajamos para pequenas temporadas. Não somos de circo tradicional e, assim, temos residência fixa”, conta Luciana que é mãe de Guido, de um ano, e Gael, de 5. Segundo ela, não existe rotina em sua vida, mas considera que descansa muito quando está no picadeiro. “Meus filhos sempre me acompanham e, às vezes, até entram em cena. Um trabalho que me possibilita isso é ótimo. Não vejo dificuldades em ser mãe e profissional de circo, mas preciso reconhecer que existe machismo em nossa sociedade e as circenses rompem isso, exercendo profissões como trapezista, malabarista, palhaça, administradoras, etc. As artistas de circo trabalham normalmente, como toda mulher que exerce alguma profissão, diante de situações como oscilações hormonais, cólicas menstruais ou quando está amamentando e o leite suja o figurino, em cena. São situações com as quais precisamos saber lidar “, conta. Luciana Menin diz que o circo é a sua vida. “Apesar de não ser de família circense, conversando com minha avó, descobri que a bisavó dela, também Luciana, que era russa, fugiu do circo para se casar, deixando a tradição. Minha avó ficou emocionada ao me ver entrando para o mundo do circo, como que retomando esta história. Acho mesmo que nasci para fazer isso. A primeira vez que subi no trapézio parecia que já tinha feito antes, nunca tive resistência”, conta Luciana Revista Elas por Elas - Abril 2015 88 foto CECÍLIA ALVIM Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 88 VIOLÊNCIA POR CECÍLIA ALVIM "A gente tem uma força que desconhece" A história de uma professora da rede particular que deu um basta na violência doméstica Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 89 89 A violência doméstica parece ser realidade somente nas periferias da cidade, entre as classe populares. No entanto, cada vez mais se sabe que mulheres de todas as classes sociais, inclusive com formação acadêmica, são vítimas de violência por parte de seus companheiros. Formada em Letras e professora há 40 anos, Helena (nome fictício) foi vítima da agressividade de seu ex-marido. Após 34 anos de relacionamento, sendo dez de namoro e 24 de casamento, ela deu um basta na violência que a fez sofrer durante anos, e se separou do marido. “Depois que criei coragem e saí de casa, comecei a me cuidar, a gostar de mim de novo”. Segundo Helena, não foi fácil tomar essa atitude. Ela sempre achava que as coisas iam mudar e tinha vergonha de pedir ajuda. “Era difícil falar sobre o assunto, eu me sentia uma fracassada, querendo me reerguer, mas sem saber como”. Foi então que, um dia, ela viu uma notícia na televisão sobre uma mulher que havia levado inúmeras facadas de seu marido e decidido dar um fim à violência. “Eu pensei: vou ter a força dessa mulher. Entendi que era preciso ter coragem de denunciar, de falar sobre o assunto, porque isso inibe quem quer fazer o mal e dá força a quem precisa sair dessa situação. Por isso, aceitei dar este depoimento”. A primeira vez em que foi agredida fisicamente pelo ex-marido, ficou com o rosto todo machucado e roxo. Perdeu parte dos dentes, e o rumo da vida... Passou a viver então sob o domínio do medo. Ele ameaçou que se ela contasse para alguém, poderia fazer algo contra seus pais. Ela ficou apavorada, e resolveu se preparar para mudar de vida. “A superação não vem de fora para dentro, vem de dentro para fora. É cômodo ser a vítima, mas é difícil sair desse lugar. É preciso acordar para o fato de que condutas agressivas por parte de companheiros, não são normais, e não devem ser toleradas”. Continuou vivendo na mesma casa que ele, mas dormia em outro quarto, com seus dois filhos pequenos, de porta trancada. “Ele raramente foi um pai presente e carinhoso. Nessa época, os meninos passaram a ter medo dele”. Helena saía para trabalhar com receio de que pudesse ser alvo de violência. “Existe a Lei Maria da Penha, mas na rua você está sozinha. A gente não se sente protegida”, conta. “A cada dia que passava, eu chegava em casa e me sentia uma vitoriosa. Eu achava que ia morrer, mas não parei pela minha fé”. Houve tempos de alguma convivência em casa, mas nunca mais confiou naquele que lhe jurou amor “Existe a Lei Maria da Penha, mas na rua você está sozinha. A gente não se sente protegida” sem fim no altar, até porque ele não era mais a mesma pessoa que havia conhecido anos antes. Cerca de três anos depois do primeiro episódio de violência extrema, foi comunicar ao marido que queria se separar, e novamente ele a agrediu. “Dessa vez, eu já estava mais preparada. Consegui me defender, e os danos foram menores. Meus filhos já estavam maiores e ajudaram a me proteger. Nesse dia, eles me falaram: – Chega, mãe”. Segundo Helena, duas ocasiões extremas de violência e muitos episódios de comportamentos estranhos, agressões verbais, manifestações de ciúme e de sentimento de posse a fizeram chegar à conclusão de que não era possível mais viver daquela forma. Então ela tomou fôlego, foi até a Delegacia de Polícia e registrou boletim de ocorrência. Juntou algumas roupas suas e de seus filhos e foi para a casa da mãe, onde vive até hoje, reorganizando a própria vida. O ex-marido não aceitou a separação consensual, que teve que ser litigiosa, e só terminou de se resolver recentemente. Atualmente, ela leciona em uma escola particular de Belo Horizonte, é sindicalizada ao Sinpro Minas, e dá também aulas particulares para complementar a renda. Cuida dos filhos e caminha pela vida com um sorriso aberto, que traduz a beleza de quem redescobriu a própria força de mulher guerreira que é.” Ele me magoou muito, mas eu não quis perder a minha alegria de viver. Nunca pensei em dar o troco, mas sim em superar, sendo uma pessoa melhor. A gente tem uma força que desconhece. Hoje, sou uma pessoa mais forte e totalmente apaixonada por mim, pela minha força e fé, e é isso que me move...” Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 90 90 Jovens reproduzem machismo nas redes sociais Os jovens aprovam a Lei Maria da Penha e percebem a existência do machismo no país. É o que aponta a pesquisa Violência contra a mulher: o jovem está ligado?, realizada pelo Instituto Avon em parceria com o Data Popular e divulgada em dezembro de 2014 durante o Fórum Fale sem Medo, em São Paulo. No entanto, boa parte desses jovens “reproduzem comportamentos que subjugam a autonomia e os direitos das mulheres e que estão na raiz de diferentes formas de violência física, moral e psicológica contra mulheres de todas as idades”, alerta informe do Instituto Patrícia Galvão, organização que foi consultora da pesquisa. Os entrevistados responderam questões sobre diversos temas, entre eles relacionamentos virtuais, sexualidade, Lei Maria da Penha e violência nos relacionamentos. Entre os temas que ganharam espaço na pesquisa estão a cyber vingança e os relacionamentos afetivos em tempos de redes sociais. O estudo comprova que “o ciúme em excesso, a submissão e a necessidade de controlar o parceiro – até mesmo sobre o que vestir ou postar nas redes sociais – são comuns nos relacionamentos entre os jovens”. “A pesquisa deixa muito claro que os jovens têm dificuldade em entender o que é violência. Essa falta de percepção permite a perpetuação dos atos de agressão e da desigualdade de gênero. A pesquisa mostra como tudo isso é naturalizado na sociedade”, explicou Jacira Melo, diretora executiva do Instituto Patrícia Galvão, durante o Fórum. Revista Elas por Elas - Abril 2015 Pesquisa “Violência contra a mulher: o jovem está ligado?” “A sociedade precisa superar as discriminações e propagar novos valores de igualdade, sem machismo, racismo e homofobia”, apontou a secretária de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Aparecida Gonçalves. Ela destacou que o Ligue 180 recebe em média 22 mil ligações por dia de mulheres pedindo ajuda e, a cada 5 minutos, uma mulher é agredida no Brasil, mesmo após oito anos da publicação da Lei Maria da Penha. Para mudar este cenário, os especialistas presentes ao evento recomendaram como fundamentais “ações e políticas públicas que envolvam a educação e a mídia, para disseminar valores de igualdade e respeito e mostrar que é papel de toda a sociedade enfrentar as discriminações e reverter a banalização de todas as formas de violência”, destacou o informe do Instituto. “Ações e políticas que envolvam a educação e a mídia podem disseminar valores como igualdade e respeito” Fonte: Data Popular/Instituro Avon Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 91 91 ROBERTO STUCKERT FILHO Lei Maria da Penha reduziu em 10% os homicídios contra as mulheres O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgou no dia 04 de março em Brasília um estudo sobre a efetividade da Lei Maria da Penha (LMP) e outro sobre a institucionalização das políticas protetivas à mulher. No primeiro artigo os pesquisadores do Instituto utilizaram dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade do SUS e um método conhecido como ‘modelo de diferenças em diferenças’, para estimar a existência de efeitos da lei na redução de homicídios de mulheres brasileiras. “A LMP fez diminuir em cerca de 10% a taxa de homicídio contra as mulheres dentro das residências. Isto implica dizer que a Lei foi responsável por evitar milhares de casos de violência doméstica no país”. O estudo apontou ainda que a Lei Maria da Penha “modificou o tratamento do Estado em relação aos casos envolvendo violência doméstica, através de três canais: aumentou o custo da pena para o agressor; aumentou o empoderamento e as condições de segurança para que a vítima pudesse denunciar; e aperfeiçoou os mecanismos jurisdicionais, possibilitando que o sistema de justiça criminal atendesse de forma mais efetiva os casos envolvendo violência doméstica”. No segundo artigo os pesquisadores fizeram um mapeamento inédito dos serviços protetivos para as mulheres em situação de risco que foram institucionalizados no território brasileiro. Segundo a análise, houve um “crescente processo de expansão das Redes de Atendimento e Enfrentamento no Brasil, ainda que, nesse momento inicial de implantação, os serviços estejam concentrados, majoritariamente, nas regiões metropolitanas dos estados”. Uma iniciativa positiva de expansão da rede de enfrentamento à violência é o Projeto Casa da Mulher Brasileira, que consiste na construção de um complexo, em cada capital do País, que comportará todos os serviços especializados para atender as mulheres Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 92 92 em situação de violência, incluindo delegacia, juizado, defensoria, promotoria, equipes psicossociais e de orientação para emprego e renda, além de brinquedoteca e área de convivência. “Hoje a mulher vai à delegacia e fica quatro, cinco horas esperando. Até sair a medida protetiva, demora 48 horas. Depois ela tem que ir ao juizado, demora mais um dia. Depois na defensoria. Então, ela termina tirando cinco dias para poder cuidar disso. Na Casa, vai ser um dia só”, ressaltou a secretária de Enfrentamento à Violência da SPM/PR, Aparecida Gonçalves. Em fevereiro de 2015, a presidenta Dilma Rousseff participou da inauguração da primeira Casa da Mulher Brasileira, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. A previsão do Governo Federal é de implantar, até 2016 uma Casa em cada capital do País, até 2016, exceto Recife, que não aderiu ao programa. Feminicídio agora é crime hediondo A presidenta Dilma Rousseff sancionou no dia 9 de março, a Lei do Feminicídio. Com isso, passou a ser considerado crime hediondo o assassinato de mulheres decorrente de violência doméstica ou de discriminação de gênero. O anúncio de que a lei seria sancionada foi feito no último dia 8 de março, em comemoração ao Dia Internacional da Mulher, em um pronunciamento realizado na rádio e TV. A lei que tipifica o feminicídio como homicídio qualificado e o inclui no rol de crimes hediondos é considerada por Revista Elas por Elas - Abril 2015 Campanha educativa A Campanha Quem ama, abraça ocupou-se, em 2013/14, com “o fortalecimento do espaço escolar como campo privilegiado para reflexão e superação das diferentes formas de violência contra a mulher – simbólicas ou explícitas – presentes no cotidiano das crianças e jovens”. Segundo a especialistas ouvidas pela Agência Brasil, um avanço na luta pelos direitos das mulheres. Para a representante da ONU Mulheres Brasil, Nadine Gasman, a aprovação do projeto representa avanço político, legislativo e social. “Temos falado há muito tempo da importância de dar um nome a esse crime. A aprovação coloca o Brasil como um dos 16 países da América Latina que identificam o crime com nome próprio”, disse. O texto modifica o Código Penal para incluir o crime – assassinato de mulher por razões de gênero – entre os tipos de homicídio qualificado. Prevê também o aumento da pena em um terço se o assassinato acontecer durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto; se for contra adolescente Campanha, “a função social da escola é extremamente relevante pela possibilidade de que, ao disseminar valores através de sua atuação pedagógica, pode instrumentalizar crianças e jovens para o exercício real da cidadania” e para a superação das desigualdades de gênero. O site www.quemamaabraca.org.br disponibiliza informações, atividades, clipes musicais e jogos que professores podem utilizar com seus alunos para promover a conscientização e a discussão sobre o enfrentamento à violência contra as mulheres. “Quem ama, ajuda. Quem ama, agrada. Dá carinho e dá calor. Quem ama, cuida. Quem ama, abraça. Não maltrata o seu amor.” Trecho do clip da Campanha, que teve a participação de vários artistas menor de 14 anos ou contra uma pessoa acima de 60 anos ou, ainda, contra uma pessoa com deficiência. A pena é agravada também quando o crime for cometido na presença de descendente ou ascendente da vítima. O projeto de Lei 8305/14 do Senado foi elaborado pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Violência contra a Mulher. Na justificativa do projeto de lei, a CPMI destacou que, de 2000 a 2010, 43,7 mil mulheres foram assassinadas no Brasil, sendo que mais de 40% das vítimas foram mortas dentro de suas casas, muitas pelos companheiros ou ex-companheiros. Além disso, a comissão informou que a estatística colocou o Brasil na sétima posição mundial de assassinatos de mulheres.ø Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 93 93 Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 94 ARQUIVO PESSOAL 94 Professora Marli Pereira realiza Chá da Vovó com seus alunos. EDUCAÇÃO POR CECÍLIA ALVIM Profissão docente: uma escolha de valor Prêmios valorizam iniciativas de professoras que fazem a diferença Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 95 95 O ofício do professor e da professora é ensinar, despertar o interesse dos alunos pelos saberes e acontecimentos do mundo, desenvolver atividades que façam aflorar a criatividade e o gosto pela vida, transmitir conhecimentos e valores humanos que acompanhem os alunos pelos caminhos que forem trilhar... Mesmo sendo uma profissão antiga, os mestres têm sempre que renovar o propósito de educar, para que suas práticas se adaptem às mudanças e demandas dos novos tempos. Diante disso, novos projetos surgem e trazem novos ares para o cotidiano escolar. Algumas dessas práticas, então, tornam-se conhecidas através de prêmios promovidos para incentivar os professores a aprimorar sua atuação em sala de aula. Um desses prêmios foi promovido em 2014 pelo Sinpro Minas, Nandyala Livraria & Editora, Sind-Ute, entre outras entidades. O Prêmio Educa Minas para a Diversidade destacou ações pedagógicas voltadas para o respeito à diversidade étnico-racial, desenvolvidas por professores da Educação Básica de escolas privadas e públicas de Minas Gerais. A iniciativa premiou docentes que fazem acontecer a Lei 10.639 em suas escolas. Essa lei, que tornou obrigatório o ensino da História e Cultura Afrobrasileira no ensino fundamental e médio desde 2003, foi atualizada pela Lei 11.645/2008, que acrescentou o ensino da História e Cultura Indígena no currículo escolar. Em 2013, essa legislação foi alterada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 12.796). Doze anos depois da aprovação da lei 10.639, ainda pouco se faz para que ela se torne realidade em boa parte das escolas brasileiras. Para a diretora do Sinpro Minas, Terezinha Avelar, a temática deve permear o projeto político-pedagógico das instituições de ensino ao longo de todo o ano. “Essa discussão deve envolver todos os professores, pois não pode ser responsabilidade de uma pessoa somente. Muitas vezes, se espera ou se delega essa iniciativa a professoras negras”. Para ela, o Prêmio Educa Minas realça o papel do/a professor/a na implementação da lei. “Premiar é valorizar quem já está fazendo, para que outros professores acompanhem e vençam as resistências à temática no ambiente escolar”. Em Minas Gerais, doze professores/as da rede particular, filiados/as ao Sinpro, tiveram seus projetos de implementação da Lei 10.639 reconhecidos pelo Prêmio Educa Minas. Um desses projetos premiados foi desenvolvido pela professora Fernanda Gontijo de Abreu, e mais seis professores, em uma escola de Belo Horizonte, dentro do Projeto Institucional desenvolvido ao longo de 2013. O tema central do projeto foi a presença do negro na brasilidade. “Considerávamos urgente problematizar a presença do negro no Brasil, que parece cada vez mais se esquecer da sua história, e que ainda mantém ar- “Premiar é valorizar quem já está fazendo, para que outros professores acompanhem e vençam as resistências à temática no ambiente escolar”. raigadas e dissimuladas posturas de preconceito, exclusão e dominação quando o assunto é a questão racial, a liberdade e a igualdade de oportunidades”, destacou a professora Fernanda Gontijo. O projeto se desdobrou em ações pedagógicas nas áreas de Ciências, História, Geografia, Artes, Português, Música e Literatura. O trabalho desenvolvido pela professora Fernanda na área de Língua Portuguesa foi a produção de um jornal com artigos de interesse dos alunos sobre o tema. Além disso, eles realizaram pesquisas orientadas pelos professores, assistiram filmes, visitaram a Comunidade Quilombola de Mangueira, localizada no bairro Aarão Reis, a Casa África (centro cultural e consulado do Senegal em BH), e participaram de uma palestra e atividade de capoeira coletiva com o Mestre João Angoleiro e alguns capoeiristas. Como resultado, os alunos produziram diversos trabalhos plásticos, literários e científicos, que ficaram expostos até a primeira etapa de 2014, e receberam visitas da comunidade escolar, além de moradores do bairro. Para Fernanda Gontijo, o projeto gerou aprendizado para todos os envolvidos, inclusive para os professores. “Eu mais aprendi do que ‘ensinei’, o que é muito bom. Um trabalho que investe no desenvolvimento do pensamento crítico, e não dogmático, mobiliza saberes para todos os que estejam verdadeiramente envolvidos com a proposta”. Ela conta que o projeto a fez reviver e resgatar as mais inspiradoras experiências de sua infância e adolescência dentro do ambiente escolar. “Ao discutir o tema da negritude na brasilidade, vieram à tona também os temas implícitos da liberdade, justiça, valorização e dignidade Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 96 96 humana, o que ressignificou para mim toda uma temática profissional e humana”, relata Fernanda. De acordo com ela, os problemas que envolvem a questão racial no Brasil e no mundo refletem a história de dominação e saqueamento de direitos e bens culturais do povo negro, disseminada ao longo de muitos séculos. “É preciso muito trabalho e o amplo acesso a uma educação de qualidade para transformar o que se naturalizou historicamente. O professor é, por isso, peçachave no percurso da transformação e justiça social ao investir em um trabalho diferenciado em sala de aula, mesmo em condições adversas”, observa. Riqueza africana ARQUIVO PESSOAL Outra iniciativa reconhecida pelo Prêmio Educa Minas é a da professora Aline Tadeu Lopes, também em uma escola particular da capital. Ela desenvolveu o projeto Cultura Afro-brasileira e Africana com alunos de diferentes idades do 1º ao 5º ano do Ensino Fun- damental. Diversas atividades apresentaram um pouco da riqueza que o continente africano trouxe para o Brasil. As crianças participaram de brincadeiras de origem africana, de contação de histórias, de peça teatral, de exposição de telas do artista Marcial Ávila com o tema Anjos Negros, de conversa com pessoas de origem angolana, que levaram à escola esculturas e informações sobre a cultura e a comida do país, e também assistiram a uma apresentação de dança afro com o Grupo Bataka. Ela conta que os alunos gostaram muito do projeto, que foi também premiado no prêmio Inovações Pedagógicas, do Sesc. Aline conta que, desde que cursou Pedagogia, se preocupou em aprofundar na temática, e por isso, fez sua monografia sobre a Lei 10.639. Para ela, a educação é um instrumento para a construção de uma sociedade anti-racista. “Cabe a nós, professoras e professores, promover atividades voltadas para a questão étnico-racial, pois é assim que construiremos uma educação voltada para o respeito e valorização do negro na sociedade brasileira”, destaca. Professora Fernanda Gontijo realiza visita à Casa África. Revista Elas por Elas - Abril 2015 Professoras são maioria nas escolas brasileiras Outra premiação, em escala nacional, também repercute iniciativas de professoras que resolveram fazer diferente em suas escolas e assim fizeram a diferença na vida de inúmeros alunos. É o Prêmio Professores do Brasil, cuja cerimônia de sua 8ª edição foi realizada em dezembro de 2014, na cidade de São Paulo. Promovido pelo Ministério da Educação, o prêmio reconhece iniciativas de professores da educação básica pública. “O prêmio atende a uma das metas do Plano Nacional de Educação, a valorização dos professores. Necessitamos de ações que tornem os educadores motivados e comprometidos. Com acesso a planos de carreira, salários atrativos, formação inicial e continuada de qualidade, reconhecimento de seu papel social e referência para a nossa sociedade”, aponta o documento final do Prêmio. Em 2014, concorreram 6.808 projetos, e apenas 39 professores foram premiados por suas iniciativas. O resultado confirma a participação majoritária das mulheres na educação. Foram 32 professoras e apenas sete professores premiados. No universo mais amplo das escolas públicas brasileiras, as mulheres são mesmo maioria. Segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), ligado ao Ministério da Educação, em 2013, havia 2.148.023 professores na educação básica, e, deste total, 1.724.653 eram mulheres. Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 97 IMAGEM TV ESCOLA 97 Em Minas Gerais, há 186.184 mulheres e apenas 37.329 homens nas salas de aula das escolas públicas. Duas dessas mulheres foram vencedoras da oitava edição do Prêmio Professores do Brasil 2014. É o caso de Marli Pereira da Silva Morais, professora na Escola Municipal Gil Brasileiro da Silva, em Itapagipe, no Triângulo Mineiro. Ela recebeu o prêmio pelo projeto “Mala Viajante”, desenvolvido com 24 alunos do 4º ano do Ensino Fundamental. A cada semana escolar do ano de 2014, um aluno levou para casa uma divertida mala com livros para serem lidos com a família, além de uma cópia do projeto e de fichas para os pais entenderem a proposta e avaliarem a leitura. Deu tão certo que, depois de envolver os pais, o projeto alcançou tam- bém as avós. Inspirado pela dona Benta, avó dos personagens principais do Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato, e pelo livro A colcha de retalhos, de Conceil Corrêa da Silva e Nye Ribeiro, que narra a relação entre avó e neto, o sub-projeto “Aprendi com a vovó” trouxe a sabedoria das mulheres mais velhas da família para dentro da sala de aula. Histórias e valores Cada aluno foi convidado a trazer um retalho significativo de casa e a contar a história daquele pedaço de pano, muitas vezes cedido por avós ou mães. Os retalhos transformaram-se em uma colorida colcha de retalhos, que passou a forrar a mesa da sala. Com empenho de todos, foi então realizado o Chá da Vovó, com a presença das avós e de seus quitutes e receitas. Algumas delas disseram nunca terem sido chamadas na escola dos netos para participar como avós, e que se sentiram felizes pela homenagem recebida. A partir da leitura dos livros da mala e das atividades relacionadas, os alunos desenvolveram diferentes tipos de texto, reforçaram o aprendizado de valores como respeito e colaboração, e passaram a contar com a participação mais ativa da família em sua vida escolar. A professora Marli conta que ficou contente em desenvolver o projeto e por ter sua iniciativa valorizada pelo Prêmio Professores do Brasil. “A so- Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 98 ciedade passa a te olhar com mais respeito, a escola cresce e os alunos ficam mais confiantes e mais motivados, enfim, todos ganham”, relata. Segundo ela, ser professora não é uma tarefa fácil, mas é gratificante. “Gosto muito do que faço. O que eu sei fazer é dar aula. Quando você vê que uma ação sua fez a diferença na vida das pessoas, é a melhor realização, é um prêmio. Apesar dos desafios, eu ainda acredito muito na educação”, completa Marli. ARQUIVO PESSOAL 98 Aula de cidadania Outra professora mineira reconhecida pelo Prêmio Professores do Brasil é Soraya Amaral Nantes de Castilho. Ela é professora de Química na Escola Estadual Benedito Ferreira Calafiori, em São Sebastião do Paraíso, no Sul de Minas. Seu projeto Ditão em ação: descarte de pilhas e baterias foi desenvolvido com cerca de 200 alunos do 3º ano do Ensino Médio. Ao longo de 2013, eles recolheram cerca de 400 quilos de pilhas e baterias e cuidaram do envio do material para uma empresa de reciclagem. O projeto nasceu quando a professora Soraya constatou o desconhecimento dos alunos sobre o funcionamento e a composição desses produtos e, principalmente, sobre como descartá-los no fim de sua vida útil. Foi preciso então estudar a teoria, assistir a vídeos e colocar em prática as ideias que surgiram. Os alunos construíram, então, baterias rudimentares com limões e batatas, criaram panfletos sobre reciclagem e uma música sobre o descarte correto de pilhas e baterias. Também criaram coletores (papa-pilhas) e hoje há dezenas deles espalhados pela cidade. Revista Elas por Elas - Abril 2015 Soraya Amaral conta que o projeto mudou sua forma de atuar na escola e na vida. “Hoje me sinto cada vez mais responsável pelos problemas ambientais ao meu redor. Continuo procurando parcerias para ampliar o projeto a fim de informar, sensibilizar e aumentar a consciência ambiental de novos alunos e da população”, relata. Assim, ela continua a incentivar a criação de mais postos de recolhimento de pilhas e baterias em sua cidade. “Precisamos evitar o descarte na natureza de metais pesados, tão prejudiciais à sustentabilidade do planeta e à saúde da humanidade”, observa. Com sua visão consciente, a professora Soraya dá uma aula de cidadania. “O papel do professor é garantir a aprendizagem, criar possibilidades de construção do conhecimento, transmitir valores, atitudes e habilidades, mas, sobretudo, acreditar no potencial dos alunos, permitindo-lhes crescer como pessoas, como cidadãos e como futuros trabalhadores”, completa. Professora conta que foi influenciada por outras mulheres a seguir a profissão Fernanda Gontijo de Abreu (foto), professora de Língua Portuguesa de uma escola particular de BH, escolheu a profissão inspirada por sua mãe professora e por sua rica vivência com suas professoras desde a infância. Por sua atuação diferenciada e integrada à equipe de professores da escola, ela recebeu o Prêmio Educa Minas para a Diversidade, em dezembro de 2014. Nessa entrevista, ela conta um pouco de sua trajetória no ambiente escolar, expõe sua crença no papel transformador da educação, e repercute os desafios encontrados pelas professoras para exercer a profissão. Como surgiu o interesse pela profissão? Desde criança, tenho um envolvimento especial com o ambiente escolar. Um dos motivos é o fato de eu ser filha de professora. Minha mãe lecionou por anos no ensino infantil do tradicional Instituto de Educação de Belo Horizonte em uma época em que ali se apostava na ampla formação do aluno: refirome, obviamente, não apenas à formação cognitiva, mas a que também levava seriamente em conta a emoção, a sociabilidade e o desenvolvimento dos valores éticos, o que fazia a equipe docente investir criteriosamente no saber lúdico e inventivo, na alegria da convivência na escola, na leitura crítica Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 99 99 sonantes com o ritmo acelerado, massificado e descartável das informações presentes em um mundo cujo principal valor é o capital e o consumo. Mesmo nesse período de minha vida estudantil, o ambiente escolar era instigante para mim pelo esforço solitário que eu fazia para questioná-lo, compará-lo, compreendê-lo. Acho que é por isso que até hoje estou na escola... como professora e como aluna, pois, mesmo trabalhando, jamais parei de estudar.... E sim, as instituições de ensino ainda continuam sendo para mim, em muitos aspectos, espaços cheios de incoerências e que devem ser repensados em sua forma de agir, ensinar, amar... Quais os desafios para conciliar a docência com a vida pessoal e a família? É um desafio constante, já que todo(a) professor(a) trabalha muito também fora da sala de aula, fazendo planejamentos, preparando atividades, estudando, tratando da burocracia que uma escola exige... O trabalho é muito e a família acaba se acostumando e aprendendo a lidar com isso. De toda forma, acredito que, como todo trabalho que é feito com empenho, a compensação é dada pelo efeito que vemos ocorrer em nosso público, no setor social ao qual servimos. Isso é muito gratificante! Quando percebo que os alunos estão crescendo como seres humanos e pensantes, e que pude contribuir um pouco para isso, fico feliz e já me sinto recompensada por meu investimento. E a família, quando nos percebe fortes e integrados com o que realizamos profissionalmente, se inspira nesse vigor e acaba procurando caminhos de realização também. O esforço e os desafios são imensos (na profissão de professor, isso é histórico e já há muito é uma questão a ser definida politicamente), mas é preciso não abrir mão de uma vida saudável, com tempo para lazer e convivência com aqueles que prezamos. Porém, acredito que a principal fonte de revitalização venha mesmo do próprio trabalho feito em consonância com o que acreditamos.ø ARQUIVO PESSOAL e aprofundada desde a alfabetização, respeitando-se a gradual, mas profunda inserção da criança no mundo da escrita e da leitura. Como a instituição em que minha mãe trabalhou foi a mesma em que estudei até a 4ª série, tive o privilégio de ter professores(as) que lecionavam com criatividade, bom humor e muita dedicação. Lembro-me, por exemplo, com grande carinho, da professora de matemática da 3ª série – a Margô –, que, vejam bem!, ensinava matemática com poesia, apresentando a cada aula um novo poema do qual os alunos deveriam descobrir, pela sugestão da rima, a última palavra. Esta prática levavanos a refletir, antes de simplesmente “aprender” a matéria, sobre o tema a ser trabalhado dentro do conteúdo matemático proposto. Não tenho dúvidas, portanto, de que a maneira como pratico a minha profissão, que já vai para mais de 10 anos, está intimamente ligada à minha passagem na infância por escolas que souberam transmitir-me uma sólida ética de ensino-aprendizagem, fazendo-me entender o espaço do conhecimento como lugar de autonomia do pensamento, de aprimoramento social e humano contínuos. Quando na adolescência, já no colegial, passei por uma escola de linha conteudista, a semente da leitura crítica já havia germinado em mim. O que eu fazia o tempo todo era questionar em silêncio, embora não tivesse dificuldade para apreender os conteúdos repassados, o papel social de uma instituição que priorizava os resultados, a quantidade e a velocidade de apreensão dos conteúdos em detrimento da assimilação cautelosa e consistente do conhecimento, criando nos alunos parâmetros de pensamentos con- Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 100 foto BRUNO CARVALHO 100 ENTREVISTA MARA EVARISTO por DENILSON CAJAZEIRO Diversidade é assunto de criança Especialista defende a abordagem das relações étnico-raciais desde a educação infantil Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 101 101 Autora de livros que trabalham a identidade afrodescendente e a diversidade, Mara Evaristo se dedica há mais de 20 anos a promover as relações étnico-raciais na educação infantil. “Embora não saibam o que é racismo, as crianças têm atitudes discriminatórias”, aponta a educadora e especialista no tema, em entrevista à Elas por Elas. Atualmente, Mara Evaristo é também coordenadora do Núcleo de Relações Étnico-Raciais da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte. Uma de suas principais tarefas é acompanhar a aplicação da lei 10.639, aprovada em 2003, que determina o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas do país, públicas e particulares. No cargo, sabe bem que um dos principais desafios para introduzir o assunto nas escolas é mudar a cultura que permeia o ambiente escolar. “A gente percebe que, no início do ano, nas reuniões escolares, fala-se de tudo, de alimentação, de fralda, mas sobre relações humanas não se fala. Quando se fala da lei, da diversidade, muita gente diz que tem de cuidar da autoestima da criança negra. O que vejo é que a criança negra nasce com a autoestima lá em cima. O que tem de cuidar é das outras pessoas, para não a prejudicarem. Porque quem causa danos são os outros. As crianças nascem bem com elas mesmas”, ressalta. Além das atividades na Secretaria, Mara Evaristo desenvolve oficinas voltadas para professores sobre a construção da identidade pelas crianças e defende que o trabalho com o tema tem de estar presente no cotidiano escolar. Não basta ser algo pontual, de curta duração. “É preciso garantir a diversidade ao longo do ano, o tempo todo, não é só um projeto para ser feito no mês da consciência negra. Isso é que vai fazer a diferença”, afirma. Confira a entrevista. Como começou seu trabalho com as relações étnico-raciais na educação infantil? Em 1995, ingressei na carreira do magistério e comecei a me preocupar, principalmente quando trabalhava com literatura, com os alunos negros que não se identificavam com os personagens, não tinham tanta empatia. Então comecei a trabalhar com eles recriando histórias. Naquela época tinha a tradição dos contos de fadas no processo de alfabetização, e comecei a provocá-los, perguntando como seria se aquelas histórias acontecessem no território onde moravam. Refazíamos imagem, texto, e eu percebia um interesse maior por parte deles a partir dessa intervenção. Quanto tive filhos, começou o processo da minha vivência da educação na condição de família. O mais velho foi para a educação infantil, com três anos, e na escola dele tinham poucos alunos negros. E lá que vivi pela primeira vez a percepção de como as crianças de dois, três, quatro anos vão percebendo “É preciso garantir a diversidade ao longo do ano, tempo todo, não é só um projeto para ser feito no mês da consciência negra”. as diferenças de tratamento. Meu filho, com outros [colegas], viveu algumas situações de discriminação. A escola foi muito bacana nesse processo, porque desenvolveu um projeto para trabalhar com alunos, principalmente brancos, que manifestavam essa discriminação, para que eles entendessem o que era a cor da pele. Pensamos em trabalhar com crianças de três anos a melanina. E aí nós pesquisamos e encontramos uma experiência americana que trabalhava leite com achocolatado. Mostramos para os meninos que a pigmentação da pele tem elementos com a mesma atuação que o achocolatado no leite. Quanto mais chocolate na mistura, mais escuro o leite, e da mesma forma a pele. Eles queriam entender se por dentro também era escuro, e achamos que uma opção interessante seria trabalhar com maçãs. As frutas foram descascadas, e a meninada identificou que por baixo da casca a cor era semelhante, e com essas vivências eles conseguiram perceber as diferenças. Vi como isso provocou um impacto positivo nas relações que meu filho e os colegas construíram dentro da escola. Embora não saibam o que é racismo, as crianças têm atitudes discriminatórias. Vi também o quanto as famílias e a escola têm responsabilidade neste momento na formação da criança, porque é ali que você vai trabalhar a questão da diferença, da semelhança, do respeito. A partir dessa experiência pessoal, comecei a montar uma oficina para professores sobre a construção da identidade pelas crianças. Quando comecei, as professoras negavam muito que houvesse discriminação. Diziam que na escola todo mundo era igual, que discriminação era coisa de adulto e as crianças nem percebiam isso. Era o discurso do senso comum. Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 102 MARK FLOREST 102 Da democracia racial? É, da democracia racial. Quando ele não chegava nesse lugar, era um discurso que caminhava mais para a questão religiosa, que o trabalho com as crianças tinha de valorizar as diferenças, e que se elas não fossem bonitas aos olhos dos coleguinhas, não precisavam se preocupar, porque aos olhos de Deus elas eram. Então havia esses dois movimentos. A gente não imagina, quando estamos dispostos a enxergar, o que as crianças estão falando sobre as diferenças. Ouvi, na época do Natal, que anjo preto era só do mal, que preto era pivete, roubava, que todo ladrão é preto, maconheiro, então os personagens [dos livros] não poderiam ser pretos. Houve a situação de uma professora que levou para a sala dois bonecos, e a diferença entre eles era a cor. Uma criança queria o boneco negro, virou pra outra e disse: ‘me dá esse boneco aí?’. A coleguinha não sabia qual e perguntou. Ela respondeu: Revista Elas por Elas - Abril 2015 ‘me dá esse aí com rostinho de faxineiro’. Não quer dizer que todas as crianças falavam dessa forma, mas foi assustador perceber que em todas as instituições de ensino houve alguma informação que mostrava o quanto era natural para três, quatro anos, as crianças manifestarem formas de tratamento tão discriminatórias. Outro dado que chamou atenção da gente foi a rejeição à cor preta, de como ela está associada no imaginário da criança a algo ruim. “Combater o racismo não tem de acontecer no lugar onde existe racismo. É você trabalhar o tempo todo com valorização e respeito à diversidade”. Qual a importância de se trabalhar com esse tema com as crianças no ambiente escolar? Eu vi o que um bom trabalho sobre relações étnico-raciais faz com várias crianças. Quando você chega a uma escola onde essa criança se identifica no material, nas histórias que são contadas, nos murais, nos filmes, no professor, isso faz uma extrema diferença. Belo Horizonte tem escola hoje [da rede privada] que não contrata professor negro. Isso é seríssimo. Essa informação é fruto de um processo de formação e diálogo com os conselheiros municipais de educação. Não existe na ficha da escola que não pode contratar, mas essa percepção de que a escola não contrata é concreta, e isso é muito sério. Uma professora já nos relatou que tentou aplicar a lei 10.639 na escola em que trabalhava, e a direção disse que não havia necessidade, já que lá não existia criança negra. O que é uma visão superequivocada. Porque a LDB [Lei de Diretrizes e Base da Educação], quando traz a obrigatoriedade, não diz que é somente em escolas onde há alunos negros. Se fosse assim, a gente teria de pensar que tudo relacionado à Europa é somente em escolas que têm alunos brancos. As pessoas precisam ampliar o conhecimento sobre a legislação. Combater o racismo não tem de acontecer no lugar onde existe racismo. É você trabalhar o tempo todo com a valorização e o respeito à diversidade. Meus filhos podem não conviver com muçulmanos, mas eles precisam aprender a respeitar a religião, a fé muçulmana, para que quando encontrem com um muçulmano, o tratem de forma respeitosa. Isso faz parte das relações étnico-raciais. Outro Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 103 103 não pode. A gente percebe que, no início do ano, nas reuniões escolares, fala-se de tudo, de alimentação, de fralda, mas sobre relações humanas não se fala. Quando se fala da lei, da diversidade, muita gente diz que tem de cuidar da autoestima da criança negra. O que vejo é que a criança negra nasce com uma autoestima lá em cima. O que tem de cuidar é das outras pessoas, para não prejudicarem essa autoestima. Porque quem causa os danos são os outros. As crianças nascem bem com elas mesmas. De modo geral, o sistema educacional tem reproduzido esse quadro? Acho que ainda estamos saindo da fase da negação. Rosa Margarida, que é uma pesquisadora que gosto muito, diz que primeiro passamos pela fase da negação, do “aqui não existe racismo”. Hoje você não tem um profissional que seja pesquisador e que diga que não existe racismo no sistema educacional. Em todas as escolas você vai ter essa concretude. O segundo passo passa pelas pessoas identificarem qual a responsabilidade que elas têm nesse processo, porque a tendência é achar assim: mas eu não sou culpado por isso, ou isso aconteceu foi no passado e não tem jeito de fazer mais nada. Tem sim, a escola e a gestão que se propõe a trazer todos os profissionais para esse processo terão um impacto considerável para a maioria das crianças. E para os professores darem conta BRUNO CARVALHO ponto é trabalhar com a história e cultura africana e afro-brasileira, e isso não necessariamente é trabalhar com o racismo. Porque não vou restringir o trabalho sobre a história de um continente a um período histórico. Você tem uma África antes e uma África pós-escravidão. Temos escritores africanos, cientistas, uma diversidade cultural imensa para apresentar, da mesma forma que o continente europeu tem. O trabalho tem de pensar, e principalmente na educação infantil, que as crianças nem sabem sobre o racismo. Na verdade o que essas crianças precisam conhecer nessa idade é sobre seu corpo, sua pele, seu cabelo. A criança negra precisa ter seu cabelo valorizado. As crianças precisam saber que o cabelo crespo não é duro, apresentar de uma forma que o valorize. Crianças que tem a possibilidade de ver o cabelo crespo de diversas formas, independentemente de serem negras ou brancas, passam a perceber a beleza também nessa estética. A importância estaria nesse campo da diversidade, do respeito às diferenças? Exatamente. Com um cuidado: não deixar passar as situações em que a criança, mesmo sem perceber o dano, discrimina. Se você chega hoje em uma instituição de ensino infantil, não há nenhuma parede pichada. Porque seja uma criança de dois anos, um ano, se ela rabiscar a parede, alguém fala que não pode. As crianças aprendem a chamar por apelidos, chamar de macaco, de cabelo pixaim, porque encontram permissividade. Nessas situações de discriminação, mesmo que ela tenha três, quatro anos, a escola tem de pontuar sobre o tratamento respeitoso, o que pode e o que Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 104 104 de fazer isso, a lei é muito sábia, porque ela chama os movimentos sociais. Então as escolas precisam se aproximar dos movimentos sociais. E vejo que muitas escolas têm uma ideia completamente equivocada de movimentos sociais. Elas não conseguem identificar, por exemplo, que um movimento estético, como a gente está tendo um boom aqui em Belo Horizonte sobre o cabelo crespo, é político. Você está dizendo que seu país politicamente coloca um lugar para quem tem cabelo crespo. Há alguns lugares em que todas as pessoas de cabelo crespo têm de estar com ele liso, preso ou escondido, porque parece que não se encaixa em algumas funções. Você não vê alguma pessoa de cabelo crespo solto num banco, dificilmente vê alguém que ocupa a função de comissário de bordo usando o cabelo crespo. Em determinados restaurantes, os gerentes, esses cargos de alto poder, não se enxerga as pessoas com cabelo crespo. Então esse trabalho pra mim começa na educação infantil, mas não pensando no futuro, pensando no presente da criança, mas isso para mim vai ter um impacto considerável no futuro. Essa questão do cabelo é uma questão de fato política, não é? É uma ação política e não é um movimento só do Brasil. Mencionei aqui porque a gente está vendo isso forte em Belo Horizonte. Acompanho também pelo Facebook o que os movimentos estão fazendo. Tem o movimento de crespas e cacheadas, tem o encrespa geral, são eventos em que elas convidam as mulheres a primeiro valorizar o cabelo natural. Isso não significa que você não possa mais relaxar ou alisar, mas é um movimento que Revista Elas por Elas - Abril 2015 vai lutar contra esse engessamento, essa visão de que a única forma apresentável de cabelo é a lisa. Contra esse padrão de beleza também? Sim, e de beleza que vai para um patamar que significa também como se fosse conhecimento. A ideia da mulher intelectual é de uma mulher que, embora não tenha vaidade, se apresenta com um cabelo liso, o protótipo da mulher cientista, da pesquisadora. Se você olha uma pessoa com o cabelo crespo, solto e alto, o primeiro olhar é: aquela pessoa não é cientista, não tem conhecimento pra isso, se não o cabelo dela não estaria daquele jeito. Vi a discussão nas redes sociais acerca de um bloco [carnavalesco] em Juiz de Fora sobre empregadas domésticas. São homens negros, que pintam o rosto de preto, passam batom para parecer que o lábio está grosso e colocam uma peruca de cabelo crespo. É uma caricatura grosseira e isso é visto como algo divertido. Pra nós, a nossa pele, boca e cabelo não querem ser motivo de chacota. Se pra eles é uma brincadeira, pra nós é muito agressivo, pois aquela apresentação está inferiorizando tudo que tem a ver com a identidade da mulher negra. Li as crí- Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 105 BRUNO CARVALHO 105 ticas que tanto defendiam o bloco, dizendo que é uma tradição na cidade, quanto as que criticavam. Achei interessante uma pessoa da cidade dizer que nunca tinha parado para pensar sob essa perspectiva e que ela acha que a tradição não é impossível de mudar se é algo ofensivo. Se a gente pensar, alguns anos atrás a tradição era a família definir com quem as mulheres iam se casar, ou com quem o homem ia se casar. Fruto da discussão e de quanto perceber que isso ia contra os direitos, essa tradição foi mudada. O Brasil tem uma tradição de discriminação. As pessoas precisam se desarmar um pouco, sair da zona de conforto. Há outras formas de brincar o carnaval sem ofender outras pessoas. É um passo que a gente precisa dar. Muita gente que hoje eu falo que parou de negar o racismo ainda vê o racismo no outro, mas não consegue perceber que sua prática sustenta o racismo. Enquanto tiver bloco caracterizando a mulher negra dessa forma, teremos dificuldades para acessar lugares de emprego, porque as pessoas vão nos olhar como essa caricatura representada. Quais atividades a sra. sugeriria para quem tem interesse em trabalhar com o assunto? Há atividades que às vezes as famílias buscam pouco. Em Belo Horizonte, há dois museus que trabalham com a história e cultura africana e afro-brasileira. Um é o Museu de Artes e Ofícios, que tem a trilha afro-brasileira, aberta ao público. Você pode apresentar isso para que a criança aprenda um pouco de história, saber como as pessoas trabalhavam no passado, criavam os instrumentos, comparar como era antes e como é hoje. O outro é o Memorial Minas Gerais Vale, que também tem um percurso que vai mostrar a resistência negra, trabalhar a questão da oralidade, a presença negra no continente africano e aqui no Brasil. Para uma criança pequena, a abordagem não vai entrar tanto no processo da escravidão, mas você vai encontrar lá um Milton Nascimento, um Renegado em painéis grandes. É isso que a criança precisa perceber, que negros e brancos contribuem culturalmente, politicamente e cientificamente para o país. E não restringir só a negros e brancos, temos também os ciganos, os indígenas urbanos. Onde estão essas pessoas, quais atividades elas fazem ao longo do ano? Temos festas indígenas, ciganas. É uma forma de a criança perceber a vida social dessas pessoas e se aproximar. O desafio pra mim é o adulto querer fazer esse movimento de conhecer. Porque você tem espaços fantásticos para isso. Além disso, tem um movimento também importante que é desenvolver o senso crítico. Se a criança está assistindo a um filme ou desenho que inferioriza a mulher ou a coloca num papel ridículo, é preciso conversar com a criança, começar a desenvolver nela a análise do que está recebendo, para ela não aceitar que, por exemplo, só pelo fato de um conteúdo chegar pelo livro aquilo é real, é o correto. Eu penso que você precisa fazer também um movimento de abrir sua casa. Vou deixar uma pergunta para quem está lendo: quantas pessoas negras frequentaram sua casa no ano passado? E de que forma? Foi para limpar ou numa relação de amizade? Quantos amigos negros você tem? E quantos brancos? Como você pode estimular esse convívio? Em relação à educação, o primeiro passo é estudar. A gente só vai ser bom professor se permanecer estudando ao longo da vida e se fizer um investimento para conhecer novas brincadeiras, jogos, a discussão em torno da linguagem. Que as pessoas tenham essa atenção e responsabilidade para trabalhar com a diversidade, porque hoje as diretrizes para a educação infantil vão dizer que este é um dos pilares da educação infantil: o trato da diversidade, o respeito à identidade e a promoção da equidade. É preciso garantir a diversidade ao longo do ano, o tempo todo, não é só um projeto para ser feito no mês da consciência negra. Isso é que vai fazer a diferença.ø Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 106 AUTOESTIMA foto MARK FLOREST POR NANCI ALVES Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 107 107 Debaixo dos caracóis, muita história pra contar Cabelo, símbolo de feminilidade, é motivo de alegrias e sofrimentos O cabelo tem sido o causador de alegrias e tristezas entre as mulheres, que, em geral, gastam tempo e dinheiro em busca de um visual atraente. Por outro lado, a falta do cabelo, pelos mais variados motivos, traz sofrimento, mas, acima de tudo, desperta a solidariedade entre mulheres em todo o Brasil. O simples fato de um cabelo fora dos padrões da moda pode provocar atitudes de isolamento. Certamente, você conhece alguma mulher que já deixou de ir a uma festa porque o cabelo não estava bonito. Entre as adolescentes, esse dilema pode se tornar ainda maior. Ana Luísa, de 16 anos, garante que já perdeu vários encontros com amigos porque não deu tempo de arrumar bem o cabelo. Isso implica hidratar, lavar, escovar ou pranchar seus cabelos. “Conheço garotas que pensam diferente e gostam do cabelo com volume, colorido ou com dreads, mas todas investem em algum visual que as fazem se sentir bonitas. Eu gosto do meu cabelo bem liso. Assim me sinto mais feminina. Quando acho que está feio, me sinto insegura, não quero sair e muito menos aparecer em fotografias”, conta. Em termos de estatísticas, Ana Luísa faz parte de um grupo que é a maioria em nosso país - 63% das brasileiras gostariam de ter cabelos lisos; sendo que menos de 20% realmente têm e 42% os alisam. É o que apontou uma pesquisa realizada pela L’Oréal, que mostrou, ainda, que o cabelo das brasileiras é uma mistura de três categorias: oriental, afro e caucasiano. As que alisam suas madeixas, em geral, querem reduzir volume e, para isso, buscam produtos que tenham resultado imediato, independentemente das possíveis consequências, como danificar seriamente os fios. A designer gráfico, Fernanda Lourenço (foto), passou por uma experiência marcante em sua vida. Por usar química para relaxamento desde os 13 anos de idade, já não sabia mais como era seu cabelo. “Foi uma surpresa e uma grande alegria redescobrir meus cachos. Por causa da moda, comecei a relaxar meu cabelo na adolescência. Depois, passei a fazer escova progressiva, também por muitos anos. Até que um dia, quando já não estava gostando do aspecto do meu cabelo e também por incentivo de uma amiga, comecei a pensar na possibilidade de voltar a usá-lo natural. Foi um processo. Deixei a progressiva quando vi uma reportagem falando sobre os males, para saúde, do excesso da química. Porém, o mantinha liso com escovação. Quando me decidi por cortar o cabelo, tive medo, pois não sabia como ele estaria. Depois que cortei curto e deixei secar naturalmente, foi uma surpresa maravilhosa e, hoje, eu estou apaixonada com meu cabelo, me sinto mais feminina”, relata Fernanda Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 108 NANCI ALVES 108 Ana Luísa gosta de manter seus cabelos lisos. que diz investir em shampoo, cremes e hidratantes específicos para manter os cabelos naturais com a aparência que deseja. A pesquisa intitulada “Brasileiras e os Cabelos”, realizada pelo Ibope, em parceria com a Unilever (2011) aponta, entre outros dados, que as mulheres gastam, em média, 35 minutos diários apenas cuidando dos fios. Foram ouvidas 400 mulheres das classes A, B e C - nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Porto Alegre. E o resultado mostra que o cabelo é parte essencial no ritual de beleza da brasileira: Revista Elas por Elas - Abril 2015 37% das entrevistadas usam creme de pentear e de tratamento; 72% afirmam gostar de cuidar do cabelo; 74% acham que com o cabelo bonito se sentem confiantes e para 37% ir ao salão é uma necessidade. Influência da mídia A questão cultural é, muitas vezes, estimulada ou reforçada pela mídia. Em novelas ou comerciais, que sempre ditam modas, o cabelo é mesmo algo muito destacado e valorizado. Para a psicóloga clínica e professora da PUC Minas, Ada Ferreira, moda significa seguir a tendência. “Agora é a vez dos cabelos lisos, mas se de uma hora para outra a mídia apresentar cabelos crespos como a sensação do momento, pode ser que pessoas que hoje tenham cabelos lisos, busquem modificá-lo para ficar na moda. Todas querem se sentir bem. Para a mulher, o cabelo representa a sensualidade, a feminilidade. Ter um cabelo bonito e bem cuidado é muito importante para a autoestima”, diz. Porém, na própria mídia que dita modas, a valorização do cabelo, às vezes, carrega uma discriminação contra quem está fora do padrão exigido. A professora Carolina dos Santos de Oliveira, em sua tese de mestrado, realizou uma análise crítica do discurso da revista adolescente Atrevida, enfocando a imagem de adolescentes negras na publicação. “Nos exemplares avaliados do período do recorte 2001 a 2005 pode-se perceber uma incipiente inclusão das imagens de adolescentes negras, no entanto ainda no lugar de quem precisa ser moldado, modificado e domado, sendo o cabelo uma característica muito explorada, por ser um sinal diacrítico marcadamente racial”, afirma. Na sua avaliação, o Brasil precisa de iniciativas de educação libertária para amenizar essa bagagem da “boa aparência” imposta às mulheres. “A sociedade não pode alimentar essa indústria que causa sofrimentos e impõe uma doma ao corpo feminino e com mais imperatividade ao corpo feminino negro”. Porém, Carolina Oliveira acredita que a escola não pode ser a única responsabilizada por esta mudança. “Entendo a escola, da forma como ela se configura hoje, como uma reprodutora da sociedade, com pouco ou ne- Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 109 109 Perda do cabelo O cabelo faz parte da nossa identidade e reflete, portanto, nossas transformações internas. Assim, se estamos com problemas hormonais, emocionais ou de outra ordem, muitas vezes, o cabelo denuncia, podendo ficar mais seco, rebelde ou até sofrer quedas − o que causa, ainda, maior desconforto nas mulheres. De acordo com a psicóloga Ada Ferreira, perder o cabelo interfere na autoestima. Segundo ela, muitas mulheres podem desistir dos contatos so- ciais, familiares, profissionais ao enfrentarem as mudanças com a perda parcial ou total de cabelo ocasionada pela idade, por hereditariedade, por um tratamento de saúde ou mesmo por um tratamento de beleza”, afirma. A reação de cada mulher vai depender do que ela está vivendo e de como consegue enfrentar sua realidade. “Já atendi pacientes que estavam no pré-operatório de uma cirurgia neurológica e sofriam muito por pensar na possibilidade de acordar após a cirurgia e não ter mais o cabelo. Outras, por saberem da mudança, se preparam antes, cortando o cabelo bem curto ou até mesmo raspando a cabeça”, conta Ada Ferreira, que considera normal esse sofrimento. “Vivemos numa sociedade que cultua o cabelo como algo importante; a indústria de cosméticos lança a cada dia novos produtos e nós, consumidores, queremos estar na moda. Então, perder os cabelos é sinal também de impotência, ainda mais se a perda for ocasionada por um tratamento de saúde. Para enfrentar este problema, a mulher precisa trabalhar sua autoestima, bus- cando um suporte psicoterápico, lidando com as questões emocionais que podem surgir e conversando também com as pessoas que estão mais próximas. Claro que cada mulher vai enfrentar sua mudança de uma forma, não é possível esperar que todas enfrentem da mesma maneira. Mas, estar aberta para falar dos medos, angústias, anseios já é um caminho para o enfrentamento e a aceitação”, avalia. Foi o que fez S.M, de 43 anos, ao longo de um tratamento de quatro anos, à espera de uma transfusão de medula, feita recentemente, com sucesso. Segundo ela, foram várias as experiências vivenciadas, incluindo a queda de cabelo por duas vezes. “Raspei o cabelo antes que ele começasse a cair, pois é horrível a sensação. Tive momentos de não querer aparecer em público, outros de curtir o uso de chapéu, lenços variados e até andar com a careca de fora. Tudo dependia do meu humor no dia. Não foi fácil e posso dizer que além de buscar fortalecer a espiritualidade e a alimentação, a psicoterapia foi fundamental para me dar um suporte nesta fase,” conta. LUCIANA CAPIBERIBE nhum poder transformador, as próprias professoras e professores com suas próprias demandas, dúvidas, necessidades... penso que a carga de responsabilidade da escola por promover mudanças também precisa ser diminuída. Entendo a educação como algo maior que apenas a escolarização e as revistas como espaço educativo, assim como tantos outros como: igrejas, clubes, televisão, movimentos sociais, sindicatos, etc...”, acrescenta. “Raspei o cabelo antes que ele começasse a cair, pois é horrível a sensação” Rosinete Rodrigues, Maria do Socorro, Deputada Janete Capiberibe e Tereza Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 110 ARQUIVO PESSOAL 110 Ronizia corta seu cabelo para doar às vítimas de escalpelamento. Depois de dois anos fazendo a primeira fase de quimioterapia, seus cabelos nasceram brancos. “Tomei um susto, mas depois foi voltando ao normal. Teve uma fase muito engraçada, pois saía de peruca e via as pessoas com cabelos naturais iguais aos meus. Era a tal chapinha. Aí, vi que eu não estava tão estranha assim. Aliás, algumas vezes teve gente que me perguntou qual tinta eu usava nos meus cabelos. Eu me divertia com isso e acabei usando por um bom tempo, sem grilos, pois vi que o natural das mulheres era tão artificial quanto a minha peruca”, lembra. Solidariedade feminina Perder os cabelos de forma definitiva, por um acidente, é um trauma vivido por centenas de meninas e mulheres das regiões ribeirinhas da Amazônia. São as vítimas de escalpelamento, a perda do couro cabeludo, que acontece dentro de pequenas embarcações ribeirinhas. Estes barcos navegam com um eixo, que liga a hélice ao motor, exposto, sem proteção, facilitando, que em um movimento ines- Revista Elas por Elas - Abril 2015 perado, puxem os cabelos compridos. A forte rotação do motor arranca todo ou parte do couro cabeludo, inclusive sobrancelhas, orelhas e, dependendo do caso, grande parte da pele do rosto e do pescoço. Um grave problema que causa deformações e, em alguns casos, até a morte. As principais vítimas são meninas e adolescentes, a maioria entre os 5 e os 16 anos, seguido de mulheres dos 17 aos 30 anos e, por último, acima de 31 anos. Uma das das vítimas, Rosinete Rodrigues, sofreu o acidente quando tinha 20 anos, no Pará. Foram dois anos de cicatrização e muitas dificuldades para conviver com as pessoas, pois tinha inclusive vergonha. “Quem vive isso, passa a se isolar, com medo da discriminação e do preconceito”, afirma Rosinete que, ao longo do tempo, descobriu que poderia recorrer a políticas públicas. Assim, há mais de 10 anos, ela e um pequeno grupo de mulheres com a mesma história de vida começaram a buscar ajuda para todas. Nasceu, em 2007, a Associação de Mulheres Ribeirinhas Vítimas de Escalpelamento da Amazônia, que já conseguiu beneficiar 119 pessoas acidentadas. Rosinete já foi presidente da Associação, que oferece às mulheres apoio psicológico e profissional, dentro de um processo de ressocialização. Com apoio da Associação, me formarei, este ano, em Pedagogia. Ela oferece também cursos como corte e costura, artesanato e produção de perucas como incentivo à geração de renda e à nossa independência econômica", conta. Segundo Rosinete, os cabelos recebidos de doações viram perucas não só para as vítimas de escalpelamento, mas também para mulheres em tratamento de câncer. A antropóloga Maria Ronízia Gonçalves, de Rio Branco (AC), deixou seus cabelos crescerem por um ano para fazer a doação, após se inteirar dessa realidade. “Fiquei impressionada com a história que ouvi. Pesquisei na internet, li várias matérias sobre o assunto e vi o sofrimento e a reação dessas mulheres, se organizando e superando suas dificuldades. Deixei meu cabelo crescer e, quando tive a oportunidade de ir à Macapá, a trabalho, fiz a doação em um salão que faz este trabalho voluntariamente. Fiquei feliz por perceber que há uma mobilização da sociedade local em torno da questão", conta Ronízia Gonçalves que incentivou outras pessoas, por meio das redes sociais. Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 111 Reconhecendo que nunca teve muito apego ao cabelo, porque sabe que cresce de novo, Ronízia imagina que se o perdesse sentiria muita falta. “Acredito que também teria vergonha de sair de casa, pois sei que o cabelo é um símbolo da vaidade feminina. Então, colocando-me no lugar das mulheres que perdem, de forma tão violenta, o couro cabeludo. Me doeu na alma só de imaginar o sofrimento delas”, relata. O que chamou a atenção de Ronízia Gonçalves foi o fato das mulheres se organizarem e, a partir de algo ruim, construirem uma nova realidade para elas e suas famílias. “Elas não permaneceram como vítimas, elas reagiram! Muitas delas ganharam novas profissões, superaram o trauma, fizeram cirurgias reparadoras da face, conseguiram leis que tratam da questão. Enfim, tudo isso me motivou a doar os meus cabelos”, diz. O pedido de solidariedade que chegou aos ouvidos e ao coração da antropóloga de Rio Branco saiu de Brasília, na voz da jornalista Mara Régia Di Perna(foto), que há 34 anos é responsável pelo Viva Maria, programa pioneiro na mobilização das mulheres na luta por seus direitos, e, há mais de 20 anos, navega os rios da Amazônia nas ondas da rádio Nacional com o Programa Natureza Viva. “Minha militância por essa causa começou em 2007, quando fiz matéria sobre uma mobilização no Congresso Nacional, em prol da lei que a deputada Janete Capiberibe (PSB/AP) estava querendo aprovar para evitar que os acidentes continuassem vitimando o povo das águas. Felizmente, hoje, a lei 11970/2009, que obriga a instalação de uma proteção sobre o eixo, o motor e as partes móveis das embarcações, é uma realidade. AGÊNCIA BRASIL 111 Mas, como apenas a lei não conseguiu impedir que novos acidentes continuassem acontecendo, por ocasião do primeiro mutirão de cirurgias reparadoras que aconteceu, em 2012, em Macapá, resolvemos criar uma campanha de mobilização em torno do apoio às vítimas que precisavam não só de cabelos para a produção de perucas, mas também de máquinas de costura capazes de dar conta do trabalho”, conta. Segundo Mara Régia, a resposta diante da campanha vem de todos os cantos e o rádio tem sido fundamental, pois consegue alcançar as pessoas que se encontram em situação de isolamento. “Sempre recebemos doações de cabelos. O trabalho da cabeleireira Maria Vanilza, que tem um salão de beleza no Guará, cidade de Brasília, e faz os cortes de graça quando o objetivo é doar os cabelos para as vítimas do acidente, também tem ajudado muito. Em dezembro, estive em Macapá para a entrega de uma mecha de cabelos de um metro e meio de comprimento doada por uma jovem de 14 anos que nunca havia cortado os cabelos. Sem dúvida, o caso dessa “Rapunzel” e´ o maior indicador de sucesso de nossa campanha”, afirma. Para a jornalista, “como as digitais, o cabelo é traço de identidade e, ao mesmo tempo, traduz, melhor do que as palavras, nosso jeito de ser e nossa personalidade. Por isso, tem uma relação tão direta com a nossa autoestima. Sem falar da festa que faz no nosso imaginário, desde os tempos de Sansão e Dalila. Arriscaria dizer que ele é o espelho da alma da gente. Tanto assim que, em prosa e verso, se faz presente na nossa MPB como um tema recorrente”, completa Mara Régia.ø Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 112 112 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 113 113 PERFIL POR POLLYANA BITENCOURT foto MARK FLOREST Dora Alves Uma vida dedicada a elevar a autoestima através dos cabelos “Não abra mão dos seus sonhos, eles podem se tornar realidade, é só a gente ter persistência e determinação”, recomenda a cabeleireira Dora Alves. É com um brilho de esperança nos olhos e uma crença de que tudo é possível, que ela conta a sua história, enquanto arruma o seu salão-escola, no bairro Maria Goretti, em Belo Horizonte. Nascida na periferia da capital mineira, ela aprendeu desde pequena a lidar com as adversidades da pobreza. O pai morreu quando ela tinha apenas oito anos. A mãe saía para trabalhar e como filha mais velha, cuidava dos quatro irmãos. “Eu tenho uma origem humilde, cresci numa favela lá no bairro 1º de Maio, perto da Praça Troca Égua, um lugar sofrido demais da conta, mas dentro de mim, sempre tive o desejo de mudar o rumo da minha história”, conta. Atualmente, Dora tem uma vida dedicada ao seu salão de beleza, especializado em cabelos afro e também coordena um projeto onde ensina pessoas carentes a profissão de cabeleireiro/a. Os primeiros passos na profissão foram ensinados pela mãe. “Foi ela quem me ensinou a fazer as tranças, os topetes e penteados no nosso cabelo’, conta. Uma experiência marcante aos oito anos determinou seu futuro. “Eu passei pasta [creme alisante à base de soda cáustica] no meu cabelo e ele caiu. Toda negra sonha em balançar o cabelo e eu não tinha consciência da minha negritude ainda”, justifica. A partir daí, ela começou as suas pesquisas sobre cremes para deixar os cabelos bonitos. “Eu ia lá no fundo do quintal, apanhava ora pro nobis, folha de abacate, entre outras experiências para tornar mais prático o cuidado com o cabelo”, diz. Todo o conhecimento adquirido hoje é fruto dessas pesquisas. Autodidata, ela aprendeu na prática e hoje tem até uma linha de produtos de beleza que leva o seu nome. “Eu fazia teste no meu cabelo e no dos meus filhos, depois passei para os vizinhos e comecei a ficar conhecida no bairro”, descreve. Aos 11 anos, ela conheceu aquele que viria a ser o pai de seus filhos. Casou-se aos 16 e teve seus dois filhos, que foram criados dentro do salão de beleza. “A minha filha quis aprender a profissão muito novinha, o meu filho também aprendeu e aí eles saíam comigo para ensinar o ofício nas escolas, nos abrigos e nos morros da cidade”, conta. Solidariedade O trabalho social sempre fez parte da vida de Dora, uma mulher forte e destemida, que possui um jeito único de lidar com as pessoas ao seu redor. Foi ela quem deu o primeiro emprego para vários meninos e meninas na primeira banca de revistas que existiu em sua região. Junto com o marido ela também abriu uma mercearia, mas o negócio não deu certo. “Quebrei de primeira porque quando chegavam pessoas necessitadas, meu coração partia e eu deixava a pessoa levar sem pagar”, afirma. Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 114 114 Esse desejo em ajudar tornou-se mais concreto, quando ela, em 2007, fundou a Associação Projeto Meninas de Dora. A iniciativa é fruto do trabalho voluntário feito por ela há mais de 40 anos. “Eu fui sonhando e não abri mão do meu sonho, foi acontecendo...”, emociona-se ao contar. O “Meninas de Dora”, como é conhecido, prepara jovens e adultos para exercerem a sua condição de sujeito, gerando renda a partir do seu trabalho. São ofertados cursos de cabeleireiro, oficinas para o cabelo afro, cursos de cosméticos e outros. Sempre com o objetivo de elevar a autoestima dessas pessoas, para que elas acreditem no potencial de construir uma vida de sucesso. Reconhecimento Em 2012, o trabalho dela foi reconhecido nacionalmente. O projeto foi eleito a melhor ação social do estado de Minas Gerais e concorreu à melhor do Brasil. Dora acredita que, assim como ela mudou o rumo de sua vida, ela tem a missão de mudar o destino de vários meninos e meninas que cruzam o seu caminho. “Acredito que, assim como eu, uma mulher negra de origem humilde que construiu uma história de vitórias, qualquer um também pode alcançar seus sonhos”. Mas nem tudo são flores na vida desta guerreira. Para poder manter o projeto social, ela conta, não só com a renda do salão, mas também com a ajuda de amigos e pessoas solidárias. “Já fiz pirulito pra vender, trabalhei em casa de família, é preciso muito esforço pra gente poder manter essa trajetória”, esclarece. Revista Elas por Elas - Abril 2015 Apesar de toda a ajuda que recebe, ela acredita que o projeto precisa de um movimento para obter mais recursos e poder atender mais gente. Atualmente mais de 300 pessoas estão inscritas para os cursos, mas o espaço físico atual só permite que 10 pessoas tenham aulas, com isso eles trabalham apenas com cinco turmas. A iniciativa espera conseguir um espaço maior, onde eles possam ampliar as turmas e atender a todos. A dedicação ao projeto e a vontade de ensinar é tanta que, apesar das dificuldades enfrentadas, Dora não pensa em desistir. Grande incentivadora da cultura negra, além do trabalho no projeto, Dora também visita escolas e faz palestras. A iniciativa nas instituições de ensino começou antes mesmo da Lei 10.639, que decretou a obrigatoriedade do ensino da Cultura Afro-Brasileira no ensino fundamental e médio. “Hoje, eu vou às escolas e falo com os meninos ‘vocês têm computador, livros, material e tudo que precisam, então, respeitem os professores’. Para ela, o trabalho dos/as professores/as é fundamental para a formação das pessoas. “Eu acho que a classe teria que ser mais bem paga, porque o médico, o cabeleireiro, o advogado, todos dependem do professor”, acredita. “ Eu acho que a mulher tem que ser livre, se ela quer ter cabelo black, ótimo, agora se quer um cabelo liso, que tenha”. Ela comemora os resultados positivos do seu trabalho. “Eu converso muito com os meninos. Eu tenho resultados bacanas de trabalhos que a gente desenvolve nas escolas e, a partir daquele momento, os jovens mudam de postura”. Incentivadora da cultura afro, Dora acredita na liberdade da mulher em escolher o cabelo que quer ter. “Eu acho que a mulher tem que ser livre, se ela quer ter cabelo black, ótimo, agora, se quer um cabelo liso, que tenha um cabelo assim por opção e não por obrigação”. Referência como cabeleireira em Belo Horizonte e no país, Dora já fez o cabelo da atriz Débora Falabella no espetáculo Noites Brancas. Trabalhou também na produção dos atores do filme Pequenas Histórias, que teve a participação da atriz Patrícia Pillar, além dos filmes Batismo de Sangue e Uma onda no ar. Hoje ela tem um quadro permanente no Memorial de Minas do Vale, na Praça da Liberdade. Foi eleita cidadã do mundo em 2010, escolhida entre as cinco melhores cabeleireiras de Minas na Feira Mineira da Beleza em 1999 e coleciona prêmios e homenagens por todo o país. Contudo, para Dora, o seu maior reconhecimento vem dos meninos e meninas que ela ajuda. “Eu fico muito emocionada, patrimônio pra mim é isso, quando ouço ‘eu quero ser igual a você, aprender a profissão, ter um cabelo igual ao seu’, então isso pra mim é fantástico”, declara. Hoje, aos 60 anos de idade, Dora diz que quer projetar uma nova fase em sua vida. “Quero começar um novo capítulo na minha história. Sou a menina negra que sonhei ser”, conclui.ø Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 115 115 Revista Elas por Elas - Abril 2015 INTERNET Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 116 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 117 117 LITERATURA por DÉBORA JUNQUEIRA Uma idealista do lixo A obra de Carolina Maria de Jesus revela a condição e força das mulheres negras relegadas por uma sociedade elitista Quando fazia uma reportagem na favela Canindé, que havia em São Paulo, na década de 50, o jornalista Audálio Dantas se deparou com textos de uma catadora de papel e não teve dúvida de que aqueles manuscritos precisavam ser conhecidos. O texto escrito em letra de forma em cadernos reutilizados, era a obra Quarto de Despejo – Diário de uma favelada, da escritora Carolina Maria de Jesus. Mesmo tendo escrito um best seller traduzido em 13 idiomas, além de outras obras, a escritora ainda é pouco (re)conhecida. “Nem escritor transfigurador poderia arrancar tanta beleza triste daquela miséria toda. Nem repórter de exatidão poderia retratar tudo aquilo no seco escrever. Foi por isso que eu disse assim para Carolina Maria de Jesus, lá mesmo, na horinha que lia trechos de seu diário: eu prometo que tudo isto que você escreveu sairá num livro”, escreveu Audálio Dantas, na apresentação de Quarto de despejo, de 1960. Segundo ele, não foi preciso ler mais de três folhas para ver que havia en- contrado algo de muito valor. Por dois anos, acompanhou Carolina na edição de seus livros e guarda em casa alguns de seus cadernos, para quem ainda duvide da autoria. Mineira de Sacramento, negra e semianalfabeta, Carolina de Jesus mudou-se para São Paulo aos 17 anos. Foi empregada doméstica, teve três filhos, mas manteve-se solteira. Quando foi descoberta como escritora, em 1958, tinha 43 anos. Morreu pobre e praticamente esquecida, em 1977. Em 14 de março de 2014 foi comemorado o seu centenário de vida. “Nem escritor transfigurador poderia arrancar tanta beleza triste daquela miséria toda”. “A experiência e a vivência da autora como mulher, negra e favelada é revelada todo o tempo em seus textos: o racismo que sofria e via outros sofrerem; a condição de mulher e pobre, mãe solteira de três filhos, que sempre era relegada pela sociedade machista e elitista da época e de ainda hoje”, opina a professora Aline Arruda, pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais. (Leia a entrevista). Em cadernos encontrados no lixo, ela relatava seu cotidiano. Além de Quarto de Despejo, a autora publicou Casa de Alvenaria, Pedaços de Fome e Provérbios. Postumamente, em 1982, foi lançado na França, Diário de Bitita, que chegou ao Brasil em 1986, e ainda há manuscritos inéditos na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, um tesouro para a literatura e pesquisadores. Muitos deles precisam de restauração, para que essa vasta obra desconhecida não se perca. A obra completa de Carolina está em 58 cadernos que somam 5.000 páginas de texto, sendo sete romances, 60 textos curtos e 100 poemas, além Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 118 118 de quatro peças de teatro e de 12 letras para marchas de Carnaval. Raffaela Andréa Fernandez desenvolve uma pesquisa de doutorado na Unicamp com base nos manuscritos de Carolina. Segundo ela, a história da autora representa milhares de mulheres negras, faveladas, mães solteiras, que ainda encontram poesia no dia a dia. Em entrevista concedida à revista Caros Amigos (nº 206-2014) ela avalia que Carolina de Jesus revela uma outra história, ‘a história menor’ que precisa ouvida. “Os problemas sociais delineados por Carolina estão na sua temática, na materialidade do papel escrito de seus cadernos reutilizados, encardidos, tirados das latas de lixo, a escrita ‘deficiente’ que não corresponde aos intentos da gramática institucional de uma sociedade que não lhe deu a oportunidade de avançar e, mesmo com todas essas defasagens, essa grande autora nos mostra que aquele que se inquieta diante das ‘atrocidades sociais’ jamais se manterá calado”, afirma. A pesquisadora em literatura, Estela Santos, faz uma crítica sobre a escritora, em artigo publicado no blog Homo Literatus (www.homoliteratus.com). “Alguns escritores já escreveram sobre o cotidiano miserável das favelas, mas a grande maioria o fez de uma perspectiva de fora, isto é, sem viver, de fato em uma favela. Em Quarto de Despejo temos uma perspectiva diferente: quem escreve é alguém que viveu na favela: a perspectiva é de Carolina Maria de Jesus, moradora da, agora, antiga favela do Canindé de São Paulo, uma catadora de papel e de outras sucatas, uma mulher negra, pobre, mãe, escritora e favelada”. Segundo ela, “o diário de Carolina é uma espécie de literatura-verdade, que Revista Elas por Elas - Abril 2015 Manuscritos inéditos da escritora encontram-se na Biblioteca Naciona, no Rio de Janeiro. relata a cruel e triste vida na favela. Sua linguagem é, ao mesmo tempo, simples e rebuscada: simples pela forma que escreveu algumas palavras, aproximandose da linguagem oral (como ‘iducada’) e rebuscada pelas palavras altamente cultas que utiliza (como ‘funestas’). Seu diário comove leitores devido a sensibilidade como conta os acontecimentos durante os anos que morou em Canindé. Percebemos que tudo que é narrado, Carolina sentiu, viu, vivenciou”. Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 119 119 ENTREVISTA ALINE ARRUDA POLLYANA BITENCOURT Pesquisadora acredita que Carolina tinha um projeto literário A professora do Instituto Federal Sul de Minas Gerais (IFSULDEMINAS) Aline Arruda, doutoranda em Literatura Brasileira na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), desenvolve estudos sobre Carolina Maria de Jesus e prepara uma edição comentada de um romance inédito dela. Ela acredita que, pelo fato de ter escrito obras de vários gêneros, a escritora tinha um projeto literário, é o que a sua tese vai tentar provar. Como você despertou interesse em estudar os escritos de Carolina? Eu já havia lido o livro dela mais famoso, Quarto de Despejo, quando ainda era adolescente e fiquei muito impressionada com ele, com a história de Carolina, com os relatos descritos em seu diário. Depois, no mestrado, comecei a me interessar por escritoras negras, estudei uma contemporânea de Carolina, Conceição Evaristo, também mineira, que sempre me disse ser influenciada pela escritora de Sacramento. Dessa forma retomei meus estudos sobre ela no final do mestrado e ao descobrir seus inéditos, na Biblioteca Nacional, decidi fazer meu projeto de doutorado sobre ela. Porque ela ainda é pouco estudada na academia? Qual crítica predomina sobre sua obra? Apesar da abertura acadêmica sobre as obras de autores ditos “marginais” ou pertencentes à chamada “minoria”, ainda há muito preconceito sobre eles. No caso de Carolina, ela estudou menos de dois anos na escola, morava em uma favela, era mulher negra, ou seja, reúne várias condições “marginais” e por isso muitos não acreditam que o que ela escreveu é literatura. Valorizam apenas o que chamamos na academia de cânone literário, autores clássicos. E desde que Quarto de Despejo foi publicado, em 1960, há quem duvide que foi Carolina de Jesus quem o escreveu, muitos disseram na época e mesmo depois, mais recentemente, que o jornalista Audálio Dantas, considerado o “descobridor” dela, havia escrito o diário, o que é uma calúnia, uma bobagem, pois os manuscritos estão aí para quem quiser comprovar. É realmente inesperado que alguém como Carolina faça literatura e publique livros. Como o fato de ela ser mulher, negra e favelada reflete em sua obra? No caso dos diários e da autobiografia, esses aspectos estão entranhados, a experiência e a vivência da autora como mulher, negra e favelada é revelada todo o tempo em seus textos: o racismo que sofria e via outros sofrerem; a condição de mulher e pobre, mãe solteira de três filhos, que sempre era relegada pela sociedade machista e elitista da época e de ainda hoje. Tudo isso foi relatado em seus diários e textos autobiográficos. Porque o primeiro livro Quarto de Despejo vendeu mais de um milhão de cópias em todo o mundo, enquanto o segundo chegou apenas a 10 mil exemplares? Houve um sensacionalismo em função da sua origem? Há muitas respostas possíveis para esse esquecimento da autora. Acredito que houve sim um sensacionalismo em torno da “favelada que escreveu um diário”, mas também uma curiosidade em torno de um livro que conta o dia a dia da favela “de dentro”, de um ponto de vista interno. Houve uma reação impertinente da imprensa da época também e talvez a inocência e a inexperiência de Carolina diante do sucesso súbito, além de sua postura, pessoal e na escrita, crítica e franca, que certamente não agradou a muitos, especialmente no contexto político da época. Qual o fato da vida dela ou de sua obra chama mais sua atenção? Muitos fatos me chamam a atenção, mas principalmente o de que uma mulher com origem humilde e uma vida tão difícil tenha escrito uma obra extensa que abrange vários gêneros como diário, teatro, romance, conto, poesia, provérbios, autobiografia... é admirável a dedicação e a consciência que ela tinha. Além de escritora, era dançarina e compositora, seus sambas também refletem sua vida. Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 120 120 Memórias do jornalista Audálio Dantas Juntamente com o sucesso da publicação, vieram também as críticas. “Ela tinha vocação, lia muito. Sendo semianalfabeta – estudou somente dois anos – assimilava as coisas do jeito dela. Dona de uma personalidade forte, sabia que tinha valor”, revela. Segundo Audálio, Carolina se considerava uma escritora, mas não possuía o instrumental cultural para escrever dentro das normas e isso gerava críticas. Segundo ele, a escritora faleceu frustrada pelo sucesso de seu primeiro livro não ter se repetido nos demais. “Sua personalidade difícil, diferenciada e excepcional criava certos problemas pra ela. O que também me impediu de ajudá-la mais”, desabafa o jornalista, hoje com 82 anos. INTERNET Para o jornalista Audálio Dantas, a catadora Carolina sempre quis ser descoberta e reconhecida como uma escritora. Ele acredita que, no primeiro contato, ela imaginava que ele era um repórter e queria chamar atenção. “Quando estava na favela Canindé para cobrir a inauguração de um playground, me deparei com uma mulher gritando para os adultos que usavam os brinquedos, dizendo que ia colocar o nome deles em seu livro. A minha curiosidade de repórter fez com que eu fosse até a casa dela e visse o seu diário iniciado em 1955. Era uma descrição muito forte e verdadeira. Nenhum repórter conseguiria escrever como quem vivencia aquela situação de pobreza, de dentro pra fora”, conta. O jornalista propôs que o jornal publicasse alguns trechos do manuscrito que ele selecionou sem mexer na forma, somente fazendo uma introdução. “Essa foi a reportagem mais importante da minha vida, afirma. Mais tarde ele descobriu que, antes de encontrar-se com Carolina, no próprio jornal Folha de S. Paulo onde trabalhava, havia uma pequena matéria sobre ela, intitulada poetiza negra. “Parece que aquelas poucas linhas haviam sido publicadas para o repórter se livrar da insistência dela para a publicação de suas poesias”, relembra. Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 121 121 “… As oito e meia da noite eu ja estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla com o barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenha a impressão que sou um objeto fora do uso, digno de estar num quarto de despejo”. (Quarto de Despejo, 2007, p.38). "O livro... me fascina. Eu fui criada no mundo. Sem orientação materna. Mas os livros guiou os meus pensamentos. Evitando os abismos que encontramos na vida. Bendita as horas que passei lendo. Cheguei a conclusão que é o pobre quem deve ler. Porque o livro, é a bussola que ha de orientar o homem no porvir (...)" (Meu estranho diário, 1996, p. 167). "O homem que cultiva o ódio racial é um imbecil" – (Provérbios. São Paulo: Editor Áquila, 1963). Trechos de obras da escritora Carolina de Jesus Comentários críticos sobre obras de Carolina entender as razões pelas quais essa obra é considerada pouco significativa e muito voltada para o trajeto instável de um indivíduo. Confinada à forma do diário, Carolina Maria de Jesus parece se sentir compelida a repetir uma fórmula, cujo efeito não tem a força de revelação de Quarto de Despejo. A figura da ex-favelada não desperta interesse, porque ela e sua obra são objeto de atenção apenas enquanto revelam a face negativa do desenvolvimentismo; já as oscilações ideológicas da mulher que, famosa, busca a atenção da imprensa e do público não trazem à época elementos que se julguem significativos. Fugindo aos cânones do que se considera “literatura” em meios acadêmicos, Quarto de Despejo é mais do que um simples depoimento; trata-se de uma obra em que, a despeito das condições materiais e culturais de sua autora, constrói-se uma forte e única representação da dinâmica social urbana, vista pelo ângulo dos que são lançados à margem. Carolina Maria de Jesus escreve para denunciar a favela e para sair dela; escreve também para, diferenciando-se dos outros moradores, lutar contra o rebaixamento a que estão sujeitos os miseráveis, num momento em que se anuncia novo salto modernizador de São Paulo e do Brasil. Em Casa de Alvenaria, notam-se mais explicitamente as contradições da autora quanto ao que deseja para si mesma e para sua família. Também ficam patentes suas hesitações com relação aos anseios por reconhecimento público ou ao repúdio pelos mecanismos sociais que dificultam o trajeto profissional como escritora. Essa conjunção, por vezes discrepante, ajuda a Diário de Bitita, publicado após a morte da autora, resgata a força literária da produção de Carolina Maria de Jesus. Trata-se de memórias da infância e da adolescência, em Sacramento e nas fazendas onde trabalha como colona, bem como de seus primeiros tempos em Franca. Nesta obra, os temas da injustiça social, da opressão, do preconceito contra os negros, dos abusos dos poderosos são apresentados a partir da perspectiva daquela que os viveu. Apesar de suas condições materiais, Carolina Maria de Jesus lutou para conquistar dignidade e para se constituir como alguém que resiste à exploração e à desumanização. A obra testemunha a história dessa luta e da opressão a que estão confinados os pobres no Brasil das primeiras cinco décadas do século XX.ø Fonte: Enciclopédia de Literatura/Itau Cultural, citado por FENSKE, Elfi Kürten (pesquisa, seleção e organização). Carolina Maria de Jesus - a voz dos não têm a palavra. Templo Cultural Delfos, maio/2014. Disponível no link. http://www.elfikurten.com.br/2014/05/carolina-maria-de-jesus.html (acessado em 6/02/2015). Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 122 DO LIVRO MAGRA DE RUIM 122 CULTURA POR DENILSON CAJAZEIRO s Q H s a e r b o s r a h l o o Um nov Mulheres conquistam espaço e redesenham a representação feminina nas histórias em quadrinhos Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 123 123 Esqueça as heroínas sensuais, com roupas justíssimas e curvas à mostra, ou mesmo inseguras, frágeis, à espera de serem salvas. Pouco a pouco, a representação feminina nas histórias em quadrinhos tem sido redesenhada pelas próprias mulheres, que a cada dia ganham terreno num campo ainda marcado pela presença masculina. Por meio da internet ou de feiras e produções independentes, bancadas por financiamentos coletivos, elas passaram a dar maior visibilidade às suas produções, muitas vezes à margem do circuito comercial. Uma dessas iniciativas que projetam o trabalho feito por elas surgiu há quatro anos, quando a jornalista Mariamma Fonseca, leitora de HQs desde a infância, decidiu criar um blog com informações sobre mulheres quadrinistas e temas afins, voltado para as amantes do assunto. A ideia nasceu depois que Mariamma sentiu certo incômodo durante uma aula do curso de artes visuais, em que a turma era formada só por homens. Curiosa por saber quais mulheres atuavam no universo dos quadrinhos, perguntou ao professor, que não soube respondê-la. Procurou na internet e também teve dificuldade de encontrar. Daí a decisão de reunir na web produções feitas somente por elas. A iniciativa deu tão certo que o blog logo virou um site, o Lady’s Comics, cujo slogan é HQ não é só pro seu namorado. “Tivemos um retorno muito rápido. Muitas leitoras se identificaram e apoiaram a iniciativa. Inicialmente a ideia era dar visibilidade. Acabou que virou uma rede de apoio para encontrar referências, debater o tema e também uma forma de empoderar as meninas, fazer com que elas se sintam acolhidas e motivadas a trabalhar com isso. Procuramos também incentivar a leitura de quadrinhos”, revela Mariamma Fonseca, que hoje cuida do site junto com outras duas amigas, Samanta Coan e Samara Horta, também apaixonadas por HQs. Além de entrevistas com as mulheres que transitam pela arte sequencial, o site reúne informações de lançamentos e encontros e artigos sobre a presença feminina no universo das HQs. Em um deles, elas criticam o depoimento de ninguém menos que Maurício de Souza, criador da Turma da Mônica. Ao responder a reclamação do público sobre a falta das mulheres no mercado, na edição de 2013 da Feira do Livro de Frankfurt, ele teria dito que a “mulher ainda não tem essa liberdade sem vergonha que homem tem, de trabalhar sem horários, voltar para casa tarde. Tem outras obrigações além do trabalho, tem que cuidar da casa, dos filhos. Quadrinho exige muito tempo de dedicação”. Numa espécie de editorial, elas logo rebateram: “fica claro cada vez mais que já passou da hora de se discutir a invisibilidade das quadrinistas no Brasil. Sem vitimismo, o fato é: temos muitas quadrinistas produzindo. Temos autoras, roteiristas, coloristas, arte-finalistas e todas as ‘istas’ que envolvem os qua- “As mulheres sempre foram representadas de forma estereotipadas”. drinhos brasileiros. E elas dão duro (assim como todos da área) para terem seus trabalhos reconhecidos, divulgados e vistos. Ainda assim, insistem em dizer que somos poucas, que não nos interessamos ou que não somos competentes para isso. Estamos cansadas de ser ignoradas”. A reação delas ecoou e, no ano seguinte, foi promovido o primeiro encontro de mulheres quadrinistas do Brasil, em Belo Horizonte, para debater a presença delas no mercado editorial e os padrões estéticos presentes nas histórias em quadrinhos. “As mulheres sempre foram representadas de forma estereotipada. Sempre foi peitão e bundão, porque por um bom tempo o mercado era feito basicamente por homens. A representação tem de ter uma pesquisa profunda. Não pode ser feita sem entender o universo feminino”, explica Mariamma Fonseca. Uma polêmica dessa natureza chegou recentemente à indústria dos quadrinhos. Em agosto passado, a Marvel Comics pediu desculpas publicamente, em um comunicado oficial, após a capa de uma edição da Mulher-Aranha feita pelo italiano Milo Manara ter sido recebida com críticas, em função da pose erótica da protagonista. O editor-chefe da empresa justificou-se e disse que a capa de Manara não seria a principal, mas sim uma edição limitada para colecionadores. “A gente tem esse problema. Parece que toda personagem tem de ser jovem, bonita, magra, branca e gostosa. É muito redutor e acaba gerando esse problema de identificação e afastando leitoras desse universo”, pondera Ana Luiza Koehler, uma das curadoras do Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ/BH). Aliás, ela é a primeira mulher Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 124 124 Revista Elas por Elas - Abril 2015 Fernanda Torquato seguiu o mesmo caminho. Depois de publicar seus trabalhos na internet, a quadrinista lançou pela mesma editora, no início deste ano, o Gata Garota, história inspirada em dois dos cinco gatos de estimação que cria em casa. “As mulheres estão se interessando mais e produzindo mais, e as grandes editoras estão preocupadas em publicar histórias feitas por nós porque precisam atender à demanda crescente de leitoras”, avalia Samanta Coan. Segundo a pesquisa- dora e historiadora Natânia Nogueira, apesar dos obstáculos, o cenário é promissor para as mulheres, sejam elas leitoras ou profissionais da arte sequencial. “A sociedade é muito injusta em relação ao trabalho feminino. Ainda há muita resistência, mas a participação das mulheres está crescendo bastante. Até na área da pesquisa. Temos uma associação de pesquisadores. Dos 43 membros, 15 são mulheres, e a tendência é aumentar”, comemora Natânia Nogueira. POLLYANA BITENCOURT a exercer essa função no evento, criado há 18 anos. Arquiteta de formação, a ilustradora pretende lançar neste ano sua primeira HQ, intitulada Beco do Rosário, em que a narrativa se passa na década de 20, em Porto Alegre, e traz uma personagem negra como protagonista – Vitória Azambuja, uma escritora que vai colocar seu talento a serviço dos que estão sendo despejados de suas casas para a abertura das grandes avenidas. “Acho que o principal desafio é quebrar esta barreira do mercado, que tenta nos inserir em um nicho, de que história feita por mulher é apenas para mulher. Fazemos histórias para todo mundo”, afirma. Polêmicas à parte, é fato que elas têm conquistado mais espaço até mesmo no mercado editorial, ainda que timidamente, graças ao talento e à divulgação na internet. Bianca Pinheiro ilustra bem isso. Depois de ganhar visibilidade na web, a ilustradora e quadrinista recebeu o convite da editora Nemo para publicar um de seus trabalhos, o Bear, a simpática história da pequena Raven que, após se perder de seus pais, encontra o urso Dimas, que a ajuda na sua busca. O livro já está no segundo volume. “A gente aprende desde cedo que não há mulheres nos quadrinhos. Mas a arte é do ser humano, independentemente de gênero. Então, se há algum papel [dela no universo dos quadrinhos], é o de inspirar outras mulheres, para mostrar ao mundo o nosso trabalho também”, opina. Bianca Pinheiro também retomou na internet o projeto Pequenas satisfações humanas, com a publicação diária de um desenho com pequenos prazeres, e publicou neste ano, de forma alternativa, outro HQ, o Dora, em que uma mãe tenta defender a filha da acusação de ter matado quinze pessoas. Samara Horta, Mariamma Fonseca e Samanta Coan, do Lady’s Comics. Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 125 125 ARQUIVO PESSOAL ENTREVISTA GABRIELA MASSON Masturbação é um ato de autonomia da mulher Quadrinista defende a emancipação feminina na exploração da própria sexualidade Gabriela Masson desenha desde criança, mas foi só há pouco tempo, cerca de dois anos, que começou a trabalhar com quadrinhos. A motivação surgiu durante o curso na Faculdade de Artes Plásticas da Universidade de Brasília, ainda em fase de conclusão. Hoje, a quadrinista, de 25 anos, assina como Lovelove6 seus trabalhos, que circulam bem e ganham projeção na web. “Considero estar sendo muito bom e produtivo para mim. Recebo muitos e-mails de pessoas que leram e de pessoas que começam a produzir e me falam que foi por inspiração de um quadrinho meu. As vendas também são um parâmetro para entender se está dando certo”, afirma Gabriela Masson. Feminista, ela está finalizando a impressão de uma de suas principais produções, a história em quadrinho Garota Siririca – bancada por um financiamento coletivo –, cuja personagem é uma garota viciada em se masturbar. “Acho que existe um protagonismo na mulher quando ela decide explorar a sua própria sexualidade. Hoje até penso que masturbação é um ato de autonomia, um ato político de emancipação importante para a mulher”, defende a jovem, autora também do zine Ética do Tesão na Pós-Modernidade, volumes 1 e 2, entre outros trabalhos. Confira abaixo a entrevista. Quem é a Garota Siririca e como surgiu a ideia de criá-la? A Garota Siririca é uma menina viciada em masturbação, que passa os dias fazendo isso e acaba envolvendo as amigas dela em sua obsessão. Ela surgiu a partir das minhas próprias experiências, a princípio, e depois, para desenvolvê-la, passei a conversar com muitas outras mulheres a respeito de sexualidade, masturbação e feminismo. Eu pesquiso muito a respeito da vulva e de sexualidade também. Muito a respeito do feminismo e converso muito com minhas amigas. Outras mulheres me mandam emails voluntariamente contanto histórias engraçadas. Tudo isso me ajuda bastante a criar. Daí a Garota Siririca foi virando outras coisas. Hoje considero que é uma história especialmente sobre relações lésbicas. Toca muito no tema de amizade entre mulheres também. Por que escolher falar sobre sexo e para as mulheres? Um pouco antes de começar a fazer a Garota Siririca, procurei conhecer o que estava acontecendo nos quadrinhos nacionais. Reparei que tinha uma au- Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 126 126 sência muito grande de personagens que fossem mulheres construídas numa perspectiva feminista. A maneira como as mulheres são representadas nos quadrinhos, tanto nacional quanto mundialmente, é um problema. Geralmente apela-se para estereótipos desprezíveis, humilhantes e, quando percebi isso, tive muita vontade de desenvolver essa personagem que estava faltando, que eu mesma gostasse de me identificar. Paralelo a isso estava acontecendo coisas em minha vida, em relação à masturbação é à minha sexualidade. Percebi que faltava muito espaço para ter um diálogo a respeito disso. Aí meio que juntei as duas coisas. Resolvi tentar trabalhar essa ausência de uma personagem representativa e essa ausência de diálogo a respeito de masturbação, feminismo e sexualidade nos quadrinhos. Porque masturbar ainda é um tabu entre as mulheres, não é? Muito grande. Acho que especialmente no círculo social de classe média, com acesso ao Facebook, talvez uma pequena parcela de garotas jovens já esteja falando muito mais a respeito disso. Mas em geral, na sociedade, é um grande tabu. Conheci histórias bem tristes, de mulheres que sentem nojo do próprio corpo. Isso acaba as levando a se submeter a algumas relações muito nocivas quando vem o momento de se relacionar sexualmente. Em que medida o feminismo ajudou a Garota Siririca? Acho que se eu não fosse feminista e tivesse decidido fazer algum tipo de quadrinho erótico, nunca sairia algo como a Garota Siririca. Antes de me tornar feminista, já lia quadrinhos eróticos e gostava muito. Acho que eu Revista Elas por Elas - Abril 2015 iria reproduzir muito do que tem sido feito nacionalmente aí, uma abordagem da sexualidade muito heterossexual, heretocentrada, geralmente homofóbica, lesbofóbica, transfóbica. Como você definiria a sexualidade hoje? Existem muitas formas de expressar e praticar a sexualidade, mas acho que se tem algo que poderia generalizar é que todas elas são fluidas, apesar de muitas pessoas engessarem a sua sexualidade em algum momento. Acredito que isso não é natural... Engessar em que sentido? Por exemplo, acreditar, ao longo da educação que a sociedade dá pra gente, que o homem é necessariamente heterossexual. O cara acredita com todas as forças que é isso mesmo, que ele nasceu para ser hétero e será hétero até o fim da vida. Acho que essa é uma visão muito engessada da sexualidade e uma maneira conservadora de lidar com o próprio corpo e com as pessoas. Acho que a sexualidade é naturalmente fluida. Mas aí depende do moral da pessoa e o quanto ela está disposta a deixar fluir sua sexualidade e descobrir como se sente melhor praticando isso. Você disse em entrevista que a gente vive em uma situação de extremo cerceamento do próprio corpo. Gostaria que falasse mais a respeito disso. A ausência de diálogo a respeito de sexualidade, de educação sexual, masturbação, especialmente voltada para mulheres que nasceram com vulvas e se identificam como mulheres, trabalha Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 127 127 no sentido de tirar toda intimidade que a mulher poderia ter com o próprio corpo. Ao longo do nosso amadurecimento sexual, na verdade a gente acaba perdendo a intimidade com o próprio corpo. Eu vejo isso se refletir na vida delas quando há mulheres com trinta anos dizendo que odeiam se masturbar, que gostam mesmo é de sexo, mas que nunca tiveram um orgasmo, só se relacionam com homens e têm tendência a entrar em relacionamentos abusivos. Acho que tudo isso é realmente um fruto objetivo de toda essa falta de diálogo que existe, desse cerceamento do conhecimento e das possibilidades que a mulher pode ter para desenvolver a sexualidade dela. Você também já disse que sexo é política. Em que medida sexo é política? Quis dizer que a maneira como nós praticamos o sexo se reflete politicamente na maneira como agimos socialmente. Acho que existe um protagonismo na mulher quando ela decide explorar a sua própria sexualidade. Hoje até penso que masturbação é um ato de autonomia, um ato político de emancipação importante para a mulher. A partir daí a gente afirma muitas coisas. Uma mulher que começa a se masturbar na intimidade de casa, não tenho dúvida de que a maneira como ela vai se comportar no mundo vai ser diferente, a partir dessa experiência que tem como ela mesma. Inclusive acho que pode ser político sim quando mulheres se relacionam sexualmente com mulheres. Simbolicamente e politicamente é muito forte a mensagem. E entendo que existem mulheres que preferem se relacionar apenas com mulheres por questões políticas, moti- vadas pelos contextos sociais que às vezes são muito opressores e violentos. Então quando falo que sexo é política, quero dizer que se a mulher se propõe a ser protagonista da própria sexualidade e não se submeter aos preconceitos e a relações abusivas, a partir da relação sexual que ela tem com ela mesma e com as pessoas em volta dela, age politicamente de uma forma diferente no mundo. No entanto esse não é o quadro atual. É possível alterá-lo? Bom, não sei, na verdade. Acho que o movimento feminista está fazendo avanços maravilhosos no Brasil e no mundo em termos de sexualidade, de direitos de reprodução, mas todo esse avanço gera uma reação muito forte, muito violenta. Acho que essa mudança está acontecendo também especialmente entre mulheres jovens, de classe média, mas sim, tenho esperanças. A gente precisa é de mulheres mais velhas, inseridas em outros contextos, que estejam interessadas em conversar a respeito dessas questões, numa perspectiva feminista com suas amigas, com as mulheres mais próximas delas. Aí é possível o feminismo começar a brotar e ter um efeito maior nos contextos sociais. “Ao longo do nosso amadurecimento sexual, acabamos perdendo a intimidade com o próprio corpo”. Sobre o trabalho das mulheres quadrinistas, você também acredita que elas têm hoje mais visibilidade e espaços? A gente está conquistando, construindo espaços. Acho que tem pouco a ver com nossos colegas quadrinistas homens reconhecerem o valor dos nossos quadrinhos ou do nosso movimento. Inclusive a gente entra muito em conflito. Apesar de estar conseguindo me aproximar desses lugares superdominados por homens, acredito cada vez mais que só vai dar certo mesmo se for uma coisa entre as mulheres. Essa é a grande resposta. Fazendo feira, colocando a mão na massa, fazendo quadrinho, recorrendo a financiamento coletivo, criando grupos para conversar sobre quadrinhos, dar oficinas uma para a outra, acho que é assim. Pelo que tenho observado, desde que comecei a fazer quadrinhos, tem sido assim. Não foi porque os caras acharam massa, porque até hoje eles não acham. Nem sei se é o caso de esperarmos que a indústria e os meios de comunicação mudem a cabeça. Estou mais apostando em criar novos espaços com essas mulheres que querem fazer e não depender dessa galera para aparecer e vender nossas coisas. E o que gosto mais em toda a cena de quadrinhos entre as mulheres é exatamente essa visão feminista, que ainda bem que a grande maioria de nós compartilha, ainda que haja algumas desavenças em alguns detalhes. Acho que não adianta mais mulheres fazendo quadrinhos se essas mulheres não são feministas. Para fazer mudanças em direção à promoção da igualdade e respeito pela mulher, tem de ser feminista, se não a coisa não anda.ø Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 128 Miriam Alves, do coletivo Bloco das Pretas: “a arte educa e sensibiliza a sociedade”. Revista Elas por Elas - Abril 2015 foto DENILSON CAJAZEIRO 128 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 129 129 CULTURA NEGRA por DENILSON CAJAZEIRO Arte e resistência Por meio de intervenções artísticas, mulheres colocam em pauta a agenda feminista Literatura, música, teatro, dança, performance e outras formas de arte e cultura feitas por mulheres tomaram conta de vários espaços do centro e da periferia de Belo Horizonte e região metropolitana, entre os dias 6 e 8 de março deste ano. As cerca de 130 apresentações foram gratuitas e fizeram parte da mostra Diversas – feminismo, arte e resistência, evento promovido por grupos e coletivos de mulheres. O evento, que também contou com oficinas em ocupações urbanas sobre feminismo e rodas de conversa, propôs o debate, por meio das intervenções artísticas, de temas da pauta feminista, como a violência contra as mulheres, a participação delas no mercado de trabalho, a mercantilização do corpo, a sexualidade e os direitos reprodutivos, a luta das mulheres negras, entre outros. Um dos coletivos que participou da mostra foi o Bloco das Pretas, criado há três anos dentro da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e formado por cerca de 25 mulheres. Atualmente, uma das principais intervenções do grupo é o sarau poético, que reúne música, expressão corporal e poesia. “A expressão corporal é muito definidor da mulher negra. Quando tratamos do racismo e do machismo, isso está no corpo dela, além do aspecto cultural mesmo, pois as mulheres negras têm uma expressão muito forte”, afirma a integrante do coletivo e estudante de Pedagogia Miriam Gomes Alves, para quem a arte é uma maneira de sensibilizar as pessoas. “Às vezes, só pela discussão teórica não se consegue sensibilizar todos os sujeitos. A arte tem esse caráter de sensibilizar e educar a sociedade”. Em vários espaços públicos da cidade, as integrantes do grupo já se apresentaram e discutiram temas como a invisibilidade da religião de matriz africana ou a violência obstétrica. Na mostra Diversas, o grupo apresentou um sarau com o tema apropriação cultural, em que lançou um olhar crítico sobre o uso de elementos da cultura negra no Carnaval de Belo Horizonte deste ano, e ministrou oficinas na ocupação Guarani Kaiowá sobre gênero e identidade. “Somos mulheres negras da periferia e queremos trabalhar com grupos periféricos, por meio das intervenções, do empoderamento da mulher negra e do incentivo à escrita. O objetivo é sair do espaço acadêmico e ir para a periferia”, revela. Outro coletivo que participou da mostra e propôs a discussão sobre a pauta racial foi o Negras Ativas. Criado em 2003, o grupo desenvolve atividades artísticas, culturais e formativas, a partir da valorização dos saberes das mulheres negras nas comunidades. O trabalho mais recente delas foi o documentário A arte de ser, exibido na mostra, que aborda a inserção de jovens mulheres na cena do hip-hop de Belo Horizonte. “Aos poucos, as meninas estão quebrando os estereótipos e rompendo a cultura machista que há no hip-hop”, aponta Joseli Rosa de Souza, integrante do Negras Ativas. “Entendemos que com a arte conseguimos trazer mais mulheres para a discussão. A arte pode possibilitar a construção de uma política diferenciada. É uma forma de denunciar usando a arte”, afirma. O grupo também promoveu durante a mostra uma roda de conversa, em que discutiram as bandeiras das mulheres negras e divulgaram a agenda da Marcha das Mulheres Negras deste ano – a estadual será em 13 de maio, na Praça Sete, no Centro de Belo Horizonte, e a nacional será em Brasília, em 18 de novembro. “Marcharemos em homenagem às nossas ancestrais e em defesa da cidadania plena das mulheres negras brasileiras”, defendem as entidades que participam do comitê organizador da Marcha, em texto publicado no site da atividade (www.2015marchamulheresnegras.com.br).ø Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 130 130 POR MÁRCIA ARTIGO MENDONÇA foto ASSOCIATED PRESS Muito além do feminino e do masculino Moda: um campo no qual representações e simbolismos ganham dimensão Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 131 131 Uma bela discussão sobre gênero. Novo diretor-criativo da Gucci, Alessandro Michele, passou por prova de fogo na grife ao apresentar, em janeiro deste ano, em Milão, a coleção masculina de inverno 2016, propondo que o homem use roupas com influência do guarda-roupa feminino. E mais, colocou mulheres desfilando suas criações masculinas na passarela. Miuccia Prada trouxe também para sua coleção 2016, jaquetas curtas e calças afuniladas, endossando a ideia. Para ela, há uma evolução nesse movimento, e a moda masculina, muito previsível e limitada, vem buscando novas influências, e a tendência é a de que o feminino e o masculino se aproximem cada vez mais. Para o estilista brasileiro João Pimenta, “estamos tão avançados que não faz sentido discutirmos o que é masculino e o que é o feminino hoje”. Até o momento nenhuma novidade. Não é de hoje que a moda flerta com a discussão sobre gênero e sobre a histórica interface entre masculino e feminino. Coco Chanel, no início da década de 1920, apropriou-se de suéteres, terninhos, casacos, calças−peças exclusivamente masculinas, para criar looks que tornaram-se atemporais, dando início à relação entre mulheres e a alfaiataria, muito presente nas vestimentas femininas durante a Segunda Guerra Mundial e cada vez mais em destaque na contemporaneidade. Chanel rompeu com a rigidez do traje feminino e imprimiu um estilo de se vestir mais simples, e que chamamos hoje de minimalista. Em 1930, a atriz Marlene Dietrich provocou enorme frisson ao usar um modelo de terno e gravata no filme Marrocos, de Josef Von Stenberg. Dietrich acabou por ditar moda no período entreguerras (1914-1918 e 1939-1945), provocando grande discussão sobre o reposicionamento da mulher e sua afirmação na sociedade moderna. Nos anos 50, o rock influenciou a moda e levou para o guarda-roupa feminino e masculino a calça jeans e a camiseta. Na década seguinte, nova explosão, com Mary Quant e o surgimento da minissaia, Yves Saint Laurent com o smoking feminino, Paco Rabane e suas criações futuristas. Da segunda metade do século XX até os dias atuais, foram, e são, muitos os estilistas que dialogoram e interpretaram – e que dialogam, cada vez mais –, com o feminino/masculino. Muitas são as reinvenções, apropriações e assimilações na moda, e a androginia – ou inversão de gêneros, ou a soma dos dois ou nenhum dos dois –, tamanha é a discussão e reflexão sobre o assunto que tem se intensificado cada vez mais nesse campo. Para a feminista Judith Butler, “o gênero deixou de ser uma identidade estável, ou lugar de agenciamento do qual as ações procedem. O gênero é uma identidade tenuemente constituída por meio da repetição estilizada de atos, gestos, performances variadas que constroem a ilusão de self com a sexualidade definida”. Nessa perspectiva, recorremos ao filme Orlando, realizado em 1992, pela cineasta inglesa Sally Potter, como forma de tematizarmos o assunto. O ponto de partida do filme é a obra homônima Orlando, de autoria da escritora inglesa Virgínia Woolf. Nascido homem, o lorde Orlando, após séculos de existência e desventuras (a obra de Woolf situa-se em quatro séculos, do século XVI ao início do século XX), acorda, num belo dia, mulher. É ordenado pela Rainha Elizabeth I a permancer eternamente jovem, e sai de sua condição de aristocrata para dândi, dama, andrógino. Sua mudança mais radical é sua transformação sexual, seguida de seus relacionamentos, afetos, desacertos. Woolf criou uma das obras mais instigantes da literatura mundial sobre a discussão do gênero, adaptada de maneira extremamente original por Potter. A escolha de Tilda Swinton para viver Orlando é mais do que acertada, pois é uma das atrizes mais andróginas que o cinema já teve. Em 2013, estrelou campanha da marca Chanel e foi fotografada por Karl Lagerfeld. Para o papel da Rainha Elizabeth I, o ator Quentin Crisp foi escalado por Sally Potter. O figurino, assinado por Sandy Powell, é surpreendente, afinal, abrange quatro séculos, épocas e estilos distintos, como o rococó, o clássico e o moderno. É impecável ainda na direção de arte e fotografia, e chegou a ser indicado a dois Oscar, o de Melhor Direção de Arte e Melhor Figurino. Orlando nos conduz a uma discussão pertinente que permeia arte, gênero, moda, sexualidade e corpo, e que nos leva a refletir quanto a moda e a subjetividade são indissociáveis, e comportam ambiguidades, paradoxalidades, ideologias e identidades múltiplas. Pensar a moda, neste contexto, é observar, analisar seus discursos, sua multiplicidade de cenários e de propostas, cada vez mais mutantes e feéricas, deixando de lado seu ar de frivolidade, tornando-se, um campo no qual as representações, os simbolismos, os questionamentos e os dilemas ganham dimensão. Afinal, a moda pensa além do feminino e do masculino.ø Márcia Mendonça é historiadora, professora e jornalista Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 132 132 POUCAS E BOAS INTERNET Homens em prol dos direitos das mulheres No ano passado a ONU lançou, em Nova York, a campanha HeForShe. Criada para mobilizar homens e meninos em prol dos direitos das mulheres e da igualdade de gênero, a campanha tem como principal divulgadora a atriz e embaixadora da Boa Vontade da ONU Mulheres, Emma Watson. O pontapé inicial da campanha foi dado na sede das Nações Unidas em setembro de 2014. No evento do lançamento global, os homens foram colocados como ativistas fundamentais para acabar com as desigualdades enfrentadas diariamente por todas as mulheres. Até setembro de 2015, a campanha pretende mobilizar um bilhão de homens e meninos ao redor do mundo como defensores e agentes da transformação. No site heforshe.org é possível também encontrar um mapa em tempo real que mede o envolvimento dos homens com a iniciativa em todo o mundo. Titularidade para as mulheres nos programas sociais Tribunal do RJ tem a primeira desembargadora negra Entrou em vigor no ano passado a Lei nº 13.014. Agora, assim como no Bolsa Família, outros programas assistenciais e de transferência de renda do governo federal adotarão o pagamento preferencial à mulher responsável pela unidade familiar. A lei alterou a Lei Orgânica da Assistência Social (Lei 8.742/1993) que dispõe sobre a organização da assistência social e a Lei 12.512/2011 que institui o Programa de Apoio à Conservação Ambiental e o Programa de Fomento às Atividades Produtivas Rurais. Aos 69 anos de idade, Ivone Ferreira Caetano, titular da 1ª Vara da Infância da Juventude e do Idoso tornou-se a primeira desembargadora negra do estado do Rio de Janeiro. Segunda mulher negra do Brasil a ocupar o cargo de magistrada, ela foi escolhida entre 16 juízes que concorriam ao cargo, sendo eles nove mulheres e sete homens. Com uma trajetória de vida de superação e luta contra o preconceito, Ivone é filha de uma lavadeira que criou sozinha onze filhos. A juíza começou a faculdade de direito aos 25 anos, apenas ingressando na escola de magistratura aos 49 anos. Revista Elas por Elas - Abril 2015 Mulheres no Poder http://www.mulheresnopoder.com.br Homens pelo fim da violência contra as mulheres http://www.homenspelofimdaviolencia.com.br Geledes http://www.geledes.org.br/ Blogueiro negras http://blogueirosnegras.org Laço branco http://lacobrancobrasil.blogspot.com.br Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 133 133 LIVROS FILMES Backlash: o contra-ataque na guerra não declarada às mulheres Autora: Susan Faludi Editora Rocco A década de 1980 deflagrou um implacável contraataque às conquistas femininas, que opera em dois níveis: convencer as mulheres de que seus sentimentos de angústia e insatisfação são resultado do excesso de independência, ao mesmo tempo em que destrói gradativamente os mínimos avanços que as mulheres realizaram no trabalho, na política e em sua forma de pensar. Susan Faludi, prêmio Pulitzer de jornalismo, mostra como a imprensa se ocupou em repercutir essas mensagens ao dar um cunho moralista às notícias e reportagens, e manipular estatísticas. O segundo sexo Autora: Simone de Beauvoir Editora Nova Fronteira Provedora, vassala, acolhedora. Não importa como se apresenta, o lugar da mulher sempre foi definido pelo homem. Este configura a posição central na sociedade. O homem que tomou para si a definição de ‘ser humano’ relega à mulher uma posição secundária, um papel de coadjuvante na História. Foi a partir dessa constatação e da pergunta ‘o que é uma mulher?’, que a filósofa existencialista Simone de Beauvoir deu início à sua reflexão para escrever O segundo sexo. O mito da beleza Autora: Naomi Wolf Editora Rocco Para mostrar como a indústria da beleza e o culto à bela fêmea manipulam imagens que minam a resistência psicológica e material femininas, reduzindo as conquistas de 20 anos de lutas a meras ilusões, Naomi Wolf escreveu um livro com dados estatísticos. Em O mito da beleza, Naomi enfrenta o que ela acredita ser a única trincheira ainda por derrubar para que a mulher possa obter sua igualdade em todos os campos. Viagem no vagão de Lia Autora: Celina Maria Coelho Editora: Aquarela A narrativa revela a vida de Lia desde antes de conquistar um vagão de trem da extinta Central do Brasil. Maria de Oliveira (1941 – 2013) fez deste vagão morada e ao seu redor construiu uma casa, plantou árvores, criou bichos, transformou lixo em arte. Tornou-se alvo dos olhares da mídia, de estudantes, de curiosos. No livro, a autora trata dos desafios enfrentados pela protagonista, na trajetória desde o Espírito Santo, onde nasceu, passando pelo Rio de Janeiro, Nanuque e Belo Horizonte, para culminar, em Contagem, sua saga triunfal para se tornar a “Lia do Vagão”. Rosa de Luxemburgo Direção: Margarethe Von Trotta Gênero: Drama Nascida na Polônia e doutora em Ciências Econômicas, Rosa Luxemburgo torna-se uma das grandes líderes do movimento operário revolucionário alemão, adere ao Partido Social-Democrata alemão em 1898 e em 1914 rompe violentamente com essa agremiação. Rosa, a Vermelha, como era conhecida, visceralmente internacionalista e antibelicista condena como uma traição o apoio dos social-democratas à deflagração da Primeira Guerra Mundial. Violette Direção: Martin Provost Gênero: Drama, Biografia O filme aborda o relacionamento entre Simone de Beauvoir, uma das maiores feministas da história, e a escritora Violette Leduc. Em Paris, meados do século XX, Violette se vê como uma mulher feia e desinteressante. Porém, se por um lado a ausência de autoestima domina a sua vida, por outro a faz refletir sobre as relações entre as pessoas e, em especial, sobre a condição feminina. Nunca sem minha filha Direção: Brian Gilbert Gênero: Drama Betty está casada há sete anos com o iraniano naturalizado americano Moody. Os dois têm uma pequena filha a quem amam muito. Com a troca de poder no Irã, Moody decide que é hora de voltar. Contrariada, Betty aceita ir, mas ao chegar lá, descobre que foi enganada e que seu marido não é quem ela pensava. Revista Elas por Elas - Abril 2015 Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 134 RETRATO Izabel Mendes Falecida em outubro de 2014, aos 90 anos, foi exemplo da coragem das mulheres artesãs do Vale do Jequinhonha. Em 2003, as bonecas de dona Izabel foram parar na São Paulo Fashion Week. Ela recebeu vários prêmios, como o Unesco de Artesanato para a América Latina (2004), a Ordem do Mérito Cultural (concedida pelo Ministério da Cultura, 2005) e o Prêmio Culturas Populares (Ministério da Cultura, 2009). Também homenageada pela presidenta Dilma Rousseff durante a abertura da exposição Mulheres foto ARQUIVO UFMG artistas e brasileiras. Capa Elas por elas 2015b.pdf 1 27,13,2015 16:15 C M Y CM MY CY CMY K Filiado à Fitee, Contee e CTB www.sinprominas.org.br REVISTA ELAS POR ELAS - ABRIL DE 2015 - NÚMERO 8 MARÇO 2015 NÚMERO 8 Ciganas Entre o mito e a realidade SER MÃE Mães em restrição de liberdade POLÍTICA Longe das cotas de gênero