Elas por Elas

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Elas por Elas
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27,13,2015
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Filiado à Fitee, Contee e CTB
www.sinprominas.org.br
REVISTA ELAS POR ELAS - ABRIL DE 2015 - NÚMERO 8
MARÇO 2015
NÚMERO 8
Ciganas
Entre o mito e
a realidade
SER MÃE
Mães em restrição de liberdade
POLÍTICA
Longe das cotas de gênero
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Elas por elas mesmas
Em sua oitava edição, a revista Elas
por Elas traz muitas histórias de mulheres que vivem realidades diversas.
São ciganas, circenses, escritoras, sindicalistas, cabeleireiras, professoras,
políticas, quadrinistas, presidiárias, feministas, etc. Não importa quais papéis
exerçam na vida ou na sociedade, são
mulheres de fibra que enfrentam o desafio de lutar contra o machismo, a
violência e a discriminação.
Elas por elas mesmas descrevem a
dor e a delícia de serem mulheres. E
assim, como numa colcha de retalhos
multicolorida, essas diferentes vivências
nos trazem encantamento e importantes
reflexões sobre o universo feminino.
Cabelo, imagem, maternidade, sexualidade, educação, violência, seja qual
for o tema abordado, em todas as reportagens há sempre uma personagem
guerreira. Uma mulher que superou
desafios, que foi à luta, que não esmorece diante de uma sociedade que dá
passos lentos em direção à igualdade
de gênero.
Ser mãe em situação adversa é um
dos destaques dessa edição. Falamos
das mães que vivem nas ruas e convivem
com as drogas, das que são impedidas
de parir em sua própria cidade, das
que sofrem restrição de liberdade e
são obrigadas a se separar de seus
filhos, assim como daquelas que tornam
suas as crianças que outras mães não
puderam cuidar. São mulheres de coragem e mães por vocação.
A revista traz a triste realidade das
mulheres em situação de abandono
nas ruas, assim como aborda o mundo
controverso das ciganas e das mulheres
que vivem no circo. Também debatemos
sobre a participação das mulheres no
sindicalismo e na política, um universo
onde as mulheres driblam o machismo
e sonham em ocupar cada vez mais
espaços de poder.
O feminismo também é evidenciado
por uma nova geração de mulheres na
América Latina que, a exemplo das lutadoras do passado pela emancipação
feminina, são aguerridas e fazem a
gente acreditar que o futuro pode ser
diferente. A propósito, esse ano faz
20 anos que feministas de todo o mundo se encontraram em Pequim para a
conferência da ONU que estabeleceu
uma plataforma de ações pela igualdade
de gênero. Nesse cenário, a violência
ainda é um dos maiores desafios a
serem enfrentados. A notícia boa é
que no Brasil a Lei Maria da Penha reduziu em 10% os homicídios contra as
mulheres e o feminicídio se tornou
crime hediondo.
Com cada vez mais exemplos de
autoestima, beleza, raça e cultura, as
mulheres negras têm seu espaço
garantido na revista, pois suas bandeiras são de todos/as que lutam por uma
sociedade mais justa e igualitária. Também estamos de olho na aplicação da
lei 10.639, que determina o ensino de
história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas do país, e
recomendamos a leitura da entrevista
com a professora Mara Evaristo. Na
literatura, a história imperdível é a da
catadora de papel que virou escritora
com repercussão internacional. Carolina de Jesus foi uma idealista que,
mesmo diante do preconceito por ser
mulher, negra e favelada não desistiu
de seus sonhos.
Com tantas histórias e exemplos,
desejamos que essa publicação seja
mais que um entretenimento. Possa
ser um material de reflexão e instrumento para a educação e formação de
uma consciência pela igualdade e diversidade de gênero, raça/etnia e sexo.
Boa leitura!
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RECONHECIMENTO
7
Elas por Elas recebe
menção honrosa em
prêmio nacional de
jornalismo
Pág
POLÍTICA
24
Longe das cotas
de gênero
Pág
DIREITOS
50
Em busca de um
novo rumo
Pág
HOMENAGEM
8
Celina Arêas
Exemplo de dedicação
Pág
ENTREVISTA
Pág
SINDICAL
10
Pela igualdade
de gênero
38
Pág
SER MÃE
56
Mães em restrição
de liberdade
Pequim+20
Nadine Casman
Pág
HOMENAGEM
42
Uma mulher impossível
Rose Marie Muraro
Pág
SER MÃE
64
Mãe coragem
Pág
FEMINISMO
Feminismo na
América Latina
18
Pág
Pág
ARTIGO
Em Gaza, nada a
comemorar
Revista Elas por Elas - Abril 2015
46
ARTIGO
Mães de Noronha
68
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Pág
72
CAPA
Dora Alves
Entre o mito e a realidade
Pág
REALIDADE
80
A vida no circo não
é brincadeira
Pág
ENTREVISTA
88
A gente tem uma força
que desconhece
94
Pág
LITERATURA
116
Uma idealista do lixo
Pág
AUTOESTIMA
Debaixo dos caracóis,
muita história
pra contar
Pág
EDUCAÇÃO
100
Diversidade é assunto
de criança
Mara Evaristo
Pág
VIOLÊNCIA
Pág
112
PERFIL
107
Pág
130
ARTIGO
Muito além do feminino
e do masculino
Profissão docente:
uma escolha de valor
Pág
132
POUCAS E BOAS
Pág
134
RETRATO
Revista Elas por Elas - Abril 2015
Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:44 Page 6
6
Departamento de Comunicação do Sinpro Minas: [email protected]
Diretores responsáveis: Aerton Silva e Marco Eliel de Carvalho;
Editora/Jornalista responsável: Débora Junqueira (MG05150JP);
Redação: Cecília Alvim (MG09287JP), Denilson Cajazeiro (MG09943JP),
Nanci Alves (MG003152JP e Saulo Martins (MG15509JP);
Programação visual/Diagramação: Mark Florest;
Design Gráfico: Fernanda Lourenço e Mark Florest;
Revisão: Aerton Silva e Maria Izabel Bebela Ramos
Estagiária: Pollyana Bitencourt
Foto capa: Lais Rodrigues (cigana Dara Amaral)
Conselho Editorial: Antonieta Mateus, Clarice Barreto, Lavínia Rodrigues, Maria Izabel Bebela Ramos,
Marilda Silva, Liliani Salum Moreira, Soraya Abuid, Terezinha Avelar e Valéria Morato.
Impressão: EGL-Editores Gráficos Ltda - Tiragem: 2.000:
Distribuição gratuita: Circulação dirigida
REVISTA ELAS POR ELAS
PUBLICAÇÃO DO DEPARTAMENTO DE
COMUNICAÇÃO DO SINPRO MINAS
ANO VIII - Nº 8 - ABRIL DE 2015
ACESSE AS EDIÇÕES ANTERIORES EM
www.sinprominas.org.br
Elas por elas - nº 7
Diretoria Gestão 2012/2016
Adelmo Rodrigues de Oliveira, Adenilson Henrique Gonçalves, Aerton de Paulo Silva, Albanito Vaz Júnior, Alessandra
Cristina Rosa, Altamir Fernandes de Sousa, Ângelo Filomeno Palhares Leite, Aniel Pereira Braga Filho, Antonieta Shirlene
Mateus, Antonio de Pádua Ubirajara e Silva, Antonio Sergio de Oliveira Kilson, Aparecida Gregório Evangelista, Aristides
Ribas Andrade Filho, Benedito do Carmo Batista, Bruno Burgarelli Albergaria Kneipp, Carla Fenicia de Oliveira, Carlos
Afonso de Faria Lopes, Carlos Magno Machado, Carolina Azevedo Moreira, Cecília Maria Vieira Abrahão, Celina Alves
Padilha Arêas, César Augusto Machado, Clarice Barreto Linhares, Cláudia Cibele Souza Rodrigues, Clédio Matos de Carvalho, Clóvis Alves Caldas Filho, Daniel de Azevedo Teixeira, Débora Goulart de Carvalho, Décio Braga de Souza, Dimas
Enéas Soares Ferreira, Diva Teixeira Viveiros, Edson de Oliveira Lima, Edson de Paula Lima, Eliane de Andrade, Erica
Adriana Costa Zanardi, Estefania Fátima Duarte, Fábio dos Santos Pereira, Fábio Marinho dos Santos, Fátima Amaral
Ramalho, Fernando Antonio Tomaz de Aquino Pessoa, Fernando Dias da Silva, Fernando Lucio Correia, Geraldo Magela
Ribeiro, Gilson Luiz Reis, Gislaine dos Santos Silva, Grace Marisa Miranda de Paula, Haida Viviane Palhano Arantes,
Heleno Célio Soares, Henrique Moreira de Toledo Salles, Humberto de Castro Passarelli, Idelmino Ronivon da Silva, João
Francisco dos Santos, João Marcos Netto, Jones Righi de Campos, José Carlos Padilha Arêas, José Geraldo da Cunha,
José Heleno Ferreira, José Mauricio Pereira, Josiana Pacheco da Silva Martins, Josiane Soares Amaral Garcia, Juliana
Augusta Rabelo Souza, Laércio de Oliveira Silva, Lavínia Rosa Rodrigues, Liliam Faleiro Barroso Lourenço, Liliani Salum
Alves Moreira, Luiz Antonio da Silva, Luiz Cláudio Martins Silva, Luiz Henrique Vieira Magalhães, Luliana de Castro Linhares,
Marcelo José Caetano, Marco Eliel Santos de Carvalho, Marcos Gennari Mariano, Marcos Paulo da Silva, Marcos Vinicius
Araújo, Maria Aparecida Penido de Freitas Zandona, Maria Célia da Silva Gonçalves, Maria Celma Pires do Prado Furlanetto, Maria da Conceição Miranda, Maria da Glória Moyle Dias, Maria das Graças de Oliveira, Maria Elisa Magalhães
Barbosa, Maria Goretti Ramos Pereira, Maria Helena Pereira Barbosa, Maria Nice Soares Pereira, Marilda Silva, Marília
Ferreira Lopes, Marisa Magalhães de Souza, Mateus Júlio de Freitas, Messias Simão Telecesqui, Miguel José de Souza,
Miriam Fátima dos Santos, Moisés Arimateia Matos, Murilo Ferreira da Silva, Nalbar Alves Rocha, Nardeli da Conceição
Silva, Neilon José de Oliveira, Nelson Luiz Ribeiro da Silva, Newton Pereira de Souza, Orlando Pereira Coelho Filho, Paulo
Roberto Mendes da Silva, Paulo Roberto Vieira Junior, Pitágoras Santana Fernandes, Renata Titoneli de Aguiar, Renato
César Pequeno, Rodrigo de Paula Magalhães Barbosa, Rodrigo Rodrigues Ferreira, Rogério Helvídio Lopes Rosa, Romário
Lopes da Rocha, Rossana Abbiati Spacek, Rozana Maris Silva Faro, Sandra Lucia Magri, Sebastião Geraldo de Araújo,
Simone Esterlina de Almeida Miranda, Siomara Barbosa Candian Iatarola, Sirlane Zebral Oliveira, Terezinha Lúcia de
Avelar, Valdir Zeferino Ferreira Júnior, Valeria Nonata Teixeira, Valéria Peres Morato Gonçalves, Vera Lúcia Alfredo, Vera
Lúcia Freitas Moraes, Wagner Ribeiro, Warley Oliveira Drumond, Wellington Teixeira Gomes
SINDICATO DOS PROFESSORES DO ESTADO DE MINAS GERAIS
SEDE: Rua Jaime Gomes, 198 - Floresta - CEP: 31015.240
Fone: (31) 3115 3000 - Belo Horizonte - www.sinprominas.org.br
SINPRO CERP - Centro de Referência dos Professores da Rede Privada
Rua Tupinambás, 179 - Centro - Cep: 30.120-070 - BH - Tel: (31) 3274 5091
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SEDES REGIONAIS:
Barbacena: Rua Francisco Sá, 60 - Centro, CEP: 36.200-068 - Fone: (32) 3331-0635; Cataguases: Rua Major Vieira,
300 - sala 04 - Centro - CEP: 36.770-060 - Fone: (32) 3422-1485; Coronel Fabriciano: Rua Moacir D'Ávila, nº 45 Bairro dos Professores - CEP: 35.170-014 - Fone: (31) 3841-2098; Divinópolis: Av. Minas Gerais, 1.141 - Centro CEP: 35.500-010 - Fone: (37) 3221-8488; Governador Valadares: Rua Benjamin Constant, n° 653/ Térreo, Centro CEP: 35.010-060, Fone: (33) 3271-2458; Montes Claros: Rua Januária, 672 - Centro, CEP: 39.400-077 - Fone: (38)
3221-3973; Paracatu: Rua Getúlio de Melo Franco, 345 - sala 14- Centro - CEP: 38.600-000 - Fone: (38) 3672 1830;
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Dr. Otávio Soares, 41 - salas 326 e 328, Palmeiras - CEP: 35.430-229 - Fone: (31) 3817-2721; Pouso Alegre: Rua
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CEP: 37.010-190 - Fone: (35) 3221-1831.
Revista Elas por Elas - Abril 2015
Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:44 Page 7
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RECONHECIMENTO
Em 2014, a revista Elas por Elas
do Sinpro Minas esteve mais uma vez
em evidência numa premiação nacional. A matéria “O parto é da mulher
– movimentos denunciam a violência
e propõe mudanças para promover o
parto ativo e humanizado”, da jornalista Maria Cecília Alvim Guimarães,
publicada na edição de 2013, recebeu
uma menção honrosa no Prêmio Nacional de Jornalismo sobre Violência
de Gênero.
O prêmio, promovido pela Casa da
Mulher Catarina e pela Rede Feminista
de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos
Reprodutivos, de Santa Catarina, contou com o apoio da Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres da
Presidência da República. A premiação
aconteceu no dia 16 de maio de 2014,
em Florianópolis, juntamente com a
abertura do Seminário Internacional
sobre Mídia e Violência de Gênero.
“Fico muito feliz com o reconhecimento desse trabalho que repercutiu
na minha vida pessoal. O propósito da
reportagem foi evidenciar um tipo de
violência contra a mulher, muito comum
na atualidade, mas ainda pouco conhecida e combatida, a violência obstétrica.
Com isso, colaborar com a conscientização das mulheres sobre o problema,
a fim de que se tornem protagonistas
de suas experiências de parto e assim,
contribuir também com a perspectiva
MARK FLOREST
Elas por Elas recebe menção honrosa
em prêmio nacional de jornalismo
Premiação é comemorada em reunião do conselho editorial.
de que é possível evitar condutas inadequadas na assistência ao parto”, explica
Cecília Alvim. Após escrever a reportagem, a jornalista passou pela experiência
do parto natural.
Foram inscritas 82 reportagens e
15 foram selecionadas entre os primeiros lugares de cada categoria, que receberam R$ 5.000, e as menções
honrosas. O prêmio faz parte da Campanha “Jornalistas dão um ponto final
na violência contra mulheres e meninas”, desenvolvida em outros países da
América Latina e Caribe, incluindo o
Brasil. De acordo com Clair Castilhos,
secretária executiva da Rede Feminista
de Saúde, a proposta da campanha é
contribuir para que jornalistas possam
olhar para o tema da violência de gênero com sensibilidade. “O objetivo da
campanha é dialogar com jornalistas,
de maneira que o tema não seja somente pautado nos meios de comunicação, mas que quando tratado,
considere as relações de gênero, os aspectos culturais que estão ligados a
todos os atos de violência contra meninas e mulheres”, destaca.ø
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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8
HOMENAGEM
POR
SAULO ESLLEN MARTINS
FOTO
MARK FLOREST
Exemplo de dedicação
Celina Arêas recebe condecoração da Justiça do Trabalho
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A diretora do Sinpro Minas e da
CTB nacional, Celina Alves Padilha
Arêas, foi condecorada com a Ordem
do Mérito Judiciário do Trabalho Ari
Rocha em 2014. A medalha é uma iniciativa do Tribunal Regional do Trabalho
de Minas Gerais (TRT-MG) – 3ª Região
e destaca as personalidades que atuam
de forma brilhante no mundo do trabalho.
A indicação da professora e sindicalista mineira foi feita pelo desembargador do TRT/MG, Marcelo Lamego
Pertence. Para ele, Celina é um exemplo de dedicação ao mundo do trabalho
e ao trabalhador. “Seriedade, competência e compromisso são as premissas
dessa medalha e essa mulher tem esse
algo a mais que precisa ser ressaltado.
Pessoa mais indicada não haveria para
receber essa medalha”, frisou.
Celina é sindicalista desde a década
de 1980 e sua história é marcada pela
luta em defesa dos direitos dos professores(as) e demais trabalhadores(as). Foi
diretora de Comunicação Social da Contee, por duas gestões – de 1997 a
2000 e de 2000 a 2003 – e também
diretora de Assuntos Educacionais por
uma gestão, de 2006 a 2009.
Nascida no Vale do Jequitinhonha,
na cidade de Rubim/MG, começou a
trabalhar como professora primária, lecionando Língua Portuguesa e Inglês.
Veio para Belo Horizonte em 1972,
quando começou a dar aulas também
no setor privado. Filiou-se ao PCdoB
em 1973, com o partido na clandestinidade, e em 1977 ingressou na militância sindical, participando da onda
grevista que ocupou o país em 1979.
Sua caminhada junto aos professores
culminou em dois mandatos como presidenta, nas gestões entre 1995 a 2000.
A desembargadora Maria Laura Franco Lima de Faria, presidente do TRT-
MG, destacou a importância do momento como a oportunidade de reverenciar os “cidadãos e entidades que
prestam relevantes serviços ao bem comum e que contribuem ou contribuíram
com ações de engrandecimento da Justiça do Trabalho e promoção das instituições livres e da democracia”.
Para a vice-presidenta do Sinpro
Minas, Valéria Morato, a homenagem
representa o reconhecimento do trabalho do sindicato dos professores na
pessoa da Celina. “Ela é uma grande
lutadora, foi presidente do Sinpro numa
época em que as mulheres ainda encontravam muitas dificuldades para
ocupar espaços de poder e nem por
isso deixou de lutar pela categoria e
por melhores condições de vida para
os trabalhadores. Assim, é uma honra
para todos nós essa homenagem do
Tribunal do Trabalho”.
De acordo com Celina, a medalha
é de extrema importância para o sindicalismo mineiro e nacional, porque
reconhece o trabalho coletivo que vem
sendo feito: “essa medalha não é individual, ela sintetiza o trabalho do sindicato dos professores, da Central dos
Trabalhadores e Trabalhadoras (CTB)
e de outras entidades das quais participamos. Eu vou levar essa honraria
como um prêmio à luta coletiva dos
trabalhadores por uma sociedade mais
justa, humana e igualitária”.
Você ocupa cargos de destaque
no sindicalismo, fato que a maioria
das mulheres não alcança. O que é
preciso para que as mulheres consigam superar o machismo e ocupar
os espaços de poder?
Quando participei pela primeira vez
da direção do Sindicato dos Professores
do Estado de Minas Gerais já atuava na
luta política e sindical. A minha história
confunde-se com a luta por mais liberdade, democracia e direitos iguais entre
homens e mulheres. Desde minha vida
estudantil. Nem sempre estive em cargos
de “poder”. Na primeira vez que participei da diretoria do Sinpro Minas era
suplente. Penso que espaço se conquista
com muita luta e coerência. Devemos
ter convicção que a luta pela emancipação da mulher é uma luta de classe.
Não é fácil ocupar lugar de destaque
no regime capitalista. Somos maioria
da sociedade e não somos maioria em
nenhuma instância de poder.
Na sua opinião, quais iniciativas
podem ser eficazes para romper as
barreiras de gênero no movimento
sindical?
As mulheres não devem ter medo
de errar. Devem ter confiança em si e
cuidar da formação ideológica, além
de vencer a timidez e sempre cuidar
da autoestima.
Você acha que quando há mulheres na direção, as questões de
gênero ganham mais ênfase nas políticas do sindicato?
Não. Penso que não basta ser mulher, negro ou pobre. Precisamos sim,
ganhar, no local em que atuamos, a
convicção de que a luta por direitos
iguais é cotidiana.
Você já sofreu algum preconceito
por ser mulher, dentro do movimento
sindical?
Já. Principalmente pelo patronal.
Quanto aos companheiros sindicalistas,
de uma forma velada, são muitos educados, mas na maioria das vezes se julgam mais capazes, mais preparados
do que nós.ø
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foto SAULO ESLLEN MARTINS
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SINDICAL
POR DÉBORA
JUNQUEIRA
Pela igualdade de gênero
Mesmo sub-representadas, as trabalhadoras superam
desafios e buscam mais espaços de poder
Em contraste com a crescente participação das mulheres no mundo do
trabalho, que representa 50% da população economicamente ativa, a luta
sindical ainda é marcadamente masculina. É o que se pode constatar através
de pesquisas sobre as mulheres no
mercado de trabalho e no movimento
sindical. O que se vê é que a desigualdade de gênero, presente principalmente nos espaços de poder, se repete
nas instituições que atuam em defesa
dos/das trabalhadores/as.
Conforme levantamento do Dieese,
feito em 2009, a mulher não tem assento em 26% das diretorias de sindicatos, sejam urbanos ou rurais. E mesmo quando está presente, a participação
da mulher ainda é bem menor que a
do homem. No topo da representação
sindical, ou seja, nas centrais sindicais,
as mulheres representam apenas
21,18% de suas diretorias.
“A pesar da sub-representação nas
direções, nos cargos decisórios das entidades sindicais, a participação das
mulheres têm pavimentado uma estrada
que é longa e íngreme, haja vista, a
conquista de secretarias da mulher na
maioria dos sindicatos, federações, confederações e centrais sindicais”, garante
a dirigente da Central dos Trabalhadores
e Trabalhadoras do Brasil (CTB), Raimunda Gomes, mais conhecida como
Doquinha. Na CTB, foi estabelecida a
cota de 30% de gênero em todos os
cargos e instâncias de direção, conforme
seu Estatuto Social e resolução aprovada
no 1º encontro nacional de mulheres
da CTB. “É uma exigência o seu cumprimento e orientamos que os sindicatos
filiados à central apliquem o dispositivo
estatutário”, afirma. (Leia a entrevista)
“a mulher não
tem assento em
26% das diretorias
de sindicatos,
sejam urbanos
ou rurais”.
As mulheres são mais de 50% entre
os/as professores/as do ensino superior,
71% no ensino médio e 85% no ensino
fundamental, de acordo com dados da
pesquisa do Ministério da Educação,
realizada em abril de 2010. Mesmo na
categoria de trabalhadores/as em educação, majoritariamente feminina, essa
representatividade ainda não se reflete
nas organizações sindicais educacionais.
Segundo pesquisa realizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores
em Estabelecimentos de Ensino (Contee),
em 2011, entre os 1838 dirigentes que
formam as diretorias das 81 entidades
filiadas à Confederação, 60,07% são
homens e 39,93% mulheres. A diferença
torna-se ainda mais expressiva quando
se foca na participação das sindicalistas
nos cargos de presidência e coordenação
das entidades. Nestes casos, os homens
ocupam 78% dos postos de mais poder
na direção das entidades. Nos sindicatos
da região sudeste, 422 são homens
(58,6%) e 297 (41,4%) são mulheres.
Nas federações de trabalhadores/as
em educação ligadas à Contee, a situação
não é diferente. Um levantamento de
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MARK FLOREST
gênero feito nessas entidades mostra
que dos 218 dirigentes, 153 são homens
(70,2%) e 65 mulheres (29,8%).
“Existem diversos fatores que impedem ou dificultam a participação das
mulheres nas esferas públicas, seja a
questão da dupla jornada de trabalho,
a segmentação das mulheres em atividades ou funções ditas femininas, as
disparidades salariais e a ausência de
políticas públicas como creches, entre
outras. Entretanto, através da nossa vivência, e de conversas com diversas
companheiras, podemos observar a falta
de incentivo, seja através de discursos
ou de práticas, que não favorecem o
rompimento dessas barreiras”, afirma
a professora Nara Teixeira, dirigente
da Contee, em artigo sobre a pesquisa
de gênero feita pela entidade.
Sindicalistas mineiras
Na base do Sinpro Minas, que representa os/as professores/as das escolas particulares de Minas Gerais, exceto Juiz de Fora, há 42.342 mulheres
(67%) e 20.935 (33%) homens, entre
os/as professores/as sindicalizados/as.
A representação na diretoria eleita
para a gestão 2012/2016 composta
por 129 dirigentes, 54 são mulheres
(41,8%) e 75 são homens (58,2%).
Para a vice-presidenta do Sinpro
Minas, Valéria Morato (foto), o problema
da desigualdade de gênero não é exclusivo do movimento sindical. Ela também entende que é uma questão que
afeta as mulheres nos espaços de poder
em geral. “A participação na vida pública, em qualquer tipo de militância,
nos ocupa nos horários não convencionais, exigindo a nossa participação
à noite e nos finais de semana. Não é
Revista Elas por Elas - Abril 2015
fácil para as mulheres conciliar as atividades políticas e a vida familiar. Com
a predominância dos homens, é mais
difícil para a mulher ocupar os espaços
decisórios. As mulheres têm que se esforçar mais que os homens para se estabelecer. Quando agem de forma mais
firme são criticadas, se não se impõem,
são consideras ‘mulherzinhas’, avalia.
Valéria conta que quando entrou
no movimento sindical, há 12 anos,
não tinha a dimensão do trabalho
dentro do sindicato. “O trabalho nos
envolve 24 horas. Não tive medo de
mudar a minha vida pessoal para me
adaptar, mas entendo que muitas mulheres têm dificuldade de fazer isso,
porque dentro de uma sociedade machista o espaço privado ainda é considerado prerrogativa da mulher e somos
cobradas quando não o assumimos
dentro dessa cultura”.
É consenso que a ausência de mulheres nos espaços de poder e de decisão significa um déficit na democracia
e uma dívida da sociedade em relação
às mulheres. A representação política
e sindical é fundamental para se avançar
na construção de uma sociedade mais
democrática e mais igualitária. É o que
também reforça a vereadora e sindicalista Vera Lúcia Alfredo.
Vera iniciou sua militância política
na juventude quando participava da diretoria do DCE na faculdade. Em 1979,
período importante do movimento sindical, entrou para a diretoria do Sindicato dos Trabalhadores em Educação
(SindUTE-MG) e em 2007, como professora de escola privada, passou a participar da diretoria do Sinpro Minas. Em
sua trajetória, ela conta que foi rotulada
de “largada”, “comunista” e até ouviu
que sua militância política era uma fuga
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da obrigação com os serviços domésticos. Para seguir em frente, ela teve que
superar várias barreiras para assumir a
tripla jornada de uma mulher sindicalista. “Dava aula, fazia faculdade, cuidava da casa, marido e filhos e ainda
participava de reuniões, assembleias e
greves. Muitas vezes, levava as crianças
junto comigo, que dormiam nos sofás
do sindicato, nem sempre preparado
para acolher as mulheres e suas necessidades. Quando eu chegava em casa,
o meu marido reclamava muito. O fim
do casamento foi inevitável, mas não
me arrependo, gosto do que faço e me
sinto realizada”, afirma. Por outro lado,
Vera diz que nunca sentiu preconceito
por ser mulher dentro do sindicato.
“Não me intimido com os homens e sei
me impor”, declara.
Se as entidades de classe do movimento sindical de trabalhadores lutam
por mais democracia, diversidade e
emancipação feminina, a pergunta que
se faz é se há apoio à maior participação
da mulher nas diretorias, seja por meio
de cursos de formação política ou em
outras formas de atuação que possibilitem a inserção das mulheres nos espaços de poder. Tema que instiga e
merece uma investigação mais ampla.
“Muitas vezes,
levava as crianças
junto comigo, que
dormiam nos sofás do sindicato”.
Atuação das
mulheres no
movimento sindical
é invisibilizada
No artigo Práticas Invisíveis: o Movimento Feminista e o Sindicalismo
no Brasil, de Luanda de Oliveira Lima,
mestranda em Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro –UFRJ,
disponível na internet (https://strabalhoegenero.cienciassociais.ufg.br/up/24
5/o/LUANDA.pdf), a autora faz uma
análise sobre a participação feminina
nos movimentos de trabalhadores no
Brasil. O trabalho da pesquisadora mostra que, apesar da intensa participação
das mulheres na vida sindical e nos movimentos sociais no país, essa atuação
é igualmente invisibilizada e marcada
pelo falocentrismo, o que influencia na
forma como essa história é ‘‘contada”.
O texto recorda que, no final do
século XIX, embora as mulheres fossem
grande parte da classe trabalhadora,
elas não eram bem vindas nos sindicatos. Contudo sempre estiveram presentes no movimento operário e sindical
brasileiro, inclusive em momentoschave como na greve geral de 1917,
que começou com tecelãs que reclamavam dos abusos sexuais cometidos
pelos capatazes e das más condições
de trabalho.
Lutaram pela incorporação de alguns
de seus direitos na Consolidação das
Leis do Trabalho – CLT – em 1937, e
conseguiram garantir alguns importantes, como da proteção à maternidade
e da igual remuneração. Em 1968,
nas greves de Contagem e Osasco,
marcos da resistência no período da
ditadura, é possível observar a partici-
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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vitórias no patamar político e jurídico.
Nas greves da década de 1980, como
na greve de 1988, em Volta Redonda,
as mulheres atuaram não só como
apoio, mas também ativamente nas
mobilizações, articulações e divulgação
do movimento grevista.
Já na década de 1990, a “década
neoliberal”, o mundo do trabalho vive
sua fase de enxugamento, com a reestruturação produtiva, a flexibilização e
a precarização do emprego os sindicatos se fragmentam, aumentando as
dificuldades e as barreiras para ampliar
a participação e as conquistas das trabalhadoras.
A autora defende a necessidade
uma atuação conjunta e articulada da
classe trabalhadora para garantir a
aplicação das Convenções 100 e 111
da Organização Internacional do Trabalho – OIT, respectivamente acerca
do salário igual para trabalho igual e
sobre a igualdade de oportunidades
entre homens e mulheres no mercado
de trabalho.
Ela conclui que a luta das mulheres
sempre esteve diretamente ligada à
luta dos trabalhadores, no entanto,
parece estar invisível, como se estivesse escondida sob uma “dominação
masculina” (BOURDIEU, 1999). Na
sociedade contemporânea a ideologia
predominante ainda é marcada por
uma visão masculinizada na qual a
imagem feminina é um estereótipo
sem voz (SOUZA-LOBO, 1991), a
maioria dos movimentos, seja sindical,
popular ou partidário, reproduz, de
alguma forma, essa ideologia.
INTERNET
pação de mulheres dirigentes sindicais.
Na década de 1970, com o aumento
da força de trabalho feminina, houve
também um significativo aumento das
mulheres sindicalizadas, índice que era
superior ao aumento da sua participação
no mercado de trabalho.
Ainda segundo o artigo, o mundo
do trabalho viveu nas décadas de
1980 e 1990 momentos antagônicos.
No Brasil, a década de 1980 é marcada pela redemocratização, pela
intensa participação popular e pela
expansão do movimento sindical, que,
com mais de 700 greves vive sua
“época de ouro” (SANTANA, 2004).
A luta pela democratização das relações de gênero persistiu e, com a
Constituição Federal de 1988, as
mulheres conquistaram importantes
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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O Sindicato dos Auxiliares de Administração Escolar (SAAEMG), com
33 anos de existência e 60% de mulheres na base, nunca havia sido presidido por uma mulher. No dia 13 de
dezembro de 2014, o SAAEMG começou a escrever uma nova história
com a posse da advogada Rogerlan
Augusta de Morais (foto).
Rogerlan, 46 anos, é a quinta presidente do sindicato. Antes de assumir a
presidência, coordenou o Departamento
Jurídico durante 12 anos. Rogerlan
também fez parte da diretoria da Central
dos Trabalhadores e Trabalhadoras do
Brasil (CTB/MG) como secretária geral
até 2013. Hoje ocupa o cargo na diretoria plena da CTB Nacional.
Elas por Elas - Como você vê a
atuação das mulheres no movimento
sindical dos Auxiliares de Administração Escolar?
Somos a maioria da população, somos a maioria de trabalhadores nas
instituições de ensino (em torno de
60%) e, para o mandato de 2014/2018
a categoria elegeu pela primeira vez
uma mulher para presidir o SAAEMG.
Neste mandato representamos percentual de 42% de mulheres na diretoria e
conselho fiscal. A pretensão é que a
representação de gênero seja de 50%
o que, entendemos, confere maior legitimidade e equidade na condução da
entidade sindical.
O SAAEMG, em várias oportunidades, tem ressaltado a importância da
FOTO CRÉDITO
Pela primeira vez,
SAAEMG tem
uma mulher na
presidência
mulher para a categoria e incentivado
sua participação nas demandas do sindicato e registrado que é um direito dela
assumir essa bandeira, que a sociedade
(machista) não faz nenhum favor em
apoiá-las. Aliás, é um dever já que lutamos por direitos iguais em todas as
áreas e sabemos da dedicação e influência da mulher na formação da
sociedade em todos os níveis, familiar e
profissional.
Você acredita que há preconceito
de gênero, mesmo numa categoria
majoritariamente feminina?
O aumento da participação feminina nos postos de trabalho viabilizou
as demandas de igualdade de gênero
também no meio sindical, que antes
era predominantemente masculino.
Infelizmente, ainda há preconceito que
não se manifesta abertamente (já que
se tornou politicamente incorreto pormenorizar a mulher). Isso ainda ocorre
por meio de piadinhas que ao serem
contestadas pelas mulheres, são justificadas como uma brincadeira inocente
pelos homens. Sabemos que, no
fundo, é preconceito sim. Na nossa categoria esse preconceito não é tão
acentuado, pois a maioria são mulheres que, a cada dia, mais se apoderam
do seu espaço de forma natural e
consciente.
A pretensão é que, agora, com
maior número de mulheres na diretoria,
possamos criar uma secretaria ou diretoria de políticas para mulheres. Dessa
forma, teremos condições de pensar a
mulher no mundo do trabalho e no
meio sindical, discutindo e desenvolvendo atividades que valorizem e defendam ainda mais sua importância na
sociedade.
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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ARQUIVO PESSOAL
16
ENTREVISTA
RAIMUNDA GOMES
“Não há igualdade
de oportunidade
para a mulher
exercer o poder”
Para a professora e dirigente da
Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), Raimunda Gomes
(Doquinha), que já esteve à frente da
Secretaria de Mulheres da entidade, a
luta não é só de uma classe contra
outra, ela é também de gênero, raça e
orientação sexual. Segundo ela, no
caso especifico das mulheres, está com-
Revista Elas por Elas - Abril 2015
provado que elas possuem a mesma
capacidade política e administrativa
dos homens, o que lhes falta é igualdade
de oportunidade para exercer o poder.
Ela afirma que ao romper com o
estereotipo de passiva e subserviente e
assumir o espaço público, as mulheres
disputam com seus próprios companheiros homens e também com as
próprias mulheres, que por falta de
compreensão do papel da mulher na
sociedade patriarcal, acabam reproduzindo a discriminação contra a mulher
no movimento sindical, criando armadilhas para as mulheres não ascenderem
politicamente.
Doquinha acredita que há um jeito
masculino e outro feminino de fazer
sindicalismo. “Os homens pensam mais
na universalidade das lutas e as mulheres
pensam para além disso, elas conciliam
a pauta geral do movimento sindical
com as especificidades que brotam das
questões subjetivas da luta, principalmente em relação à sua condição no
mundo do trabalho”, afirma. Confira
a entrevista.
Elas por Elas: Como você avalia
a participação das mulheres no movimento sindical?
Determinante no processo de democratização dos espaços e valorização
das opiniões que as mulheres possuem
acerca dos mais diversos assuntos, principalmente seus direitos no mundo do
trabalho. A pesar da sub-representação
nas direções, nos cargos decisórios das
entidades sindicais, a participação das
mulheres tem pavimentado uma estrada
que é longa e íngreme, haja vista, a
conquista de secretarias da mulher na
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17
maioria dos sindicatos, federações, confederações e centrais sindicais.
Na CTB, há alguma resolução sobre paridade de gênero ou cotas nas
gestões dos sindicatos?
Na CTB, a cota de 30% de gênero
em todas os cargos e instâncias de direção, é cláusula pétrea, nasceu com a
central, somos uma Central Sindical de
Trabalhadores e Trabalhadoras, está em
seu Estatuto Social e, na resolução aprovada no 1º Encontro Nacional de Mulheres da CTB, é uma exigência o seu
cumprimento. Orientamos que os sindicatos filiados à central apliquem o dispositivo estatutário.
Sobre a paridade, eu diria que o assunto ainda precisa de debate no interior
da central, para ser de fato uma conquista
e não uma imposição, a paridade exige
que os homens também estejam convencidos da legitimidade do pleito, e
não apenas apoiem, mas, fundamentalmente, entendam que para as mulheres
atuarem paritariamente, implicaria em
uma mudança de postura e mentalidade.
Você acredita que no sindicalismo
as mulheres no poder precisam provar
sua capacidade política e que as exigências são maiores do que com os
homens?
Tem sido a tônica até então, aos
homens o direito de aprender fazendo
e até errar, às mulheres o dever de
fazer certo, com perfeição, o que é
muito injusto, porque a condição militante é extremamente diferente entre
homens e mulheres. O cenário é mais
desfavorável às mulheres, pela construção histórica do seu papel cultuado pela
sociedade machista e patriarcal, que
lhe reserva como locus de atuação o
espaço privado para um ser conciliador,
passivo e subserviente, o que, por si
só, já caracteriza discriminação de gênero. Ao romper com esse estereótipo
e assumir o espaço público, as mulheres
disputam com seus próprios companheiros, os homens, e são eles em
maior quantidade, mas também as próprias mulheres, por falta de compreensão
do papel da mulher na sociedade patriarcal, que reproduzem a discriminação
contra a mulher no movimento sindical,
criando armadilhas para as mulheres
não ascenderem politicamente.
Em síntese, a luta não é só de uma
classe contra outra, ela é também de
gênero, raça e orientação sexual, essas
ditas minorias, não aceitam mais serem
tratadas como alguém que precisa de
outro para lhe defender, estão na condição de protagonistas da própria luta.
No caso específico das mulheres, está
comprovado que possuem a mesma
capacidade política e administrativa
dos homens, o que lhes falta é oportunidade e igualdade de oportunidade
para exercer o poder.
Na sua opinião, há um jeito ou
um estilo diferente entre as mulheres
quando elas participam do movimento
sindical ou estão na liderança dessas
entidades?
Com certeza, como já dizia Elizabeth
Souza Lobo, há jeito masculino e um
jeito feminino de fazer sindicalismo, os
homens pensam mais na universalidade
das lutas, as mulheres pensam para
além da universalidade, elas conciliam a
pauta geral do movimento sindical com
as especificidades que brotam das questões subjetivas da luta, principalmente,
em relação à sua condição no mundo
do trabalho.
Pela sua própria condição e feminilidade as mulheres quando assumem
as direções das entidades criam ou recriam ambientes que possibilitem maior
conforto e interlocução na relação de
gênero, ampliam a participação das
mulheres e pautam nas negociações
tanto salariais como políticas as questões
específicas do universo feminino. Óbvio,
que muitas mulheres ainda reproduzem
o pensamento machista ocasionado
pela ausência de formação política que
possibilita a consciência de classe e
gênero. De modo geral, as mulheres
são bastante comprometidas com a
democratização dos espaços e formação
de novas lideranças.ø
Revista Elas por Elas - Abril 2015
foto UNE
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19
POR SAULO
FEMINISMO
ESLLEN MARTINS
Feminismo
na América
Latina
Uma nova geração de lutadoras ganha
espaço nos movimentos sociais e políticos
Inspiradas pelas mulheres
que, pela liberdade feminina,
queimaram sutiãs em praça
pública, lutaram pelo direito
ao voto e a favor do uso de
contraceptivos, elas estão na
cidade, no campo, escolas e
empresas, demonstrando o
seu poder. A exemplo das feministas que fizeram história
em várias partes do mundo,
ganha força uma nova geração
de mulheres que lutam pela
emancipação feminina.
São jovens, inteligentes, trabalhadoras e engajadas em movimentos sociais e políticos.
Esse é um pequeno perfil das feministas que surgem na América Latina.
Muitas delas não militam diretamente
em movimentos, essencialmente de
gênero, mas onde atuam defendem a
bandeira da igualdade de direitos entre
mulheres e homens.
A partir do olhar de mulheres em
quatro países: Brasil, Argentina, Nicarágua e Venezuela, é possível traçar
um quadro da atuação feminista contemporânea no continente. Elas representam seus países e organizações, todavia, também são as
vozes de muitas estudantes, sindicalistas, artistas, jornalistas e outras cidadãs que compartilham desejos co-
muns, entre eles a vontade de viver em
um mundo mais igualitário e menos
preconceituoso. Cada uma, a seu
modo, imprime uma nova maneira de
ser feminista. De toda forma, não estão
só nos bastidores, são protagonistas e
recebem os holofotes do trabalho que
desenvolvem.
Mulheres diferentes, que atuam em
culturas distintas, mas que compartilham
muitos sonhos em comum. Amantes
da liberdade, defensoras da equidade
de gênero, feministas por essência e
trajetória. Escritoras de suas próprias
histórias. Falam por elas mesmas o
que pensam sobre o contexto político
e a luta feminista em seus países.
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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Virgínia Barros
Movimento estudantil
Presidenta da União Nacional dos
Estudantes no Brasil, cursou a faculdade
de Direito, em Recife. Foi presidenta da
União Estadual dos Estudantes daquele
estado. É militante da União da Juventude Socialista (UJS) e do Partido Comunista do Brasil (PCdoB).
O movimento estudantil é uma escola
capaz de ampliar a nossa visão da educação e o nosso entendimento sobre o
Brasil. Eu sempre senti que o conhecimento assimilado na sala de aula tem
limites. Temos mais possibilidades de
entender a sociedade a partir do momento em que incorporamos a luta dos
movimentos sociais. Daí em diante,
cria-se a possibilidade de compreender
e interferir nos rumos da sociedade.
Na história brasileira, podemos fazer
referência a uma série de mulheres
que se destacaram pela luta política e
social. Contudo, uma, em especial, é
a Patrícia Galvão (Pagu). Foi uma das
figuras mais importantes do modernismo brasileiro. Através da arte e da mi-
Revista Elas por Elas - Abril 2015
litância política, ela contribuiu para um
país melhor. É uma mulher que me
inspirou com sua rebeldia e sensibilidade. É uma história que deve ser contada para as próximas gerações.
Outra mulher que provocou mudanças na forma de participação das
brasileiras na política é a presidenta
Dilma. Ela tem uma trajetória marcante,
desde a juventude, quando resistiu de
forma tão brava à ditadura militar.
Abriu portas para que muitas outras
possam percorrer esse caminho.
Ainda existe resistência à participação das mulheres em diversos espaços
de poder. Isso acontece no ambiente
das universidades, no ramo empresarial,
na área científica e também na política.
As mulheres que se destacam nas esferas de poder, infelizmente, ainda sofrem preconceito. Só que cada vez
mais mulheres têm vencido essas barreiras e contribuído para naturalizar a
presença feminina nesses espaços.
As universidades brasileiras ainda
reproduzem as contradições sociais. A
estrutura destas instituições de ensino
ainda não está adaptada para a nossa
presença. Isso faz com que ainda tenhamos casos de violência de gênero
nestes espaços. A violência é um braço
do machismo, mas não é o único.
Ainda temos muito a avançar na luta
feminista em nosso país.
Eu me considero uma feminista e a
UNE é uma entidade feminista. Nós
temos objetivos gerais em torno do
curso da luta política brasileira, em especial, no debate sobre a universidade.
Consideramos que não é possível debater a sociedade brasileira sem inserir
nesse contexto a luta pela emancipação
das mulheres.
Ser feminista é compreender que
homens e mulheres devem ter direitos
iguais e oportunidades compatíveis
para desenvolver suas potencialidades.
É somar à luta para fazer com que as
mulheres possam estar em um campo
que é seu de direito. Ser protagonista
na sociedade, sem nenhum tipo de resistência e preconceito de gênero, classe, orientação sexual ou raça. É lutar
por uma sociedade igualitária.
ARQUIVO PESSOAL
ARQUIVO UNE
20
Diana Broggi
Movimentos populares
Graduada em psicologia, milita no
movimento Popular Pátria Grande da
Argentina e na Associação dos Trabalhadores do Estado. Foi integrante da
Direção das Políticas de Gênero da cidade de La Plata, província de Buenos
Aires.
Na América Latina, as expressões
dos movimentos de mulheres e feministas são heterogêneas e amplas. O
processo histórico do feminismo não
é o mesmo na Venezuela, Argentina,
Brasil ou Nicarágua. Contudo, ainda
assim, com as diferenças e origens
próprias em cada território, há um
Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:44 Page 21
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lhar contra elas de uma maneira integral.
O feminismo popular tem uma forte
âncora nos territórios, não é um mero
posicionamento ideológico, por causa
disso devemos construir laços de resistência onde habitamos, isto é: escolas,
sindicatos, famílias, locais de trabalho.
O feminismo é uma ferramenta privilegiada contra o patriarcado e o sistema
capitalista, por isso dizemos que “sem
feminismo não existe socialismo”.
SAULO ESLLEN MARTINS
dado inegável que é o avanço na organização e o crescimento do movimento
feminista em nossos países. Isso tem
um impacto integral, na medida em
que incorporamos a luta das mulheres
em todos os movimentos. Um exemplo
claro disso é a Marcha Mundial de Mulheres, da qual somos parte junto a
outras organizações na Argentina. Estrategicamente nos reunimos desde a
perspectiva feminista na luta contra a
mercantilização dos nossos corpos e a
exploração do trabalho feminino.
Hoje, temos algumas lutas que são
centrais em nosso país, tais como o
aborto legal, livre, seguro e gratuito e
o fim da violência de gênero. Nos organizamos para conquistar direitos para
as diversas identidades de gênero, não
só para as mulheres. A partir de Pátria
Grande somos parte desse processo
na Argentina. Nos consideramos feministas populares e apostamos no crescimento dos movimentos para potencializar mudanças verdadeiras em nossa
sociedade dominada pelo machismo
em um sistema capitalista e patriarcal.
Exercemos um papel de protagonistas das organizações, articuladoras,
parte da coluna vertebral dos movimentos: nós garantimos, e não apenas
contribuímos. Muitas vezes, tornamos
possível a vida orgânica das entidades,
levamos adiante debates e lutas que
não se limitam a reivindicações particulares. Por isso, lutamos também pela
terra, habitação e trabalho digno. Devemos soar o alarme acerca da invizibilização do papel fundamental das
mulheres na história dos movimentos
e organizações em processo de luta.
Entendemos que as organizações
necessitam do feminismo para compreender as múltiplas formas de opressão a que estamos expostos/as e bata-
Patricia Zuniga
Movimento de mulheres
no campo
Jornalista e radialista na cidade de
Carazo, Nicarágua. Faz parte do Club
Metamorfosis, uma organização que
reúne homens e mulheres na luta por
igualdade de gênero. Representa o movimento de mulheres campesinas do
estado de Rosário e integra a Alba Movimentos em seu país.
Em relação ao lugar que as mulheres
ocupam na Nicarágua, nos últimos
anos tivemos alguns avanços, mas
ainda existem barreiras que devem ser
destruídas. A luta árdua e contínua
para erradicar a violência de gênero é
uma delas. Contudo, os índices são
menores, pois as condições de vida
melhoraram em pequena parte, no entanto, de forma significativa.
Considerando que 52% da população nicaraguense é de mulheres, diversos movimentos sociais e coletivos
de mulheres estão preocupados com a
reivindicação de direitos e com a equidade de gênero na sociedade. Esperase, não só que a mulher exerça seus
direitos constitucionais, mas também
que tenha voz na política e ocupe
cargos públicos importantes.
A maioria das mulheres se dedica
ao trabalho não remunerado, pois estão
ocupadas com tarefas reprodutivas e
produtivas que não lhes geram rendas,
todavia, contribuem, sobremaneira,
para que os homens possam desempenhar funções em que ganham dinheiro. Cuidam dos lares, dos filhos e
dos idosos.
Existem outras desigualdades que
atingem principalmente as mulheres
pobres, que geralmente vivem em condições precárias e raras vezes têm acesso à educação, o que limita suas opções
profissionais. Houve um crescimento
dos postos de trabalho remunerado
para a mulher, mas quando consegue
emprego em uma empresa, oficina ou
até mesmo como doméstica, ela fica
sobrecarregada com a dupla jornada
ou é obrigada a pagar outra pessoa
para cuidar de sua casa.
É preciso elaborar políticas que atinjam homens e mulheres. Já existe uma
lei que aplica 50/50 em cargos públicos,
entretanto, o sistema capitalista e individualista tem uma forma de poder
machista e isso nos afeta sobremaneira.
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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SAULO ESLLEN MARTINS
Desde o momento em que ainda
usam fraldas, homens e mulheres deveriam ter as mesmas oportunidades,
pois é em casa que as desigualdades
de gênero devem desaparecer e dessa
maneira todas as pessoas seriam educadas para servir a sociedade.
As bandeiras de luta dos movimentos
de mulheres reivindicam principalmente
Vanessa Rangel
Militância política
Comunicadora popular, fotógrafa,
redatora e editora, participa da Corrente
Revolucionária Bolívar e Zamora, na
Venezuela, uma entidade dos movimentos sociais, com intensa inserção na
esfera política.
Com a chegada do presidente Hugo
Chávez, em 1999, o governo bolivariano ficou marcado pela preocupação
em atender as reivindicações de todos
os setores que por décadas haviam
sido excluídos e maltratados, dedicando
especial atenção à emancipação da
mulher. Em parte, isso pode ser confirmado com a aprovação da Lei Or-
Revista Elas por Elas - Abril 2015
uma mudança no olhar da sociedade
que nos vê como objetos sexuais, sobretudo, através da mídia televisiva,
onde somos coisificadas. Temos campanhas que unem homens e mulheres
para erradicar também o assédio sexual
sofrido nas ruas.
Muitas vidas de mulheres foram
perdidas nas mãos de homens, porém,
isso não foi em vão, porque muitas
deixaram um caminho que seguimos
para avançar a cada dia, apesar de enfrentarmos diversos desafios. No entanto, as mulheres não podem desistir,
mas, sim, continuar lutando por seus
direitos. Como seres humanos temos
os mesmos direitos e eles devem ser
respeitados.
gânica sobre os direitos das mulheres
a uma vida livre de violência, em 2007,
e a criação do Ministério do Poder Popular para a Mulher e a Igualdade de
Gênero, em 2009, que tem dentro de
suas funções proteger os direitos das
mulheres e impulsionar projetos socioprodutivos.
Ao longo da história mundial, o
papel da mulher tem sido essencial
para as revoluções. Os historiadores,
seguindo o sistema patriarcal, têm se
encarregado de apagar a imagem de
todas aquelas que tiveram um papel
de protagonista. Na Venezuela isso
está mudando, o comandante Chávez
entendeu a importância da mulher em
todos os processos e compreendia a
luta pela equidade de gênero e a necessidade de mudança desse sistema
patriarcal dentro do marco da revolução,
por isso, em diversas ocasiões se proclamou feminista. Trouxe à tona as
histórias de mulheres guerreiras, ele
sabia que esses exemplos nos dariam
força para as batalhas que viriam.
e Chávez, do Partido Socialista, são
mulheres.
Essas mudanças vão além das instituições governamentais e dos processos
produtivos. É importante ressaltar os
números mencionados, porque demonstram que hoje em dia a mulher
venezuelana tem um papel vital dentro
do processo revolucionário, pessoas
que anos atrás estavam dedicadas somente ao cuidado com seus filhos e à
manutenção da casa, agora são grandes
lideranças para as comunidades em
que habitam e para o país. Exercem
suas funções com a ternura que nos
caracteriza, mas, ao mesmo tempo,
com a firmeza necessária.
Prefeitas, ministras, governadoras,
deputadas, assessoras, dirigentes de
partidos políticos, são alguns dos papéis
que atualmente são desenvolvidos. Não
tem sido fácil, sendo que nossa batalha
diária também é com essa realidade
machista latino-americana que nos persegue. Ainda que os avanços tenham
sido significativos, existe um longo caminho a ser percorrido. O mais importante, contudo, é que contamos
com muitos companheiros/as que se
questionam e entendem que não se
trata de uma questão separatista, muito
antes pelo contrário, o feminismo é
uma questão complementar ao processo
revolucionário que estamos vivendo.ø
Segundo dados oficiais, desde o início da revolução, até 2014, a taxa de
desemprego da mulher diminuiu 9%.
Outro dado importante é o fato de
55% dos Conselhos Comunais serem
dirigidos por mulheres e 60% dos
chefes das Unidades de Batalha Bolívar
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Revista Elas por Elas - Abril 2015
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LUCIO BERNARDO JR. /C.D
24
POLÍTICA
POR NANCI ALVES
Longe das
cotas de gênero
Mulheres continuam minoria
na representação política
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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25
Representando mais de 50% da
população e do eleitorado, a mulher
responde também por mais de 45%
da produção brasileira e pelo sustento
de 1/3 das famílias, mas esse protagonismo ainda não se reflete na representação política feminina.
De acordo com o Tribunal Superior
Eleitoral (TSE), nas eleições de 2014,
o voto feminino teve o maior peso da
história: 52% dos 142 milhões de eleitores brasileiros são mulheres. Nas últimas eleições, houve aumento também
da participação feminina em quase todos os cargos, o que significa um crescimento de 46,5% de candidatas em
comparação a 2010. A proporção de
candidatas aptas a disputar algum cargo,
em 2010, incluindo vices e suplentes,
foi de 22,43% ou 5.056 candidatas.
Já em 2014, foram 8.131 postulantes,
ou seja, 31,07% do total de 26.172
candidatos/as.
Porém, ao se considerar apenas as
candidaturas aptas, esse número cai
para 6.475 mulheres, num total de
22.530 registros, fazendo com que o
percentual de candidaturas femininas
(28,62%) ficasse abaixo da cota (30%)
garantida por lei desde 2009. Mesmo
com a campanha lançada pelo TSE,
em março de 2014, “Mulher na Política”, vários partidos tiveram suas candidaturas indeferidas por falta de cumprimento da cota de gênero.
Para o cargo de deputada federal,
foram 1.755 candidatas; para deputada
estadual e distrital, foram 4.617; para
o Senado, apenas 33 mulheres e para
o governo de Estado, 20 candidatas e
44 à vice, além de 03 candidatas à
presidente e 03 a vice.
Apesar de ter crescido o número
de eleitoras e de candidatas, e ainda
que o cargo mais importante do país
seja ocupado por uma mulher, elas
permanecem minoria em termos de
representação política. O resultado do
último pleito eleitoral mostrou que o
parlamento brasileiro continua masculino, branco e empresarial - uma realidade difícil de se mudar no Brasil. Na
Câmara dos Deputados, houve um pequeno aumento do número de mulheres, mas ainda não ultrapassa os 10%.
Para o mandato que se iniciou em
2015, foram eleitas 51 deputadas federais, o que significa uma proporção
de uma mulher para cada dez deputados
eleitos, pois são 513 cadeiras. Os estados de Alagoas, Espírito Santo, Mato
Grosso, Paraíba e Sergipe não tiveram
nenhuma mulher eleita deputada federal.
Minas Gerais foi o estado em que as
mulheres tiveram menos destaque, sendo que a primeira na lista de contagem
de votos aparece apenas na trigésima
quinta posição.
Nas assembleias estaduais e na Câmara Legislativa do Distrito Federal, o
número de eleitas caiu de 139 em
2010 para 120 deputadas em 2014.
Ou seja, a representação popular nos
estados continua predominantemente
masculina, já que apenas 11,3% dos
“o parlamento
brasileiro
continua
masculino,
branco e
empresarial”
deputados estaduais e distritais são mulheres. A bancada feminina cresceu
apenas no Ceará, Distrito Federal,
Goiás, Minas Gerais e Mato Grosso
do Sul. Em 17 estados, houve diminuição no número de candidatas eleitas.
No Senado, foram eleitas apenas
cinco mulheres para as 27 vagas disponíveis, o que representa apenas
18,5% do total dos senadores eleitos e
13% da Casa (são 88 cadeiras), já que
outras seis senadoras cumprem mandato
até 2019 (em 2014, foi renovação de
um terço apenas).
E o pior: para governo de estado,
somente uma mulher foi eleita. Tratase de Suely Campos (PP), em Roraima,
que, na verdade, substituiu o marido,
Neudo Campos, considerado inelegível
pela Justiça Eleitoral em função da Lei
da Ficha Limpa.
Historicamente, o número de governadoras nunca passou de 11%. A
representatividade feminina nos governos estaduais não é tão pequena desde
1998, quando foi eleita apenas uma
mulher governadora. Em 2002, foram
duas; em 2006, três governadoras e,
em 2010, apenas duas novamente.
Na disputa para a presidência da
República, o segundo turno se deu
entre um homem e uma mulher, mas
entre as 11 candidaturas apresentadas,
as 3 candidatas ficaram entre os 4 primeiros colocados no primeiro turno.
De acordo com dados do TSE, Dilma
Rousseff ficou com 41,6% dos votos,
Marina Silva com 21,3% e Luciana
Genro com 1,6%. Juntas, conseguiram
somar cerca de 67 milhões de votos,
ou seja, 64,5% dos votos válidos. O
Partido dos Trabalhadores (PT) segue
como o partido que mais elege mulheres
no país (9 deputadas) seguido pelo
PMDB (7) e PSDB (5). Revista Elas por Elas - Abril 2015
Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:44 Page 26
26
Quem são as novas
parlamentares?
A Secretaria de Políticas para as
Mulheres publicou, recentemente, uma
nota técnica (Mulheres nas Eleições de
2014), em que analisa a participação,
o perfil das eleitas e os constrangimentos
à sua atuação no Congresso, dada a
composição desta nova Legislatura.
Segundo o documento, diante dos
entraves à entrada das mulheres nas
arenas decisórias, algumas usam do
prestígio de suas famílias, assim como
fazem alguns homens. Assim, das 51
novas deputadas federais, 21,5% são
esposas, ex-esposas ou filhas de homens
que ocupam ou já ocuparam cargos
eletivos ou Ministérios. Entre os deputados eleitos, 16% são herdeiros políticos. E entre as 5 novas senadoras, 3
possuem capital delegado das famílias
que possuem tradição política contra
3 senadores dos 27 eleitos.
Das 51 deputadas eleitas, 29 exercerão o cargo pela primeira vez, sendo
que três delas conseguiram atingir o
quociente eleitoral com seus próprios
votos, não dependendo do total de
votos de seus partidos ou coligações:
Christiane Yared (PNT/RJ), Clarissa
Garotinho (PR/RJ) e Shéridan
(PSDB/RR).
Com relação à faixa etária das eleitas, apenas duas são consideradas jovens, ou seja, menos de 29 anos. De
acordo com a nota técnica da SPM, a
faixa etária de maior concentração das
deputadas está entre 30 e 59 anos,
com 38 deputadas (74,55%). A mais
jovem é a deputada Brunny da Silva
do PTC/MG, com 25 anos, e a mais
velha, Luiza Erundina, com 79 anos,
em 2014. Também no Senado Federal,
das eleitas, 60% se concentra ente 30
Revista Elas por Elas - Abril 2015
e 59 anos. A senadora mais velha é
Maria do Carmo do DEM de Sergipe,
com 73 anos. “Acima dos 60 anos,
tem 101 homens e 11 mulheres. As
mulheres eleitas para a Câmara são
mais jovens que os homens, o que
pode significar que as gerações mais
novas de mulheres têm maior entrada
na política do que as mais velhas”, diz
o documento da SPM.
Sobre as profissões mais frequentes
entre as deputadas eleitas, estão empresárias (11), seguido de professoras
(6), advogadas (6) e médicas (5). Ao
passo que entre as novas senadoras, há
duas advogadas, uma pedagoga, uma
empresária e uma jornalista. De acordo
com o TSE, entre as principais ocupações
das candidatas estão professoras, donas
de casa, empresárias e estudantes. “Foram 430 candidaturas de donas de casa,
mas apenas Dulce Miranda conseguiu
se eleger para o cargo de deputada federal, pelo PMDB de Tocantins. O que
reforça a hipótese, sugerida anteriormente, de que o recrutamento de donas
de casa serve apenas ao cumprimento
da cota”, diz a nota técnica.
“entre as
principais
ocupações das
candidatas estão
professoras,
donas de casa,
empresárias e
estudantes”
Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:44 Page 27
27
ARQUIVO PESSOAL
Dessa forma, sobre a escolaridade,
com nível superior completo estão
84,3% das deputadas eleitas e 80%
das senadoras. Apenas uma senadora
tem nível superior incompleto e uma
deputada não terminou o ensino fundamental.
Raça: desigualdade
ainda maior
Além da sub-representação de gênero, também chamou a atenção a
grande desigualdade de “raça”/cor na
legislatura eleita neste ano. As candidaturas ao cargo de deputada/o federal
significam 41% de candidatos do sexo
masculino e brancos, as mulheres brancas foram 17,4%, ao passo que os homens negros correspondem a 6,2%
das candidaturas e as mulheres negras
um percentual de apenas 3,7%.
Para o demógrafo e professor da
Escola Nacional de Ciências Estatísticas
(ENCE/IBGE), José Eustáquio Diniz
Alves, a situação é bem melhor do que
há 30 anos, antes do processo de redemocratização, mas ainda falta um
longo caminho para se atingir a equidade “racial” e de gênero. Uma ampla
reforma política poderia mudar o quadro
desigual das instituições representativas
da república brasileira”, afirma.
Os dados preliminares do TSE indicam que, entre as/os 513 deputadas/os eleitas/os, 410 (79,9%) se autodeclararam brancas/os, 81 deputados
(15,79% ) se disseram pardas/os e 22
(4,29%), pretas/os. “O que demonstra
que os negros (pretos + pardos) ficaram
apenas com 20% dos assentos da Câmara. Assim, os pardos e pretos estão
também sub-representados na representação parlamentar. Nenhum candi-
Vera Soares coordenadora da
elaboração da nota técnica da SPM.
dato que se autodeclarou como amarelo
ou índio foi eleito para a Câmara dos
Deputados para a atual legislatura. As
pessoas que se autodeclaram amarelos
(orientais) possuem os melhores níveis
educacionais, mas não conseguiram
assentos no Congresso”, afirma o
professor.
Segundo ele, outro dado alarmante
diz respeito aos povos indígenas que,
mais uma vez, foram excluídos da Câmara dos Deputados. “As mulheres indígenas continuam sendo o grupo social
mais discriminado do país e há 500
anos sofrem com as consequências da
colonização portuguesa em terras tupiniquins e com a violência real e simbólica
de gênero. A população indígena sofreu
um genocídio nos primeiros 300 anos
da história do Brasil, sendo hoje o
grupo populacional em pior condição
social e o mais excluído da política e
dos espaços de poder”, reforça.
Mais mulheres
no Poder
De acordo com a nota técnica As
Mulheres nas Eleições de 2014, da
Secretaria de Políticas para as Mulheres
(SPM), o cenário decepcionante de candidaturas e das eleições que continuam
excluindo a mulher e, em especial a
negra e a indígena, é um indicativo da
insuficiência do sistema eleitoral e político, presente hoje no Brasil. “Esse sistema necessita de mudanças urgentes
para incluir de forma efetiva as mulheres na política, não só porque os partidos políticos são comandados por
homens, mas também porque as candidaturas femininas não são prioritárias
em termos do recebimento de financiamento por falta de apoio partidário”,
diz a nota.
Para a coordenadora da elaboração
da nota técnica da SPM, Vera Soares,
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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ainda não alcançamos a paridade de
gênero na política, nos espaços de poder, porque a cultura brasileira é machista e discriminatória. “Esta cultura
patriarcal que isola as mulheres do
mundo da política está refletida nos
partidos que, por sua vez, não têm a
mínima preocupação em mudar esta
realidade. Não incentivam as mulheres
a participar, não compartilham estes
espaços e não se incomodam com a
pequena representação feminina nos
poderes, pois já está naturalizada a exclusão da mulher também no mundo
da política. Um contrassenso, pois ela
tem papel fundamental na economia e
inclusive nos movimentos sociais, dando
enorme contribuição para a transformação deste país”, afirma.
Na avaliação de Vera Soares, não
há como votar em mulheres se elas
aparecem pouco, exatamente porque
os partidos não abrem oportunidades
iguais às oferecidas aos homens. “Os
partidos divulgam os candidatos que
querem eleger e na maioria das vezes,
aceitam as candidaturas femininas por
exigência da lei, apenas para cumprir
cotas. Assim, elas não têm visibilidade
e enfrentam muito mais dificuldades
como, por exemplo, obter recursos
para financiar suas campanhas”, destaca. Segundo Vera Soares, a reforma
política com enfoque de igualdade entre
homens e mulheres, é o caminho para
mudar esta realidade. “Precisamos de
uma reforma política que inclua, por
exemplo, o financiamento público de
campanha e a mudança no formato
das listas de candidaturas apresentadas
pelos partidos políticos que contemple
a alternância de nomes entre homens
e mulheres, chegando à paridade entre
os sexos”, afirma. Ela reforça que é
necessário também estimular que as
Revista Elas por Elas - Abril 2015
NANCI ALVES
28
definições internas dos partidos políticos
sejam tomadas em coletivos e não continuem nas mãos dos chefes políticos,
que em geral são homens.
Vera Soares destaca ainda o papel
dos professores para a mudança dessa
realidade. “A escola, desde a educação
infantil, nas suas práticas educativas,
precisa estar atenta para não reforçar
estereótipos machistas, pois isso contribui para o fortalecimento da política
patriarcal. E, no ensino médio, a escola
precisa ajudar as meninas a perceberem
que não precisam, necessariamente,
escolher apenas profissões que têm a
ver com cuidado e/ou educação como
enfermeiras, assistente social, professoras e que podem ocupar espaços,
historicamente masculinos, como as
engenharias, a física, a matemática,
etc. Com certeza, a escola não é determinante, mas pode reforçar estereótipos. É preciso que crie um ambiente de cultura, de respeito às diferenças, que valorize a diversidade, uma
cultura igualitária. Com certeza, isso
vai contribuir diretamente para a igualdade de gênero”, finaliza.
A historiadora Renata Rosa (foto) e
ex-candidata à deputada estadual por
Minas (PCdoB), em 2014, também
defende uma reforma política urgente,
pois considera que a luta por mais espaço na política para as mulheres é
pesada e chega a ser cruel, em muitas
situações, uma vez que não só as
razões econômicas, sociais e culturais
impedem uma participação mais efetiva
Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:44 Page 29
29
das mulheres na política. Na sua avaliação, boa parte das mulheres desconhece o funcionamento dos diferentes
sistemas eleitorais e as diversas maneiras
desenvolvidas para organização da participação política no mundo. “O poder
é um domínio ainda ocupado hegemonicamente por homens e essa condição cria dificuldades para a disputa
feminina no processo. As mulheres
são tratadas como coadjuvantes: coordenam as campanhas dos homens,
mobilizam, escrevem seus materiais de
divulgação, mas quando resolvem participar como candidatas, dificilmente
têm apoio efetivo, com garantia de
tempo de TV, com financiamento necessário, com a presença de quadros
militantes com experiência para coordenar e acompanhar suas candidaturas.
São poucas as que podem contar com
uma estrutura básica para sustentar
sua experiência de disputa e assim fortalecer sua atuação política de modo a
construir as bases para uma futura eleição”, ressalta.
Desde 2009, Renata Rosa coordena
a Secretaria Estadual sobre a questão
da Mulher do PCdoB, em Minas Gerais,
e garante que “não é fácil organizar
essa luta, diante do abismo político
que naturaliza a sub-representação política feminina e a dicotomia entre os
espaços públicos e privados para a
vida das mulheres, sem questionar suas
triplas jornadas de trabalho, o tempo
colossal gasto com o cuidado e manutenção de seus lares, tantas vezes marcado pela violência. Trabalho não remunerado que sustenta e garante as
bases do sistema capitalista e da atuação
dos homens na sociedade, com suas
roupas limpas e passadas, com sua alimentação garantida, com seus lares
administrados e seus filhos criados”.
Portanto, segundo a historiadora, o
debate sobre Reforma Política precisa
ser pensado sob o ponto de vista do
fortalecimento das mulheres neste processo. “Reforma é uma palavra ampla
e pode nos jogar em uma armadilha.
Não desejamos qualquer Reforma, mas
uma reforma política que leve em consideração o cotidiano feminino nas cidades e pressuponha condições reais
de igualdade na disputa política. Desejamos uma reforma política que elimine
a influência do poder econômico nas
eleições”, defende.
REFORMA POLÍTICA
DEMOCRÁTICA
Caminho para aumentar
a representação feminina
Alterar a desigualdade de gênero
na política é uma das propostas da
Coalizão Democrática para a Reforma
Política e Eleições Limpas. O movimento propõe a instalação de uma
Constituinte Exclusiva para a consolidação da mudança do sistema político
do país através de um projeto de lei de
iniciativa popular (PL nº 6.316, de
2013) encaminhado, ao Congresso.
A Coalizão reúne mais de 100 instituições como Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB), a Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil (CNBB), a Central
dos Trabalhadores e Trabalhadoras do
Brasil (CTB), Conic (Conselho Nacional
de Igrejas Cristãs do Brasil), Movimento
de Combate a Corrupção Eleitoral
(MCCE), União Nacional dos Estudan-
tes (UNE) e Movimento dos Pequenos
Agricultores (MPA Brasil).
“A proposta é de um projeto de tramitação ordinária, não implica em
emenda constitucional. É de iniciativa
popular, ou seja, não é de situação ou
oposição e sim algo que pretende ser
representativo de todos os segmentos
democráticos da sociedade. Procuramos encontrar identidade em torno de
número pequeno de questões, mas que
são decisivas para destravar o processo
democrático brasileiro, para criar
um sistema de representação mais
identificado”, explica Aldo Arantes, exdeputado na Constituinte de 1988 e
coordenador da Comissão Especial da
OAB de Mobilização para a Reforma
Política.
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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ARQUIVO PESSOAL
30
Entre as propostas do projeto de
iniciativa popular, Aldo Arantes destaca
a que se refere ao financiamento de
campanha. “A influência do poder econômico nas eleições, mais especificamente o papel das empresas privadas
é um grave problema. Em 2014, o volume de recursos foi de 5 bilhões de
reais; só para eleição de deputados federais foi de 1 bilhão de investimento,
sendo que 77% foi contribuição de
empresa. E aí está a gravidade da situação. A empresa contribui, mas
depois quer contrapartida”, ressalta
Aldo Arantes ao reforçar que o financiamento de campanha por empresas
degrada o sistema político na medida
em que é o canal de corrupção eleitoral.
“O que vemos é essa situação produzir uma mágica de conteúdo antidemocrático: o poder do dinheiro faz com
que a minoria da sociedade, os poucos
Revista Elas por Elas - Abril 2015
que têm muito dinheiro, se transforme
em maioria no Congresso e a maioria,
ou seja, os professores, estudantes, trabalhadores em geral, desempregados,
se tornem a minoria no Congresso.
Por isso, propomos a proibição do financiamento de campanha por empresa
e propomos a adoção do financiamento
democrático: público, mas que permite
financiamento de pessoa física, desde
que limitado a R$700,00 por pessoa
e, na somatória, não mais de 40% da
contribuição pública”, explica.
Outro ponto importante do projeto
defendido pela Coalizão é o fim do sistema de votação em lista aberta, com
a realização de eleições por um sistema
proporcional em lista pré-ordenada e
em dois turnos. “No primeiro, eleição
em torno de propostas do partido, de
ideias. E, no segundo turno, o eleitor
escolhe o seu candidato. Isso fortalecerá
os partidos, grandes ou pequenos, que
realmente têm representação da sociedade, impedindo os tais partidos de
aluguel, reduzirá o custo das campanhas
e a quantidade de candidato, permitindo
uma efetiva fiscalização eleitoral. Com
base no quociente eleitoral você define
o número de candidatos e esse será o
objeto da escolha da sociedade, no segundo turno”, explica.
E para aumentar a representação
feminina, o projeto de iniciativa popular propõe a alternância de gênero na
composição da lista partidária, visando
garantir que 50% dos cargos sejam
ocupados por mulheres. De acordo
com Aldo Arantes, a paridade garantirá um homem e uma mulher no primeiro turno e, no segundo turno, o
eleitor escolhe.
Para Vic Barros, presidenta da União
Nacional dos Estudantes (UNE), uma
reforma política precisa estar sintonizada
com o problema da sub-representação
de parcelas significativas da população.
“Nós, mulheres, somos maioria da população, mas temos pequena participação na composição do Congresso. Os
pretos e os pardos também são maioria
e sua participação ainda é menor que a
das mulheres; assim como trabalhadores
e trabalhadoras do país. Vimos que
cresceu a bancada empresarial, do agronegócio, etc. Precisamos de medidas,
do ponto de vista legal, que garantam
que a diversidade da nossa população
esteja representada no Congresso Nacional por meio de uma reforma. Com
uma reforma política, acredito que daremos um salto significativo para aproximar o Congresso da identidade do
nosso povo”, afirma.
www.reformapoliticademocratica.org.br
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31
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Depoimentos de Deputadas Federais
Jô Moraes - PCdoB
ARQUIVO PESSOAL
Comecei minha atividade política
no movimento estudantil como participante da Juventude Estudantil Católica.
Depois, fui presidente de Diretório
Acadêmico na Escola de Serviço Social.
Veio a ditadura e, no ambiente de perseguição, fui presa e fiquei clandestina
por 10 anos. Quando veio a anistia,
pude retomar a atividade aberta. Naqueles 10 anos, militei no Partido Co-
Bruniele Ferreira - PTC
Não venho de berço político, mas
sou casada com um ex-deputado estadual. Vendo o exemplo do meu marido,
o compromisso que ele tinha e o belo
trabalho que ele desenvolvia, passei a
munista do Brasil, na ilegalidade. A
luta da juventude pela liberdade foi
muito forte em nosso país naquele período. O cotidiano da vida política é
marcado por disfarçadas atitudes machistas. As mulheres têm que se preparar muito para que possam ser escutadas, principalmente quando chegam
num ambiente novo. Quando uma mulher fala, os homens escutam mais por
educação do que por respeito ao que
as mulheres dizem. Só depois de muito
tempo e comprovada a competência é
que elas passam a ser ouvidas. O
centro da minha luta está focada na
construção de um novo projeto nacional
de desenvolvimento que supere as desigualdades e inclua as mulheres. Isso
exige mais espaços de poder; equidade
no trabalho; autonomia na família; e
incorporação das mulheres na economia
em melhores condições e com mais
qualificação. Esses aspectos têm que
vir acompanhados de políticas públicas
que garantam seus direitos sexuais e
reprodutivos, igualdade no trabalho e
apoio às mulheres vítimas de violência.
Todo mundo fala em reforma política,
mas há grandes diferenças nas propostas que estão circulando. No âmbito
das demandas femininas, lutamos por
paridade e equidade, ou seja, por ter a
mesma proporção de homens e mulheres nas cotas e vagas partidárias.
Demanda que está contemplada no
Projeto de Lei nº 6.316, de 2013,
elaborado por integrantes de mais de
uma centena de organizações da sociedade civil, entre elas a OAB, a
CNBB, a UNE, a UBES. O mais importante aspecto a ser garantido na
Reforma Política é livrar o voto da intervenção do poder econômico. admirar o seu trabalho e achei que ingressando na política poderia seguir os
seus passos e lutar por um país melhor.
Como apresentadora de TV, vivenciei
muitas situações e acredito que, por
meio da política, posso batalhar em
prol das pessoas mais carentes e mudar
o descaso com que são tratadas.
Até agora não tive obstáculos, pelo
contrário, fui muito bem recebida durante toda a campanha, por onde passava. Nós, parlamentares, sofremos
ataques e sabemos respeitá-los.
Sou favorável ao PL 3888, de
2012, que está pronto para ser pautado
em plenário e que proíbe o abrandamento de pena nos casos de crimes de
violência doméstica e familiar contra
as mulheres. Além disso, a sub-representação da mulher na política é um
fator que muito me preocupa e estarei
engajada na luta para mudar esta situação. Tem também a PEC 590, de
2006, que obriga a Mesa Diretora da
Câmara e do Senado a ter em sua
composição ao menos uma mulher.
Considero que nós, mulheres, temos
e exercemos os mesmos direitos que
os parlamentares homens, mas é natural
que nós, mulheres, nos unamos, em
especial quando o assunto envolve as
políticas e programas direcionados para
as mulheres, como a aprovação da lei
Maria da Penha, a campanha do outubro rosa e outros. [email protected]
[email protected]
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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ARQUIVO PESSOAL
32
Dâmina Pereira -PMN
ARQUIVO PESSOAL
Meu marido Carlos Alberto é quem
é o político. Ele já foi deputado federal
e prefeito, e eu sempre participei da
política ao lado dele. Ao mesmo tempo
Raquel Muniz - PSC
Eu e meu marido, Ruy Muniz, hoje
prefeito de Montes Claros, fundamos
o PT em Montes Claros. Ele foi o primeiro candidato a prefeito do PT na
cidade. Não foi eleito, mas logo depois
se elegeu vereador. Eu o acompanhei,
ajudando nos atendimentos do gabinete
e a resolver as demandas. Depois, foi
eleito deputado estadual. O ajudei neste
Revista Elas por Elas - Abril 2015
em que acompanhei sua trajetória, me
dediquei à Secretaria de Assistência
Social de Lavras e realizei diversos trabalhos que contribuíram bastante para
essa minha decisão de enfrentar, pela
primeira vez, uma vaga como deputada
federal. No caso da última eleição,
seria meu marido o candidato por Lavras, mas, até mesmo por perseguições
políticas, ele decidiu não mais concorrer.
Percebendo essa injustiça e a importância da causa, eu, como mulher,
companheira de uma vida inteira, decidi
enfrentar este novo desafio. Considero
que, apesar de concorrer na política
pela primeira vez, fui muito bem aceita,
justamente por ser mulher. Estou no
começo dos trabalhos na Câmara dos
Deputados e por enquanto também
não encontrei nenhuma rejeição. Na
Câmara dos Deputados há a Secretaria
da Mulher, que é uma estrutura institucional que une a Bancada Feminina e
a Procuradoria da Mulher no Congresso
Nacional. Nesta Secretaria, tenho acompanhado o trabalho das parlamentares
na luta pela promoção da igualdade de
gênero. Isto incentiva muito o meu
empenho na defesa dos nossos direitos,
na luta contra a violência doméstica,
na igualdade de salários, enfim, tantas
lutas e batalhas que nós precisamos
vencer e que, com certeza, serão causas
que irei defender. Meu dever como
parlamentar será legislar em defesa de
nossos direitos e levantar debates para
a sociedade.
novo desafio e colaborei na criação/elaboração da Lei Estadual da Saúde do
Homem. Ruy, então, foi eleito prefeito
de Montes Claros e eu me tornei sua
chefe de gabinete, até o início de
2013. Neste período, ajudei a sanar
as demandas do município e percebi
que, como deputada federal, eu poderia
fazer muito mais pela minha região,
que é pobre. Quero mudar este quadro.
Com quase 100 mil votos, fui a deputada federal mais votada de Minas,
além de ser a primeira mulher eleita,
pelo, norte Minas para exercer um
mandato federal. Os obstáculos foram
os normais, enfrentados por qualquer
candidato. Não me senti discriminada
por ser mulher. No entanto, sinto não
ter podido entrar antes na política,
em função das responsabilidades de
mulher, de jornada tripla de esposa,
mãe/dona de casa e profissional. É
preciso que as mulheres se conscientizem do seu papel, que descubram que
política também é coisa de mulher e
que somos tão capazes quanto os homens. É através da política que decidimos, definimos que país vamos deixar
para as próximas gerações. Depois, é
preciso que os partidos apoiem as mulheres, que não sejam apenas um número para preencher a cota determinada por lei. Na Comissão da Reforma
Política, da qual faço parte, vamos discutir outras formas de ampliar a representação feminina, como a questão do
número de cotas de mulheres a serem
eleitas, para que possamos vencer a
barreira dos 10% - 15% de representatividade atual. Mas sem uma conscientização das mulheres, as cotas ficarão apenas no papel, como muitas
das nossas leis.
[email protected]
[email protected]
Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 33
Margarida Salomão - PT
Minha militância começou na universidade, nos anos 1980, como professora universitária e como liderança
sindical. Nos anos 1990, ingressei na
política acadêmica, como pró-reitora
e reitora, com um enfrentamento muito
grande aos governos tucanos e sua
concepção equivocada e perigosa sobre o ensino superior. A partir desse
acúmulo, passei a militar também fora
da universidade, buscando mudanças
para além do quadro institucional. As
dificuldades de todas as mulheres militantes que não derivam, nem são herdeiras, de uma militância masculina.
Primeiro, tem que praticar uma quebra
de expectativa, porque o ambiente e
as relações interpessoais na política
são fundamentalmente masculinas. Em
segundo lugar, precisa convencer o
eleitorado de que, mesmo sendo mulher,
pode ser uma boa representante. A mulher é desacreditada na política, muitas
vezes com apelo sexual, ou questionando a sua capacidade, como o caso
das campanhas recentes extremamente
violentas sobre a Dilma e Graça Foster,
que tentam denotar que elas “não dão
conta” da função pública que assumiram. Duas pautas são consensuais na
bancada feminina: o combate à violência
contra a mulher e a ampliação da participação feminina nos espaços de poder. Em relação à violência, a luta está
no campo microfísico, das microrrelações, em casa. Por isso é necessário o
agravamento das penas e o cumprimento da Lei Maria da Penha. Sobre
o empoderamento na política, eu defendo a paridade de gênero. A pauta
feminina na Câmara hoje é uma pauta
subordinada, porque nós somos minoritárias e dependemos da boa vontade
dos homens. Quando se pode ter o estupro tratado como premiação, “você
não merece ser estuprada”, declarado
publicamente e impunemente na Câmara, fica evidente que a nossa luta
pela garantia de direitos é enorme. Minha contribuição é defender nossas
pautas, a ampliação e o aperfeiçoamento dos nossos direitos, e ser contrária, evidentemente, a todas as pautas
que tentam reintroduzir o poder patriarcal, as quais devem reaparecer
com essa nova composição mais conservadora da Casa.
[email protected]
LUCIO BERNARDO JR. /C.D
ARQUIVO PESSOAL
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Revista Elas por Elas - Abril 2015
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34
ARQUIVO PESSOAL
Bancada Feminina da Assembleia Legislativa de Minas Gerais
Rosangela de Oliveira PROS
ARQUIVO PESSOAL
Professora, orientadora e supervisora
escolar. É graduada em Pedagogia e
pós-graduada em Didática. Começou
sua carreira política em 2000, quando
foi eleita vereadora em Ipatinga (Vale
Geisa Gomes - PT
Assistente Social. Foi presidente da
Fundação CDCA (Centro de Desenvolvimento da Criança e do Adolescente),
entre 2001 e 2008. É graduada em
Revista Elas por Elas - Abril 2015
do Aço), reelegendo-se em 2004. Em
2010, foi eleita deputada estadual.
Participei desde cedo de movimentos
sociais e, mesmo antes de meu primeiro
mandato de vereadora em Ipatinga, já
trabalhava com entidades para a prestação de serviços comunitários. Há
mais de 17 anos desenvolvo um projeto
social de capacitação e ensino profissionalizante para jovens e adultos. Esse
trabalho me levou para a vida pública
porque acredito na boa política como
forma de transformar, para melhor, a
vida das pessoas. Conciliar a criação
dos filhos, de dona de casa e participação política, realmente não é fácil.
Por outro lado, culturalmente ainda
enfrentamos muitos preconceitos, mas
Serviço Social e pós-graduada em Gestão
de Responsabilidade Social. É viúva do
ex-prefeito de Varginha, Mauro Teixeira,
eleito em 2000 e reeleito em 2004.
No ano 2000, meu saudoso esposo,
Mauro Teixeira, foi eleito prefeito de
Varginha, no Sul de Minas. Já tinha
participado de trabalhos em movimentos
de igreja e senti que seria uma oportunidade de realizar o que tanto almejava:
um trabalho social e voluntário voltado
para crianças, adolescentes e famílias
em situação de risco social. Este trabalho
me encantou e me motivou a entrar
para a política. Acredito nas boas práticas
das políticas públicas como forma de
emancipação humana. O universo político é constituído em seu grande per-
estamos aqui para mudar essa história.
Considero que a reforma política com
a ampliação da participação da mulher
nos espaços de poder é a pauta mais
importante atualmente. Isso terá repercussão em todas as demais pautas
e dará empoderamento para que as
mulheres reivindiquem, com mais força,
melhores condições de trabalho, saúde,
educação, etc. O que estamos realizando
na Assembleia de Minas é um fato histórico e trará muitos resultados positivos.
Não basta apenas conquistar o espaço
como vereadora, prefeita, deputada,
presidente ou gestora de uma grande
empresa. É preciso atuar com vigor
nesses espaços e buscar o avanço na
igualdade de gênero.
[email protected]
centual por homens. A mulher tem que
provar a sua capacidade empreendedora
e fazer-se respeitar. Felizmente tive o
reconhecimento do meu trabalho de
forma incondicional. Todos me respeitam, mas reconheço que existe um preconceito arraigado contra a mulher na
política. Por isso precisamos buscar uma
maior participação e ter uma representatividade verdadeira, cumprindo as cotas
de forma adequada e não apenas simbólica. Apoio todas as pautas das mulheres. São tantas! O assunto é amplo,
mas a representatividade dos movimentos
femininos precisa ser aumentada para
que tenhamos poder de reivindicação.
No meu mandato, pretendo apoiar as
causas femininas de várias formas.
[email protected]
Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 35
ARQUIVO PESSOAL
35
Comecei no movimento estudantil.
Estávamos saindo do regime militar e
minha luta foi motivada para superar
os traumas desse regime. Os ambientes
e os espaços de poder são dominados
pelo mundo masculino. Então, isso,
por si só, é um constrangimento. Há o
jeito de fazer do masculino e o jeito de
fazer do feminino. E isso gera sempre
um certo conflito. Por isso que essa diversidade é democrática, traz o debate
e contribui para consolidar um processo
democrático. A outra questão é que
ser mãe, dona de casa, ir a uma reunião
na escola do filho, estar na vida política
e no mercado de trabalho é bastante
Marília Campos - PT
ARQUIVO PESSOAL
Psicóloga. Militante do PT desde a
década de 1980. Nessa época, em
Uberlândia, iniciou a militância social
como integrante do movimento estudantil e foi uma das fundadoras do PT
e da CUT na região. Presidiu o Sindi-
Celise Laviola - PMDB
cato dos Bancários de Belo Horizonte
por dois mandatos (1990 e 1995). Foi
candidata a deputada estadual em 1998
e tornou-se vereadora por Contagem
em 2000. Em 2004, foi eleita a primeira mulher a governar a cidade,
sendo reeleita em 2008.
Advogada. Servidora aposentada
da Assembleia de Minas, é formada
em História, Filosofia e Direito e especializada em Direito Público. Assumiu,
em 2015, seu primeiro mandato como
deputada estadual. Natural de Belo
Horizonte, é filha de José Laviola
Matos, que foi vice-prefeito e prefeito
de Conselheiro Pena, além de deputado
estadual em Minas Gerais por seis legislaturas consecutivas. É cunhada do
ex-deputado estadual do PMDB José
Henrique (1956-2013).
Estou no meu primeiro mandato eletivo. Mas minha família tem uma história
complexo. Mas sempre fomos acostumadas a trabalhar e isso é um desgaste
permanente, mas que, com a solidariedade dos companheiros, com a divisão de tarefas, se torna possível. Apoio
toda e qualquer pauta que lute contra
a discriminação, que seja de interesse
coletivo, que ajude a emancipar as mulheres, que lute contra o preconceito e
a favor da inclusão das mulheres no
mercado de trabalho, nas políticas públicas ou na política. Elas precisam
trabalhar, estudar, precisam de creches
e escolas infantis para seus filhos.
Quero lutar para que, no orçamento
do Estado, estejam incluídas rubricas
orçamentárias que promovam as mulheres. E a polêmica referente ao corpo
da mulher, como o aborto, para mim,
é uma questão de saúde pública. Esse
tem que ser um direito assegurado à
mulher. Se ela fizer essa escolha, que
faça e tenha apoio do poder público.
[email protected]
política muito bonita, pautada no trabalho
para o povo, sempre com transparência
e dedicação. Com o falecimento do
meu cunhado, minha família e o nosso
partido decidiu que meu nome seria o
mais viável para substituí-lo. Para ser
sincera, tenho que dizer que o fato de
ser mulher não foi obstáculo na minha
campanha. Meu partido me acolheu
com muito carinho e o os eleitores da
nossa região também. Como parlamentar
pretendo discutir e buscar soluções para
as demandas femininas, atenta aos problemas da mulher e com um olhar
isento, sem discriminações.
[email protected]
Revista Elas por Elas - Abril 2015
Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 36
ARQUIVO PESSOAL
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Em 2004, ingressei na vida política
e, a partir daí, fui coordenadora de diversas campanhas do PT. Com isso,
me veio uma vontade muito grande de
fazer parte disso, mas de dentro, com
voz ativa. Fui candidata a prefeita de
Santa Luzia em 2012, onde obtive ex-
ARQUIVO PESSOAL
Mirian Cristina - PT
Ione Pinheiro - PMDB
Empresária. Assume em 2015 seu
primeiro mandato na Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Irmã do presidente da ALMG e deputado estadual
Revista Elas por Elas - Abril 2015
Professora de história com MBA
em Gestão Pública e Responsabilidade
Fiscal. Filiada ao PT desde 2005, foi
secretária de Formação do partido em
Santa Luzia. Em 2012, foi candidata a
prefeita desse município pelo mesmo
partido, ficando em 2º lugar na disputa.
É irmã do deputado federal Miguel Corrêa (PT) e atuou como coordenadora
de campanha do parlamentar desde o
primeiro mandato, a partir de 2007.
Dinis Pinheiro, foi chefe de gabinete
durante o primeiro mandato do parlamentar, na 13ª Legislatura, a partir de
1995. Também ocupou cargo semelhante quando o outro irmão, Toninho
Pinheiro, se tornou prefeito do município
mineiro de Ibirité.
As motivações para ingressar na
vida política retomam a minha história
de vida. Tomo como exemplo os meus
pais, para quem o trabalho e o servir
ao bem comum sempre estiveram presentes. Sedimentada nesse alicerce familiar, percorri o caminho que me
trouxe a esse momento atual. Como
em toda profissão, a vida política requer
compromisso, renúncias e o aprendizado da conciliação. Ser mãe, esposa,
trabalhadora é sempre um desafio para
qualquer pessoa, e para a mulher, pela
celente votação. Muitas vezes enfrentei
o machismo e o preconceito de alguns
homens que ainda acham que política
não é lugar de mulher, mas enfrentei,
principalmente, as dificuldades de ser
mãe e muitas vezes ter que deixar meu
filho aos cuidados de outras pessoas
para trabalhar e fazer política. A igualdade de oportunidades, de salário, o
fim da violência doméstica e principalmente das mulheres serem o que quiserem sem o estigma do machismo. A
luta por mais espaço das mulheres na
política é essencial, para isso a política
de cotas será um grande avanço para
as mulheres já que democratizará o
acesso de nós, mulheres, aos cargos
políticos.
[email protected]
grande expectativa de transformação
e superação de preconceitos, a missão
é mais árdua. Diante dessa realidade,
na Assembleia, buscamos ocupar o
nosso espaço, por meio da bancada
feminina, e apresentamos à Mesa Diretora a proposta de criação de uma
comissão especial para promover a
participação da mulher na política. A
minha atuação está pautada na verdade
e transparência, o meu engajamento
em medidas que alcancem melhorias
para todos, a minha disposição em
ouvir e conhecer cada vez a necessidade
do outro, certamente me conduzirão a
lutar para que não só a mulher, mas
todos indistintamente possam ascender
à condição de dignidade com a superação das dificuldades que ainda remanescem em nossa sociedade.
[email protected]
Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 37
Arlete Gonçalves - PTN
Participo da vida política há muitos
anos, sendo que nosso grupo político
elegeu pela terceira vez o meu irmão,
Wellington Magalhães, vereador de Belo
Horizonte. Minha motivação para entrar
na vida política foi o fortalecimento
desse grupo, que trabalha sério em prol
da qualidade de vida do nosso povo.
Trabalhando sempre muito próximo
à comunidade, nunva tive problemas
quanto à discriminação por ser mulher
e garanto que, na base, as mulheres
são muito ativas. A campanha eleitoral
é que é um grande obstáculo. Disputei
duas eleições e enumero a desigualdade
de financiamento, as distâncias territoriais
e a infidelidade partidária como grandes
desafios para se chegar até aqui.
Não considero que uma parlamentar,
pelo fato de ser mulher, tenha obrigatoriamente atuação dferenciada da atuação de um político do sexo masculino.
Acho que depende do perfil de atuação
de cada parlamentar. Algumas mulhe-
res, inclusive, militam em setores dominados por homens e se dão muito
bem. No setor social e comunitário
em que milito, não vejo diferença na
atuação de homens e mulheres. Já no
que diz respeito aos mandatos eletivos,
principalmente no Executivo, as oportunidades ainda são desiguais. Acredito
que, agora com mandatos voltados
preferencialmente à defesa dos direitos
das mulheres, nós temos muito mais
a acrescentar do que eles.
Coloco meu mandato à disposição
de todas as causas justas que venham
a evidenciar a grande contribuição que
as mulheres podem e irão acrescentar,
não só na política, mas também em
todas as áreas de desenvolvimento de
um país melhor".ø
LÚCIO BERNARDO JB/C.D
ARQUIVO PESSOAL
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Revista Elas por Elas - Abril 2015
8 de março de 2015 - Comemorações pelo Dia da Mulher em Nova York
foto UN WOMEN - J CARRIER
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39
Pequim+20
Igualdade de gênero: uma promessa
ainda não cumprida
ENTREVISTA
NADINE GASMAN
Duas décadas após a 4ª Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada
em Pequim (Beijing), em 1995, os desafios para a igualdade de gênero em
todo o mundo continuam. “É possível
identificar um progresso significante
nas diferentes áreas de preocupação da
Plataforma de Pequim, porém ainda
não é suficiente. Ainda há muitos desafios a serem superados para conquistar a igualdade política, econômica e
social de gênero”, afirma a representante da ONU Mulheres no Brasil, Nadine Gasman.
A Conferência Mundial sobre a Mulher de Pequim teve a presença de
17.000 participantes, 30.000 pessoas
assistiram ao fórum de ONGs e resultou
em um acordo entre 189 governos
que adotaram a Declaração e a Plataforma de Ação de Pequim de 1995. A
Plataforma prevê ações pela igualdade
de gênero e eliminação da discriminação
contra mulheres e meninas. O docu-
mento lista 12 pontos prioritários de
trabalho, além de ações detalhadas
para alcançar seus objetivos estratégicos.
Uma promessa ainda não cumprida,
segundo a ONU Mulheres, que coordena
a Campanha Pequim+20.
Para Nadine Gasman, a violência
contra a mulher é um dos maiores desafios a serem enfrentados. “Os presentes esforços para reduzir a violência
contra as mulheres não são suficientes.
É preciso ter em mente que esse problema cria desafios de curto e longo
prazo, por isso a educação e as políticas
públicas devem ser inovadoras e ousadas
para promover o respeito de todos os
direitos humanos e das mulheres”.
Uma comissão com representantes
de várias partes do mundo revisa a Declaração e Plataforma de Ação de Pequim e faz um balanço sobre os avanços
e desafios para a igualdade de gênero
e o empoderamento das mulheres, desde a implementação do documento.
Revista Elas por Elas - Abril 2015
Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 40
Elas por Elas - 20 anos após a
histórica 4º Conferência Mundial de
Mulheres, em Pequim, quais os avanços e desafios para a igualdade de
gênero e empoderamento das mulheres no mundo e no Brasil?
É possível identificar um progresso
significante nas diferentes áreas de
preocupação da Plataforma de Pequim,
porém ainda não é suficiente. Ainda
há muitos desafios a serem superados
para conquistar a igualdade política,
econômica e social de gênero. A Plataforma de Pequim permanece muito
atual no sentido de orientar os governos e as sociedades a conquistar a
igualdade substantiva e eliminar a discriminação contra mulheres e meninas. Mas, infelizmente, nenhum país
atingiu esse objetivo até hoje. As mulheres ainda ganham salários menores
que os dos homens de mesma idade e
nível de instrução e estão mais propensas a empregos de baixa qualidade.
No mundo, um terço das mulheres já
sofreu violência física ou sexual e 800
mulheres morrem por dia durante o
parto devido à falta de assistência médica adequada ou porque não têm direitos reprodutivos garantidos. Das doze áreas temáticas que
foram abordadas na Plataforma de
Ação de Pequim (Mulheres e pobreza; Educação e Capacitação de Mulheres; Mulheres e Saúde; Violência
contra a Mulher; Mulheres e Conflitos Armados; Mulheres e Economia;
Mulheres no Poder e na liderança;
Mecanismos institucionais para o
Avanço das Mulheres; Direitos Humanos das Mulheres; Mulheres e a
Mídia; Mulheres e Meio Ambiente e
Direitos das Meninas) quais mais
precisam avançar?
Revista Elas por Elas - Abril 2015
SÉRGIO ALMEIDA
40
Nós temos um desafio urgente de
construir mecanismos institucionais
para assegurar que homens e mulheres
sejam igualmente representados na política e na tomada de decisões, nos
níveis global, regional e nacional, nos
setores público e privado. A economia
também é uma área de profundas desigualdades. As mulheres ainda encontram maiores dificuldades que os homens para conseguir empregos. Além
disso, no mundo todo, mulheres ganham um salário de 10 a 30% menor
que homens com a mesma idade e
nível de instrução, o que reflete que a
contribuição das mulheres para a eco-
nomia é subestimada. Por exemplo:
quando empregadas, as mulheres apresentam maior tendência de investir em
suas famílias e comunidades. Esses esforços reduzem a fome, a pobreza e a
desnutrição. Além de tudo, milhões de mulheres
correm o risco de contrair doenças sexualmente transmissíveis e gravidez indesejada devido aos escassos serviços
de saúde sexual e reprodutiva bem
como políticas de contracepção inadequadas. Mas a violência contra as mulheres talvez seja a área de maior preocupação. Muitos países não têm políticas
públicas que incentivam a mudança de
Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 41
41
comportamento para que mulheres e
homens tenham o direito de viver livres
de violência e fazer progressos para
acabar com a violência de gênero. Os
presentes esforços para reduzir a violência contra as mulheres não são suficientes. É preciso ter em mente que
esse problema cria desafios de curto
e longo prazo, por isso a educação e
as políticas públicas devem ser inovadoras e ousadas para promover o respeito de todos os direitos humanos
e das mulheres.
Qual balanço a ONU faz sobre a
situação das mulheres no Brasil?
O Brasil é um país em que a desigualdade de gênero, raça e etnia é um
elemento estrutural da sociedade, por
isso a necessidade de se construir estratégias que promovam o combate às desigualdades. A sociedade brasileira também apresenta um perfil racista, sexista
e patriarcal, o que dificulta a inserção
da igualdade de gênero no senso comum. Outro problema grave é a violência contra as mulheres. Estima-se que
entre 2001 e 2011 ocorreram mais de
50 mil feminicídios. Por outro lado, as
políticas brasileiras de cotas e combate
à pobreza afetaram as mulheres positivamente, permitindo que suas famílias
tenham maior acesso à alimentação, à
saúde e à educação, o que é essencial
para a conquista dos direitos da mulher
e da igualdade de gênero. Além disso,
98% dos brasileiros já conhecem a lei
Maria da Penha, o que torna a população mais consciente da gravidade da
violência doméstica.
A sra. acredita que as reflexões
sobre a Pequim+20, no momento
em que os países buscam alcançar
os Objetivos de Desenvolvimento
do Milênio, com meta até 2015,
pode ser uma boa oportunidade
para estabelecer uma agenda que
beneficie a luta das mulheres por
mais igualdade?
Sim, é uma excelente oportunidade.
Uma das propostas para os Objetivos
de Desenvolvimento Sustentável é justamente aprofundar o compromisso
dos países em relação à igualdade de
gênero, a garantia de todos os direitos
humanos das mulheres e o empoderamento das mulheres. Também é uma
oportunidade para integrar a questão
de gênero na agenda pós-2015, assim
transversalizando essa perspectiva em
todos objetivos, metas e indicadores. Estamos trabalhando no processo de consulta pública em nível nacional para
assegurar que as lacunas sejam preenchidas tanto no Brasil quanto nos
outros países do mundo. As mulheres
são 51% da humanidade e a igualdade
de gênero é um tema transversal a
todas as áreas e setores, o que significa
que conquistar a igualdade de gênero
é essencial para atingir os Objetivos
de Desenvolvimento Sustentável. A evidência de que empoderar mulheres
significa empoderar a humanidade é
que as economias crescem mais rápido
“conquistar a
igualdade de
gênero é essencial
para atingir os
Objetivos de
Desenvolvimento
Sustentável”
quando as famílias têm acesso garantido
à saúde e à educação. A nova agenda
de desenvolvimento precisa abordar a
questão da desigualdade de uma maneira muito mais sistemática para preencher as lacunas entre a desigualdade
de gênero e as outras áreas de desenvolvimento.
Qual o papel da ONU no debate
e ações sobre a Pequim+20?
A ONU Mulheres está trabalhando
para que a igualdade de gênero seja
integralmente refletida nos Objetivos
de Desenvolvimento Sustentável bem
como em qualquer plataforma que venha a ser adotada. O vigésimo aniversário da Plataforma de Pequim é uma
oportunidade para renovar compromissos e interesse político, preencher
as lacunas e mobilizar a população
global em busca de um objetivo comum.
A 59ª Sessão da Comissão sobre a Situação da Mulher (9-20 de Março de
2015) foi organizada pela ONU Mulheres em Nova York para reunir Representantes de Estados-Membros, Entidades da ONU e Organizações NãoGovernamentais de todos os cantos
do mundo. O assunto central dessa
sessão foi a Declaração e Plataforma
de Ação de Pequim, incluindo os atuais
desafios que afetam sua implementação
e a conquista da igualdade de gênero e
do empoderamento das mulheres. A
comissão avalia o progresso feito desde
a implementação da Declaração e Plataforma de Ação de Pequim, 20 anos
após sua adoção na Quarta Conferência
Mundial para as Mulheres, em 1995.
A revisão, chamada de Pequim+20,
também incluirá os resultados da 23ª
Sessão Especial da Assembleia Geral
da ONU, que determinou iniciativas e
ações para a igualdade de gênero.ø
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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HOMENAGEM
ARQUIVO PESSOAL
POR CECÍLIA ALVIM
“Uma mulher
impossível”
Rose Marie Muraro superou diversas barreiras
em defesa da emancipação feminina
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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Uma mulher que “enxergava” à
frente de seu tempo, que “via” longe,
mesmo sem enxergar… Assim era Rose
Marie Muraro, escritora e feminista
brasileira, que faleceu em junho de
2014, aos 83 anos. Intelectual que lutava pela igualdade de direitos entre
homens e mulheres, Rose Marie foi
reconhecida pela Lei 11.261 de 2005,
durante o governo Lula, como Patrona
do Feminismo Brasileiro.
Rose Marie nasceu no Rio de Janeiro, em 1930, com uma visão muito
baixa e que piorou ao longo dos anos
até ficar cega nos últimos tempos. No
entanto, essa limitação não a impediu
de viver uma vida intensa e militante
em prol de um mundo mais justo e
igualitário. Sua trajetória sempre marcada pela defesa da emancipação feminina repercutiu fortemente no Brasil
do século XX. Sua atuação no movimento feminista e sua extensa obra
propagaram conceitos libertários que
foram sementes de mudanças que atingiram a realidade das mulheres brasileiras desde a década de 60 até hoje.
“A minha militância começou em
meados da década de 40 quando tomei
consciência da injustiça social”, relatou
Rose Marie em um memorial, disponibilizado por sua filha, Tônia Muraro,
para essa reportagem. Rose participou
do movimento estudantil desde o ensino
médio. Escreveu o primeiro número
do jornal Roteiro da Juventude, da Juventude Estudantil Católica (JEC). “Foi
aí que me lancei no mundo. E já não
me interessava mais ser feliz e sim
fazer o que tinha que ser feito. Minha
vida se abria para algo maior que ela
mesma”, contou Rose.
Em 1949, entrou para a Universidade do Brasil (hoje UFRJ) para estudar
Física. “Eram cerca de 70 homens e
umas dez mulheres. Fui recebida por
eles com grande susto porque era a
mais jovem e tinha passado em primeiro
lugar, vinda de um colégio de freiras
desconhecido. Foi aí que tive conhecimento das outras classes sociais. Saí
de um mundo elitista para um mundo
misturado, porque a nossa era uma
universidade pública”, relatou Rose.
Inquieta militante
Participou da Campanha o “Petróleo é Nosso”, na época da Fundação
da Petrobras. “Eu estava começando a
participar de movimentos políticos,
mas ainda estava muito ligada à minha
vida pessoal, porque já casada, tinha filhos pequenos a quem adorava, embora detestasse minha vida de casada”,
contou, sem constrangimentos, em seu
memorial.
Da experiência da vida de inquieta
militante para o início do trabalho
como editora e difusora de novas ideias,
se passaram três décadas. Em 1961,
com 31 anos, começou a trabalhar na
Editora Vozes. A partir de então, Rose
escreveu 40 livros e editou cerca de
“E já não me
interessava mais
ser feliz e sim fazer
o que tinha que ser
feito. Minha vida se
abria para algo
maior que ela
mesma”.
1.600 títulos. Atuou na Vozes por 17
anos, onde foi diretora junto com o
teólogo Leonardo Boff, e também na
Rosa dos Tempos, única editora dedicada ao Estudo de Gênero na América
Latina, entre os anos de 1990 e 2000.
Em 1966 saiu o seu primeiro livro,
A Mulher na Construção do Mundo
Futuro, que vendeu dez mil exemplares
em três meses. Em 1968, escreveu
sua segunda obra: Automação e o Futuro do Homem, e em 1970, Libertação sexual da Mulher, ambas pela
Editora Vozes.
Vigiada pelos militares
Em 1971, Rose Marie trouxe ao
Brasil a estadunidense Betty Friedan,
considerada uma das feministas mais
influentes do século XX, vinda essa
que gerou grande repercussão na opinião pública da época. “Foram três
dias de loucura. Quando ela foi embora,
parecia um país devastado e os militares
me vigiaram durante seis meses”, comentou Rose. Segundo ela, a visita de
Betty inaugurou um novo tempo na
história feminista brasileira.
Hildete Pereira de Melo, professora
de Economia da Universidade Federal
Fluminense e ex-assessora da Secretaria
de Políticas para as Mulheres, conheceu
Rose na década de 70, período de
efervescência do feminismo no Brasil.
“Ela era extremamente inteligente, alegre e arguta. E muito avançada em
suas posições. Sua dificuldade física
nunca a impediu de realizar uma vida
política militante, baseada em uma
grande erudição”, disse.
Em 1975, Rose participou da fundação do Centro da Mulher Brasileira.
Ainda nesse ano, os militares, por
Revista Elas por Elas - Abril 2015
Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 44
ARQUIVO PESSOAL
causa da liderança feminista que Rose
havia se tornado, proibiram seus livros
classificando-os como pornográficos,
embora estivessem maciçamente sendo
adotados em escolas e universidades
brasileiras. “Falar de mulher naquele
período era difícil. A gente falava baixinho”, conta Hildete.
Afastada da Igreja
Junto de Boff, Rose colaborou para
o surgimento de outro dos mais importantes movimentos sociais do século
XX: a Teologia da Libertação. Por essa
atuação libertária e pela publicação,
por Rose, do livro Por uma erótica
cristã, ela foi afastada da Editora Vozes
em dezembro de 1986, junto com o
teólogo. “Esses movimentos nasceram
com o objetivo fundamental de promover a equidade de gênero, a liberdade
de expressão e a democratização. Apesar de termos sido excomungados da
Igreja Católica, e de termos nossos livros proibidos durante o regime militar,
seguimos trabalhando incansavelmente
com esses movimentos e seus conceitos até os dias atuais” relatou Rose em
seu memorial.
“Mesmo com sua formação religiosa,
ela irradiava essa perspectiva de libertação da mulher, até mesmo na questão
da sexualidade, de não suprimir os próprios desejos. Ela acreditava no amor
sem amarras”, destacou Hildete Pereira.
“Seu maior legado foi promover a reflexão sobre a condição feminina e a
sociedade patriarcal, que oprime mulheres em todo o mundo”, completou.
Em 1985, Rose foi membro fundador do Conselho Nacional dos Direitos
da Mulher, órgão ligado ao governo
federal, que conseguiu inserir na Cons-
Revista Elas por Elas - Abril 2015
tituição de 1988 alguns dos itens mais
progressistas em âmbito internacional
sobre a condição da mulher. Em 2003,
voltou ao Conselho, nomeada pela
Presidência da República, por notório
saber em matéria de gênero.
Valores femininos
Em 1983, publicou A Sexualidade
da Mulher Brasileira: corpo e classe
social no Brasil; em 1990, Os seis
meses em que fui homem e, em 1992,
A Mulher no Terceiro Milênio. Em
1999, publicou ainda Memórias de
Uma Mulher Impossível, sua autobiografia. Em 2002, trabalhando novamente em parceria com Leonardo Boff,
publicou Masculino/Feminino: uma
nova consciência para o encontro das
diferenças. Em 2010, teve seu último
livro publicado: Reinventando o Capital/Dinheiro, que trazia uma visão feminina para uma nova forma de economia solidária.
“Ao contrário dos países desenvolvidos, onde o movimento feminista só
tratava de gênero, o Brasil lutou e precisa continuar lutando pelos três pilares
da opressão de homens e mulheres:
classe social, gênero e etnia. O feminino
ultrapassa a mulher assim como o masculino também ultrapassa o homem.
Daí a possibilidade de se construir através dos tempos, diversos femininos e
diversos masculinos. Mas, na minha
opinião, devido a experiência de gerar
e manter a vida humana vivida pela
mulher, acho que o mundo deveria caminhar para esses valores ditos “femininos”, como o cuidado, o altruísmo,
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Coragem de transgredir
Como conferencista, Rose deu mais
de 1.500 palestras no Brasil e no
exterior em várias instituições, sempre
disseminando ideias feministas. Preocupada com a mudança possível através
da educação, Rose colaborou ativamente
com a formação na temática de gênero
de professores da rede estadual de educação do Rio de Janeiro, entre 1998 e
2003. Uma poeta e mulher visionária,
que viveu do impossível, Rose sempre
dizia: “entre homens e mulheres deve
haver diferenças, mas não desigualdades”. E ainda: “Eu mudei a cabeça de
várias gerações... Quem educa uma
mulher educa uma geração inteira...” ,
relata sua filha, Tonia Muraro.
Rose Marie recebeu diversas condecorações por sua atuação na sociedade. Em setembro de 1999, recebeu
o Troféu Teotônio Vilella como a mais
importante editora na resistência à Ditadura Militar. Em junho de 2005, foi
indicada com mais cinquenta e uma
mulheres para o Prêmio Nobel da Paz.
Em abril de 2014, foi condecorada
pelo Itamarati com o grau de Oficial
da Ordem do Rio Branco.
Em 2009, fundou o Instituto Cultural Rose Marie Muraro, para conservar
e difundir o seu acervo cultural. Um
dos projetos do Instituto, que hoje é
coordenado por Tonia Muraro, é a
criação da Biblioteca Rose Marie Muraro, que pretende ser a primeira biblioteca brasileira especializada em
estudos de gênero.
“A maior lição que minha mãe me
deu foi sua coragem de transgredir e
buscar a plenitude da vida. Rose
Muraro foi uma mulher transgressora
desde o dia em que nasceu. Foi condenada à morte, à cegueira, a não ter
filhos, a não ler e nem trabalhar, mas
transgredindo as leis físicas e as do
homem, aprendeu a ler sozinha, começou a escrever aos 15 anos, trabalhou
desde então, teve cinco filhos, foi militante ativa e escritora de mais de
quarenta títulos. Estudou e pesquisou
ao longo de seus oitenta e três anos. E
ainda venceu duas vezes o câncer, mas
na terceira partiu deste mundo”,
conta Tonia.
Prêmio Rose Marie Muraro
“Intelectual notável, Rose Marie foi
uma mulher determinada em tudo, na
luta contra a barreira da cegueira, na
luta pelas suas ideias. Ela é um ícone
da luta pelos direitos das mulheres”,
disse a presidenta Dilma Rousseff, lamentando a sua morte, em 21 de
junho do ano passado. Para homenagear a escritora e reconhecer a atuação
de outras mulheres feministas históricas,
foi instituído o Prêmio Rose Marie Muraro pela Secretaria de Políticas para
as Mulheres, da Presidência da República. Em 28 de novembro de 2014,
receberam a premiação Clara Charf,
Herilda Balduino de Sousa, Lenira
Maria de Carvalho, Mireya Suárez,
Moema Viezzer e Neuma Aguiar.
O prêmio é destinado a mulheres
com mais de 75 anos que atuaram ou
atuam na vida pública nacional em
ações científicas, tecnológicas, culturais,
educacionais ou artísticas, em gestão
pública e privada, em movimentos sociais e sindicais e partidos políticos.
Tem por objetivo reconhecer o papel
desempenhado pelas mulheres que lutaram pela cidadania feminina, pela
ampliação dos direitos humanos das
mulheres e efetivação de mudanças na
sociedade brasileira.ø
ARQUIVO PESSOAL
se quiser reverter o processo de destruição a que foi submetido pelo patriarcado/capitalismo”, alertou Rose
em seu Memorial.
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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POR LUCIANA
ARTIGO
GARCIA DE OLIVEIRA
Em Gaza, nada a
comemorar
“Nós não podemos exigir que os
outros nos libertem se nós não somos
livres”. Foram essas as palavras expressadas por Asma al-Ghoul, uma jovem jornalista palestina cujos artigos
foram, por diversas ocasiões, editados
ou mesmo censurados em sua Terra
Natal, a Faixa de Gaza na Palestina. O
Revista Elas por Elas - Abril 2015
depoimento de Asma no documentário
Diaries, de May Odeh, pode ilustrar
bem a situação da mulher em Gaza,
muito além dos prejuízos causados pelo
bloqueio físico e econômico na região.
Nessa obra, May Odeh ultrapassa a
fronteira comum da abordagem dos filmes sobre a questão internacional da
Palestina e investiga a fundo acerca
das angústias e frustrações das mulheres
que são obrigadas a viver sob os códigos
religiosos que, por diversas vezes, são
impostos contra a sua vontade.
May Odeh foi muito bem sucedida
ao expor um olhar crítico à imposição
política e religiosa, sem adotar vícios
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foto ISTOCK
47
“Apesar do avanço
nas iniciativas
feministas, práticas
discriminatórias
prevalecem”.
maniqueístas, de forma a também evitar observações de caráter discriminatório e islamofóbico. Em Diaries, o
confronto ao uso do hijab (o véu islâmico) aparece em respeito ao debate
sobre o modo como cada mulher lida
com suas concepções religiosas particulares. Muito provavelmente, caso o
cenário do filme fosse outro, nas ruas
de Paris, por exemplo, a questão do
código de vestimenta islâmico não
seria tratada sob o ponto de vista da
imposição, mas sob o ângulo do sentimento de resistência cultural.
Historicamente, muito embora o
grupo Hamas tenha entrado em cena
na Faixa de Gaza em decorrência da
primeira Intifada em 1987, foi após a
vitória nas eleições de 2006 que o
movimento de resistência nacional islâmico deteve formalmente o controle
político, cultural e social na Faixa palestina e trouxe consigo uma agenda
religiosa e militante, de modo a restringir
a rotina da juventude e sobretudo das
mulheres palestinas. O clima de censura
política e cultural aliado ao bloqueio
político e econômico imposto pelo governo de Israel desde a incidência dos
ataques suicidas e o lançamento de foguetes em algumas cidades israelenses,
impede até hoje que a economia na
faixa palestina seja autossuficiente,
pois todos os carregamentos e suprimentos humanitários atualmente passam necessariamente por minucioso
controle de Israel. O aumento do índice
de pobreza e miséria após o bloqueio
permitiu o aparecimento de inúmeros
túneis que, em sua maioria, ligam a
Faixa de Gaza ao Egito com fins de
comércio de alimentos, medicamentos,
materiais de construção e outras utilidades. Ainda, através desses túneis irregulares muitos palestinos e palestinas
de Gaza fugiam da região na esperança
de obter visto para outros estados através do Egito ou na necessidade de
serem atendidos nos hospitais e pronto
socorros ou mesmo conseguirem estudar nas escolas e universidades tradicionais egípcias.
O permanente conflito com o Estado
de Israel, muito além do aumento do
extremismo, tem afetado diretamente
a vida de milhares de pessoas, principalmente das mulheres palestinas. O
documento Social and Economic Situation of Palestinian Women – 19902003, produzido pela Organização das
Nações Unidas (ONU) em 2004, pôde
revelar por meio de estudos e dados
numéricos um quadro real da situação
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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48
enfrentada pelas mulheres palestinas,
com atenção à Faixa de Gaza, local de
grande periculosidade e muita insalubridade. Ao longo do texto é mencionado que a rotina permeada pela morte
repentina de alguns membros da família,
como filhos e maridos durante as chamadas operações israelenses na região,
como as de julho de 2014, ocasionam
traumas profundos, difíceis de serem
superados. A perda abrupta de pessoas
próximas torna-se ainda mais crítica
quando essas mulheres passam a sobreviver sem o provedor financeiro da
família, em uma situação em que são
obrigadas a exercer um papel diverso
daquele pela qual foram educadas.
Ainda é apontado que as mulheres
grávidas particularmente são o alvo
mais vulnerável do conflito e das punições coletivas; a maioria das gestantes
é diariamente exposta a inúmeros tipos
de violência, ao estresse diário e a
gases tóxicos que, em última instância,
ocasionam abortos prematuros. Ao levarmos em consideração que os índices
de fertilidade na Faixa de Gaza é um
dos mais altos do mundo, a região tornou-se oficialmente a região mais densamente populosa do planeta. A manutenção das práticas tradicionais de
casamento entre mulheres muito jovens
é justificada pela sensação de segurança
fornecida pelo matrimônio, sobretudo
em tempos de conflitos e intensas convulsões políticas e a preferência por filhos do sexo masculino ainda é bastante
prevalecente dentro de um contexto
ainda muito conservador e patriarcal.
Em certa medida, essas questões explicariam o alto índice de fertilidade
nessa estreita faixa palestina.
Normalmente o nascimento de cada
criança é muito comemorado, pois entre
os palestinos, cada criança que nasce
Revista Elas por Elas - Abril 2015
faz parte de uma campanha de resistência cultural e política palestina frente
à crescente ocupação territorial e à supressão da existência do estado palestino.
E, diante de famílias muito numerosas,
muitas mulheres passam a permanecer
em casa e a viver em função dos filhos
e do marido. Muito embora, atualmente
exista um maior número de universitárias
na Faixa de Gaza, o número ainda é inferior em comparação à região da
Cisjordânia, por exemplo, cujo controle
vegetativo é maior, mesmo sob a permanente ocupação militar2. O completo
e escandaloso isolamento de Gaza tornou
a região um terreno fértil para o aparecimento de fundamentalismos tendentes
a limitar a vida e o cotidiano dessas
mulheres.
2. Os índices referentes ao aumento do controle vegetativo na
Cisjordânia em detrimento da
Faixa de Gaza pode ser explicado
em função da Cisjordânia estar
mais próxima das cidades israelenses. Mesmo sob controle militar, muitas palestinas ainda têm
acesso aos hospitais israelenses,
referência em inúmeros tratamentos. Ainda, muitas palestinas
da Cisjordânia estudam em escolas e universidades mistas e
laicas ou mesmo nas instituições
israelenses, o que permite que
as mulheres dessa região tenham
um maior acesso a uma educação de ponta. A prioridade pela
carreira profissional faz com que
muitas mulheres da Cisjordânia,
principalmente das grandes cidades como Ramallah, Haifa e
Nablus, passem a engravidar mais
tardiamente e terem menos filhos.
Frente ao progressivo cerceamento
da liberdade, as mulheres, consideradas
maioria tanto na Faixa de Gaza como
na Cisjordânia, redigiram conjuntamente uma carta oficial em 1993, pela
qual puderam reafirmar solenemente
pela defesa da condição de igualdade
de gêneros e pela manutenção do secularismo na esfera política, frente ao
tratamento dos assuntos concernentes
ao gênero. No texto do documento,
foram destacados trechos que aludiam
à imposição religiosa em Gaza, nesse
caso foi aclamado o “fim da legislação
discriminatória contra as mulheres” e
pelo “direito de poderem transferir a
cidadania palestina para os filhos e maridos” no caso de matrimônio com homens estrangeiros. A cidadania palestina, até então, poderia tão somente
ser concedida através da figura masculina, assim somente poderiam ser considerados cidadãos palestinos os filhos
de pais palestinos ou caso a mulher
estrangeira fosse casada com um homem palestino.
Apesar do documento ter sinalizado
um avanço nas iniciativas feministas,
muitas práticas discriminatórias ainda
são prevalecentes com relação às mulheres na região. Ainda é bastante
comum homens se divorciarem de suas
esposas de maneira unilateral e obterem preferência judicial pela guarda dos
filhos. Em muitos casos, a mulher passa
a viver sozinha, sem qualquer apoio financeiro e a mercê da ajuda de parentes e amigos. As denúncias sobre
diversas formas de violência doméstica
também são bastante frequentes, casos
de estupro, incesto e outras formas de
agressão e violência também figuram
nas estatísticas oficiais do mapa da violência contra a mulher da Palestina na
Faixa de Gaza.
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INTERNET
49
Os impedimentos internos e externos na rotina feminina em Gaza contribuíram para que muitas mulheres
passassem a exercer papel ativo dentro
dos movimentos nacionalistas palestinos.
Atualmente é bastante comum encontrar mulheres envolvidas em assuntos
políticos ao lado dos seus maridos,
filhos e irmãos, em inúmeras manifestações de rua, sit-ins, na organização
de petições públicas e nos partidos
políticos palestinos. A progressiva politização feminina possibilitou que as
bandeiras nacionais passassem a ser
diretamente relacionadas às reivindicações de gênero.
Foi durante os acordos de paz de
Madrid, em 1991, que muitas lideranças
femininas invadiram o cenário que
antes estava ocupado, em quase sua
totalidade, por homens. Nessa ocasião,
um conselho de mulheres apresentou
ao Congresso Legislativo palestino uma
proposta de fixação de uma quota mínima de um terço de mulheres no parlamento. É estimado que a militância
feminina tenha aumentado vertiginosamente em decorrência da segunda
Intifada, em 2000.
Mesmo sob condições bastante adversas, como a falta de emprego, a
maioria das mulheres na Faixa de Gaza
pode ser considerada grande provedora
e militante política. Geralmente ocupam,
na maior parte dos casos, o setor da
educação, como professoras primárias
e universitárias, e o setor têxtil como
costureiras. E, mesmo obtendo salários
inferiores aos dos homens, ainda conseguem dispor de tempo para o ativismo
político, seja nas manifestações contra
a ocupação, seja por intermédio da
linguagem escrita sob o ofício de escritoras, poetisas e jornalistas. Vale ressaltar que grande parte das mulheres
jovens de Gaza, mesmo vivendo abaixo
do nível de pobreza, aprenderam a se
comunicar em inglês e mantêm contato
frequente com outras ativistas estrangeiras pela internet. Muitas inclusive
são bem avaliadas em cursos no exterior
e nos programas de pós-graduação,
mestrado e doutorado, mundo afora.
E, mesmo distante da Palestina, seguem
com o ativismo político na diáspora.
Diante da impossibilidade de viver
dignamente no que se tornou a Faixa
de Gaza, muitas mulheres passaram a
viver no exílio e muitas gerações nasceram e ainda nascem no exílio, sem
ao menos conhecer sua terra natal.
Esse imenso refúgio passou a ser o
local onde as vozes femininas ecoam
pela reafirmação da identidade e pela
sua existência ao mesmo tempo em
que, quando sufocadas, gritam por socorro e atenção. A mulher palestina
está em todos os lugares e em cada
canto do mundo existe um pouco da
Palestina, caberá a nós mesmos prestar
atenção e evitar que essas histórias
testemunhadas por tantas mulheres sejam esquecidas e a existência da Palestina continue a ser negada.ø
Luciana Garcia de Oliveira
Pós-graduada em Política e Relações Internacionais pela Fundação
Escola de Sociologia e Política de
São Paulo (FESP), mestranda no
Programa de Estudos Árabes e Judaicos do Departamento de Letras
Orientais da Universidade de São
Paulo (DLO-USP), integrante do
grupo de pesquisa “Conflitos Armados, Massacres e Genocídios da
Era Contemporânea” da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e pesquisadora associada da
Interdisciplinary Research Network on Latin America and the
Arab World (RIMAAL). Email: [email protected].
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POR SAULO
DIREITOS
ESLLEN MARTINS
fotos SAULO ESLLEN MARTINS
Em busca de
um novo rumo
Vulneráveis às violências e perdas afetivas, essas mulheres
ainda conseguem dar a volta por cima
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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51
“Naquele dia, tudo parecia normal.
Acordei cedo e fui para o trabalho. De
lá, segui direto para a escola. Até aí,
nenhuma surpresa. Mas a minha vida
sofreria uma grande mudança de percurso. Em algumas horas, tudo estaria
diferente. Sozinha, na rua, sem saber
para onde ir”. Tudo aconteceu há mais
de 30 anos, mas aquela noite ainda é
viva na memória da ex-moradora de
rua Anita Gomes dos Santos.
O ano era 1977. Naquele fim de
tarde, Anita deixou de seguir a sua
rotina habitual. Ao invés de pegar o
ônibus escolar e ir para casa, decidiu
acompanhar uma amiga até outro
ponto da cidade. Alguns acontecimentos
no caminho fizeram com que ela demorasse muitas horas para chegar em
sua residência, o que mudaria a sua
história para sempre.
“Quando cheguei, me deparei com
papai na sala e um saco de linhagem
no chão, contendo todas as minhas
roupas e pequenos objetos. Não tive a
oportunidade de me explicar. Infelizmente, recebi uma criação muito rígida
e com pouco diálogo”, lembra Anita.
Foi a primeira noite fora de casa.
Contudo, Anita não ficou na rua. Dormiu na casinha dos cachorros. Conta
que passou a madrugada em claro,
sentindo muita dor e desespero. “Minha
vida era trabalho e escola. Eu era uma
menina, não tinha experiência de vida.
Nasci em uma família estruturada, recebi uma boa educação. Quando fui
expulsa de casa, eu tinha 17 anos, estudava no Colégio Comercial, na região
da Pampulha e trabalhava na Escola
de Engenharia. Você acredita?”, comenta, aos risos.
Anita perdeu o rumo, seu mundo
desmoronou. “Quando ia amanhecendo
o dia, então criei coragem e sai em
busca de um abrigo. Muitas portas se
fecharam. Tive uma vida de animal,
dormia no meio do mato. Só consegui
algum apoio quando conheci outras
pessoas em situação de rua. Me acolheram, respeitaram e defenderam.
Com o surgimento da Pastoral de Rua,
recebi um acompanhamento social, assistência mesmo”, enfatiza.
A educadora social Claudenice Rodrigues acompanha a trajetória de muitas
mulheres na Pastoral de Rua de Belo
Horizonte. “A maioria da população
que está nas ruas é composta por homens. Aqui na Capital mineira, dos
1.827 cidadãos nessa condição, cerca
de 20% são mulheres. No entanto, por
si só, o fato de uma mulher estar na
rua já é um elemento que dificulta ainda
mais sua sobrevivência. O risco de sofrer
algum tipo de violência é muito maior.
Devemos pensar que o fato de não ter
um lugar para cuidar da própria privacidade é uma agressão, elas se sentem
humilhadas, expostas”, aponta.
Claudenice esclarece que outra
questão marcante é a degradação da figura feminina. “Quando vemos uma
mulher em situação de rua, muitas
vezes, ela está em um estágio muito
avançado de perda da autoestima.
Com a questão do aumento do uso de
“Tive uma vida de
de animal, dormia no
meio do mato. Só
consegui algum apoio
quando conheci
outras pessoas em
situação de rua”
drogas, acontece também a prostituição, para manter o vício”.
A educadora lida todos os dias com
esse público e consegue identificar diversos fatores que provocam essa mazela
da sociedade. “Existe um mito social de
que todos que estão nas ruas chegaram
nesta situação por causa das drogas.
São muitos e relevantes dilemas pessoais
e coletivos que levam uma pessoa a
morar na rua. A questão das drogas é
só mais um. Os conflitos familiares, as
condições socioeconômicas, o desemprego e a falta de estabilidade emocional
são outros”, afirma Claudenice.
Mães da Rua
A vida dos moradores de rua não é
nada linear, é uma população bem heterogênea e já passou por diversos períodos históricos. Entretanto, segundo
relatos, em todas estas fases, as mulheres exerceram um papel central.
“Nós tivemos um período em que
as pessoas construíam malocas, barracas debaixo dos viadutos, onde se
formavam comunidades chefiadas por
mulheres. Eram as chamadas Mães da
Rua. Os grupos se organizavam em
torno dessa mulher. Ela coordenava as
ações de organização e sobrevivência
e era tratada e respeitada como uma
mãe. Dona Ângela, Dalva, Geralda,
foram figuras marcantes para muitos”,
considera a educadora social.
“Não são apenas histórias tristes
que moram nos relatos que ouvimos.
As mulheres são bem peculiares, quando
aparece uma oportunidade de superar
essa situação elas agarram, planejam
e conseguem vencer, até com mais facilidade do que os homens”. É o que
pensa Claudenice.
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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52
Políticas públicas
Anita (foto) é um bom exemplo, depois de décadas em situação de rua,
conseguiu superar os desafios. Hoje,
faz parte do Movimento Nacional da
População em situação de Rua e ajuda
outras pessoas com sua história de superação. Ela conta que na rua se tornou invisível, entrou no mundo das
drogas, sofreu com a violência de um
companheiro, foi separada de seus filhos, caiu no rio Arrudas e quase morreu, passou por todo tipo de
humilhação. “As pessoas passam e
nem te percebem. É como se você
fosse um objeto jogado ali na calçada.
É uma dor tão profunda que não tenho
palavras para expressá-la. Quantas
vezes recebi cantadas. Então eu dizia:
- Você pode me levar para a sua casa
para eu lavar minha roupa, tomar
banho... A resposta era sempre não!
Aprendi uma lição nessa caminhada.
Você pode descer do topo para o
Revista Elas por Elas - Abril 2015
fundo do poço, em uma fração de segundos. Hoje, tenho minha casa, meus
lindos filhos estão comigo, mantenho
um relacionamento há 20 anos com
um ex-morador de rua. Recuperei a relação com meu pai e sei que ele sente
orgulho de mim. Entro na casa do governador, no Palácio do Planalto. Sou
uma vitoriosa. Construímos uma nova
história, bem mais bonita e feliz”, sintetiza Anita.
“As pessoas passam
e nem te percebem.
É como se você fosse um objeto jogado
ali na calçada”.
Egídia Maria de Almeida Aiexe é advogada e atua em uma série de organizações que defendem os Direitos Humanos. O Fórum de População de Rua
e o Comitê Municipal de Acompanhamento e Monitoramento da População
de Rua são algumas delas. De acordo
com ela, a temática das mulheres demorou a ganhar espaço nos fóruns de
discussão sobre essa parcela da população de Belo Horizonte. “Não tem sido
pensada uma política para esse público.
Como os números apontam para uma
maioria de homens, os projetos de abrigamento, por exemplo, não são realizados para receber mulheres. Então,
uma primeira questão seria criar unidades
de atendimento para mulheres solteiras
e casais também, ampliando esse setor.
Só existem dois abrigos na cidade para
elas”, complementa.
A promoção de ações de assistência específicas é um outro ponto colocado pela advogada. “No abrigo elas
apenas dormem, é necessário criar repúblicas onde possam morar. Temos
apenas a república Maria Maria que
foi criada para recebê-las, mas a sua
capacidade é muito reduzida. Elas
estão em uma zona de extrema vulnerabilidade, frisa Egídia.
Drogas
Uma questão muito discutida sobre
os moradores de rua é o consumo de
drogas. A advogada e militante Egídia
Aiexe destaca, contudo, que o álcool é
predominante, mas antes de qualquer
droga está o conflito familiar. “Geralmente, esses rompimentos afetivos estão na raiz de muitos problemas. Em
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alguns casos, o álcool vem antes, em
outras situações é a consequência.
Nesse meio está, inclusive, a violência
doméstica. É difícil dizer se foi a droga
que levou uma pessoa para a rua ou se
foi na rua que ela se envolveu com os
entorpecentes”.
Um dado relevante, fornecido pela
advogada, contraria as manchetes de
muitos jornais e programas de televisão:
“Apenas uma parcela vai ter contato
com outras substâncias ilegais, mas
não é a maioria. Eles mesmos se dividem entre os que fazem uso de drogas
ilegais e os demais. Os que trabalham
na rua, por exemplo, geralmente consomem álcool e cigarro. Essas coisas
são usadas para suportar os sofrimentos
físicos, emocionais, etc”.
Claudenice Rodrigues, educadora social, acompanha
a trajetória de muitas moradoras de rua em BH.
Abandono
O caminho de Rosângela Pires começou a se tornar sinuoso quando o
marido a deixou com uma filha, em
um barracão de aluguel. “Cheguei na
rua com a minha menina no colo. Peguei apenas as nossas roupas e deixei
os móveis para trás, para pagar o aluguel que eu devia. Conheci um pipoqueiro e ele foi a primeira pessoa que
me ajudou. Eu estava desesperada,
chorando. O medo tomou conta de
mim. As coisas ruins não saíam da minha cabeça”.
No dia seguinte Rosângela conseguiu
o endereço de um albergue. Ela nem
sabia o que era isso. Pensava que fosse
algo parecido com uma prisão. “Fui,
então, para o Tia Branca. Chegando
lá, vi aquela confusão, homens e mulheres pra lá e pra cá. A minha maior
preocupação era com a minha filha
Amanda. Aos poucos fiquei mais tran-
quila, conversei com as funcionárias
do lugar e passei a frequentar a casa
de apoio. Só que, lá, era apenas para
dormir. Eu tinha que encontrar um
lugar onde eu pudesse tomar banho,
lavar as roupas e fazer os cuidados
com a minha filha”.
Aos poucos, a ex-moradora de rua
fez algumas amizades, com pessoas
que já estavam na mesma situação.
Elas a levaram para outras instituições.
“Eu tinha que encontrar
um lugar onde eu
pudesse tomar banho,
lavar as roupas e fazer
os cuidados com a
minha filha”.
Depois disso, chegou a morar na casa
de apoio Maria, Maria. “Nesse processo
acabei colocando a minha filha na Febem, porque eu não queria deixá-la na
rua. Quando ela tinha 4 anos, consegui
retirá-la. Foi aí que conheci o trabalho
da Pastoral de Rua. Depois de um
tempo, no dia do meu aniversário, eu
ganhei um presente que nem imaginava.
Os assistentes sociais me perguntaram:
– Rosângela, você quer um lugar para
morar? Era um barracão de um cômodo
na Pedreira Prado Lopes. Eu aceitei, é
claro! Para mim era um palácio! Nisso,
eu estou lá até hoje”.
Rosângela tem uma vida normal.
Mora com a filha, genro e netos. Mas
ela guarda algumas marcas desse período em que esteve perdida, em busca
da sua própria identidade. Contraiu o
vírus HIV e deu três filhos para a adoção. Um deles morreu, por também
ter desenvolvido a doença.
Revista Elas por Elas - Abril 2015
Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 54
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“Quando vejo uma mulher passando
por tudo isso que já vivi, meu coração
enche de tristeza. Às vezes, busco até
ajudar, mas é difícil, tenho medo da
violência que rola. Tenho dó, principalmente, quando são mulheres grávidas. Dá vontade de pegar e levar para
a minha casa. Só eu sei o que passei.
Não é fácil. Com muita luta, consegui
sair dessa e dar um futuro digno para
a minha filha. Tenho 44 anos e muito
para contar”, explica Rosângela (foto).
No caso dessa ex-moradora de rua,
ela não teve condições financeiras e
emocionais para cuidar dos filhos, por
isso, optou por entregá-los a alguém
que lhes desse uma vida melhor. No entanto, em algumas situações, as mulheres
não tiveram a chance de escolher. A
perda dos filhos trouxe ainda mais sofrimento para vidas marcadas pela dor.
Revista Elas por Elas - Abril 2015
Maternidade
É difícil falar de mulheres e não
mencionar a maternidade. Em 2014,
duas recomendações da Promotoria
da Infância do Ministério Público trouxeram novos elementos para esse debate. Os textos recomendam aos hospitais que os bebês de usuárias de
álcool e outras substâncias, como a
cocaína e o crack, sejam retirados das
mães e encaminhados para abrigos.
Até meados de janeiro deste ano, mais
de 150 crianças já foram afastadas de
suas mães. A população em situação
de rua tem sido afetada diretamente.
Formou-se um círculo, em que a
mãe que vai até a maternidade pode
sofrer uma medida compulsória por
parte da própria instituição de saúde.
Com isso, o Ministério Público e o Jui-
zado da Infância e Juventude determinam
o afastamento entre mães e filhos. No
hospital, a gestante passa por uma triagem de verificação. Se ela estiver em
situação de rua, já é um indício de má
qualidade da saúde familiar. Também é
feito um questionamento sobre o histórico do uso de drogas. Se constatada a
dependência, ela não vai ter chance de
conviver com seus filhos.
Egídia Aiexe relata que não está
sendo avaliado se o uso da droga realmente incapacita essa mãe para cuidar
da criança. “Pode ser que ela faça o
consumo esporádico. Está sendo feita
uma generalização, violando o direito
do bebê e da mãe. A questão central é
o estereótipo, o preconceito que se
coloca sobre a mulher. É preciso avaliar
caso a caso para se chegar a uma decisão. Além do mais, o estado tem que
fornecer ferramentas para que essa família consiga superar as dificuldades,
que podem ser momentâneas”.
O Estatuto da Criança prevê que a
falta ou a insuficiência de recursos materiais não pode, por si só, determinar
a perda da guarda ou do vínculo familiar.
Nesses casos, essas famílias devem ser
incluídas em programas de auxílio. A
legislação obriga o Estado a possibilitar
que aquela mãe tenha condições de
cuidar do filho. Para Egídia Aiexe, o
problema é que as mães não sabem
disso e as assistentes sociais das maternidades também desconhecem essa
informação.
“Temos um outro problema que
são os abrigos. É um serviço de execução indireta. São entidades que se cadastram na Prefeitura para realizar o
serviço. Isso precisa ser repensado,
por que essa instituição não é acompanhada pelos órgãos públicos, além
disso, não participam das discussões
Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 55
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públicas com os demais técnicos da
rede para pensar soluções sobre o
tema. Atua como um terceiro, com
sua lógica própria e isso não é saudável
para essa relação. O Município transfere
a responsabilidade, o que dificulta o
diálogo e o controle social sobre o serviço que é prestado”, afirma Egídia.
Os principais atores dessa discussão
tem sido a Defensoria Pública e o Ministério Público. “Nesse momento o
MP está dividido. Uma parte tem uma
visão muito autoritária e fascista. É um
fato ruim porque a instituição costuma
ser um defensor dos direitos humanos.
Mas, a verdade é que os procuradores
que tomaram essa decisão representam
uma parcela da sociedade que julga
essas mulheres de forma arbitrária e
acredita que retirar os filhos do seu
convívio é a melhor solução. Pensam
como um problema de Polícia ou de
Justiça e não de saúde pública ou de
políticas públicas, como nós entendemos”, destaca Egídia.
Em contraponto à ação do Ministério
Público, a Defensoria Pública da União
e do Estado de Minas Gerais, por meio
de seus setores especializados em Infância e Juventude e Direitos Humanos,
Coletivos e Socioambientais publicou
uma recomendação conjunta no sentido
de proteger essas mães e seus filhos e
evitar a quebra dos laços familiares.
Além disso, foi criada uma rede de profissionais que estão em debate constante
sobre esses casos. O grupo reúne psicólogos, assistentes sociais, advogados,
agentes de saúde, entre outros representantes envolvidos nessa causa.
Uma das reivindicações desse grupo
é que a Defensoria seja comunicada sobre os casos, assim como é feito com o
Ministério Público. Para que o processo
possa ser acompanhado desde o início.
Da maneira como tem sido feito o procedimento, a Defensoria só é informada
quando a criança já está no abrigo.
“Estamos estudando formas legais, possivelmente uma ação civil pública, para
que o Município atenda a essa mulher
que realmente tem dependência química,
de forma que ela não tenha que passar
pela perda da criança. Queremos, ainda,
dialogar com o Juizado da Infância. Estamos correndo o risco de adoções sumárias, o que pode ter ligações com o
tráfico internacional de pessoas”, reivindica Egídia.
Esse debate coloca em foco a situação das mulheres em situação de rua.
Não é uma questão de direito individual
apenas, envolve as demandas coletivas
e o aspecto conservador da sociedade
brasileira. Para a advogada Egídia
Aiexe, a educação em direitos humanos
é fundamental para mudar esse quadro
de preconceito e discriminação. “Precisamos ensinar o que é democracia.
Pensar a realidade considerando que
ela tem vários olhares e perspectivas e
que cada um vai somar em um mesmo
espaço, construindo alguns consensos
e promovendo o debate a todo o
tempo, porque é assim que a humanidade deve caminhar”.ø
“Para a advogada
Egídia Aieixe, a
educação em direitos
humanos é
fundamental para
mudar esse quadro
de preconceito e
discriminação”.
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SER MÃE
POR CECÍLIA ALVIM
fotos MARK FLOREST
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Mães em
restrição de
liberdade
Mulheres
passam a
gravidez e
criam filhos
por um ano
dentro do
presídio
Um muro alto pintado de rosa parece indicar algo diferente, mas um
guarda fortemente armado no portão
lateral confirma: ali é mesmo um presídio feminino. Ao adentrar a instituição, no entanto, é possível perceber
que lá não estão apenas mulheres, mas
também crianças bem pequenas e gestantes. Roupinhas de bebê penduradas
no varal secam ao sol e colorem uma
cinzenta realidade: a do aprisionamento. Assim é o Centro de Referência à Gestante Privada de Liberdade,
localizado em Vespasiano, região metropolitana de Belo Horizonte.
Abrigando atualmente 65 mulheres, o local é destino de mulheres que
tiveram envolvimento com drogas e
crimes. Ali elas pagam suas penas em
condições um pouco mais dignas do
que em penitenciárias tradicionais. A
ideia é proporcionar um ambiente
mais saudável para que as crianças se
desenvolvam um pouco melhor dentro
e fora da barriga, que possam ser amamentadas e reforcem o vínculo com
suas mães, condutas fundamentais no
primeiro ano de vida.
Neste presídio não há grades nem
celas. As mulheres dormem em alojamentos coletivos e berços de ferro
ficam ao lado das camas. Há desenhos
nas paredes, brinquedos e utensílios
infantis. Crianças estão no colo de
suas mães ou de outras mulheres presas, que se ocupam do cuidado
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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enquanto as mães trabalham na oficina
de fabricação de móveis ou na preparação das refeições. Para ajudar na
cozinha, o histórico e o perfil da
mulher são avaliados. Elas recebem
uma remuneração pelo trabalho, que é
gerenciado pela direção do Centro
para compra de itens como fraldas e
produtos de higiene. Ao trabalhar, elas
ocupam suas mentes e reduzem o
tempo de aprisionamento. Para cada
três dias trabalhados, um dia é remido
em suas penas.
A alimentação, segundo a direção
do Centro, é definida por uma nutricionista, em função das gestantes e bebês.
Atualmente, há 24 mulheres grávidas e
41 crianças com suas mães. Uma delas,
no colo de sua mãe, mama e faz valer
o seu direito e a recomendação da Organização Mundial de Saúde para o
aleitamento exclusivo até os seis meses
de idade. O direito à amamentação é
Revista Elas por Elas - Abril 2015
cabível à mulher em qualquer situação,
mesmo que ela se encontre privada de
sua liberdade. Existem previsões legais
na Constituição Federal, bem como na
Lei de Execução Penal e no Estatuto da
Criança e do Adolescente. Ainda segundo a OMS, o aleitamento deveria
ser mantido até os 2 anos de idade,
com alimentação complementar, realidade que o Centro não contempla integralmente.
Mães 100%
As grávidas recebem visitas regulares de uma equipe de saúde da Maternidade Sofia Feldman para ter
acompanhamento pré-natal, e saem
escoltadas para ganhar seus filhos lá.
Depois, retornam com os bebês para
o Centro de Referência, onde eles
ficam até completar um ano de vida.
Esse é um momento difícil: a separação das mães de seus pequenos.
“Quando estão lá com seus filhos,
antes e depois do parto, essas mulheres são mães 100% do tempo. Meses
depois, quando os filhos saem, elas deixam de exercer a função de mãe, o
que gera impactos imprevisíveis para
elas e seus bebês”, aponta o advogado
criminalista e professor universitário,
Virgílio de Mattos.
Essas crianças geralmente são entregues aos cuidados de outras mulheres da família: mães, irmãs, avós, tias,
primas. Segundo a diretora de Segurança do Centro, Maurília da Silva
Gandra, 95% das crianças ficam com
seus familiares. “O Conselho Tutelar
averigua, com antecedência, as pessoas indicadas pela mãe, para saber se
elas têm condições socioeconômicas e
psicológicas de assumir o cuidado dessas crianças”. Há bebês, porém, que
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não têm familiares interessados ou em
condições de assumi-los. Esses têm um
destino ainda mais triste e incerto: um
abrigo público da região, onde serão
cuidados por pessoas desconhecidas.
“A criança cuja mãe não tem respaldo
feminino em sua família, está fadada à
exclusão”, alerta Virgílio.
Embora com uma proposta positiva
de melhorar o ambiente de privação de
liberdade dessas mulheres-mães, o Centro
de Referência à Gestante Privada de Liberdade é mais uma peça na engrenagem
do sistema prisional, marcado pela lógica
de severas punições previstas na legislação penal brasileira, que atinge mais
fortemente mulheres e homens de classes
populares, e também seus filhos. “A
política de justiça social para o neoliberalismo é o encarceramento em massa.
Essa lógica, oriunda dos Estados Unidos
e Inglaterra, está falida há mais de 30
anos”, aponta Virgílio de Mattos.
Diferença de gênero
Atualmente, segundo a Secretaria
Estadual de Defesa Social, há 2.983
mulheres presas em Minas Gerais.
Além do Centro de Referência à Gestante Privada de Liberdade, há outras
unidades prisionais que recebem exclusivamente mulheres em Minas Gerais:
Complexo Penitenciário Feminino Estevão Pinto, Presídio Feminino José
Abranches Gonçalves, Presídio de Caxambú, Ceresp Centro Sul e Presídio
de Paraopeba.
De acordo com os últimos dados do
Departamento Penitenciário Nacional,
do Ministério da Justiça, havia aproximadamente 540 mil presos no país em
2013, sendo mais de 32 mil mulheres.
Baseados nesses dados, e no aumento
expressivo de presas no país, o professor Virgílio de Mattos faz uma projeção
de que em 2015 já haja mais de 700
mil pessoas encarceradas no país, e de
que apenas cerca de 8,5% delas sejam
mulheres, o que mostra uma acentuada
diferença de gênero nessa questão. Segundo ele, mais de dois terços dessas
mulheres estão reclusas por ações relacionadas ao comércio de drogas, muitas
vezes por influência de namorados,
companheiros, filhos e maridos.
“Quando eles são presos, elas passam
a tomar conta dos negócios”, comenta.
Histórias de
silêncio e sonhos
Roberta*, 35 anos, conta que estava na “hora errada e no lugar errado...” Cumpre pena porque foi pega
numa casa onde estavam pessoas envolvidas com o tráfico de drogas. Mãe
de 10 filhos, ela diz que era usuária
desde os 15 anos, e que sempre saía
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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de casa para “fazer uso” longe deles,
para não influenciá-los. Segundo ela,
nenhum tem o mesmo problema. Sua
tia sempre a ajudou a criar os filhos. O
mais velho tem 21 anos e o mais novo
está na barriga. Ela está grávida de 8
meses. O pai do neném que está sendo
gestado também está preso. Enquanto
tece o assento de uma bela cadeira,
que será vendida pela fábrica parceira
da oficina, ela sonha em tecer um futuro melhor: “Saindo daqui, quero renovar a minha vida, recuperar o tempo
perdido, viver para meus filhos”.
Maria*, 33 anos, também está grávida. Seu quarto filho nascerá em
breve. Ficará entregue aos cuidados da
família, até ela cumprir o restante de
sua pena por envolvimento com drogas. Ela diz que preferiria estar em um
presídio comum, onde as crianças são
retiradas das mães bem antes de um
ano de vida. “A gente se apega e de-
Revista Elas por Elas - Abril 2015
pois é muito duro separar do filho da
gente”, diz, com os olhos marejados.
Pede licença da sala onde acontecia a
oficina. “Preciso respirar. Passar por
tudo isso não é fácil...”, relata.
Joana*, 20 anos, troca a fralda de
uma bebezinha em cima de sua cama,
e está grávida de 8 meses. Ela explica:
“Essa é filha da minha irmã, que está
trabalhando na oficina. Estou cuidando
pra ela”. Não só ela e a irmã estão pre-
“A gente se apega e
depois é muito
duro separar do
filho da gente”.
sas. Seus bebês também estão ali, dentro e fora da barriga. Outra irmã, o pai,
e o cunhado estão encarcerados também. Sua história traduz a triste sina da
desigualdade social e racial que penaliza famílias inteiras, sem perspectivas
de futuro. É possível perceber que um
número significativo de mulheres ali
são negras ou morenas.
Iara*, 23 anos, também é negra e
está gestante. Diz que sua prima ficará
com o neném quando nascer. “Ainda
não falei com ela por telefone, só por
carta. Mas ela vai cuidar dele sim, porque gosta muito de mim”. Recém-chegada, parece mais disposta que as
demais. Diz que quer que o tempo
passe logo, para ela ser transferida para
o presídio feminino em sua cidade, no
Triângulo Mineiro, onde mora seu filho
de 3 anos, que sonha poder ver com
frequência. “Estou com muitas saudades dele”, diz emocionada. Ela quer
tirar fotos. “Vocês vão tirar fotos da
gente? É bom porque eu não tenho foto
de mim grávida”, pede e se ajeita para
mostrar a barriga. Ela quer ter uma recordação de uma fase que é pra ser bonita na vida da mulher, mas que é
diferente no caso dela e de tantas outras
que ali estão. As tradicionais fotos de
mulher grávida, cheia de roupas, adereços e mimos infantis, dá lugar ao que é
possível: algumas breves poses, com o
uniforme branco e verde claro do Centro de Referência. Ainda assim, o momento guarda certa alegria, a da espera
maternal, da vida nova que se anuncia
nas curvas daquela barriga.
E nas curvas da vida, um futuro melhor se aproxima para Antônia*, 34
anos. Sua espera já está perto do fim.
Chegou ao Centro há um ano e alguns
meses para cumprir o fim de sua pena.
Passou a gravidez e ganhou sua filha
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lá. A menina já está com 1 ano e 2
meses. “Aqui é diferente de outro presídio onde estive, porque posso ficar
com minha filha, cuidar dela”. Como
Antônia está prestes a “ganhar a liberdade”, a direção permitiu que a menina ficasse um pouco mais para sair
junto com sua mãe, prática que se repete em casos semelhantes. “Quando
sair daqui quero colocar minha filha no
jardim, voltar a trabalhar”. Ela conta,
sorridente, que seu casamento também
foi realizado ali, no fim de 2014. Uma
cerimônia simples oficializou a sua
união com o pai da menina, com quem
já se relaciona há cerca de 7 anos. Segundo ela, o marido a visita semanalmente no presídio. Vai ver a mulher e
a filha, e levar um pouco do que elas
precisam: itens de higiene, afeto, carinho... “Ele tá na luta comigo...”
Situação diferente de boa parte das
mulheres presas ali. Poucas recebem
visitas de seus maridos. “Geralmente,
quando o homem é preso, recebe
visitas regulares de sua mulher. Já a
mulher não costuma receber visitas de
seu companheiro, pois muitas vezes
ele está preso, com mandado de prisão
ou envolvido com atividades ilegais”,
analisa Virgílio.
[ * ] nomes fictícios para preservar a identidade
das mulheres presas.
“Saindo daqui,
quero renovar a
minha vida,
recuperar o tempo
perdido, viver para
meus filhos”
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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Estigma da exclusão
Uma agente penitenciária mostra
um outro lado da história. Sob sua
ótica, boa parte dessas mulheres não é
tão maternal quanto parece. “Exercem
a maternidade integralmente apenas
enquanto estão aqui entregues a essa
função. Do lado de fora, agem diferente, têm outras condutas que as distanciam de seus demais filhos e de uma
vida tranquila”.
Ainda que o Centro de Referência
à Gestante Privada de Liberdade pareça uma ilha no submundo dos presídios brasileiros, uma dura realidade
salta aos olhos: os filhos dessas mulheres são crianças que já nascem presas,
Revista Elas por Elas - Abril 2015
cumprem penas por ações e crimes
que não cometeram... E uma questão
fica no ar: qual será o destino delas? O
que o futuro reserva para quem já
nasce sob o estigma da exclusão?
Enquanto algumas mulheres esperam o parto de seus bebês, outras
esperam, angustiadas, o dia em que
vão se separar de seus filhos, mas
todas, invariavelmente, esperam pelo
dia em que ganharão a tão sonhada
liberdade. “Liberdade − essa palavra, /
que o sonho humano alimenta: / que
não há ninguém que explique / e ninguém que não entenda!”, versos da
poetisa Cecília Meireles, estampados
no muro rosado do pátio interno da
instituição prisional.
Especialista
defende anistia
Para Virgílio de Mattos, que é também membro da Comissão Nacional
de Controle Social na Execução Penal
do Ministério da Justiça, uma medida
humanitária poderia mudar essa triste
história das mulheres presas gestantes
e mães. Uma revisão das penas impostas a elas identificaria quais poderiam
cumprir penas sem restrição de liberdade, para poderem gestar e criar seus
filhos longe da cadeia. “A maioria é ré
primária. Mais de 75% delas não cometeram crimes com violência ou com
grave ameaça contra a pessoa. Há os
casos de mulheres que cometeram crimes para se defenderem de homens
violentos, para não morrerem, para
não apanharem”, destaca Virgílio. De
acordo com ele, mulheres sem antecedentes criminais, e que não cometeram
crimes violentos, poderiam cumprir
suas penas de outra forma, fora da cadeia, sem colocar em risco a sociedade
e o futuro de seus filhos. “Seria possível
anistiar mais de dois terços das mulheres
presas, mas o preconceito faz com
que todo mundo se cale e essa situação
se mantenha assim...”, analisa Virgílio
de Mattos.
Sua proposta de uma anistia para
essas presas parece utópica, mas em
sua visão, deveria ser replicada de uma
forma mais ampla no sistema prisional
brasileiro, com cadeias superlotadas e
em condições ruins de funcionamento.
“A cada dia que passa, prende-se mais
e mal. Muitas pessoas que estão presas
poderiam estar soltas, cumprindo medidas alternativas sem restrição de liberdade, tendo a chance constante de
recriar a própria vida, como é comum a
todo ser humano”, vislumbra Virgílio.ø
Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 63
“algumas mulheres
esperam o parto
de seus bebês,
outras esperam,
angustiadas, o dia
em que vão se
separar de seus
filhos, mas todas,
invariavelmente,
esperam pelo dia em
que ganharão a tão
sonhada liberdade”.
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foto CECÍLIA ALVIM
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SER MÃE
POR CECÍLIA ALVIM
Mãe coragem
Eva Maria da Silva constrói a sua família
com crianças que precisam de um lar
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Uma história
absolutamente singular.
Essa é a síntese, que
não diz tudo, sobre a
vida de Eva ...
Uma mulher que abraça
muitos filhos e acolhe
muitas pessoas,
independentemente de
idade, condição,
escolhas...
Há 31 anos, Eva Maria da Silva recebe em sua casa crianças, adolescentes,
jovens, adultos e idosos que se encontram em situações difíceis ou que perderam suas referências familiares. Em
uma nova moradia, eles têm a chance
de reconstruir suas vidas, baseadas em
afeto, colo de mãe e valores de família.
Diferente de um abrigo convencional, onde as crianças são cuidadas por
funcionários, nessa casa todos são criados como filhos e netos, como parte
integrante de uma família de verdade.
Eva conta com simplicidade: “aqui é
um lar e nós somos uma família”.
Tudo começou em 1984, quando
Eva, casada com Vivaldo Elias de Souza,
já tinha um filho de 3 anos e outro
com cerca de 6 meses. Ela trabalhava
como auxiliar de enfermagem na Copasa. Ao visitar famílias de funcionários,
em vilas e periferias, ela percebeu
muitas histórias de sofrimento e abandono e começou a se perguntar: “Com
a profissão que eu tenho, o que posso
fazer a mais neste mundo?”.
E desde então, Eva fez mais, muito
mais do que imaginava e do que se
possa acreditar. Com dois filhos pequenos, ela foi a uma creche buscar
uma criança que lhe havia sido indicada
para adoção. No entanto, ao chegar
se deparou com um outro menino pequeno e franzino de cerca de 1 ano.
“Era só cabeça e barriga. Estava desnutrido e carente. Senti que era ele.
Com tempo e cuidado, ele se reestabeleceu, teve uma infância tranquila,
estudou”, relata.
Depois disso, ela adotou mais quatro
crianças, até ter mais um filho “de barriga”, como ela chama seus três filhos
biológicos, já que trata todos igualmente
como seus filhos. “A comida é igual
para todos. Nada é separado”, diz um
dos filhos.
Com um neném de colo, ela prosseguiu sua missão de cuidar dos filhos
de outras pessoas. Junto com o marido,
adotaram mais 11 crianças e mantiveram muitas outras sob guarda provisória,
concedida pela Justiça, até que tomassem seu rumo. Vivaldo, casado com
Eva há 35 anos, resume sua percepção
sobre sua esposa em poucas palavras:
“Ela é uma mãe no máximo do dinamismo que a vida se apresenta”.
Em muitos casos, o casal conseguiu
apoiar e promover a reaproximação e
o retorno da pessoa à sua família de
origem. No entanto, muitos ficaram,
pois encontraram ali o que não tinham
experimentando antes: amor de mãe,
de pai, de irmãos, uma cama para
dormir sossegado e sonhar com uma
vida pela frente. “Quando se dissolvem
os laços familiares, você percebe o
medo, a fragilidade, a desconfiança entrar. As pessoas passam a acreditar que
não podem mais ser amadas. E então
elas precisam ter uma experiência de
amor verdadeiro para voltarem a acreditar
em si mesmas e seguirem adiante”.
Filhos de Eva
Ao todo, Eva tem 17 filhos adotados legalmente, sendo 6 deles especiais, pessoas com alguma deficiência.
Sobre quantas pessoas já acolheu, parece até ter perdido a conta, mas lembra de um levantamento feito há 10
anos, quando já tinham passado por
sua casa, por algum tempo, cerca de
1380 pessoas. Depois de mais uma
década, ela estima que esse número
chegue hoje a 2000 pessoas que, de
alguma forma, fizeram e ainda fazem
parte dessa imensa família. “Sempre
acolhi as pessoas que precisavam de
uma casa, de uma família, e nunca tive
restrições de origem, condição, idade,
opção sexual. A gente tem que respeitar as pessoas. Não podemos agir com
egoísmo”.
Todos a consideram como mãe,
porque veem nela a referência de amor
incondicional e cuidado constante que
as mães geralmente dedicam a seus filhos. “Para mim, ser mãe é amar e
respeitar os filhos, independente de
suas escolhas e de suas identidades,
mas é também impor limites, incentivar
para que estudem, tenham profissão,
trabalhem e se desenvolvam”.
Ela conta que alguns dos filhos já
têm família e, destaca, com orgulho
de mãe, que cinco de seus filhos especiais estão trabalhando. “Eles têm horário de trabalho, obrigações, vão de
ônibus, e têm seus próprios salários.
Gosto de ver eles progredindo”. Dois
de seus filhos se formaram em Direito,
uma em Gastronomia, e um em Ciências Contábeis, e todos os outros são
sempre incentivados a estudar.
Questionada sobre como manter a
paz numa casa com tantas pessoas diferentes, de diversas origens e condi-
Revista Elas por Elas - Abril 2015
Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:45 Page 66
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ções, Eva responde com serenidade:
“Aqui em casa, nós cultivamos valores
como respeito, afetividade, diálogo,
colaboração, espiritualidade. Resolvemos os conflitos conversando. Embora
haja as diferenças, há um somatório
de aprendizado”.
Seu conceito de família é muito
mais amplo do que vivem atualmente
as famílias tradicionais, ligadas por relações sanguíneas de parentesco. Vendo
a realidade de Eva, é possível perceber
que, para ela, família é quem vive
junto, buscando o apoio mútuo para
superar as adversidades. “Família é
toda a força que a gente precisa. É o
apoio que as pessoas necessitam para
enfrentar a vida com mais segurança”.
Casa cheia de afeto
Filhos contam
a diferença que
Eva fez em
suas vidas
Sônia Maria da Silva, 51 anos,
mora na casa de Eva há mais de 1
ano, onde diz ter começado sua vida
novamente. “Eu era alcoólatra. Vivi
nas ruas por 26 anos. Depois trabalhei
em casa de família. O álcool só me
trouxe destruição. Já não estou mais
fazendo uso dele. Aqui eu achei o meu
lugar. Tenho carinho de mãe e pai.
Eles cuidam de mim, e eu cuido deles.
Passo boa parte das roupas da casa,
principalmente dos especiais. Acho
que minha velhice vai ser aqui”.
Outra história que ilustra a grandeza
das ações de Eva é a de seu sobrinho
biológico e “filho”, Israel Williano Marcelo da Silva, de 27 anos. Sua mãe,
irmã de Eva, morou na casa por alguns
anos criando seus filhos e ajudando a
criar as demais crianças. Há alguns
anos mudou-se para o interior. Ele
ARQUIVO PESSOAL
Os filhos contam, com alegria, que
a casa fica ainda mais cheia, quando é
aniversário de alguém, ou em datas
festivas como o Natal. “Vem muita
gente que já passou por aqui, e que
mora longe”. Um deles relata que as
viagens anuais da família à praia são
sempre uma festa. “Quando o ônibus
chega com aquele tanto de gente, o
pessoal pensa que é excursão, mas
não, é uma família em férias”.
Para acolher e cuidar de tanta pessoas, Eva sempre contou com a ajuda
de inúmeros amigos que constantemente traziam doações e colaboravam
de diferentes maneiras. Ela ressalta
que nunca teve apoio de órgãos governamentais, porque não quis institucionalizar o que fazia. Sempre fez com
o coração, sem outras intenções.
Atualmente, a residência grande e
modesta abriga 33 pessoas em 5 quartos femininos e 6 quartos masculinos.
O mais novo da casa é um neto de 5
anos. A obra, que não havia sido terminada, foi doada à família no ano
2000 por uma associação que viu na
atuação de Eva o merecimento e a necessidade de espaço para tanta gente
e afeto. No entanto, foi preciso muito
trabalho da família e de amigos para
colocá-la em condições de ser habitada.
Movida pela esperança e pelo desejo
de um futuro melhor para seus filhos,
como toda mãe, Eva vislumbra novos
tempos em uma moradia ainda melhor.
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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CECÍLIA ALVIM
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Mulher... Mãe!
Que traz beleza e luz aos dias
mais difíceis
Que divide sua alma em duas
Para carregar tamanha
sensibilidade com força
Que ganha o mundo
com sua coragem
Que traz paixão no olhar.
ficou para continuar os estudos. Com
o apoio de Eva, Israel estudou e conseguiu um bom emprego. “Eva me incentivou a fazer o vestibular. Quando
me preocupei sobre como ia pagar a
faculdade, ela disse: Comece, que o
dinheiro virá”. E veio. Uma amiga da
família, que mora na Suécia, ajudou a
custear a faculdade de Israel, como de
outros jovens da casa. Ele diz que considera essa senhora como uma de suas
três mães, além de sua mãe biológica,
e de Eva, por quem ele tem muito respeito e gratidão.
“Eva exerce mesmo o papel de
mãe, de colocar a pessoa na sociedade,
através da educação. Escola e saúde
nunca faltaram para ninguém, ela sempre acompanhou de perto. Impressionante é que ela reconhece todos pela
voz, até aqueles que ficam um tempo
distantes”, conta. Israel afirma que Eva
tem uma forma diferente de ver a vida.
“Ela enxerga o que as pessoas normalmente não vêem: que todas as pessoas têm dificuldades, mas têm talentos,
que só precisam de apoio, de alento,
de direcionamento. Se tivesse mais
pessoas no mundo com essa mentalidade, o mundo seria diferente”.
Hoje, Israel é graduado em Ciências
Contábeis, pós-graduado em Gestão
Financeira e trabalha com consultoria
de sistemas. “Graças ao voto de confiança que Eva me deu, eu tenho consciência que não sou apenas mais um,
que eu tenho o meu valor e o meu
lugar no mundo”.
Israel viaja a trabalho constantemente, mas sempre volta para casa,
para perto da sua “grande família”,
como ele diz. “Gosto de estar perto
dos pequenos. Vejo os olhos deles brilhando e lembro de mim, quando criança. Quero ser uma referência para
eles, assim como Eva e Vivaldo foram
e são para mim até hoje”. Segundo Israel, esse convívio familiar faz com
que todos da casa aprendam a olhar o
mundo de forma diferente. “Cresci assim e pretendo seguir minha vida com
essa visão”.ø
Mulher
Que luta pelas suas ideias
Que dá a vida pela “família”
Que ama incondicionalmente
Que se arruma, se perfuma
Que vence sempre o cansaço.
Que chora, que ri
E que sonha.
Todas as mulheres (mães), beleza única, vivas, cheias de
mistérios e encantos!
Mulheres (mães) que deveriam
ser lembradas, amadas, admiradas todos os dias.
Para você, mulher,
mãe tão especial.
Obrigado por existir.
Nós te amamos e te respeitamos, nossa querida mãe Eva!
Cláudio Soares, um dos inúmeros filhos de Eva, escreveu para
ela em nome dos demais irmãos
no Dia das Mães de 2014
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ARTIGO
POR ANAMARIA
NASCIMENTO
fotos TERESA MAIA/DP/D.A.PRESS
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Mães de Noronha
Gestantes do arquipélago vivem “exílio da maternidade”
Numa manhã ensolarada em Fernando de Noronha, ouvi um relato que
me deixou sem sono por muitos dias.
Foi num passeio de barco entre a Praia
da Cacimba do Padre e a Praia do Sancho que escutei de uma moradora do
arquipélago um comentário natural para
quem vive na principal ilha do estado
de Pernambuco, mas assustador para
os que vivem no continente. Numa conversa informal, ela contava ao condutor
da embarcação como uma noronhense
havia burlado o sistema de controle de
natalidade da ilha para ter o filho em
casa. Chocada com o relato brutal de
violência contra as mulheres, perguntei
o que aquilo significava para ela. “Não
podemos ter filho aqui. Aos sete meses
de gestação, somos literamente expulsas
da ilha para termos o bebê no continente. Normalmente vamos para o Recife ou Natal, mas nem sempre temos
familiares lá”, contou.
Minha viagem de férias em Noronha
não foi mais a mesma. Não conseguia
esquecer o que tinha escutado e não
entendia como nós, pernambucanos,
morando no mesmo estado que aquelas
mulheres, sequer conhecíamos aquela
realidade. Retornando da folga, resolvi
investigar a trajetória das mães de Noronha para o jornal onde trabalho, o
Diário de Pernambuco. Após cerca
de três meses de ligações, agendamento
de entrevistas e recusas do governo do
estado para que eu continuasse tocando
a pauta, desembarquei no arquipélago
para descobrir o que havia por trás da
negação dos direitos das mulheres a
terem os filhos perto de casa, com o
apoio do marido e dos familiares.
Longe de parecer um paraíso, a
Noronha daquelas mulheres não tem
os atrativos que encantam os cerca de
60 mil turistas que passam por lá todos
os anos. O resultado dos dias dedicados
a ouvir aquelas mães foi o especial
multimídia Mães de Noronha, que reuniu os depoimentos de mulheres que
lutam por um único direito: o de ter os
filhos perto de casa.
Os partos começaram a ser proibidos em Fernando de Noronha quando
a maternidade do Hospital São Lucas,
o único do arquipélago foi desativado
em 2004. É obrigação do poder público
evitar a explosão populacional para
“Não podemos ter
filho aqui. Aos sete
meses de gestação,
somos literamente
expulsas da ilha para
termos o bebê no
continente”.
preservar o Parque Nacional Marinho
de Fernando de Noronha, área que
corresponde a 70% do território da
ilha oceânica. Oficialmente, o estado
nega que esse tenha sido o motivo da
desativação da maternidade. A pequena
quantidade de partos registrada por
ano em Fernando de Noronha é a justificativa da administração da ilha para
a proibição de partos no hospital.
Os espaços que já foram as salas de
parto e de recém-nascidos do Hospital
São Lucas estão, hoje, abarrotados de
caixas com prontuários, equipamentos
sem uso e cadeiras. A emergência do
hospital recebe, de acordo com a Secretaria Estadual de Saúde, cerca de
800 pessoas por mês. Poucos pacientes,
porém, conseguem sair de lá com um
diagnóstico preciso. Faltam médicos,
remédios e máquinas para realizar exames. Sem saída, muitos pacientes precisam recorrer ao Tratamento Fora do
Domicílio (TFD) e viajar ao continente.
A estrutura precária do hospital e a
ausência de profissionais de saúde em
Noronha foram denunciadas pelos próprios funcionários e por moradores da
ilha. “As paredes estavam rachadas, e
o teto caindo. A direção do hospital
precisou tomar providências sem a
ajuda do estado”, revelou uma funcionária que não quis se identificar. Nas
décadas de 1960 e 1970, o atendimento era feito por médicos da Aeronáutica. Hoje, a gestão está nas mãos
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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da coordenadoria de saúde de Fernando
de Noronha, ligada à Secretaria Estadual
de Saúde de Pernambuco.
Cerca de 40 mulheres de Noronha
dão à luz por ano. É uma média de três
partos por mês. A coordenadora de
saúde do arquipélago, Fátima Souza,
acredita que esses números são ínfimos
frente aos riscos que as mães correriam sem um hospital de alta complexidade. “Os custos para manter uma
maternidade para, no máximo, quatro
partos por mês seriam muito altos.
Além disso, temos um déficit de profissionais permanentes na ilha e de estrutura física”, afirmou.
Ela faz as contas. Para manter a
maternidade em Noronha, seriam necessários 21 médicos por mês, sendo
sete obstetras, sete anestesistas e sete
neonatologistas. O plantão de um médico custa R$ 1,8 mil, totalizando R$
151.200 apenas com a folha de pagamento desses profissionais. “Isso sem
contar com os enfermeiros, técnicos
de enfermagem, impostos, material
médico, passagem, hospedagem e alimentação das equipes. É muito mais
vantagem mandar as mulheres para o
continente”, pontuou.
A médica gestora garante que, no
Recife, as grávidas são acompanhadas
desde o desembarque até o parto. As
recifenses são levadas para a casa de
familiares que permaneceram na capital
pernambucana. As que não têm parentes na cidade são hospedadas em
um hotel pago pelo estado. “Elas são
orientadas por uma equipe formada
por assistente social, nutricionista e
enfermeiras. Para os exames, um carro
da administração faz o transporte dessas
mulheres”, explica Fátima Souza. Os
depoimentos das mães, no entanto,
contradiziam essa informação.
Revista Elas por Elas - Abril 2015
Maternidade do único hospital virou depósito, após ser desativada em 2014.
A cozinheira Marinalva Fonseca confidenciou que foi abandonada pelo
estado quando chegou ao continente.
No oitavo mês da gestação de Tayná,
hoje com 4 anos, Marinalva deixou Noronha com a promessa de que seria
hospedada num hotel em Boa Viagem,
Zona Sul do Recife. Ao chegar à capital
pernambucana, porém, foi encaminhada
para um dos quartos da Casa do Estudante, no Derby, área central da capital
pernambucana. Dividia o espaço com
centenas de jovens de todo o estado,
mas se sentia isolada. “Passei mal numa
noite e decidi voltar para casa. Pensei,
já que me levaram para o Recife na
base da mentira, que eu podia retornar
do mesmo jeito”, relatou.
Três dias depois que retornou à
ilha, a auxiliar de cozinha deu à luz de
parto normal, feito por uma equipe
médica improvisada, no São Lucas. O
Salve Aéreo que atende à ilha foi chamado. “Disseram que eu estava com
restos de placenta no organismo, não
me deixaram ver minha filha depois
que ela nasceu”. Levada de volta ao
Recife, foi atendida por médicos do
Cisam, uma maternidade pública ligada
à Universidade de Pernambuco (UPE).
Conforme o relatório da equipe da
maternidade, o parto aconteceu normalmente, sem a necessidade de internamento. “Acho que a administração
quis me punir”. Thayná mora na Paraíba
com a avó. Nunca conseguiu o status
de moradora permanente da ilha. Já
Marinalva continua em Noronha e
ainda sonha com a possibilidade de
viver ao lado da filha.
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O drama das mães de Noronha
nem sempre começa no momento de
deixar a ilha. Muitas vezes, os problemas
só aparecem na hora do retorno. Permanecer no arquipélago nem sempre
é uma opção para as mulheres que
não nasceram lá e engravidam. A copeira Leyliane Silva morava em Fernando de Noronha há dois anos quando
descobriu que teria que deixar para
trás o sonho de construir uma família.
Como residente temporária, Leyliane
não pode voltar à ilha com a filha sem
pagar a Taxa de Preservação Ambiental
(TPA), valor cobrado a todo turista que
visita a ilha. A taxa custava R$ 45,60
por dia quando a menina nasceu (hoje
o valor é R$ 51,40). Para manter a primeira filha, Beatriz Catarina, no arquipélago, ela precisaria desembolsar R$
1.368,00 mensalmente.
O preço para manter a família
unida, no entanto, não cabia no bolso
da copeira. O pai de Beatriz também é
morador temporário da ilha e não conheceu a filha até os 4 meses. “Vamos
para lá sabendo que a situação das mulheres é complicada, mas é muito difícil
quando chega a nossa vez”, disse. Por
conta do diagnóstico de diabetes gesta-
“A maior herança
que um noronhense
consegue deixar
para o filho é a
possibilidade de
ele ser morador
permanente
da ilha”.
cional, Leilyane viajou cedo para o continente. “A ilha é uma fantasia. Quando
cheguei, achei que estava no paraíso.
Com o tempo, nos damos conta de que
a vida lá é mais complicada do que se
possa imaginar”, revelou. Sem poder
voltar para Fernando de Noronha e
reencontrar o marido, Leilyane vive em
Escada, município da Zona da Mata de
Pernambuco.
Nascer em Noronha é quase como
ter um green card. Foi o que contou a
mulher que ajudou quase 50 mães de
Noronha a dar à luz, mas não conseguiu
ter os seus perto de casa. Auxiliar de
enfermagem do Hospital São Lucas
de 1998 a 2007, Francinete Lins nasceu em Fernando de Noronha. Os
filhos dela, Ruan e Eloá, no entanto,
tiveram que nascer no Recife. Na certidão de nascimento, consta que eles
são noronhenses. Filhos de nativos
têm o direito de serem registrados
como se tivessem nascido na ilha. “A
maior herança que um noronhense
consegue deixar para o filho é a possibilidade de ele ser morador permanente
da ilha”, afirmou.
De acordo com Francinete, há uma
grande incidência de casos de depressão
pós-parto entre as mulheres de Fernando
de Noronha. “Não há estudo que comprove isso, mas já observei que muitas
mulheres acabam tendo sintomas de
depressão após terem dado à luz”, observou. No Brasil, cerca de 40% das
mães desenvolvem depressão, sendo
que em 10% dos casos, o problema
aparece de forma mais severa. “Ficamos
longe da família, do marido, de tudo
para termos nossos filhos. Nossa licença
maternidade começa aos sete meses
de gestação. Temos que retornar ao
trabalho quando o bebê ainda tem dois
meses de vida, mas a única creche da
ilha só aceita as crianças a partir do
quarto mês. Tem como não se desesperar?”, questionou.
Francinete era auxiliar do médico
José de Arimathea, o último a realizar
partos no arquipélago. Nos anos 1990,
ele foi chamado pelo governo de Pernambuco para uma missão amplamente
rejeitada por colegas de profissão: atuar
em Fernando de Noronha, ilha situada
a mais de 500 km do Recife, onde ele
vivia. Como já estava aposentado, decidiu aceitar o convite. Mesmo não
sendo ginecologista e obstetra, o médico
é referência no arquipélago quando o
assunto é parto. “Eu era médico generalista. Tratava desde os doentes mais
simples até as pessoas que precisavam
de cirurgia. De menino pequeno a gestante”. Quando chegou à ilha, não
havia farmácia ou equipamentos para
fazer exames. “Mandávamos buscar
tudo de avião. Os medicamentos só
chegavam no dia seguinte”, recorda.
No ano em que ele precisou retornar
ao Recife por motivos pessoais, o governo desativou a maternidade do Hospital São Lucas. “Eu mesmo sugeri
que não houvesse mais parto na ilha.
As poucas parteiras que atuavam lá
não tinham orientação. Hoje, só se
faz parto com pediatra, anestesista.
Na minha época não tinha isso”, disse.
Atualmente, não existem parteiras em
Fernando de Noronha.
Todos os relatos foram publicados
numa série de reportagens de três dias
do Diário de Pernambuco, em 2013.
As histórias também estão disponíveis
em vídeo pelo site hotsites.diariodepernambuco.com.br/vidaurbana/2013/
maes-de-noronha.ø
A autora é jornalista e repórter do
Diário de Pernambuco
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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foto LAIS RODRIGUES
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POR SAULO
CAPA
ESLLEN MARTINS
Entre o mito
e a realidade
Ciganas sonham com um futuro
sem discriminação
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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“O que era não
deixa de ser;
modifica. Cigano
nunca deixa de
ser cigano”.
A tradição familiar é uma marca
dos povos ciganos que carregam estigmas e mitos que aguçam o imaginário
popular. No nascimento, a menina cigana já tem marcado o seu próprio
destino. Valores como virgindade, casamento e maternidade fazem parte do
universo dessas mulheres que sonham
com um futuro sem discriminação. A
adolescência é uma fronteira atravessada
muito cedo pela jovem cigana, que é
vigiada não só pelos seus familiares,
mas também por toda a comunidade e
precisa sair da escola para se casar.
Quando se fala em ciganos, é preciso
saber que existe uma enorme diversidade de comportamentos que variam
conforme a organização da comunidade. Fatores políticos, socioeconômicos,
religiosos, regionais e familiares podem
interferir em um determinado grupo,
acampamento ou etnia. Não é possível
fazer uma análise, classificando todos
os ciganos sob a mesma ótica. Nem
mesmo a condição das mulheres pode
ser generalizada, sob o risco de se
fazer um julgamento precipitado.
Muitas perguntas ainda ficam sem
resposta quando o assunto é a história
dos ciganos no Brasil. No livro Ciganos
em Minas Gerais, do professor Rodrigo
Corrêa Teixeira, é relatado que a documentação sobre ciganos é escassa, dispersa e parcial. Sendo ágrafas, as comunidades ciganas não deixaram registros escritos sobre sua origem. Ao longo
do tempo, a impressão documentada
sobre eles foi construída por chefes de
polícia, religiosos e viajantes, que traçaram um perfil hostil e estereotipado.
De acordo com o professor Rodrigo,
foram 500 anos de perseguição do
próprio estado contra os ciganos. Por
serem itinerantes, não eram reconhecidos como cidadãos e, por isso, arcaram com toda a sorte de injúrias sobre
o seu povo. Somente com o governo
Lula, foram elaboradas políticas públicas
para atender às demandas dessas minorias na sociedade brasileira.
“É impressionante como essas pessoas sobreviveram a tantas formas de
perseguição, nos últimos séculos. Escravizados na Romênia, expulsos da
Europa por causa do holocausto, destinados a vagar sem rumo. A trajetória
das comunidades ciganas, que possuem
fortes indícios de uma origem Hindu,
foi marcada pela discriminação”, comenta Rodrigo Teixeira.
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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MARK FLOREST
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O professor explica que nesse universo de contradições e mitos, a imagem
da mulher cigana é cheia de nuances.
Enquanto o homem nega a sua identidade, em alguns casos, para fugir do
preconceito, elas precisam de indumentária típica para exercer o papel
de uma figura mística e enigmática,
principalmente, quando o seu trabalho
está voltado para as questões esotéricas
como a leitura de mãos (quiromancia)
e de cartas (cartomancia).
Mulheres Calon
vivem sob as
regras da tradição
“Somos muito diferentes
das outras mulheres.
A questão do respeito
aos pais e ao esposo é
uma tradição que
guardamos”.
Cristina Amaral
Revista Elas por Elas - Abril 2015
Em Minas Gerais, desde a sua chegada e apesar das muitas restrições relativas à ocupação do espaço por essas
comunidades ciganas, a etnia Calon resistiu e é maioria entre os acampamentos
no estado. Lutam por seus direitos e
pela manutenção de sua cultura.
“O que era não deixa de ser; modifica. Cigano nunca deixa de ser cigano”. A frase é de Carlos Amaral,
líder da comunidade de ciganos da
etnia Calon, situada no bairro São Gabriel em Belo Horizonte. São cerca de
100 famílias que moram no lugar há
mais de 30 anos. As mudanças na
forma de viver trouxeram o desafio de
enfrentar as interferências culturais sofridas ao longo dos anos e manter a
identidade cultural do grupo.
O nomadismo deixou de ser uma
necessidade. Em 2014, conquistaram
a posse do terreno. Moram em barracas
e casas simples em meio à metrópole,
contudo, tentam manter tradições ancestrais. Na comunidade Calon são os
homens que ditam as regras. Eles cuidam dos negócios e da organização
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coletiva. As mulheres ficam por conta
da casa e dos filhos. Os casos em que
elas possuem algum tipo de independência são escassos.
Sandra Magalhães (foto) é um
exemplo de como a tradição cigana
dos Calon determina o modo de vida
das mulheres. “Casei-me com 14 anos.
Minha rotina se resume em cuidar da
casa, dos filhos e do marido. É uma
vida boa, eu não trocaria por outra.
Dou aos meus filhos uma criação de
acordo com o que aprendi. Todavia,
acho que minha menina vai ter mais
possibilidades de escolha”.
Ela faz parte de uma das poucas famílias que ainda moram em barracas.
Considera esse tipo de moradia uma
mistura de opção e necessidade. “Possuímos tudo que se tem numa casa: televisão, aparelho de som, cama, até
carro. Só não temos as paredes”,
brinca Sandra.
A jovem cigana não tem receio de
morar em um local aberto, considerado
inseguro por muitos. O que ela tem
mais medo é do preconceito. “Quando
preciso levar minha filha ao médico
ou fazer alguma outra coisa fora do
bairro, não uso minhas roupas tradicionais. Chama muita atenção, parece
que sou de outro mundo. Não gosto
de como os outros me olham. Meu
maior sonho é o fim da discriminação
contra o nosso povo”, afirma.
Para Cristina Amaral, ser cigana é
estar junto com uma comunidade,
aprender os costumes, usar as roupas
e utensílios. “Somos muito diferentes
das outras mulheres. A questão do respeito aos pais e ao esposo é uma tradição que guardamos. Quem cuida de
mim é o meu marido. Por isso, tudo
que eu faço tem que ser com o consentimento dele”. Ela confronta esta
MARK FLOREST
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ideia de que sair pelo mundo sem destino é ter liberdade. “Não é bem assim.
Existia muita perseguição aos ciganos
e as mulheres sofreram e sofrem ainda
mais com o preconceito. Morar em
uma casa é um sonho realizado. Quando
eu vivia debaixo da lona era muito so-
“Meu maior sonho
é o fim da
discriminação
contra o nosso
povo”.
frimento. Todo mundo quer um pouco
de conforto. A vida da minha mãe foi
totalmente diferente, bem mais complicada. Ela viveu todo o tempo em
barraca, sempre viajando a cavalo.
Hoje, temos casa, podemos construir
nossas vidas em um lugar que é nosso”,
comemora Cristina.
Nem todas as mulheres ciganas
estão em uma situação de total dependência dos maridos. De uma geração
que enfrentou muitas dificuldades, Marilene Lopes passou a maior parte da
vida na estrada. Casou-se com 14
anos, passou muitas humilhações, segundo ela, por que era mulher. Trabalhava para comprar comida. Nos últimos
15 anos sua vida mudou. Hoje, está
estabilizada e trabalha com o comércio
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LAIS RODRIGUES
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de tecidos. “Não fico muito parada.
Sou independente, viajo sozinha, gosto
de ter meu próprio dinheiro. Não gosto
de dar muita explicação sobre o que
vou fazer. Tem hora que me dá vontade
de cair no trecho de novo, vou e volto,
estou muito feliz aqui”.
Uma mulher experiente, mãe de
quatro filhos, com um certo grau de
feminismo em suas posturas, Marilene
não é submissa ao seu companheiro,
mas faz questão de manter alguns princípios. “Nossa tradição permite que os
homens estudem até se formarem, porém, as mulheres são retiradas da
Revista Elas por Elas - Abril 2015
escola logo após os dez anos de idade,
para que não passem a adolescência
junto a outros jovens de culturas diferentes. As moças têm que se casar virgens, não podem ser desencaminhadas.
Então evitamos que isso aconteça”.
As meninas estudam até 12 ou 13
anos, de acordo com Marilene, com
essa idade já estão prontas para o matrimônio. Elas não devem buscar uma
profissão. “Isso não quer dizer que
sejam infelizes. Casam-se com quem
gostam e levam uma vida boa. Para
uma mulher fazer faculdade é muito
difícil, raridade mesmo”, acredita.
Marilene relata apenas uma tristeza:
o preconceito contra os ciganos. “Posso
usar qualquer roupa, mas por causa dos
meus dentes de ouro, sou reconhecida
como cigana em qualquer lugar. E muitas
vezes isso não é bom. As pessoas me
reparam de uma maneira diferente, com
medo, despeito, não sei...”.
Em sua dissertação de mestrado, a
professora Camila Similhana pesquisou
sobre as comunidades ciganas e constatou traços machistas na cultura de
algumas comunidades, durante a sua
pesquisa. “Quanto às mulheres ciganas,
é inegável a opressão que sofrem. Em
populações ciganas tradicionais, elas
vivem sob o controle da sogra – que as
tratam como se fossem serviçais –,
são cruelmente punidas caso sejam insubordinadas, em caso de separação
ou traição perdem o poder e o direito
de conviver/criar seus filhos (que são
considerados pertencentes à família
dos maridos), têm sua vida sexual severamente controlada e são rigidamente
banidas caso se unam a homens nãociganos”, opina.
Uma das representações da cultura
cigana que a pesquisadora destaca é a
dança. Conforme relatou Camila, a
dança cigana está intimamente ligada
aos ritos e festas familiares e não à
exibição pública, de maneira semelhante
ao que ocorre em meio aos povos árabes. “Além disso, se você consultar diversas danças ciganas femininas ao redor do mundo, verá que elas não se
movimentam de forma tão solta, tamanha a opressão masculina sobre
elas. Em geral são passos mais contidos.
Algumas ciganas, de locais específicos
como a Índia, têm mais desenvoltura
ao mostrar e usar o quadril. A saia e o
lenço no cabelo, por exemplo, também
tem suas razões: a saia demarca que a
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menina menstruou e entrou num processo que culminará no casamento e o
lenço no cabelo é um sinal de submissão
ao marido”, descreve.
LAIS RODRIGUES
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Um outro olhar
A fotógrafa Laís Rodrigues é vizinha
da comunidade cigana do bairro São
Gabriel. Atualmente desenvolve um
trabalho que retrata o dia a dia das
pessoas que moram ali, com o objetivo
de dar mais visibilidade às demandas
sociais. Ela conta que superou alguns
preconceitos para se aproximar. “Minha
família mora no bairro há 40 anos,
sempre os vi e ouvi histórias sobre
eles, mas precisei crescer, amadurecer,
para conhecê-los de fato. Foi uma boa
surpresa. Tive a certeza de que não
eram nada do que falavam por aí. Primeiro, é impossível não se encantar
com o quanto são receptivos. Segundo,
muitos amam ser fotografados, principalmente as crianças. Eles acreditam
no poder da imagem. Dizem: – Pode
fotografar, claro! Ajuda a gente!
Ao citar o papel das mulheres, Laís
é cuidadosa. “Às vezes, evito falar
muito sobre minha impressão porque
venho de uma cultura diferente. Muita
gente critica o fato de terem traços
machistas. Descobri que muitas coisas
são boatos, não existem mais. Algumas,
ainda sim. E aí me pergunto se por
acaso esqueceram que milhares de outras sociedades também são patriarcais
(pra não falar todas)”. A fotógrafa diz
não se sentir no direito de julgar o
modo de viver da comunidade. “Não
podemos interferir, assim como não
mudamos a cultura das tribos indígenas,
mesmo que para nós seja algo ‘errado’.
Os costumes são deles”.
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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Elas são descendentes de ciganos,
mas não vivem em comunidades. Seus
antepassados saíram do convívio comunitário e iniciaram uma caminhada
em busca de melhores condições de
vida. Cinco mulheres independentes e
que tiveram a oportunidade de concluir
o ensino superior. Nenhuma delas é casada. Vivenciaram experiências fora da
cultura cigana. Juntas, são as responsáveis pela criação da Associação Internacional Maylê Sara Kali, uma organização que atua em defesa dos direitos
dos ciganos, promove o resgate cultural
das etnias e tem uma preocupação particular com a questão de gênero.
Depois de estudar e conquistar uma
profissão retornaram ao convívio com
as comunidades para auxiliar na garantia
de direitos como educação, saúde,
entre outras conquistas sociais que não
chegam aos ciganos. Fazem parte de
uma geração de mulheres que não
abriu mão da identidade, no entanto,
está inserida no mundo convencional.
Lucimara Cavalcanti é uma delas.
Especialista em Marketing, a descendente de uma família de ciganos Kalderash percebeu que poderia utilizar a
dança e os costumes tradicionais para
falar de diversidade e cidadania. “Desde
2012, quando iniciamos a realização
de um Ciclo de Debates na Universidade
de Brasília, nossa atuação foi ampliada
e agora conseguimos ter inserção em
dezoito estados brasileiros e em outros
países. Se pensarmos que nossa trajetória é marcada pela defesa dos direitos
das mulheres, pelo fim da violência de
gênero, respeito, igualdade e crescimento profissional, podemos dizer que
somos feministas”.
Revista Elas por Elas - Abril 2015
LAIS RODRIGUES
Ciganas independentes
e feministas
Em relação às mulheres ciganas,
Lucimara esclarece que é importante
ressaltar a criação de um estereótipo
desde a chegada dos ciganos ao Brasil,
por volta de 1500, como ressonância
do que já era feito na Europa. “Não
são raras as representações da cigana
nas artes plásticas e na literatura européia, pautadas na ideia de uma mulher
fácil, fatal, sensual, enganadora. Essas
informações foram disseminadas e os
ciganos nunca se levantaram para se
defender”.
A militante da causa cigana destaca
que existem grupos familiares sustentados
por mulheres através da arte de ler as
mãos e da cartomancia. “Esse é um
dado. No entanto, em cada família as
coisas acontecem de uma maneira. Não
estou dizendo que todas as ciganas são
assim. Cada comunidade tem suas próprias tradições e costumes”, esclarece.
De acordo com a descendente de
ciganos, em muitos lugares são as
mães e avós que têm a responsabilidade
de manter a cultura do grupo ao qual
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pertencem. Nesses núcleos, os homens
consultam suas mulheres e elas possuem
um papel importante na tomada de
decisões. “Em outras circunstâncias
elas são excluídas desse processo. Existem também casos de violência familiar.
As ciganas não estão isentas dessas
ocorrências”, conta Lucimara. Outro
problema mencionado é o analfabetismo
acentuado entre crianças e jovens. “As
mulheres estão no centro dessa situação.
Temos meninas lindas que não sabem
ler nem escrever o próprio nome. Contudo, as escolas devem estar preparadas
para receber a diversidade da nossa
cultura. Além disso, é preciso incluir o
ponto de vista dos ciganos nos livros
didáticos”, frisa.
Segundo ela, no caso dos casamentos, algumas famílias permitem
que as jovens se casem após os 18
anos. Eles têm entendimento que as
questões biológicas e emocionais podem
interferir no desenvolvimento dessas
garotas. Lucimara enfoca que a cultura
cigana tem muitos contextos e, em todos eles, a mulher tem um papel
central, cita o exemplo de um acampamento em Joinville, Santa Catarina,
onde elas estão mudando o modo de
vida. São cinco irmãs que ficaram
viúvas e não querem mais obedecer às
ordens dos homens. Tornaram-se líderes
do acampamento.
É importante compreender que dentro de um país multicultural como o
Brasil, as mulheres ciganas fazem parte
do imaginário social e, mais do que
isso, auxiliam na construção da identidade do povo brasileiro. Portanto, lutar
contra o preconceito e a discriminação
étnica é também um ato de contribuição
por uma sociedade que respeita a sua
história e os atores que ajudaram a
construí-la.ø
LAIS RODRIGUES
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INTERNET
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REALIDADE
POR NANCI ALVES
A vida no circo
não é brincadeira
Entre o picadeiro e os bastidores,
a mulher se desdobra em vários papéis
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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81
A arte circense, que encanta a
todos, é milenar. Passou por incontáveis
experiências, recebeu influências de
várias culturas, mas uma realidade
nunca mudou: a paixão de quem sobe
no picadeiro, a alegria e acolhida do
público de todas as idades e a falta de
apoio dos governos. Na grande maioria, os circos tradicionais são formados por famílias que,
como micro empreendedoras, aprendem e fazem de tudo. Quando entram
em uma cidade significa uma vitória.
Quer dizer que conseguiram o alvará
de autorização da prefeitura, pagaram
várias taxas e alugaram um lote, mesmo
que nem sempre com preço acessível.
Passada esta etapa, buscam garantir o
acesso à água e energia elétrica, montam a estrutura do circo, divulgam o
espetáculo em toda a região, cuidam
da bilheteria e da praça da alimentação,
fazem fotos durante o espetáculo para
serem vendidas ao final e, claro, depois
de toda esta batalha, apresentam, com
alegria, suas atrações no picadeiro. E
o mais impressionante é que essa rotina
é diária, sem intervalo, pois a cada 15
dias o circo é obrigado a se mudar
para garantir um bom público.
Em meio a tudo isso, a rotina da
mulher circense é um verdadeiro exercício de equilíbrio na corda bamba.
Exatamente por ser seu lugar de trabalho e moradia, a mulher sincroniza o
papel de esposa e de mãe com a de
artista, além de acumular as funções
de bordadeira, costureira, divulgadora
e vendedora dos alimentos que ela
mesma prepara para a praça da alimentação – maçã do amor, algodão
doce, pipoca, batata frita, etc.
Uma rotina bem conhecida pela
pernambucana Rosa Roma, que sempre
viveu no circo. “Nasci de parto natural,
dentro do circo. Minha mãe, Zuleide,
que saiu de cena apenas para eu nascer,
era dançarina e o meu pai, Orlando,
palhaço de um circo dos ciganos. Sou
a terceira geração de circenses em minha família, que continua a tradição
por meio de meus filhos e neta. A minha mãe, aos 17 anos, conheceu
meu pai e, pensando em se casar com
ele, fugiu com o circo. Porém, ele já
era casado e acabou ficando com duas
esposas até que a primeira o largou,
levando seus três filhos”, conta.
Assim, minha mãe continuou com
ele e tiveram seis filhos. “Na medida
em que crescíamos, começávamos a
trabalhar no circo também. Éramos a
Trupe família Roma. Passamos por vários circos fazendo números de altura,
vôo, trapézio, arame esticado”, lembra
Rosa ao revelar que, desde bem pequena, se levantava às 4h30 para ensaiar: “a gente tinha que tomar um banho gelado para despertar e um pouco
de vinho para não ter anemia e, só depois do ensaio, a gente tomava café”.
Entre as histórias, Rosa se recorda
de um acidente que marcou sua vida.
Quando tinha 14 anos, durante um
espetáculo, caiu do trapézio, junto com
“a rotina da
mulher circense
é um verdadeiro
exercício de
equilíbrio na
corda bamba.
seu pai, porque uma mulher circense
cortou o suporte do circo. “Ela, com
ciúme, queria atingir o meu pai. A
lona caiu em cima de todos, mas
apenas nós dois nos machucamos muito, a ponto de ficarmos dois anos em
tratamento, na cama. O dono do circo,
com raiva, foi embora nos abandonando. Ficamos morando em barraca.
Minha mãe teve que sustentar a família
sozinha fazendo tapioca, até que chegou
um novo circo na cidade e nos contratou. Ela trabalhou como bailarina, cantora, porteira, cuidávamos dos animais.
Ficamos neste circo por 8 anos com
todos nós trabalhando. Como tinha
banda de música, comecei a cantar
também”, recorda .
Aos poucos, a família Roma conseguiu montar o próprio circo. “Era
muito simples, tudo com lençóis e se
chamava B1 (Bom e Único). Dois anos
depois, já tínhamos a lona e carroça
com cavalo para o transporte. Fizemos
sociedade com outras pessoas. Nossa
arte era imensa, mas muito mal pagos.
Quando fiz 20 anos, me casei com um
homem que não era de circo, um policial militar”, conta Rosa.
Nessa época, como teve que ficar
na cidade do marido, largou o circo e
investiu no canto. Seu marido contratou
um sanfoneiro (conhecido como a Voz
do Acordeon), para acompanhá-la
nos shows. “Com ele, aprendi outra
profissão e virei compositora. Cheguei
a ser vocalista do Luiz Gonzaga. Fiz
muito shows e me conheciam como
Rosinha do Xaxado, diz. Rosa teve dois filhos e por um tempo
deixou de cantar para cuidar da casa.
Após sete anos de casada, veio a separação e o retorno ao circo. “Mas não
foi fácil, pois perdi minha mãe logo em
seguida. Assim, não tinha com quem
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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CARLA PORTUGAL
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Rosa Roma, sua neta Ranyelle e sua filha Ramyrez
deixar as crianças. Fazia tudo sozinha e
enfrentava a discriminação de estar sem
marido. Muita dificuldade de ser contratada, pois muitos acham que mulher
separada quer arrumar homem. Se for
casada, a situação é bem melhor. Para
evitar problemas de ciúme, no circo,
sempre a própria esposa é a dupla do
marido ou sua assistente de palco”,
explica.
Segundo Rosa, a cada lona levantada, mil histórias para contar. “Me recordo de uma vez, em Campina Verde,
e eu já era conhecida no nordeste pela
música. Uma emissora de rádio descobriu meu aniversário e me chamou para
uma entrevista. Ao vivo, contei minha
vida e que estava enfrentando a doença
do pânico. Quando foi à noite, o circo
estava lotado, como nunca. E as pessoas
Revista Elas por Elas - Abril 2015
gritavam pelo meu nome e chamavam
de guerreira, quando entrei no picadeiro.
Foi emocionante”, lembra Rosa.
Depois de rodar por vários circos e
cidades, seus filhos, já adolescentes,
foram contratados pelo circo do ator
Marcos Frota, em Maceió. “Pouco depois, também trabalhei com vendas,
fotografias, fui camareira e até dirigi
espetáculo deste circo. Hoje minha
filha, com 24 anos, está no Broadway,
se casou com um globista de lá, e tem
uma filha de 4 anos, Ranyelle. Estou
com eles neste circo fazendo recepção,
número musical com dublagem e minha
neta entra junto. Tudo que faço, ela
faz. E meu filho trabalha no Circo dos
Sonhos, no Rio de Janeiro”, conta.
Após a morte da mãe da Rosa,
seus irmãos foram aos poucos, deixando
o circo. Hoje apenas ela e uma irmã,
em São Paulo, seguem a tradição da
família. “Tenho 50 anos e não me
vejo fora do circo. Estudei magistério,
cheguei até a dar aula, mas não era
isso que queria. O circo é o meu lugar.
Costumo dizer que quando chegar a
minha hora de partir, meu velório será
dentro do circo, todos, com figurino,
cantando música circense”, finaliza.
De acordo com a sua filha Ramyrez,
o sonho da família é ter seu próprio
circo. “Estamos trabalhando para realizar este projeto ainda este ano. Eu e
meu marido somos de famílias circenses
tradicionais e queremos dar continuidade
a esta cultura tão importante. Nós,
nossa filha, minha tia, mãe, irmão,
meu padastro, que é iluminador e sonoplasta de circo, enteados...a turma
é grande e será um circo que unirá o
antigo ao moderno, com muita criatividade”, conta Ramyrez.
Respeitável Público
O sonho de ser dona do próprio
circo tornou-se realidade para a família
da amazonense Andréia Carvalho Atiares (40 anos). “Depois de trabalharmos
a vida toda para outros, conseguimos
o nosso Atiare’s Cirkus há menos de
um ano. O mais importante para mim
é mantermos a família no mesmo circo.
Isso é uma vitória e uma bênção de
Deus!”, diz Andréia ao afirmar que o
circo é sua vida. “Comecei aprendendo
a arte aos cinco anos, com balé aéreo,
depois trapézio, até que fui contratada,
aos 15 anos, pelo Big Circo. Aos 18
anos, fui para o Gran Dallas Lincoln
Circos e, ao fazermos uma apresentação na Bolívia, conheci meu marido,
Raomir Atiares, que já era trapezista.
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gamos R$4.000,00 para apenas três
semanas”, desabafa.
O filho mais velho, Roamir Júnior,
20 anos, diz que poder ter o circo foi
a realização de um sonho e que seus
pais são um exemplo para ele. Ao
falar da mãe, ele conta que ela é o
pilar da família. “Se precisar de alguma
coisa, pode ter certeza que ela vai
saber – desde um remédio para algum
problema a um conselho, além, é claro,
do carinho e do colo”, diz.
Amor e circo
Assim como na vida de Rosa Roma,
na história de Andréia Atiares (foto)
também tem caso de gente que fugiu
para se casar com circense. “Quando
eu tinha dois anos, minha tia fugiu
para se casar com o filho do dono de
um circo que ficou um tempo em minha
cidade. Assim, quando eu fiz cinco anos,
sempre passava as férias com eles. Meu
tio me ensinou tudo. Aos 15 anos, a
história se inverteu: eu, contratada, vivia
no circo e ia passar as férias com minha
família”, lembra.
Outra fuga romântica que gerou
uma família tradicional do circo é a vivida por antepassados dos Irmãos Simões. Mas a história de amor que
sabem de cor é a dos seus pais, sr. Francisco e dona Rita de Freitas Simões. Ao
se apaixonar, em meados do século
XX, pelo moço bonito do circo, o violinista, trapezista e também Palhaço Beija Flor, dona Rita, hoje com 75
anos, não teve dúvidas. Abriu mão do
seu conforto da cidade de Lima
Duarte e, com consentimento dos pais,
NANCI ALVES
Ele foi contratado pelo circo onde eu
trabalhava e depois de um ano, nos
casamos. Trabalhamos em vários circos
ao longo da nossa vida (Real Brasil,
Las Vegas, Circo Castelli, Gran Circo
Popular do Brasil, Circo Mundo Mágico,
etc), viajamos com eles para Colômbia,
Peru, Bolívia, além de várias regiões
do Brasil. Conheci muita gente e fiz
amigos, apesar de sermos itinerantes.
Hoje as redes sociais ajudam muito a
manter esta amizade”, conta.
No Atiares Cirkus, o espetáculo é
feito pelo marido de Andréia, os três
filhos do casal, dois sobrinhos e artistas
contratados, de acordo com o lugar
onde vão. Segundo Andréia, ela só
deixou o picadeiro recentemente. “Mesmo grávida, atuava nos espetáculos.
Só depois do sétimo mês de gravidez,
quando a barriga aparecia muito é
que eu parava de fazer o trapézio.
Hoje, assim como meu marido, faço
mil acrobacias para manter o circo,
mas deixei o picadeiro, pois não tenho
tempo para ensaiar. Sempre fui feliz
no circo e não trocaria minha história
com a de ninguém. Claro que fico
cansada, pois lavo roupa, cuido da
limpeza da nossa casa (os trailers),
costuro, divulgo o circo na cidade durante o dia e, na hora do espetáculo, assumo a bilheteria e, em seguida, a
praça de comida. Além da correria do
dia para levar e buscar filho na escola.
Isso quando a gente não tem também
que correr atrás da Secretaria de Educação para conseguir vaga na escola,
pois existem diretores que nos negam
este direito. Mas o mais difícil é conseguir entrar nas cidades, pois as prefeituras fazem de tudo para nos impedir.
Sem falar no custo do aluguel do lote,
pois as cidades não têm lugar específico
para circos. Aqui, onde estamos, pa-
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passamos a usar os trailers”, afirma
dona Rita, que diz sentir saudades de
tudo que viveram”. Depois de muitos
anos, fixaram residência em Contagem
(MG), onde os filhos e, agora, até os
netos fazem espetáculos.
Uma família de quatro gerações de
circo e muita história para contar. Para
Patrícia Simões, filha de dona Rita,
fazer circo sempre foi uma paixão. “Comecei ainda criança, fui equilibrista e
dançarina. Hoje sou auxiliar de mágico
e apresento dança do ventre”, conta.
Também para a nora da dona Rita, Marta Simões, o circo é “fascinante e vai
sequestrando as pessoas”. Atualmente,
trabalha com estética, mas foi artista
circense por muitos anos. “Desde o namoro, já participava dos espetáculos
com malabares, mágica, esquetes hu-
moradas, etc. Claro que para minha família foi uma surpresa e meus pais ficaram inseguros pela vida nômade que
é a do artista circense. Mas o circo foi
um divisor de água em minha vida.
Aprendi a conviver com uma cultura
diferente da minha, um desafio positivo.
Mudei a forma de enxergar o outro.
Consigo olhar para uma pessoa e ver
sua história”, conta Marta.
Na família da dona Rita, todos
aprenderam muito, até cozinhar e cuidar da casa. Para seu filho Lindomar,
um aprendizado para toda vida. “Há
anos, eu faço nossos figurinos. Até a
ter fé aprendi com minha mãe. Posso
dizer que a mulher é fundamental no
circo. Além da beleza feminina, que é
importante no picadeiro, ela é ótima
para administrar também.”, diz.
MARK FLOREST
casou-se, se tornando-se artista também, ao mesmo tempo em que foi dona
de casa e mãe de 13 filhos. Com certeza, uma vida de muita luta e resignação. Hoje, viúva, avó de 20 netos e 5
bisnetos, ela relembra com emoção toda
sua história. “Eu fui artista todo tempo,
parando somente quando os filhos já estavam grandes, mas nunca sofri preconceitos por ser mulher de circo.
Como era familiar, éramos bem recebidos. Mas enfrentamos muitas dificuldades para sermos um circo tradicional,
itinerante. Falta de conforto, água, luz,
problemas com as escolas para filhos...
Várias vezes, o caminhão estragava e
tínhamos que dormir na estrada de
terra, mas fomos felizes. No início, alugávamos casas em cada lugar que chegávamos por uns três meses. Depois,
Dona Rita Simões entre sua filha Patrícia, a neta Yhaninha e, à direita a nora Marta Simões.
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DIVULGAÇÃO
Um olhar
de fora
da lona
Falta de políticas
públicas aumenta
os desafios das
artistas circenses
A estimativa é que ainda existam no
Brasil mais de dois mil circos itinerantes.
Só em Minas Gerais, há cerca de cem.
É o que fala a presidenta da Rede de
Apoio ao Circo (RAC) e autora da obra
Encircopédia - Dicionário Crítico Ilustrado do Circo no Brasil, Sula Kyriacos
Mavrudis(foto). “Trabalhamos com estimativas porque, infelizmente, o circo e
as famílias circenses não entram na
contagem do IBGE. Na hora do censo,
o pesquisador pula o circo e vai para a
próxima casa. Isso é um desrespeito
com eles. Como não são levados em
conta, não existe também uma política
pública que cuide dessa parcela da população. Assim, se enfrentam, por exemplo, uma tempestade e perdem seu
equipamento de trabalho, não terão
amparo legal. Não podem participar
de qualquer outro programa de assistência social como receber a cesta básica
das prefeituras ou o Bolsa Família e
nem participar de projetos culturais por
meio da lei de isenção fiscal porque
não têm endereço fixo”, revela.
Assim, da mesma forma, a mulher
circense não pode, por exemplo, fazer
o pré-natal nos hospitais públicos das
cidades onde chega para uma temporada. “A circense é uma guerreira,
pois é uma educadora sem ter tido
acesso à escola, ensina valores e profissão a partir do que aprendeu no
circo com suas famílias. E ela sabe
brigar pelos direitos dos filhos, por
atendimento em hospital, pela vaga
na escola. É comum ter que ir para a
“O circo e as
famílias circenses
não entram na
contagem do
IBGE”.
Delegacia de Ensino cobrar o cumprimento da Lei 6533/78, quando diretores não aceitam seus filhos na sala
de aula”, explica.
Mesmo compartilhando as responsabilidades da casa e do picadeiro, a
mulher circense ainda enfrenta o machismo e sofre com preconceito por
onde passa. “Mas, em geral, não sofre
violência doméstica, porque os familiares
estão juntos, no trailer ao lado. Nunca
vi usuários de droga e não tem alcóolatras, a não ser alguns que vêm de
fora. Já vi até separação de casal, mas
muitas vezes, continuam no mesmo
circo. Os casamentos são mais longos
e a relação familiar é boa, pois vivem
e trabalham juntos. Existe uma cumplicidade profissional, de criar, ensaiar
e executar juntos, números acrobáticos
com precisão”, conta Sula Mavrudis.
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Na avaliação de Sula Mavrudis, a
falta de políticas públicas para o circo
e a falta de legislação específica, em
todos os níveis, que garantam o direito
ao trabalho, saúde, educação e moradia
têm gerado frustação e, consequentemente, abandono da profissão por
parte de muitos circenses, impactando
na vida das famílias. “É triste ver circenses, para sobreviver, fazendo outras
atividades que não as que aprenderam
pela sua tradição familiar e que, ao
longo da história, lutam sozinhos para
preservar. Isso é uma degradação do
status”, denuncia.
Segundo Sula Mavrudis, muitos deixaram de ser itinerantes e, mesmo com
residência fixa, tentam viver de sua
arte, realizando apresentações avulsas
ou oficinas de circo em escolas, clubes
e eventos em geral. E este tem sido um
dos papéis da Rede de Apoio aos Circos
– além de lutar por acesso a políticas
públicas, ajuda as famílias circenses a
conseguirem retomar suas atividades.
Para isso, há muitos anos, fazem uma
reunião com todos os circenses interessados, às primeiras quartas-feiras do
mês, na sede da RAC. Atualmente, são
60 circos integrantes da Rede.
As novas gerações de circenses,
desanimadas com a falta de apoio
legal, sonham em ser contratadas por
um circo estrangeiro como os da França, Portugal, Las Vegas, onde os circenses são mais valorizados. Para a
coordenadora da RAC, a conclusão é
clara: “O Brasil precisa, urgente, de
políticas públicas para o circo. A técnica
é eterna, mas não o circo. Ele e suas
famílias tradicionais estão em risco de
extinção, pois sempre foram esquecidas
pelos governantes”.
Revista Elas por Elas - Abril 2015
ASACAMPOS
Apoio aos circenses
Circo contemporâneo
A arte milenar experimenta agora
uma ramificação chamada de circo contemporâneo. Os novos artistas aprendem em escolas e não mais com a
família, como antigamente. A primeira
escola de circo surgiu no Rio de Janeiro
em 1982, chamada Escola Nacional de
Circo. Em todo o país, escolas e projetos sociais ensinam as técnicas circen-
ses e, quando formados, os jovens que
participaram criam grupos e passam a
se apresentar ao público. É o que
viveu, por exemplo, a mineira Luciana
Menin(foto) que fez sua formação em
Belo Horizonte e Londres, com balé,
teatro e circo. Depois, já em São Paulo,
trabalhou em espaço aberto por muito
tempo com o Circo Amarillo. Após
dez anos assim, e já casada com o argentino Pablo Nordio, se uniram a sete
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ao acrescentar que o seu sonho é chegar o dia em que toda a família, o casal
e os filhos, formarem a trupe para
“cair no mundo com o circo”.
Outra atriz mineira que também
atuou em um circo contemporâneo é
Teuda Bara, do Grupo Galpão de Teatro. Por quatro anos (2002/06) atuou
em Kà, espetáculo do Cirque du Soleil.
Após passar alguns meses em Montreal
(Canadá) para formação, foi morar em
Las Vegas (EUA), onde apresentava o
espetáculo duas vezes ao dia. “Me admirei quando fui convidada, pois minha
história é com teatro de rua. Foi muito
bom, mas muito diferente de tudo. As
atrações são modernas e trazem muitas
novidades tecnológicas. A única coisa
comum e que não muda, em todo o
mundo, é o palhaço”, conta.
Segundo Teuda(foto), outra grande
vivência foi fazer a Dona Zaira no
filme O Palhaço, de Selton Mello (foto). “Além de ser uma linda personagem e uma bela história, pude viver
como se fosse realmente artista circense.
Muito emocionante. E depois do filme,
fui convidada várias vezes para participar
de eventos ou manifestações sobre
circo. Dói saber e perceber que o circo
tradicional está sendo minado no Brasil.
As prefeituras estão dizimando o circo.
Sempre que posso falo isso com as
autoridades com as quais encontro por
aí. O circo está abaixo da linha da miséria. Por tantos problemas, os grandes
circos vão se acabando e sobrevivendo
apenas os pequenos, de uma ou outra
família. As prefeituras falam que o
circo vai tirar o dinheiro da cidade.
Uma total falta de entendimento. Eles
também consomem na cidade e, muito
mais importante, trazem cultura, diversão e arte”, afirma.ø
Rede de Apoio ao Circo - RAC
Rua da Bahia, 1.148 - sala 1910 - Centro
Cep: 30160-906 - Belo Horizonte - MG
Brasil - TeleFax: (31) 3224.4743
[email protected]
DIVULGAÇÃO O PALHAÇO/ BANANEIRA FILMES
artistas e criaram o Circo Zanni, com
lona que os possibilita fazer um espetáculo para 480 pessoas. Depois de tentarmos bilheteira por algum tempo,
partimos para o trabalho com temporada paga, espetáculos vendidos. Por
ser caro o transporte de tudo, ficamos
mais em São Paulo e viajamos para pequenas temporadas. Não somos de
circo tradicional e, assim, temos residência fixa”, conta Luciana que é mãe
de Guido, de um ano, e Gael, de 5.
Segundo ela, não existe rotina em
sua vida, mas considera que descansa
muito quando está no picadeiro. “Meus
filhos sempre me acompanham e, às
vezes, até entram em cena. Um trabalho
que me possibilita isso é ótimo. Não
vejo dificuldades em ser mãe e profissional de circo, mas preciso reconhecer
que existe machismo em nossa sociedade e as circenses rompem isso, exercendo profissões como trapezista, malabarista, palhaça, administradoras, etc.
As artistas de circo trabalham normalmente, como toda mulher que exerce
alguma profissão, diante de situações
como oscilações hormonais, cólicas
menstruais ou quando está amamentando e o leite suja o figurino, em
cena. São situações com as quais precisamos saber lidar “, conta.
Luciana Menin diz que o circo é a
sua vida. “Apesar de não ser de família
circense, conversando com minha avó,
descobri que a bisavó dela, também
Luciana, que era russa, fugiu do circo
para se casar, deixando a tradição.
Minha avó ficou emocionada ao me
ver entrando para o mundo do circo,
como que retomando esta história.
Acho mesmo que nasci para fazer isso.
A primeira vez que subi no trapézio
parecia que já tinha feito antes, nunca
tive resistência”, conta Luciana
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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foto CECÍLIA ALVIM
Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 88
VIOLÊNCIA
POR CECÍLIA ALVIM
"A gente tem uma
força que desconhece"
A história de uma professora da rede particular que
deu um basta na violência doméstica
Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 89
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A violência doméstica parece ser
realidade somente nas periferias da
cidade, entre as classe populares. No
entanto, cada vez mais se sabe que
mulheres de todas as classes sociais,
inclusive com formação acadêmica,
são vítimas de violência por parte de
seus companheiros. Formada em Letras e professora
há 40 anos, Helena (nome fictício) foi
vítima da agressividade de seu ex-marido. Após 34 anos de relacionamento,
sendo dez de namoro e 24 de casamento, ela deu um basta na violência
que a fez sofrer durante anos, e se separou do marido. “Depois que criei
coragem e saí de casa, comecei a me
cuidar, a gostar de mim de novo”.
Segundo Helena, não foi fácil
tomar essa atitude. Ela sempre achava
que as coisas iam mudar e tinha vergonha de pedir ajuda. “Era difícil falar
sobre o assunto, eu me sentia uma fracassada, querendo me reerguer, mas
sem saber como”. Foi então que, um
dia, ela viu uma notícia na televisão
sobre uma mulher que havia levado
inúmeras facadas de seu marido e decidido dar um fim à violência. “Eu
pensei: vou ter a força dessa mulher.
Entendi que era preciso ter coragem
de denunciar, de falar sobre o assunto,
porque isso inibe quem quer fazer o
mal e dá força a quem precisa sair
dessa situação. Por isso, aceitei dar
este depoimento”. A primeira vez em que foi agredida
fisicamente pelo ex-marido, ficou com
o rosto todo machucado e roxo. Perdeu parte dos dentes, e o rumo da
vida... Passou a viver então sob o
domínio do medo. Ele ameaçou que se
ela contasse para alguém, poderia
fazer algo contra seus pais. Ela ficou
apavorada, e resolveu se preparar para
mudar de vida. “A superação não vem
de fora para dentro, vem de dentro
para fora. É cômodo ser a vítima, mas
é difícil sair desse lugar. É preciso acordar para o fato de que condutas
agressivas por parte de companheiros,
não são normais, e não devem ser
toleradas”. Continuou vivendo na mesma casa
que ele, mas dormia em outro quarto,
com seus dois filhos pequenos, de
porta trancada. “Ele raramente foi um
pai presente e carinhoso. Nessa
época, os meninos passaram a ter
medo dele”. Helena saía para trabalhar
com receio de que pudesse ser alvo de
violência. “Existe a Lei Maria da
Penha, mas na rua você está sozinha.
A gente não se sente protegida”,
conta. “A cada dia que passava, eu
chegava em casa e me sentia uma vitoriosa. Eu achava que ia morrer,
mas não parei pela minha fé”. Houve tempos de alguma convivência em casa, mas nunca mais
confiou naquele que lhe jurou amor
“Existe a Lei
Maria da Penha,
mas na rua você
está sozinha.
A gente não se
sente protegida”
sem fim no altar, até porque ele não
era mais a mesma pessoa que havia
conhecido anos antes. Cerca de três
anos depois do primeiro episódio de
violência extrema, foi comunicar ao
marido que queria se separar, e novamente ele a agrediu. “Dessa vez, eu já
estava mais preparada. Consegui me
defender, e os danos foram menores.
Meus filhos já estavam maiores e ajudaram a me proteger. Nesse dia, eles
me falaram: – Chega, mãe”. Segundo Helena, duas ocasiões extremas de violência e muitos episódios
de comportamentos estranhos, agressões verbais, manifestações de ciúme
e de sentimento de posse a fizeram
chegar à conclusão de que não era possível mais viver daquela forma. Então
ela tomou fôlego, foi até a Delegacia
de Polícia e registrou boletim de ocorrência. Juntou algumas roupas suas e
de seus filhos e foi para a casa da mãe,
onde vive até hoje, reorganizando a
própria vida. O ex-marido não aceitou
a separação consensual, que teve que
ser litigiosa, e só terminou de se resolver recentemente.
Atualmente, ela leciona em uma
escola particular de Belo Horizonte, é
sindicalizada ao Sinpro Minas, e dá
também aulas particulares para complementar a renda. Cuida dos filhos e
caminha pela vida com um sorriso
aberto, que traduz a beleza de quem
redescobriu a própria força de mulher
guerreira que é.” Ele me magoou
muito, mas eu não quis perder a minha
alegria de viver. Nunca pensei em dar
o troco, mas sim em superar, sendo
uma pessoa melhor. A gente tem uma
força que desconhece. Hoje, sou uma
pessoa mais forte e totalmente apaixonada por mim, pela minha força e fé,
e é isso que me move...”
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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Jovens reproduzem machismo
nas redes sociais
Os jovens aprovam a Lei Maria da
Penha e percebem a existência do machismo no país. É o que aponta a pesquisa Violência contra a mulher: o jovem está ligado?, realizada pelo Instituto
Avon em parceria com o Data Popular
e divulgada em dezembro de 2014 durante o Fórum Fale sem Medo, em
São Paulo. No entanto, boa parte desses
jovens “reproduzem comportamentos
que subjugam a autonomia e os direitos
das mulheres e que estão na raiz de diferentes formas de violência física, moral
e psicológica contra mulheres de todas
as idades”, alerta informe do Instituto
Patrícia Galvão, organização que foi
consultora da pesquisa.
Os entrevistados responderam questões sobre diversos temas, entre eles
relacionamentos virtuais, sexualidade,
Lei Maria da Penha e violência nos relacionamentos. Entre os temas que ganharam espaço na pesquisa estão a
cyber vingança e os relacionamentos
afetivos em tempos de redes sociais.
O estudo comprova que “o ciúme em
excesso, a submissão e a necessidade
de controlar o parceiro – até mesmo
sobre o que vestir ou postar nas redes
sociais – são comuns nos relacionamentos entre os jovens”.
“A pesquisa deixa muito claro que
os jovens têm dificuldade em entender
o que é violência. Essa falta de percepção
permite a perpetuação dos atos de
agressão e da desigualdade de gênero.
A pesquisa mostra como tudo isso é
naturalizado na sociedade”, explicou
Jacira Melo, diretora executiva do Instituto Patrícia Galvão, durante o Fórum.
Revista Elas por Elas - Abril 2015
Pesquisa
“Violência contra a mulher:
o jovem está ligado?”
“A sociedade precisa superar as
discriminações e propagar novos
valores de igualdade, sem machismo,
racismo e homofobia”, apontou a
secretária de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Aparecida Gonçalves. Ela destacou que o Ligue 180 recebe em
média 22 mil ligações por dia de
mulheres pedindo ajuda e, a cada
5 minutos, uma mulher é
agredida no Brasil, mesmo após
oito anos da publicação da Lei
Maria da Penha.
Para mudar este cenário, os especialistas presentes ao evento recomendaram como fundamentais
“ações e políticas públicas que envolvam a educação e a mídia, para
disseminar valores de igualdade e
respeito e mostrar que é papel de
toda a sociedade enfrentar as discriminações e reverter a banalização
de todas as formas de violência”,
destacou o informe do Instituto.
“Ações e políticas
que envolvam a
educação e a mídia
podem disseminar
valores como
igualdade e
respeito”
Fonte: Data Popular/Instituro Avon
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ROBERTO STUCKERT FILHO
Lei Maria da Penha reduziu em 10% os
homicídios contra as mulheres
O Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea) divulgou no dia 04 de
março em Brasília um estudo sobre a
efetividade da Lei Maria da Penha
(LMP) e outro sobre a institucionalização
das políticas protetivas à mulher. No
primeiro artigo os pesquisadores do
Instituto utilizaram dados do Sistema
de Informações sobre Mortalidade do
SUS e um método conhecido como
‘modelo de diferenças em diferenças’,
para estimar a existência de efeitos da
lei na redução de homicídios de mulheres brasileiras. “A LMP fez diminuir
em cerca de 10% a taxa de homicídio
contra as mulheres dentro das residências. Isto implica dizer que a Lei foi
responsável por evitar milhares de
casos de violência doméstica no país”.
O estudo apontou ainda que a Lei
Maria da Penha “modificou o tratamento do Estado em relação aos casos
envolvendo violência doméstica, através
de três canais: aumentou o custo da
pena para o agressor; aumentou o
empoderamento e as condições de segurança para que a vítima pudesse denunciar; e aperfeiçoou os mecanismos
jurisdicionais, possibilitando que o sistema de justiça criminal atendesse de
forma mais efetiva os casos envolvendo
violência doméstica”.
No segundo artigo os pesquisadores
fizeram um mapeamento inédito dos
serviços protetivos para as mulheres
em situação de risco que foram institucionalizados no território brasileiro. Segundo a análise, houve um “crescente
processo de expansão das Redes de
Atendimento e Enfrentamento no Brasil,
ainda que, nesse momento inicial de
implantação, os serviços estejam concentrados, majoritariamente, nas regiões
metropolitanas dos estados”.
Uma iniciativa positiva de expansão
da rede de enfrentamento à violência
é o Projeto Casa da Mulher Brasileira, que consiste na construção de
um complexo, em cada capital do País,
que comportará todos os serviços especializados para atender as mulheres
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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em situação de violência, incluindo delegacia, juizado, defensoria, promotoria,
equipes psicossociais e de orientação
para emprego e renda, além de brinquedoteca e área de convivência.
“Hoje a mulher vai à delegacia e
fica quatro, cinco horas esperando.
Até sair a medida protetiva, demora
48 horas. Depois ela tem que ir ao juizado, demora mais um dia. Depois na
defensoria. Então, ela termina tirando
cinco dias para poder cuidar disso. Na
Casa, vai ser um dia só”, ressaltou a
secretária de Enfrentamento à Violência
da SPM/PR, Aparecida Gonçalves.
Em fevereiro de 2015, a presidenta
Dilma Rousseff participou da inauguração
da primeira Casa da Mulher Brasileira,
em Campo Grande, Mato Grosso do
Sul. A previsão do Governo Federal é
de implantar, até 2016 uma Casa em
cada capital do País, até 2016, exceto
Recife, que não aderiu ao programa.
Feminicídio
agora é crime
hediondo
A presidenta Dilma Rousseff sancionou no dia 9 de março, a Lei do
Feminicídio. Com isso, passou a ser
considerado crime hediondo o assassinato de mulheres decorrente de violência doméstica ou de discriminação
de gênero. O anúncio de que a lei
seria sancionada foi feito no último dia
8 de março, em comemoração ao Dia
Internacional da Mulher, em um pronunciamento realizado na rádio e TV.
A lei que tipifica o feminicídio como
homicídio qualificado e o inclui no rol
de crimes hediondos é considerada por
Revista Elas por Elas - Abril 2015
Campanha educativa
A Campanha Quem ama, abraça
ocupou-se, em 2013/14, com “o fortalecimento do espaço escolar como
campo privilegiado para reflexão e
superação das diferentes formas de
violência contra a mulher – simbólicas
ou explícitas – presentes no cotidiano
das crianças e jovens”. Segundo a
especialistas ouvidas pela Agência Brasil,
um avanço na luta pelos direitos das
mulheres. Para a representante da
ONU Mulheres Brasil, Nadine Gasman,
a aprovação do projeto representa
avanço político, legislativo e social.
“Temos falado há muito tempo da
importância de dar um nome a esse
crime. A aprovação coloca o Brasil
como um dos 16 países da América
Latina que identificam o crime com
nome próprio”, disse.
O texto modifica o Código Penal
para incluir o crime – assassinato de
mulher por razões de gênero – entre
os tipos de homicídio qualificado. Prevê
também o aumento da pena em um
terço se o assassinato acontecer durante
a gestação ou nos três meses posteriores
ao parto; se for contra adolescente
Campanha, “a função social da escola
é extremamente relevante pela possibilidade de que, ao disseminar valores
através de sua atuação pedagógica,
pode instrumentalizar crianças e jovens
para o exercício real da cidadania” e
para a superação das desigualdades de
gênero.
O site www.quemamaabraca.org.br
disponibiliza informações, atividades,
clipes musicais e jogos que professores
podem utilizar com seus alunos para
promover a conscientização e a discussão sobre o enfrentamento à violência contra as mulheres.
“Quem ama, ajuda. Quem ama,
agrada. Dá carinho e dá calor.
Quem ama, cuida. Quem ama,
abraça. Não maltrata o seu amor.”
Trecho do clip da Campanha, que teve a participação de vários artistas
menor de 14 anos ou contra uma pessoa acima de 60 anos ou, ainda, contra
uma pessoa com deficiência. A pena é
agravada também quando o crime for
cometido na presença de descendente
ou ascendente da vítima.
O projeto de Lei 8305/14 do Senado foi elaborado pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da
Violência contra a Mulher. Na justificativa do projeto de lei, a CPMI destacou
que, de 2000 a 2010, 43,7 mil mulheres foram assassinadas no Brasil,
sendo que mais de 40% das vítimas
foram mortas dentro de suas casas,
muitas pelos companheiros ou ex-companheiros. Além disso, a comissão informou que a estatística colocou o
Brasil na sétima posição mundial de
assassinatos de mulheres.ø
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93
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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ARQUIVO PESSOAL
94
Professora Marli Pereira realiza Chá da Vovó com seus alunos.
EDUCAÇÃO
POR CECÍLIA ALVIM
Profissão docente:
uma escolha de valor
Prêmios valorizam iniciativas de professoras que fazem a diferença
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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O ofício do professor e da professora
é ensinar, despertar o interesse dos
alunos pelos saberes e acontecimentos
do mundo, desenvolver atividades que
façam aflorar a criatividade e o gosto
pela vida, transmitir conhecimentos e
valores humanos que acompanhem os
alunos pelos caminhos que forem trilhar... Mesmo sendo uma profissão antiga, os mestres têm sempre que renovar
o propósito de educar, para que suas
práticas se adaptem às mudanças e
demandas dos novos tempos. Diante
disso, novos projetos surgem e trazem
novos ares para o cotidiano escolar.
Algumas dessas práticas, então, tornam-se conhecidas através de prêmios
promovidos para incentivar os professores a aprimorar sua atuação em sala
de aula. Um desses prêmios foi promovido em 2014 pelo Sinpro
Minas, Nandyala Livraria & Editora,
Sind-Ute, entre outras entidades. O
Prêmio Educa Minas para a Diversidade destacou ações pedagógicas voltadas para o respeito à diversidade étnico-racial, desenvolvidas por professores da Educação Básica de escolas
privadas e públicas de Minas Gerais.
A iniciativa premiou docentes que
fazem acontecer a Lei 10.639 em suas
escolas. Essa lei, que tornou obrigatório
o ensino da História e Cultura Afrobrasileira no ensino fundamental e médio desde 2003, foi atualizada pela
Lei 11.645/2008, que acrescentou o
ensino da História e Cultura Indígena
no currículo escolar. Em 2013, essa
legislação foi alterada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(Lei 12.796).
Doze anos depois da aprovação da
lei 10.639, ainda pouco se faz para
que ela se torne realidade em boa parte
das escolas brasileiras. Para a diretora
do Sinpro Minas, Terezinha Avelar, a
temática deve permear o projeto político-pedagógico das instituições de ensino
ao longo de todo o ano. “Essa discussão
deve envolver todos os professores,
pois não pode ser responsabilidade de
uma pessoa somente. Muitas vezes, se
espera ou se delega essa iniciativa a
professoras negras”. Para ela, o Prêmio
Educa Minas realça o papel do/a professor/a na implementação da lei. “Premiar é valorizar quem já está fazendo,
para que outros professores acompanhem e vençam as resistências à temática
no ambiente escolar”.
Em Minas Gerais, doze professores/as da rede particular, filiados/as
ao Sinpro, tiveram seus projetos de
implementação da Lei 10.639 reconhecidos pelo Prêmio Educa Minas.
Um desses projetos premiados foi desenvolvido pela professora Fernanda
Gontijo de Abreu, e mais seis professores, em uma escola de Belo Horizonte, dentro do Projeto Institucional
desenvolvido ao longo de 2013.
O tema central do projeto foi a
presença do negro na brasilidade. “Considerávamos urgente problematizar a
presença do negro no Brasil, que
parece cada vez mais se esquecer da
sua história, e que ainda mantém ar-
“Premiar é valorizar
quem já está fazendo,
para que outros
professores
acompanhem e
vençam as resistências
à temática no
ambiente escolar”.
raigadas e dissimuladas posturas de
preconceito, exclusão e dominação
quando o assunto é a questão racial, a
liberdade e a igualdade de oportunidades”, destacou a professora Fernanda
Gontijo. O projeto se desdobrou em
ações pedagógicas nas áreas de Ciências, História, Geografia, Artes, Português, Música e Literatura. O trabalho
desenvolvido pela professora Fernanda
na área de Língua Portuguesa foi a
produção de um jornal com artigos de
interesse dos alunos sobre o tema.
Além disso, eles realizaram pesquisas
orientadas pelos professores, assistiram
filmes, visitaram a Comunidade Quilombola de Mangueira, localizada no
bairro Aarão Reis, a Casa África (centro
cultural e consulado do Senegal em
BH), e participaram de uma palestra e
atividade de capoeira coletiva com o
Mestre João Angoleiro e alguns capoeiristas. Como resultado, os alunos
produziram diversos trabalhos plásticos,
literários e científicos, que ficaram expostos até a primeira etapa de 2014,
e receberam visitas da comunidade escolar, além de moradores do bairro.
Para Fernanda Gontijo, o projeto
gerou aprendizado para todos os
envolvidos, inclusive para os professores. “Eu mais aprendi do que ‘ensinei’,
o que é muito bom. Um trabalho que
investe no desenvolvimento do pensamento crítico, e não dogmático,
mobiliza saberes para todos os que
estejam verdadeiramente envolvidos
com a proposta”. Ela conta que o projeto a fez reviver e resgatar as mais
inspiradoras experiências de sua infância e adolescência dentro do ambiente
escolar. “Ao discutir o tema da negritude na brasilidade, vieram à tona
também os temas implícitos da liberdade, justiça, valorização e dignidade
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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humana, o que ressignificou para mim
toda uma temática profissional e
humana”, relata Fernanda.
De acordo com ela, os problemas
que envolvem a questão racial no Brasil
e no mundo refletem a história de dominação e saqueamento de direitos e
bens culturais do povo negro, disseminada ao longo de muitos séculos. “É
preciso muito trabalho e o amplo acesso
a uma educação de qualidade para transformar o que se naturalizou historicamente. O professor é, por isso, peçachave no percurso da transformação e
justiça social ao investir em um trabalho
diferenciado em sala de aula, mesmo
em condições adversas”, observa.
Riqueza africana
ARQUIVO PESSOAL
Outra iniciativa reconhecida pelo
Prêmio Educa Minas é a da professora
Aline Tadeu Lopes, também em uma
escola particular da capital. Ela desenvolveu o projeto Cultura Afro-brasileira
e Africana com alunos de diferentes
idades do 1º ao 5º ano do Ensino Fun-
damental. Diversas atividades apresentaram um pouco da riqueza que o continente africano trouxe para o Brasil.
As crianças participaram de brincadeiras
de origem africana, de contação de histórias, de peça teatral, de exposição de
telas do artista Marcial Ávila com o
tema Anjos Negros, de conversa com
pessoas de origem angolana, que levaram
à escola esculturas e informações sobre
a cultura e a comida do país, e também
assistiram a uma apresentação de dança
afro com o Grupo Bataka. Ela conta
que os alunos gostaram muito do projeto,
que foi também premiado no prêmio
Inovações Pedagógicas, do Sesc.
Aline conta que, desde que cursou
Pedagogia, se preocupou em aprofundar
na temática, e por isso, fez sua monografia sobre a Lei 10.639. Para ela, a
educação é um instrumento para a construção de uma sociedade anti-racista.
“Cabe a nós, professoras e professores,
promover atividades voltadas para a
questão étnico-racial, pois é assim que
construiremos uma educação voltada
para o respeito e valorização do negro
na sociedade brasileira”, destaca.
Professora Fernanda Gontijo realiza visita à Casa África.
Revista Elas por Elas - Abril 2015
Professoras
são maioria nas
escolas
brasileiras
Outra premiação, em escala nacional, também repercute iniciativas de
professoras que resolveram fazer diferente em suas escolas e assim fizeram
a diferença na vida de inúmeros alunos.
É o Prêmio Professores do Brasil,
cuja cerimônia de sua 8ª edição foi
realizada em dezembro de 2014, na
cidade de São Paulo. Promovido pelo
Ministério da Educação, o prêmio reconhece iniciativas de professores da
educação básica pública. “O prêmio
atende a uma das metas do Plano Nacional de Educação, a valorização dos
professores. Necessitamos de ações
que tornem os educadores motivados
e comprometidos. Com acesso a planos
de carreira, salários atrativos, formação
inicial e continuada de qualidade, reconhecimento de seu papel social e
referência para a nossa sociedade”,
aponta o documento final do Prêmio.
Em 2014, concorreram 6.808 projetos, e apenas 39 professores foram
premiados por suas iniciativas. O resultado confirma a participação majoritária das mulheres na educação. Foram
32 professoras e apenas sete professores premiados. No universo mais
amplo das escolas públicas brasileiras,
as mulheres são mesmo maioria. Segundo dados do Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira (Inep), ligado ao Ministério da
Educação, em 2013, havia 2.148.023
professores na educação básica, e,
deste total, 1.724.653 eram mulheres.
Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 97
IMAGEM TV ESCOLA
97
Em Minas Gerais, há 186.184 mulheres e apenas 37.329 homens nas
salas de aula das escolas públicas. Duas
dessas mulheres foram vencedoras da
oitava edição do Prêmio Professores
do Brasil 2014. É o caso de Marli Pereira da Silva Morais, professora na Escola Municipal Gil Brasileiro da Silva,
em Itapagipe, no Triângulo Mineiro.
Ela recebeu o prêmio pelo projeto “Mala
Viajante”, desenvolvido com 24 alunos
do 4º ano do Ensino Fundamental.
A cada semana escolar do ano de
2014, um aluno levou para casa uma
divertida mala com livros para serem
lidos com a família, além de uma cópia
do projeto e de fichas para os pais entenderem a proposta e avaliarem a leitura. Deu tão certo que, depois de envolver os pais, o projeto alcançou tam-
bém as avós. Inspirado pela dona
Benta, avó dos personagens principais
do Sítio do Picapau Amarelo, de
Monteiro Lobato, e pelo livro A colcha
de retalhos, de Conceil Corrêa da
Silva e Nye Ribeiro, que narra a relação
entre avó e neto, o sub-projeto “Aprendi
com a vovó” trouxe a sabedoria das
mulheres mais velhas da família para
dentro da sala de aula.
Histórias e valores
Cada aluno foi convidado a trazer
um retalho significativo de casa e a
contar a história daquele pedaço de
pano, muitas vezes cedido por avós ou
mães. Os retalhos transformaram-se
em uma colorida colcha de retalhos,
que passou a forrar a mesa da sala.
Com empenho de todos, foi então realizado o Chá da Vovó, com a presença
das avós e de seus quitutes e receitas.
Algumas delas disseram nunca terem
sido chamadas na escola dos netos
para participar como avós, e que se
sentiram felizes pela homenagem recebida. A partir da leitura dos livros da
mala e das atividades relacionadas, os
alunos desenvolveram diferentes tipos
de texto, reforçaram o aprendizado de
valores como respeito e colaboração,
e passaram a contar com a participação mais ativa da família em sua
vida escolar.
A professora Marli conta que ficou
contente em desenvolver o projeto e
por ter sua iniciativa valorizada pelo
Prêmio Professores do Brasil. “A so-
Revista Elas por Elas - Abril 2015
Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 98
ciedade passa a te olhar com mais respeito, a escola cresce e os alunos ficam
mais confiantes e mais motivados, enfim, todos ganham”, relata. Segundo
ela, ser professora não é uma tarefa
fácil, mas é gratificante. “Gosto muito
do que faço. O que eu sei fazer é dar
aula. Quando você vê que uma ação
sua fez a diferença na vida das pessoas,
é a melhor realização, é um prêmio.
Apesar dos desafios, eu ainda acredito
muito na educação”, completa Marli.
ARQUIVO PESSOAL
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Aula de cidadania
Outra professora mineira reconhecida pelo Prêmio Professores do Brasil
é Soraya Amaral Nantes de Castilho.
Ela é professora de Química na Escola
Estadual Benedito Ferreira Calafiori,
em São Sebastião do Paraíso, no Sul
de Minas. Seu projeto Ditão em ação:
descarte de pilhas e baterias foi desenvolvido com cerca de 200 alunos
do 3º ano do Ensino Médio.
Ao longo de 2013, eles recolheram
cerca de 400 quilos de pilhas e baterias
e cuidaram do envio do material para
uma empresa de reciclagem. O projeto
nasceu quando a professora Soraya
constatou o desconhecimento dos alunos sobre o funcionamento e a composição desses produtos e, principalmente, sobre como descartá-los no fim
de sua vida útil. Foi preciso então estudar a teoria, assistir a vídeos e colocar
em prática as ideias que surgiram. Os
alunos construíram, então, baterias rudimentares com limões e batatas, criaram panfletos sobre reciclagem e uma
música sobre o descarte correto de pilhas e baterias. Também criaram coletores (papa-pilhas) e hoje há dezenas
deles espalhados pela cidade.
Revista Elas por Elas - Abril 2015
Soraya Amaral conta que o projeto
mudou sua forma de atuar na escola e
na vida. “Hoje me sinto cada vez mais
responsável pelos problemas ambientais
ao meu redor. Continuo procurando
parcerias para ampliar o projeto a fim
de informar, sensibilizar e aumentar a
consciência ambiental de novos alunos
e da população”, relata. Assim, ela
continua a incentivar a criação de mais
postos de recolhimento de pilhas e baterias em sua cidade. “Precisamos evitar
o descarte na natureza de metais pesados, tão prejudiciais à sustentabilidade
do planeta e à saúde da humanidade”,
observa. Com sua visão consciente, a
professora Soraya dá uma aula de cidadania. “O papel do professor é garantir a aprendizagem, criar possibilidades de construção do conhecimento,
transmitir valores, atitudes e habilidades,
mas, sobretudo, acreditar no potencial
dos alunos, permitindo-lhes crescer
como pessoas, como cidadãos e como
futuros trabalhadores”, completa.
Professora
conta que foi
influenciada por
outras mulheres
a seguir a
profissão
Fernanda Gontijo de Abreu (foto),
professora de Língua Portuguesa de
uma escola particular de BH, escolheu
a profissão inspirada por sua mãe professora e por sua rica vivência com
suas professoras desde a infância. Por
sua atuação diferenciada e integrada à
equipe de professores da escola, ela
recebeu o Prêmio Educa Minas para
a Diversidade, em dezembro de 2014.
Nessa entrevista, ela conta um pouco
de sua trajetória no ambiente escolar,
expõe sua crença no papel transformador da educação, e repercute os
desafios encontrados pelas professoras
para exercer a profissão.
Como surgiu o interesse pela
profissão?
Desde criança, tenho um envolvimento especial com o ambiente escolar.
Um dos motivos é o fato de eu ser
filha de professora. Minha mãe lecionou
por anos no ensino infantil do tradicional
Instituto de Educação de Belo Horizonte
em uma época em que ali se apostava
na ampla formação do aluno: refirome, obviamente, não apenas à formação cognitiva, mas a que também
levava seriamente em conta a emoção,
a sociabilidade e o desenvolvimento
dos valores éticos, o que fazia a equipe
docente investir criteriosamente no
saber lúdico e inventivo, na alegria da
convivência na escola, na leitura crítica
Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 99
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sonantes com o ritmo acelerado, massificado e descartável das informações
presentes em um mundo cujo principal
valor é o capital e o consumo. Mesmo
nesse período de minha vida estudantil,
o ambiente escolar era instigante para
mim pelo esforço solitário que eu fazia
para questioná-lo, compará-lo, compreendê-lo. Acho que é por isso que
até hoje estou na escola... como professora e como aluna, pois, mesmo trabalhando, jamais parei de estudar.... E
sim, as instituições de ensino ainda continuam sendo para mim, em muitos aspectos, espaços cheios de incoerências
e que devem ser repensados em sua
forma de agir, ensinar, amar...
Quais os desafios para conciliar
a docência com a vida pessoal e a
família?
É um desafio constante, já que
todo(a) professor(a) trabalha muito também fora da sala de aula, fazendo planejamentos, preparando atividades, estudando, tratando da burocracia que
uma escola exige... O trabalho é muito
e a família acaba se acostumando e
aprendendo a lidar com isso. De toda
forma, acredito que, como todo trabalho
que é feito com empenho, a compensação é dada pelo efeito que vemos
ocorrer em nosso público, no setor social ao qual servimos. Isso é muito gratificante! Quando percebo que os alunos
estão crescendo como seres humanos
e pensantes, e que pude contribuir um
pouco para isso, fico feliz e já me sinto
recompensada por meu investimento.
E a família, quando nos percebe fortes
e integrados com o que realizamos
profissionalmente, se inspira nesse
vigor e acaba procurando caminhos
de realização também.
O esforço e os desafios são imensos
(na profissão de professor, isso é histórico e já há muito é uma questão a
ser definida politicamente), mas é preciso não abrir mão de uma vida saudável, com tempo para lazer e convivência
com aqueles que prezamos. Porém,
acredito que a principal fonte de revitalização venha mesmo do próprio trabalho feito em consonância com o que
acreditamos.ø
ARQUIVO PESSOAL
e aprofundada desde a alfabetização,
respeitando-se a gradual, mas profunda
inserção da criança no mundo da escrita
e da leitura.
Como a instituição em que minha
mãe trabalhou foi a mesma em que estudei até a 4ª série, tive o privilégio de
ter professores(as) que lecionavam com
criatividade, bom humor e muita dedicação. Lembro-me, por exemplo, com
grande carinho, da professora de matemática da 3ª série – a Margô –, que,
vejam bem!, ensinava matemática com
poesia, apresentando a cada aula um
novo poema do qual os alunos deveriam descobrir, pela sugestão da rima,
a última palavra. Esta prática levavanos a refletir, antes de simplesmente
“aprender” a matéria, sobre o tema a
ser trabalhado dentro do conteúdo matemático proposto.
Não tenho dúvidas, portanto, de
que a maneira como pratico a minha
profissão, que já vai para mais de 10
anos, está intimamente ligada à minha
passagem na infância por escolas que
souberam transmitir-me uma sólida ética
de ensino-aprendizagem, fazendo-me
entender o espaço do conhecimento
como lugar de autonomia do pensamento, de aprimoramento social e humano contínuos. Quando na adolescência, já no colegial, passei por uma
escola de linha conteudista, a semente
da leitura crítica já havia germinado em
mim. O que eu fazia o tempo todo era
questionar em silêncio, embora não tivesse dificuldade para apreender os
conteúdos repassados, o papel social
de uma instituição que priorizava os resultados, a quantidade e a velocidade
de apreensão dos conteúdos em detrimento da assimilação cautelosa e consistente do conhecimento, criando nos
alunos parâmetros de pensamentos con-
Revista Elas por Elas - Abril 2015
Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 100
foto BRUNO CARVALHO
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ENTREVISTA
MARA EVARISTO
por DENILSON CAJAZEIRO
Diversidade é
assunto de criança
Especialista defende a abordagem das relações
étnico-raciais desde a educação infantil
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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Autora de livros que trabalham a
identidade afrodescendente e a diversidade, Mara Evaristo se dedica há
mais de 20 anos a promover as relações
étnico-raciais na educação infantil. “Embora não saibam o que é racismo, as
crianças têm atitudes discriminatórias”,
aponta a educadora e especialista no
tema, em entrevista à Elas por Elas.
Atualmente, Mara Evaristo é também
coordenadora do Núcleo de Relações
Étnico-Raciais da Secretaria Municipal
de Educação de Belo Horizonte. Uma
de suas principais tarefas é acompanhar
a aplicação da lei 10.639, aprovada
em 2003, que determina o ensino da
história e cultura afro-brasileira e africana
em todas as escolas do país, públicas e
particulares. No cargo, sabe bem que
um dos principais desafios para introduzir o assunto nas escolas é mudar a
cultura que permeia o ambiente escolar.
“A gente percebe que, no início do
ano, nas reuniões escolares, fala-se de
tudo, de alimentação, de fralda, mas
sobre relações humanas não se fala.
Quando se fala da lei, da diversidade,
muita gente diz que tem de cuidar da
autoestima da criança negra. O que
vejo é que a criança negra nasce com a
autoestima lá em cima. O que tem de
cuidar é das outras pessoas, para não a
prejudicarem. Porque quem causa danos
são os outros. As crianças nascem bem
com elas mesmas”, ressalta.
Além das atividades na Secretaria,
Mara Evaristo desenvolve oficinas voltadas para professores sobre a construção da identidade pelas crianças e
defende que o trabalho com o tema
tem de estar presente no cotidiano escolar. Não basta ser algo pontual, de
curta duração. “É preciso garantir a
diversidade ao longo do ano, o tempo
todo, não é só um projeto para ser
feito no mês da consciência negra.
Isso é que vai fazer a diferença”, afirma.
Confira a entrevista.
Como começou seu trabalho com
as relações étnico-raciais na educação infantil?
Em 1995, ingressei na carreira do
magistério e comecei a me preocupar,
principalmente quando trabalhava com
literatura, com os alunos negros que
não se identificavam com os personagens, não tinham tanta empatia. Então
comecei a trabalhar com eles recriando
histórias. Naquela época tinha a tradição
dos contos de fadas no processo de alfabetização, e comecei a provocá-los,
perguntando como seria se aquelas histórias acontecessem no território onde
moravam. Refazíamos imagem, texto,
e eu percebia um interesse maior por
parte deles a partir dessa intervenção.
Quanto tive filhos, começou o processo
da minha vivência da educação na condição de família. O mais velho foi para
a educação infantil, com três anos, e
na escola dele tinham poucos alunos
negros. E lá que vivi pela primeira vez
a percepção de como as crianças de
dois, três, quatro anos vão percebendo
“É preciso garantir
a diversidade ao
longo do ano,
tempo todo,
não é só um
projeto para ser
feito no mês da
consciência negra”.
as diferenças de tratamento. Meu filho,
com outros [colegas], viveu algumas situações de discriminação. A escola foi
muito bacana nesse processo, porque
desenvolveu um projeto para trabalhar
com alunos, principalmente brancos,
que manifestavam essa discriminação,
para que eles entendessem o que era a
cor da pele. Pensamos em trabalhar
com crianças de três anos a melanina.
E aí nós pesquisamos e encontramos
uma experiência americana que trabalhava leite com achocolatado. Mostramos
para os meninos que a pigmentação da
pele tem elementos com a mesma atuação que o achocolatado no leite. Quanto
mais chocolate na mistura, mais escuro
o leite, e da mesma forma a pele. Eles
queriam entender se por dentro também
era escuro, e achamos que uma opção
interessante seria trabalhar com maçãs.
As frutas foram descascadas, e a meninada identificou que por baixo da casca
a cor era semelhante, e com essas vivências eles conseguiram perceber as
diferenças. Vi como isso provocou um
impacto positivo nas relações que meu
filho e os colegas construíram dentro
da escola. Embora não saibam o que é
racismo, as crianças têm atitudes discriminatórias. Vi também o quanto as famílias e a escola têm responsabilidade
neste momento na formação da criança,
porque é ali que você vai trabalhar a
questão da diferença, da semelhança,
do respeito. A partir dessa experiência
pessoal, comecei a montar uma oficina
para professores sobre a construção da
identidade pelas crianças. Quando comecei, as professoras negavam muito
que houvesse discriminação. Diziam que
na escola todo mundo era igual, que
discriminação era coisa de adulto e as
crianças nem percebiam isso. Era o
discurso do senso comum.
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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MARK FLOREST
102
Da democracia racial?
É, da democracia racial. Quando
ele não chegava nesse lugar, era um
discurso que caminhava mais para a
questão religiosa, que o trabalho com
as crianças tinha de valorizar as diferenças, e que se elas não fossem bonitas
aos olhos dos coleguinhas, não precisavam se preocupar, porque aos olhos
de Deus elas eram. Então havia esses
dois movimentos. A gente não imagina,
quando estamos dispostos a enxergar,
o que as crianças estão falando sobre
as diferenças. Ouvi, na época do Natal,
que anjo preto era só do mal, que
preto era pivete, roubava, que todo ladrão é preto, maconheiro, então os
personagens [dos livros] não poderiam
ser pretos. Houve a situação de uma
professora que levou para a sala dois
bonecos, e a diferença entre eles era a
cor. Uma criança queria o boneco negro, virou pra outra e disse: ‘me dá
esse boneco aí?’. A coleguinha não
sabia qual e perguntou. Ela respondeu:
Revista Elas por Elas - Abril 2015
‘me dá esse aí com rostinho de faxineiro’. Não quer dizer que todas as
crianças falavam dessa forma, mas foi
assustador perceber que em todas as
instituições de ensino houve alguma
informação que mostrava o quanto era
natural para três, quatro anos, as crianças manifestarem formas de tratamento
tão discriminatórias. Outro dado que
chamou atenção da gente foi a rejeição
à cor preta, de como ela está associada
no imaginário da criança a algo ruim.
“Combater o racismo
não tem de acontecer
no lugar onde existe
racismo. É você
trabalhar o tempo
todo com valorização
e respeito à
diversidade”.
Qual a importância de se trabalhar com esse tema com as crianças
no ambiente escolar?
Eu vi o que um bom trabalho sobre
relações étnico-raciais faz com várias
crianças. Quando você chega a uma
escola onde essa criança se identifica
no material, nas histórias que são contadas, nos murais, nos filmes, no professor, isso faz uma extrema diferença.
Belo Horizonte tem escola hoje [da
rede privada] que não contrata professor
negro. Isso é seríssimo. Essa informação
é fruto de um processo de formação e
diálogo com os conselheiros municipais
de educação. Não existe na ficha da escola que não pode contratar, mas essa
percepção de que a escola não contrata
é concreta, e isso é muito sério.
Uma professora já nos relatou
que tentou aplicar a lei 10.639 na
escola em que trabalhava, e a direção
disse que não havia necessidade, já
que lá não existia criança negra.
O que é uma visão superequivocada.
Porque a LDB [Lei de Diretrizes e Base
da Educação], quando traz a obrigatoriedade, não diz que é somente em escolas onde há alunos negros. Se fosse
assim, a gente teria de pensar que tudo
relacionado à Europa é somente em
escolas que têm alunos brancos. As
pessoas precisam ampliar o conhecimento sobre a legislação. Combater o
racismo não tem de acontecer no lugar
onde existe racismo. É você trabalhar o
tempo todo com a valorização e o respeito à diversidade. Meus filhos podem
não conviver com muçulmanos, mas
eles precisam aprender a respeitar a
religião, a fé muçulmana, para que
quando encontrem com um muçulmano,
o tratem de forma respeitosa. Isso faz
parte das relações étnico-raciais. Outro
Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 103
103
não pode. A gente percebe que, no
início do ano, nas reuniões escolares,
fala-se de tudo, de alimentação, de
fralda, mas sobre relações humanas
não se fala. Quando se fala da lei, da
diversidade, muita gente diz que tem
de cuidar da autoestima da criança
negra. O que vejo é que a criança
negra nasce com uma autoestima lá
em cima. O que tem de cuidar é das
outras pessoas, para não prejudicarem
essa autoestima. Porque quem causa
os danos são os outros. As crianças
nascem bem com elas mesmas.
De modo geral, o sistema educacional tem reproduzido esse quadro?
Acho que ainda estamos saindo da
fase da negação. Rosa Margarida, que
é uma pesquisadora que gosto muito,
diz que primeiro passamos pela fase
da negação, do “aqui não existe racismo”. Hoje você não tem um profissional que seja pesquisador e que diga
que não existe racismo no sistema educacional. Em todas as escolas você vai
ter essa concretude. O segundo passo
passa pelas pessoas identificarem qual
a responsabilidade que elas têm nesse
processo, porque a tendência é achar
assim: mas eu não sou culpado por
isso, ou isso aconteceu foi no passado
e não tem jeito de fazer mais nada.
Tem sim, a escola e a gestão que se
propõe a trazer todos os profissionais
para esse processo terão um impacto
considerável para a maioria das crianças. E para os professores darem conta
BRUNO CARVALHO
ponto é trabalhar com a história e
cultura africana e afro-brasileira, e isso
não necessariamente é trabalhar com o
racismo. Porque não vou restringir o
trabalho sobre a história de um continente a um período histórico. Você
tem uma África antes e uma África
pós-escravidão. Temos escritores africanos, cientistas, uma diversidade cultural
imensa para apresentar, da mesma
forma que o continente europeu tem.
O trabalho tem de pensar, e principalmente na educação infantil, que as
crianças nem sabem sobre o racismo.
Na verdade o que essas crianças precisam conhecer nessa idade é sobre seu
corpo, sua pele, seu cabelo. A criança
negra precisa ter seu cabelo valorizado.
As crianças precisam saber que o cabelo
crespo não é duro, apresentar de uma
forma que o valorize. Crianças que tem
a possibilidade de ver o cabelo crespo
de diversas formas, independentemente
de serem negras ou brancas, passam a
perceber a beleza também nessa estética.
A importância estaria nesse campo da diversidade, do respeito às
diferenças?
Exatamente. Com um cuidado: não
deixar passar as situações em que a
criança, mesmo sem perceber o dano,
discrimina. Se você chega hoje em
uma instituição de ensino infantil, não
há nenhuma parede pichada. Porque
seja uma criança de dois anos, um
ano, se ela rabiscar a parede, alguém
fala que não pode. As crianças aprendem a chamar por apelidos, chamar
de macaco, de cabelo pixaim, porque
encontram permissividade. Nessas
situações de discriminação, mesmo
que ela tenha três, quatro anos, a
escola tem de pontuar sobre o tratamento respeitoso, o que pode e o que
Revista Elas por Elas - Abril 2015
Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 104
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de fazer isso, a lei é muito sábia, porque ela chama os movimentos sociais.
Então as escolas precisam se aproximar dos movimentos sociais. E vejo
que muitas escolas têm uma ideia completamente equivocada de movimentos
sociais. Elas não conseguem identificar,
por exemplo, que um movimento estético, como a gente está tendo um
boom aqui em Belo Horizonte sobre o
cabelo crespo, é político. Você está dizendo que seu país politicamente coloca um lugar para quem tem cabelo
crespo. Há alguns lugares em que todas
as pessoas de cabelo crespo têm de
estar com ele liso, preso ou escondido,
porque parece que não se encaixa em
algumas funções. Você não vê alguma
pessoa de cabelo crespo solto num
banco, dificilmente vê alguém que
ocupa a função de comissário de bordo
usando o cabelo crespo. Em determinados restaurantes, os gerentes, esses
cargos de alto poder, não se enxerga
as pessoas com cabelo crespo. Então
esse trabalho pra mim começa na educação infantil, mas não pensando no
futuro, pensando no presente da
criança, mas isso para mim vai ter um
impacto considerável no futuro.
Essa questão do cabelo é uma
questão de fato política, não é?
É uma ação política e não é um
movimento só do Brasil. Mencionei
aqui porque a gente está vendo isso
forte em Belo Horizonte. Acompanho
também pelo Facebook o que os movimentos estão fazendo. Tem o movimento de crespas e cacheadas, tem o
encrespa geral, são eventos em que
elas convidam as mulheres a primeiro
valorizar o cabelo natural. Isso não significa que você não possa mais relaxar
ou alisar, mas é um movimento que
Revista Elas por Elas - Abril 2015
vai lutar contra esse engessamento,
essa visão de que a única forma apresentável de cabelo é a lisa.
Contra esse padrão de beleza
também?
Sim, e de beleza que vai para um
patamar que significa também como se
fosse conhecimento. A ideia da mulher
intelectual é de uma mulher que, embora
não tenha vaidade, se apresenta com
um cabelo liso, o protótipo da mulher
cientista, da pesquisadora. Se você olha
uma pessoa com o cabelo crespo, solto
e alto, o primeiro olhar é: aquela pessoa
não é cientista, não tem conhecimento
pra isso, se não o cabelo dela não
estaria daquele jeito. Vi a discussão nas
redes sociais acerca de um bloco [carnavalesco] em Juiz de Fora sobre empregadas domésticas. São homens negros, que pintam o rosto de preto, passam batom para parecer que o lábio
está grosso e colocam uma peruca de
cabelo crespo. É uma caricatura grosseira
e isso é visto como algo divertido. Pra
nós, a nossa pele, boca e cabelo não
querem ser motivo de chacota. Se pra
eles é uma brincadeira, pra nós é muito
agressivo, pois aquela apresentação está
inferiorizando tudo que tem a ver com
a identidade da mulher negra. Li as crí-
Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 105
BRUNO CARVALHO
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ticas que tanto defendiam o bloco, dizendo que é uma tradição na cidade,
quanto as que criticavam. Achei interessante uma pessoa da cidade dizer
que nunca tinha parado para pensar
sob essa perspectiva e que ela acha que
a tradição não é impossível de mudar
se é algo ofensivo. Se a gente pensar,
alguns anos atrás a tradição era a família
definir com quem as mulheres iam se
casar, ou com quem o homem ia se casar. Fruto da discussão e de quanto
perceber que isso ia contra os direitos,
essa tradição foi mudada. O Brasil tem
uma tradição de discriminação. As pessoas precisam se desarmar um pouco,
sair da zona de conforto. Há outras
formas de brincar o carnaval sem ofender
outras pessoas. É um passo que a gente
precisa dar. Muita gente que hoje eu
falo que parou de negar o racismo
ainda vê o racismo no outro, mas não
consegue perceber que sua prática sustenta o racismo. Enquanto tiver bloco
caracterizando a mulher negra dessa
forma, teremos dificuldades para acessar
lugares de emprego, porque as pessoas
vão nos olhar como essa caricatura representada.
Quais atividades a sra. sugeriria
para quem tem interesse em trabalhar com o assunto?
Há atividades que às vezes as famílias
buscam pouco. Em Belo Horizonte,
há dois museus que trabalham com a
história e cultura africana e afro-brasileira. Um é o Museu de Artes e Ofícios,
que tem a trilha afro-brasileira, aberta
ao público. Você pode apresentar isso
para que a criança aprenda um pouco
de história, saber como as pessoas trabalhavam no passado, criavam os instrumentos, comparar como era antes
e como é hoje. O outro é o Memorial
Minas Gerais Vale, que também tem
um percurso que vai mostrar a resistência negra, trabalhar a questão da
oralidade, a presença negra no continente africano e aqui no Brasil. Para
uma criança pequena, a abordagem
não vai entrar tanto no processo da
escravidão, mas você vai encontrar lá
um Milton Nascimento, um Renegado
em painéis grandes. É isso que a criança
precisa perceber, que negros e brancos
contribuem culturalmente, politicamente
e cientificamente para o país. E não
restringir só a negros e brancos, temos
também os ciganos, os indígenas urbanos. Onde estão essas pessoas, quais
atividades elas fazem ao longo do ano?
Temos festas indígenas, ciganas. É uma
forma de a criança perceber a vida
social dessas pessoas e se aproximar.
O desafio pra mim é o adulto querer
fazer esse movimento de conhecer.
Porque você tem espaços fantásticos
para isso. Além disso, tem um movimento também importante que é desenvolver o senso crítico. Se a criança
está assistindo a um filme ou desenho
que inferioriza a mulher ou a coloca
num papel ridículo, é preciso conversar
com a criança, começar a desenvolver
nela a análise do que está recebendo,
para ela não aceitar que, por exemplo,
só pelo fato de um conteúdo chegar
pelo livro aquilo é real, é o correto. Eu
penso que você precisa fazer também
um movimento de abrir sua casa. Vou
deixar uma pergunta para quem está
lendo: quantas pessoas negras frequentaram sua casa no ano passado? E de
que forma? Foi para limpar ou numa
relação de amizade? Quantos amigos
negros você tem? E quantos brancos?
Como você pode estimular esse convívio? Em relação à educação, o primeiro
passo é estudar. A gente só vai ser
bom professor se permanecer estudando ao longo da vida e se fizer um
investimento para conhecer novas brincadeiras, jogos, a discussão em torno
da linguagem. Que as pessoas tenham
essa atenção e responsabilidade para
trabalhar com a diversidade, porque
hoje as diretrizes para a educação
infantil vão dizer que este é um dos pilares da educação infantil: o trato da
diversidade, o respeito à identidade e
a promoção da equidade. É preciso
garantir a diversidade ao longo do ano,
o tempo todo, não é só um projeto
para ser feito no mês da consciência
negra. Isso é que vai fazer a diferença.ø
Revista Elas por Elas - Abril 2015
Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 106
AUTOESTIMA
foto MARK FLOREST
POR NANCI ALVES
Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 107
107
Debaixo dos
caracóis,
muita história
pra contar
Cabelo, símbolo de feminilidade, é motivo de alegrias e sofrimentos
O cabelo tem sido o causador de
alegrias e tristezas entre as mulheres,
que, em geral, gastam tempo e dinheiro
em busca de um visual atraente. Por
outro lado, a falta do cabelo, pelos mais
variados motivos, traz sofrimento, mas,
acima de tudo, desperta a solidariedade
entre mulheres em todo o Brasil.
O simples fato de um cabelo fora
dos padrões da moda pode provocar
atitudes de isolamento. Certamente,
você conhece alguma mulher que já
deixou de ir a uma festa porque o
cabelo não estava bonito. Entre as
adolescentes, esse dilema pode se
tornar ainda maior. Ana Luísa, de 16
anos, garante que já perdeu vários encontros com amigos porque não deu
tempo de arrumar bem o cabelo. Isso
implica hidratar, lavar, escovar ou
pranchar seus cabelos. “Conheço garotas que pensam diferente e gostam
do cabelo com volume, colorido ou
com dreads, mas todas investem em
algum visual que as fazem se sentir bonitas. Eu gosto do meu cabelo bem
liso. Assim me sinto mais feminina.
Quando acho que está feio, me sinto
insegura, não quero sair e muito menos
aparecer em fotografias”, conta.
Em termos de estatísticas, Ana Luísa
faz parte de um grupo que é a maioria
em nosso país - 63% das brasileiras
gostariam de ter cabelos lisos; sendo
que menos de 20% realmente têm e
42% os alisam. É o que apontou uma
pesquisa realizada pela L’Oréal, que
mostrou, ainda, que o cabelo das brasileiras é uma mistura de três categorias:
oriental, afro e caucasiano. As que alisam suas madeixas, em geral, querem
reduzir volume e, para isso, buscam
produtos que tenham resultado imediato, independentemente das possíveis
consequências, como danificar seriamente os fios. A designer gráfico, Fernanda Lourenço (foto), passou por uma experiência
marcante em sua vida. Por usar química
para relaxamento desde os 13 anos de
idade, já não sabia mais como era seu
cabelo. “Foi uma surpresa e uma
grande alegria redescobrir meus cachos.
Por causa da moda, comecei a relaxar
meu cabelo na adolescência. Depois,
passei a fazer escova progressiva, também por muitos anos. Até que um dia,
quando já não estava gostando do aspecto do meu cabelo e também por incentivo de uma amiga, comecei a pensar
na possibilidade de voltar a usá-lo natural.
Foi um processo. Deixei a progressiva
quando vi uma reportagem falando
sobre os males, para saúde, do excesso
da química. Porém, o mantinha liso
com escovação. Quando me decidi por
cortar o cabelo, tive medo, pois não
sabia como ele estaria. Depois que
cortei curto e deixei secar naturalmente,
foi uma surpresa maravilhosa e, hoje,
eu estou apaixonada com meu cabelo,
me sinto mais feminina”, relata Fernanda
Revista Elas por Elas - Abril 2015
Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 108
NANCI ALVES
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Ana Luísa gosta de manter seus cabelos lisos.
que diz investir em shampoo, cremes e
hidratantes específicos para manter os
cabelos naturais com a aparência que
deseja.
A pesquisa intitulada “Brasileiras e
os Cabelos”, realizada pelo Ibope, em
parceria com a Unilever (2011) aponta,
entre outros dados, que as mulheres
gastam, em média, 35 minutos diários
apenas cuidando dos fios. Foram ouvidas 400 mulheres das classes A, B e C
- nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Porto Alegre. E o resultado mostra que o cabelo é parte essencial no ritual de beleza da brasileira:
Revista Elas por Elas - Abril 2015
37% das entrevistadas usam creme de
pentear e de tratamento; 72% afirmam
gostar de cuidar do cabelo; 74% acham
que com o cabelo bonito se sentem
confiantes e para 37% ir ao salão é
uma necessidade.
Influência da mídia
A questão cultural é, muitas vezes,
estimulada ou reforçada pela mídia.
Em novelas ou comerciais, que sempre
ditam modas, o cabelo é mesmo algo
muito destacado e valorizado. Para a
psicóloga clínica e professora da PUC
Minas, Ada Ferreira, moda significa
seguir a tendência. “Agora é a vez dos
cabelos lisos, mas se de uma hora para
outra a mídia apresentar cabelos crespos
como a sensação do momento, pode
ser que pessoas que hoje tenham cabelos lisos, busquem modificá-lo para
ficar na moda. Todas querem se sentir
bem. Para a mulher, o cabelo representa
a sensualidade, a feminilidade. Ter um
cabelo bonito e bem cuidado é muito
importante para a autoestima”, diz.
Porém, na própria mídia que dita
modas, a valorização do cabelo, às
vezes, carrega uma discriminação contra
quem está fora do padrão exigido. A
professora Carolina dos Santos de Oliveira, em sua tese de mestrado, realizou uma análise crítica do discurso da
revista adolescente Atrevida, enfocando
a imagem de adolescentes negras na
publicação. “Nos exemplares avaliados
do período do recorte 2001 a 2005
pode-se perceber uma incipiente inclusão
das imagens de adolescentes negras,
no entanto ainda no lugar de quem
precisa ser moldado, modificado e domado, sendo o cabelo uma característica
muito explorada, por ser um sinal diacrítico marcadamente racial”, afirma.
Na sua avaliação, o Brasil precisa
de iniciativas de educação libertária
para amenizar essa bagagem da “boa
aparência” imposta às mulheres. “A sociedade não pode alimentar essa indústria que causa sofrimentos e impõe
uma doma ao corpo feminino e com
mais imperatividade ao corpo feminino
negro”. Porém, Carolina Oliveira acredita que a escola não pode ser a única
responsabilizada por esta mudança.
“Entendo a escola, da forma como ela
se configura hoje, como uma reprodutora da sociedade, com pouco ou ne-
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109
Perda do cabelo
O cabelo faz parte da nossa identidade e reflete, portanto, nossas transformações internas. Assim, se estamos
com problemas hormonais, emocionais
ou de outra ordem, muitas vezes, o
cabelo denuncia, podendo ficar mais
seco, rebelde ou até sofrer quedas − o
que causa, ainda, maior desconforto
nas mulheres.
De acordo com a psicóloga Ada
Ferreira, perder o cabelo interfere na
autoestima. Segundo ela, muitas mulheres podem desistir dos contatos so-
ciais, familiares, profissionais ao enfrentarem as mudanças com a perda
parcial ou total de cabelo ocasionada
pela idade, por hereditariedade, por
um tratamento de saúde ou mesmo por
um tratamento de beleza”, afirma.
A reação de cada mulher vai depender do que ela está vivendo e de
como consegue enfrentar sua realidade.
“Já atendi pacientes que estavam no
pré-operatório de uma cirurgia neurológica e sofriam muito por pensar
na possibilidade de acordar após a cirurgia e não ter mais o cabelo. Outras,
por saberem da mudança, se preparam
antes, cortando o cabelo bem curto ou
até mesmo raspando a cabeça”, conta
Ada Ferreira, que considera normal
esse sofrimento.
“Vivemos numa sociedade que cultua
o cabelo como algo importante; a indústria de cosméticos lança a cada dia
novos produtos e nós, consumidores,
queremos estar na moda. Então, perder
os cabelos é sinal também de impotência, ainda mais se a perda for ocasionada por um tratamento de saúde.
Para enfrentar este problema, a mulher
precisa trabalhar sua autoestima, bus-
cando um suporte psicoterápico, lidando
com as questões emocionais que podem
surgir e conversando também com as
pessoas que estão mais próximas. Claro
que cada mulher vai enfrentar sua mudança de uma forma, não é possível
esperar que todas enfrentem da mesma
maneira. Mas, estar aberta para falar
dos medos, angústias, anseios já é um
caminho para o enfrentamento e a
aceitação”, avalia.
Foi o que fez S.M, de 43 anos, ao
longo de um tratamento de quatro
anos, à espera de uma transfusão de
medula, feita recentemente, com sucesso. Segundo ela, foram várias as experiências vivenciadas, incluindo a queda
de cabelo por duas vezes. “Raspei o cabelo antes que ele começasse a cair,
pois é horrível a sensação. Tive momentos de não querer aparecer em público, outros de curtir o uso de chapéu,
lenços variados e até andar com a
careca de fora. Tudo dependia do meu
humor no dia. Não foi fácil e posso
dizer que além de buscar fortalecer a
espiritualidade e a alimentação, a psicoterapia foi fundamental para me dar
um suporte nesta fase,” conta.
LUCIANA CAPIBERIBE
nhum poder transformador, as próprias
professoras e professores com suas
próprias demandas, dúvidas, necessidades... penso que a carga de responsabilidade da escola por promover mudanças também precisa ser diminuída.
Entendo a educação como algo maior
que apenas a escolarização e as revistas
como espaço educativo, assim como
tantos outros como: igrejas, clubes, televisão, movimentos sociais, sindicatos,
etc...”, acrescenta.
“Raspei o cabelo
antes que ele
começasse a cair,
pois é horrível a
sensação”
Rosinete Rodrigues, Maria do Socorro, Deputada Janete Capiberibe e Tereza
Revista Elas por Elas - Abril 2015
Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 110
ARQUIVO PESSOAL
110
Ronizia corta seu cabelo para doar às vítimas de escalpelamento.
Depois de dois anos fazendo a primeira fase de quimioterapia, seus
cabelos nasceram brancos. “Tomei um
susto, mas depois foi voltando ao normal. Teve uma fase muito engraçada,
pois saía de peruca e via as pessoas
com cabelos naturais iguais aos meus.
Era a tal chapinha. Aí, vi que eu não
estava tão estranha assim. Aliás, algumas vezes teve gente que me
perguntou qual tinta eu usava nos
meus cabelos. Eu me divertia com isso
e acabei usando por um bom tempo,
sem grilos, pois vi que o natural das
mulheres era tão artificial quanto a
minha peruca”, lembra.
Solidariedade feminina
Perder os cabelos de forma definitiva, por um acidente, é um trauma vivido por centenas de meninas e
mulheres das regiões ribeirinhas da
Amazônia. São as vítimas de escalpelamento, a perda do couro cabeludo, que acontece dentro de pequenas
embarcações ribeirinhas. Estes barcos
navegam com um eixo, que liga a hélice
ao motor, exposto, sem proteção, facilitando, que em um movimento ines-
Revista Elas por Elas - Abril 2015
perado, puxem os cabelos compridos.
A forte rotação do motor arranca todo
ou parte do couro cabeludo, inclusive
sobrancelhas, orelhas e, dependendo
do caso, grande parte da pele do rosto
e do pescoço. Um grave problema que causa deformações e, em alguns casos, até a morte. As principais
vítimas são meninas e adolescentes, a
maioria entre os 5 e os 16 anos, seguido de mulheres dos 17 aos 30 anos
e, por último, acima de 31 anos.
Uma das das vítimas, Rosinete Rodrigues, sofreu o acidente quando tinha
20 anos, no Pará. Foram dois anos de
cicatrização e muitas dificuldades para
conviver com as pessoas, pois tinha inclusive vergonha. “Quem vive isso, passa
a se isolar, com medo da discriminação
e do preconceito”, afirma Rosinete que,
ao longo do tempo, descobriu que poderia recorrer a políticas públicas. Assim,
há mais de 10 anos, ela e um pequeno
grupo de mulheres com a mesma história
de vida começaram a buscar ajuda para
todas. Nasceu, em 2007, a Associação
de Mulheres Ribeirinhas Vítimas de Escalpelamento da Amazônia, que já conseguiu beneficiar 119 pessoas acidentadas. Rosinete já foi presidente da Associação, que oferece às mulheres apoio
psicológico e profissional, dentro de
um processo de ressocialização. Com
apoio da Associação, me formarei, este
ano, em Pedagogia. Ela oferece também
cursos como corte e costura, artesanato
e produção de perucas como incentivo
à geração de renda e à nossa independência econômica", conta. Segundo Rosinete, os cabelos recebidos de doações
viram perucas não só para as vítimas
de escalpelamento, mas também para
mulheres em tratamento de câncer.
A antropóloga Maria Ronízia Gonçalves, de Rio Branco (AC), deixou
seus cabelos crescerem por um ano
para fazer a doação, após se inteirar
dessa realidade. “Fiquei impressionada
com a história que ouvi. Pesquisei na
internet, li várias matérias sobre o assunto e vi o sofrimento e a reação
dessas mulheres, se organizando e superando suas dificuldades. Deixei meu
cabelo crescer e, quando tive a oportunidade de ir à Macapá, a trabalho,
fiz a doação em um salão que faz este
trabalho voluntariamente. Fiquei feliz
por perceber que há uma mobilização
da sociedade local em torno da questão",
conta Ronízia Gonçalves que incentivou
outras pessoas, por meio das redes
sociais.
Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 111
Reconhecendo que nunca teve muito
apego ao cabelo, porque sabe que
cresce de novo, Ronízia imagina que se
o perdesse sentiria muita falta. “Acredito
que também teria vergonha de sair de
casa, pois sei que o cabelo é um
símbolo da vaidade feminina. Então,
colocando-me no lugar das mulheres
que perdem, de forma tão violenta, o
couro cabeludo. Me doeu na alma só de
imaginar o sofrimento delas”, relata.
O que chamou a atenção de Ronízia
Gonçalves foi o fato das mulheres se
organizarem e, a partir de algo
ruim, construirem uma nova realidade
para elas e suas famílias. “Elas não
permaneceram como vítimas, elas reagiram! Muitas delas ganharam novas
profissões, superaram o trauma, fizeram
cirurgias reparadoras da face, conseguiram leis que tratam da questão. Enfim, tudo isso me motivou a doar os
meus cabelos”, diz.
O pedido de solidariedade que chegou aos ouvidos e ao coração da antropóloga de Rio Branco saiu de
Brasília, na voz da jornalista Mara Régia
Di Perna(foto), que há 34 anos é responsável pelo Viva Maria, programa
pioneiro na mobilização das mulheres
na luta por seus direitos, e, há mais de
20 anos, navega os rios da Amazônia
nas ondas da rádio Nacional com o Programa Natureza Viva. “Minha militância
por essa causa começou em 2007,
quando fiz matéria sobre uma mobilização no Congresso Nacional, em prol
da lei que a deputada Janete Capiberibe
(PSB/AP) estava querendo aprovar
para evitar que os acidentes continuassem vitimando o povo das águas. Felizmente, hoje, a lei 11970/2009, que
obriga a instalação de uma proteção
sobre o eixo, o motor e as partes móveis das embarcações, é uma realidade.
AGÊNCIA BRASIL
111
Mas, como apenas a lei não conseguiu
impedir que novos acidentes continuassem acontecendo, por ocasião do primeiro mutirão de cirurgias reparadoras
que aconteceu, em 2012, em Macapá,
resolvemos criar uma campanha de mobilização em torno do apoio às vítimas
que precisavam não só de cabelos para
a produção de perucas, mas também de
máquinas de costura capazes de dar
conta do trabalho”, conta.
Segundo Mara Régia, a resposta
diante da campanha vem de todos os
cantos e o rádio tem sido fundamental,
pois consegue alcançar as pessoas que
se encontram em situação de isolamento. “Sempre recebemos doações
de cabelos. O trabalho da cabeleireira
Maria Vanilza, que tem um salão de
beleza no Guará, cidade de Brasília, e
faz os cortes de graça quando o objetivo
é doar os cabelos para as vítimas do
acidente, também tem ajudado muito.
Em dezembro, estive em Macapá para
a entrega de uma mecha de cabelos
de um metro e meio de comprimento
doada por uma jovem de 14 anos que
nunca havia cortado os cabelos. Sem
dúvida, o caso dessa “Rapunzel” e´ o
maior indicador de sucesso de nossa
campanha”, afirma.
Para a jornalista, “como as digitais,
o cabelo é traço de identidade e, ao
mesmo tempo, traduz, melhor do que
as palavras, nosso jeito de ser e nossa
personalidade. Por isso, tem uma relação tão direta com a nossa autoestima.
Sem falar da festa que faz no nosso
imaginário, desde os tempos de Sansão
e Dalila. Arriscaria dizer que ele é o espelho da alma da gente. Tanto assim
que, em prosa e verso, se faz presente
na nossa MPB como um tema recorrente”, completa Mara Régia.ø
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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PERFIL
POR POLLYANA
BITENCOURT
foto MARK FLOREST
Dora Alves
Uma vida dedicada a elevar a autoestima através dos cabelos
“Não abra mão dos seus sonhos,
eles podem se tornar realidade, é só a
gente ter persistência e determinação”,
recomenda a cabeleireira Dora Alves.
É com um brilho de esperança nos
olhos e uma crença de que tudo é possível, que ela conta a sua história, enquanto arruma o seu salão-escola, no
bairro Maria Goretti, em Belo Horizonte.
Nascida na periferia da capital mineira, ela aprendeu desde pequena a
lidar com as adversidades da pobreza.
O pai morreu quando ela tinha apenas
oito anos. A mãe saía para trabalhar e
como filha mais velha, cuidava dos
quatro irmãos. “Eu tenho uma origem
humilde, cresci numa favela lá no bairro
1º de Maio, perto da Praça Troca
Égua, um lugar sofrido demais da conta,
mas dentro de mim, sempre tive o desejo de mudar o rumo da minha história”, conta.
Atualmente, Dora tem uma vida dedicada ao seu salão de beleza, especializado em cabelos afro e também coordena um projeto onde ensina pessoas
carentes a profissão de cabeleireiro/a.
Os primeiros passos na profissão
foram ensinados pela mãe. “Foi ela
quem me ensinou a fazer as tranças,
os topetes e penteados no nosso cabelo’, conta. Uma experiência marcante
aos oito anos determinou seu futuro.
“Eu passei pasta [creme alisante à base
de soda cáustica] no meu cabelo e ele
caiu. Toda negra sonha em balançar o
cabelo e eu não tinha consciência da
minha negritude ainda”, justifica. A
partir daí, ela começou as suas pesquisas
sobre cremes para deixar os cabelos
bonitos. “Eu ia lá no fundo do quintal,
apanhava ora pro nobis, folha de abacate, entre outras experiências para
tornar mais prático o cuidado com o
cabelo”, diz.
Todo o conhecimento adquirido
hoje é fruto dessas pesquisas. Autodidata, ela aprendeu na prática e hoje
tem até uma linha de produtos de
beleza que leva o seu nome. “Eu fazia
teste no meu cabelo e no dos meus filhos, depois passei para os vizinhos e
comecei a ficar conhecida no bairro”,
descreve.
Aos 11 anos, ela conheceu aquele
que viria a ser o pai de seus filhos. Casou-se aos 16 e teve seus dois filhos,
que foram criados dentro do salão de
beleza. “A minha filha quis aprender a
profissão muito novinha, o meu filho
também aprendeu e aí eles saíam comigo
para ensinar o ofício nas escolas, nos
abrigos e nos morros da cidade”, conta.
Solidariedade
O trabalho social sempre fez parte
da vida de Dora, uma mulher forte e
destemida, que possui um jeito único
de lidar com as pessoas ao seu redor.
Foi ela quem deu o primeiro emprego
para vários meninos e meninas na primeira banca de revistas que existiu em
sua região. Junto com o marido ela
também abriu uma mercearia, mas o
negócio não deu certo. “Quebrei de
primeira porque quando chegavam
pessoas necessitadas, meu coração partia e eu deixava a pessoa levar sem pagar”, afirma.
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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Esse desejo em ajudar tornou-se
mais concreto, quando ela, em 2007,
fundou a Associação Projeto Meninas
de Dora. A iniciativa é fruto do trabalho voluntário feito por ela há mais de
40 anos. “Eu fui sonhando e não abri
mão do meu sonho, foi acontecendo...”, emociona-se ao contar. O
“Meninas de Dora”, como é conhecido, prepara jovens e adultos para
exercerem a sua condição de sujeito,
gerando renda a partir do seu trabalho.
São ofertados cursos de cabeleireiro,
oficinas para o cabelo afro, cursos de
cosméticos e outros. Sempre com o
objetivo de elevar a autoestima dessas
pessoas, para que elas acreditem no
potencial de construir uma vida de
sucesso.
Reconhecimento
Em 2012, o trabalho dela foi reconhecido nacionalmente. O projeto foi
eleito a melhor ação social do estado
de Minas Gerais e concorreu à melhor
do Brasil. Dora acredita que, assim
como ela mudou o rumo de sua vida,
ela tem a missão de mudar o destino
de vários meninos e meninas que cruzam o seu caminho. “Acredito que,
assim como eu, uma mulher negra de
origem humilde que construiu uma história de vitórias, qualquer um também
pode alcançar seus sonhos”.
Mas nem tudo são flores na vida
desta guerreira. Para poder manter o
projeto social, ela conta, não só com a
renda do salão, mas também com a
ajuda de amigos e pessoas solidárias.
“Já fiz pirulito pra vender, trabalhei
em casa de família, é preciso muito esforço pra gente poder manter essa trajetória”, esclarece.
Revista Elas por Elas - Abril 2015
Apesar de toda a ajuda que recebe,
ela acredita que o projeto precisa de
um movimento para obter mais recursos
e poder atender mais gente. Atualmente
mais de 300 pessoas estão inscritas
para os cursos, mas o espaço físico
atual só permite que 10 pessoas tenham
aulas, com isso eles trabalham apenas
com cinco turmas. A iniciativa espera
conseguir um espaço maior, onde eles
possam ampliar as turmas e atender a
todos. A dedicação ao projeto e a vontade de ensinar é tanta que, apesar
das dificuldades enfrentadas, Dora não
pensa em desistir.
Grande incentivadora da cultura negra, além do trabalho no projeto, Dora
também visita escolas e faz palestras.
A iniciativa nas instituições de ensino
começou antes mesmo da Lei 10.639,
que decretou a obrigatoriedade do ensino da Cultura Afro-Brasileira no
ensino fundamental e médio. “Hoje,
eu vou às escolas e falo com os meninos
‘vocês têm computador, livros, material
e tudo que precisam, então, respeitem
os professores’. Para ela, o trabalho
dos/as professores/as é fundamental
para a formação das pessoas. “Eu
acho que a classe teria que ser mais
bem paga, porque o médico, o cabeleireiro, o advogado, todos dependem
do professor”, acredita.
“
Eu acho que a
mulher tem que ser
livre, se ela quer ter
cabelo black, ótimo,
agora se quer um
cabelo liso, que
tenha”.
Ela comemora os resultados positivos do seu trabalho. “Eu converso
muito com os meninos. Eu tenho
resultados bacanas de trabalhos que a
gente desenvolve nas escolas e, a partir daquele momento, os jovens
mudam de postura”.
Incentivadora da cultura afro, Dora
acredita na liberdade da mulher em
escolher o cabelo que quer ter. “Eu
acho que a mulher tem que ser livre, se
ela quer ter cabelo black, ótimo, agora,
se quer um cabelo liso, que tenha um
cabelo assim por opção e não por
obrigação”.
Referência como cabeleireira em
Belo Horizonte e no país, Dora já fez
o cabelo da atriz Débora Falabella no
espetáculo Noites Brancas. Trabalhou
também na produção dos atores do filme Pequenas Histórias, que teve a
participação da atriz Patrícia Pillar,
além dos filmes Batismo de Sangue e
Uma onda no ar.
Hoje ela tem um quadro permanente
no Memorial de Minas do Vale, na
Praça da Liberdade. Foi eleita cidadã
do mundo em 2010, escolhida entre
as cinco melhores cabeleireiras de
Minas na Feira Mineira da Beleza em
1999 e coleciona prêmios e homenagens por todo o país.
Contudo, para Dora, o seu maior
reconhecimento vem dos meninos e
meninas que ela ajuda. “Eu fico muito
emocionada, patrimônio pra mim é
isso, quando ouço ‘eu quero ser igual
a você, aprender a profissão, ter um
cabelo igual ao seu’, então isso pra
mim é fantástico”, declara.
Hoje, aos 60 anos de idade, Dora
diz que quer projetar uma nova fase
em sua vida. “Quero começar um novo
capítulo na minha história. Sou a menina negra que sonhei ser”, conclui.ø
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INTERNET
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LITERATURA
por DÉBORA JUNQUEIRA
Uma idealista do lixo
A obra de Carolina Maria de Jesus revela a condição e força
das mulheres negras relegadas por uma sociedade elitista
Quando fazia uma reportagem na
favela Canindé, que havia em São Paulo, na década de 50, o jornalista Audálio
Dantas se deparou com textos de uma
catadora de papel e não teve dúvida
de que aqueles manuscritos precisavam
ser conhecidos. O texto escrito em
letra de forma em cadernos reutilizados,
era a obra Quarto de Despejo – Diário
de uma favelada, da escritora Carolina
Maria de Jesus. Mesmo tendo escrito
um best seller traduzido em 13 idiomas,
além de outras obras, a escritora ainda
é pouco (re)conhecida.
“Nem escritor transfigurador poderia
arrancar tanta beleza triste daquela miséria toda. Nem repórter de exatidão
poderia retratar tudo aquilo no seco
escrever. Foi por isso que eu disse
assim para Carolina Maria de Jesus, lá
mesmo, na horinha que lia trechos de
seu diário: eu prometo que tudo isto
que você escreveu sairá num livro”,
escreveu Audálio Dantas, na apresentação de Quarto de despejo, de 1960.
Segundo ele, não foi preciso ler mais
de três folhas para ver que havia en-
contrado algo de muito valor. Por dois
anos, acompanhou Carolina na edição
de seus livros e guarda em casa alguns
de seus cadernos, para quem ainda
duvide da autoria.
Mineira de Sacramento, negra e
semianalfabeta, Carolina de Jesus mudou-se para São Paulo aos 17 anos.
Foi empregada doméstica, teve três filhos, mas manteve-se solteira. Quando
foi descoberta como escritora, em
1958, tinha 43 anos. Morreu pobre e
praticamente esquecida, em 1977. Em
14 de março de 2014 foi comemorado
o seu centenário de vida.
“Nem escritor
transfigurador
poderia arrancar
tanta beleza triste
daquela miséria
toda”.
“A experiência e a vivência da autora
como mulher, negra e favelada é revelada
todo o tempo em seus textos: o racismo
que sofria e via outros sofrerem; a condição de mulher e pobre, mãe solteira
de três filhos, que sempre era relegada
pela sociedade machista e elitista da
época e de ainda hoje”, opina a professora Aline Arruda, pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais. (Leia
a entrevista).
Em cadernos encontrados no lixo,
ela relatava seu cotidiano. Além de
Quarto de Despejo, a autora publicou
Casa de Alvenaria, Pedaços de Fome
e Provérbios. Postumamente, em 1982,
foi lançado na França, Diário de Bitita,
que chegou ao Brasil em 1986, e ainda
há manuscritos inéditos na Biblioteca
Nacional, no Rio de Janeiro, um tesouro
para a literatura e pesquisadores. Muitos
deles precisam de restauração, para
que essa vasta obra desconhecida não
se perca. A obra completa de Carolina
está em 58 cadernos que somam 5.000
páginas de texto, sendo sete romances,
60 textos curtos e 100 poemas, além
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de quatro peças de teatro e de 12 letras
para marchas de Carnaval.
Raffaela Andréa Fernandez desenvolve uma pesquisa de doutorado na
Unicamp com base nos manuscritos de
Carolina. Segundo ela, a história da
autora representa milhares de mulheres
negras, faveladas, mães solteiras, que
ainda encontram poesia no dia a dia.
Em entrevista concedida à revista Caros
Amigos (nº 206-2014) ela avalia que
Carolina de Jesus revela uma outra história, ‘a história menor’ que precisa
ouvida. “Os problemas sociais delineados
por Carolina estão na sua temática, na
materialidade do papel escrito de seus
cadernos reutilizados, encardidos, tirados
das latas de lixo, a escrita ‘deficiente’
que não corresponde aos intentos da
gramática institucional de uma sociedade
que não lhe deu a oportunidade de
avançar e, mesmo com todas essas defasagens, essa grande autora nos mostra
que aquele que se inquieta diante das
‘atrocidades sociais’ jamais se manterá
calado”, afirma.
A pesquisadora em literatura, Estela
Santos, faz uma crítica sobre a escritora,
em artigo publicado no blog Homo Literatus (www.homoliteratus.com). “Alguns escritores já escreveram sobre o
cotidiano miserável das favelas, mas a
grande maioria o fez de uma perspectiva
de fora, isto é, sem viver, de fato em
uma favela. Em Quarto de Despejo temos uma perspectiva diferente: quem
escreve é alguém que viveu na favela: a
perspectiva é de Carolina Maria de
Jesus, moradora da, agora, antiga favela
do Canindé de São Paulo, uma catadora
de papel e de outras sucatas, uma
mulher negra, pobre, mãe, escritora e
favelada”.
Segundo ela, “o diário de Carolina é
uma espécie de literatura-verdade, que
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Manuscritos inéditos da escritora encontram-se na
Biblioteca Naciona, no Rio de Janeiro.
relata a cruel e triste vida na favela. Sua
linguagem é, ao mesmo tempo, simples
e rebuscada: simples pela forma que escreveu algumas palavras, aproximandose da linguagem oral (como ‘iducada’) e
rebuscada pelas palavras altamente cultas
que utiliza (como ‘funestas’). Seu diário
comove leitores devido a sensibilidade
como conta os acontecimentos durante
os anos que morou em Canindé. Percebemos que tudo que é narrado, Carolina
sentiu, viu, vivenciou”.
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ENTREVISTA
ALINE ARRUDA
POLLYANA BITENCOURT
Pesquisadora
acredita que
Carolina tinha um
projeto literário
A professora do Instituto Federal
Sul de Minas Gerais (IFSULDEMINAS)
Aline Arruda, doutoranda em Literatura
Brasileira na Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), desenvolve estudos sobre Carolina Maria de Jesus e prepara uma
edição comentada de um romance inédito dela. Ela acredita que, pelo fato
de ter escrito obras de vários gêneros,
a escritora tinha um projeto literário, é
o que a sua tese vai tentar provar.
Como você despertou interesse
em estudar os escritos de Carolina?
Eu já havia lido o livro dela mais famoso, Quarto de Despejo, quando
ainda era adolescente e fiquei muito
impressionada com ele, com a história
de Carolina, com os relatos descritos
em seu diário. Depois, no mestrado,
comecei a me interessar por escritoras
negras, estudei uma contemporânea
de Carolina, Conceição Evaristo, também mineira, que sempre me disse ser
influenciada pela escritora de Sacramento. Dessa forma retomei meus estudos sobre ela no final do mestrado e
ao descobrir seus inéditos, na Biblioteca
Nacional, decidi fazer meu projeto de
doutorado sobre ela.
Porque ela ainda é pouco estudada na academia? Qual crítica predomina sobre sua obra?
Apesar da abertura acadêmica sobre
as obras de autores ditos “marginais”
ou pertencentes à chamada “minoria”,
ainda há muito preconceito sobre eles.
No caso de Carolina, ela estudou menos
de dois anos na escola, morava em
uma favela, era mulher negra, ou seja,
reúne várias condições “marginais” e
por isso muitos não acreditam que o
que ela escreveu é literatura. Valorizam
apenas o que chamamos na academia
de cânone literário, autores clássicos.
E desde que Quarto de Despejo foi
publicado, em 1960, há quem duvide
que foi Carolina de Jesus quem o escreveu, muitos disseram na época e
mesmo depois, mais recentemente,
que o jornalista Audálio Dantas, considerado o “descobridor” dela, havia escrito o diário, o que é uma calúnia,
uma bobagem, pois os manuscritos estão aí para quem quiser comprovar. É
realmente inesperado que alguém como
Carolina faça literatura e publique livros.
Como o fato de ela ser mulher,
negra e favelada reflete em sua obra?
No caso dos diários e da autobiografia, esses aspectos estão entranhados,
a experiência e a vivência da autora
como mulher, negra e favelada é revelada todo o tempo em seus textos: o
racismo que sofria e via outros sofrerem;
a condição de mulher e pobre, mãe
solteira de três filhos, que sempre era
relegada pela sociedade machista e elitista da época e de ainda hoje. Tudo
isso foi relatado em seus diários e
textos autobiográficos.
Porque o primeiro livro Quarto
de Despejo vendeu mais de um milhão
de cópias em todo o mundo, enquanto
o segundo chegou apenas a 10 mil
exemplares? Houve um sensacionalismo em função da sua origem?
Há muitas respostas possíveis para
esse esquecimento da autora. Acredito
que houve sim um sensacionalismo em
torno da “favelada que escreveu um
diário”, mas também uma curiosidade
em torno de um livro que conta o dia a
dia da favela “de dentro”, de um ponto
de vista interno. Houve uma reação
impertinente da imprensa da época
também e talvez a inocência e a inexperiência de Carolina diante do sucesso
súbito, além de sua postura, pessoal e
na escrita, crítica e franca, que certamente não agradou a muitos, especialmente no contexto político da época.
Qual o fato da vida dela ou de
sua obra chama mais sua atenção?
Muitos fatos me chamam a atenção,
mas principalmente o de que uma mulher com origem humilde e uma vida
tão difícil tenha escrito uma obra extensa
que abrange vários gêneros como
diário, teatro, romance, conto, poesia,
provérbios, autobiografia... é admirável
a dedicação e a consciência que ela tinha. Além de escritora, era dançarina
e compositora, seus sambas também
refletem sua vida.
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Memórias do
jornalista Audálio
Dantas
Juntamente com o sucesso da publicação, vieram também as críticas.
“Ela tinha vocação, lia muito. Sendo
semianalfabeta – estudou somente dois
anos – assimilava as coisas do jeito
dela. Dona de uma personalidade forte,
sabia que tinha valor”, revela. Segundo
Audálio, Carolina se considerava uma
escritora, mas não possuía o instrumental cultural para escrever dentro
das normas e isso gerava críticas.
Segundo ele, a escritora faleceu
frustrada pelo sucesso de seu primeiro
livro não ter se repetido nos demais.
“Sua personalidade difícil, diferenciada
e excepcional criava certos problemas
pra ela. O que também me impediu de
ajudá-la mais”, desabafa o jornalista,
hoje com 82 anos.
INTERNET
Para o jornalista Audálio Dantas, a
catadora Carolina sempre quis ser descoberta e reconhecida como uma escritora. Ele acredita que, no primeiro
contato, ela imaginava que ele era um
repórter e queria chamar atenção.
“Quando estava na favela Canindé
para cobrir a inauguração de um playground, me deparei com uma mulher
gritando para os adultos que usavam
os brinquedos, dizendo que ia colocar
o nome deles em seu livro. A minha
curiosidade de repórter fez com que
eu fosse até a casa dela e visse o seu
diário iniciado em 1955. Era uma descrição muito forte e verdadeira. Nenhum
repórter conseguiria escrever como
quem vivencia aquela situação de pobreza, de dentro pra fora”, conta.
O jornalista propôs que o jornal publicasse alguns trechos do manuscrito
que ele selecionou sem mexer na forma,
somente fazendo uma introdução. “Essa
foi a reportagem mais importante da
minha vida, afirma. Mais tarde ele descobriu que, antes de encontrar-se com
Carolina, no próprio jornal Folha de S.
Paulo onde trabalhava, havia uma pequena matéria sobre ela, intitulada poetiza
negra. “Parece que aquelas poucas linhas
haviam sido publicadas para o repórter
se livrar da insistência dela para a publicação de suas poesias”, relembra.
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“… As oito e meia da noite
eu ja estava na favela
respirando o odor dos
excrementos que mescla
com o barro podre. Quando
estou na cidade tenho a
impressão que estou na
sala de visita com seus
lustres de cristais, seus
tapetes de viludos,
almofadas de sitim. E
quando estou na favela
tenha a impressão que sou
um objeto fora do uso,
digno de estar num quarto
de despejo”. (Quarto de
Despejo, 2007, p.38).
"O livro... me fascina.
Eu fui criada no mundo.
Sem orientação materna.
Mas os livros guiou os meus
pensamentos. Evitando os
abismos que encontramos
na vida. Bendita as horas
que passei lendo. Cheguei a
conclusão que é o pobre
quem deve ler. Porque o
livro, é a bussola que ha de
orientar o homem no porvir
(...)" (Meu estranho diário,
1996, p. 167).
"O homem que cultiva o ódio
racial é um imbecil" – (Provérbios. São Paulo: Editor Áquila,
1963).
Trechos de obras da escritora
Carolina de Jesus
Comentários
críticos sobre obras
de Carolina
entender as razões pelas quais essa
obra é considerada pouco significativa
e muito voltada para o trajeto instável
de um indivíduo. Confinada à forma do
diário, Carolina Maria de Jesus parece
se sentir compelida a repetir uma fórmula, cujo efeito não tem a força de revelação de Quarto de Despejo. A
figura da ex-favelada não desperta interesse, porque ela e sua obra são objeto de atenção apenas enquanto
revelam a face negativa do desenvolvimentismo; já as oscilações ideológicas
da mulher que, famosa, busca a atenção da imprensa e do público não trazem à época elementos que se julguem
significativos.
Fugindo aos cânones do que se considera “literatura” em meios acadêmicos,
Quarto de Despejo é mais do que um
simples depoimento; trata-se de uma
obra em que, a despeito das condições
materiais e culturais de sua autora, constrói-se uma forte e única representação
da dinâmica social urbana, vista pelo
ângulo dos que são lançados à margem.
Carolina Maria de Jesus escreve para
denunciar a favela e para sair dela; escreve também para, diferenciando-se
dos outros moradores, lutar contra o
rebaixamento a que estão sujeitos os
miseráveis, num momento em que se
anuncia novo salto modernizador de
São Paulo e do Brasil.
Em Casa de Alvenaria, notam-se
mais explicitamente as contradições da
autora quanto ao que deseja para si
mesma e para sua família. Também
ficam patentes suas hesitações com relação aos anseios por reconhecimento
público ou ao repúdio pelos mecanismos sociais que dificultam o trajeto
profissional como escritora. Essa conjunção, por vezes discrepante, ajuda a
Diário de Bitita, publicado após
a morte da autora, resgata a força literária da produção de Carolina Maria
de Jesus. Trata-se de memórias da infância e da adolescência, em Sacramento e nas fazendas onde trabalha
como colona, bem como de seus primeiros tempos em Franca. Nesta obra,
os temas da injustiça social, da opressão,
do preconceito contra os negros, dos
abusos dos poderosos são apresentados
a partir da perspectiva daquela que os
viveu. Apesar de suas condições materiais, Carolina Maria de Jesus lutou
para conquistar dignidade e para se
constituir como alguém que resiste à
exploração e à desumanização. A obra
testemunha a história dessa luta e da
opressão a que estão confinados os
pobres no Brasil das primeiras cinco
décadas do século XX.ø
Fonte: Enciclopédia de Literatura/Itau Cultural,
citado por FENSKE, Elfi Kürten (pesquisa, seleção
e organização). Carolina Maria de Jesus - a voz
dos não têm a palavra. Templo Cultural Delfos,
maio/2014. Disponível no link. http://www.elfikurten.com.br/2014/05/carolina-maria-de-jesus.html
(acessado em 6/02/2015).
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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DO LIVRO MAGRA DE RUIM
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CULTURA
POR DENILSON
CAJAZEIRO
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Um nov
Mulheres conquistam espaço e redesenham a
representação feminina nas histórias em quadrinhos
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Esqueça as heroínas sensuais, com
roupas justíssimas e curvas à mostra,
ou mesmo inseguras, frágeis, à espera
de serem salvas. Pouco a pouco, a representação feminina nas histórias em
quadrinhos tem sido redesenhada pelas
próprias mulheres, que a cada dia ganham terreno num campo ainda marcado
pela presença masculina. Por meio da
internet ou de feiras e produções independentes, bancadas por financiamentos
coletivos, elas passaram a dar maior visibilidade às suas produções, muitas
vezes à margem do circuito comercial.
Uma dessas iniciativas que projetam
o trabalho feito por elas surgiu há quatro
anos, quando a jornalista Mariamma
Fonseca, leitora de HQs desde a infância,
decidiu criar um blog com informações
sobre mulheres quadrinistas e temas
afins, voltado para as amantes do assunto. A ideia nasceu depois que Mariamma sentiu certo incômodo durante
uma aula do curso de artes visuais, em
que a turma era formada só por homens.
Curiosa por saber quais mulheres atuavam no universo dos quadrinhos, perguntou ao professor, que não soube
respondê-la. Procurou na internet e
também teve dificuldade de encontrar.
Daí a decisão de reunir na web produções feitas somente por elas. A iniciativa
deu tão certo que o blog logo virou um
site, o Lady’s Comics, cujo slogan é
HQ não é só pro seu namorado.
“Tivemos um retorno muito rápido.
Muitas leitoras se identificaram e apoiaram a iniciativa. Inicialmente a ideia
era dar visibilidade. Acabou que virou
uma rede de apoio para encontrar referências, debater o tema e também
uma forma de empoderar as meninas,
fazer com que elas se sintam acolhidas
e motivadas a trabalhar com isso. Procuramos também incentivar a leitura de
quadrinhos”, revela Mariamma Fonseca,
que hoje cuida do site junto com outras
duas amigas, Samanta Coan e Samara
Horta, também apaixonadas por HQs.
Além de entrevistas com as mulheres que transitam pela arte sequencial,
o site reúne informações de lançamentos e encontros e artigos sobre a presença feminina no universo das HQs.
Em um deles, elas criticam o depoimento de ninguém menos que Maurício de Souza, criador da Turma da
Mônica. Ao responder a reclamação
do público sobre a falta das mulheres
no mercado, na edição de 2013 da
Feira do Livro de Frankfurt, ele teria
dito que a “mulher ainda não tem essa
liberdade sem vergonha que homem
tem, de trabalhar sem horários, voltar
para casa tarde. Tem outras obrigações
além do trabalho, tem que cuidar da
casa, dos filhos. Quadrinho exige
muito tempo de dedicação”.
Numa espécie de editorial, elas logo
rebateram: “fica claro cada vez mais
que já passou da hora de se discutir a
invisibilidade das quadrinistas no Brasil.
Sem vitimismo, o fato é: temos muitas
quadrinistas produzindo. Temos autoras,
roteiristas, coloristas, arte-finalistas e
todas as ‘istas’ que envolvem os qua-
“As mulheres
sempre foram
representadas
de forma
estereotipadas”.
drinhos brasileiros. E elas dão duro
(assim como todos da área) para terem
seus trabalhos reconhecidos, divulgados
e vistos. Ainda assim, insistem em
dizer que somos poucas, que não nos
interessamos ou que não somos competentes para isso. Estamos cansadas
de ser ignoradas”.
A reação delas ecoou e, no ano seguinte, foi promovido o primeiro encontro de mulheres quadrinistas do
Brasil, em Belo Horizonte, para debater
a presença delas no mercado editorial
e os padrões estéticos presentes nas
histórias em quadrinhos. “As mulheres
sempre foram representadas de forma
estereotipada. Sempre foi peitão e
bundão, porque por um bom tempo o
mercado era feito basicamente por homens. A representação tem de ter uma
pesquisa profunda. Não pode ser feita
sem entender o universo feminino”,
explica Mariamma Fonseca.
Uma polêmica dessa natureza chegou recentemente à indústria dos quadrinhos. Em agosto passado, a Marvel
Comics pediu desculpas publicamente,
em um comunicado oficial, após a
capa de uma edição da Mulher-Aranha
feita pelo italiano Milo Manara ter sido
recebida com críticas, em função da
pose erótica da protagonista. O editor-chefe da empresa justificou-se e
disse que a capa de Manara não seria
a principal, mas sim uma edição limitada
para colecionadores.
“A gente tem esse problema. Parece
que toda personagem tem de ser jovem,
bonita, magra, branca e gostosa. É
muito redutor e acaba gerando esse
problema de identificação e afastando
leitoras desse universo”, pondera Ana
Luiza Koehler, uma das curadoras do
Festival Internacional de Quadrinhos
(FIQ/BH). Aliás, ela é a primeira mulher
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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Revista Elas por Elas - Abril 2015
Fernanda Torquato seguiu o mesmo caminho. Depois de publicar seus
trabalhos na internet, a quadrinista lançou pela mesma editora, no início deste
ano, o Gata Garota, história inspirada
em dois dos cinco gatos de estimação
que cria em casa. “As mulheres estão
se interessando mais e produzindo
mais, e as grandes editoras estão preocupadas em publicar histórias feitas por
nós porque precisam atender à demanda crescente de leitoras”, avalia
Samanta Coan. Segundo a pesquisa-
dora e historiadora Natânia Nogueira,
apesar dos obstáculos, o cenário é promissor para as mulheres, sejam elas
leitoras ou profissionais da arte sequencial. “A sociedade é muito injusta
em relação ao trabalho feminino.
Ainda há muita resistência, mas a participação das mulheres está crescendo
bastante. Até na área da pesquisa. Temos uma associação de pesquisadores.
Dos 43 membros, 15 são mulheres, e
a tendência é aumentar”, comemora
Natânia Nogueira.
POLLYANA BITENCOURT
a exercer essa função no evento, criado
há 18 anos. Arquiteta de formação, a
ilustradora pretende lançar neste ano
sua primeira HQ, intitulada Beco do
Rosário, em que a narrativa se passa
na década de 20, em Porto Alegre, e
traz uma personagem negra como protagonista – Vitória Azambuja, uma escritora que vai colocar seu talento a
serviço dos que estão sendo despejados
de suas casas para a abertura das grandes avenidas. “Acho que o principal
desafio é quebrar esta barreira do mercado, que tenta nos inserir em um
nicho, de que história feita por mulher
é apenas para mulher. Fazemos histórias
para todo mundo”, afirma.
Polêmicas à parte, é fato que elas
têm conquistado mais espaço até mesmo
no mercado editorial, ainda que timidamente, graças ao talento e à divulgação
na internet. Bianca Pinheiro ilustra bem
isso. Depois de ganhar visibilidade na
web, a ilustradora e quadrinista recebeu
o convite da editora Nemo para publicar
um de seus trabalhos, o Bear, a simpática
história da pequena Raven que, após
se perder de seus pais, encontra o urso
Dimas, que a ajuda na sua busca. O
livro já está no segundo volume. “A
gente aprende desde cedo que não há
mulheres nos quadrinhos. Mas a arte é
do ser humano, independentemente de
gênero. Então, se há algum papel [dela
no universo dos quadrinhos], é o de
inspirar outras mulheres, para mostrar
ao mundo o nosso trabalho também”,
opina. Bianca Pinheiro também retomou
na internet o projeto Pequenas satisfações humanas, com a publicação diária de um desenho com pequenos prazeres, e publicou neste ano, de forma
alternativa, outro HQ, o Dora, em que
uma mãe tenta defender a filha da acusação de ter matado quinze pessoas.
Samara Horta, Mariamma Fonseca e Samanta Coan, do Lady’s Comics.
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ARQUIVO PESSOAL
ENTREVISTA
GABRIELA MASSON
Masturbação
é um ato de
autonomia
da mulher
Quadrinista defende a
emancipação feminina
na exploração da
própria sexualidade
Gabriela Masson desenha desde
criança, mas foi só há pouco tempo,
cerca de dois anos, que começou a trabalhar com quadrinhos. A motivação
surgiu durante o curso na Faculdade de
Artes Plásticas da Universidade de Brasília, ainda em fase de conclusão. Hoje,
a quadrinista, de 25 anos, assina como
Lovelove6 seus trabalhos, que circulam
bem e ganham projeção na web.
“Considero estar sendo muito bom
e produtivo para mim. Recebo muitos
e-mails de pessoas que leram e de pessoas que começam a produzir e me
falam que foi por inspiração de um
quadrinho meu. As vendas também são
um parâmetro para entender se está
dando certo”, afirma Gabriela Masson.
Feminista, ela está finalizando a impressão de uma de suas principais produções, a história em quadrinho Garota
Siririca – bancada por um financiamento coletivo –, cuja personagem é
uma garota viciada em se masturbar.
“Acho que existe um protagonismo na
mulher quando ela decide explorar a
sua própria sexualidade. Hoje até penso
que masturbação é um ato de autonomia, um ato político de emancipação
importante para a mulher”, defende a
jovem, autora também do zine Ética
do Tesão na Pós-Modernidade, volumes 1 e 2, entre outros trabalhos.
Confira abaixo a entrevista.
Quem é a Garota Siririca e
como surgiu a ideia de criá-la?
A Garota Siririca é uma menina
viciada em masturbação, que passa os
dias fazendo isso e acaba envolvendo
as amigas dela em sua obsessão. Ela
surgiu a partir das minhas próprias experiências, a princípio, e depois, para
desenvolvê-la, passei a conversar com
muitas outras mulheres a respeito de
sexualidade, masturbação e feminismo.
Eu pesquiso muito a respeito da vulva
e de sexualidade também. Muito a respeito do feminismo e converso muito
com minhas amigas. Outras mulheres
me mandam emails voluntariamente
contanto histórias engraçadas. Tudo
isso me ajuda bastante a criar. Daí a
Garota Siririca foi virando outras
coisas. Hoje considero que é uma história especialmente sobre relações lésbicas. Toca muito no tema de amizade
entre mulheres também.
Por que escolher falar sobre
sexo e para as mulheres?
Um pouco antes de começar a fazer
a Garota Siririca, procurei conhecer o
que estava acontecendo nos quadrinhos
nacionais. Reparei que tinha uma au-
Revista Elas por Elas - Abril 2015
Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 126
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sência muito grande de personagens
que fossem mulheres construídas numa
perspectiva feminista. A maneira como
as mulheres são representadas nos quadrinhos, tanto nacional quanto mundialmente, é um problema. Geralmente
apela-se para estereótipos desprezíveis,
humilhantes e, quando percebi isso,
tive muita vontade de desenvolver essa
personagem que estava faltando, que
eu mesma gostasse de me identificar.
Paralelo a isso estava acontecendo coisas
em minha vida, em relação à masturbação é à minha sexualidade. Percebi que
faltava muito espaço para ter um diálogo
a respeito disso. Aí meio que juntei as
duas coisas. Resolvi tentar trabalhar
essa ausência de uma personagem representativa e essa ausência de diálogo
a respeito de masturbação, feminismo
e sexualidade nos quadrinhos.
Porque masturbar ainda é um
tabu entre as mulheres, não é?
Muito grande. Acho que especialmente no círculo social de classe média,
com acesso ao Facebook, talvez uma
pequena parcela de garotas jovens já
esteja falando muito mais a respeito
disso. Mas em geral, na sociedade, é
um grande tabu. Conheci histórias bem
tristes, de mulheres que sentem nojo
do próprio corpo. Isso acaba as levando
a se submeter a algumas relações muito
nocivas quando vem o momento de se
relacionar sexualmente.
Em que medida o feminismo
ajudou a Garota Siririca?
Acho que se eu não fosse feminista
e tivesse decidido fazer algum tipo de
quadrinho erótico, nunca sairia algo
como a Garota Siririca. Antes de me
tornar feminista, já lia quadrinhos eróticos e gostava muito. Acho que eu
Revista Elas por Elas - Abril 2015
iria reproduzir muito do que tem sido
feito nacionalmente aí, uma abordagem
da sexualidade muito heterossexual,
heretocentrada, geralmente homofóbica,
lesbofóbica, transfóbica.
Como você definiria a sexualidade hoje?
Existem muitas formas de expressar
e praticar a sexualidade, mas acho que
se tem algo que poderia generalizar é
que todas elas são fluidas, apesar de
muitas pessoas engessarem a sua sexualidade em algum momento. Acredito
que isso não é natural...
Engessar em que sentido?
Por exemplo, acreditar, ao longo
da educação que a sociedade dá pra
gente, que o homem é necessariamente
heterossexual. O cara acredita com todas as forças que é isso mesmo, que
ele nasceu para ser hétero e será hétero
até o fim da vida. Acho que essa é
uma visão muito engessada da sexualidade e uma maneira conservadora de
lidar com o próprio corpo e com as
pessoas. Acho que a sexualidade é naturalmente fluida. Mas aí depende do
moral da pessoa e o quanto ela está
disposta a deixar fluir sua sexualidade
e descobrir como se sente melhor praticando isso.
Você disse em entrevista que a
gente vive em uma situação de extremo cerceamento do próprio corpo. Gostaria que falasse mais a
respeito disso.
A ausência de diálogo a respeito
de sexualidade, de educação sexual,
masturbação, especialmente voltada
para mulheres que nasceram com vulvas
e se identificam como mulheres, trabalha
Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 127
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no sentido de tirar toda intimidade que
a mulher poderia ter com o próprio
corpo. Ao longo do nosso amadurecimento sexual, na verdade a gente
acaba perdendo a intimidade com o
próprio corpo. Eu vejo isso se refletir
na vida delas quando há mulheres com
trinta anos dizendo que odeiam se
masturbar, que gostam mesmo é de
sexo, mas que nunca tiveram um orgasmo, só se relacionam com homens
e têm tendência a entrar em relacionamentos abusivos. Acho que tudo isso é
realmente um fruto objetivo de toda
essa falta de diálogo que existe, desse
cerceamento do conhecimento e das
possibilidades que a mulher pode ter
para desenvolver a sexualidade dela.
Você também já disse que sexo
é política. Em que medida sexo é
política?
Quis dizer que a maneira como nós
praticamos o sexo se reflete politicamente na maneira como agimos socialmente. Acho que existe um protagonismo na mulher quando ela decide
explorar a sua própria sexualidade.
Hoje até penso que masturbação é um
ato de autonomia, um ato político de
emancipação importante para a mulher.
A partir daí a gente afirma muitas
coisas. Uma mulher que começa a se
masturbar na intimidade de casa, não
tenho dúvida de que a maneira como
ela vai se comportar no mundo vai ser
diferente, a partir dessa experiência
que tem como ela mesma. Inclusive
acho que pode ser político sim quando
mulheres se relacionam sexualmente
com mulheres. Simbolicamente e politicamente é muito forte a mensagem.
E entendo que existem mulheres que
preferem se relacionar apenas com
mulheres por questões políticas, moti-
vadas pelos contextos sociais que às
vezes são muito opressores e violentos.
Então quando falo que sexo é política,
quero dizer que se a mulher se propõe
a ser protagonista da própria sexualidade e não se submeter aos preconceitos e a relações abusivas, a partir
da relação sexual que ela tem com ela
mesma e com as pessoas em volta
dela, age politicamente de uma forma
diferente no mundo.
No entanto esse não é o quadro
atual. É possível alterá-lo?
Bom, não sei, na verdade. Acho
que o movimento feminista está fazendo
avanços maravilhosos no Brasil e no
mundo em termos de sexualidade, de
direitos de reprodução, mas todo esse
avanço gera uma reação muito forte,
muito violenta. Acho que essa mudança
está acontecendo também especialmente entre mulheres jovens, de classe
média, mas sim, tenho esperanças. A
gente precisa é de mulheres mais
velhas, inseridas em outros contextos,
que estejam interessadas em conversar
a respeito dessas questões, numa perspectiva feminista com suas amigas,
com as mulheres mais próximas delas.
Aí é possível o feminismo começar a
brotar e ter um efeito maior nos contextos sociais.
“Ao longo do nosso
amadurecimento
sexual, acabamos
perdendo a
intimidade com o
próprio corpo”.
Sobre o trabalho das mulheres
quadrinistas, você também acredita
que elas têm hoje mais visibilidade
e espaços?
A gente está conquistando, construindo espaços. Acho que tem pouco
a ver com nossos colegas quadrinistas
homens reconhecerem o valor dos
nossos quadrinhos ou do nosso movimento. Inclusive a gente entra muito
em conflito. Apesar de estar conseguindo me aproximar desses lugares
superdominados por homens, acredito
cada vez mais que só vai dar certo
mesmo se for uma coisa entre as mulheres. Essa é a grande resposta. Fazendo feira, colocando a mão na
massa, fazendo quadrinho, recorrendo
a financiamento coletivo, criando grupos para conversar sobre quadrinhos,
dar oficinas uma para a outra, acho
que é assim. Pelo que tenho observado, desde que comecei a fazer quadrinhos, tem sido assim. Não foi
porque os caras acharam massa, porque até hoje eles não acham. Nem sei
se é o caso de esperarmos que a indústria e os meios de comunicação
mudem a cabeça. Estou mais apostando em criar novos espaços com
essas mulheres que querem fazer e não
depender dessa galera para aparecer e
vender nossas coisas. E o que gosto
mais em toda a cena de quadrinhos
entre as mulheres é exatamente essa
visão feminista, que ainda bem que a
grande maioria de nós compartilha,
ainda que haja algumas desavenças em
alguns detalhes. Acho que não adianta
mais mulheres fazendo quadrinhos se
essas mulheres não são feministas.
Para fazer mudanças em direção à promoção da igualdade e respeito pela
mulher, tem de ser feminista, se não a
coisa não anda.ø
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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Miriam Alves, do coletivo Bloco das Pretas: “a arte educa e sensibiliza a sociedade”.
Revista Elas por Elas - Abril 2015
foto DENILSON CAJAZEIRO
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CULTURA NEGRA
por DENILSON
CAJAZEIRO
Arte e resistência
Por meio de intervenções artísticas, mulheres colocam em
pauta a agenda feminista
Literatura, música, teatro, dança,
performance e outras formas de arte e
cultura feitas por mulheres tomaram
conta de vários espaços do centro e
da periferia de Belo Horizonte e região
metropolitana, entre os dias 6 e 8 de
março deste ano. As cerca de 130
apresentações foram gratuitas e fizeram
parte da mostra Diversas – feminismo,
arte e resistência, evento promovido
por grupos e coletivos de mulheres.
O evento, que também contou com
oficinas em ocupações urbanas sobre
feminismo e rodas de conversa, propôs
o debate, por meio das intervenções artísticas, de temas da pauta feminista,
como a violência contra as mulheres, a
participação delas no mercado de trabalho, a mercantilização do corpo, a
sexualidade e os direitos reprodutivos, a
luta das mulheres negras, entre outros.
Um dos coletivos que participou da
mostra foi o Bloco das Pretas, criado
há três anos dentro da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG) e
formado por cerca de 25 mulheres.
Atualmente, uma das principais intervenções do grupo é o sarau poético,
que reúne música, expressão corporal
e poesia. “A expressão corporal é
muito definidor da mulher negra. Quando tratamos do racismo e do machismo,
isso está no corpo dela, além do aspecto
cultural mesmo, pois as mulheres negras
têm uma expressão muito forte”, afirma
a integrante do coletivo e estudante de
Pedagogia Miriam Gomes Alves, para
quem a arte é uma maneira de sensibilizar as pessoas. “Às vezes, só pela
discussão teórica não se consegue sensibilizar todos os sujeitos. A arte tem
esse caráter de sensibilizar e educar a
sociedade”.
Em vários espaços públicos da cidade, as integrantes do grupo já se
apresentaram e discutiram temas como
a invisibilidade da religião de matriz
africana ou a violência obstétrica. Na
mostra Diversas, o grupo apresentou
um sarau com o tema apropriação cultural, em que lançou um olhar crítico
sobre o uso de elementos da cultura
negra no Carnaval de Belo Horizonte
deste ano, e ministrou oficinas na ocupação Guarani Kaiowá sobre gênero
e identidade. “Somos mulheres negras
da periferia e queremos trabalhar com
grupos periféricos, por meio das intervenções, do empoderamento da mulher
negra e do incentivo à escrita. O
objetivo é sair do espaço acadêmico e
ir para a periferia”, revela.
Outro coletivo que participou da
mostra e propôs a discussão sobre a
pauta racial foi o Negras Ativas. Criado
em 2003, o grupo desenvolve atividades
artísticas, culturais e formativas, a partir
da valorização dos saberes das mulheres
negras nas comunidades. O trabalho
mais recente delas foi o documentário
A arte de ser, exibido na mostra, que
aborda a inserção de jovens mulheres
na cena do hip-hop de Belo Horizonte.
“Aos poucos, as meninas estão quebrando os estereótipos e rompendo a
cultura machista que há no hip-hop”,
aponta Joseli Rosa de Souza, integrante
do Negras Ativas. “Entendemos que
com a arte conseguimos trazer mais
mulheres para a discussão. A arte pode
possibilitar a construção de uma política
diferenciada. É uma forma de denunciar
usando a arte”, afirma.
O grupo também promoveu durante
a mostra uma roda de conversa, em
que discutiram as bandeiras das mulheres
negras e divulgaram a agenda da Marcha
das Mulheres Negras deste ano – a estadual será em 13 de maio, na Praça
Sete, no Centro de Belo Horizonte, e a
nacional será em Brasília, em 18 de
novembro. “Marcharemos em homenagem às nossas ancestrais e em defesa
da cidadania plena das mulheres negras
brasileiras”, defendem as entidades que
participam do comitê organizador da
Marcha, em texto publicado no site da
atividade (www.2015marchamulheresnegras.com.br).ø
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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POR MÁRCIA
ARTIGO
MENDONÇA
foto ASSOCIATED PRESS
Muito além do
feminino e do masculino
Moda: um campo no qual representações e
simbolismos ganham dimensão
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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Uma bela discussão sobre gênero.
Novo diretor-criativo da Gucci, Alessandro Michele, passou por prova de
fogo na grife ao apresentar, em janeiro
deste ano, em Milão, a coleção masculina de inverno 2016, propondo que
o homem use roupas com influência
do guarda-roupa feminino. E mais, colocou mulheres desfilando suas criações
masculinas na passarela.
Miuccia Prada trouxe também para
sua coleção 2016, jaquetas curtas e
calças afuniladas, endossando a ideia.
Para ela, há uma evolução nesse movimento, e a moda masculina, muito
previsível e limitada, vem buscando
novas influências, e a tendência é a de
que o feminino e o masculino se aproximem cada vez mais.
Para o estilista brasileiro João Pimenta, “estamos tão avançados que
não faz sentido discutirmos o que é
masculino e o que é o feminino hoje”.
Até o momento nenhuma novidade.
Não é de hoje que a moda flerta com a
discussão sobre gênero e sobre a histórica
interface entre masculino e feminino.
Coco Chanel, no início da década
de 1920, apropriou-se de suéteres, terninhos, casacos, calças−peças exclusivamente masculinas, para criar looks
que tornaram-se atemporais, dando
início à relação entre mulheres e a alfaiataria, muito presente nas vestimentas
femininas durante a Segunda Guerra
Mundial e cada vez mais em destaque
na contemporaneidade. Chanel rompeu
com a rigidez do traje feminino e imprimiu um estilo de se vestir mais simples,
e que chamamos hoje de minimalista.
Em 1930, a atriz Marlene Dietrich
provocou enorme frisson ao usar um
modelo de terno e gravata no filme
Marrocos, de Josef Von Stenberg.
Dietrich acabou por ditar moda no
período entreguerras (1914-1918 e
1939-1945), provocando grande discussão sobre o reposicionamento da
mulher e sua afirmação na sociedade
moderna.
Nos anos 50, o rock influenciou a
moda e levou para o guarda-roupa
feminino e masculino a calça jeans e a
camiseta. Na década seguinte, nova
explosão, com Mary Quant e o surgimento da minissaia, Yves Saint
Laurent com o smoking feminino,
Paco Rabane e suas criações futuristas.
Da segunda metade do século XX
até os dias atuais, foram, e são, muitos
os estilistas que dialogoram e interpretaram – e que dialogam, cada vez mais
–, com o feminino/masculino. Muitas
são as reinvenções, apropriações e assimilações na moda, e a androginia –
ou inversão de gêneros, ou a soma
dos dois ou nenhum dos dois –, tamanha é a discussão e reflexão sobre o
assunto que tem se intensificado cada
vez mais nesse campo.
Para a feminista Judith Butler, “o
gênero deixou de ser uma identidade
estável, ou lugar de agenciamento do
qual as ações procedem. O gênero é
uma identidade tenuemente constituída
por meio da repetição estilizada de
atos, gestos, performances variadas
que constroem a ilusão de self com a
sexualidade definida”.
Nessa perspectiva, recorremos ao
filme Orlando, realizado em 1992, pela
cineasta inglesa Sally Potter, como forma
de tematizarmos o assunto. O ponto de
partida do filme é a obra homônima
Orlando, de autoria da escritora inglesa
Virgínia Woolf. Nascido homem, o lorde
Orlando, após séculos de existência e
desventuras (a obra de Woolf situa-se
em quatro séculos, do século XVI ao
início do século XX), acorda, num belo
dia, mulher. É ordenado pela Rainha
Elizabeth I a permancer eternamente
jovem, e sai de sua condição de aristocrata para dândi, dama, andrógino. Sua
mudança mais radical é sua transformação sexual, seguida de seus relacionamentos, afetos, desacertos. Woolf criou
uma das obras mais instigantes da literatura mundial sobre a discussão do gênero, adaptada de maneira extremamente original por Potter.
A escolha de Tilda Swinton para
viver Orlando é mais do que acertada,
pois é uma das atrizes mais andróginas
que o cinema já teve. Em 2013, estrelou
campanha da marca Chanel e foi fotografada por Karl Lagerfeld. Para o
papel da Rainha Elizabeth I, o ator
Quentin Crisp foi escalado por Sally
Potter. O figurino, assinado por Sandy
Powell, é surpreendente, afinal, abrange
quatro séculos, épocas e estilos distintos,
como o rococó, o clássico e o moderno.
É impecável ainda na direção de arte e
fotografia, e chegou a ser indicado a
dois Oscar, o de Melhor Direção de
Arte e Melhor Figurino.
Orlando nos conduz a uma discussão
pertinente que permeia arte, gênero,
moda, sexualidade e corpo, e que nos
leva a refletir quanto a moda e a subjetividade são indissociáveis, e comportam
ambiguidades, paradoxalidades, ideologias e identidades múltiplas. Pensar a
moda, neste contexto, é observar, analisar
seus discursos, sua multiplicidade de cenários e de propostas, cada vez mais
mutantes e feéricas, deixando de lado
seu ar de frivolidade, tornando-se, um
campo no qual as representações, os
simbolismos, os questionamentos e os
dilemas ganham dimensão. Afinal, a
moda pensa além do feminino e do
masculino.ø
Márcia Mendonça é historiadora,
professora e jornalista
Revista Elas por Elas - Abril 2015
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POUCAS E BOAS
INTERNET
Homens em prol dos direitos das mulheres
No ano passado a ONU lançou,
em Nova York, a campanha HeForShe. Criada para mobilizar homens e meninos em prol dos direitos
das mulheres e da igualdade de gênero, a campanha tem como principal divulgadora a atriz e embaixadora da Boa Vontade da ONU
Mulheres, Emma Watson.
O pontapé inicial da campanha
foi dado na sede das Nações Unidas
em setembro de 2014. No evento
do lançamento global, os homens
foram colocados como ativistas
fundamentais para acabar com as
desigualdades enfrentadas diariamente por todas as mulheres.
Até setembro de 2015, a campanha pretende mobilizar um bilhão de homens e meninos ao
redor do mundo como defensores
e agentes da transformação. No
site heforshe.org é possível também encontrar um mapa em
tempo real que mede o envolvimento dos homens com a iniciativa em todo o mundo.
Titularidade para as
mulheres nos
programas sociais
Tribunal do RJ
tem a primeira
desembargadora negra
Entrou em vigor no ano passado a Lei nº 13.014. Agora,
assim como no Bolsa Família,
outros programas assistenciais
e de transferência de renda do
governo federal adotarão o
pagamento preferencial à mulher responsável pela unidade
familiar.
A lei alterou a Lei Orgânica
da Assistência Social (Lei
8.742/1993) que dispõe sobre
a organização da assistência
social e a Lei 12.512/2011 que
institui o Programa de Apoio à
Conservação Ambiental e o
Programa de Fomento às Atividades Produtivas Rurais.
Aos 69 anos de idade, Ivone Ferreira Caetano, titular da 1ª Vara da
Infância da Juventude e do Idoso
tornou-se a primeira desembargadora negra do estado do Rio de Janeiro. Segunda mulher negra do
Brasil a ocupar o cargo de magistrada, ela foi escolhida entre 16
juízes que concorriam ao cargo,
sendo eles nove mulheres e sete
homens.
Com uma trajetória de vida de
superação e luta contra o preconceito, Ivone é filha de uma lavadeira
que criou sozinha onze filhos. A juíza
começou a faculdade de direito aos
25 anos, apenas ingressando na escola de magistratura aos 49 anos.
Revista Elas por Elas - Abril 2015
Mulheres no Poder
http://www.mulheresnopoder.com.br
Homens pelo fim da violência
contra as mulheres
http://www.homenspelofimdaviolencia.com.br
Geledes
http://www.geledes.org.br/
Blogueiro negras
http://blogueirosnegras.org
Laço branco
http://lacobrancobrasil.blogspot.com.br
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LIVROS
FILMES
Backlash: o contra-ataque
na guerra não declarada às
mulheres
Autora:
Susan Faludi
Editora Rocco
A década de 1980
deflagrou um implacável contraataque às conquistas femininas, que
opera em dois níveis: convencer as mulheres de que seus
sentimentos de angústia e insatisfação
são resultado do excesso de independência, ao mesmo tempo em que destrói
gradativamente os mínimos avanços
que as mulheres realizaram no trabalho,
na política e em sua forma de pensar.
Susan Faludi, prêmio Pulitzer de jornalismo, mostra como a imprensa se ocupou em repercutir essas mensagens ao
dar um cunho moralista às notícias e
reportagens, e manipular estatísticas.
O segundo sexo
Autora: Simone
de Beauvoir
Editora Nova
Fronteira
Provedora, vassala, acolhedora. Não
importa como se
apresenta, o lugar
da mulher sempre foi definido pelo homem. Este configura a posição central
na sociedade. O homem que tomou
para si a definição de ‘ser humano’ relega à mulher uma posição secundária,
um papel de coadjuvante na História.
Foi a partir dessa constatação e da
pergunta ‘o que é uma mulher?’, que a
filósofa existencialista Simone de Beauvoir deu início à sua reflexão para escrever O segundo sexo.
O mito da beleza
Autora:
Naomi Wolf
Editora Rocco
Para mostrar como a indústria da
beleza e o culto à
bela fêmea manipulam imagens que
minam a resistência psicológica e material femininas, reduzindo as conquistas
de 20 anos de lutas a meras ilusões,
Naomi Wolf escreveu um livro com dados
estatísticos.
Em O mito da beleza, Naomi enfrenta o
que ela acredita ser a única trincheira
ainda por derrubar para que a mulher
possa obter sua igualdade em todos os
campos.
Viagem no vagão de Lia
Autora: Celina
Maria Coelho
Editora: Aquarela
A narrativa revela a vida de Lia
desde antes de
conquistar um
vagão de trem da extinta Central do
Brasil. Maria de Oliveira (1941 – 2013)
fez deste vagão morada e ao seu
redor construiu uma casa, plantou
árvores, criou bichos, transformou
lixo em arte. Tornou-se alvo dos
olhares da mídia, de estudantes, de
curiosos. No livro, a autora trata
dos desafios enfrentados pela protagonista, na trajetória desde o Espírito Santo, onde nasceu, passando
pelo Rio de Janeiro, Nanuque e Belo
Horizonte, para culminar, em Contagem, sua saga triunfal para se tornar a “Lia do Vagão”.
Rosa de Luxemburgo
Direção: Margarethe Von Trotta
Gênero: Drama
Nascida na Polônia e doutora em
Ciências Econômicas, Rosa Luxemburgo torna-se uma das grandes
líderes do movimento operário revolucionário alemão, adere ao Partido Social-Democrata alemão em
1898 e em 1914 rompe violentamente
com essa agremiação. Rosa, a Vermelha, como era conhecida, visceralmente internacionalista e antibelicista condena como uma traição
o apoio dos social-democratas à
deflagração da Primeira Guerra
Mundial.
Violette
Direção: Martin Provost
Gênero: Drama, Biografia
O filme aborda o relacionamento
entre Simone de Beauvoir, uma das
maiores feministas da história, e a
escritora Violette Leduc. Em Paris,
meados do século XX, Violette se
vê como uma mulher feia e desinteressante. Porém, se por um lado
a ausência de autoestima domina
a sua vida, por outro a faz refletir
sobre as relações entre as pessoas
e, em especial, sobre a condição
feminina.
Nunca sem minha filha
Direção: Brian Gilbert
Gênero: Drama
Betty está casada há sete anos
com o iraniano naturalizado americano Moody. Os dois têm uma pequena filha a quem amam muito.
Com a troca de poder no Irã,
Moody decide que é hora de voltar.
Contrariada, Betty aceita ir, mas ao
chegar lá, descobre que foi enganada e que seu marido não é quem
ela pensava.
Revista Elas por Elas - Abril 2015
Elas por elas MAR2015b.qxp_Layout 1 7,15,2015 14:46 Page 134
RETRATO
Izabel Mendes
Falecida em outubro de 2014, aos
90 anos, foi exemplo da coragem
das mulheres artesãs do Vale do
Jequinhonha. Em 2003, as bonecas
de dona Izabel foram parar na São
Paulo Fashion Week. Ela recebeu
vários prêmios, como o Unesco de
Artesanato para a América Latina
(2004), a Ordem do Mérito Cultural
(concedida pelo Ministério da Cultura, 2005) e o Prêmio Culturas
Populares (Ministério da Cultura,
2009). Também homenageada pela
presidenta Dilma Rousseff durante
a abertura da exposição Mulheres
foto ARQUIVO UFMG
artistas e brasileiras.
Capa Elas por elas 2015b.pdf
1
27,13,2015
16:15
C
M
Y
CM
MY
CY
CMY
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REVISTA ELAS POR ELAS - ABRIL DE 2015 - NÚMERO 8
MARÇO 2015
NÚMERO 8
Ciganas
Entre o mito e
a realidade
SER MÃE
Mães em restrição de liberdade
POLÍTICA
Longe das cotas de gênero

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