Devotos, 20 anos / Hugo Montarroyos

Transcrição

Devotos, 20 anos / Hugo Montarroyos
Devotos 20 anos
2
Devotos 20 anos
Hugo Montarroyos
Programa Petrobras Cultural
Apoio
Copyright © 2010 Hugo Montarroyos
COLEÇÃO TRAMAS URBANAS (LITERATURA DA PERIFERIA BRASIL)
organização
HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA
consultoria
ECIO SALLES
produção editorial
CAMILLA SAVOIA
projeto gráfico
CUBICULO
ilustrações da capa e da quarta capa a partir de fotos de
MICHELE SOUZA
DEVOTOS 20 ANOS
produtor gráfico
SIDNEI BALBINO
designer assistente
DANIEL FROTA
revisão
BEATRIZ BRANQUINHO
CAMILLA SAVOIA
ELISA ROSA
revisão tipográfica
CAMILLA SAVOIA
M765d
Montarroyos, Hugo
Devotos, 20 anos / Hugo Montarroyos. – Rio de Janeiro: Aeroplano, 2010.
il. – (Tramas urbanas)
Apêndice
ISBN 978-85-7820-035-0
1. Alto José do Pinho (Recife, PE). 2. Movimento da juventude - Recife
(PE). 3. Música - Aspectos sociais - Recife (PE). 4. Rock.
I. Programa Petrobras Cultural II. Título. III. Série.
10-0165
CDD: 306.4842
CDU: 316.74:78.067.26
13.01.10
14.01.10
017123
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS
AEROPLANO EDITORA E CONSULTORIA LTDA
AV. ATAULFO DE PAIVA, 658 / SALA 401
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www.aeroplanoeditora.com.br
A ideia de falar sobre cultura da periferia quase sempre
esteve associada ao trabalho de avalizar, qualificar ou
autorizar a produção cultural dos artistas que se encontram na periferia por critérios sociais, econômicos e culturais. Faz parte dessa percepção de que a cultura da
periferia sempre existiu, mas não tinha oportunidade de
ter sua voz.
No entanto, nas últimas décadas, uma série de trabalhos
vem mostrar que não se trata apenas de artistas procurando inserção cultural, mas de fenômenos orgânicos,
profundamente conectados com experiências sociais
específicas. Não raro, boa parte dessas histórias assume
contornos biográficos de um sujeito ou de um grupo mobilizados em torno da sua periferia, suas condições socioeconômicas e a afirmação cultural de suas comunidades.
Essas mesmas periferias têm gerado soluções originais,
criativas, sustentáveis e autônomas, como são exemplos
a Cooperifa, o Tecnobrega, o Viva Favela e outros tantos
casos que estão entre os títulos da primeira fase desta
coleção.
Viabilizado por meio do patrocínio da Petrobras, a continuidade do projeto Tramas Urbanas trata de procurar não apenas dar voz à periferia, mas investigar nessas experiências novas formas de responder a questões
culturais, sociais e políticas emergentes. Afinal, como
diz a curadora do projeto, “mais do que a Internet,
a periferia é a grande novidade do século XXI”.
Petrobras - Petróleo Brasileiro S.A.
Na virada do século XX para o XXI, a nova cultura da
periferia se impõe como um dos movimentos culturais
de ponta no país, com feição própria, uma indisfarçável dicção proativa e, claro, projeto de transformação
social. Esses são apenas alguns dos traços de inovação
nas práticas que atualmente se desdobram no panorama da cultura popular brasileira, uma das vertentes
mais fortes de nossa tradição cultural.
Ainda que a produção cultural das periferias comece
hoje a ser reconhecida como uma das tendências criativas mais importantes e, mesmo, politicamente inaugural, sua história ainda está para ser contada.
É neste sentido que a coleção Tramas Urbanas tem como
seu objetivo maior dar a vez e a voz aos protagonistas
deste novo capítulo da memória cultural brasileira.
Tramas Urbanas é uma resposta editorial, política e afetiva ao direito da periferia de contar sua própria história.
Heloisa Buarque de Hollanda
Agradecimentos Alguns deles já me brindavam com sua amizade ao longo
dos anos, fato de que muito me orgulho.
Ao Paulo André Pires e ao Gutie, pela atenção e paciência.
À Ana Maria Ezcurra, pela generosidade em ceder para
consulta do autor sua excelente dissertação de mestrado As fugas musicais, que, assim como este livro, tem
o movimento musical do Alto José do Pinho como objeto
de estudo.
Era um sonho antigo do autor escrever um livro sobre
o Alto José do Pinho. E tal sonho só pôde ser concretizado graças ao Neilton e à Heloisa Buarque de Hollanda.
O primeiro, por ter me indicado à segunda. À Heloisa, por
ter acreditado em um autor de primeira viagem. Seu conselho, de “escrever curtindo, se divertindo”, foi dos mais
sábios: foi uma delícia escrever o livro. Muito obrigado
aos dois, de coração.
Meu agradecimento especial ao Alto José do Pinho, que
sempre me recebeu de braços abertos, desde os tempos
em que subia o morro para curtir os shows de rock até
os mais recentes, de gravador em punho, para as várias
entrevistas que coletei para este livro.
Ao jornalista José Teles, pelo apoio e pela disponibilidade para compartilhar informações com o autor.
Ao Guilherme Moura, pelas imagens cedidas e apoio
incondicional nesses tantos anos de convivência no
mundo roqueiro de Pernambuco pelo site Recife Rock!
Não posso deixar de agradecer ao Adilson Ronrona, ao
Ailton Peste, ao Cannibal, ao Celo, à dona Detinha, ao
Neilton, ao Tiger e ao Zé Brown. Eles foram de uma paciência infinita durante todo o processo de feitura do livro.
À Neide Mendonça, eterna professora e querida amiga,
pela revisão e preciosas dicas que enriqueceram muito
este trabalho. Não tenho palavras para expressar o
quanto sou grato e como foi importante sua ajuda.
À Camilla Savoia, da Aeroplano Editora, pela atenção e paciência. Seu trabalho foi crucial para a feitura deste livro.
À jornalista Juliana Moreira, que, da Suécia, me honrou
com uma prévia leitura e valiosos conselhos, meu muito
obrigado. Aos jornalistas Mirella Martins e Marcelo
Pereira, agradeço pela atenção e pelo interesse.
Finalmente, à minha mãe, Selma, uma verdadeira guerreira que quase levo à loucura durante a concepção
deste trabalho. Ao meu pai, Fred, também jornalista,
pelo apoio incondicional e experientes conselhos de
quem já passou três vezes pelas agonias e delícias de
publicar um livro. Ao meu irmão, João Augusto, pelo carinho e incentivo.
Sumário
Prefácio
A revolta pode ser de paz
Parte I
16
Cap.01 Seus sonhos vão viver. E você vai viver pra ver
O começo
Tem de tudo
O Alto hoje
36
Cap.02 Do metal ao mangue
48
Cap.03 Viva a vida que você me deu
O encontro
Brincando do jeito que dá
Professor Pardal
76
Cap.04 O Leonardo da Vinci da guitarra
O estúdio de Lee
184
Cap.06 Goticar
188
Cap.07 Me ajude a ser humano
Eu tenho a fome de viver
Nasce um artista
Carisma
204
Cap.08 Críticas e críticas
208
Cap.09 Coletânea
Preconceito
214
Cap.10 Faz parte do cotidiano
222
Cap.11 Faces na França
226
Cap.12 Quem é o pai?
232
Cap.13 Luta pacifista
Parte III
88
Cap.05 Gestos, Atitudes e Rock’ n’ Roll
96
Cap.06 Deus, abençoe a todos
Deus, abençoe meu povo
106
Cap.07 É no banheiro...
Aborto masculino:
pare de jogar menino fora ou 5 x 1
Parte II
120
Cap.01 Bar do Orlando: o CBGB do Alto José do Pinho
Espelho dos deuses
Demos
Tem afoxé, tem punk rock,
tem rock’n’roll, tem samba e tem pagode
Anos 1980
238
Cap.01 A arte de Neilton
Amp
252
Cap.02 A fundação da ONG
“Alto Falante – gravando o show”
270
Cap.03 Tudo que eu queria
O núcleo hoje
Discografia
Coletâneas
Videoclipes
Trilhas Sonoras
Livros
Festivais
148
Cap.02 Não somos marginais
158
Cap.03 Quero até sua mulher
280
Anexo – Entrevista Devotos 20 Anos
164
Cap.04 Nós faremos que você nunca esqueça
310
Imagens: índice e créditos
178
Cap.05 Homens fardados, eu não sei, não
315
Sobre o autor
13
Prefácio A revolta pode ser de paz1
A revolta pode ser de paz. A incongruência da frase cai como
uma luva para ilustrar a atitude de toda uma geração de
moradores do Alto José do Pinho. Jovens que, entre o final
da década de 1980 e início dos anos 1990 do século passado, sem maiores perspectivas de ascensão social e tendo
a criminalidade como um vizinho onipresente, resolveram
trilhar o caminho mais difícil: o de canalizar toda a revolta
que sentiam em expressão artística. Gente que teve a coragem de pegar em instrumentos musicais em vez empunhar
armas, mesmo sem ter a menor noção de como tocar, sem
dinheiro para comprar instrumentos e tampouco para pagar
aulas de música. Cansados de atuarem como coadjuvantes
na história da violência que marcava o lugar em que viviam,
utilizaram a música como fonte de escape. Em vez de seguirem a triste estatística que impregnava as páginas policiais
dos jornais locais, em que moradores do Alto José do Pinho
só eram noticiados como assassinos ou vítimas de assassinato, traficantes ou usuários de drogas, esses jovens
mudaram a realidade local. No início do processo, de forma
inconsciente; em um segundo momento, de forma completamente engajada, transformaram o cotidiano não apenas
de sua vida, mas também de sua comunidade.
1 Trecho de letra extraído da música “Canção para mudar”, do quarto álbum dos
Devotos, Flores com espinhos para o rei, de 2006.
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Esta poderia ser apenas mais uma história de superação
entre tantas vividas por muitos brasileiros nas inúmeras
favelas espalhadas pelo país afora, não fosse um pequeno
detalhe: a transformação ocorreu de dentro para fora. Não
houve quem os ajudasse no começo de tudo. Ao contrário,
até o Alto José do Pinho discriminava aqueles adolescentes de calças rasgadas, cabeleiras exóticas e cabeças raspadas. Gente que começava a transitar em uma contracultura roqueira inimaginável até então para um morro, local
que costuma sempre ser associado com outros gêneros
musicais, jamais com rock, punk, hardcore e metal. Ou seja,
na caminhada desses jovens havia o duplo preconceito: o
interno, vindo de seus vizinhos que não entendiam o que
aquela cambada de malucos queria dizer, e o externo, das
pessoas dos bairros mais abastados da capital pernambucana, que ignoravam a existência do Alto José do Pinho. Ou,
pior, só relacionavam o local à criminalidade.
Se hoje a reputação do Alto José do Pinho é outra, motivo de
orgulho para os cidadãos recifenses, é graças a esses garotos que, literalmente, aprenderam a fazer música, na marra,
na vontade, com uma teimosia que beirava o quixotesco. Se
atualmente o Alto José do Pinho é tema de trabalhos acadêmicos, reconhecido no país inteiro e procurado por pesquisadores e sociólogos até de fora do país, é porque lá atrás,
no final dos anos 1980, garotos como Cannibal, Neilton,
Celo, Tiger, Zé Brown, Adilson Ronrona, Ailton Peste, Marcelo
Massacre e tantos outros cismaram de fazer arte. E, mais
importante, meteram na cabeça, a partir de certo momento,
que sua arte poderia servir para mudar a imagem que as
pessoas tinham do Alto José do Pinho. Ainda mais relevante,
para que os moradores do Alto José do Pinho mudassem a
concepção que tinham do bairro onde moravam. Sentimento
que foi da vergonha por morar em um local tão violento ao
orgulho de residir em um bairro que produzisse tamanho
14
número de artistas. Esta é a história de um grupo de moleques que superou todas as limitações pessoais, físicas,
sociais, financeiras e psicológicas. Garotos que passaram
de malvistos por sua própria comunidade a músicos cujo
talento é reconhecido nacionalmente e até no exterior. E
que, na condição de artistas, transformaram-se em agentes sociais ao fundar a ONG (Organização Não Governamental) Alto Falante. É a trajetória, também, de um garoto que
acabou se transformando em um artista plástico e designer
gráfico de renome internacional, além de guitarrista, eletricista, engenheiro de som e produtor de disco. Tudo na
base do esquema punk do it yourself, sem professor, sem
qualquer pessoa que facilitasse o caminho das pedras. A
narrativa de Neilton, guitarrista da banda Devotos, é, de
certa forma, uma síntese de toda a história recente do Alto
José do Pinho.
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seus
vão viver
e você vai viver
Cap.01
Seus sonhos vão viver. E você vai viver pra ver1.
1 Trecho de letra de “C.O.S.”, faixa de Agora tá valendo (1997), primeiro disco dos Devotos do Ódio
Seus sonhos vão viver. E você vai viver pra ver 19
Mas os Devotos, que, um dia, foram do Ódio, escolheram o
Alto José do Pinho como local de gravação de seus CDs e
DVDs, em comemoração aos seus vinte anos de carreira.
O bairro, outrora conhecido e divulgado aos quatro ventos
como um dos mais perigosos e violentos da região metropolitana do Recife, era, naquele domingo, palco de um
programa em família.
No dia 21 de setembro de 2008, milhares de pessoas ocuparam a rua principal do Alto José do Pinho. Um enorme
palco fora erguido no local. Jornalistas de rádio, televisão
e publicações impressas dividiam o espaço sem esconder um certo nervosismo e uma boa dose de emoção.
Pessoas de classe média transitavam tranquilamente,
misturando-se aos moradores do morro. Havia também
gente de outros Estados, de Maceió, de João Pessoa, de
Natal. Entre os convidados, Lirinha, vocalista do Cordel
do Fogo Encantado, e Clemente, vocalista dos Inocentes
e da Plebe Rude, esperavam na casa de Cannibal, localizada a poucos metros do palco, pela hora do show.
A economia informal se encarregava de faturar uns trocados com a ocasião. Dois bares, várias barracas de churrasquinho, vendedores de amendoim e de pipoca transitavam naquele domingo, que parecia bom para o comércio
local. O número de câmeras chegava a ser assustador. Das
televisões, dos documentaristas, do público consagrado
definitivamente como cinegrafista amador em tempo
integral e em era digital. E uma enorme grua à direita do
palco registrava todos os lances, todos os olhares, todas
as reações de todos os presentes. A cena, por sua estrutura imponente de palco e quantidade de público, poderia
perfeitamente ter como cenário qualquer lugar do mundo.
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Ao saírem da casa de Cannibal para o backstage, um
longa-metragem começou a rodar nas cabeças de Cannibal (baixo e voz), Neilton (guitarra) e Celo (bateria).
Certamente, ao começarem a brincadeira que sempre
levaram muito a sério, há exatas duas décadas, não
sonhavam que o roteiro incluísse um capítulo como
aquele que estavam vivenciando. Vestindo a camisa do
Alto Falante, feita por Neilton, e um lenço azul na cabeça
para disciplinar seus dreads, Cannibal sentia novamente
o gostinho da primeira vez no palco. “Galera, eu nunca
estive tão nervoso em toda a minha vida. Até parece que
é a primeira vez que a gente toca.”
Se alguém ousasse dizer, há alguns anos, que seria possível realizar tal evento no Alto José do Pinho, seria tido
como louco. Por essa ninguém esperava. Nem seu Biu,
o guarda. Tampouco seu Antônio, o ferreiro. Talvez a
única que imaginasse algo parecido fosse dona Maria,
mãe adotiva de Cannibal. Porém, assim como o ferreiro
e o guarda, já não estava mais viva para testemunhar o
momento máximo da carreira da banda que o filho fundou. Pois, entre os vivos, nem dona Detinha, responsável
pela desapropriação das terras do Alto José do Pinho e
pela implantação do sistema de água encanada no local,
era capaz de imaginar tamanha façanha. Que o diga
então o próprio José do Pinho.
Seus sonhos vão viver. E você vai viver pra ver 21
O começo
2
Boa parte da área dos 41,5 hectares do Alto José do
Pinho pertencia a duas famílias: Vieira da Cunha e Cesário de Melo. Elas alugavam os terrenos para as pessoas
construírem suas casas de taipa, cobertas com capim.
Existem duas versões sobre o senhor que dá nome ao
Alto. Uma diz que José do Pinho seria um velhinho que, no
início do século passado, animava as festas do pequeno
povoado, tocando violão embaixo de um pinheiro. A versão que consta no documento “História do Alto José do
Pinho contada por seus moradores”, registro de 1987
com o relato dos habitantes mais antigos do bairro, é
mais saborosa. Segundo essa fonte, José do Pinho, além
de fabricar violões de pinho, era proprietário de algumas terras no Alto. E, ao contrário das famílias Vieira da
Cunha e Cesário de Melo, que possuíam administradores
de terras responsáveis pela cobrança dos aluguéis de
suas terras, o próprio José do Pinho ia cobrar o aluguel
das suas. Boêmio, José do Pinho era presidente-fundador de uma troça carnavalesca chamada Inté MeioDia. Em um ano de dificuldades financeiras, José do
2 As informações deste subcapítulo têm como base o documento “História
do Alto José do Pinho contada por seus moradores”, idealizado e realizado por
dona Detinha no ano de 1987. Ela reuniu os moradores mais antigos do Alto José
do Pinho, gravou o depoimento deles e mandou transcrever o material gravado.
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Pinho teria pedido emprestada uma quantia de dinheiro
à família Vieira da Cunha para poder colocar seu bloco
na rua. O carnaval daquele ano estava garantido, mas a
dívida acabou não sendo paga, e José do Pinho, proprietário de terras que fabricava violões de pinho e dono de
troça carnavalesca, foi obrigado a vender a parte que lhe
cabia no latifúndio do Alto para a família Vieira da Cunha.
Restaram-lhe o violão e a lenda.
Aos poucos, o Alto José do Pinho foi se modernizando. A
iluminação pública só chegou ao local nos anos de 1950.
Até então, a população vivia na base do bom e velho candeeiro, e o rádio de pilha ligava os moradores do Alto
José do Pinho ao mundo. Como em todos os locais, o Alto
também contava com certa divisão de classes sociais.
Aqueles que possuíam uma renda um pouco maior do
que a dos outros se estabeleciam no centro. As ruas,
naquela época, eram numeradas por ordem de importância e conveniência. Assim sendo, a rua que oferecia
melhor infraestrutura era a rua 1, depois a rua 2 e assim
por diante. Os mais pobres habitavam os arredores do
Alto, ou seja, a periferia da periferia, em regiões que,
ainda hoje, são conhecidas por lá como Mangubas. Mas
o principal problema que a comunidade enfrentava era a
falta de água encanada.
A líder comunitária dona Detinha, 75 anos, chegou ao
Alto José do Pinho em 1972. Naquela época, luz elétrica
era um privilégio de poucos. Água encanada, de ninguém. Era preciso buscar água nos chafarizes do bairro
vizinho da Bomba do Hemetério, e carregá-la em baldes na cabeça até o morro. Pelo menos, o eterno sobe
e desce na busca da água já era feito com as ruas calçadas, benfeitoria implantada no bairro entre o fim
dos anos 1950 e o início da década de 1960. A situação
continuou assim até 1985, quando dona Detinha criou o
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Devotos 20 anos
conselho de moradores do Alto José do Pinho e começou
a desenvolver um trabalho comunitário no morro. Dona
Detinha era a encarregada de apresentar o Alto (e suas
carências) aos governantes locais. Em 1986, ela fez um
abaixo-assinado que pedia água para a comunidade e o
levou até a Companhia Pernambucana de Saneamento
– Compesa. A ideia de dona Detinha era construir um
poço, mas não havia lugar viável para a obra no morro.
A solução não poderia ter sido melhor: no primeiro
governo de Miguel Arraes (1987-1990), todo o Alto José
do Pinho foi cavado, e cada casa passou a ter torneira
no quintal, “luxo” impensável antes de dona Detinha
comprar a briga.
Mas a maior vitória de dona Detinha ainda estava por vir.
Ao saber que o então presidente João Figueiredo vinha
visitar o bairro de Brasília Teimosa para desapropriar
umas terras por lá, ela não se fez de rogada: escreveu
uma carta em que relatava o histórico de abusos das
famílias “proprietárias” do Alto — àquela altura, representadas por imobiliárias —, foi até Brasília Teimosa
e conseguiu entregar a carta ao próprio presidente da
República. Oito dias depois, em um domingo, chegava
um telegrama na casa de dona Detinha. O remetente:
João Baptista Figueiredo. O assunto: pedir que dona
Detinha procure o então governador de Pernambuco,
Marco Maciel, para resolver a questão. O resumo da história: as terras do Alto José do Pinho foram desapropriadas, e dona Detinha, junto com o conselho de moradores
do bairro, distribuiu seiscentos títulos de posse com o
povo. Além de água encanada, todos, a partir de 1985,
passaram a ter casa própria no Alto José do Pinho. Como
dona Detinha gosta de dizer, do alto da sabedoria de seus
75 anos de idade e três décadas deles dedicados ao trabalho comunitário, “Isso aqui (o Alto) virou uma cidade”.
Seus sonhos vão viver. E você vai viver pra ver 23
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Devotos 20 anos
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Tem de tudo
O Alto José do Pinho sempre teve tradição musical. Boa
parte dos primeiros habitantes do bairro vinha da zona
rural de Pernambuco, e trouxe com eles suas principais
tradições folclóricas: caboclinho, maracatu e afoxé.
Nos anos 1940 e 1950, ficaram conhecidos os caboclinhos Tupinambás e Tabajaras, que animavam os carnavais do bairro. Os maracatus Estrela da Tarde e Estrela
Brilhante não ficavam atrás e, por muitos anos, foram
dois dos mais conhecidos e concorridos blocos carnavalescos do Recife. Também é grande, ainda hoje, o
número de terreiros de umbanda.
Com população predominantemente negra, o Alto, ainda
hoje, conserva tradições de seus antepassados, tanto
na religião quanto nos folguedos. O afoxé Ylê de Egbá,
fundado em 1986, é um dos mais respeitados do Brasil, e
participou da gravação do CD e do DVD em comemoração
aos vinte anos de carreira dos Devotos. Curioso notar
como isso foi decisivo para a formação cultural dos
músicos que criariam o novo movimento musical do Alto
nos anos de 1990: é grande o número de bons bateristas
surgidos no Alto José do Pinho. Boa parte deles cresceu
ouvindo os tambores de maracatu e do afoxé, transformando a força das batidas desses ritmos em influência
para a música que viriam a fazer anos mais tarde, como
punk e hardcore.
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O Alto hoje
O conselho de moradores do Alto José do Pinho calcula
que a população atual do bairro esteja na casa dos 20 mil
habitantes. O Alto é dividido em 72 ruas, levando-se em
conta escadarias, becos e vielas. O centro conta com uma
pequena praça, onde se destaca uma imagem de Cristo
crucificado, feita de cerâmica branca. Nesta praça,
funciona o terminal de ônibus que atende à população,
ligando o bairro ao centro do Recife. Ela abriga, ainda,
um posto policial e uma lanchonete, e está cercada de
pequenos bares por todos os lados. É comum, mesmo nos
dias de semana, ver gente sentada nos bancos jogando
dominó e conversa fora.
Em frente à praça, fica o mercado municipal. Nos fundos dele, está o minúsculo estúdio da rádio comunitária
Alto Falante, inaugurada em 2002 pela ONG de mesmo
nome, formada pelos músicos das bandas do Alto José
do Pinho. Ela é veiculada a partir de caixas de som colocadas nos postes do bairro. A programação vai das oito
da manhã às sete da noite, com intervalo de meio-dia às
duas da tarde. A rádio leva ao ar prestação de serviços,
programação musical variada, do samba de Cartola ao
punk do Sex Pistols e até um programa dedicado à literatura, produzido por estudantes de jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco. Do lado do mercado
público, funciona uma banca de jogo do bicho, bem em
frente ao posto policial! Logo atrás da banca de jogo do
bicho, fica a sede do boneco Zé do Pinho, que desfila nos
30
carnavais do bairro. O animado Brega do Bolinho, clube
que serviu de palco para vários shows de rock das bandas do Alto, também fica a poucos metros da praça. Há
duas escolas públicas no bairro: a Maria Tereza, inaugurada em 1955, e a Santa Maria, aberta em 1968 e também conhecida como colégio das freiras. E, por ironia
do destino, uma de suas salas de aula serviu de cenário
para a gravação do clipe da música “Os peitinhos”, da
não exatamente religiosa banda Matalanamão.
Na esquina da rua principal está a sede do Bonsucesso
Futebol Clube, time de futebol desativado, fundado em
1 de abril de 1949, e que chegou a disputar a terceira
divisão do campeonato pernambucano. O clube, que
hoje abriga as oficinas de break de Zé Brown, do Faces
do Subúrbio, e reuniões do grupo de terceira idade do
bairro, foi palco do primeiro evento roqueiro organizado
pelas bandas do Alto, o Gestos, Atitudes e Rock’ n’ Roll.
Eclética por necessidade e por obrigação, a casa também abriga bailes funk, shows de brega e as oficinas
periódicas da ONG Alto Falante. O clube serviu, também,
como local de várias reuniões organizadas por dona
Detinha, e todos os prefeitos do Recife e governadores
de Pernambuco que passaram pelo poder desde 1979
se reuniam com a líder comunitária no Bonsucesso para
discutir os problemas do bairro.
O convívio religioso é democrático. Existem, pelo
menos, quatro templos evangélicos e duas igrejas
católicas em funcionamento hoje. Fora os terreiros de
xangô e umbanda localizados na Manguba, a periferia
do Alto, “cidade” que dona Detinha ajudou a construir.
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Devotos 20 anos
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Devotos 20 anos
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02
metal ao mangue
Cap.02
Do metal ao mangue
Do metal ao mangue
O Recife era uma cidade cruel com os jovens que gostavam de rock no final dos 1980. Minoria absoluta na terra
do frevo e do maracatu, restava a esses jovens conformarem-se com o confinamento dos guetos, a dependência do que se tocava no rádio na época, os escassos shows do gênero realizados no Recife e a troca de
informações com os amigos que moravam no sudeste do
país. Vivendo ainda sob o impacto da invasão metaleira,
que teve na primeira edição do Rock in Rio seu ápice,
surgiu, no centro do Recife, mais precisamente no Beco
da Fome — conglomerado de bares e lanchonetes que
não prezavam muito pela higiene — uma contracultura
formada por verdadeiras hordas de jovens vestidos de
preto, a maioria de fãs de thrash metal e de punk rock.
Essa garotada, que cultivava enormes cabeleiras e
andava de coturno, reunia-se no centro da cidade para
tomar cerveja e trocar ideias. Carentes de shows dos
estilos que tanto apreciavam, contentavam-se com as
poucas vezes em que os Titãs, ainda em fase pesada,
davam as caras no Recife. Até mesmo em shows do
Legião Urbana, de sonoridade mais suave e tendo a poesia de Renato Russo como base de todo seu trabalho,
era possível detectar a presença desses roqueiros mais
radicais. O tempo mostrou que ali se formava um belo
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mercado consumidor, e foram surgindo fanzines, como
o Recifezes, lojas especializadas de discos, como a Vinil,
Discossauros e Blackout, estúdios de tatuagens e, mais
importante, os shows do gênero finalmente começaram a ser produzidos na capital pernambucana. Mas
o primordial mesmo foi o seguinte: os frequentadores
do Beco da Fome passaram a formar bandas. Nascia
assim o Arame Farpado, a bateria trazia Éder, o Rocha,
futuro percussionista do Mestre Ambrósio, e a guitarra
era tocada por Oni, que, depois, tocaria na banda de rap
Faces do Subúrbio, do Alto José do Pinho. Outros grupos, como Cruor, Euthanasia, Câmbio Negro HC, Decomposed God e Herdeiros de Lúcifer, seriam formados na
mesma época.
Essas bandas passaram a fazer shows na periferia do
Recife. A maioria deles era realizada nos Centros Sociais
Urbanos, espalhados pelos subúrbios da capital pernambucana. Boa parte terminava em briga, e conflitos entre polícia e público eram uma “atração” à parte.
Outro palco importante para esses eventos era o Clube
dos Rodoviários, no bairro da Imbiribeira. Era comum
uma tribo de skinheads, surgida sabe-se lá de onde,
terminar a festa na base da porrada. Entre os espectadores desses shows, estavam três figuras que seriam
fundamentais para a consolidação da nova cena musical recifense, e, posteriormente, do Alto José do Pinho:
o jornalista José Teles, que, a partir de 1986, começou a
escrever sobre todo esse pessoal no caderno de cultura
do Jornal do Commercio, Cannibal e Paulo André Pires,
futuro produtor do Abril Pro Rock.
Paulo André acabava de voltar de uma temporada nos
Estados Unidos. Fã de metal, abriu uma loja de discos no
bairro das Graças, a Rock Xpress1. Um dos balconistas
1 Essas informações foram registradas primeiramente no livro Do frevo ao
manguebeat, do jornalista José Teles (Editora 34, 2000).
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era Cristiano, guitarrista da Paulo Francis Vai pro Céu,
uma das 12 atrações pernambucanas que tocaram na
primeira edição do Abril Pro Rock, em 1993. Paulo André
começou a investir na carreira de produtor. Produziu, em
1992, nos Aflitos, o show da cultuada banda de thrash
metal alemã Kreator, e uma apresentação da também
alemã Morbid Angel, no Sport Club do Recife. Os espaços para as bandas locais começaram a ser ampliados.
O Sepultura, orgulho nacional e, na época, um dos maiores nomes do metal no mundo, teve show agendado no
Recife, no Sport Club Recife, pouco depois de a banda
ter se apresentado na segunda edição do Rock in Rio, no
Maracanã. E com o disco Arise recém-lançado em todo
o mundo. Esse episódio merece um registro especial do
autor: comprei meu ingresso, feliz da vida, com um dia
de antecedência. No dia do show, passei a tarde ouvindo
os discos do Sepultura com amigos meus em Olinda.
Com duas horas de antecedência, pegamos dois ônibus
que nos levariam até o local do show. Eu não acreditava
no que estava vivenciando. O Recife, finalmente, entrara
para o primeiro mundo no roteiro dos grandes shows
internacionais. Os shows do Sepultura lotavam em
todos os lugares. A banda dos irmãos Cavalera estava
em plena fase de ascensão, e o Recife era uma das poucas cidades brasileiras a ter o gostinho e o privilégio de
conferir isso ao vivo. Descemos do ônibus. As hordas de
cabeludos e de skatistas já estavam por lá. Assim como
os evangélicos, a pregarem e proclamarem que aquilo
tudo era coisa do demônio. Quando comecei a subir a
rampa que dava acesso ao local do show, um grupo de
cabeludos veio em minha direção e disse: “Nem suba.
Não vai ter show!” Retruquei, atônito: “Como é que é?
Vim de Olinda, peguei dois ônibus para chegar até aqui e
não vai ter show?” E um dos cabeludos me disse que eu
ainda era sortudo, pois o grupo dele tinha vindo de Natal
Do metal ao mangue
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para assistir ao show. A banda havia tocado em Salvador
e ficou por lá mesmo. A solução encontrada pela produção do show foi a seguinte: devolver o ingresso inteiro,
ou metade do valor para quem quisesse entrar e assistir
aos shows das bandas locais que abririam para o Sepultura. Optei por entrar e, depois de quase levar duas garrafadas de metaleiros enfurecidos com o show cancelado, rumei, triste, de volta para casa. Fato curioso é que
os Devotos do Ódio haviam sido convidados para fazer
um dos shows de abertura, mas foram dispensados sem
nenhuma justificativa.
Não era fácil gostar de rock no Recife.
Alheio a toda essa movimentação da cena pesada pernambucana, o jovem Francisco de Assis França frequentava bailes black para ouvir James Brown, ao mesmo
tempo em que se apaixonava pelas batidas do maracatu.
Outro jovem, Fred Montenegro, legítimo punk da periferia, começava a expandir seus horizontes musicais descobrindo a obra de Jorge Ben entre um disco e outro do
The Clash. Enquanto seu Mundo Livre S/A existia desde
1984, a Nação Zumbi de Francisco de Assis França, aos
poucos, ia sendo moldada. De Olinda, surgia o Eddie,
grupo comandado por Fabio Trummer. Alguns dos antigos metaleiros começaram a se interessar por cultura
popular e folclore local e criaram, em 1994, o Mestre
Ambrósio. Percebendo toda essa movimentação, Paulo
André criou, em 1993, o Abril Pro Rock, evento que, em
sua primeira edição, contava com 12 atrações. Todas de
Recife. E todas absolutamente desconhecidas do grande
público. Apesar disso, cerca de mil pessoas compareceram ao evento. Os Devotos do Ódio não foram chamados
para tocar nessa primeira edição do Abril pro Rock, porque a produção do festival considerava o som da banda
muito pesado para o perfil do público esperado.
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Do metal ao mangue
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Enfim, do casamento entre Lamento Negro, Loustal e
Nação Zumbi, nascia Chico Science & Nação Zumbi. Em
uma das primeiras aparições em rede nacional na TV, a
banda foi tema de matéria no programa Vídeo Show, da
Rede Globo, que mostrou imagens do grupo em estúdio,
gravando sob a tutela de Liminha, que já havia trabalhado, nos anos 1980, com os Titãs e o Ultraje a Rigor.
Empolgado com uma matéria que tinha feito para a
retransmissora do SBT no Recife sobre mangue, o jornalista Fred Montenegro redigiu um release sobre o
movimento que batizariam de manguebit. O release,
intitulado Caranguejos com cérebro, foi confundido com
manifesto2 pela imprensa nacional. Daí em diante, ninguém mais conseguiu controlar o alcance da parabólica
fincada na lama.
Em 1994, Chico Science & Nação Zumbi lançavam, pela
Sony Music, o álbum Da lama ao caos. No mesmo ano,
o Mundo Livre S/A, liderado pelo jornalista Fred Zero
Quatro, testemunhava o nascimento de seu primeiro
disco, Samba Esquema Noise, bancado pelo selo Banguela (criado pelos Titãs), uma perna da gravadora Warner. Estavam fincadas, a partir de então, as duas pedras
fundamentais do movimento Mangue, batizados por
seus criadores como Manguebit, e erroneamente nomeado pela imprensa nacional de Manguebeat. Recife passou a ser a bola da vez. Jornais como a Folha de S.Paulo
diziam que a capital pernambucana era a Seattle brasileira, em alusão ao movimento grunge que gerou, por
aqueles lados, nomes como Nirvana, Mudhoney, Pearl
Jam, Alice in Chains e tantos outros. Um séquito de fãs,
denominados mangueboys e manguegirls pelo próprio
Chico Science, passaram a frequentar os shows dos grupos locais e a se vestir como seus ídolos, que, tanto no
2 Como relata o jornalista José Teles no livro Do frevo ao manguebeat.
Do metal ao mangue
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palco como fora dele, adotavam um visual bem camelô:
chapéu de palha, óculos escuros, camisas floridas, calças largas. Desenvolveram um vocabulário peculiar cheio
de novas gírias. “Sair com minha turma”, a partir daquele
momento, na boca dos mangueboys e manguegirls,
ganhava nova nomenclatura: “sair com minha corda”, em
referência aos caranguejos que eram vendidos em cordas, cada uma contendo dez unidades deles. Ao perceber a intenção estética e literária de Chico Science, o
jornalista José Teles, do Jornal do Commercio, apresentou a Chico a obra do escritor Josué de Castro. Era só o
que faltava para o ícone do mangue, a partir dali, construir um novo repertório linguístico, tendo como base os
livros do escritor de A geografia da fome.
A sonoridade de Chico Science & Nação zumbi “brincava”
de transformar o regional em universal, de criar o diálogo
entre elementos à primeira vista tão díspares como tambores de maracatu, guitarras pesadas e vocais falados
na mesma linha do rap e do hip-hop. O Mundo Livre S/A
não era menos ousado: misturava cavaquinho com guitarra distorcida, dando camadas de peso ao samba e o
balanço da música brasileira ao punk. À época, a jornalista Bia Abramo escrevia sobre o grupo de Zero Quatro:
Essa geração (a dos anos 90) já produziu pelo menos um
grande disco. Samba Esquema Noise é candidato certo a
melhor disco de música brasileira do ano. Em relação ao
Mundo Livre S/A, é injusto falar de mistura ou de qualquer
coisa do gênero para explicar o tipo de música que eles
fazem. Não se trata de uma mera justaposição de samba e
de guitarras, de rock e de influências regionais3.
3 “Geração 90 já tem seu grande disco”, de Bia Abramo; Folha de S.Paulo,
25/10/1994.
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E Abramo concluía, logo a seguir: “É samba, sim, mas
feito com uma atitude roqueira. E rock também, mas
feito a partir da ‘Cidade Estuário’.”4
Chico também era bastante festejado pela imprensa
paulista, que, literalmente, carregou o movimento mangue no colo e o elegeu como a cena musical brasileira
mais importante a surgir na década de 1990:
Mais do que letras – algumas muito diretas e cruas, outras,
como as de Chico, por exemplo, mais elaboradas –, o que
chama atenção nessa nova safra é o desenho de uma
iluminada globalização rítmica e sonora, unindo orgânica e
antropofagicamente forró e rock, maracatu e rap, xaxado e
toast, embolada e funk5.
Um ano antes do lançamento dos discos de estreia de
Chico Science & Nação Zumbi, era realizada, no Circo
Maluco Beleza6, a primeira edição do festival Abril Pro
Rock. Em seu primeiro ano de vida, o evento apostou
em uma programação só com bandas recifenses. Começava a surgir, naquele momento, um real interesse pela
formação de um mercado consumidor de música jovem
pernambucana. E, acima de tudo, uma rica vitrine que
atraía as atenções e curiosidades da mídia especializada de todo o país. Além de Chico Science e do Mundo
Livre, outros nomes começaram a despontar nacionalmente: de Olinda, o grupo Eddie. De Boa Viagem, bairro
de classe média alta do Recife, surgiam Jorge Cabeleira
e O Dia em Que Seremos Todos Inúteis. As diferenças
entre as sonoridades individuais das bandas deixavam
todo mundo intrigado. Eddie fazia um rock mais cru,
enquanto Jorge Cabeleira trilhava um caminho psicodélico ao injetar experimentalismos à fórmula criada por
4 Idem.
5 “O país dos oráculos musicais”, de Marcos Augusto Gonçalves; Folha de
S.Paulo, 17/12/1995.
6 Principal casa de shows do Recife na década de 1990.
Do metal ao mangue
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Alceu Valença, Zé Ramalho e Lula Côrtes nos anos 1970.
Ou seja, o movimento mangue acabou despertando a
curiosidade da mídia nacional em conhecer todo e qualquer som novo que viesse do Recife. As bandas se multiplicavam, a cena começava a se profissionalizar, grupos
assinavam com grandes gravadoras. O Recife era o centro das atenções, tema de matérias sem fim dos cadernos culturais de jornais de todo o país. Grupos surgiam
aos montes: do rock escrachado de Paulo Francis Vai pro
Céu ao funk rock do Dona Margarida Pereira e Os Fulanos. Do metal dos Conservados em Formol ao regionalismo rabequeiro do Mestre Ambrósio. Do coco eletrificado do Cascabulho ao rock de pegada anos 1970 do
Querosene Jacaré. E, no meio desses grupos todos, dois
se destacavam por um peculiar fator geográfico, além do
som que faziam: os Devotos do Ódio, com o seu punk rock
hardcore, e o Faces do Subúrbio, com seu rap embolada.
Ambos saídos de um morro chamado Alto José do Pinho,
local cuja história roqueira já vinha sendo escrita desde
1985, mas que acabou ganhando visibilidade somente
a partir do estouro do mangue, no início dos anos 1990.
Porém, seja estética ou temporalmente, o Alto José do
Pinho sempre abrigou um cenário à parte de tudo o que
foi descoberto a partir — e por causa — do manguebit.
Chico Science acabou perdendo a vida em fevereiro de
1997, vítima de um acidente automobilístico. Um ano
antes, porém, deixava seu testamento artístico: Afrociberdelia, disco que, ainda hoje, figura em várias listas dos
mais importantes da história da música brasileira. A vida
de Chico era abreviada justamente no momento em que o
Alto José do Pinho vivia seu apogeu.
Cap.03
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próximo com amiguinhos que já desenhavam sua história
no crime, divertia-se soltando pipa, jogando pião e, principalmente, bola. No colégio, Marconi ganhou o apelido
que o definiria como artista. Negro, desde moleque ele
gostava de enrolar o cabelo, e não demorou para que os
amiguinhos do colégio passassem a chamá-lo de Canibal. Curiosamente, o apelido não pegou naquela época.
Marconi de Souza Santos nasceu em Vitória de Santo
Antão, interior de Pernambuco, no dia 2 de novembro de
1970. Filho de um funcionário de uma fábrica de açúcar
que não tinha condições de criar o menino, Marconi foi
deixado, aos 4 meses de idade, na casa de uma lavadeira no Alto José do Pinho, dona Maria. A família de
dona Maria vivia em pequenos quartinhos na rua 10. O
marido dela morrera de cirrose. Ela tinha dois filhos, Lindalva e Nelson. Foram eles e dona Maria que garantiram
a sobrevivência do garoto Marconi, que, até hoje, não faz
a menor ideia do paradeiro de sua mãe biológica.
A infância de Marconi foi difícil, embora não deixassem
faltar nada em casa para o menino. Tampouco havia
espaço para qualquer tipo de regalia. Nunca teve os
brinquedos que qualquer criança deseja. Em compensação, descobriu, na rua, sua brincadeira preferida: as
partidas de futebol. Estava sempre jogando com os amigos. Rebelde, detestava estudar. Todo dia, Lindalva perguntava se o garoto havia ido ao colégio e, em uma sinceridade assustadora que o acompanharia pelo resto da
vida, respondia que não. Sendo assim, Marconi apanhava
diariamente. A família se preocupava muito com a educação dele, pois sabia que o menino convivia com todo
tipo de gente. O garoto, alheio ao perigo e ao contato tão
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Marconi tinha consciência de que boa parte de seus
amigos de pelada roubava. Porém, criança, não tinha a
menor noção do perigo que corria ao brincar com eles.
Todo mundo no bairro se conhecia, e todos sabiam ali
quem fazia parte ou não do mundo do crime. A família de dona Maria morria de medo de que alguma coisa
pudesse acontecer com Marconi. Contudo, fora o fato
de detestar estudar e de todo dia cabular aula, o garoto
parecia já ter nascido com o caráter moldado. Tanto que
era incapaz de mentir para Lindalva ao ser perguntado se
havia ido à aula. Preferia a surra à mentira. Marconi era
tão bem tratado pela família que o adotou que a forma
que encontrou de recompensar tamanho amor e zelo
foi jamais decepcioná-los. Marconi sentia que era tão
querido, ou até mais, que a filha de Nelson, Luciana, que
foi criada como irmã dele, mas que, na verdade, era sua
sobrinha de criação. Tamanhos zelo e amor pelo garoto
deram resultado: a última coisa que o menino Marconi
desejava na vida era causar algum mal à família. Assim
sendo, continuou jogando bola com seus amiguinhos
nas ruas do Alto José do Pinho, mas jamais se envolveu nas mesmas atividades que eles. Conseguiu, assim,
desde muito novo, driblar a criminalidade. Alguns desses coleguinhas de pelada já estavam envolvidos com o
tráfico de drogas. Vários morreram ainda adolescentes.
Uns passaram do tráfico para os assaltos. Outros, como
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Devotos 20 anos
Marconi, conseguiam trilhar um caminho diferente, terminavam os estudos, e até viravam professores.
O grande problema para a família de Marconi veio com a
chegada da adolescência. Absolutamente revoltado
com a realidade que o cercava, com a falta de perspectiva e de horizontes para a esmagadora maioria dos
moradores do Alto José do Pinho, pelo preconceito que
sentia na pele por ser negro e da periferia, por sempre
ser abordado pela polícia, que não raro o confundia com
bandido, restou ao adolescente Marconi, aos 15 anos de
idade, tornar-se punk. Raspou a cabeça. Começou a usar
camisetas e calças rasgadas. As camisas traziam a bandeira do Brasil de ponta cabeça e os dizeres “desordem
e regresso”. Correntes e cadeados ornavam seu pescoço. Em suma, Marconi não era bandido, mas se tornou
vítima constante de perseguição policial.
Nessa época, metade dos anos 1980, com o país ainda
na ressaca dos tempos ditatoriais, Marconi se iniciou
no movimento punk do Recife. Tornou-se engajado. Em
tempos de resquícios do regime militar, era comum
que a polícia e seus informantes conhecessem todos
os elementos considerados subversivos pelo governo.
Os punks, que costumavam se reunir numa praça em
frente à estação central do metrô, evitavam chamar uns
aos outros pelo nome. Sabiam que não eram bem vistos
pela polícia. Marconi, então, resgatou seu apelido de
infância, e passou a ser conhecido no movimento pela
alcunha de Canibal. Mais tarde, acrescentaria mais um
“n” ao nome artístico.
Cannibal logo descobriu que não era o único no bairro
a curtir punk. Marcelo Massacre, jovem músico que
futuramente seria baixista do Terceiro Mundo e, posteriormente, do Faces do Subúrbio, começou a andar
com Cannibal e a turma dele. Esses jovens não tinham
Viva a vida que você me deu
53
boa reputação pelo Alto José do Pinho. A comunidade
achava que aqueles garotos não passavam de um bando
de vagabundos, maconheiros sem a menor perspectiva
de futuro. O pior é que o preconceito não era apenas dos
moradores do Alto.
Cannibal começou a frequentar os shows punks que
aconteciam no subúrbio do Recife. Um episódio reflete
bem a perseguição que sofria. Voltando de um show punk
no suburbano bairro de Prazeres com Neilton, Cannibal
desceu de um ônibus na cidade para esperar o bacurau1,
ônibus que costuma sair de hora em hora a partir das
duas da manhã no centro da cidade. No ponto de ônibus,
notaram que uma viatura da polícia passava devagar por
eles. Não deram muita importância para o fato. Três dias
depois, Cannibal foi abordado pela tia:
— Marconi, você sabia que ia ser preso no sábado de
madrugada?
— Como é que é?
— Você não estava com Neilton na avenida Guararapes
esperando um ônibus no sábado de madrugada?
— Estava.
— Pois teve um tiroteio lá pouco antes de vocês chegarem.
Não conseguiram prender ninguém. Só não levaram vocês
dois presos, porque Reginaldo estava na viatura.
Reginaldo era policial e morador do Alto José do Pinho.
Quando um de seus colegas policiais sugeriu que prendessem os dois para não saírem de mãos vazias, Reginaldo
disse que conhecia os dois do Alto José do Pinho, e que
eles não eram bandidos. Por essas e outras, era preciso
ter muito cuidado naquele tempo. Cannibal era o que o
cantor paulista Itamar Assumpção genialmente designou
de “isca de polícia”: preto e pobre. E, para piorar, punk.
Era o alvo perfeito para preconceitos e generalizações.
1 Um tipo de coruja.
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Para complicar ainda mais as coisas, no próprio movimento punk existia gente que só estava naquela por pura
arruaça mesmo, pelo prazer de brigar. Isso acabava estigmatizando os mais politizados, como Carlinhos, editor
do fanzine Recifezes, e o próprio Cannibal. Curioso é que,
nessa época, Cannibal sequer pensava em montar uma
banda. Sentia-se satisfeito em assistir aos shows e participar das reuniões. No Alto José do Pinho, os roqueiros
passaram a descobrir que não estavam fechados em si
mesmos. Ao contrário, cada um deles passou a perceber
que não era o único exótico do bairro a gostar de ouvir
rock e tomar vinho. Aliás, já havia bandas de rock no Alto
José do Pinho desde 1984. A Egoesmo foi uma das que
surgiram nessa época, fazendo covers de sucessos de
MPB e do rock nacional da época. Essa banda contava,
em sua formação, com Celo (bateria), Lee (guitarra),
Wally (baixo) e André (vocal), e foi responsável pela criação de quase todos os grupos do Alto José do Pinho.
A casa de Wally servia como ponto de encontro de todos
os roqueiros do bairro. Wally tinha um primo que morava
em São Paulo, e ele costumava voltar da capital paulista
com a mala lotada de vinis. Em tempos pré-internet, foi
assim que toda a turma passou a conhecer Iron Maiden,
Ratos de Porão, Van Halen e, de forma mais surpreendente, The Cure e The Smiths. Passavam tardes inteiras
escutando esses vinis na casa de Wally. E aquilo tinha
um efeito avassalador sobre a turma. Todos queriam, ao
ouvir aquela música tão diferente de tudo que escutavam até então, montar uma banda. Menos Marconi.
Cannibal se contentava com o lado político da coisa toda.
Por exemplo, com os Encontros Antinucleares no centro da cidade, que aconteciam, anualmente, no dia 6 de
agosto, dia do lançamento das bombas sobre Hiroshima e
Nagasaki pelos norte-americanos. Além de ir aos shows,
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não perdia um ensaio das bandas SS-20, Moral Violenta
e Câmbio Negro HC, ficando amigo dos seus integrantes.
O problema é que faltava identificação. Cannibal gostava
de se reunir com a galera para escutar os “Iron Maidens”
da vida, mas não cogitava montar uma banda no mesmo
estilo. Nessa época, passou a trabalhar como ajudante
de pedreiro no Alto José do Pinho para ajudar em casa.
Depois, passou a trabalhar em um lava-jato. Nos intervalos, jogava bola no time juvenil do Santa Cruz, mas nunca
se imaginou como jogador profissional. Até que começou
a desenvolver o gosto pela leitura. O menino que detestava estudar, que apanhava todo dia porque não ia para
a escola, sem perceber e aos poucos, estava lendo todo
e qualquer fanzine que lhe caísse nas mãos. Assim como
as revistas de música. Em uma delas, na Bizz, leu uma
matéria sobre um grupo punk de São Paulo chamado Inocentes, liderado por um negro e que falava da realidade
do cotidiano da periferia da capital paulista. Ficou tão
impressionado com o que leu que decidiu procurar o disco
Pânico em SP em um sebo no centro do Recife. Achou,
ouviu e a identificação foi imediata. Tudo o que Clemente,
vocalista do Inocentes, cantava em suas letras condizia
exatamente com a realidade enfrentada por Cannibal
no Alto José do Pinho. Ali, naquele instante, Marconi de
Souza Santos, para desespero da família, encontrou sua
vocação: montar uma banda punk e viver dela.
Viva a vida que você me deu
O encontro
Marcelo Coleta Junior nasceu no Recife no dia 27 de maio
de 1970. Filho de um sargento da polícia militar e de uma
professora primária, Celo, como viria a ser mais tarde
chamado pelos amigos, teve uma infância pobre no Alto
José do Pinho, mas extremamente divertida. Apesar de
um pouco tímido e muito quieto, o garoto não deixava de
brincar de pião, empinar pipa, correr pelas escadarias
do Alto e, naturalmente, jogar futebol. E a música, desde
cedo, esteve presente em sua vida.
Seu pai possuía um grande rádio, daqueles antigos,
que vinham dentro de um móvel. O aparelho ficava o dia
inteiro ligado, e o menino ia absorvendo tudo que era
tocado nele, de Luiz Gonzaga a Djavan. A mãe cantava
no coral da igreja. De tanto ouvir, quis aprender a tocar.
Tentou o violão, para poder reproduzir as músicas que
escutava no rádio. Mas seu casamento com a bateria já
estava traçado. Até ali, o conhecimento musical dele se
limitava ao que tocava na rádio, já que não tinha acesso
a vinil, um luxo para o padrão de vida da família. Em
suma, Celo ouvia muita MPB e pop rock dos anos 1980,
carros-chefe das AMs e FMs na época.
Aluno um tanto disperso, a mãe, professora, encontrou a
solução para o então relapso menino Celo: alfabetizou-o
em casa. A experiência foi crucial para o garoto, que cedo
percebeu que poderia, com persistência e dedicação,
aprender qualquer coisa em casa. Mesmo que a matéria
fosse música.
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Um belo dia, quando tinha 12 anos de idade, Celo foi a uma
festa com uns amigos no bairro vizinho da Mangabeira.
Nela, havia uma grande banda de baile que animava os
convidados. Celo ficou a noite inteira com os olhos grudados na bateria, e ali, naquele momento, descobriu o
que queria fazer da vida. Passou, a partir de então, a juntar os móveis da sala e batucá-los o dia inteiro, acompanhando as músicas que tocavam no rádio. Percebendo o
fascínio do menino por bateria, seu primo, Lee, tratou de
improvisar uma. Arrumou várias latas de doce, tirou as
tampas, envolveu as aberturas com plástico e colou com
borracha. Chamou Celo até sua casa para mostrar a novidade. Apesar de improvisada, a bateria possuía um som
interessante, e foi com ela que Celo tocou com sua primeira banda, a Egoesmo, que contava com o próprio Lee
em sua formação, e com Wally, o amigo dos vinis. A banda
fazia covers de sucessos da época, e se apresentava em
aniversários de amigos e até em festivais estudantis. Ao
mesmo tempo, Celo ia ampliando seus horizontes musicais nas sessões de audição na casa do amigo Wally. Passou a se interessar por Joy Division e, em especial, pelas
batidas de Budgie, na época baterista do Siouxsie and
The Banshees. Descobriu que queria tocar como ele. E
começou a sentir necessidade de estudar música. Para
isso, lançou mão de um expediente para lá de sofisticado.
O pai era fã de Luiz Gonzaga. Sabendo disso, Celo disse a
seu velho que gostaria de aprender a tocar acordeom no
Conservatório Pernambucano de Música. Motivo: poder
tocar para o pai as músicas de Luiz Gonzaga de que ele
tanto gostava. Empolgado, o velho mandou o filho pesquisar preço para fazer o curso. O filho obedeceu, mas, na
verdade, matriculou-se para as aulas de bateria. A farsa
durou uns dois meses. A mãe de Celo não apenas acobertava, como ainda comprava algumas baquetas de
presente para o filho. O real interesse de Celo era sentar
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em uma bateria de verdade, e ele achou que o Conservatório fosse o caminho mais curto para realizar seu objetivo. Estava enganado. Passou a estudar muita teoria
e pouca prática. Nas audições na casa do amigo Wally,
começou a filtrar só sons de bateria, fossem dos Ratos
de Porão ou do The Cure. Tentava imaginar como executaria aquilo tudo na prática. Como todo bom músico,
não pensava em segmentação. Queria ouvir de tudo —
ainda que esse tudo fosse limitado pelas programações
das rádios, e um pouco expandido nas tardes na casa
de Wally — e extrair o que lhe parecesse mais interessante. Celo começava a sentir também que a bateria
feita por seu primo já não era suficiente. No conservatório, passou mais de um ano estudando apenas teoria.
Só depois veio alguma prática, e, ainda assim, intercalada com mais teoria. Aos poucos, Celo ia se cansando
daquilo tudo. No mesmo período, seu primo Lee montou
um pequeno estúdio em sua casa, onde as primeiras
bandas do Alto começaram a ensaiar: Egoesmo, Flores
Negras, Nanica Papaya, O Lírio, Realidade Encoberta.
Fora a Realidade Encoberta, que não era do bairro, todas
contavam com Celo na bateria. Quando não era ele que
assumia as baquetas, Peste, o outro baterista da trupe
de preto, encarregava-se de comandar a bateria nos
momentos em que Celo não estava presente. E os dias
de Celo se dividiam entre a casa de Wally, o estúdio de
Lee e o Conservatório. Neste último, recebeu o conselho
definitivo. Seu professor, Gilberto, perguntou que estilo
o garoto gostaria de seguir. Ao saber que a resposta era
rock, perguntou a Celo se o pai dele conhecia jazz. “Professor, meu pai é militar e gosta de Luiz Gonzaga. Nem
eu nem ele sabemos o que é isso.” O mestre, então, passou a seguinte lição: ir aos sebos, comprar discos de jazz
e ficar em casa ouvindo as batidas e aprendendo com
elas. O impacto inicial foi grande. Celo achava-se incapaz de reproduzir a sonoridade daqueles bateristas.
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Porém, aos poucos, foi aprendendo a extrair o essencial daquilo. E, somado ao rádio do pai e aos vinis de
Wally, Celo, agora, contava com o reforço dos bateristas
de jazz. Nada mau para alguém oriundo do Alto José do
Pinho.
As trupes de preto aumentavam no Alto José do Pinho. Às
turmas de Wally e Celo somavam-se as de Peste e Marcelo Massacre, do Terceiro Mundo, e a de Gilson Gerrard,
do A Ostenta, banda de Beberibe2 que foi adotada pelos
grupos do morro. E toda essa turma se reunia na praça
para beber vinho e tocar violão, sempre estigmatizados
como a turma de vagabundos pelos moradores do bairro.
Em uma das sessões de audição de vinil na casa de
Wally, Celo foi apresentado a Cannibal, que o convidou
para ser baterista da banda que ele estava montando.
Celo achou Cannibal, com suas calças rasgadas, camisas de protesto, correntes e careca reluzente a própria
visão do inferno. Mas como Marconi o convidou com jeito
e disse que sabia que a praia de Celo era mais pop, ele
resolveu encarar só para ver no que dava.
2 Bairro da região metropolitana de Recife.
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Brincando
do jeito que dá
Ainda sob o impacto da descoberta da obra dos Inocentes,
o jovem Cannibal arrumou um violão emprestado e cismou
de aprender a tocar sozinho. Não satisfeito com o violão,
pediu a sua mãe de criação, dona Maria, um baixo de presente. Ela e o tio biológico de Marconi, Carlos Santos, juntaram dinheiro e presentearam Cannibal com um baixo
Giannini, em que ele começou a compor suas primeiras
canções. De tanto ouvir de todo mundo que deveria montar uma banda, levou o projeto em frente, e logo recrutou
os amigos Ancelmo (guitarras) e Altamir (vocal). Celo foi o
último a entrar no grupo. Um dos principais incentivadores para a formação do grupo foi Lael, baixista da SS-20,
uma das bandas mais importantes do Recife e de grande
influência na formatação do som dos Devotos. Ele trabalhava na Academia Cine-Brasileira, na Avenida Conde da
Boa Vista, palco das duas primeiras edições do Encontro
Antinuclear, realizados em 1986 e 1987. Lael sugeriu que
Cannibal montasse uma banda para tocar na terceira edição do evento. Isso coincidiu com a época em que ele descobriu o som dos Inocentes. Ganhou o baixo da família,
compôs as primeiras canções e formou a banda. O amigo
Lael sugeriu o nome: Devotos do Ódio, inspirado em livro
de mesmo nome, do escritor José Louzeiro. Mas o sentido
que eles queriam dar ao nome era outro: como percebiam,
em seu cotidiano, que os jornais mais vendidos e os programas de TV de maior audiência eram justamente os que
tinham, na violência, seu principal atrativo, constataram
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que o público era devoto de todo aquele ódio amplificado
pela mídia. Poucos entenderam a sutileza (ou falta dela) na
escolha do nome da banda, e durante anos os Devotos do
Ódio foram acusados de fazer apologia à violência.
Quando a banda foi formada, ninguém sabia tocar direito.
O mais experiente era Celo, por conta das várias horas no
estúdio de Lee e do pouco tempo de prática no Conservatório. Cannibal reuniu seis músicas autorais, entre elas,
“Futuro inseguro”, sua primeira composição, “Porcos
governantes” e “Já é Natal”. A banda passou de janeiro
a agosto ensaiando – e aprendendo a tocar – seis músicas, que juntas mal ultrapassavam sete minutos de duração. Celo, apesar de experiente, não conseguia manter a
velocidade exigida pelo hardcore. Cansava logo, dizia que
aquilo tudo exigia um esforço hercúleo e que seria incapaz de suportar um show inteiro tocando em ritmo tão
intenso. Além disso, Altamir começou a demonstrar insatisfação por não gostar do estilo da banda. Sua praia era
mais o metal da linha Iron Maiden. Não demorou muito
para ele pedir desculpas e pular fora. Como Cannibal
conhecia de cor as músicas, pois todas eram dele, assumiu os vocais. E tratou de aprender a tocar e a cantar ao
mesmo tempo, ora olhando para as cifras do baixo, ora
para as letras.
Enfim, após sete meses ensaiando seis músicas que,
juntas, mal passavam dos sete minutos de duração, chegou 6 de agosto de 1988, o grande dia. Cannibal, Ancelmo
e Celo colocaram os instrumentos nas costas e partiram
rumo à Academia Cine-Brasileira. Nervosos, pensaram
várias vezes em voltar no meio do caminho. Um frio na
barriga, desconfortável, atacava o trio. Celo, mais de uma
vez, chegou a sugerir: “Vamos voltar pra casa?” Ancelmo
tinha certeza de que não conseguiria tocar uma nota.
Cannibal, calado, guardava o nervosismo para si. Mas o
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Devotos 20 anos
show transcorreu numa boa. A banda tocou as seis músicas, foi bastante aplaudida e repetiu mais três. Sete meses
de ensaio para pouco mais de dez minutos de show. Mas o
trio estava satisfeito, com sorriso de orelha a orelha. Após
o show, Celo pediu desculpas, mas já tinha compromissos
de gravações e de shows com suas outras bandas. Em seu
lugar, entrou Nori. Ancelmo também saiu, e foi substituído
por Akio. Essa formação chegou a fazer um show em Natal
e outro em João Pessoa, e, depois, entrou em férias forçadas por uns seis meses. Foi quando Cannibal foi até a casa
de Celo pedir que ele desse uma nova força para os Devotos
do Ódio. Neilton, um brother dele, havia entrado na banda.
Viva a vida que você me deu
Professor Pardal
Neilton José de Carvalho nasceu em 1971 e foi criado
na Bomba do Hemetério, bairro vizinho ao Alto José do
Pinho. Caçula de quatro irmãos e filho de um comerciário
com uma dona de casa, o garoto teve despertado, logo
cedo, seu interesse pelas artes. O pai, Aércio Ribeiro de
Carvalho, vendia peças para máquinas industriais. Trabalhava numa lojinha e num depósito, que ficavam na
rua Vigário Tenório, no Centro Velho do Recife. Zona portuária e local considerado barra-pesada até a década de
1980, o bairro era famoso pela má reputação que possuía: prostitutas à caça de marinheiros de fora, traficantes, viciados e loucos de toda espécie eram os principais
frequentadores da região. E o pai de Neilton, conhecido
no local pela alcunha de “pai”, era extremamente querido e respeitado por todos. Boêmio incorrigível, jamais
chegava em casa antes da meia-noite.
Desde muito novo, Neilton já demonstrava intensa curiosidade pelas carreiras que abraçaria ao longo da vida:
música, pintura e engenharia eletrônica. Em seu caso,
o espantoso é que ele é autodidata em todas essas
áreas. Jamais teve uma aula de música, de desenho ou
de mecânica. Punk legítimo, mesmo sem ter feito parte
do movimento, elevou à enésima potência as consequências do mandamento punk do it yourself. Tudo que
aprendeu e realizou desde então foi sozinho, sem ajuda
de ninguém, o que o coloca bem perto do rol – para não
dizer que ele próprio é um – daquela seleta categoria de
humanos que costumamos designar de gênios.
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Sua inclinação para a música foi despertada por volta
dos 6 anos, influenciado por um vizinho que tocava
saxofone na Orquestra Municipal do Recife e passava
o dia ensaiando em casa. Nessa época, formou, com
suas irmãs, sua primeira “banda”. Utilizando o mesmo
processo de Lee, primo de Celo, juntou latas de doces,
tirou as tampas, envolveu as aberturas com plástico e
colou tudo com borracha. Passava tardes inteiras com
as irmãs batucando para cima e para baixo dentro de
casa. Ao mesmo tempo, começou a tentar desenhar
seu super-herói preferido, o robô japonês Spectreman,
que aparecia em seriado exibido pela televisão no início
dos anos 1980. E passou, simultaneamente à descoberta
da música e do desenho, a se interessar por eletrônica.
Desmontou, junto com o irmão Nilson, o rádio da casa,
pois estava certo que bonecos trabalhavam dentro dele
e não queria perder a oportunidade de vê-los em ação.
Passaram, então, a abrir todos os eletrodomésticos de
casa para saber como funcionavam por dentro. Fizeram
isso com um velho gravador do pai, e utilizaram o motor
do gravador para a construção de um carrinho elétrico.
Começou a fabricar seus próprios brinquedos, nem que
fosse para ter o prazer de destruí-los depois. Certa vez,
dedicou-se o dia inteiro à construção de uma casinha de
massapé. Depois de pronta, colocou fogo nela só para
assistir ao incêndio. O pai costumava presentear o filho
com um carrinho simples de brinquedo, que trazia da
feira. Neilton o reconstruía por inteiro e o deixava igualzinho ao carro do Batman, além de “envenená-lo” com o
motor do gravador.
Tímido, Neilton sempre teve um comportamento bastante peculiar. Costumava matar aulas para, em vez de
ganhar as ruas, voltar para casa para assistir televisão ou
se dedicar aos desenhos e à fabricação de brinquedos.
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Devotos 20 anos
Viva a vida que você me deu
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Devotos 20 anos
Quando ficou um pouco mais velho, passou a acompanhar o pai no trabalho aos sábados. Em um desses dias,
viu uma turma de motoqueiros gringos, todos trajando
jaquetas com estampas de caveiras nas costas. Pareciam com os Hells Angels. Eles, de vez em quando, apareciam para comer em uma lanchonete barra-pesada
perto da loja em que o pai de Neilton trabalhava. Ficou
fascinado com o visual da turma. E, via televisão, veio
o acontecimento que o despertaria para todo o sempre para o mundo do rock: descobriu um tal de Elvis
Presley. Decidiu, por influência do Rei, que aprenderia a tocar guitarra. Ficou fascinado com a sonoridade
e com o formato da guitarra. Além dos filmes de Elvis,
que passavam na TV, Neilton descobriu que o pai possuía uma coletânea com os grandes sucessos do cantor. Escutou o disco obstinadamente a partir de então.
Sempre curioso, Neilton pesquisou, por conta própria,
quem havia influenciado aquele cara de costeletas de
quem tanto gostava. Foi assim que chegou até a obra
de Bill Haley & His Comets. Para completar o fascínio,
um dia, em um culto da igreja que a família frequentava,
ouviu o pastor dizer, em alto e bom som, que o rock’ n’
roll era coisa do demônio e que Bill Haley era o próprio.
Na mesma hora, o garoto pensou: “Bill Haley é o cara!”
Virou fã de rockabilly. O problema — ou solução — no
caso de Neilton foi que ele descobriu a obra de Elvis bem
próximo dos últimos dias de vida do cantor. Com a morte
dele, a TV tratou de exibir uma série de especiais, shows
e filmes estrelados por Presley, que, evidentemente,
foram vistos um a um por Neilton. Ainda garoto, Neilton começou a fazer pulseirinhas e camisetas pintadas
à mão. Vendia aos amigos no colégio e guardava toda a
grana arrecadada embaixo do colchão. Um dia, resolveu
contar o dinheiro e viu que tinha o suficiente para comprar metade da guitarra mais barata que havia visto em
Viva a vida que você me deu
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uma loja, uma Sonic. Pediu a outra metade do valor para
o pai, que perguntou se o filho sabia tocar. Neilton, na
caradura, respondeu que sabia, e o velho deu a grana na
esperança de ouvir o filho tocar “Brasileirinho” para ele.
Feliz da vida, Neilton foi até a loja e comprou a guitarra.
Chegou em casa, foi até o quarto e, antes mesmo de tentar tirar qualquer som, desmontou a guitarra inteira. O
pai ficou doido quando viu aquilo. Neilton queria saber
onde estavam as pilhas da guitarra. Não as encontrando,
passou a fazer uma série de experiências, colocando
captadores, incrementando-a de todas as formas. Como
gostava de dizer, sua guitarra parecia saída do filme O
jovem Einstein. Começou a aprender os primeiros acordes sozinho. Era difícil encontrar um curso de guitarra
naquele tempo no Recife. E, quando achava algum, era
caro demais. Na mesma época, passou a frequentar
os shows de punk e de metal nos subúrbios do Recife.
Virou colecionador de vinil também e fã de bandas como
Metallica e Slayer. Só que, ao contrário do radicalismo
dos fãs dos dois gêneros, que sequer cogitam a possibilidade de ouvir qualquer coisa que não estivesse atrelada a esses ritmos, Neilton sempre teve a cabeça e os
ouvidos abertos para tudo que caía em suas mãos. Como
já estava mergulhado de cabeça no mundo do rockabilly,
passou a pesquisar também tudo sobre metal e punk,
mas jamais se limitava a apenas esses estilos. Também
considerava burra a lógica punk, que ditava que o bom
era ser ruim. Punk que era punk, segundo os próprios,
não podia saber mais do que os três acordes básicos.
E Neilton se considerava extremamente frustrado justamente por não poder estudar música, e ficava furioso
com quem fazia essa apologia à ignorância musical. Passou a ouvir Hendrix e Eric Clapton, e sempre se perguntava quem os havia ensinado a tocar. Em sua imaginação,
eles tinham aprendido tudo sozinhos. E, ainda que não
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Devotos 20 anos
tivessem aprendido a tocar sozinhos, alguém, algum dia,
inventou a guitarra e a forma correta de tocá-la. E, para
Neilton, isso bastava. Se alguém começou do nada, ele
também poderia. Na marra, sem professor e com muita
vontade, foi inventando solos que depois não sabia repetir, criando acordes que não tinha como decorar. E assim
foi até entrar em sua primeira banda, a Túmulo.
Aílton Peste, amigo de infância e do colégio, um morador
negro do Alto José do Pinho que aprendeu a tocar bateria
sozinho, convidou o colega para fazer um teste, pois o guitarrista original, Ronaldo, havia saído do grupo. Com cara
e pose de quem sabia tocar muito, Neilton improvisou
uns solos que, até hoje, não sabe de onde surgiram. Os
integrantes ficaram impressionados com sua “técnica”, e
Neilton foi aceito na banda na mesma hora. Detalhe: ele
ainda não sabia tocar patavinas. Ironicamente, foi o próprio Ronaldo que veio ensinar a Neilton como montar um
power cord, um acorde de tônica e quinta que é muito utilizado no rock. Isso foi essencial para os primeiros passos
de Neilton como guitarrista.
A Túmulo serviu como laboratório para Neilton. Passou a fazer shows nos subúrbios. Essas apresentações
eram uma aventura só. Precisavam se deslocar de ônibus pelas periferias da cidade, fazer os shows, e, só
depois, pensar em como seria para voltar para casa.
Alguns ambientes eram bem barra-pesada e, em algumas ocasiões, eles saíam correndo dos tiros, pegavam o
primeiro ônibus que encontravam e se jogavam no chão
para não serem atingidos por alguma bala. O interessante é que tanto as bandas quanto o público dependiam do transporte público. Ou seja, o “glamour” só
existia na hora de subir no palco. Mesmo que esse palco
fosse improvisado em um circo fuleiro, com a banda
tocando em cima de um monte de terra que fazia — ou
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tentava fazer — as vezes de palco. Sem contar que a
estrutura de som era qualquer nota: vitrolas improvisadas, gambiarras aqui e ali. O importante era tocar. Em
uma dessas apresentações, um incidente constrangedor e engraçado marcaria a vida da banda. Em determinada hora, o vocalista, que caprichava no vocal gutural
estilo thrash metal, empolgou-se tanto com a performance que sua dentadura acabou caindo no chão. Para
mostrar que era roqueiro mesmo, tratou de pegar a peça
no chão e colocar novamente na boca, como se nada
houvesse acontecido. Aílton Peste ria tanto atrás de
sua bateria que sua dentadura acabou tendo o mesmo
destino que a do vocalista. Na periferia, era comum que
mães de adolescentes preferissem arrancar os dentes
da frente de seus filhos quando estavam com cáries
e colocar uma “peça” no lugar do que submetê-los a
tratamento odontológico, considerado extremamente
caro para o padrão de vida dessas famílias. Em shows
de rock nos subúrbios da capital pernambucana, todos
eram sujeitos da história: bandas e público eram formados por um proletariado pobre e, não raro, desdentado.
Cap.04
O Leonardo da Vinci da guitarra
Cap.04
O Leonardo da Vinci da guitarra
Neilton e Cannibal não andavam com a mesma turma,
mas se conheciam de vista desde os tempos de colégio. E
Neilton já havia visto boa parte dos shows dos Devotos do
Ódio nos subúrbios. Assim sendo, foi natural que Cannibal
o convidasse para assumir as guitarras na banda. Neilton
também já estava ficando conhecido no meio roqueiro
pelas camisetas que pintava à mão. Algumas eram feitas
sob encomenda, como uma cuja estampa era o disco Bossanova, do Pixies. Juntos, foram até a casa de Celo para,
mais uma vez, convidá-lo para integrar a banda. Desta
vez, de forma definitiva.
Foi nesse período que nasceu uma lenda. A primeira guitarra de Neilton, utilizada nos tempos do Túmulo, já tinha
dado para o gasto. Aos 16 anos e sem grana para comprar uma guitarra nova, Neilton resolveu fazer a sua. No
final dos anos 1980, uma rede de supermercados colocou à venda o corpo e o braço de uma guitarra. Foi um
fracasso, e o produto encalhou nas lojas, o que barateou
bastante seu preço. Neilton, que nessa época trabalhava como vendedor em uma loja de eletrônica, juntou
uma grana e comprou o corpo. Depois comprou o braço,
lixou as duas partes e deixou tudo bonitinho. Aí, foi até a
sucata da loja em que trabalhava e arrumou parafuso e
potenciômetro de rádio. O captador foi enrolado à mão,
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utilizando também sucata. Com fórmica de armário, fez
a placa. Pegou parafuso de televisão e colou no braço da
guitarra. A ponte de guitarra foi feita por Lael, da SS-20,
que era torneiro mecânico. Algumas partes da ponte
foram trocadas por Neilton, que percebeu que o braço
de uma radiola funcionava melhor do que a alavanca original da guitarra. Um dia, a mãe de Neilton estava consertando o fogão da casa, e caiu um monte de molas
de dentro dele. Eram justamente as pecinhas que faltavam para o acabamento final. O processo de fabricação durou um ano, e ninguém dizia que aquela guitarra,
batizada “A Gorda”, tinha sido feita por Neilton. E muito
menos que toda a matéria-prima era constituída por
sucata. E, o principal, o som dela era enfezado. Curiosamente, a história da guitarra ganhou tamanha dimensão
que, até hoje, incomoda seu criador.
Com formação definitiva e repertório que já vinha sendo
tocado há alguns anos, os Devotos do Ódio ganharam os
subúrbios. A entrada de Neilton na banda foi fundamental para expandir os limites do grupo. Com formação que
vinha do rockabilly e do metal, Neilton não se conformava
em limitar o punk rock a apenas seus três acordes de costume. A essa altura, já calejado pelos tempos de Túmulo e
dedicando todo seu tempo livre a aprender a tocar, Neilton podia ser considerado o músico mais tarimbado entre
todos os integrantes de bandas do Alto José do Pinho.
O circuito punk de shows do Recife era constituído por
bairros das classes menos favorecidas da cidade, como
as Unidades Residenciais (popularmente conhecidas
como UR), Curado e Prazeres. As apresentações aconteciam nos Centros Sociais Urbanos desses bairros e,
não raro, o pau comia solto. Os shows eram uma tosqueira só. Neles, o do it yourself era levado às raias do
absurdo. Vassouras eram improvisadas como pedestais
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Devotos 20 anos
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de microfone. Na falta de vassoura, alguém se encarregava dessa função, e passava o show inteiro segurando o
microfone para Cannibal cantar. Em um deles, os Devotos
do Ódio tocaram em Ouro Preto, bairro de Olinda, em um
show em um clube subterrâneo. Quando o show acabou, o
trio ouviu barulhos de tiros, que foram se intensificando e
ficando cada vez mais perto. Só deu tempo de entrar no primeiro ônibus que viram e se abaixarem. Em outra ocasião,
tocaram no Curado, bairro cortado por estradas federais.
E não havia privilégio para ninguém. Banda e público estavam no mesmo barco e disputavam, na volta dos shows, a
mesma traseira de ônibus. A banda acabara de tocar e, às
três horas da manhã, Cannibal, Neilton e Celo estavam em
plena BR sem saber como fazer para voltar para casa. Eles
e mais uns trinta punks. Eis que surge do nada um ônibus de
viagem, para e abre a porta. O motorista pergunta então se
alguém ali queria uma carona até o centro da cidade. E, em
cena digna dos filmes de Fellini, a turma inteira de punks,
cada um mais mal-encarado do que o outro, entra no ônibus e se aconchega nas cadeiras do expresso. O motorista,
que além de fã de rock era extremamente gente boa, ainda
perguntou se alguém ia para Olinda, onde ficava a garagem da empresa de ônibus onde trabalhava. Às vezes, a
classe operária punk recifense também tinha direito ao seu
pedaço de paraíso.
Esses shows no subúrbio foram importantíssimos para
construir a reputação dos Devotos do Ódio na cena roqueira
local da época. Tanto que a banda era escalada para os
shows e só ficava sabendo quando via o cartaz com o nome
do grupo colado nos postes. Cannibal arrancava, levava
para casa, mostrava para Celo e Neilton e dizia “vamos
tocar nesse evento”. O “sucesso” da banda acabou estimulando os outros grupos do Alto José do Pinho, mas apenas
Terceiro Mundo, de Marcelo Massacre, rodava os subúrbios como os Devotos. Os outros preferiam os ensaios no
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Devotos 20 anos
estúdio de Lee, que a essa altura do campeonato, era frequentado até por bandas de fora do Alto José do Pinho.
Nascia, naquela época, Nanica Papaya, banda de reggae
liderada por André Nanica, que, lá atrás, havia fundado
a Egoesmo com Celo. Aliás, o baterista dos Devotos era
um caso à parte no meio punk do Recife. Apesar de não
apenas ter aprendido a tocar punk, mas a desenvolver
um estilo próprio de tocar, a praia de Celo era outra. Ele
gostava mesmo era do rock inglês dos anos 1980, como
The Smiths e The Cure. Para dar vazão a essa necessidade artística, emprestava seu talento a outras bandas, como O Lírio e O Verbo. Assim como Neilton, Celo
se beneficiou do fato de não se limitar apenas ao punk
rock. Curioso e sedento de informação, procurava estudar todos os ritmos que, aos poucos, chegavam aos seus
ouvidos, via rádio ou na casa de Wally, que continuava
servindo de point para toda a trupe escutar as novidades
nos vinis que o primo dele trazia de São Paulo.
E a pressão e o preconceito no Alto José do Pinho continuavam firmes e fortes. Fora dona Maria, mãe adotiva
de Cannibal, que sempre apoiou o filho em seu sonho
louco de viver de uma banda de punk no Recife, a história era bem diferente nas outras famílias. Com os meninos perto de atingir a maioridade, era grande a cobrança
para que arrumassem empregos normais e passassem a
ajudar no sustento da casa. Ou seja, a fama de vagabundos desocupados estava longe de ser dissipada. Para
piorar as coisas, boa parte das famílias tinha origens
religiosas ou militares. Ou ambas. O pai de Celo, sargento da Polícia Militar, nutria esperanças de que o filho
seguisse carreira no Exército. O baterista não estava
tão interessado assim em seguir os passos do pai, nem
Cannibal em servir a uma instituição que já criticava em
suas letras. Assim sendo, foi com muita satisfação que
os dois ficaram sabendo, na mesma manhã, que haviam
O Leonardo da Vinci da guitarra
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sido dispensados do serviço militar, e trataram de comemorar na hora, tomando cachaça às sete da manhã em
um boteco em frente ao quartel do bairro de Afogados.
Paulo André ficou amigo do pessoal dos Devotos do Ódio,
e logo passou a empresariar informalmente a banda, facilitando o trânsito e contato com demais bandas e produtores. Por meio de um contato seu, um repórter da revista
Trip subiu o morro para fazer uma matéria com a banda.
Até então, nenhum veículo local dava a menor pelota para
o movimento punk do Recife e, muito menos, para uma
banda do Alto José do Pinho. O repórter da Trip topou a
pauta e se encantou com a guitarra de Neilton. Por provocação, Neilton colocava um band-aid para “esconder”
a marca dela, que obviamente não existia, já que fora
feita pelo próprio. O repórter perguntou qual era a marca
da guitarra, pois não conhecia aquele modelo. Em off,
Neilton contou que havia feito a guitarra com sucata.
O jornalista pirou com a história. Tempos depois, a Trip
publicava uma longa matéria que tinha como fio condutor os Devotos do Ódio, uma banda de hardcore do
morro, cujo guitarrista fez sua guitarra com pedaços de
fogão, geladeira e até de micro-ondas. Uma “mentira
da porra”, segundo Neilton, pois ele não chegou a usar
peças de geladeira e de micro-ondas. A história da guitarra começou a incomodar Neilton. Em vez de sentir
orgulho do invento, passou a ter uma espécie de bronca
pela maneira como a mídia abordava o assunto. Para
ele, era a coisa mais natural do mundo. Não havia criado
uma guitarra de sucata para aparecer, mas porque não
tinha dinheiro para comprar uma nova. O “problema” é
que todo mundo passou a se encantar pela história, e
ainda mais quando conhecia a guitarra pessoalmente.
Não foram poucas as propostas de venda que recebeu.
Recusou todas. A Gorda, para seu dono e inventor, não
tinha preço.
O Leonardo da Vinci da guitarra
O estúdio de Lee
Além de ser o principal incentivador da carreira de Celo,
seu primo Lee foi fundamental para a trajetória de todas
as bandas do Alto José do Pinho. Ele montou um estúdio no bairro da Mangabeira, e todas as bandas da Zona
Norte do Recife ensaiavam lá. O local era minúsculo,
porém confortável. E, mais importante, Lee não cobrava
um tostão das bandas pelo uso do estúdio. Predominava
um aspecto amador. A estrutura era tosca. As gravações
eram feitas em um gravador velho. Mas ninguém ligava
para isso. O importante era poder ensaiar e gravar.
O estúdio de Lee foi importante também por outro
aspecto. Como os meninos passavam o dia literalmente
trancados nele, ficavam longe da rua e dos perigos de se
envolverem com a criminalidade.
Não é exagero dizer que, se não fosse por Lee e seu estúdio, provavelmente a cena roqueira do Alto José do Pinho
não teria vingado.
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Devotos 20 anos
O Leonardo da Vinci da guitarra
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Cap.05
Gestos, Atitudes e Rock’ n’ Roll
Gestos, Atitudes e Rock’ n’ Roll
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impressos, e foi assim que a Rede Globo apareceu por
lá. Era a primeira vez que a imprensa subia o morro para
cobrir outra coisa que não fosse ligada à violência. O Alto
José do Pinho, finalmente, saía do noticiário policial.
Pelo menos, naquela noite.
Uma hora, o inevitável acabou acontecendo. As reuniões
na casa de Wally e os ensaios no estúdio de Lee ganharam as ruas. Primeiro, os meninos passaram a gravar
em fitas cassete os discos que ouviam na casa de Wally.
Com isso, arranjaram um sonzinho e passaram a se reunir quase todas as noites na frente da casa de Celo,
munidos de violão e de garrafas de vinho barato. Depois
as reuniões passaram a acontecer na frente da casa de
Cannibal. Um ator e poeta do Alto, Jailson Leonardo, juntou-se ao grupo. Foi o suficiente para Peste, o mais articulado de todos, ter a ideia de fazer um evento no Alto
José do Pinho que juntasse todas as bandas do morro
e o grupo de teatro do qual Jailson fazia parte. Nascia
assim, em 1991, a primeira edição do Gestos, Atitudes e
Rock’ n’ roll no Bonsucesso Futebol Clube.
A carência de informações dos meninos era tamanha que
eles não faziam ideia de que existia um caderno de cultura nos jornais da cidade, e que eles poderiam divulgar
os shows nesses suplementos. Peste, ao contrário dos
demais, tinha essa consciência, e conseguiu com que
o Jornal do Commercio publicasse uma notinha sobre o
evento. O que eles não imaginavam, nunca, nem em seus
delírios mais extravagantes, é que uma equipe da Rede
Globo aparecesse por lá para fazer uma matéria sobre
o show. As TVs costumam se pautar a partir dos jornais
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Todas as bandas do Alto José do Pinho tocaram e, fora
Devotos do Ódio e Terceiro Mundo, que já faziam shows
no circuito punk underground dos bairros periféricos do
Recife, era o primeiro show de todos os outros: A Ostenta,
Sentimentos Ocultos, O Verbo, O Lírio, Nanica Papaya,
Flores Negras. O som era cedido pelo Bonsucesso Futebol Clube, e o baterista de quase todas as bandas era um
só: Celo. Quando não era ele, era Peste. Curiosamente,
a tônica dominante era o pop inglês dos anos 1980. Era
essa a praia de A Ostenta, O Verbo, O Lírio e Sentimentos Ocultos, esta última formada por Peste e com uma
menina no vocal. Nanica Papaya se dedicava ao reggae,
enquanto Devotos e Terceiro Mundo eram as únicas de
punk rock hardcore do evento.
O público compareceu, e veio muita gente de outros bairros conferir a apresentação. Como Neilton, Cannibal e
Celo estavam acostumados à péssima estrutura dos
shows punks que faziam no subúrbio, preocuparam-se em
oferecer, pelo menos, o mínimo de qualidade para as bandas do Alto José do Pinho. Foi a partir desses shows toscos pela periferia da cidade que eles passaram a perceber que era possível fazer o mesmo no Alto José do Pinho,
só que com uma estrutura um pouco mais decente.
O evento correu às mil maravilhas, muito melhor do que
qualquer um ali imaginava. Deu público, as bandas se
saíram bem e até a Rede Globo veio cobrir. A partir daí, a
brincadeira não parou mais de crescer.
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Devotos 20 anos
Com o sucesso da primeira edição do Gestos, Atitudes e
Rock’ n’ roll a turma se animou e resolveu colocar o bloco
definitivamente na rua. Os meninos passaram a fazer
shows semanais, na rua mesmo, onde imperava a vontade acima de tudo. Juntavam grades de cerveja, colocavam um tablado em cima delas, pegavam emprestada
a radiola de alguém, montavam uma bateria e mandavam
ver. Com o tempo, essas apresentações foram ganhando
repercussão e, coisa inimaginável até então, jovens de
classe média começaram a subir o morro para ver esses
shows. Peste tinha o sonho maluco de encontrar um lugar
no Alto José do Pinho que fosse uma versão no morro do
lendário CBGB’S, casa de Nova York que abrigou apresentações memoráveis de Ramones, Sex Pistols, Television, Blondie e Talking Heads. Enquanto não achava tal
local, os shows eram realizados na rua mesmo.
A fama dos Devotos do Ódio ia crescendo na cena local.
Além da música, o trio começou a desenvolver, junto com
as outras bandas do Alto, um trabalho social forte. Realizavam shows filantrópicos para arrecadar alimentos e
distribuir para a população carente. Ou destinavam toda
a bilheteria de uma apresentação a hospitais e entidades. Com o sucesso do Gestos, Atitudes e Rock’ n’ Roll,
decidiram fazer eventos pontuais na comunidade. Assim
nasceram o Rockriança e o Natal nas Alturas. O primeiro
era realizado no Dia das Crianças. Um mês antes, o trio
visitava os dois colégios do bairro e lançava um tema.
Esse tema virava matéria na escola, e os alunos faziam
redações e desenhos sobre o assunto escolhido. A
banda pegava todo esse material e expunha na comunidade no Dia das Crianças. Além disto, fechavam parceria com a Escola Pernambucana de Circo, e as crianças
passavam o dia inteiro aprendendo novas brincadeiras. Como o nome indica, tudo terminava em rock, com
apresentações no Bonsucesso ou no Clube do Bolinho,
Gestos, Atitudes e Rock’ n’ Roll
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que, naquela época, já era também palco de shows das
bandas do Alto José do Pinho. Ou na rua.
Outro evento pontual era o Natal nas Alturas. As bandas
organizavam shows em que a entrada era um brinquedo
usado. Quando chegava o Natal, reunia a gurizada e distribuía os brinquedos para elas. O Natal, assim como o
Dia das Crianças, também terminava em rock.
Os Devotos do Ódio se destacavam das demais bandas
pelo engajamento e pela organização. Sempre focados
nos interesses da banda, faziam tudo visando o sucesso
dela. Neilton ficou responsável por toda a parte gráfica
da banda. Pintava as camisetas, fazia os desenhos das
fitas demo. Criou uma logomarca da banda em que uma
cruz e a letra “s” formavam um cifrão. E, com o apoio de
Paulo André, a banda começou a participar de festivais
e de concursos de banda. O repertório de seis músicas
havia sido amplamente ensaiado e tocado com o passar
do tempo. Ainda era bem tosco, tudo na base dos três
acordes, mas muito bem amarrado. Assim eram “Nova
vida”, “Luz da salvação”, “São fatos da guerra”, “Asa
preta”, “Pela justiça” e “Futuro inseguro”. O diferencial
era um quê de baião em algumas músicas, como em “Luz
da salvação” e “Asa preta”. As letras eram simples, até
ingênuas demais. Mas algumas acertavam direto o alvo
− caso de “Nova vida”:
Continuamos nossa vida
Mesmo sem aceitar
Vamos parar pra pensar
Reivindicaremos mudança
Sempre vivemos da esperança
Isso vai ter que acabar
Temos força, não somos fracos
Ideologia, passado
O Brasil vai ter que mudar
Unidos em um só grito
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Devotos 20 anos
Com união, sem partido
Mudar pra melhorar
E vinha o refrão, direto, cru:
Não vamos nos preocupar
Em ter o que comer
Mesa farta não faltará
E uma casa pra você viver
Era, acima de tudo, verdadeiro. Não demorou para que
o grupo conquistasse público entre outras camadas
sociais do Recife. Carismático, Cannibal impunha respeito nos shows. Fora o apelo natural e a excentricidade
de uma banda punk de um morro do Recife comandada
por um negro rastafári.
Assim como o Natal nas Alturas e o Rockriança, o Gestos, Atitudes e Rock’ n’ Roll virou um evento pontual. Em
um deles, a novidade era um grupo de hip-hop chamado
The Boys of the Rap, que, mais tarde, se transformaria
no Faces do Subúrbio.
Gestos, Atitudes e Rock’ n’ Roll
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Deus, abençoe a todos
Cap.06
Deus, abençoe a todos
Deus, abençoe a todos
José Edson da Silva nasceu no Recife, no dia 18 de outubro de 1974. Ainda recém-nascido, foi adotado por três
irmãs que viviam em Nazaré da Mata, na Zona da Mata
de Pernambuco. Duas das irmãs eram costureiras e
faziam as roupas dos maracatus e dos blocos carnavalescos da cidade. A terceira irmã era cozinheira. A família levou alguns anos para conseguir se estabelecer no
Recife, e José passou a infância dividido entre o contato
com os mundos rural e urbano.
Péssimo aluno, José chegou a ser expulso de dois colégios por má conduta. Porém, guardava um hábito extremamente peculiar: matava aulas para ler na biblioteca.
Suas notas eram baixas em todas as matérias, mas, em
redação, nunca tirava nota menor que oito. De família pobre, daquelas que precisavam se preocupar com
o alimento do dia seguinte, o menino José talvez tenha
se divertido mais do que muitos moleques com melhores condições financeiras. Subia em pé de jambo com os
amigos, enchia uma sacola inteira com a fruta e levava
para casa para comer à noite assistindo televisão. Soltava pipa, jogava futebol e ia de ônibus até o Marco Zero1,
onde gostava de tomar banho de rio.
1 Ponto inicial do Recife, onde a cidade começou a ser erguida.
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Suas primeiras lembranças musicais são as dos programas de rádio que escutava em Nazaré da Mata. Neles,
ouvia Luiz Gonzaga, Trio Nordestino, João do Vale e os
emboladores de viola, grande paixão de seu avô. Adolescente, teve aulas de capoeira e aprendeu a cantar várias
ladainhas durante os jogos. Muito cedo, precisou começar a trabalhar para ajudar no sustento da casa. Carregava uma enxada nas costas e se oferecia para limpar o quintal dos vizinhos em troca de algum troco. Foi
jardineiro, ajudante de pedreiro, camelô e cabeleireiro.
Com 14 anos de idade, em 1988, viu uma roda de break
na Praça do Trabalho e ficou encantado com os movimentos dos dançarinos. Era o pessoal da Geração 80
e, coincidentemente, um dos dançarinos, Jackson, era
dono de uma das casas em que José trabalhava como
ajudante de pedreiro. Zé perguntou onde eles treinavam,
e Jacó, apelido de Jackson nas rodas de break, respondeu que os treinos aconteciam todos os dias, às 15 h, no
Córrego São Domingos Sávio. E o menino passou a frequentar esses treinos religiosamente. Faziam parte uns
dez dançarinos, e não havia instrutor. Cada um aprendia vendo o outro dançar. Como Zé já havia desenvolvido
certo traquejo por conta da capoeira, tratou de adaptar a ginga já adquirida aos passos do break. Ao mesmo
tempo em que aprendia os primeiros passos, passou a
desenvolver o ouvido para as batidas que essa turma
escutava. Principalmente nos bailes black que rolavam
no Clube Atlântico, em Olinda, no Treze, no Conselho
de Nova Descoberta, no Clube Ferroviário. As turmas
eram divididas por bairros, e faziam “rachas”, disputas
de dança. Zé convidou o amigo Tiger para se juntar ao
grupo de dança do qual fazia parte, a Breakdance de
Casa Amarela, e ficaram famosos os rachas entre eles e
os Draks, do Morro da Conceição. E todos esses rachas
eram disputados ao som de black norte-americano dos
100
Devotos 20 anos
anos 1970, com muito James Brown, Jackson Five e coisas mais recentes também, como Run DMC, Afrika Bambata e Public Enemy. Porém, como no caso de Cannibal, o
que levou o garoto Zé a querer fazer música foi um vinil: a
coletânea de hip-hop nacional Cultura de rua, que trazia
vários grupos de rap como O Credo, Código 13 e MC Jack,
a seminal dupla paulistana Thaíde e DJ Hum. A partir daí,
começou a compor as primeiras letras. Não demoraria
muito para o amigo Tiger fazer as suas também.
Deus, abençoe a todos
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Deus, abençoe a todos
Deus,
abençoe meu povo
Eraldo Tavares nasceu no Alto José do Pinho, em casa
e em parto feito por parteira, no dia 26 de novembro de
1973. Filho de um motorista com uma dona de casa, a
infância de Eraldo talvez tenha sido um pouco mais dura
do que a de seus demais companheiros das bandas do
Alto José do Pinho. O pai ganhava um salário mínimo e
sustentava duas famílias, a dele e a outra que mantinha
fora do casamento. Por conta disso, ainda muito cedo,
Eraldo precisou vender picolé para ajudar em casa. Vendia na praia de Boa Viagem ou nos parques da Jaqueira e
do Treze de Maio. E um incidente envolvendo o pai o marcaria para o resto da vida.
O pai de Eraldo era funcionário contratado de uma
empresa de fornecimento de energia elétrica. Trabalhava por escala. Em uma dessas escalas, sem saber,
caiu com um pessoal procurado pela polícia por roubar
fios elétricos. Como era motorista, apenas levava os funcionários para fazer o serviço onde eles diziam. Ele não
fazia a menor ideia, mas, enquanto estava no carro esperando que a turma terminasse o trabalho, o que acontecia, na verdade, era um senhor roubo de fios. A polícia
chegou na hora e prendeu todo mundo, inclusive o pai
de Eraldo, que ficou detido por cinco meses no presídio
Aníbal Bruno até conseguir provar sua inocência.
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Por conta dessa experiência, a família de Eraldo sempre
se preocupou muito com o futuro do filho. Uma vez, ainda
moleque, chegou com uma bermuda nova em casa, que
havia ganho de presente de um amigo. Quando o pai perguntou qual amigo tinha sido tão generoso, descobriu que
o sujeito era um ladrão conhecido no bairro, e obrigou o
filho a devolver o presente. “Se um dia você tiver de ter
uma bermuda dessa marca, será fruto de seu trabalho, e
não produto de roubo.” Anos mais tarde, a empresa que
fabricava a tal bermuda foi uma das primeiras patrocinadoras do Faces do Subúrbio, e o filho chegou em casa
orgulhoso com a bermuda de marca, conseguida a partir
de seu trabalho. Relembrou a história para o pai, que não
conseguiu esconder o sorriso de orgulho.
Inteligente, o sonho de Eraldo era ser médico. Jamais
havia pensado em ser músico e, caso tivesse cogitado
seguir a carreira artística desde novo, hoje, provavelmente, seria um cantor de brega, influenciado por
gente como Reginaldo Rossi, Evaldo Braga e Maurício
Reis. Os pais gostavam de lambada e, aos sábados, a
mãe de Eraldo costumava colocar para tocar os discos de Capiba e de Nelson Ferreira, de que tanto gostava. Até que um dia, o amigo Zé Brown o convidou para
dançar break. Eraldo não tinha a menor noção do que
era a cultura hip-hop e, assim como Brown, ficou fascinado com a dança e com o som. Quando um amigo
em comum mostrou o vinil Cultura de rua, os dois piraram e resolveram ser músicos. E, como toda a rapaziada do movimento roqueiro do Alto José do Pinho,
viraram alvo de preconceitos. Principalmente porque
se vestiam como os rappers americanos: rasparam
a cabeça, furaram a orelha e passaram a usar bonés
com a aba virada para trás. Se o autor dessas linhas
enfrentou muito preconceito ao usar brinco em terra
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Devotos 20 anos
de cabra macho como o Recife no início dos anos 1990,
imagina então o que não sofreram Eraldo e Zé ao furarem a orelha, na mesma época, no Alto José do Pinho.
O jornalista José Teles lembra que eles eram malvistos
pela comunidade, considerados “maconheiros vagabundos”. Ou seja, que baita encrenca foram arranjar. Não
bastasse o preconceito externo por virem de uma das
regiões mais violentas do Recife, precisavam, também,
enfrentar a má aceitação da comunidade em que viviam
apenas pelo fato de se vestirem de forma diferente.
Eraldo andava para cima e para baixo com um tênis basqueteira da marca Puma, que estampava o felino em sua
língua. Os amigos acharam que o animal parecia um tigre,
e passaram a chamar Eraldo pela alcunha de Tiger.
O fato é que Zé Brown e Tiger resolveram compor. Um dia,
combinaram de cada um ir para casa e escrever metade
de uma letra. Depois, juntariam as duas partes e criariam uma música. Nascia assim “O Brasil do racismo”,
primeira composição da dupla. Os dois ficaram impressionados com a semelhança entre a realidade descrita
nas letras dos rappers de São Paulo e a que eles viviam
no outro lado do país, no Alto José do Pinho. Passaram a
ter, no ato de escrever, um verdadeiro exercício de desabafo, e foram colocando para fora tudo que, durante
tanto tempo, estava engasgado em sua vida. Não à toa,
temas como preconceito e criminalidade sempre estavam presentes em suas letras. Estimulados por amigos
que fizeram na Unidrad — a União dos Djs, rappers e dançarinos do Recife —, começaram a ler Malcolm X e a se
interessar pela história da luta negra norte-americana.
Dali passaram a pesquisar sobre Zumbi dos Palmares,
Che Guevara e Zapata. Escreviam as letras e pediam
que os Devotos do Ódio fizessem uma levada para cantar em cima dela. Foi assim que se apresentaram na
Deus, abençoe a todos
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terceira edição do Gestos, Atitudes e Rock’ n’ roll, ainda
sob o nome de The Boys of the Rap. Com poucas músicas
escritas, dançaram mais do que cantaram, mas chamaram a atenção. Agora o Alto José do Pinho também tinha
um grupo de hip- hop.
Cap.07
É no banheiro...
É no banheiro…
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ficava enfurecida. Praguejava, dizia que o marido seria
assaltado se não trouxesse dinheiro para casa. Praga de
esposa é fogo e, muitas vezes, ele foi roubado mesmo.
José Adilson Ritinto nasceu no Recife, no dia 20 de outubro de 1969. Por conta de um problema de incompatibilidade sanguínea dos pais, Adilson nasceu sem boa parte
do braço direito e com o dedão da mão esquerda deformado, parecendo uma pata de caranguejo. Antes dele, a
família já havia perdido um filho com problemas no cérebro. Para complicar ainda mais, Adilson nasceu laçado
pelo cordão umbilical. O médico que fez seu parto ficou
tão nervoso que obrigou os pais a colocarem o nome do
menino de José1. A mãe era dona de casa e lavava roupa
para fora, e o pai trabalhava com jogos de azar no parque
de diversões itinerante de propriedade do irmão. Adilson
passou boa parte da infância em hospitais. Só o braço
quebrou mais de cinco vezes, pois, como só tinha um
braço perfeito, não conseguia manter o equilíbrio e vivia
caindo. Quando não estava nos hospitais, dividia os dias
entre a escola e a televisão.
Boêmio e sempre rodeado de mulheres, o pai de Adilson
costumava gastar tudo que ganhava em farra. E chegou a
ser preso por se envolver em uma briga num boteco. A mãe
1 Crendice popular que prega que toda criança do sexo masculino que nasce
laçada deve se chamar José, para garantir a sobrevivência na infância.
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Durante algum tempo, a família de Adilson morou no
Espinheiro, bairro de classe média alta do Recife. O pai
deixou de trabalhar no parque do irmão para ganhar a
vida como vigia em uma firma de construção no bairro,
e a família morava em uma casa nos fundos da empresa.
Até que o pai foi demitido da firma e, com o dinheiro da
indenização, a família resolveu comprar uma casa no
Alto José do Pinho.
Apesar das dificuldades, Adilson teve uma boa educação. Era bom aluno e gostava de estudar. Amava o Sítio do
Picapau Amarelo, e não perdia um capítulo da adaptação
que a Rede Globo fez da obra de Monteiro Lobato. Chegou ao Alto José do Pinho com 15 anos, e logo ficou amigo
de Cannibal, Neilton, Celo, Adilson Moreira e Peste.
Ainda nos tempos do Espinheiro, Adilson já gostava de
inventar algumas músicas, que saía cantarolando pelas
ruas. Quando chegou ao Alto José do Pinho, em 1985,
não poderia encontrar terreno mais fértil para explorar
sua musicalidade. O principal passatempo dos garotos do bairro era montar uma banda, e logo Adilson foi
convidado para ser vocalista de seu primeiro conjunto,
Flores Negras, que contava com Celo na bateria, André
Dark no baixo e Neilton na guitarra. A banda tocava em
festinhas de aniversário ou em bares fora do Alto José do
Pinho, porque, no bairro, o preconceito ainda era muito
grande. Adilson, além de cantar, tocava teclado, mesmo
com uma mão só, e as letras da banda prezavam pela
cartilha do absurdo, do tipo “a mãe da virgem que subiu
em um carro amarelo”. O som era uma sátira às bandas
que faziam uma sonridade mais “séria”, calcada no rock
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Devotos 20 anos
inglês da década de 1980, como o Tempo Nublado e Academia do Medo, bandas darks recifenses que chegaram
a fazer algum sucesso no final dos anos 1980. Porém,
em meio à algazarra das letras, havia espaço para certo
“protesto”, como na peculiar letra de “Mata soldado”:
Mata o soldado
Morra, soldado
O sol tá picado!
O céu tá picado!
Mato sorrindo
Morra, seu cabra!
Morra!
Morra!
Morra, seu porra!
Tamanha raiva tinha explicação fácil. Naquela época,
todos eram vítimas constantes de perseguição policial. Era um baculejo2 atrás do outro. As revistas eram
minuciosas, e os meninos eram obrigados a colocar a
mão na cabeça, abrir as pernas, deitar no chão, aquela
palhaçada toda. Adilson foi ficando cada vez mais amigo
do pessoal. Dinho Corninho, baixista do Flores Negras,
também tocava n´O Lírio, e ganhou fama por tocar de
costas para o público. Antes fosse estilo. Na verdade,
era medo mesmo. Outra banda que fez certo burburinho
na época foi a punk O Inexistente, cuja capa da primeira
fita demo, feita por Neilton, mostrava um banheiro com
o título “Onde todos nós somos iguais”.
Nessa época, Adilson conseguiu um emprego, que manteve por volta de um ano, como cobrador de ônibus. Adilson, Micro (vocalista do Flores Negras e futuro guitarrista
da Matalanamão) e Celo resolveram montar uma banda,
cujo tema central seria masturbação. Pensaram em vários
nomes, entre eles Psicodoidos, The Mentes ou As Mentes.
2 Gíria local para as revistas policiais.
É no banheiro…
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Devotos 20 anos
É no banheiro…
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O quarteto costumava passar as tardes no sítio da Trindade, tocando violão e bongô, comendo cocada e vendo
as meninas saírem do colégio. Em uma dessas tardes,
Micro se encantou com uma menina que acabara de sair
da escola e comentou com os meninos: “Olha só que
menina linda! Hoje vou matá-la na mão.” Ficou Matalanamão, nome mais que perfeito para a proposta da banda.
O grupo já colecionava várias canções, que falavam sobre
desejo e masturbação, mas a aceitação no meio punk foi
bem difícil. Sofreram perseguições dos punks radicais,
que achavam aquilo tudo uma presepada e uma falta de
respeito com o gênero, e das feministas, que se sentiam
ofendidas com o teor das letras.
Uma das primeiras músicas do Matalanamão, ainda hoje
inédita, foi feita em “homenagem” a um tarado do Alto
José do Pinho, que, vez ou outra, passava umas temporadas no presídio Aníbal Bruno. Seu nome era Mó. Parte
da letra:
Mó, qual a cor do seu dinheiro?
Qual a face do teu terror?
Teu currículo é bagunceiro
Maconheiro e estuprador
Ailton Peste, um dos maiores fãs do Matalanamão, na
época, estava fazendo eventos para arrecadar fundos
para os soropositivos do Recife. Os bons e velhos shows
de rua, com grades de cerveja servindo como sustentação para o palco improvisado. Algumas pessoas começaram a coletar imagens, que resultou no documentário “Punk, Rock, Hardcore, Alto José do Pinho é do
caralho”, que mostrava a ascensão das bandas do Alto
José do Pinho, com depoimentos de todos os envolvidos
na cena de lá, inclusive de Neilton, contando passo a
passo como havia construído sua guitarra. Reza a lenda
que uma cópia do documentário foi parar em Dublin, na
Irlanda, e que Bono teria visto e gostado muito. Ninguém
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Devotos 20 anos
confirma. Tampouco desmente. Celo, por conta das
atividades cada vez mais intensas com os Devotos do
Ódio, precisou sair da banda, deixando o lugar vago para
Peste, maior fã que o Matalanamão tinha.
Adilson logo ganhou o apelido de Ronrona, por conta de
um problema de dicção que o faz trocar o “r” pelo “l”. E
Peste foi tratando de escrever algumas das canções que
se tornariam definitivas no repertório da banda. A que
mais dá dor de cabeça para a banda, ainda hoje, é “Os
peitinhos”.
Eis a delicada letra:
Por baixo da blusinha
Tão lindo de se ver
Depois da bundinha
Eles fazem acontecer
Tire o sutiã
Que eu quero te chupar
Passar a linguinha
Até você gozar
Bicudos ou sem bicos
Rosinhas ou pretinhos
Das vacas ou das mocinhas
São lindos seus peitinhos
Se o destino das bandas do Alto José do Pinho era o preconceito em sua comunidade, qual não seria a reação dos
moradores do bairro a um grupo como o Matalanamão?
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É no banheiro…
Aborto masculino:
pare de jogar menino
fora ou 5 x 1
Ailton Guerra nasceu no Recife no dia 18 de agosto de
1971. Os pais vieram do interior de Pernambuco tentar
a vida no Recife: a mãe de Itambé, e o pai de Nazaré
da Mata, onde sempre brincou muito maracatu rural.
Durante anos, a casa de Ailton no Alto José do Pinho foi
sede do maracatu Estrela da Tarde. Os instrumentos
eram guardados no quarto de Ailton, e o menino, desde
cedo, mostrou vocação para a bateria. A infância foi
pobre de posses, mas rica em brincadeiras: pião, pipa,
corridas pelas escadarias e jogos de bola. O pai vivia de
bicos como mecânico, e era apaixonado por música. Toda
semana ia até a feira de Casa Amarela e voltava com um
vinil debaixo do braço. Eram discos de Cartola, Núbia
Lafayette, Antônio Marcos. A família possuía uma velha
radiola de móvel, e o garoto Ailton adorava viajar no som
e no visual daqueles álbuns. Gostava tanto que, um dia,
ganhou de presente da irmã uma vitrolinha cor de laranja
na qual passou a escutar seus próprios discos.
No colégio, Ailton aprontava tanto que ganhou o apelido
de Peste. Um dia, chegou até a colocar um gato dentro da
merenda. E, durante as aulas, vivia batucando na banca.
A mãe não suportava essa inclinação do filho para a
música. Achava que tudo aquilo era coisa de maconheiro
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vadio. Com 15 anos, começou, de forma autodidata, a
tocar bateria, pegando escondido os instrumentos que
o pai guardava em seu quarto. As influências vinham do
maracatu do pai, mas o que despertou mesmo a paixão
no menino pela música foi o rock. Logo passou a andar
com os roqueiros da rua, que, assim como ele, eram
muito malvistos pela comunidade. As mães das meninas
proibiam as filhas de namorar aqueles rapazes vestidos
de preto, com calças rasgadas e cabelos extravagantes.
Diziam que eles não tinham futuro. Se duvidar, preferiam
até que a filha se envolvesse com um criminoso a andar
com algum roqueiro do bairro.
Assim como Cannibal, Peste era ativista do movimento
punk do Recife. Frequentava os shows nos subúrbios,
gostava de trocar informações com a rapaziada dos fanzines e de conversar com os punks do bairro de Tejipió.
Em 1987, Peste montou, junto com Neilton, sua primeira
banda, a Turbo, que fazia covers das bandas nacionais de sucesso da época, como Titãs, Ultraje a Rigor
e Camisa de Vênus. Peste costumava levar um radinho
de pilha de seu irmão para o colégio, e os meninos passavam o recreio inteiro escutando a programação veiculada nas FMs. Na Turbo, diferentemente de todas as
outras bandas em que tocou, Neilton apenas cantava.
Depois Peste foi convidado para tocar na Túmulo, e chamou Neilton para fazer parte dela. A Túmulo nasceu da
vontade de fazer um som mais pesado, influenciado por
bandas como Slayer, Metallica e Sodon. Aos poucos,
Peste foi ampliando seu leque de influências, e decidiu montar A Redoma. A banda já tinha uma tendência a
fazer rock calcado em Joy Division, que Peste conheceu
pela televisão em programas como o Super Special, veiculado no meio da década de 1980 pela TV Bandeirantes.
A Redoma durou uns dois anos, e chegou a se apresentar
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Devotos 20 anos
até mesmo no Teatro do Parque, em um festival estudantil. Gravaram uma fita demo em que Peste batucava uma
prancheta e dois caras tocavam violões e, para surpresa
geral, foram selecionados. Peste nunca havia subido
em um palco na vida, e o primeiro que encarou foi logo o
do imponente Teatro do Parque — com a casa cheia de
estudantes. Na hora do show, a banda estava a postos e
Peste bateu uma baqueta na outra para marcar o tempo
e começarem a tocar. Um, dois, três... e a baqueta caiu
no chão. Recolheu a baqueta e repetiu a operação: um,
dois, três... e a baqueta novamente caiu no chão. Outra
vez: um, dois, três, até que ouviu o grito do vocalista:
“Peste, porra! Deixa de onda.” Não era onda, mas puro
nervosismo. Até hoje, Peste não sabe como conseguiu
prosseguir o show após deixar a baqueta cair três vezes
antes sequer de emitir qualquer som de sua bateria.
Peste passou a ouvir muita música pesada. Foi por meio
dela que chegou até o movimento punk, e ajudou a formar
a Terceiro Mundo. Ajudou também na criação de O Verbo,
e montou a Sentimentos Ocultos, com vocal feminino.
Mas o Matalanamão já era seu favorito. Não perdia um
show deles. Quando soube que Celo ia sair da banda por
causa dos compromissos com os Devotos do Ódio, tomou
um porre e, bêbado, disse aos caras que queria entrar
no Matalanamão. Peste não apenas assumiu as baquetas, como virou principal compositor do grupo junto com
Ronrona. E, de tanto procurar, Peste finalmente achou o
CBGB, que abrigaria os shows semanais das bandas do
Alto José do Pinho.
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Cap.01
Bar do Orlando:
o CBGB do Alto José do Pinho
Bar do Orlando: o CBGB do Alto José do Pinho
O bar do Orlando ficava na rua Acaiaca, localizada acima da
rua principal. Era um boteco minúsculo, onde mal cabiam
vinte pessoas. Os roqueiros se encontravam lá para jogar
sinuca e tomar cerveja. Um dia, a MTV subiu o morro para
fazer uma matéria com as bandas do Alto José do Pinho,
e elas pediram ao proprietário, Orlando, que cedesse o
local para a locação da reportagem. Percebendo que ali
seria um bom espaço para organizar eventos, Peste propôs a Orlando fazer shows semanais no bar. E ele, fã de
Djavan, apreciador de rock e boa praça, topou.
Não existia palco. As gambiarras eram muitas. A bateria, de propriedade de Peste, vivia no local. O som era
emprestado de alguém, normalmente uma radiola. E,
mesmo com todas as limitações, o primeiro show foi um
sucesso. O banheiro ficava atrás do palco. Quem precisasse dar um pulinho no sanitário tinha de passar pela
banda primeiro. Só cabiam umas vinte pessoas no local,
e o lado de fora ficava abarrotado de tanta gente. Para
que uma pessoa entrasse, era necessário esperar que
outra saísse. E lá tocaram Devotos do Ódio, Matalanamão, Faces do Subúrbio e Lara Hanouska – banda liderada pela jornalista paulistana Stella Campos. Os shows
aconteciam toda quinta-feira e começaram a ser frequentados por gente como Chico Science, o pessoal do
Mundo Livre S/A, o jornalista e produtor Gutie e o jornalista José Teles. Até Nando Reis, que, uma vez, estava no
Recife excursionando com os Titãs, apareceu por lá. Mas
o preconceito ainda imperava no Alto José do Pinho: o bar
de Orlando era considerado reduto de drogados. Algumas
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mães iam resgatar os filhos na base do tapa. E, não raro,
muitos punks mal-encarados corriam desesperados do
local ao avistar a mãe chegando nas proximidades do
bar. Mas a vingança não tardou, e veio em grande estilo: a
Rede Globo e a MTV fizeram matérias sobre os shows no
bar do Orlando. Foi o ponto de partida para a mudança de
reputação do Alto José do Pinho. Isso e a aproximação do
pessoal do morro com a turma do manguebit. Aos poucos,
a comunidade deixou de ver, naqueles jovens, a figura
estampada e encarnada do diabo. Passaram, até mesmo,
a sentir uma espécie de orgulho pelo fato de o trabalho
deles ser reconhecido por gente da televisão.
O grande charme do bar do Orlando era o caráter inusitado.
Era comum que algumas pessoas subissem nas mesas e,
do nada, começassem a recitar poesias. A necessidade
de se expressar parecia infinita. Senão, como explicar
o sucesso obtido pelo bar do Orlando? Como eles conseguiam realizar shows em espaço tão pequeno, contra
tudo e todos? A resposta é uma só: vontade. E o bar do
Orlando arrastou verdadeiras multidões: o público que os
Devotos do Ódio haviam conquistado em suas turnês nos
subúrbios do Recife, misturados com a classe média —
que começava a subir o morro — e com jornalistas, que
precisavam conferir aquilo com os próprios olhos para
acreditarem em uma história tão pouco plausível. Foi o
caso de Fábio Massari, da MTV, que, ao conhecer os Devotos do Ódio em uma edição do Abril Pro Rock e saber que
a banda era proveniente de um morro recifense, quis imediatamente conhecer o Alto José do Pinho. Pela primeira
vez, desde que começou toda a história, lá pelos idos de
1985, com a formação da Egoesmo e dos encontros na
casa de Wally, os roqueiros do Alto José do Pinho passaram, finalmente, a virar o jogo a seu favor e a conquistar o
respeito e a admiração dos moradores da comunidade. E
o grande culpado era o bar do Orlando.
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Devotos 20 anos
O produtor Gutie realizou, em São Paulo, no Aeroanta,
uma edição paulista do Rec-Beat1, e levou 12 bandas pernambucanas de ônibus para a capital paulista, entre elas,
Devotos do Ódio, Faces do Subúrbio e Matalanamão. Era
a primeira viagem do Matalanamão. Os Devotos já haviam
tocado em Natal e em João Pessoa, e o Faces do Subúrbio em Garanhuns, interior de Pernambuco. Para arrecadar grana para comer na viagem, Peste organizou um
show no bar do Orlando e cobrou cinquenta centavos pela
entrada. E fechou o bar com toldos, o que tornou o calor
lá dentro insuportável. As pessoas, literalmente, pagaram para ficar do lado de fora, fato que ainda hoje rende
gargalhadas aos que estiveram presentes naquele dia.
O trabalho dos meninos reverteu o jogo na comunidade
a tal ponto que até a bandidagem local dava sua parcela
de contribuição. Um dia, dois suecos chegaram na casa
de Tiger munidos de máquinas fotográficas e câmeras de
vídeo. Foram escoltados, sem saber, por um dos ladrões
mais conhecidos do bairro, que fez questão de levá-los até
a casa do rapper (e de não assaltá-los, evidentemente).
Ponto determinante na história do Alto José do Pinho e
sobretudo na mudança da perspectiva com que as pessoas passaram a enxergar o morro, o bar do Orlando teve
um final trágico. O proprietário, Orlando, vivia no lugar,
e utilizava grades de cerveja como cama. Com medo de
assalto, costumava dormir com um revólver na cintura.
Um dia, quando Orlando foi acordado de manhã pelo
motorista de um caminhão de carregamento de cerveja,
sua arma disparou e acertou seu coração.
1 Festival alternativo de música que acontece no caranaval do Recife desde
1995.
Bar do Orlando: o CBGB do Alto José do Pinho
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Bar do Orlando: o CBGB do Alto José do Pinho
Espelho
dos deuses
Foi uma banda de fora do Alto José do Pinho que acabou sendo fundamental para a consolidação da carreira
dos Devotos do Ódio. O Câmbio Negro HC conseguiu o
que parecia impossível para os padrões da cena recifense na década de 1980: gravou um disco. Tanto que foi
o único grupo da época a realizar tal feito. Em 1990, a
banda lançou, pelo selo independente Rock Xpress, de
propriedade de Paulo André, o disco Espelho dos deuses,
verdadeiro marco do hardcore nordestino. O álbum era
uma paulada só em todas as instituições que, no Nordeste, são ainda mais fortes que nas demais regiões
do país: igreja, exército, governo, polícia. Cannibal, que
sempre frequentou os shows do grupo, estreitou relações com a banda. Não perdia um ensaio deles, assim
como os da SS-20, que ensaiava em um casarão na Rua
da Guia, no centro velho do Recife. Depois, quando a
bandas passaram a ensaiar em um estúdio, sempre
cediam um pouco do seu tempo para que os Devotos do
Ódio ensaiassem. Pagavam quatro horas de ensaio, usavam duas e deixavam as duas restantes para o trio usar.
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Outro local de ensaio era a casa de Lindenberg, baixista
do Arame Farpado. Linde (como é conhecido), junto com
Lael, da SS-20, tinha uma equipe de locação de som e
prestação de serviços para shows urdergrounds chamada “Caatinga Produções”, que foi muito importante
para a manutenção da cena roqueira dos subúrbios.
Outra pessoa que ajudou bastante e tornou-se um dos
maiores incentivadores da carreira dos Devotos do Ódio
foi Marcus Asbar. Ele possuía, ao lado do primo, Osman,
uma produtora responsável pela fabricação de Fanzines
e realização de shows chamada “Maos Contatos”, que era
muito ativa no underground recifense. Com o passar do
tempo, o que era apenas uma sonoridade de três acordes amarradinhos foi ganhando um contorno profissional. Os Devotos, assim como o Câmbio Negro, destacavam-se das demais bandas de punk hardcore da região.
Seus integrantes encaravam a banda com tal seriedade
que, quando começaram a receber cachê, por mais
miúdo que fosse, o trio dividia por quatro: a quarta parte
ia para o banco, e era com essa grana que eles faziam as
camisetas, as demos e viabilizavam as poucas viagens
da época. O mesmo método é utilizado até hoje.
Nesse momento, compuseram seu maior clássico, “Punk,
Rock, Hardcore, Alto José do Pinho”. A música começava com ruídos e distorções de guitarra, para, logo em
seguida, surgir uma levada de baixo e uma batida seca
de bateria, com Cannibal cantando:
Punk, rock, hardcore
Sabe onde é que faz?
Lá no Alto José do Pinho
É do caralho!
Tem Devotos, Terceiro Mundo
Que botam pra fuder
Todo sentimento obtido
Em seu viver
128
Devotos 20 anos
Bar do Orlando: o CBGB do Alto José do Pinho
129
Depois toda a banda atacava com fúria um hardcore, que
parecia traduzir em som todas as dificuldades e mazelas
vividas pelo trio até então. Aí vinha a segunda parte, cantada na velocidade máxima do hardcore por Cannibal:
Expressando em suas letras
O seu ponto de vista
Sem violência lutam
Por igualdade de vida
E a parte final:
Punk, rock, hardcore
Sabe onde é que faz?
Lá no Alto José do Pinho...
É do caralho!
Ao vivo, a canção ganhava uma dimensão ainda maior.
Depois de cantar “punk, rock hardcore, sabe onde é que
faz? Lá no Alto José do Pinho...”, toda a banda parava de
tocar e o público respondia, em uníssono: “É do caralho!”
E o grupo repetia mais três vezes o ritual. A plateia podia
ser composta por cem, mil ou 2 mil pessoas. Os shows
eram encerrados sempre desta forma. Até hoje são.
Gravaram o videoclipe de “Punk, Rock, Hardcore, Alto
José do Pinho”, primeiro clipe no Brasil a ser rodado em
35 mm, dirigido por Cláudio Assis, que mais tarde filmaria “Amarelo Manga” e “Baixio das Bestas”. O clipe
mostra a banda tocando na praça do bairro, tendo, aos
fundos, a imagem de Cristo na cruz, que ornamenta o
local, e crianças brincando e cantando. O clipe chocava
pela pobreza mostrada, e nada mais. Não precisava de
violência, mulher sarada, efeitos especiais. A realidade
era o mote, a tônica, a matéria-prima da banda. E era
mais do que suficiente. Curiosidades: o clipe foi gravado
em sobras de rolo de um curta-metragem que Assis
estava filmando na época. O diretor pensou em gravar
“Nova Vida”, mas a banda resolveu tocar “Punk, Rock,
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Devotos 20 anos
Bar do Orlando: o CBGB do Alto José do Pinho
131
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Devotos 20 anos
Hardcore, Alto José do Pinho”, que acabou tendo empatia imediata com as crianças que participavam do vídeo,
embora tenha sido tocada em público pela primeira vez.
O fato é que a fama da banda foi crescendo a passos largos, mas a grana não. Não raro, o trio ia a pé, carregando
seus instrumentos, até o local do show. Passava pela
multidão, ia até o backstage, subia no palco, fazia o show
e depois retornava a pé para casa. Na ida e na volta, claro,
levava um baculejo da polícia. Uma vez, em 1994, abriram
um show dos Raimundos no Circo Maluco Beleza. Os brasilienses acabavam de lançar seu primeiro disco, pelo selo
Banguela, um braço da gravadora Warner, de propriedade
dos Titãs. O álbum foi um sucesso no mercado independente, e músicas como “Puteiro em João Pessoa”, “Nega
Jurema” e “Selim” caíram na boca da garotada. Os Devotos do Ódio tinham, nesse dia, uma outra apresentação
em outro local. Foram a pé até lá, fizeram o show e foram
andando até o Circo Maluco Beleza. Passaram com os instrumentos no meio da multidão, subiram no palco e fizeram um baita show. Algumas pessoas viram ali, pela primeira vez, um show dos Devotos do Ódio, que pegou boa
parcela do público roqueiro de classe média dos Raimundos. A imensa roda de pogo2, tradicionalíssima nos shows
do trio, deixou parte da plateia embasbacada. A banda
tocou “Caso de amor e ódio”, música inspirada no telejornalismo sanguinolento na linha do Aqui e agora, extremamente popular na época. Um baixo sinistro começava a
dialogar com uma batida incômoda, criando, no ouvinte,
uma sensação de claustrofobia. Depois entrava a guitarra
cortante de Neilton, e Cannibal começava a cantar:
Caso de amor e ódio
Gil Gomes vai contar
2 Tradicional dança punk em que o público forma um círculo e fica girando
em torno dele. Não raro é confundida com briga por policiais.
Bar do Orlando: o CBGB do Alto José do Pinho
133
Como essa história vai acabar
E se puxar tem que atirar
E se atirar tem que matar
Para a sua honra poder lavar
Um caso tão bonito
Um amor quase impossível
Mas o amor não vence o ódio
Gil Gomes narra o episódio:
E a banda entrava em fúria e velocidade máximas do
hardcore para explodir no refrão:
Matou a mãe, matou o pai, matou a filha
Matou a mãe, matou o pai, matou a amiga
Era desgraça pura jogada no ventilador para um público
que se acostumara a consumir aquele tipo de noticiário.
A banda tocou também “Vida de ferreiro”, porradaria de
menos de dois minutos que contava a história de seu
Antônio, que “todo dia, o dia inteiro, acorda cedo para
no trampo começar...”, pois “esse é meu trabalho, meu
amigo, eu tenho mais de trinta filhos, pra comer tenho
que trampar”. E a conclusão, simples, direta, objetiva,
punk: “Vida de ferreiro é hardcore, seu Antônio, pode
crer!” E veio o final com “Punk, Rock, Hardcore, Alto José
do Pinho”, com mais de 2 mil pessoas respondendo que
o punk rock hardcore feito no Alto José do Pinho era “do
caralho”. Para os que estavam presentes àquele show,
como eu, é difícil acreditar, mas a verdade é que a banda
voltou a pé para o Alto José do Pinho, levando o bom e
velho baculejo antes de subirem o morro.
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Devotos 20 anos
Bar do Orlando: o CBGB do Alto José do Pinho
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Demos
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Já é natal, dia de alienação
Enquanto milhares festejam
Outros passam fome
Tem mesa farta
Tem brinquedo para dar
É a burguesia se acabando de alegria
Os Devotos do Ódio finalmente iam realizar o sonho de
gravar um vinil. Na verdade, era uma coletânea com
outras duas bandas, Delinqüentes, do Maranhão, e Karne
Crua, de Sergipe. O projeto foi intitulado “Cooperativa do
Kaos.” A ideia era colocar no mercado um álbum apenas
com bandas punks do Nordeste, mas faltou grana para
finalizar a empreitada, e o disco não vingou. Carlos, editor do fanzine “Recifezes”, junto com Marcus Arbar, da
produtora Maos Contatos, tentaram lançar as faixas dos
Devotos do Ódio que seriam utilizadas na coletânea em
um compacto da banda. Neilton chegou a fazer a capa e o
fotolito, mas o projeto não foi adiante por falta de verba.
Nessa época, Paulo André convidou os Devotos para
tocarem num evento chamado “Mangue Feliz”, que seria
realizado no Circo Maluco Beleza e contaria com a presença de várias bandas do movimento. O trio fez todo o
percurso do Alto José do Pinho até o local do show (cerca
de 4 km) a pé, levando os instrumentos nas mãos. Chegaram exaustos, com os pés cobertos de poeira (alguns
tinham ido de chinelo, outros, de coturno, calçado comum
entre os punks). Subiram ao palco e tocaram “Já é Natal”,
composição de protesto ainda hoje inédita em gravação:
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Na rua a tristeza
Do pobre a mendigar
Na casa a miséria
Do natal que não vai chegar
Pobre do menino DEUS
Que não precisa mendigar
Para ele tudo tem
Para ele nada vai faltar
Tem a oração
Tem a devoção
Tem a alienação
De um povo cristão
A plateia, em sua maioria composta de pessoas de classe
média alta, ficou atônita, sem saber como reagir, se
aplaudia ou vaiava. A banda tocou mais algumas músicas,
desceu do palco e fez o caminho de volta para casa a pé.
Mesmo com todas as dificuldades enfrentadas, os Devotos não desanimaram e trataram de seguir em frente do
jeito que dava, na base da raça mesmo.
Como ainda não tinham condições de alcançar o sonho
de gravar um vinil, coisa extremamente cara na época, os
meninos dos Devotos do Ódio nutriam um carinho e zelo
especiais por suas fitas demo, que enchiam os olhos de
quem as comprava. Bom de desenho, Neilton caprichava
na arte das fitinhas. Criava capas com encartes, tudo
desenhado à mão. Da matriz, tirava cópia dos desenhos, e
todas as fitinhas vinham personalizadas, com o nome do
grupo desenhado nelas.
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Devotos 20 anos
Nessa época, participaram do concurso de bandas Recife
Rock Show, festival produzido pela Arte Viva e realizado
no bairro de Boa Viagem, em que os Devotos ficaram em
primeiro lugar, superando Jorge Cabeleira e o Dia em que
Seremos Todos Inúteis, que ficou em segundo, e Os Mordomos (que nada mais era do que o Jorge Cabeleira inscrito com outro nome) em terceiro. No júri estavam, entre
outros, Chico Science e Paulo André. Curioso é que Neilton
não gostou do resultado. Ele queria o segundo prêmio, um
amplificador, e ficou bastante chateado quando o amigo
André Nanyca deu a notícia.
Pouco depois, os Devotos tocaram no Recife Summer
Fest, festival que contou com a paulistana Viper na programação. Apresentaram seis músicas: “Nova Vida”,
“São Fatos da Guerra”, “Asa Preta”, “Luz da Salvação”,
“Pela Justiça” e “Futuro Inseguro”. A banda gravou o
show e lançou em fita cassete. Neilton caprichou e fez
um capa gigante, estilo mapa, que, aberta, trazia o S e a
cruz formando um cifrão e as letras de todas as músicas
tocadas. Eram nítidos o carinho e o zelo com que a banda
fazia suas demos.
A banda então entrou em estúdio e gravou, com cuidado
profissional, “Vida de ferreiro”, até hoje, uma das demos
mais disputadas pelos colecionadores. Nela apareciam
composições um pouco mais rebuscadas, que iam um
pouco além do punk rock, como “Fogo cruzado”, que terminava com um verso mortal de Cannibal: “Inocentes e
culpados são estilhaçados. Aqui todos são vítimas: fogo
cruzado.” Era o retrato fiel do Alto José do Pinho. E de
todos os subúrbios do Recife. “Vida de ferreiro” trazia
também “Uma bala na agulha”, “Formando opiniões”,
“Enganado”, “O homem monstro” e “Faz parte do cotidiano”. “Punk, Rock, Hardcore, Alto José do Pinho” tinha
sua primeira versão gravada, a mesma que foi utilizada
Bar do Orlando: o CBGB do Alto José do Pinho
139
na gravação do vídeo da música que integra o documentário “Punk, Rock, Hardcore, Alto José do Pinho é do
caralho”, aquele que supostamente foi visto e aprovado
por Bono, em Dublin. “Vida de ferreiro” teve ótima circulação no Brasil. A troca de fitas entre as bandas era
uma constante no país. Quando alguma banda de fora
aparecia para tocar no Recife, voltava com a bagagem
repleta de demos de grupos da cidade. Assim foi com
os Raimundos. E, no caso dos Devotos do Ódio, havia
o apelo natural por ser uma banda de punk rock de um
morro recifense. E, ainda por cima, tinha a história da
guitarra de Neilton.
Chico Science mostrou a invenção para os Raimundos,
que, obviamente, piraram com a história. Chico até chegou a aconselhar Neilton a explorar a história da guitarra.
Mas Neilton tinha claro na cabeça que o instrumento
não havia sido fabricado com essa finalidade. O líder do
movimento mangue sempre demonstrou interesse em
trabalhar com os Devotos. Como, até então, nunca havia
tocado na periferia, propôs fazer um show junto com o
trio no Alto José do Pinho. O evento teria o nome “Estamos por cima”. Chico também pensava em abrir um selo,
e os Devotos era a primeira banda que ele queria produzir.
Infelizmente, Chico morreu sem realizar o desejo de trabalhar com o grupo.
Paralelo ao trabalho musical com os Devotos do Ódio,
Neilton ia se aperfeiçoando na arte de desenhar. Suas
camisetas pintadas rendiam um bom dinheirinho, e eram
tão benfeitas que pareciam saídas de fábrica. Passou a
receber encomendas personalizadas. Um amigo chegava para ele e dizia que queria uma camiseta de determinada banda que contivesse um desenho específico. E
o desenho era feito à perfeição por Neilton. O guitarrista
via os anúncios das lojas de camisas em revistas gringas
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Devotos 20 anos
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de música, como a Guitar Player, e copiava todos os desenhos. Foi ficando tão craque naquilo que alguns amigos
sugeriram que ele partisse para a pintura de verdade, na
tela. Neilton, sempre muito modesto, dizia que aquilo não
era para ele, e continuava firme na produção de camisetas e de capas de demos. Fez as capas de todas as demos
das bandas do Alto José do Pinho. Generoso, Neilton gravou as demos de boa parte das bandas do Alto José do
Pinho em sua casa, sem cobrar um centavo sequer, pois
não queria que elas enfrentassem as mesmas dificuldades que ele enfrentou para conseguir gravar. Neilton
ainda não sabia, mas começava a construir uma sólida
carreira de artista gráfico e plástico, além de designer.
Já Celo arrumou um emprego como agente de saúde,
trabalho que gostava bastante de fazer, pois envolvia,
de certa forma, um exercício de conscientização nas
comunidades carentes. Gostava de dizer que fazia uma
espécie de trabalho de psicólogo, conversando com as
pessoas. Só que as atividades com os Devotos do Ódio
foram ficando cada vez mais intensas, as viagens eram
muitas, e o chefe acabou encostando Celo na parede:
“E aí? Vai continuar trabalhando com a gente ou vai ser
artista?” “É, vou ter que sair.” A partir daquele momento,
Celo seria músico profissional para o resto da vida, sem
tempo ou espaço para exercer qualquer outra atividade.
Caminho que tinha escolhido desde cedo, aos 12 anos,
ao ver aquele baterista de banda de baile tocando numa
festinha na Mangabeira.
Cannibal, nas horas vagas, exercitava suas origens negras,
tocando baixo na Nanica Papaya, banda de reggae de seu
amigo André. Pouco tempo depois, sua figura ficou extremamente conhecida nas ruas do Recife, pois ele ia pessoalmente aos colégios do centro da cidade divulgar os
shows dos Devotos do Ódio.
Bar do Orlando: o CBGB do Alto José do Pinho
143
E os shows nas ruas no Alto José do Pinho, aqueles com
grades de cerveja servindo de sustentação para um
tablado improvisado como palco, permaneciam firmes e
fortes. E, agora, com o aval da Rede Globo e da MTV. Muitos jovens de classe média passaram a subir o morro para
se divertir nesses shows, para se juntar aos moradores do
Alto José do Pinho nas rodas de pogo, espaço punk democrático onde todas as classes sociais se misturavam. E,
para espanto de todos, esses jovens de classe média
eram muito bem recebidos pelos moradores do Alto José
do Pinho. Não demorou muito, o bairro criou fama por
ser um local calmo, onde se podia tomar uma cervejinha por um preço justo e ver shows de bandas punks do
bairro e até de fora dele. Os moradores passaram a ter
orgulho de morar no morro. E o orgulho era fruto do trabalho justamente daqueles meninos que eram marginalizados em sua comunidade. Ainda hoje, muitos deles,
já adultos, casados e com filhos, guardam certa mágoa
por terem sido tão discriminados naquele período. Mais
do que orgulho para os moradores, o Alto José do Pinho
se transformou em referência para as demais periferias,
e não havia cidadão no Recife que não se orgulhasse da
reviravolta acontecida no bairro. A imprensa, que antes
só subia o morro para cobrir assassinatos ou deslizamentos de barreiras, agora procurava o Alto José do Pinho
para pesquisar sua cultura. E, mais uma vez, os meninos
deram um belo exemplo de generosidade.
Bar do Orlando: o CBGB do Alto José do Pinho
Tem afoxé,
tem punk rock,
tem rock’ n’ roll,
tem samba e
tem pagode
3
Fato raro na imprensa em todo o mundo, os três jornais
da cidade se juntaram para fazer uma matéria sobre as
bandas de rock do Alto José do Pinho. O normal é que um
jornal queira ferrar o outro, obter matérias exclusivas,
furos. Porém, à época, o Jornal do Commercio, o Diário de
Pernambuco e a Folha de Pernambuco subiram o morro
juntos para uma reportagem conjunta sobre o movimento roqueiro do Alto José do Pinho. Efeito dominó
provocado pela Rede Globo e, principalmente, pela MTV,
que tratou de apresentar o Alto para todo o país. Além
de juntar todas as bandas do Alto José do Pinho, Cannibal e seus amigos fizeram questão de chamar o pessoal
do maracatu e do afoxé, que já tinham grande tradição
local, mas nunca tiveram espaço na mídia. Assim sendo,
3 Trecho da letra da música “Tem de tudo”, dos Devotos do Ódio, gravada no
álbum Agora tá Valendo (1997).
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145
a mesma matéria e foto que trazia Devotos do Ódio, Matalanamão, Faces do Subúrbio, A Ostenta e Terceiro Mundo
reproduzia, também, o pessoal do maracatu Estrela
Brilhante e do afoxé Ylê de Egbá. Os meninos sabiam a
frustração que era desenvolver um trabalho social e cultural e não ter o reconhecimento da sociedade. E, ainda
por cima, ser marginalizado por morar no morro. A história era a mesma, só mudavam a época e os ritmos. Nada
mais natural então, para Cannibal, Neilton, Celo, Peste,
Ronrona e todos os outros, que chamar a turma do maracatu e do afoxé para tentar sanar uma injustiça histórica.
Por essas e outras, os meninos viraram o jogo de forma
impressionante na comunidade. Passaram a ser respeitados de tal forma no bairro que ainda hoje tamanha
aceitação causa certo estranhamento. Esteticamente,
pouca coisa mudou. Quase ninguém no morro, fora os
integrantes das bandas, gosta de rock. Em compensação, hoje não há quem não admire o trabalho que eles
desenvolveram e ainda desenvolvem na comunidade. E
justo “aqueles vagabundos de preto, maconheiros que
não queriam nada com a vida”. Às vezes, a vida tem um
senso de humor bem punk...
Bar do Orlando: o CBGB do Alto José do Pinho
147
por homéricas rodas de pogo em seus shows fosse fã do
rock inglês produzido nos anos 1980.
Anos 1980
Bá, um dos amigos de infância dos meninos, tocava guitarra na Egoesmo com Celo. Com o fim da banda, Bá ficou
cerca de um ano parado. Celo então juntou o útil ao agradável, e, como já sentia necessidade artística de dar vazão
às suas influências do rock inglês dos anos 1980, resolveu
criar uma nova banda que trouxesse Bá de volta ao meio
musical. Nasce a B.U. (Bond of union, nome dado por Neilton, referente ao quadro de Escher), banda que traz Celo
na bateria e nos vocais, Neilton e Bá nas guitarras e Micro
no baixo. Todas as composições eram em inglês. Posteriormente, Cannibal assumiu a bateria, deixando Celo com
liberdade para se dedicar apenas aos vocais. Luciano, que
sempre acompanhava os ensaios e shows da banda, ficou
com o lugar de Micro no baixo quando ele deixou o grupo.
O B.U. abraçaria a sonoridade dark de bandas como
Bauhaus, com letras melancólicas escritas por Celo nas
folgas entre um show e outro dos Devotos do Ódio. Esteticamente, nada produzido pela B.U. teria espaço nos Devotos do Ódio. A temática da maioria das composições era
sobre amores frustrados e relacionamentos problemáticos. Nenhum dos temas sociais de sua banda de origem.
O grupo chamava atenção justamente pelo inusitado.
Pouca gente imaginava que aquela banda responsável
146
Mas os integrantes da banda passaram a encarar a B.U.
de formas distintas. Enquanto para Neilton a banda era
apenas uma fuga ao hardcore dos Devotos do Ódio, mais
uma forma de ampliar seus horizontes como músico,
para Cannibal e Celo, a coisa era mais séria. Eles acreditavam que a banda tinha potencial para fazer carreira
no grande circuito. Como as pretensões de Neilton eram
bem mais modestas, o guitarrista tratou de pular fora e
acompanhar tudo de longe. Luciano foi recrutado para
ocupar seu lugar. O B.U. existe até hoje e, volta e meia, é
escalado para algum show independente no Recife.
Cap.02
Não somos marginais
Não somos marginais
Zé Brown e Tiger criaram o hábito da escrita. Colocaram
no papel tudo o que enfrentaram na pele desde que se
entendiam por gente. O preconceito que sofreram por
serem negros e moradores de uma das comunidades
mais violentas do Recife. Haviam nascido para escrever, só não tinham descoberto a vocação até então. Foi
quando decidiram que já estava na hora de mostrar seu
trabalho. Ou, pelo menos, um pouco dele. Na terceira
e última edição do Gestos, Atitudes e Rock’ n’ Roll, em
1993, Zé Brown pediu que Cannibal fizesse umas levadas
de baixo no estilo funk para ele se apresentar com Tiger
no evento. Cannibal disse que não conseguia. Zé Brown
apelou então para Neilton e Celo, que toparam o desafio e improvisaram na hora, lá no Bonsucesso Futebol
Clube, umas levadas balançadas para a dupla se apresentar escudada por alguns dançarinos. Foi a primeira
apresentação deles, que ainda atendiam pelo horroroso
nome de The Boys of the Rap. O show foi quase todo de
dança, e Tiger e Zé Brown recitaram algumas coisas de
improviso. Depois disso, Nilson, irmão de Neilton, foi
recrutado como DJ por eles. Assim como o irmão, que
fabricou sua guitarra, Nilson também fez sua primeira
pickup a partir de sucatas.
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O The Boys of the Rap foi tocar no Arte Viva, uma academia
de propriedade de uma senhora chamada Lourdes Rossi,
que abria o local para shows de rock. Ela é considerada
até hoje uma espécie de madrinha do hip-hop, pois foi a
primeira a abrir espaço para os grupos locais. Sem contar
que o Arte Viva virou um programa de televisão veiculado
pela TV Jornal, retransmissora do SBT no Recife. Nesse
dia em que o The Boys of the Rap tocou no Arte Viva,
havia mais de cem pessoas na plateia, todas ligadas
ao movimento hip-hop de Recife. E os meninos se apresentaram no formato tradicional, cantando em cima de
bases pré-gravadas. Cannibal havia levado Paulo André
para assistir, e ele gostou do que viu. Mais tarde, reunidos com o pessoal do movimento hip-hop, Paulo André
perguntou a alguns membros qual seria a reação deles
frente a um convite da Sony Music para gravar um disco.
A maioria reagiu de forma radical, dizendo que gravar
por uma major era coisa de playboy ou de vendido. Paulo
André então repetiu a mesma pergunta para Tiger e Zé
Brown. Mais antenados e esclarecidos do que a maioria ali, responderam que, se o contrato fosse legal para
eles, assinariam sem o menor problema. Paulo André
perguntou se eles conheciam o álbum Judgment Night,
trilha sonora do filme homônimo — lançado no Brasil
como Judgement Night: uma jogada do destino — que
trazia bandas de rap tocando com grupos pesados como
Slayer. Como os meninos não conheciam, Paulo André
emprestou o disco a eles. Os caras ouviram e gostaram.
Ligaram para Paulo André para agradecer a atenção. E o
último conselho de Paulo André foi fundamental. “Troquem de nome. Esse de vocês é muito americanizado.
Procurem achar um que tenha mais a ver com vocês.”
Tiveram a ideia de Faces do Subúrbio. Mas o empurrão
definitivo para a carreira do Faces foi do Devotos do
Ódio. No Abril pro Rock de 1994, os Devotos teriam vinte
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e cinco minutos de show. Cannibal perguntou a Paulo
André se daria para acrescentar mais cinco minutos no
tempo de apresentação da banda, pois ele queria levar o
Faces do Subúrbio para fazer uma participação no show
deles. Paulo André disse que era impossível. Mas afirmou que, durante o tempo deles de show, a banda poderia fazer o que bem entendesse. Então Cannibal, Neilton
e Celo cederam cinco minutos de sua apresentação para
chamar ao palco o Faces do Subúrbio, que foram apresentados ao público como “uma banda nova de rap do
Alto José do Pinho”. A plateia, formada em sua maioria
por fãs de hardcore, gostou da novidade, e o Faces foi
muito aplaudido.
Empolgados, gravaram, na casa dos pais de Neilton e
Nilson, uma demo intitulada “Ser Negro”, onde Nilson
fazia as bases e Zé Brown e Tiger cantavam. A capa,
como de costume, foi feita por Neilton, e trazia a figura
de Nelson Mandela estampada nela. Nilson, além de DJ
do Faces, foi o técnico de som da demo. O esforço deu
resultado. Uma cópia dela acabou parando nas mãos
de Chico Accioly, diretor de cinema e publicitário que
na época cuidava da carreira de Chico Buarque. Ele
viu o potencial que existia ali e bancou a segunda fita
demo, “Não Somos Marginais”. Como a dupla gostou da
fusão que ouviu em Judgment Night, decidiu montar uma
banda. Seria o segundo “sacrilégio” cometido por eles
no meio hip-hop. O primeiro foi misturar rap com embolada, o que dava ao som que faziam um delicioso sotaque nordestino e os diferenciava dos demais grupos do
estilo. A ideia da embolada surgiu após um conselho de
Chico Science, que, ao assistir a um show da dupla junto
com Paulo André, sugeriu que os meninos mergulhassem na embolada assim como ele, Chico, havia feito com
o maracatu. Um baterista de Camaragibe1, fã da banda,
1 Município vizinho localizado na região metropolitana do Recife.
Não somos marginais
157
pediu para tocar no grupo. Era Garnizé, que, mais tarde,
ficaria nacionalmente conhecido por ter sua história
contada no filme “O rap do pequeno príncipe contra as
almas sebosas”, de Paulo Caldas e Marcelo Luna. Garnizé indicou Oni como guitarrista, e, para completar a
banda, chamaram Marcelo Massacre, baixista do Terceiro Mundo. Essa formação, mais o DJ KSB, que entrara
no lugar de Nilson, gravou a demo “Não somos marginais”, que trazia as músicas “Críticas e críticas”, “O
Brasil do racismo”, “Homens fardados” e a faixa-título.
Esse trabalho ganhou o prêmio de melhor demo de 1996
pela revista Trip. Foram convidados por Gutie para a edição paulista do Rec-Beat, e o pai de Tiger não acreditou
quando o filho disse que viajaria para São Paulo. “Tá pensando que São Paulo é ali em Camaragibe?” Só acreditou
quando viu uma matéria na Rede Globo, que mostrava o
filho embarcando em um ônibus para São Paulo com as
outras bandas do Recife.
E as coisas começaram a acontecer rápido para o Faces.
Mas eles ainda precisariam superar muitos preconceitos.
Cap.03
Quero até sua mulher
Cap.03
Quero até sua mulher
Quero até sua mulher
Com a ascensão de Devotos do Ódio e Faces do Subúrbio
na cena local, começaram a circular, no Recife, histórias
sobre uma banda punk que cantava sobre masturbação
e cujo vocalista era incrivelmente bom de palco. E, de
fato, Adilson Ronrona, vocalista do Matalanamão, pode
ser considerado um show à parte. Primeiro, por superar
todos os limites pessoais: o braço direito é defeituoso,
tem problema de dicção e ainda assim é capaz de segurar um show inteiro na base da garra. E da anarquia e da
palhaçada também, evidente.
Um dia, ainda adolescente, Ronrona descobriu Morrissey por meio do programa Super special, da rede Bandeirantes. Apesar de achar a performance do líder do
The Smiths muito “bichal”, viu que tinha algumas coisas interessantes a extrair dali, principalmente a dança,
que acabava chamando tanta atenção quanto a música.
O garoto ficou fascinado também com o Kiss, com suas
roupas e maquiagem extravagantes. Em suma, Adilson
nunca conseguiu distinguir música de imagem, tanto
que seu passatempo preferido era ver programas de
videoclipe que passavam na Bandeirantes e na extinta
TV Manchete. MTV ainda era um sonho distante naquela
época. Enfim, para Ronrona, não bastava ser vocalista
de uma banda que tinha a masturbação como mote principal. Ele queria ir além. E foi.
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É preciso fazer justiça a uma qualidade, muitas vezes,
deixada de lado no Matalanamão: o som. A banda criou
uma linguagem sonora muito bem definida, própria. “Os
peitinhos”, por exemplo, é um cruzamento do rock surgido
nos anos 1950 com riffs pegajosos emprestados do metal.
“Mim dai” (sic) é outra canção muito bem trabalhada,
com uma linha de baixo extremamente criativa. “Priminha” segue a linha de “Os peitinhos”. Porém, no caso do
Matalanamão, é compreensível que o som acabe ficando
em segundo plano. Não bastassem todas as idiossincrasias da banda, Ronrona ainda cismou que deveria fazer
os shows fantasiado. Assim sendo, já cantou vestido de
colegial, com minissaia e tudo. De bebê, com direito à
fralda. De camisinha, bombeiro, xeque, com pijaminha
de cetim. Foram tantas fantasias que um produtor, certa
vez, confundiu as coisas e sugeriu que eles seguissem a
linha dos Mamonas Assassinas. Ao contrário do humor do
grupo de Guarulhos, que tinha um quê de ingênuo e caiu
nas graças das crianças, o do Matalanamão era cínico e
deliberado até as últimas consequências. E eles chegaram a pagar um preço por isso. Tanto que demorou anos
até conseguirem gravar o primeiro disco. E sofriam sérias
perseguições por parte da ala mais radical dos punks. A
essas perseguições, o baixista Jaiminho costumava dizer:
“Vocês não gostam de mulher?” E, ao serem questionados
se seriam sexistas ou machistas, a resposta costumava
ficar na fronteira entre a genialidade e a ingenuidade:
“Podemos até ser sexistas por causas das letras. Mas
machistas, não.” Vamos a alguns exemplos do lirismo da
banda, como “Priminha”:
Chegou uma prima minha
Que veio de São Paulo
Cheia de sotaque
Boa pra caralho
Seu nome é Cristina
162
Devotos 20 anos
Tem um corpo que me atrai
Não só a mim como a meu pai
Fico sem controle
Cheio de tesão
Quando estou com ela
Assistindo televisão (sic)
Cristina, minha filha
Prepare-se para ver
Eu vou ter um orgasmo
Em homenagem a você
Definitivamente, não dava para imaginar isso sendo cantado pelos Mamonas Assassinas. Uma vez, a banda foi
tocar em João Pessoa. Umas punks mal-encaradas não
gostaram do que viram, e menos ainda do que ouviram. No
intervalo entre as músicas, começaram a xingar Ronrona,
que devolveu as provocações. Peste, sabendo do perigo
da situação, tratou de emendar uma música na outra para
que não desse tempo de Ronrona discutir com as punks.
Certa hora, cutucou o vocalista com a baqueta e disse:
“Meu irmão, você está louco? A gente não está em casa.”
Ronrona continuou o show como se nada houvesse acontecido. No final, quando desceram do palco, foram cercados pelas punks. Mal-humorado, de saco cheio, Ronrona
foi logo perguntando: “O que vocês querem?” Elas então
disseram que não gostaram de “Os peitinhos”, e perguntaram se ele tinha alguma coisa contra mulher. Ronrona
apontou para Peste e disse que ele era o autor da letra,
deixando a confusão para o baterista resolver. Peste não
chegou a apanhar, mas esteve bem perto disso.
Uma das lendas que cerca o Matalanamão é que eles
teriam sido expulsos do Mauristad, casa de shows que
funcionou na década de 1990 no Recife Velho, porque
um dos integrantes da banda estava se masturbando ao
espiar uma menina trocar de roupa no camarim vizinho.
Nada mais com a cara do Matalanamão do que isso.
Quero até sua mulher
163
Cap.04
Nós faremos que você nunca esqueça
esqueça
Nós faremos que você nunca esqueça
167
tiava os meninos. A matéria saiu com o título de “Devotos
têm pressa de gravar”.
Cannibal aproveitou a deixa para compor “Eu Tenho
Pressa”, que se tornaria um dos hits da banda e que serviu, durante muito tempo, como música de abertura dos
shows do grupo:
Pintou a possibilidade dos Devotos do Ódio gravarem seu
primeiro disco de forma independente, em 1995. A banda
ficou amiga de Clemente, dos Inocentes. O contato com
o líder dos Inocentes foi feito através de um fã dele de
São Paulo, que viu um show dos Devotos e propôs gravar o disco por um selo que estava criando. A gravação
seria na capital paulista. Eles encararam uma viagem
de carro do Recife até São Paulo. Chegando lá, deu tudo
errado. Eles descobriram que o sujeito era apenas um
fã, sem a menor experiência em trabalho com bandas e
gravadoras. Clemente lamentou profundamente a situação, pois era tão vítima quanto os Devotos. Para piorar
a situação, Cannibal sonhou com sua mãe adotiva, dona
Maria, pedindo que ele voltasse para casa, que ali não
era o lugar dele. Impressionado com o sonho, Cannibal
contou para Celo e Neilton, que decidiram voltar imediatamente para o Recife.
O fruto positivo do episódio foi a amizade que surgiu entre
a banda e o vocalista dos Inocentes. A partir deste episódio, o jornalista Marcelo Pereira, do Jornal do Commercio, um dos primeiros a descobrir, junto com José Teles, o
movimento mangue, publicou uma matéria sobre a agonia
do trio em gravar o primeiro disco, a demora em assinar
contrato com uma gravadora, e como essa espera angus-
166
Eu tenho pressa de vencer
Eu tenho pressa de vingar
Vencer para me suceder
Vingar para me realizar
Vivendo assim eu vou morrer
Vivendo assim eu vou matar
Eu tenho pressa de vencer
Eu tenho pressa de vingar
Era a tradução perfeita do sentimento da banda na
época. Não parecia, mas o grupo já tinha nove anos de
carreira, estava em um nível absolutamente profissional, mas nada de o disco sair.
Nessa época, Paulo André era empresário e produtor
de Chico Science & Nação Zumbi. Em julho de 1996, a
Sony Music lançava no mercado Afrociberdelia, segundo
disco do grupo. A banda faria dois shows de lançamento
do álbum em São Paulo, no Tom Brasil, e Paulo André
aproveitou para levar os Devotos do Ódio como banda de
abertura, e instalou o trio em um quarto triplo no mesmo
hotel em que ficou hospedada a Nação Zumbi. Fazia
muito frio em São Paulo, e Cannibal, Celo e Neilton não
haviam levado roupas que os agasalhassem o suficiente.
Durante o show dos Devotos, Paulo ficou sabendo que o
vereador paulista e atuante da cena rock de São Paulo,
Turco Louco, estava na plateia, e disse que era a chance
de Cannibal arrumar uns agasalhos. Cannibal não perdeu a deixa, e, no intervalo de uma das músicas, falou
168
Devotos 20 anos
Nós faremos que você nunca esqueça
169
ao microfone: “Turco Louco, meu irmão, eu sei que você
está aqui vendo o show. Descola uns casacos pra gente
que nós estamos morrendo de frio aqui em São Paulo.”
O vereador foi conhecer o trio no camarim e, no dia
seguinte, descolou os casacos para a banda. O fato histórico: os Devotos do Ódio foi o primeiro grupo de rock
com guitarra pesada a se apresentar no Tom Brasil.
Paulo André, na época, ainda trabalhava de forma informal para os Devotos, mais na base da brodagem. Maurício Valladares, um executivo da BMG, que havia visto
os Devotos do Ódio em edições anteriores do Abril Pro
Rock, disse a Paulo André que tinha interesse em assinar
contrato com a banda, mas que só o faria se Paulo trabalhasse como produtor deles. Foi assim que Paulo André
virou empresário oficial dos Devotos do Ódio, e a banda,
finalmente, assinou com uma gravadora para lançar seu
disco de estreia.
Os Devotos do Ódio já haviam conquistado um belo patamar na cena punk nacional. Seus shows faziam sucesso,
o grupo ficou conhecido pelas enormes rodas de pogo que
provocava em suas apresentações quando assinou com a
BMG Ariola, mesma gravadora do Só Pra Contrariar, que,
em épocas de bonança da indústria fonográfica, vendia
milhões de discos.
O contrato com a BMG foi um alívio em um primeiro
momento. Recrutaram Lúcio Maia, guitarrista de Chico
Science & Nação Zumbi, para produzir o disco, que foi
batizado de “Agora tá valendo”. O álbum era um desabafo
de 18 faixas. Já na abertura, com “Formando opiniões”,
ficava a deixa de como a banda estava engasgada com
tudo: “já se foi o tempo de esperar uma solução”, gritava
Cannibal. “Dia morto” aparecia como música de trabalho, e chegou a ganhar um clipe filmado em película, em
que a banda passeava pelas ruas do centro de Recife, no
170
Devotos 20 anos
Alto José do Pinho e em Peixinhos, com Cannibal vestindo
uma camiseta preta escrita INRI. “Punk, Rock, Hardcore,
Alto José do Pinho” ganhava sua versão definitiva, assim
como “Vida de ferreiro”, “Luz da salvação”, “Caso de amor
e ódio”, “Fogo cruzado” e “Nova vida”. O disco impressionava pela crueza, e, principalmente, pelo trabalho de
guitarra de Neilton. “Enganado”, por exemplo, trazia um
pouco das influências de fora do mundo punk do guitarrista. E a penúltima faixa do disco era uma canção que
parecia traduzir todo o passado, o presente e o futuro da
banda: “Mas eu insisto”. O álbum terminava com “Futuro
inseguro”, primeira composição da vida dos Devotos.
Neilton fez as ilustrações, e o projeto gráfico ficou por
conta da Ouriço Designer, empresa de Pernambuco. Todo
o trabalho gráfico foi feito no Rio de Janeiro. A capa estampava o desenho, sobre um fundo azul, do rosto de um anjo
morador de rua com uma tarja preta cobrindo os olhos.
O guitarrista não ganhou um centavo pelas ilustrações.
O encarte ainda trazia um longo e emocionado texto de
Fábio Massari, que contava como ele havia descoberto a
banda e o Alto José do Pinho.
A banda não gostou da produção do álbum. Achou que o
som ficou chocho, que não reproduzia fielmente a violência sonora dos shows da banda. Para piorar, alguns punks
mais radicais chegaram a acusar o grupo de traidor do
movimento por ter gravado um disco por uma grande gravadora e por ter feito um clipe veiculado pela MTV. Como
gosta de dizer João Gordo, vocalista do Ratos de Porão e
apresentador da MTV, punk só dá valor “se você for feio,
sujo e comer merda”.
O lançamento de “Agora tá valendo” foi no Abril Pro Rock
de 1997. O festival crescera a tal ponto que precisou
mudar de endereço. Saiu do Circo Maluco Beleza para
o Centro de Convenções. Fazia apenas dois meses que
Nós faremos que você nunca esqueça
171
Chico Science havia morrido em um acidente de carro,
e a comoção ainda era grande. Naquele ano, o festival contou, em sua programação, com Paralamas do
Sucesso, Ratos de Porão e Arnaldo Antunes. Max Cavalera, recém-saído do Sepultura, veio dos Estados Unidos
para conferir o evento. Os Devotos do Ódio fizeram uma
apresentação correta, mas pouca gente ali conhecia o
repertório do disco. Emocionado, Cannibal dedicou o
show a sua filha recém-nascida, Lais, e disse que o CD
estava à venda em um stand ali mesmo, no Centro de
Convenções. Foi como adquiri o meu.
O disco possibilitou algumas viagens, e garantiu a popularidade da banda, pelo menos, na região Nordeste. Mas
os perrengues continuavam.
O fato é que os Devotos do Ódio eram contratados de uma
grande gravadora, mas recebiam um tratamento pior ao
que costuma ser dado a uma banda independente, como
lembra Neilton: “A gente ficou num hotel perto da gravadora (BMG). Hotel três estrelas, com uma delas já apagando e caindo (risos). E a gente tinha a grana contada pra
tocar e passar um mês lá. E o café da manhã da gente era
pão com queijo, uma banana e café com leite. Aí ficava
assim até a hora do almoço, geralmente às quatro e meia
da tarde, pra gente poder compensar o jantar, que não ia
ter. Todo dia era isso. E o resto da noite era a barriga roncando. A gente entrava naquele puta prédio da gravadora,
cheio de seguranças, de bermuda e chinelo para encher
nossas garrafas de água. O passatempo da gente era ficar
olhando as meninas na praia1.”
Entretanto, aos trancos e barrancos, “Agora tá valendo”
acabou circulando no circuito punk. A BMG não sabia
trabalhar a banda, e esperava que ela atingisse o mesmo
patamar de vendas do Só Pra Contrariar. Quando foram
1 Ibidem.
172
Devotos 20 anos
se apresentar no Abril Pro Rock de 1998, os Devotos já possuíam um séquito de fãs, as músicas do disco já eram bastante conhecidas entre os punks e, até mesmo, por quem
apenas simpatizava com o rock, mas não era necessariamente fã da banda.
Naquela noite, a grande atração do festival era a banda
americana Suicidal Tendencies, que levou uma verdadeira
multidão ao pavilhão do Centro de Convenções. O problema
é que a banda desmarcou o show na última hora, alegando
que a mãe de um dos integrantes havia morrido. A produção
ficou desesperada. Temia por tumulto e revolta por parte
do público. E Cannibal, Celo e Neilton estavam tranquilos
no camarim, e até se divertiam um pouco com a situação.
Chegou a hora do show, o trio subiu no palco. Cannibal vestia a camisa da seleção brasileira. Educado, cumprimentou
o público: “Boa-noite, Abril Pro Rock! Nós somos os Devotos. Do Alto José do Pinho. O importante mesmo é ter um
festival de nossa terra sendo encerrado por uma banda de
nossa terra!” E emendou com o berro “EU TENHO PRESSA
DE VENCER”. E foi aberta então uma das maiores rodas de
pogo de que se teve notícia no Brasil. Poucas pessoas ali
pareciam sentir a ausência do Suicidal Tendencies. Cannibal comprovava que tinha um carisma acima do comum. E
a banda soube se aproveitar da estrutura de som que serviria aos gringos. Tecnicamente, foi o mesmo show de sempre, mas liberaram toda a mesa de som para eles, o que
deu a impressão do som tomar uma dimensão maior e mais
alta do que, de fato, era. O público, ainda ressentido com a
perda de Chico Science, viu, em Cannibal, a possibilidade
de substituir o ídolo tragicamente morto um ano antes,
embora essa nunca tenha sido a intenção dele. Os Devotos
tocaram ainda duas músicas novas: “Nós faremos que você
nunca esqueça” e “O herói”, uma “homenagem” ao policial
“Rambo”, famoso na época por ser acusado de atirar e tirar
a vida de um inocente em Diadema, São Paulo. O refrão:
Nós faremos que você nunca esqueça
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Devotos 20 anos
Nós faremos que você nunca esqueça
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Devotos 20 anos
O herói está à solta
O herói está fudido
E todo mundo viu
Que o herói é um bandido
No final do show, Cannibal se despediu utilizando uma frase
que seria, dali por diante, sua senha para abrir e fechar as
apresentações do grupo. “Voltem para casa na paz e com
cuidado, porque alguém que ama muito vocês está esperando em casa.” Talvez isso explique, em parte, por que
raramente os shows dos Devotos terminam em violência.
Ainda em 1998, os Devotos do Ódio comemoraram dez
anos de carreira em show no Circo Maluco Beleza, com
direito à abertura da banda americana Man Or Astroman?. O curioso desse show é que um amigo meu perdeu
seus óculos na roda de pogo e só os encontrou depois
de eles serem esmagados e pisoteados. Apesar de ser
quase cego sem óculos, voltou para casa feliz da vida por
ter uma história tão boa para contar no show de comemoração dos dez anos da banda de que tanto gostava.
Até 1998, a TV Jornal, retransmissora do SBT no Recife,
detinha os direitos de transmissão do Abril Pro Rock.
Em 1999, a Rede Globo percebeu o apelo nacional que
o evento possuía, e resolveu fazer uma cobertura em
rede. Como sempre deu mancada nessa área (música, e
principalmente música jovem), a Globo escalou a repórter-atriz Cissa Guimarães para cobrir o festival. Em
um sábado à tarde, durante a passagem de som, Cissa
entrou no ar ao vivo pelo Vídeo Show. Cannibal estava ao
seu lado. Assim que entrou no ar, a repórter começou
com a verborragia típica do programa da Rede Globo:
“Gente, eu estou aqui com Cannibal, dos Devotos do
Ódio! Será que ele morde? E aí, Cannibal, você morde?”
Nós faremos que você nunca esqueça
177
E um triunfante Cannibal saiu-se com essa: “Morder eu
não mordo, mas comer eu até posso.” Cannibal diz que,
até hoje, recebe os parabéns de muita gente na rua pelo
fora dado na global.
Cap.05
Homens fardados, eu não sei, não
Homens fardados, eu não sei, não
Em 1994, o Faces do Subúrbio embarcou em um ônibus
rumo a São Paulo com mais 11 bandas pernambucanas
para uma edição paulista do festival Rec-Beat. Do Faces
do Subúrbio, apenas Zé Brown, Tiger, Nilson e dois dançarinos foram para a capital paulista. No show, os Devotos
do Ódio faziam papel de banda de apoio. Depois do show
deles, um paulista do movimento hip-hop de São Paulo
fez questão de conhecer a banda recifense que fazia rap.
Era Rappin Hood, com quem o Faces do Subúrbio estreitaria relações mais tarde.
Com o sucesso da demo “Não somos marginais”, a banda
assinou contrato com a MZA para gravar o primeiro disco,
“Faces do subúrbio”, com distribuição da Polygram. O
álbum abria de cara com dois petardos, “Não somos marginais” e “Homens fardados”. Essa última trazia letra inspirada de Tiger, cujo refrão era:
Homens fardados, eu não sei, não
Se julgam os tais, os donos da razão
Homens fardados, eu não sei não
Insistem em fazer justiça
Com as suas próprias mãos
A banda foi convidada para fazer um show no Parque
de Exposições do Cordeiro, em um evento do governo
de Pernambuco chamado “Todos Com A Nota”. O Faces
180
181
do Subúrbio começou a tocar “Homens fardados”. O
público abriu uma roda de pogo. Assustada e desacostumada com aquilo, a polícia pensou que se tratava
de briga, e uns oitenta policiais partiram para cima do
público armados de cassetetes. O grupo parou de tocar
e, ao microfone, Zé Brown e Tiger perguntaram por que
a polícia estava batendo no público. Chegaram até a
explicar que aquilo ali não era briga, mas uma dança
comum nos shows de punk. Não houve acordo, e o show
foi encerrado na mesma hora. A verdade é que a polícia
não gostou nem um pouco do teor da letra. Após o show,
policiais invadiram o camarim e levaram Tiger, Zé Brown
e Garnizé para a delegacia. Cada um levou um tapa no
pescoço. Chris Couto, então repórter da MTV, estava
no show, assim como Marcelo Yuka, à época baterista
do Rappa, e tratou de espalhar a notícia via telefone. A
notícia logo circulou. Os rapazes foram liberados e, no
dia seguinte, um comandante da Polícia Militar dava
uma entrevista à Rede Globo, na primeira edição do NE
TV, dizendo que a banda era formada por arruaceiros,
que estavam incitando a violência e que tinham ultrapassado todos os limites da liberdade de expressão.
Como bem lembrou Zé Brown em entrevista ao autor:
“Desde quando liberdade de expressão tem limite?” O
caso repercutiu de forma muito negativa para o governo
do Estado. O governador na época, Miguel Arraes, tinha
um histórico de perseguição política, tendo ele próprio
sido destituído do poder na época do regime militar. Ele
tratou, então, de solicitar uma reunião com Tiger, Zé
Brown e Garnizé no Palácio das Princesas e convocou
a imprensa e, em público, pediu desculpas ao grupo. O
secretário de Cultura da época, o genial – porém xenófobo – escritor Ariano Suassuna, assistia a tudo calado,
ao lado do governador. Na edição noturna do NE TV, o
mesmo comandante da Polícia Militar aparecia em nova
182
Devotos 20 anos
Homens fardados, eu não sei, não
183
entrevista, mas com discurso diferente, dizendo que
houve “um pouco de abuso de autoridade por parte dos
policiais”. O caso foi tema de matéria no Fantástico. Uma
semana antes, os integrantes do Planet Hemp haviam
sido presos, acusados de apologia ao uso de maconha.
Tanta celeuma em torno da apresentação do Faces do
Subúrbio teve o desfecho que a banda esperava: os CDs
venderam como água, e desapareceram das lojas em
questão de dias. Foi aberto inquérito para apurar o caso.
Alguns policiais perderam o cargo.
Era assustador, mas, em 1997, ainda existiam resquícios da ditadura militar. O incidente serviu ao menos
para jogar luz na carreira do Faces do Subúrbio. O rap
embolada do grupo crescia no universo hip-hop do país.
E, algum tempo mais tarde, a banda ficaria internacionalmente conhecida pelo que realmente havia de importante em sua obra: a música.
Cap.06
Goticar1
1 Gíria criado pelo grupo: o ato de se masturbar no escuro.
Goticar
O Matalanamão, aos poucos, ia seguindo os passos dos
vizinhos Devotos do Ódio e Faces do Subúrbio. Geraldinho, um dos sócios da antiga casa de shows Mauristad,
criou um festival chamado PE no Rock, que, em suas
primeiras edições, era totalmente dedicado às bandas
pernambucanas. O Matalanamão fez uma bela apresentação na primeira edição do evento, em 1998, no Circo
Maluco Beleza. Descarados, colocaram uma menina de
calcinha e sutiã no palco para gemer enquanto a banda
tocava “Priminha”, aquela do “prepare-se para ver/eu
vou ter um orgasmo em homenagem a você”. Em um show
particularmente hilário numa das edições do PE no Rock,
Adilson Ronrona entrou no palco fantasiado de bombeiro, para, segundo ele, “apagar o fogo das meninas”.
Ailton Peste já trabalhava na Secretaria de Saúde do
Recife e, volta e meia, estava engajado em algum evento
beneficente. Passou a descobrir que o Matalanamão
era um excelente veículo para fazer campanha de alerta
para a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. Ronrona também se empenhava em fazer trabalhos
sociais no Alto José do Pinho. Não parecia, mas os meninos responsáveis por todo o escracho do Matalanamão
eram jovens cientes da responsabilidade que possuíam,
e engajados em mudar o quadro social – ou pelo menos
tentar – das periferias do Recife. Pena que os punks
mais radicais e as feministas não conhecessem essa
outra faceta da banda.
O grupo, enfim, conseguiu assinar contrato com uma gravadora, e lançou seu primeiro disco, homônimo, pelo selo
186
187
Candeeiro. A produção ficou a cargo de Pupilo, baterista
da Nação Zumbi. O álbum continha 14 faixas que falavam
de sexualidade em linguagem crua, por vezes, até chula,
mas sempre muito engraçada. Peste escrevia as letras
mais pesadas, enquanto cabia a Ronrona a parte mais
“romântica” do latifúndio do Matalanamão. E a banda fez
história ao ter o clipe de “Os peitinhos” censurado na programação da MTV. Gravado pelo pessoal da Rec, produtora do Recife, o clipe foi vetado muito mais em função
da letra do que das imagens, que mostravam Ronrona em
uma sala como professor dando aula para um grupo de
colegiais. O detalhe saboroso da história é que o vídeo
foi gravado no Colégio Santa Maria, também conhecido
como “colégio das freiras”.
Com o disco embaixo do braço, a banda bancou uma
turnê por conta própria até São Paulo. Alugou uma van
e, com R$ 4.500,00 no bolso foi se apresentar no festival SP Punk, que trazia 42 bandas do estilo em dois dias
de shows. Metade da banda ficou hospedada na casa de
Lirinha, vocalista do Cordel do Fogo Encantado. O jornalista Xico Sá tratou de arrumar abrigo para o restante
do grupo. Foram para fazer cinco shows e acabaram
fazendo sete. Tiveram até convite para tocar em Santos,
mas a grana havia acabado e foram obrigados a voltar
para Recife. Ironia das ironias, o Matalanamão, perseguido por punks radicais no Nordeste, havia sido aceito
de braços abertos em São Paulo, berço dos skinheads e
dos punks mais violentos do país.
Antes de voltar ao Recife, gravaram uma participação no
programa RG, veiculado pela TV Cultura e apresentado
por Soninha. Só que o programa não chegou a ir ao ar,
pois a apresentadora foi demitida após dar uma entrevista à revista Época em que admitia fumar maconha.
Cap.07
Me ajude a ser humano
Me
Cap.07
Me ajude a ser humano
Me ajude a ser humano
Devotos e Nação Zumbi uniram forças e criaram, em
1999, o projeto “Acorda Povo”. O evento tinha como
metas levar música de qualidade para a periferia da
cidade e oferecer oficinas de fotografia, quadrinhos e
demais modalidades. A empreitada teve apoio da prefeitura do Recife, e, em sua primeira edição, passou pelos
bairros da Bomba do Hemetério, IPSEP, Alto da Bondade
e Areias, entre outros. Durante a semana, eram realizadas as oficinas. Aos sábados, shows gratuitos de Devotos e Nação Zumbi, além de uma banda local do bairro.
Para a Nação, o “Acorda Povo” foi importante por vários
aspectos. Primeiro, porque a banda estava retomando a
carreira depois do impacto da perda de Chico Science.
Segundo, porque era a primeira vez que o grupo se apresentava nos subúrbios da capital pernambucana, coisa
que deixou os integrantes impressionados pela quantidade de gente e receptividade do público, que não
parava de pular e cantar durante todo o show. Certa vez,
em entrevista para a MTV, o baixista da Nação, Dengue,
afirmou que o melhor show da carreira da banda tinha
sido na Bomba do Hemetério. Que, em todo o mundo, ele
jamais havia visto nada parecido.
Para os Devotos, o “Acorda Povo” tinha um gosto especial. A banda voltava a tocar em todo o circuito que já
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havia percorrido ao longo da carreira, mas era a primeira
vez que se apresentava nesses locais com palco e som
de primeiro mundo, sem a estrutura precária do início
de sua jornada. Os fãs mais antigos chegavam a se emocionar nesses shows, pois foram testemunhas da barra
que os Devotos enfrentaram na primeira vez que fizeram
esse circuito. Muitos levavam seus filhos. Nascia, ali,
a segunda geração de fãs da banda. Sem contar com a
satisfação dos moradores dessas regiões, que, pela primeira vez na vida, testemunhavam um evento com excelente estrutura em seus bairros.
O sucesso foi tão grande que o “Acorda Povo” cresceu
e ganhou uma segunda edição no ano seguinte, agora
apoiado pelo governo do Estado. Participaram, além dos
Devotos e da Nação Zumbi, nomes como Mestre Ambrósio, Mundo Livre S/A, Otto e Eddie. Nesta edição, Devotos e Nação Zumbi tocavam em dias separados.
O “Acorda Povo” foi de vital importância para os Devotos,
porque ali conseguiram provar (inclusive para eles) que era
possível realizar shows de qualidade e com equipamento
técnico de ponta no subúrbio. O trio ainda tentou organizar
uma terceira edição do evento, que circularia pelas cidades do interior de Pernambuco, mas não conseguiu viabilizar o projeto.
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Me ajude a ser humano
Eu tenho a fome
de viver
O segundo disco do Devotos foi gravado em um clima bem
melhor do que o primeiro. Dado Villa-Lobos, ex-Legião
Urbana, abrigou o grupo em seu selo, o Rock It! Ele havia
visto o show do Devotos no Abril pro Rock de 1999, e ficou
impressionado com o som da banda. As gravações foram
no estúdio Rock IT!, de propriedade do guitarrista. Dado
acabou se tornando um dos grandes amigos dos Devotos.
Nesse período, Cannibal compôs aquela que ele considera
a sua obra-prima, Alien:
Eu vim aqui mesmo sem planos
Estou aqui não sei por que
Me ajude a ser humano
Não quero me perder
Não quero falar dos meus sonhos
Não quero pedir para viver
Me ajude a ser humano
Não quero me perder
Eu tenho o sono dos anjos
Eu tenho a fome de viver
Me ajude a ser humano
Não quero me perder
Não quero falar dos meus sonhos
Não quero pedir para viver
Me ajude a ser humano
Não quero me perder...
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A música contou com a participação do próprio Dado nos
vocais. A banda gravou também “O Herói” e “Nós faremos que você nunca esqueça”, ambas já conhecidas nos
shows. E o disco trazia uma surpresa: uma versão para
“Selvagem?”, do Paralamas do Sucesso, que contou com
a participação de Herbert Vianna nos vocais. Rás Bernardo, primeiro vocalista do Cidade negra, e Toni Platão
também cantam no álbum. Toda a arte gráfica do disco,
mais uma vez, foi feita por Neilton. A capa retrata uma
Nossa Senhora da Aparecida segurando um anjo branco
com um rabo de demônio. E Nossa Senhora da Conceição,
também com um anjo negro com um rabo de demônio. As
duas santas, no desenho do Neilton, aparecem velhas e
cansadas. A contracapa mostra uma santa grávida nua,
com a barriga com um certo movimento angustiante. Mas
o detalhe que mais impressiona é outro. O pai de Neilton
é analfabeto, e a mãe só tem a formação primária. Um
dia, o guitarrista pediu que o pai escrevesse o alfabeto
em um papel. Como sofre de mal de Parkinson, ele, com
muita dificuldade, desenhou um A. A mãe o ajudou com
o restante das letras. O resultado ficou bem diferente
do convencional, com um certo toque artístico. Neilton
aproveitou aquele material para criar uma nova fonte,
que batizou de “Fonte Devotos/Pai”, e a utilizou nos créditos das músicas do disco, na contracapa do álbum.
Àquela altura, Neilton não era conhecido apenas como
guitarrista do Devotos, mas também como artista plástico de talento.
Os Devotos foram convidados para tocar em Portugal, e
Paulo André colocou o trio em um avião rumo a Lisboa. A
banda se apresentaria num evento chamado Palco Sound
6, no Parque das Nações. Era a primeira vez que uma
banda do Alto José do Pinho tocava fora do país. Eles dividiram a noite com os portugueses do Trinta e Um, grupo
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que tem um público bem numeroso no circuito punk e
hardcore do país. O show foi ótimo, os discos dos Devotos
que estavam à venda no local se esgotaram, mas a experiência por lá não foi das melhores. Eles passaram uma
semana em Portugal sem ter o que fazer, sozinhos, sem
produtor. Chateados, perceberam a oportunidade que
estavam perdendo, pois em uma semana daria para agendar vários shows na Europa. Tiveram de voltar para casa
com apenas um show na bagagem. A relação dos Devotos
do Ódio com seu empresário Paulo André, também produtor do Abril Pro Rock, começou a ficar tensa. A banda decidiu não se apresentar mais no festival, alegando não ter
nada de novo para mostrar. Paulo André não entendeu a
recusa da banda em participar do Abril Pro Rock, pois era
o sonho de 99% das bandas brasileiras tocar no festival.
Para piorar as coisas, a banda decidiu suprimir o “do ódio”
do nome do grupo, ficando só Devotos. Alguns punks não
perdoaram, e viraram as costas definitivamente para a
banda, acusando-a de ser vendida e de ter se entregado
ao sistema. Mas já era a intenção deles mudar de nome
desde o lançamento do primeiro disco. Além de o grupo
ser barrado em um monte de programas por causa da
força do nome, o trio estava extremamente insatisfeito
pela confusão semântica causada pela interpretação do
significado de Devotos do Ódio. Muita gente achava que
a banda fazia a apologia à violência, o que deixava o trio
fulo da vida.
Me ajude a ser humano
Nasce um artista
As camisetas pintadas à mão foram ficando pequenas
para a arte de Neilton. Após fazer todas as ilustrações
dos dois primeiros discos dos Devotos e assinar o cenário dos shows, o guitarrista começou a mexer com outras
mídias. Neilton chegou a fazer um curso de artes gráficas
quando adolescente, mas achava-o insuficiente, e sentia que estava desatualizado. Ainda assim, juntou uma
grana e comprou um computador usado. Nele, fez todo
o projeto gráfico do segundo disco dos Devotos. Nunca
havia trabalhado com Corel ou qualquer outro programa de computador, e aprendeu tudo na marra, sozinho, “cutucando de madrugada”. Dessa forma, fez o site
dos Devotos. Neilton se beneficiava de duas coisas: da
curiosidade extrema que sempre possuiu e da preguiça
alheia. Como não tinha outra pessoa que fizesse, Neilton
fez a capa de todas as demos das bandas do Alto José do
Pinho, o que não era pouco, uma vez que o bairro chegou
a contabilizar 14 bandas trabalhando simultaneamente.
Passou a se interessar por animação, e mergulhou de
cabeça no assunto. Aos poucos, ia maturando sua carreira de artista plástico, que, mal sabia ele, havia começado aos 6 anos de idade, quando rabiscou os primeiros
desenhos do Spectreman que via na televisão.
200
201
Me ajude a ser humano
Carisma
“Alien” tocou, de forma tímida, em algumas rádios, e a
banda gravou um clipe para a música, tendo novamente
como cenário o Alto José do Pinho. Neilton sempre gostou de trocar ideias com pessoas ligadas ao trabalho com
vídeo e, nos bastidores da gravação do clipe de “Alien”,
perguntou para a equipe técnica qual era o melhor programa para trabalhar com animação. Já estava pensando,
na época, em montar o site dos Devotos.
No início de 2001, com o segundo disco recém-lançado, a
banda foi convidada para tocar no Rec-Beat, que, naquele
ano, contava com programação especial, tendo a banda
Mudhoney, um dos pilares do movimento grunge, como
atração principal. A rua da Moeda, no Centro Velho do
Recife, começava a ficar pequena para as proporções do
festival. Não bastasse tudo isso e, às vésperas do carnaval, a Polícia Militar ameaçou entrar em greve.
No primeiro dia do Rec-Beat, fechado pelo Ira!, a coisa já
havia sido problemática. A banda quase não conseguiu
tocar, pois vários skatistas invadiram o palco para fazer
manobras e dar moshs1. Na base da boa vontade (muita),
o Ira! levou o show até o fim. O policiamento, escasso,
mal dava conta do recado. A preocupação maior era com
1 Quando alguém mergulha do palco para a plateia. Muito comum em shows
de punk e de hardcore.
202
203
o dia seguinte: os Devotos fechariam a noite. Os punks
abarrotaram a rua da Moeda para conferir a apresentação dos Devotos. O Matalanamão tocaria antes, e a
banda se divertia já no camarim, com Adilson Ronrona
se fantasiando de colegial, com saia azul curtinha, blusinha branca e peruca loira. A banda subiu no palco,
começou a tocar e dois sujeitos invadiram o palco para
depois, pularem de lá. Aos poucos, uma multidão foi
subindo no palco, e a banda não conseguiu dar sequência
ao show. O pessoal do Matalanamão considerou aquela
invasão uma prova irrefutável de sucesso, e desceram
do palco felizes da vida, mesmo tento tocado apenas
duas músicas. Gutie, produtor do festival, temia pelo
pior. Tinha medo que aquilo terminasse em tragédia, que
alguém se machucasse seriamente ou até morresse. Foi
até o camarim dos Devotos e expôs seu medo à banda.
“Galera, vocês vão ter que subir lá e conter esse pessoal, senão a coisa vai ficar braba.” Gutie apostou todas
as fichas no carisma de Cannibal. A banda subiu no
palco. Como de costume, abriram o show com “Eu tenho
pressa” e, mal Cannibal terminou de berrar as três palavras, três sujeitos subiram ao palco para se jogarem na
multidão. A banda parou de tocar. Cannibal começa o
discurso, curto e grosso: “Rapaziada, é o seguinte: palco
é o espaço da banda. Quem quiser subir nele que trate de
montar a sua. O próximo que subir a gente para o show e
não volta mais.” Eu estava no palco naquela noite. Logo
depois de Cannibal ter falado isso, o roadie da banda
abriu um sorriso maroto e me disse: “Não sobe mais ninguém.” Dito e feito. A banda tocou por quase uma hora e
meia, e ninguém ousou subir no palco novamente. Era,
de fato, incrível o carisma que Cannibal possuía. Após
aquele ano, Gutie resolveu não contar mais com a sorte
ou com o carisma alheio e, desde então, contrata uma
empresa de segurança particular para garantir a integridade do público e dos artistas no festival.
p.08
Cap.08
Cap.08
íticas e críticas
Críticas e críticas
Críticas e críticas
Críticas e críticas
207
Meu Deus, me perdoe,
Mas contra sua vontade eu vou roubar
Já que ninguém quer me alimentar.
Minha cola acabou
E o respeito por mim também,
Nesse momento estou pedindo auxílio a alguém.
Com o incidente do show no Parque de Exposições, o primeiro disco do Faces do Subúrbio esgotou sua primeira
tiragem e a banda não tinha mais dinheiro para prensar
outra. Assim sendo, a mistura de pandeiro e rap do grupo
ganhou novo impulso, e o álbum teve boa circulação
também fora do universo hip-hop. E, de forma pioneira, o
Faces do Subúrbio trouxe a dupla de emboladores Caju e
Castanha para o rap. O Faces do Subúrbio foi ganhando
cancha, mergulhando fundo em pesquisas musicais, e
aprofundou ainda mais o diálogo entre o pandeiro sertanejo e as batidas americanas. Viria à luz, em 2000, Como
é triste de olhar, álbum que trazia o grupo no auge de sua
força criativa. Não à toa, o disco foi indicado ao Grammy
Latino de melhor disco de rap. A poesia do grupo também havia amadurecido. Vide versos como:
Como é triste de olhar
O sorriso de uma criança
Em um mundo sem esperança
Sem poder se alimentar.
Como é triste de olhar
A criança na cidade com a marginalidade
Comendo um pão por dia
Filho de José e Maria
Sem ter como estudar.
Aí começa a cheirar cola
E na sequência a roubar.
Inocentes, sobreviventes que não param de lutar.
206
Com o retrato de duas crianças no lixão da Muribeca1 na
capa, Como é triste de olhar é um disco-denúncia, tendo
como principais temas a exploração infantil e a violência
praticada contra menores.
Suas apresentações ao vivo continuavam destoando das
dos demais grupos de rap, pois eles mantinham firme
a proposta de tocar com banda, o que deixava exaltados os setores mais conservadores do hip-hop. Garnizé,
baterista do grupo e morador do município de Camaragibe, na região metropolitana do Recife, tinha sua vida
contada no filme “O rap do pequeno príncipe contra as
almas sebosas”, de Paulo Caldas e Marcelo Luna. O filme
traça um paralelo entre as vidas de Ganizé e de Helinho,
jovem justiceiro da cidade, que ganhou reputação por
exterminar bandidos. Recheado de imagens do Alto José
do Pinho, o filme mostra uma visita de Mano Brown, dos
Racionais Mc’s, ao bairro, além de trechos de shows do
Faces do Subúrbio.
Um dia, Zeca Baleiro, também contratado da MZA,
mesmo selo que abrigava o Faces do Subúrbio, quis
escutar a mistura de embolada com rap do grupo. Ele
estava compondo o material para seu disco Embolar, e
acabou gostando do que ouviu. Convidou então o grupo
para musicar uma letra sua, “Piercing”. O Faces não só
musicou como ainda acrescentou uma parte sua à letra
de Baleiro e participou da gravação da faixa.
1 Bairro extremamente pobre da periferia do Recife, que abriga um dos depósitos de lixo da cidade.
Cap.09
Cap.09
Coletânea
Coletânea
Coletânea
211
A tônica do álbum é o rock nacional dos anos 1980. Bebem
dessa fonte B.U., com “Existirá” e “Nada importa” e A
Ostenta, com “A relva seca” e “Outro herói”, e Atitaia,
com “Verdades e mentiras” e “Ao acaso”. O tiro no alvo
acabou sendo mesmo com o escracho punk masturbatório do Matalanamão, presente com “Os peitinhos” e
“Amorzinho”. A coletânea ganhou uma versão ao vivo,
em evento que será comentado aqui mais adiante.
Em 1999, o pessoal do Alto José do Pinho teve a ideia
de gravar uma coletânea com as bandas do bairro.
Com apoio da prefeitura do Recife e lançado por meio
de lei de incentivo à cultura, chegava às lojas, no início de 2000, o disco “Alto Falante”, com as bandas B.U.,
Nanica Papaya, A Ostenta, Matalanamão, Ataque Suicida e Atitaia. Cada banda entrou com duas músicas.
As ilustrações do disco, mais uma vez, foram feitas
por Neilton. A capa trazia um alto-falante desenhado
sobre fundo branco. Dentro do álbum, uma foto com
vista aérea do Alto José do Pinho. No encarte, fotos 3x4
dos integrantes de todas as bandas. Generosa, a coletânea não trazia apenas grupos do Alto José do Pinho.
A Ostenta, como já foi falado antes, era de Beberibe e
tinha sido adotada pelo pessoal do morro desde o início
do movimento. Já a Ataque Suicida é uma importante
banda punk do bairro de Peixinhos que, assim como as
demais colegas de coletânea, ainda não havia chegado
ao primeiro disco. A Atitaia, que faz um pop com enfoque
no rock nacional dos anos 1980, também é de Peixinhos.
Era a estreia também do Matalanamão, que, na época,
ainda não havia gravado o primeiro disco, embora uma
faixa deles, “Mim dai”, tivesse ido parar em uma coletânea picareta de FM intitulada Rock da cidade. “Alto
falante” ainda trazia bônus com faixas dos Devotos (“Mas
eu insisto” e “Pertencer”) e do Faces do Subúrbio (“Acostumados com a violência” e “Os tais”).
210
Coletânea
Preconceito
Em 2002, os Devotos foram convidados para tocar em
São Paulo, dentro da programação do Da Tribo Festival,
evento que reuniria, em três noites, bandas de metal e de
punk de todo o país. A primeira noite seria fechada pelos
Ratos de Porão. A segunda, pelo Krisiun, e a terceira pelos
Devotos. O trio, acompanhado de Wally e Rildo (roadie e
técnico de som da banda), ficou hospedado na casa do
produtor do festival, na Voluntários da Pátria, área nobre
da capital paulista. O terreno ficava em frente à um dos
colégios mais caros de São Paulo, e uma de suas partes
era formada por um casarão abandonado com uma placa
escrita “vende-se” na frente. Os meninos passavam horas
tomando banho de sol nesse lugar. Um dia, dois policiais
e uma delegada invadiram o local, de armas em punho,
e mandaram os meninos encostarem na parede e colocar as mãos na cabeça. Lá fora, todo um aparato policial
aguardava o desdobrar dos acontecimentos. O lugar havia
sido confundido com cativeiro, e a banda, com sequestradores. Alguém do colégio, desconfiado com a presença
de roqueiros cabeludos e de cabeça raspada circulando
na área, denunciou os rapazes. Demorou um pouco até
o equívoco ser esclarecido. E a delegada ainda perguntou para Celo se ele queria dar um pulinho na delegacia
para ver quantos, com a mesma cara dele, estavam presos. Era um recado pouco sutil que queria dizer: corte o
cabelo e tire a barba. Infelizmente, roqueiro brasileiro,
para a polícia, tem cara de bandido.
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Cap.10
Faz parte do cotidiano
Cap.10
Faz parte do cotidiano
217
diabinho aparece de joelhos, com expressão de súplica,
rezando. Machado de Assis surge em um impressionante
retrato feito por Neilton, e divide a página do encarte com
um desenho do terminal do Alto José do Pinho. Cartunistas da revista Ragu, João Lin, Samuca, Mascaro e Fravão
também contribuíram com ilustrações, assim como os
novos artistas Izaby e João Luiz.
Depois de serem mal trabalhados na BMG e de lançarem um disco pelo selo de Dado Villa-Lobos, os Devotos decidiram abraçar de vez a carreira independente.
A partir dali, produziriam seus discos e terceirizariam a
distribuição. Assim fizeram com A hora da batalha, disco
lançado em 2003 e gravado no estúdio caseiro de Cannibal. Os Devotos haviam firmado, com Nilton Pereira e
sua equipe, uma parceria com o pessoal da TV Viva, de
Olinda, que foi responsável por alguns clipes dos Devotos, como “O Herói” e “Roda Punk”, entre outros. A produção gráfica, mais uma vez, foi assinada por Neilton,
e era a mais caprichada de todas até o momento. Neilton já flertava seriamente com as artes plásticas, e o
projeto gráfico foi uma espécie de ensaio para sua primeira exposição, realizada no ano seguinte. A capa de
“A hora da batalha” é um mosaico de imagens, com destaque para um olho enfurecido no canto esquerdo superior, uma negra carregando o filho pequeno nas costas no
lado esquerdo e o D dos Devotos ao centro. O encarte é
caprichado, com cada música sendo representada por
um desenho. Alguns são bastante pesados, como o de
“Se eu falar posso morrer”, cuja ilustração são vários
homens que parecem arrancar seus rostos como se
fossem máscaras. Em “Dá um sentido para a vida”, um
216
Musicalmente, o disco traz uma crueza que os dois primeiros não foram capazes de reproduzir. Abre com “Roda
Punk”, uma ode às rodas de pogo, tão comuns nos shows
da banda. Em seguida, “Brincando de Deus”, um petardo
ensurdecedor sobre as motivações do ataque de 11 de
setembro. Vem, então, o desabafo de “Nosso ninho”:
Moramos, não esqueça
Esse é o nosso ninho
Quem nunca ouviu falar
No Alto José do Pinho?
Subúrbio de Recife
Zona Norte, urubu
Se for discriminar
Vá tomar no cu!
A surpresa consistia justamente em uma música chamada “Assis”, em homenagem ao escritor negro Machado
de Assis. A faixa-título vem com participação especial de
Lula Côrtes no vocal, em que ele declara, junto com Cannibal: “Não queremos uma guerra armada/Mas, como já
dissemos, estamos preparados.” Outra participação é de
uma velha amiga de Cannibal, a cantora baiana Pitty, que,
na época em que o álbum foi lançado, ainda batalhava por
seu quinhão de espaço na indústria da música e estava
longe de ser a estrela que é hoje. Ela divide os vocais com
Cannibal em “Faz parte do cotidiano”, música resgatada
da fita demo “Vida de ferreiro”. João Gordo, via telefone,
berra em “Votou errado”. E tinha mais desabafo, dessa
218
Devotos 20 anos
vez, ainda menos sutil, com “Só os que não pensam têm a
consciência limpa”:
Vão tomar no cu
Vão se fuder
Vão tomar no cu
Filhos da puta que estão no poder
E, coisa inédita, o álbum termina com um reggaezinho, “Pra aliviar”. À época, escrevi na revista Zero que
“com 15 anos de estrada, sem gravadora, sem produtor,
fazendo o que dá na telha, Celo Brown (bateria), Cannibal (baixo e vocal) e Neilton (guitarra) encontraram o
mapa da mina. Definitivamente, eles não precisam de
produtores1”. Na mesma edição, Cannibal me explicava
como a banda procederia dali em diante. “Tivemos que
aprender muito. Procurar um selo, mixar. A gente nunca
tinha feito isso. Queremos fazer os discos e oferecer às
gravadoras. Jamais ceder os direitos para as gravadoras2.” “Hora da Batalha” ganhou, ao lado do Sepultura,
que lançava “Roorback”, capa do Caderno 2 do jornal
carioca O Globo, cuja manchete dizia que “O Brasil é o
país do barulho.”
A partir desse disco, os Devotos seriam responsáveis por
todas as etapas da linha de produção: da composição das
músicas, passando pela mixagem e gravação, projeto
gráfico, até a distribuição. A banda prensou 1.500 cópias
do disco e distribuiu pessoalmente em algumas lojas,
até fechar contrato com uma empresa que bancasse a
distribuição. O álbum foi todo produzido com grana própria, a quarta parte que eles separavam do dinheiro que
ganhavam com os cachês dos shows e guardavam no
banco. Como me explicou Cannibal, “a grana que a gente
pegou a gente sempre dividiu por quatro, porque a gente
1 Texto publicado na revista Zero, número 10.
2 Idem.
Faz parte do cotidiano
219
sabia que um dia precisaria dessa grana extra para os
instrumentos, pra gravar. É com essa grana que a gente
guarda só pra banda que a gente consegue fazer as coisas3”. “A Hora da Batalha” foi resultado de um investimento da banda em si mesma, pois as coisas ficaram
complicadas depois que optaram por não lançar mais
discos por gravadora.
3 Entrevista feita e publicada pelo autor para o site Recife Rock! (http://www.
reciferock.com.br/2008/01/27/entrevista-devotos-20-anos).
220
Faz parte do cotidiano
221
Cap.11
Faces na França
Faces na França
Se o pai de Tiger só acreditou que o filho ia tocar em São
Paulo depois que viu o rapper na televisão, a coisa não
foi muito diferente quando ele anunciou que o Faces do
Subúrbio tocaria na França. Tiger mais uma vez precisou
da ajuda da televisão para provar ao pai que não estava
de brincadeira. O pai só acreditou quando, novamente,
a Rede Globo exibiu uma matéria sobre o filho, desta
vez mostrando Tiger deitado debaixo da Torre Eiffel. A
banda foi uma das atrações do Ano do Brasil na França,
em 2005, e tocou em Paris, em um teatro com capacidade para 300 pessoas, com lotação esgotada nos dois
dias em que se apresentou. “É outro mundo, você fica
de cabeça inchada, até mesmo por conta do fuso horário1”, conta Tiger. “As pessoas são educadas. Você sente
a diferença. Você não vê ninguém jogando papel na rua.
É outro mundo2.” Além das apresentações no pequeno
teatro, a banda fez uma participação no palco principal
no show de DJ Dolores.
Na volta da França, as coisas começaram a degringolar.
Garnizé já havia deixado a banda para fixar residência no
Rio de Janeiro, onde assumiu as baquetas do F.U.R.T.O.,
novo grupo de Marcelo Yuka, ex-O Rappa. Em seu lugar,
1 Entrevista ao autor.
2 Idem.
224
225
foi chamado Perna, baterista do Armas da Verdade, grupo
de hardcore da nova geração do Alto José do Pinho. O
grupo entrou em estúdio para gravar “Perito em rima”,
disco que foi lançado via Lei de Incentivo à Cultura e que
teve uma circulação bem modesta. Para piorar, a banda
começou a ser vítima de calotes de empresários. Fazia
shows e não recebia o cachê. O pior de tudo aconteceu em
São Paulo, quando um produtor carioca os abandonou em
plena turnê, deixando a banda de bolso vazio. Precisaram
voltar de São Paulo até o Recife de ônibus, literalmente
passando fome. “Voltamos de São Paulo para cá de ônibus sem comer nada, três dias de fome.” No Recife, o
circuito de shows foi ficando cada vez menor. Os problemas acarretaram muita discussão entre os integrantes,
e Tiger achou melhor dar um tempo do Faces do Subúrbio
para não perder os amigos de infância.
Hoje a banda está parada. Zé Brown se aprofundou nos
estudos da embolada, chegando até a fazer pesquisa de
campo na Zona da Mata do Estado. As pesquisas culminaram com o lançamento de seu primeiro disco solo,
“Repente rap rapente”, produzido por Skowa, figurachave da música black nacional e ex-líder do grupo Skowa
& a Máfia.
Tiger também partiu para a carreira solo, e está em
estúdio gravando Poder simbólico, seu primeiro disco
solo. Tanto ele quanto Zé Brown afirmam que o Faces do
Subúrbio não acabou, que a banda apenas está dando
um tempo para voltar em breve com nova formação.
Cap.12
Quem é o pai?
Cap.12
Quem é o pai?
Quem é o pai?
Após um intervalo em que alguns integrantes mergulharam de cabeça em projetos sociais, o Matalanamão
voltou à ativa com o segundo disco, o igualmente escrachado “Quem é o pai?”, lançado em 2005. A produção do
disco gerou um certo desconforto. Percebendo que a
banda estava sem perspectiva, Neilton resolveu bancar,
de forma independente, a produção do álbum. Celo trabalhou como co-produtor. Peste, em silêncio, inscreveu
um projeto para o disco ser financiado através de Lei de
Incentivo à Cultura, o que acabou acontecendo. Neilton
ficou extremamente chateado com a situação, por não
ter sido informado sobre o projeto, e decidiu se afastar.
Passou, desde então, a acompanhar de longe a carreira
do Matalanamão. “Quem é o pai?” traz várias composições antigas, da época em que Celo ainda fazia parte da
banda. É o caso de “Os 3 tabacos”, “Aeromoças”, “Love”,
e “Goticar”. Esta última deixa claro que o lirismo do
Matalanamão sempre foi o mesmo, desde os tempos de
Celo. Eis o refrão:
Cabaço vai
Cabaço vem
É tanto cabaço
E eu sem ninguém
A novidade em “Quem é o pai?” é a tentativa do grupo em
expandir seus temas para além da masturbação, como
em “Bomba”, composição de Jaiminho e de Peste, que
228
229
aborda a indústria da guerra. O projeto gráfico, coisa
rara, não foi assinado por Neilton, mas por Adriano Leão,
que já havia sido guitarrista do Matalanamão. Adriano
também é autor de várias músicas da banda, entre elas
“Mim Dai”, composta por ele, Celo e Marcelo Massacre, e
que aparece creditada erroneamente no primeiro álbum
como sendo de Peste e Jaiminho. A capa, toda rosa, traz
a ilustração de uma mulher cochichando no ouvido da
outra, com o título “Quem é o pai?” acima do desenho e
o nome da banda embaixo dele. A faixa-título é um punk
direto com letra de Peste:
Ela deu sem querer
Para o cara que sumiu
A gravidez que chegou
A família que sentiu
Quinze anos perdidos
Dois corações partidos
O filho vem de mão e vai
Minha filha...
Quem é o pai?
Apesar da boa faixa-título, o álbum é nitidamente inferior ao primeiro, e teve repercussão bem modesta no circuito roqueiro do Recife. A banda ainda chegou a fazer
um bom show de lançamento no festival Pré-Amp, na rua
da Moeda, onde, literalmente, lançou o disco, jogando
cópias de “Quem é o pai?” para a plateia. Ironia máxima
no caso do Matalanamão, seus integrantes não achavam mais espaço em suas agendas para divulgar o disco.
Todos trabalhavam em ONGs, e chegava a ser engraçado
pensar na dicotomia da situação: uma banda que faz a
apologia da masturbação e tem em “Os peitinhos” um
de seus hinos, não consegue levar sua carreira adiante
por conta de trabalhos sociais desenvolvidos por seus
membros. Aqueles mesmos que, no início de tudo, eram
apontados como vagabundos e maconheiros sem futuro.
230
Devotos 20 anos
Quem é o pai?
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Cap.13
Luta pacifista
Luta pacifista
235
shows. Saudosismo à parte, fazia tempo que eles não conseguiam reunir um grupo de músicas tão poderosas em um mesmo
álbum. A temática (quase mono) permanece a mesma: letras de
cunho social, abordando política, desigualdade social, conscientização etc. Musicalmente é que a história muda um pouco
de figura. Pois não é que o trio conseguiu ir além dos três acordes
viscerais do punk rock? Para ouvidos mais atentos, Cannibal,
Celo e, principalmente, Neilton, derramam camadas discretas
de jazz, rockabilly e até MPB. A levada de guitarra de “Canção
para mudar” é uma pista da diversidade de influências da banda.
Parece remeter à surf music. “Sociedade alternativa” poderia
Sem gravadora e sem grana para bancar outro álbum
independente, os Devotos inscreveram um projeto para
lançar seu quarto disco pela Lei de Incentivo à Cultura.
Assim sendo, com o patrocínio da Chesf1, foi lançado, em
2006, “Flores com espinhos para o rei”, trabalho mais
maduro do trio. O título logo foi associado a um recado
para o presidente Lula, então envolto nos escândalos
do mensalão, mas Cannibal tratou logo de desmentir
o rumor. Depois de escrever as 15 canções do álbum, o
baixista percebeu que muitas delas falavam em flores. À
época do lançamento do disco, escrevi o seguinte texto:
Devotos expande seu som para novas direções
2
entrar em qualquer disco de rap. Em “Luta pacifista”, entram em
cena os Devotos dos tempos de “Vida de ferreiro”, só que dialogando discretamente com o metal. Enfim, é música para pogar e
bater cabeça. “Rádio comunitária pra informar” mostra a criatividade de Neilton, que mesmo nas limitações dos três acordes consegue injetar influências de outros gêneros. “Espírito
guerreiro” é de um balanço inédito na carreira da banda, sem,
contudo, abrir mão do peso. Mas a melhor notícia de todas é a
seguinte: Cannibal permanece indignado. Enquanto ele estiver
gritando inconformado, tudo estará em paz para os Devotos. Até
música para as rádios o disco tem (caso elas tocassem rock). E
“Por isso não tente calar meu grito” flerta com, veja só, o samba!
O álbum só não leva cotação máxima porque Cannibal, definitivamente, não nasceu para cantar reggae, como tenta fazer em
“Danças das almas“, música que conta com a participação alu-
Breve passeio pela discografia dos Devotos: Agora tá valendo,
cinada de Lirinha. Mas, quando ele berra, na abertura do disco,
álbum de estreia da banda, contém o melhor repertório do grupo,
“brincando do jeito que dá/bala perdida não me acha/vida longa
embalado naquela que é a pior gravação dele em estúdio. Devo-
à Polícia Militar/que quando sobe é só desgraça”, a gente até
tos, o segundo, empata a coisa: repertório apenas regular para
esquece tal tropeço.
gravação idem. Já A hora da batalha possui um registro perfeito
para um grupo de canções apenas regular. Flores com espinhos
para o rei deixa algumas questões flutuando no ar: por que a
banda não regrava seu clássico álbum de estreia? Se, ao vivo,
os Devotos sempre foram inquestionáveis, seus discos sempre pecaram por não reproduzir em estúdio a mesma fúria dos
1 Companhia Hidro Elétrica do São Francisco.
2 Texto publicado pelo autor no site Recife Rock! (http://www.reciferock.com.
br/2007/01/11/resenha-devotos-flores-com-espinhos-para-o-rei)
234
A produção gráfica, mais uma vez, é assinada por Neilton, que,
definitivamente, assumiu suas influências como artista plástico. A capa, branca, traz o desenho de um monstro, com uma
abertura redonda no espaço do olho. O CD vem com 12 desenhos
circulares no mesmo formato da abertura da capa, e cabe ao
ouvinte decidir que forma dar ao disco. O olho do monstro tanto
pode ser estampado com a bandeira do Brasil como pela figura
de Cristo na cruz ou de uma das torres gêmeas em chamas. Os
236
Devotos 20 anos
desenhos do encarte ficaram ainda mais pesados que os de A
hora da batalha. Fissurado, na época, com sua exposição onde
expunha telas gigantes, o encarte trazia apenas três grandes
desenhos. O primeiro mostra um grupo de crianças rabiscando
o chão. O segundo traz a imagem de três mulheres negras,
enquanto o terceiro, o mais chocante deles, mostra uma multidão enfurecida de trabalhadores erguendo suas foices como se
fossem armas.
O álbum permitiu algumas viagens ao trio. Em Natal, com o disco
recém-lançado, a banda tocou na segunda edição do Festival
DoSol. Assim como no Recife, o carisma do grupo impressiona
bastante, e a roda de pogo, que costuma ser gigante no Recife,
não se mostrou diferente na capital potiguar. Sobre a popularidade da banda, Gutie chegou a comentar que “Devotos são
muito queridos. São impressionantemente queridos. Uma vez eu
estava em Brasília em um festival circulando com Cannibal e eu
fiquei surpreso com isso, com o assédio da molecada com Cannibal. O punk rock tem isso”.
O disco rendeu o videoclipe de “Tudo faz sentido”, que intercala
imagens do Alto José do Pinho com cenas gravadas no cemitério
de Santo Amaro. “Tudo faz sentido” foi parar também na trilha
sonora do filme Baixio das bestas, de Cláudio Assis. Nos shows,
a banda passou a incluir no repertório “Brincando do jeito que
dá”, “Canção para mudar”, “Sociedade alternativa”, Luta pacifista” e “Tudo faz sentido”.
237
Cap.01
A arte de Neilton
238
Cap.01
A arte de Neilton
A arte de Neilton
Caso Neilton não tivesse descoberto Elvis Presley nos filmes da TV, certamente ele teria abraçado
as artes plásticas como profissão. Porque o menino
que começou copiando o Spectremam que via na televisão não parou mais de mexer com desenho desde
então. Fã de quadrinhos, Neilton credita aos gibis
boa parte de sua influência como artista. Autodidata,
Neilton tem, em Santos Dumont, seu ídolo máximo.
“O suprassumo da invenção pra mim é Santos Dumont.
Ele não era porra nenhuma e entrou pra História.”
Neilton é o típico caso de autodidata. Aprendeu tudo
na marra, sozinho, sem a ajuda de ninguém. Dos desenhos da infância, passou a pintar camisetas à mão, e era
com o dinheiro delas que sustentava seu sonho de ser
músico. Logo passou a fazer camisetas encomendadas,
copiando os modelos dos anúncios de lojas de discos
que via nas revistas de música. Sem perceber, a linha de
produção aumentava cada vez mais, e servia como capacitação para o passo maior que daria adiante. “As demos
da Armas da Verdade, Terceiro Mundo, foram feitas todas
lá em casa, com capa e tudo. Comecei a fazer porque não
tinha quem fizesse, e quem fazia cobrava caro. Só que
ninguém quis aprender a produzir.” Essa é uma queixa
comum de Neilton. Ninguém do movimento das bandas
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do Alto José do Pinho se interessou em aprender os ofícios que ele praticava com tanto carinho. E ele credita
isso à boa dose de comodismo e até de preguiça de seus
companheiros de movimento. Modesto, não aceita que
seja um privilegiado com o dom para o desenho, a música
e as artes plásticas. Como aprendeu tudo sozinho, acha
que qualquer um consegue. Cheguei a sugerir, em uma
entrevista, que eu jamais seria capaz de aprender o que
ele aprendeu, pois não sou dotado do mesmo talento que
ele. A teoria foi desmentida na hora por Neilton, que, de
fato, acredita que qualquer um é capaz de produzir como
ele. Mistura de ingenuidade com modéstia, a verdade é
que poucos, pouquíssimos mesmo, são capazes de fazer
tudo que Neilton faz, e sempre com competência, talento
e zelo de encher os olhos.
Quando começou a perceber que desenhava com facilidade as camisetas que via nos anúncios das revistas,
Neilton decidiu fazer uma série temática para expor no
mercado pop do Abril Pro Rock em 1996. Montou uma
série de camisas com o tema “heróis e vilões dos quadrinhos”, e era impressionante como as cores e os detalhes saltavam aos olhos. Ainda mais impressionante era o
modo de produção seguido pelo guitarrista, que fez uma
camisa por dia durante todo o mês de março daquele ano.
“Fazia uma camisa por dia, na maior correria, pois também tinha as coisas dos Devotos para cuidar.” O resultado
não poderia ser mais gratificante para o artista: vendeu
todas as camisetas que expôs. No ano seguinte, repetiu a
exposição, desta vez com o tema “insetos e aracnídeos”.
Mais uma vez, vendeu tudo. No mesmo ano, fez uma série
de aquarelas para as ilustrações do encarte de “Agora Tá
Valendo”. Para surpresa de Neilton, todo mundo que via
o material ficava embasbacado, e pedia que o artista
colocasse preço na obra. Acabou vendendo todos os
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A arte de Neilton
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Devotos 20 anos
A arte de Neilton
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Devotos 20 anos
desenhos. Em 1998, fez mais uma série de camisas para
expor no Mercado Pop do Abril Pro Rock, agora tendo
como tema “répteis e anfíbios”. Todo mundo passou a
dizer que Neilton era um artista plástico talentoso, que
precisava expor seu trabalho, pois seria um sucesso.
Mas Neilton, em atitude tipicamente punk, queria apenas continuar pintando suas camisetas. “Eu tinha uma
demanda da porra por camiseta nos anos 1990. Paguei
minhas contas todas fazendo camiseta. Até que me disseram para eu passar pra quadro.” E conta uma história
em que acaba mostrando certo descaso com a própria
obra, típico dos gênios. “Chico Accioly, um produtor que
trabalhava com Chico Buarque e com Gal Costa me levou
para uma galeria em Boa Viagem e me apresentou a uma
curadora. Fiz, mandei, gostaram, mas eu não tava nem
aí. Queria pintar camiseta.”
De tanto insistirem, Neilton resolveu ver qual era. E
se descobriu artista. Passou a fazer telas enormes de
Eucatex, pintadas em acrílico e pastel óleo. Suas telas
mediam incríveis 120x80cm, e muitos de seus desenhos
pareciam vivos. É o caso do quadro em que retrata uma
senhora negra que viu no bairro da Linha do Tiro, e que
foi comprado por Gutie. Intitulado “Na Linha do Tiro”, o
quadro fez parte da primeira exposição de Neilton como
artista plástico, a Imagens puras. Polivalente, fez de
tudo na exposição. “Eu fiz a iluminação, fiz o projeto gráfico da exposição, pintei os quadros, troquei as luzes dos
postes e a parte elétrica do casarão, que estava abandonado. O produtor que estava me ajudando tinha um
amigo que ia emprestar duas lâmpadas de poste para
iluminar o banner. Aí o cara chegou: ‘cadê o artista?’. E eu
do lado dele, todo sujo. Ele pensava que eu era o peão que
estava fazendo as obras lá”, conta, divertido, o Leonardo
da Vinci do movimento punk do Alto José do Pinho.
A arte de Neilton
247
Aos poucos, o nome de Neilton foi circulando no mundo
das artes plásticas, o que gerou ciumeira entre os artistas. “Os artistas plásticos se incomodam por eu ser
músico e invadir a área deles. E eu acho massa não ser
aceito, porque estou fazendo meu trabalho sem ajuda
de ninguém.”
No ano seguinte ao da exposição Imagens puras, Neilton
foi convidado pela MTV para fazer o projeto gráfico do
DVD “MTV Apresenta Cordel do Fogo Encantado”. Gutie,
que além de produzir o Rec-Beat, também é empresário
do Cordel, aproveitou para chamar Neilton para produzir o site do Cordel do Fogo Encantado. Os convites não
pararam mais. Foi um dos ilustradores do livro “Detritos cósmicos”, de Fábio Massari. E passou a ser convidado para uma série de debates, mesas-redondas e
palestras sobre artes plásticas. E, para irritação maior
dos artistas, foi chamado para ser curador de exposições. “E agora, que fui convidado para ser curador, tem
artista virando bicho.”
A arte de Neilton
Amp
Uma vez, Gil Vicente, artista de quem Neilton é muito
fã e que escreveu o texto crítico do catálogo da exposição “Imagens Puras”, disse para Neilton se concentrar em uma atividade só. Que ele jamais conseguiria se
dedicar totalmente à música, à pintura e à eletrônica ao
mesmo tempo. Aquela declaração deixou Neilton bastante deprimido. “Eu fiquei mal, cheguei em casa, fiquei
deprê. Aí pensei:
‘Gil, vou continuar fazendo tudo ao mesmo tempo, como
sempre fiz.’ E ele: ‘você vai acabar como pato: não nada
direito, não anda direito, não voa direito...’” Fato é que o
“pato” Neilton fundou o Altovolts, um grupo de pesquisas de tecnologias mortas, onde ele restaura, desenha
e constrói amplificadores de áudio à válvula. Ninguém
melhor do que ele, que fabricou a própria guitarra, para
trabalhar com tecnologias obsoletas. Atualmente, Neilton fabrica, ao lado dos amigos Gilson Gerrard e Adriano
Leão, amplificadores sob encomenda. Entre seus clientes estão nomes como Dado Villa-Lobos, Siba Veloso,
Fred Andrade, e Gabriel Melo, da Academia da Berlinda.
Fora, claro, os Devotos, que também utilizam os amplificadores da Altovolts. Neilton passa os dias enfurnado
em sua casa de dois andares no bairro da Bomba do
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Hemetério, que chama carinhosamente de castelo de
Grayskull, em alusão ao castelo do desenho animado
He-Man. No andar de cima, dedica-se aos trabalhos de
produção gráfica e desenvolvimento de sites. Embaixo
fica a oficina onde produz os Amps, que, como gosta de
dizer, “falam alto”. Quando o assunto é tecnologia, o discurso de Neilton é extremamente coerente:
“Nós ainda somos bem atrasados em termos de mentalidade de mídia. A gente fica muito bitolado com as
novas tecnologias. A gente paga o desenvolvimento de
uma nova tecnologia. E nem usufrui o suficiente daquela
tecnologia que está em desenvolvimento pra partir pra
ser ainda mais moderno. A gente, na verdade, precisa
reaprender a reutilizar as coisas que ainda têm uma vida
útil muito grande. Mesmo que a gente não enxergue1.”
Se pensar direitinho, foi este raciocínio que o levou a
fabricar sua guitarra. E o mesmo utilizado por seu irmão
Nilson na fabricação de sua primeira pickup no Faces do
Subúrbio. Tem uma piada que virou rotineira no Alto José
do Pinho. Uma vez perguntei ao Cannibal o que Neilton
estava fazendo no momento, em que tipo de projeto ele
estava envolvido. O baixista me olhou com um sorriso
matreiro e respondeu: “Neilton? Está fazendo o céu, a
terra, os homens, as árvores...”
1 Entrevista concedida ao autor e publicada no site Recife Rock! (http://www.
reciferock.com.br/2008/01/27/entrevista-devotos-20-anos).
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Cap.02
A fundação da ONG
A fundação da ONG
As bandas do Alto José do Pinho sempre desenvolveram
um trabalho social, ainda que, em um primeiro momento,
de forma inconsciente. Seja nos shows filantrópicos
para arrecadar alimentos para entidades carentes ou
nos eventos pontuais, como o Rockriança e o Natal nas
Alturas, a preocupação dos integrantes desses grupos
sempre foi a de mudar a realidade que os cercava. Ou,
pelo menos, tentar mudar. De forma que a criação da
ONG Alto Falante foi apenas uma maneira de oficializar
uma série de trabalhos que já vinham desenvolvendo.
Zé Brown, por exemplo, desde 1996, mantém um projeto
chamado Zé Brown Apresenta Talentos. Pegou o Clube
Bolinho, que serviu de palco para os primeiros shows do
movimento rock do Alto José do Pinho, e começou a dar
aulas de break para os meninos do bairro. No primeiro
dia, apareceram 15 garotos. No segundo, vinte. No terceiro, a divulgação na base do boca a boca dos meninos
foi intensa e nada menos que sessenta guris apareceram na oficina. Hoje o projeto cresceu e tem o apoio do
Funcultura. Eu presenciei um dia de aula no Bonsucesso
Futebol Clube, onde vários garotos, todos na faixa entre
8 e 10 anos, aprendiam passos de break com um dançarino profissional.
O fato é que lá atrás, no início dos anos 1990, essa turma,
que era apontada por seus vizinhos como um “bando de
maconheiros desocupados”, já se preocupava com o
futuro de sua comunidade.
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Assim sendo, em 2002, Cannibal, Neilton, Celo, Tiger, Zé
Brown, Adilson Ronrona, Ailton Peste, Marcelo Massacre, com a ajuda da ONG Fase, arregaçaram as mangas e
decidiram criar sua própria ONG. Nascia a Alto Falante.
A intenção principal, no primeiro momento, era montar uma rádio comunitária, que tocasse as músicas das
bandas do Alto José do Pinho, já que as rádios tradicionais, envolvidas nos esquemas do jabá, não tocavam.
Por meio da Fase, fizeram uma ponte com a ONG alemã
DED, que forneceu os equipamentos para a construção
da rádio. Lee, primo de Celo e dono do estúdio onde as
bandas do Alto José do Pinho tocavam no início da carreira, construiu as caixinhas que ficariam penduradas
nos postes. Com sua sede estabelecida nos fundos do
corredor do mercado público do bairro, ao lado de bares
e de um açougue, a Rádio Alto Falante funciona em um
espaço mínimo, em um cubículo onde mal cabem três
pessoas. Mas o “estrago” que ela provocou na comunidade é inversamente proporcional ao seu tamanho. Com
caixinhas colocadas nos postes das ruas do Alto José do
Pinho, a rádio funciona de segunda a sábado, das oito
da manhã às sete da noite, com uma programação que
privilegia a prestação de serviços e a qualidade musical. “Nossa principal preocupação é levar informação e
música de qualidade para a comunidade”, explica Ronrona, diretor-geral da rádio. Cada programa dura uma
hora, e é apresentado por voluntários. “Ninguém que
trabalha na rádio é radialista. São pessoas que querem
aprender a trabalhar com rádio e gostam de música”, diz
Ronrona. Vários profissionais que, hoje, estão no mercado de rádio, começaram na rádio Alto Falante, o que é
motivo de orgulho para seus idealizadores.
Uma das principais bandeiras da Rádio Alto Falante é
levar informação e prestação de serviços aos moradores. Nela são anunciadas, por exemplo, campanhas de
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A fundação da ONG
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Devotos 20 anos
vacinação, dicas de lazer e comerciais de estabelecimentos locais. “É engraçado, pois existem duas lojas de
material de construção civil aqui. No dia que uma anuncia na rádio uma promoção de cimento e telha, a outra
imediatamente faz questão de cobrir a oferta em anúncio na rádio no dia seguinte. E a gente faz questão de
estimular isso”, ri Cannibal. Logo que a rádio abriu, em
2002, Cannibal comandava um programa voltado para
o samba chamado Amnésia. “Tocava muito samba de
raiz no programa, coisas como Ataulfo Alves, Demônios
da Garoa. E abria espaço também para Jorge Ben, Belchior. Você precisava ver o que tinha de senhor ouvindo
os sambões antigos”. Celo se orgulha da forma como a
rádio entrou no cotidiano dos moradores:
“Eu não imaginava que seria uma coisa de tanta utilidade.
Eu me abestalhei muito de como eles se apropriam disso
e tornam uma coisa muito útil. Uma coisa tão mínima
assim. De informação ligada à saúde pública, informação
social, cultural, ligadas a eventos. Muito massa ver neguinho dizendo na rádio: ‘Fulano, vai fazer o que domingo?
Vai ter evento tal no Sítio da Trindade, é de graça! Leva
teus filhos!’ E a galera que cuida da programação é maravilhosa. Sempre tem informações. É legal porque eles se
sentem orgulhosos disso.”
A participação da comunidade nos eventos pontuais que
o núcleo das bandas do Alto José do Pinho realizava foi
decisiva para a constituição da Alto Falante.
A gente achava que seria legal, por exemplo, ter uma oficina de percussão por um tempo longo aqui na comunidade. Assim como oficina de teatro, de canto, de dança,
de artes plásticas. Ter uma coisa mais constante por um
período maior. Porque a gente sempre fez aqueles eventos pontuais, Rockriança no Dia das Crianças, Natal nas
Alturas, 7 de setembro, 1º de maio, e viu que a gurizada
A fundação da ONG
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respondia muito bem às oficinas que rolavam nesses
eventos. Oficinas de capoeira, de break.
O empurrão para os meninos se organizarem para fundar
a ONG veio da Fase, que já testemunhava e ajudava, há
algum tempo, as bandas do Alto José do Pinho na realização de eventos. “Evanildo Barbosa, diretor-geral da
Fase, disse que o melhor caminho seria a gente se constituir juridicamente como uma instituição. Até então era
tudo muito solto, não tínhamos uma identidade jurídica.
A gente mandava ofício pra prefeitura no meu nome,
depois no nome de Cannibal. Era assim para todos os
órgãos públicos e empresas”, conta Celo.
No primeiro momento, quando foi inaugurada, a ONG
Alto Falante propôs, em projetos apresentados para
algumas entidades, uma estrutura que contivesse 22
oficinas, que comportassem cerca de vinte alunos em
cada, em categorias como break, capoeira, maracatu
e software livre. “A gente sempre teve muita vontade e
disposição para correr atrás das coisas. Sempre tivemos
muita garra, mas empacávamos nas questões burocráticas para viabilizar alguns projetos”, conta Cannibal. O
sentimento de autoestima da população cresceu a tal
ponto que ela se orgulhava em ver carros de gente da
classe média subir o morro para participar das oficinas.
Porém, mesmo com a assessoria jurídica da Fase e com
todo o empenho que sempre marcou essa geração de
meninos das bandas de rock do Alto José do Pinho, eles
acabaram esbarrando em um problema difícil de superar.
Cannibal explica:
“Tudo que a gente tenta fazer aqui no Alto tem um período,
porque a gente não tem uma sede. Então tudo que a gente
faz é na escola ou no porão da igreja, ou na rua. Então é
muito difícil pra gente. O que a gente está batendo hoje
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A fundação da ONG
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Devotos 20 anos
em dia na tecla é de ter uma sede pra gente poder dar
oficinas periódicas todos os dias durante o ano todo. E
a gente tem projeto pra isso, só não tem o local para
viabilizar. Se os projetos forem aprovados, nós vamos
fazer onde? Já tivemos visitas de várias entidades que
querem ajudar e apoiar as oficinas, como a Petrobras e
o Ministério da Cultura, mas a gente não tem uma sede.
Esses órgãos que a gente tem de apoio não financiam
imóveis. Queremos ver com alguma entidade de fora para
viabilizar a compra de um terreno para poder montar uma
casa do jeito que a gente quer.”
Ele dá um exemplo concreto de como a falta de um local
próprio atrasa os trabalhos da ONG. “Temos o oficineiro
do afoxé, da percussão. A gente já tem um projeto todo
fechado pra ele. Desde a compra dos equipamentos até
o salário dele. E é um cara da comunidade. A gente tenta
sempre trabalhar com pessoas da comunidade.” E lista
outro projeto que está também em fase de captação de
recursos. “Queremos trabalhar com corte e costura. A
gente sabe que tem o maracatu e o afoxé que desfilam
todo ano. A rapaziada daqui mesmo podia fazer a roupa
do maracatu e do afoxé e ganhar uma grana em cima
disso.” De certa forma, hoje eles vivem uma situação
muito semelhante à de quando começaram a fazer os
shows no Alto José do Pinho, aqueles em que colocavam
um tablado em cima de grades de cervejas e improvisavam um som pela pura vontade de tocar.
Essas oficinas existem periodicamente. Funcionam um
mês e param. Aí só Deus sabe quando vai ter de novo.
Porque o colégio precisa do espaço, o porão da igreja
funciona para outras coisas. A oficina de capoeira é a
mesma coisa. E ela está parada. É muito chato trabalhar assim. E a gente sabendo que poderia ser uma coisa
mais constante.
A fundação da ONG
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Em 2005, entrevistei Cannibal sobre os resultados práticos da ONG na comunidade. Na época, ele me contava orgulhoso:
“Conseguimos resgatar a autoestima da comunidade.
Hoje, ninguém tem mais vergonha de dizer que mora no
Alto José do Pinho. Os índices de criminalidade baixaram
muito. Não existe mais boca de fumo aqui. Quem quiser
comprar fumo hoje, compra fora daqui. E as gangues,
que aterrorizavam o local, foram extintas.”
No final de 2008, ao coletar material e fazer entrevistas
para este livro, o discurso infelizmente havia mudado. O
Cannibal orgulhoso de 2005 dava lugar a um mais realista e preocupado agora:
“O crack está invadindo o Alto. Em todo canto é assim. A
primeira coisa é diminuir a violência que o tráfico causa.
É coisa que se você fizer oficina periódica não vai resolver. É pegar esses guris pra fazer trabalho o dia todo. Pra
se cansar de dia e, de noite, ir pra casa e dormir. De não
conseguir ficar em pé. Essas coisas você não resolve com
oficina periódica. A gente sempre pensa que pode fazer
mais, mas e o apoio?”
Quando conversei com Ailton Peste, ele mostrou a mesma
preocupação de Cannibal. Chegou a frisar que quem
conhecia o Alto José do Pinho superficialmente e só visitava o centro do bairro achava o lugar uma maravilha, e
dizia até que gostaria de morar no morro. Mas, segundo
ele, a realidade que os moradores encaram no cotidiano
já não é mais a mesma de quando eles mudaram o perfil
do bairro com os shows punks. “Por conta do tráfico de
crack, que está muito forte aqui e se aliou com a prostituição. E as meninas, para conseguir o crack, pagam um
boquete, transam com o cara. Vira Babilônia.”
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Ailton Peste, o mesmo que escreveu “Os peitinhos”, trabalha, há 12 anos, como arte-educador. Seu discurso
impressiona pela crueza e sinceridade. Ele tem consciência de que ele poderia ter sido vítima da criminalidade. Sua fala é contundente porque expressa o esforço
de alguém que, desde os tempos dos shows no bar do
Orlando, tinha plena consciência de que estava desenvolvendo um trabalho social.
duas bandas se apresentam no local. O repórter acompanhou um
Tanto eu como os meninos tivemos essa coisa da violência suburbana em nossa vida. E escolhemos a música
como forma de sobrevivência. De tanto que eu participei
de movimento, de tanto que lutei por um meio de comunicação fixo, cheguei até a rádio. A gente sabe que há
uma carência de informação da porra. É como se a gente
estivesse fazendo trilha sonora para a miséria. A gente
sabe que a mídia é uma cobra de duas cabeças. Quando
a gente surgiu, foi independente da mídia. Era o façavocê-mesmo. Era a atitude punk mesmo.
de distância. Terminado o primeiro show, é respeitada uma hora e
O próprio Peste chegou a me dizer que o pessoal das
bandas está se organizando novamente para voltar a
fazer shows nas ruas, como no início de todo o processo.
Durante algum tempo, uma nova geração de bandas do
Alto José do Pinho retomou o espírito punk. Cheguei a
escrever sobre o assunto:
Nova Geração do Alto José do Pinho1
O processo natural de continuidade é nítido no Alto José do
Pinho. Bandas novas surgem a cada dia, e já têm, pelo menos,
um lugar garantido para apresentar sua música: o Papillon Bar.
De propriedade de André Papillon, a casa, que possui dois andares, é palco, todos os domingos, do festival Rock Zoeira, evento
organizado por Adilson Ronrona, Sérgio (integrante da banda
punk Terceiro Mundo) e pelo skatista Henrique. A cada domingo,
1 Matéria publicada pelo autor na revista Galpão do Rock em novembro de
2005
desses eventos, protagonizado pelas bandas Conspiração Alienígena e Ataque Suicida. No térreo, uma televisão passando clipes dos Ramones anima o público. No segundo andar, os shows
rolam no melhor clima “festa punk”. Ou seja, o espaço para uma
roda de pogo e para a banda tocar é o suficiente para garantir
a alegria dos roqueiros. Um fato inusitado chama a atenção. Os
organizadores do evento tiveram que fazer um acordo com a
igreja evangélica localizada na frente do bar, a exatos seis passos
meia de silêncio para que o culto evangélico seja realizado. “Das
19h30 às 21h, nós interrompemos os shows para a realização do
culto. Pra gente é bom, pois essa é a hora em que o público para
para relaxar e consumir cerveja”, conta André Papillon. E é o que,
de fato, acontece. A igreja realiza suas atividades sem maiores
problemas, enquanto um público sedento de rock aguarda tranquilamente o segundo show, tomando uma cervejinha gelada e
colocando a conversa em dia. Terminado o culto, o rock volta a
comer solto, em uma demonstração de respeito mútuo entre bar
e igreja, difícil de testemunhar por aí. Particularidades que só
mesmo o Alto José do Pinho poderia oferecer.
Infelizmente, o Papillon Bar durou pouco tempo e logo fechou
as portas, e o Rock Zoeira ficou sem local para realizar suas
atividades.
A fundação da ONG
“Alto Falante –
gravando o show”
No dia 12 de novembro de 2005, o núcleo de bandas do
Alto José do Pinho via, em plena rua principal do morro, a
concretização de um sonho. Um palco de proporções tão
grandes quanto a vontade desses meninos era armado
na rua de Cannibal para abrigar os shows das bandas
que participariam das gravações do disco “Alto Falante
– gravando o show”. A própria casa de Cannibal servia
de base para boa parte da parafernália de equipamentos que viabilizariam o evento. E uma multidão subiu para
conferir, ao vivo, os shows de Os Maletas, D’Miopis, B.U.,
A Ostenta, Nanica Papaya, Terceiro Mundo, Matalanamão
e Faces do Subúrbio. Duas delas, Os Maletas e D’Miopis,
representavam a novíssima geração de bandas do Alto
José do Pinho. A D’Miopis, fato inédito no bairro, é formada só por meninas, e a idade das integrantes variava,
na época do show, entre 17 e 21 anos. Se, na primeira edição do Alto Falante, os meninos conseguiram reunir oito
bandas em estúdio, sendo duas de Peixinhos (Ataque Suicida e Atitaia), chegara a hora da versão ao vivo e, desta
vez, só com bandas do Alto José do Pinho.
A estrutura de palco era inimaginável para quem passou
os primeiros anos de carreira tocando em um tablado
de madeira por cima de grades de cerveja. Mesa de
PA, iluminação, roadies, tudo que os grandes festivais
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oferecem nos palcos do Primeiro Mundo estava, naquele
momento, à disposição das bandas do Alto José do
Pinho. Cada banda fez seu show completo, mas apenas
duas músicas de cada entraram na coletânea. A noite
transcorreu em clima de harmonia, sem qualquer incidente. Os Devotos faziam as pazes com seu bairro, pois
Cannibal havia prometido jamais tocar novamente no
Alto José do Pinho devido a uma briga no local em uma
das apresentações da banda no carnaval. Entusiasmados com o surgimento de novas bandas, os meninos do Matalanamão convidaram Michelle, vocalista da
D’Miopis, para uma participação no show deles. Cannibal dedicou “Nosso ninho” a Marcelo Santana, cantor de
reggae do bairro vizinho Vasco da Gama e figura ainda
hoje atuante no cenário artístico de Pernambuco. Santana mantém, junto com Marcelo Massacre, a banda MM
Dub. Coube ao Faces do Subúrbio fechar a noite. A banda
estava lançando “Perito em rima” e foi o primeiro show
de Tiger após o falecimento da mãe, poucos dias antes,
e o rapper estava visivelmente emocionado, volta e meia
olhando para o céu, como quem pedisse a benção a ela.
O CD era o primeiro produto da ONG Alto Falante e, claro,
a produção gráfica foi assinada por Neilton, que também
assinou a mixagem de várias faixas. Jaiminho, baixista
do Matalanamão, ficou encarregado da direção de palco.
Mas, para eles, o melhor de tudo era ler na contracapa
do disco: “Projeto idealizado e realizado pela ONG Alto
Falante.”
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Devotos 20 anos
A fundação da ONG
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Tudo que eu queria
que eu
Cap.03
Tudo que eu queria
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Tudo que eu queria
Domingo, 21 de setembro de 2008. Alto José do Pinho
lotado. Um palco enorme a poucos metros da casa de
Cannibal denuncia que o acontecimento é especial. E,
que, de tão especial, merece ser gravado. Uma grua à
direita do palco registra todas as reações do público.
Volta a fita. Mesma rua, meados de 1988. Um garoto de
18 anos, punk, negro e discriminado em sua comunidade
lê na Bizz uma matéria sobre o Inocentes, banda punk de
São Paulo que canta, em suas letras, a dura realidade do
cotidiano das periferias de São Paulo. Eis que o menino
vai ao sebo no centro da cidade à procura de Pânico em
SP. Acha. Escuta. E fica sem acreditar em como tudo que
Clemente, negro como ele, diz em suas letras é igual ao
que o garoto enfrenta todos os dias no Alto José do Pinho,
separado de São Paulo por quase um Brasil inteiro. O
moleque não sabe tocar. Não tem dinheiro para comprar
um baixo. Não tem condições para pagar aula de música.
Talvez fosse mais fácil estudar para um concurso público.
Ou se conformar com o futuro de pedreiro ou de flanelinha. Encontra outro maluco, filho de militar, que decidiu
ser baterista ao ver um conjunto de baile na Mangabeira,
quando tinha 12 anos. Para completar o trio, um camarada da Bomba do Hemetério, que fabrica sua própria
guitarra e desenha camisetas à mão. Volta ao presente.
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O trio sobe ao palco ainda mais nervoso do que na terceira
edição do Encontro Antinuclear, em 1988. Parece não
acreditar na multidão que conseguiu juntar no Alto José
do Pinho para ver um show deles. Rapidamente, em questão de segundos, passa um curta-metragem na cabeça
de Cannibal, Celo e Neilton. Nele, cenas deles, correndo
de tiroteios e se jogando no chão do ônibus para não
serem atingidos por uma bala, das vassouras improvisadas, substituindo o pedestal de microfone, das vezes que
foram e voltaram a pé até os locais em que fariam shows,
do primeiro Gestos, Atitudes e Rock’ n’ Roll no Bonsucesso
Futebol Clube. No camarim, Adilson Ronrona, vestido de
pijama, espera a hora de entrar no palco para sua participação especial. O mesmo acontece com Tiger. Ailton
Peste acompanha o show da plateia. E Zé Brown não pôde
comparecer. Estava na Espanha, divulgando seu novo trabalho. E 2009 tem se mostrado um bom ano para os Devotos. A banda foi indicada ao VMB na categoria “Melhor
Vídeo de Hardcore”, concorrendo com clipe de “Tudo Faz
Sentido”. E foi convidada para se apresentar no Festival
DoSol, em Natal, um dos mais importantes da cena independente do país. Em 2010, os Devotos voltam a Europa
para uma turnê que circulará por vários países do velho
continente. E pensar que tudo começou com um tablado
de madeira em cima de grades de cerveja.
Tudo que eu queria
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O núcleo hoje
Cannibal
Mora no Alto José do Pinho. Toca baixo, é vocalista e autor
de todas as letras dos Devotos. É baterista da B.U. e tem
um projeto de reggae com o DJ Bruno Pedrosa chamado
Canni100. Apresenta o Estereoclipe, programa de TV local
voltado para o público jovem. Toda quarta-feira, religiosamente, bate pelada com os amigos.
Neilton
Mora na Bomba do Hemetério. É guitarrista do Devotos e
desenvolve trabalhos como artista plástico, artista gráfico, designer e fabrica amplificadores.
Celo
Mora em Ouro Preto, em Olinda. Toca bateria nos Devotos e é vocalista da B.U. Trabalha nas ONGs Alto Falante
e Bagulhadores do Mio.
Adilson Ronrona
Mora na Mangabeira. É vocalista do Matalanamão. Está
compondo material para o terceiro disco do Matalanamão, ainda sem previsão de lançamento.
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Ailton Peste
Mora no Alto José do Pinho. É funcionário da Secretaria
Municipal de Saúde e ministra uma oficina de comunicação em um colégio público no bairro de Boa Viagem.
Zé Brown
Acaba de lançar seu primeiro disco solo, “Repente rap
rapente”, e continua com o projeto Zé Brown Apresenta
Talentos.
Tiger
Está gravando seu primeiro disco solo, intitulado “Poder
simbólico”. Ministra oficinas de hip-hop para os detentos do presídio Aníbal Bruno.
Todos
Idealizaram e criaram a ONG Alto Falante, que deu origem à rádio de mesmo nome. A ONG, mesmo sem sede,
realiza oficinas periódicas de capoeira, teatro, break,
maracatu e software livre. A maior luta da Alto Falante
hoje é conseguir um local para construir a sede.
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Devotos 20 anos
Discografia:
Ao vivo — fita demo, 1994.
Vida de Ferreiro — fita demo, 1995.
Agora tá Valendo — Plug / BMG, 1997.
Alien e Selvagem – SINGLE — Rock It! 2000.
Devotos — Rock It!, 2000.
Hora da Batalha — independente, 2003.
Sobras da Batalha – EP — independente, 2004.
Flores com Espinhos para o Rei — independente, 2006.
Devotos 20 anos — independente/ Monstro discos, 2009.
Coletâneas:
Video Music Brasil 96 — MTV/Epic, 1996.
Sucessos Nacional — BMG, 1997.
Black Music — Folha de São Paulo, 1997.
Abril Pro Rock — Columbia / Sony, 1997.
Rock o Ano Todo — BMG especial APR, 1998.
CALABOCA JÁ MORREU — Abril Music, 1999.
11 Músicas direto da lama — revista TRIP nº71, 1999.
Alto Falante, 1999.
REIginaldo Rossi (Um tributo ) — Abril Music, 1999.
Musikaos — revista TRIP nº81, 2000
Melopéia ( Sonetos Musicados ) — Rotten Recdords, 2001.
Rec-Beat ao vivo — revista TRIP nº89, 2001.
Tributo-Garotos Podres — Rotten Record, 2002.
Alto Falante 2 — Gravando o show, 2005.
Projeto Música de Pernambuco — Música Urbana, 2006.
Tudo que eu queria
277
Videoclipes:
Mais Armas? Não! — vídeo demo, 1990.
Devotos do Ódio — direção: Nilton Pereira (TVViva), 1991.
Futuro Inseguro — direção: Jobalo, 1991.
Punk, Rock, Hardcore, Alto José do Pinho — direção: Claudio
Assis, 1994.
Vida de Ferreiro — direção: Claudio Assis, 1994.
Fogo Cruzado — direção: Claudio Assis, 1996.
Dia Morto — direção: Raul Machado, 1997.
Eu Tenho Pressa — direção: Nilton Pereira (TVViva), 1998.
Alien — direção: Diego Mezza, 2000.
Meu País — direção: Mário Rios (Videotape), 2001.
O Herói — direção: Nilton Pereira (TVViva), 2002.
Roda Punk — direção: Nilton Pereira (TVViva), 2003.
Tudo Faz Sentido — direção: Teta Barbosa (REC), 2008.
Luta Pacifista — direção: Teta Barbosa (REC), 2009.
Trilhas sonoras:
Maracatus-Maracatus
Curta-metragem. Direção: Marcelo Gomes, 1994.
Punk, Rock, Hardcore, Alto José do Pinho é do caralho
Video doc. Direção: Claudio assis, 1995
Baixio das Bestas
Longa-metragem. Direção: Claudio Assis. 2007
278
Devotos 20 anos
Livros:
CAVALCANTI, Carlos. “Caminhos da Vida”. Recife,
Ed. Bagaço, 1997.
TELES, José. “Do Frevo ao Mangue Beat”. São Paulo,
ed.34, 1998.
ESSINGER, Silvio. “Punk: anarquia planetária e a
cena brasileira”. São Paulo, Ed.34, 1999.
EZCURRA, Ana Maria. “Fugas musicais: a movimentação
das bandas do Alto José do Pinho”. Universidade Federal
de Pernambuco, 2002.
MURPHY, John. “Music in Brazil: experiencing music, expressing
culture (Global Music Series)”. Estados Unidos, Oxford
University Press, 2006.
Festivais:
3º Encontro Anti- Nuclear — Recife-PE, 1988.
Abril Pro Rock — Recife-PE, 1994 a 1999.
Festival da UNB — Brasilia-DF, 1998.
Soulfly Tour Brasil — São Paulo-SP, 1998.
Man or Astroman? — Recife-PE, 1998
Kildare Festival — Salvador-BA, 1998
FIG — Garanhuns-PE -1998, 1999, 2000, 2004 e 2008
PE No Rock — Recife- PE, 1999, 2000, 2003
Marky Ramone & The Intruders — Rio de Janeiro-RJ – 1999
Mangue em Movimento — São Paulo-SP – 1999
Alto Falante — Recife-PE – 1999 e 2006
Abril Pro Rock — São Paulo-SP – 2000
Palco 6 – head-Line — Lisboa - Portugal – 2000
Acorda Povo — Recife-PE - 2000 e 2001
Recbeat — Recfe-PE - 2001, 2002, 2004, 2008
Da Tribo Festival — São Paulo-SP – 2002
Carnaval Multicultural — Recife-PE – 2005, 2006, 2007, 2008, e 2009
Do sol — Natal-RN – 2006
Bananada — Goiana-GO – 2008
Varadouro — Rio Branco – AC – 2009
Jambolada — Uberlândia – MG – 2009
53 HC — Belo Horizonte – MG – 2009
Calango — Cuiabá – MT – 2009
Aumenta que é Rock — João Pessoa – PB – 2009
Dosol — Natal – RN – 2009
Goiana Noise — Goiana-GO – 2009
Anexo
Entrevista Devotos 20 anos
Entrevista
Devotos 20 anos
281
uma conversa sobre os mais variados temas, Guilherme
Moura, editor do Recife Rock!, liga e pergunta se já rolou
a entrevista. Respondo que Cannibal está atrasado e
que se ele correr é capaz de pegar a entrevista ainda
no início. Guilherme chega antes de Cannibal, que aparece duas horas depois da hora marcada, porque estava
pegando as camisas comemorativas dos vinte anos de
banda. Educado, parece suplicar:
— Meu irmão, me perdoe, por favor!
— Tudo bem, contanto que dê a entrevista.
— Então já estou perdoado.
27 de janeiro de 2008 — Alô, Cannibal?
— Fala, Hugo! Já chegou em casa?
— Na verdade, liguei pra dizer que vou atrasar um pouco.
O ônibus está demorando.
— Tudo bem, eu estou na rua também. Se chegar em casa
antes de mim, pode esperar numa boa. Minha esposa e
minha filha estão lá.
— Falou.
Chego alguns minutos depois no Alto José do Pinho,
e começo a perceber alguns indícios de que estarei
diante de uma banda com vinte anos de carreira. A filha
pré-adolescente de Cannibal atende à porta e pede que
eu espere pelo pai. Sua esposa pede que eu fique à vontade e diz que o marido volta logo. Pouco depois, chegam Neilton e seu amigo Gilson. O cara que ficou famoso
por fabricar sua guitarra a partir de sucata e por pintar quadros agora investe na fabricação de Amps. Que,
de sucateados, não têm nada. Orgulhoso do “filho”, me
convida para ir ao estúdio de Cannibal para ver sua cria:
um bicho que “fala alto”, segundo ele. Bonito, benfeito,
dá até vontade de comprar um. Enquanto engatamos
280
E assim foi. O que era para ser uma entrevista séria, com
guia estabelecido, acabou se convertendo num delicioso
bate-papo entre cinco amigos espalhados no estúdio
caseiro de Cannibal. E foram surgindo as histórias mais
engraçadas e tristes sobre os vinte anos de carreira
da banda, tudo sempre contado com inteligência e um
senso de humor que beira as raízes do absurdo. Talvez
tenhamos perdido um pouco do enfoque jornalístico,
mas ganhamos muito em espontaneidade. E, por que
não dizer, assim é mais punk. Punk-rock-hardcore, como
a história de uma das mais importantes bandas já surgidas em Pernambuco desde sempre. Confira, abaixo, a
íntegra de um bate-papo de quase duas horas com três
caras que têm histórias de sobra para contar.
Hugo: Vinte anos… Esperavam chegar até aqui? Passou
rápido?
Celo: (gargalhadas) Demorou pra caralho!!!!
Hugo – Se a banda não tivesse dado certo, vocês estariam fazendo o quê hoje?
Neilton – Porra, Hugo! Tá pegando pesado…
282
Devotos 20 anos
Cannibal – É velho… Tem que botar a mão na cabeça e
pensar…
Hugo – Vinte anos! É hora de parar pra pensar mesmo…
Neilton – O problema é esse: parar pra pensar.
Cannibal – Aí acaba… Vou entrar naquela: “O que estou
fazendo da minha vida?”
Neilton – Se for pensar nas broncas todinhas, “Ordem
dos músicos”, um monte de merda acontecendo…
Cannibal – É melhor nem pensar…
Hugo – Vocês vão lançar algum material relacionado aos
vinte anos da banda?
Entrevista Devotos 20 anos
283
Neilton – Porque é um documentário, não é um show.
Aquele show de São Paulo seria mais um material pro
documentário.
Guilherme – Teve até a participação do Clemente, né?
Como vai ser agora no Rec-Beat?
Cannibal – Tem umas pessoas que a gente já sabe que
vão participar do DVD, daqui pra lá vai dar pra acertar
com todo mundo: Clemente, Pitty, Lirinha, Zé Brown,
Adilson Ronrona. Fora outros… Daqui pra lá vai rolar
muita ideia ainda. Essa vai ser a comemoração mesmo,
patrocinada pela Petrobras.
Guilherme – Rola esse ano ainda?
Cannibal – Não agora no Rec-Beat, mas a gente tem um
projeto de fazer um CD ao vivo patrocinado pela Petrobras. A ideia é fazer uma coletânea com músicas de
todos os discos da gente e trazer alguns convidados. E
gravar aqui mesmo no Alto José do Pinho.
Cannibal – Tem que rolar esse ano porque o projeto
é para os vinte anos dos Devotos. O nome do projeto é
“Devotos – 20 anos”.
Celo – CD ao vivo e DVD.
Cannibal – Na verdade, vai ser igual ao fim de Sandy e
Junior (risos).
Guilherme – E a história de São Paulo, o DVD que seria
gravado lá?
Cannibal – Aquela história de São Paulo já está virando
lenda. Quando você faz um lance na brodagem, você não
tem condições de cobrar, de exigir. E a gente sabe que
o trabalho com audiovisual é um trampo muito foda pra
ser feito, pra ser finalizado. E a gente tinha dado mais
de trinta fitas com material da gente de viagem e aquela
coisa toda. E elas (a produtora) tinham toda a boa vontade de fazer. Mas a gente viu que não ia dar. Sem grana,
não tem condições. Hoje em dia, mesmo com toda a tecnologia na mão, o trabalho ficou maior para quem faz o
trampo. Então, sem dinheiro, não dá pra fazer.
Neilton – Na verdade, o Rec-Beat é só o início das
comemorações.
Neilton – Vai ter um acústico pra fazer…
Hugo – Hoje, com 20 anos de carreira, dá pra perceber
qual foi o pior e o melhor momento de vocês? Tem como
avaliar isso ou não?
Celo – O pior eu apaguei (risos).
Cannibal – É muita tosqueira na vida, né, meu irmão?
Neilton – Teve fases de você botar a mão assim na
cabeça e dizer: “Pô, onde é que eu estou? O quê que a
gente vai fazer?”
Cannibal – “Vou morrer agora…”
284
Devotos 20 anos
Neilton – Coisas assim que a gente nem imaginava como
ia resolver. E o pior: a gente não estava nem aqui, estava
longe, fora de casa, na maior roubada. Coisa muito pesada
mesmo.
Hugo – Com vocês já estabelecidos no mercado?
Neilton – Não, na época que a gente estava começando.
Cannibal – Não tem um pior momento específico, mas
teve coisas que a gente poderia ter aproveitado muito
melhor. Como a gente não tinha maturidade pra isso,
deixava nas mãos de terceiros. Tanto que a gente voltou a se produzir. Tanto que as pessoas cobram que a
gente toca muito pouco no Recife. E aí tem gente que
fica achando que a gente fica esperando os eventos da
prefeitura pra tocar. Mas não é. Quando a gente vai fazer
um orçamento pra fazer um show aqui, acaba constatando que não temos o suporte de grana pra bancar a
coisa se ela der errado. A gente não quer ficar devendo
a todo mundo, faz tudo com um pé no chão do caralho.
Então, se a gente fizer por conta própria e der errado, a
gente vai tomar no cu. Como é que a gente vai pagar a
galera? E a gente sempre fica pensando: como é que a
gente vai fazer um show só dos Devotos?
Hugo – Na verdade, era uma pergunta que eu já tinha
engatilhada aqui: por que vocês tocam tão pouco no
Recife?
Cannibal – A história é justamente essa. Tem muito
pouca gente que investe em banda, principalmente em
banda do nosso estilo. Até mesmo eventos do governo
e da prefeitura, tipo carnaval. A gente só vai fazer um
show no carnaval pela prefeitura. A gente vai fazer o
Rec-Beat, mas porque Gutie coloca quem ele quiser no
festival dele. Mas sempre foi assim. Desde que começou
esse carnaval multicultural que a gente só tem um show.
Entrevista Devotos 20 anos
285
Enquanto tem banda que vem de Brasília e que toca no
carnaval todo. Ontem uma menina do Jornal do Commercio perguntou como a gente conseguiu chegar até aqui
(20 anos), e eu expliquei pra ela que toda a grana que a
gente pegou a gente sempre dividiu por quatro, porque
a gente sabia que um dia precisaria dessa grana extra
para os instrumentos, pra gravar… É com essa grana que
a gente guarda só pra banda que a gente consegue fazer
as coisas. Mas ainda não é uma coisa que dá para apostar, para arriscar e fazer um show. Você pode apostar na
feitura de um disco, mas em um show é muito arriscado.
Tem que ter um suporte muito bom.
Celo – Até as viagens que nós fizemos foi com o dinheiro
que a gente juntou.
Cannibal – Com o terceiro disco (“A hora da batalha”,
2003), depois que a gente rompeu com Dado (Dado VillaLobos, do selo Rock It!, que produziu o segundo disco
dos Devotos), ali rolou uma doideira…
Celo – Ali a gente percebeu que ou investia na banda ou
morria.
Cannibal – E a coisa boa é isso (pensativo). Não tem como
negar, uma das melhores coisas que aconteceu com os
Devotos foi o respeito, não só do público que curte o
som da banda, mas de pessoas que nem curtem o som
mas respeitam a história da banda, dos componentes.
Hoje em dia, tem muita gente que vê a banda muito mais
como uma realização social do que musical. É uma coisa
positiva, legal. Mas não é tudo, porque não dá pra viver
só de prestígio.
Hugo – E show? Tem algum especial que vocês
lembram?
286
Devotos 20 anos
Cannibal – Pra mim, foi aquele que aquela banda gringa
não veio…
Hugo – Suicidal Tendencies, Abril Pro Rock de 98.
Cannibal – Isso! Aquele ali foi foda, velho! Até porque
liberaram o PA todinho pra gente (risos). Nunca tinham
feito isso! Pra quem não sabe, a maioria das bandas
que tocam antes das bandas headlinners nos festivais,
o PA é sempre mais ou menos. Então fica sempre um
som chochinho. Aí a galera da técnica libera o PA todo
pra banda principal e fica todo mundo pensando: “Porra,
essa banda é foda mesmo! (risos)” Aí foi isso. O show da
gente foi a mesma merda de sempre, mas liberaram o PA
todo pra gente, ficou aquele sonzão (risos).
Neilton – O mais legal era a galera da produção. Chegaram pra gente e disseram: “Ó, aconteceu isso, isso e
isso.” Tava todo mundo num clima tenso do caralho. Saía
um e chegava outro: “Vocês estão bem? Tá tudo certo?
(risos. Celo estoura numa gargalhada)” Aí depois chegou
todo mundo e disse: “Olha, vocês sabem da responsabilidade que têm.”
Cannibal – Quase que eu dizia: “Eu pensei que a gente
não ia tocar mais.”
Neilton – E a gente tranquilo, dizendo: “Tá beleza…”
Cannibal – E o pior é que a gente não tinha noção do que
estava acontecendo no show, porque a gente não escuta
o PA. Quando terminou, que a gente viu as críticas, caiu
a ficha: “Caralho, foi tudo isso? (risos)” Essa valorização,
Hugo, é que não tem jeito. Você pode ser a banda que for,
você precisa morar fora para as pessoas valorizarem aqui.
E a gente sempre fez o caminho contrário. A gente sempre
achou que aqui mesmo poderia fazer a diferença. E até
hoje a gente não faz (risos). Mas a gente continua.
Entrevista Devotos 20 anos
287
Hugo – Vocês são praticamente os responsáveis pela
nova reputação do Alto José do Pinho. Hoje o lugar é praticamente uma atração turística de Recife. Até que ponto
isso causa orgulho e até que ponto gera desconforto?
Cannibal – Desconforto é só quando a gente está na rua e
colocam um palco desses (estava sendo erguido o palco
do polo Alto José do Pinho perto da casa de Cannibal)
aqui e a galera acha que a culpa é nossa (risos). Porque
nem tudo que rola culturalmente aqui no Alto é a gente
que faz. Mas, ao mesmo tempo, a gente tem consciência
de que fomos nós que proporcionamos isso. Apesar de
ser uma coisa independente. A viagem da gente era mostrar a cultura que tinha no Alto. A gente não sabia que as
pessoas iam valorizar tanto, o que é uma coisa positiva.
De tirar aquela imagem da mídia sensacionalista que o
local era ponto de droga, de violência. Então esse foi o
lance legal, das pessoas perderem o preconceito com a
comunidade. E o lado ruim é justamente esse: a gente
leva a culpa de muita coisa que a gente não tem nada a
ver. E outra que as pessoas daqui começaram a desenvolver uma autoestima tão forte que passaram a fazer
as coisas aqui de forma independente, sem consultar
a gente, que já tem certa experiência com esse tipo de
coisa. Já falando da ONG Alto Falante: se nem a gente
mais pede consultoria às pessoas mais experientes nas
coisas que resolvemos fazer, acontece a mesma coisa
com as bandas novas. Elas vêm conversar já para querer
tocar no evento que vamos produzir. E a ideia da gente
não é essa. É ter um diálogo, um papo do porquê o cara
estar querendo fazer aquilo, se tem uma irmandade, uma
amizade… Porque a gente vê que, se um cara for montar uma banda pra ganhar grana, não vai dar em lugar
nenhum. Mas se ele tiver pensando no coletivo, aí sim, a
gente consegue colocar todo mundo junto. Hoje tá foda,
288
Devotos 20 anos
porque isso é resultado da mídia tecnológica na mão de
todo mundo. As divulgações estão muito rápidas. Orkut,
MSN, as pessoas se comunicam muito rápido e se divulgam muito rápido. Mas o que colocam na cabeça deles
não são referências que passam alguma coisa positiva.
Podia até citar nome de banda que passa algo positivo.
Você vê uma banda tocando em algum site ou numa TV
qualquer e você vê que são bandas que seguem a cartilha da mesmice. E são bandas que você nunca ouviu
falar, e que de uma hora pra outra estão no Faustão
recebendo prêmio. E aí o cara acha que, se o cara chegou
ali fazendo mais do mesmo, o negócio então é fazer mais
do mesmo. Na época da gente, a gente escutava o cara
no rádio, aí ia no show do cara, porque pra ver o cara em
algum programa de TV era quase impossível. Pra comprar um disco, tinha que ser no sebo. Então era muito
diferente a história comparada com o que é hoje em dia.
As pessoas não se preocupam em pesquisar, já que têm
toda a tecnologia na sua casa. E isso é um lado negativo
pra caramba aqui em cima. Porque a galera aqui também está correndo atrás de mais do mesmo. Todo mundo
quer fazer igual, corre atrás de Rec-Beat, de Pré-Amp, e
não se preocupa em fazer o próprio show, como a gente
fazia antigamente.
Hugo – Você sempre fala que tem muita gente que divulga
show dos Devotos sem fechar com vocês, usando o nome
de vocês. Acontece o mesmo com o Alto José do Pinho?
Tem gente que se beneficia da marca Alto José do Pinho
sem ter nada a ver com ela?
Cannibal – Politicamente, com certeza. Culturalmente,
até que não. No início dos anos 1990, no começo do
movimento mangue, com certeza, aconteceu muito.
Tinha gente que vinha fazer matéria aqui e vinha gente
que nunca tinha aparecido aqui, que era de Boa Viagem
Entrevista Devotos 20 anos
289
e dizia que era daqui. Mas hoje acabou. Hoje em dia, o
nome só é usado politicamente mesmo. Tem muita gente
usando o Alto José do Pinho pra isso. Muita gente colocando rádio, até neguinho querendo dar uma força ao
maracatu e ao afoxé e ao caboclinho e, em boa parte
das vezes, é algo apenas de política partidária. A gente,
muitas vezes, paga por isso. A gente não se apresenta
nos eventos da prefeitura e as pessoas sabem muito
bem o porquê. Basta pensar. A gente não consegue ficar
calado. Quando a gente percebe alguma coisa errada,
a gente vai e fala mesmo. E, às vezes, é uma faca de
dois gumes, porque eu me lembro que, em dezembro, a
gente foi no Sopa diário1 e aí eu falei que eu achava um
absurdo a prefeitura pagar 3 milhões pra Mangueira
fazer uma homenagem ao frevo de Pernambuco, tendo
tanta escola de samba daqui que não consegue nem sair
no carnaval, tanta agremiação que não consegue desfilar. É uma coisa inaceitável na cabeça de todo mundo.
A prefeitura pode dar 3 milhões para quem ela quiser,
mas tem que dar também pras pessoas que estão precisando aqui. É a mesma coisa que você cuidar do filho
dos outros e não cuidar do seu. E eu sempre falei isso e
sempre que vejo alguma coisa que acho errado eu ligo
pra falar também. Esse show agora que a gente fez no
Burburinho eu liguei pra Beto Rezende (jornalista) pra
dizer que foi uma merda, que a prefeitura faz show e não
divulga, principalmente aquele. Porque eu não consigo
ficar calado. E a gente paga por isso. Fica muito claro
depois porque fazem um evento e não colocam a gente. A
gente tira leite de pedra o ano todo. As pessoas perguntam por que a gente continua… Deve ser a adrenalina.
1 Programa de TV veiculado pela TV Universitária, retransmissora local da TV
Cultura.
290
Devotos 20 anos
Hugo – Vocês já pensaram alguma vez em parar?
Cannibal – Parar os Devotos? Nunca. De jeito nenhum.
Ao contrário. Muito antes de a gente gravar, a gente sentou pra saber se era isso realmente que queríamos fazer.
Traçamos uma meta e fomos tocando, tocando, tocando,
exatamente como o Matalanamão faz. E aí a gente parou
uma vez e perguntou: o que estamos querendo com a
banda? Queremos levar isso em frente? Porque, se não
for, a gente vai estudar, arrumar uma profissão e pronto.
E decidimos levar em frente. E tudo que a gente faz é pensando na banda. Pro show agora do Rec-Beat, a gente
já fez a camisa em comemoração aos 20 anos. Sempre
pensamos em colocar a banda em evidência. Tem que ter
alguma coisa pra mostrar que a banda está viva, que a
banda está acontecendo. Eu sempre digo isso pra quem
está começando. Senta e pensa se é realmente o que você
quer fazer, porque ganhar dinheiro com banda não rola.
Guilherme – A gente estava conversando sobre essa história da dependência do governo. Vocês não acham que
existe uma dependência muito grande das bandas com o
governo, que ninguém faz nada, essa coisa das bandas
não correrem atrás.
Neilton – Acho que existe dependência de tudo.
Guilherme – Fica essa história de existir banda que só
toca no carnaval, Fig, ao invés de se produzir e correr
atrás. Eu vejo o pessoal de Natal, da Paraíba… lá não tem
mamatinha do governo.
Neilton – É um mau costume. Todo mundo queria aparecer na televisão, todo mundo queria aparecer na MTV e
o caminho mais fácil pra isso era tocar no Abril Pro Rock
ou em algum evento que fosse transmitido pra fora. As
bandas que estão começando se prenderam a esse cos-
Entrevista Devotos 20 anos
291
tume de tocar em festival. Ninguém toca mais em buraco
como a gente tocava, né, Celo?
Celo – E a questão do investimento mesmo que a gente
sempre fez. Nós viajamos muito pelo Nordeste e bancamos tudo do nosso bolso. Andando de ônibus, de caminhão, de jegue, da porra toda. A gente sempre se arriscou e sempre foi buscar. As bandas daqui costumam
achar que aqui é o começo de tudo. Que aqui é a base
para a carreira.
Neilton – E o lance é botar a cara, é fazer show. Mas
principalmente cair na estrada. E juntar grana pra fazer
isso, porque ninguém faz.
Cannibal – O governo criou uma história em cima da cultura de Pernambuco, que a turma não entendeu. Acho
que aquela coisa de fazer os eventos patrocinados pelo
governo e pela prefeitura, a rapaziada entendeu que
aquilo ali seria o trampolim. E, na verdade, não é assim.
Se você for ver, quando você pega esses produtores que
vinham ver os eventos, o cara terminava no Galettu’s
(antigo nome do bar Garagem). Terminava indo a lugares
em que não tinha banda nenhuma que tocava no Abril
Pro Rock. E o cara queria pesquisar aquilo, porque ele via
que ali tinha coisa melhor do que o que estava tocando
naquele evento. Na cabeça deles, lógico. Aconteceu
isso com a gente aqui no Alto José do Pinho. Quando o
Fábio Massari foi fazer o Abril Pro Rock, ele quis vir no
Alto. Ele queria saber como era possível que num morro
tivesse tanta banda de rock. Porque, na cabeça dele, no
morro, deveria ter banda de samba, de pagode, de qualquer coisa. Mas de rock? E aí veio aqui e viu um monte
de banda de rock tocando junto. E a rapaziada que está
começando se esquece disso. Se você não está tocando
no Abril Pro Rock, você pode estar lá dentro com o seu CD,
com o seu release. E dar na mão do cara. Aquela coisa do
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Devotos 20 anos
“nem toquei, mas consegui alguma coisa”. E a rapaziada
esquece disso, dessas coisas bem simples, porque fica
bitolado em tocar e tocar no evento.
Hugo – Vocês chegaram num formato agora que só são
vocês três. Acabaram com todos os atravessadores:
não têm produtor, assessoria de imprensa, o Neilton
está fazendo os Amps agora. A ideia é vocês mesmo
fazerem tudo…
Neilton – É dominar o mundo (risos).
Cannibal – É dominar o Alto…
Celo – O Alto a gente já dominou (risos).
Cannibal – Aconteceu isso no Showlivre, não sei se vocês
viram. O Clemente (Inocentes) perguntou pra gente o que
Neilton tava fazendo. A gente respondeu: “Neilton está
fazendo tudo. Neilton fez a Terra, as árvores, as pessoas
(risos).”
Hugo – Mas a gente que acompanha as bandas novas vê
muito essa acomodação, da galera não fazer nada. Banda
que não tem nem um ano e já precisa de um produtor…
Hugo – Mudando de assunto: qual foi o primeiro cachê
que vocês ganharam?
Cannibal – Foi num show que a gente fez com Stella
Campos de versões punks para as músicas do The Doors.
Foi uma merda do caralho (risos).
Hugo – Falar em punk, vocês ainda levam muito dedo na
cara e acusações de “traidores do movimento” porque
tiraram o “do Ódio” do nome da banda?
Neilton – Esse lance de traidor do movimento nunca
pegou com a gente.
Entrevista Devotos 20 anos
293
Cannibal – A gente teve um problema desses quando a
gente gravou. Quando a gente fez clipe pra MTV. Parecia que a gente tinha feito a pior coisa do mundo. Depois
que a gente gravou o primeiro disco (“Agora tá valendo”,
1997), andava na rua e punkzinho ficava enchendo o
saco, dizendo: “traidor do movimento”. Faziam panfletos escritos “Devotos traíra” e distribuíam. Mas nunca
chegou a incomodar fisicamente. (risos).
Neiton – Teve um lance muito doido. Lembro de uma crítica que eu li sobre o primeiro disco da gente dizendo que
a banda perdeu a vontade de ir pra eventos como o Abril
Pro Rock. Era aquele discurso: “aquela banda sofrida do
Alto José do Pinho, mostrando o valor que tinha o subúrbio”. E aí concluía: “agora acabou, eles gravaram” (risos).
É sério. Aquela coisa “eles não vão passar mais fome,
começaram a ganhar dinheiro”.
Cannibal – A miséria é linda (risos).
Neilton – Engraçado que a maior luta da gente é justamente pra acabar com isso, com a miséria. E o que
a galera mais quer é isso. Na verdade, é um lance que
está na cabeça da galera: que você tem que ser fodido
e ruim pra ter valor. E, ao mesmo tempo, você é tratado
como gueto, por mais valor que você consiga passar pra
alguém, você é tratado como gueto por não fazer uma
música que venda. Porém, você tem que ser pobre,
fodido, magro.
Cannibal – A gente sempre procurou fugir disso. A gente
sempre tocou para ter um sustento, uma dignidade.
Por isso que eu volto para aquela história de darem 3
milhões para a Mangueira, sabendo como é a situação
do samba aqui em Pernambuco. Como ele é maltratado,
não é tocado nas rádios. Celo tava me contando que viu
na TV Lia de Itamaracá pedindo para a Celpe (Companhia
294
Devotos 20 anos
Energética de Pernambuco) ligar a luz dela, porque eles
tinham cortado. E a mulher vai desfilar na Mangueira!
Que porra é isso? Onde é que a gente está? Não tem
como a gente ficar calado com isso. E a turma paga a luz
dela, colocando um showzinho dela aqui e ali. Aí ela vai e
agradece ao prefeito João Paulo. Essas coisas revoltam.
E eles (prefeitura e governo) sabem que se der chance
pra neguinho do morro o neguinho vai falar, velho! E é
por isso que os Devotos não tocam nesses eventos. Os
Devotos nunca tocaram no Marco Zero. Uma menina
da Bahia me perguntou por que a gente nunca tocou no
Marco Zero. Ninguém quer colocar uma banda que quer
falar dos seus deveres e direitos em evidência. Porque,
se der moral pra galera saber o que de fato acontece, vai
foder tudo. E a gente não se cala. Não é porque a Prefeitura colocou a gente pra tocar num palco que eu vou me
calar.
Hugo – Vocês acham que são discriminados aqui em Pernambuco também por fazer hardcore?
Cannibal – Total, cara! Não só por causa do hardcore,
mas, principalmente, pelos temas. Por ser do subúrbio.
Neilton – Porque a gente tem ciência das coisas que se
passam ao nosso redor. E a gente tenta passar isso pra
galera nas músicas. E, no nosso caso, fica ainda mais difícil porque é muito mais fácil exportar o exótico, o modelo
preestabelecido. E não estou falando só da gente. Tem
trocentas bandas, aqui em Pernambuco, que fazem um
tipo de música totalmente diferente. Na verdade, não
tem espaço, a não ser que você adote o modelo exótico.
Hugo – É por isso que vocês acham que não saíram do
país ainda?
Neilton – A gente já saiu. Só que faltou alguém que
fizesse o resto do caminho.
Entrevista Devotos 20 anos
295
Hugo – Vocês saíram e não tocaram?
Neílton – A gente tocou. Fomos até a “atração internacional”. Foi um festival de inverno.
Hugo – Eu não sabia disso. Foi onde?
Neilton – Em Lisboa. Em 2000.
Cannibal – E ficamos uma semana lá sem fazer mais
nada.
Celo – Comendo bacalhau pra caralho (risos)!
Neilton – É muito fácil pegar um produto já pronto. Um
produto que o cara sabe que vai vender. É muito difícil
hoje os produtores locais encararem uma temporada de
estrada num circuito mais alternativo. Eu nem digo circuito muito underground. A gente recebeu proposta de
fazer uns shows com uma banda que tinha um público
do caramba em Portugal. E tudo que fizeram foi dizer
que a passagem estava comprada para o dia tal. Porra,
na Europa, cara! Com um monte de coisa pra fazer,
um monte de lugar para tocar e explorar. E você voltar
pra casa sem ter feito nada. Você lembra, Celo, desse
estresse?
Celo – Eu não lembro dessas partes ruins porque eu vou
deletando.
Neilton – Eu guardo algumas coisas para relembrar. Pra
não cair no mesmo erro.
Hugo – Vocês têm ideia de quanto tempo por ano passam fora do Recife?
Cannibal – A gente desce, pelo menos, umas três, quatro vezes. A base é São Paulo. Ano passado, a gente
conseguiu fazer Goiânia e alguns shows no Rio. A gente
recebe muita proposta para tocar em Minas Gerais, mas
296
Devotos 20 anos
é aquela coisa amadora. E a gente não está mais naquele
lance de pagar pra tocar.
Hugo – Já estão com material novo?
Neilton – Não.
Cannibal – A gente vai fazer agora igual a Sandy e Junior
(risos)...
Guilherme – Mas vocês pensam em fazer outro CD de
nove, dez faixas?
Cannibal – Vai ter a coletânea ao vivo. Neilton – A gente vai fazer o ao vivo e depois vai pensar.
A gente nunca coloca o carro na frente dos bois. Porque
a gente está produzindo muita coisa.
Cannibal – E fazer por etapas também.
Guilherme – E esse formato de CD? Vale a pena ainda
lançar CD?
Cannibal – Isso vai, com certeza.
Neilton – É o seguinte: eu estava discutindo dia desses
sobre o possível fim do CD. Como se pensava que teria
o final do vinil. Na Europa, ainda se vende muito vinil.
Nós ainda somos bem atrasados em termos de mentalidade de mídia. A gente fica muito bitolado com as novas
tecnologias. A gente paga o desenvolvimento de uma nova
tecnologia. E nem usufrui o suficiente daquela tecnologia que está em desenvolvimento pra partir pra ser ainda
mais moderno. Tudo tem que ser feito com equipamento
de ponta. A gente, na verdade, precisa reaprender a reutilizar as coisas. Que ainda têm uma vida útil muito grande.
Mesmo que a gente não enxergue. O CD como um suvenir não vai acabar. Não vai ser tão fácil trocar uma mídia.
Já se tinha o saco de você perder um álbum bonito como
Entrevista Devotos 20 anos
297
era o vinil pra pegar uma caixinha desse tamanho que é
o CD. Eu sou muito frustrado porque não consegui fazer
uma capa de vinil. Quando a gente começou a gravar já
era CD. Eu lembro que eu fiz uma capa gigante para colocar uma fitinha demo. Só pra ter uma capa grande. E o
lance todo é esse. Eu sou fã da tecnologia, mas eu sou
fã da gente explorar a tecnologia até o seu limite. Não dá
pra gente pagar sempre pra alguém ficar produzindo e
inventando novas tecnologias enquanto ainda não usufruímos o bastante do que temos à nossa disposição. A
sonoridade do vinil era melhor. O CD fodeu tudo. O MP3
está fodendo mais ainda.
Guilherme – A história toda é o formato. Ainda existe
aquela coisa de ter que fechar um CD com 12 músicas?
Na Internet, raramente você escuta dez músicas de uma
banda. E a gurizada vai baixando a esmo. Hoje em dia, é
muito melhor você ter três, quatro músicas boas, que ter
12 meia boca, precisar fazer “coxinha” pra preencher um
CD, de ter que colocar remix. E a Fresno, por exemplo,
lança uma música por mês na Internet. E você vai nos
shows e vê a gurizada cantando tudo. De repente, eles
encontraram o formato deles.
Neilton – O mais doido dessa história é que a gente está
indo para o lado de deteriorar as coisas. Esse lance da
Fresno realmente funciona pra eles porque a gurizada tá
a fim de consumir rápido. Mas também é uma coisa descartável. E a gente pensa numa coisa mais duradoura.
Quem me dera se a gente tivesse a possibilidade de voltar a usar vinil single. A qualidade de áudio seria outra.
É isso que se perdeu. A galera está mais interessada
em consumir do que propriamente em curtir. A curtição
virou outra situação. É um chiclete. Você mastiga e joga
fora. Tanto que a gente fica pensando nas possibilidades
de não desvincular o CD do encarte. Como a gente estava
298
Devotos 20 anos
falando antes. Fizemos questão que o nosso último trabalho (“Flores com espinhos para o rei”, 2006) respirasse.
Não é só uma discussão nossa, é uma discussão mundial
de quem trabalha com áudio. Da música ser valorizada
pela gravação, e não pelo mercado.
Hugo – Qual o disco dos Devotos que vocês ficaram mais
satisfeitos com o resultado final?
Entrevista Devotos 20 anos
299
é chamado de doido. Porque essa questão de você pegar
o CD e querer o encarte é um negócio que está morrendo.
Essa gurizada nova não quer. Ela está sendo mal-ensinada. Menosprezando o papel, o toque, o tato.
Hugo – Vocês conseguiram renovar o público dos Devotos ou é só velho que continua curtindo?
Todos – “Flores com espinhos para o rei”.
Neilton – Não, tem muita gurizada. Tem o vovô, o pai e
o neto.
Cannibal – O pior é o primeiro.
Celo – Impressionante, cara.
Hugo – Eu costumo dizer que o primeiro tem o melhor
repertório com a pior produção.
Neilton – É massa, cara. Ficam os pirralhos na frente
fazendo a roda, os pais tentando proteger e os avós lá
atrás só olhando (risos).
Cannibal – Justamente.
Guilherme – Quem foi que produziu o primeiro?
Cannibal – Lúcio Maia.
Guilherme – Pô, Hugo. Você tá pulando pra caramba. Tem
que conversar com essa gurizada que acessa o site.
Hugo – A gurizada que se vire e pesquise (risos).
Cannibal – Esse negócio que Neilton falou. Teve uma
menina que entrou hoje no Orkut e me perguntou onde
achava o primeiro disco dos Devotos. E dizendo que queria muito o disco, embora tivesse as músicas já. Ela queria o encarte e tal. E era uma menina que devia ter uns 15
ou 18 anos. Eu disse pra ela ir até a Galeria do Rock (complexo de lojas de discos em São Paulo) que ela acharia
entre os usados, embora devesse ser caro. Tem gente
que ainda quer o disco.
Neilton – Isso é muito doido. O gringo quando é fã é fã
mesmo. Aquela galera que curte Jornada nas estrelas (a
série de filmes) faz questão de ter tudo sobre o filme, de
se vestir igual. Aqui quase ninguém faz isso. E quem faz
Celo – Aí é que eu fico pensando: tem muito tempo
mesmo que a gente tem a porra dessa banda (risos)...
Guilherme – Das bandas que vocês viram nos anos 1990,
o que vocês acham que poderia ter vingado e ficou no
meio do caminho?
Cannibal – Moral Violenta era uma banda que… ixe! Era
uma banda que tinha aqui, e ensaiávamos juntos: Moral
Violenta e SS-20. Só que SS-20 era tipo Exploited. Era
a coisa mais radical que tinha no punk daqui. E o Moral
Violenta fazia um estilo meio Cólera. As músicas eram
bem pegajosas. Os caras eram do IPSEP. E tudo de temática social. Cada letra do caralho. É uma banda que se
ainda tivesse trampando ia dar muito o que falar. Mas
é porque, naquela época, nos anos 1980, só quem tinha
grana era que conseguia gravar. Tanto que a única banda
que gravou na época foi o Câmbio Negro. Foi pra São
Paulo, voltou pra Pernambuco e acabou a banda. Mas
era a única banda que conseguia gravar disco.
Neilton – E a gente escutava pra caralho.
300
Devotos 20 anos
Entrevista Devotos 20 anos
301
Cannibal – Eu ia muito pros shows deles. Ia pros ensaios,
ficava vendo os caras tocarem.
Neilton – Ali no Maluco Beleza, todos os shows, todas as
cinco edições do Abril Pro Rock, a gente foi andando.
Neilton – Teve uma época que a gente não tinha grana
pra ensaiar, e eles liberavam o estúdio pra gente. Nós
éramos bem amigos deles.
Cannibal – A gente passava no meio da galera carregando os instrumentos.
Cannibal – O legal daquela época era a irmandade que
rolava entre as bandas. O Alto seguia a cartilha do movimento punk, as bandas eram muito unidas. Todo mundo
ensaiava com o mesmo instrumento.
Guilherme – O metal era muito maior nessa época, né?
Cannibal – Sempre foi e ainda é. O metal ainda é muito
grande. E a gente estava no esquema deles. A gente
era fodido demais, muito tosco. Tocávamos sem equipamento. Tem uma foto de uns shows antigos em que
não tinha nem pedestal pro microfone. Ficava um cara
segurando o microfone pra eu poder cantar. E gente pra
caralho. E o som tosco. Só escutava o pém, pém , pém…
E a gente ia na traseira dos ônibus. Os shows eram no
Curado e a gente ia daqui pra lá na traseira do ônibus.
Quem tinha grana passava com os instrumentos e o
resto pulava aquela gaiola que existia nos ônibus. E voltava do mesmo jeito. Aí, quando chegava no Alto, levava
um baculejo da polícia. Toda vez era isso, não tinha jeito.
Deitava no chão, abria as pernas, aquela palhaçada
toda. E era sempre o mesmo policial que fazia a mesma
coisa com a gente.
Hugo – Teve um show dos Raimundos em 94, no Circo
Maluco Beleza, que vocês fizeram a abertura e estavam
tocando em outro lugar e foram até o Circo a pé.
Cannibal – A gente tava tocando no Forró Chique. E
fomos a pé até o Circo. Naquele tempo, a gente bebia pra
caralho.
Hugo – Do Alto até lá?
Neilton – Daqui pra lá, cara! Não tinha ônibus e não
tinha van. A gente saia a pé e colocava os instrumentos nas costas. Era do caralho porque tinha uma galera
bombadinha que ia de carro. Cada carrão do caralho, e
a galera passava gritando pra gente: “Porra, Devotos é
do caralho! E vruuuuuuuuummmmmmm (risos).” Teve
uma que eu nunca vou esquecer. A gente foi participar
daquela premiação da MTV, em 95 ou 96. Aí Cannibal
caprichou, pegou um casaco de general, que ganhou do
Chico Accioly. A gente foi de ônibus e chegou no aeroporto, foi a primeira vez que a gente viajou de avião. Aí
chegamos na MTV, Cannibal vestiu a roupa e a gente animado pra caralho. Entramos na fila pra entrar no local e
vimos Frejat no final dela, lá atrás, e a gente todo feliz
porque estava na frente do Frejat, Paula Toller (risos).
Aí depois da festa teve uns comes e bebes. E na festa
colocaram a gente na primeira fila, e a gente achando
lindo tudo aquilo. Os caras do Pato Fu sentados e a gente
acenando pra eles (risos). Maior goga a gente (risos). Aí,
quando a gente percebeu, começou a encher de gente,
que é onde a galera coloca gente pra dançar (risos). Cada
um de nós foi pra um lado e eu fiquei sentado na escada.
No vídeo em que Marcelo D2 está cantando com Falcão,
do Rappa, dá pra me ver sentado na escada. Aí no final
nós fomos pra um comes e bebes. Arnaldo Antunes gravando clipe, casa cheia de artista. E uma mesa gigante
com comida. Ficamos eu e Siba roubando comida porque a gente não sabia se ia ter o que comer no hotel. Aí
voltamos, dormimos no hotel, pegamos o voo de volta e
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Devotos 20 anos
chegamos no aeroporto do Recife sem um puto no bolso
e perguntado: “Meu irmão, como é que a gente vai voltar
pra casa (risos) ?” Foi todo mundo na traseira do ônibus.
Celo – Esse foi um dos bons momentos (gargalhadas).
Cannibal – E foi bom também porque eu lembro que Celo
era vegetariano. Quase que virava emo (risos). Aí ia ter
que tirar ele da banda, não ia ter jeito (risos). E ele não
comia carne. E a gente foi pra um lugar pra gravar o primeiro disco e não deu certo. A gente ficou numa casa
em que tomava o café da manhã e guardava o resto pra
comer de noite. Uma miséria do caralho. Aí teve um dia
que colocaram uma carne lá. Eu e Neílton começamos a
nos servir de carne. Aí perguntamos: “Celo não vai querer, né?” E ele: “Não vou querer uma porra (risos)!” Uma
fome do caralho, ele acabou com a carne toda (risos).
Neilton – Eu tava falando pro Hugo daquela nossa passagem pelo Rio, lembram?
Cannibal – Puta que pariu, só bons momentos (risos)...
Neilton – A gente ficou num hotel perto da gravadora
(BMG). Hotel três estrelas, com uma delas já apagando e
caindo (risos). E a gente tinha a grana contada pra tocar
e passar um mês lá. E o café da manhã da gente era pão
com queijo, uma banana e café com leite. Aí ficava assim
até a hora do almoço, geralmente às quatro e meia da
tarde, pra gente poder compensar o jantar, que não ia
ter. Todo dia era isso. E o resto da noite era a barriga
roncando.
Hugo – E vocês passavam por tudo isso sendo contratados da BMG?
Cannibal – Contratados!
Neilton – Bicho, era foda. A gente entrava naquele puta
prédio da gravadora, cheio de seguranças, de bermuda e
Entrevista Devotos 20 anos
303
chinelo para encher nossas garrafas de água. O passatempo da gente era ficar olhando as meninas na praia.
Hugo – Da nova geração de bandas do Recife, o que tem
chamado a atenção de vocês?
Cannibal – Rapaz, é difícil. Eu tenho escutado muita
velharia, muito dub e outras vertentes do reggae. Mas
aqui de Recife (pausa). Eu tenho visto os shows da Plugins, do D’Miopis, duas bandas promissoras.
Neilton – Eu só escuto coisa antiga.
Cannibal – Eu apresentei a última edição do Pátio do
Rock. Essa Júlia Says, que vai tocar no Rec-Beat, pra
mim vai ser a banda! Assim que essa galera conseguir
gravar e alguém que produza os caras, eu acho que vai
ser A banda. Eu vejo uma vida ali. Mas estamos em épocas diferentes. É tudo muito diferente do que era nos
anos 1990. Naquele tempo, existia um corpo a corpo
maior. Você sentia originalidade entre as bandas. A
galera hoje não pesquisa muito, e acaba fazendo uma
banda só por fazer mesmo. E acaba ficando tudo muito
igual. Tem que achar uma identidade, senão você fica
igual a todo mundo. A gente toca muito em São Paulo
por causa disso. Porque o hardcore da gente é diferente,
muito neguinho já disse isso. E se fosse igual às outras
bandas não rolava da gente ir sempre pra lá. Hoje eu
vejo, criativamente falando, a coisa muito menor do que
era nos anos 1980 e 1990. Criou-se uma peneira de lá pra
cá e só ficou quem era original. Teve até gente que saiu,
mas por outros motivos, porque arrumou família e precisou arrumar um meio de sustento fora da música.
Guilherme – Como é que está o CD de dub que você está
produzindo?
304
Devotos 20 anos
Cannibal – Eu pedi pra fazerem umas oito bases de músicas porque eu tinha umas letras sobrando. Aí quando
ficou pronto fiquei com vontade de reescrever as letras.
Aí escrevi tudo e entramos em estúdio e gravamos. Mas
aí tem umas coisas que ainda não estão legais. Principalmente de voz, coisa que ainda não está muito segura.
Tem muito buraco, muita coisa espaçada. Mas basicamente é um CD de dub com participação de Zé Brown, de
um poeta de Peixinhos e de Fred Zero Quatro que faz os
cavaquinhos.
Guilherme – Tem previsão de lançamento? Nome?
Cannibal – Não sei. A ideia era só gravar as músicas e
colocar na Internet pra galera baixar. Mas não sei se vai
ter nome. Eu só sei que não quero fazer show. Vai ser a
Enya da Jamaica (risos). É só uma coisa que eu gosto de
fazer e que a galera não vai ouvir muito nos Devotos.
Guilherme – E o Estereoclipe?
Cannibal – Me chamaram pra apresentar o programa. Já
tinham me chamado antes, quando China ainda participava. Mas eu disse que não era a minha praia. E disse
que não ia fazer o negócio porque eu não sei nem ler! Aí
combinaram da gente fazer um piloto. Só que o piloto foi
uma armadilha, porque já estava rolando. Depois disseram que ia rolar uma graninha e eu topei fazer. E a história é desconstruir a imagem do apresentador. Na verdade, eu dou um tema e deixo a galera falar. Se você for
ver o programa, eu falo muito pouco. E está sendo legal
porque o programa está indo muito pra área social, que é
um lance que a gente trampa já há algum tempo. Mas eu
nem vejo o programa. Eu vi uma vez e achei uma merda.
Não o programa, mas o meu desempenho. Aí resolvi não
ver mais. E acho que deveria sair daquela emissora, que
é religiosa e tal. O programa é gravado nas quartas e vai
Entrevista Devotos 20 anos
305
ao ar aos domingos. A emissora não tem nenhum compromisso social. Seria melhor se fosse veiculado na TV
Universitária.
Guilherme – E como vai ser o show do Rec-Beat?
Cannibal – A gente está ensaiando umas músicas antigas
do Inocentes. A gente não sabe ainda como vai ser a participação dele no show, se ele vai entrar no meio e ficar
até o final. E a ideia é ele fazer umas da gente também.
E ele foi a principal influência do estilo da banda. Eu,
particularmente, quando pensei em fazer uma banda,
foi quando escutei Inocentes, o “Pânico em SP”, que era
um single com quatro músicas. Parecia que ele estava
falando do Alto José do Pinho. E na época eu andava com
a rapaziada do punk mas eu curtia muito metal: Iron Maiden, AC/DC. Mas só fui me identificar com algo mesmo
quando ouvi Inocentes. Vi uma matéria sobre eles na
Bizz e comprei o disco deles num sebo. Me identifiquei
muito com as letras. Daí resolvi fazer a banda. Eu não
saco nada de inglês, tudo que escuto é nacional. E a
gente é filho do rádio. Não tínhamos dinheiro para comprar discos, então o jeito era ouvir rádio, que naquela
época, nos anos 1980, ainda tocava rock. Tá certo que
era um rock babaca do caralho, mas era rock.
308
Devotos 20 anos
Tudo que eu queria
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Imagens: índice
e créditos
P.85 Devotos no estúdio de ensaio
foto: Michele Souza
P.86-87
Alguns integrantes de bandas e amigos do Alto José do Pinho reunidos em frente a reforma do Bar do Orlando, em 1993
P.95
Faces do Subúrbio no festival PE no Rock, em 1998
P.101 Capa da coletânea de hip-hop “Cultura de Rua”
P.105
P.23 Praça central do Alto José do Pinho
foto: Guilherme Moura
P.24-25 Fiteiro do pai de Adilson Ronrona e Mercado Municipal
do Alto José do Pinho
foto: Guilherme Moura
P.26-27 Fachada da associação dos amigos do dominó
foto: Guilherme Moura
P.29
Sede do afoxé Ylê de Egbá
foto: Guilherme Moura
P.32-33
Muro do Bonsucesso
foto: Guilherme Moura
P.34-35 Alto José do Pinho
foto: Guilherme Moura
P.42-43 Devotos no início da carreira
foto: Junior “Petardo”
P.54-55
Cartaz do primeiro show dos Devotos do Ódio
P.60-61
Show dos Devotos do Ódio, em 1989, no bairro UR6, região metropolitana do Recife
foto: Marcus Asbar
P.67
Cartaz de festival punk na periferia do Recife em 1990
P.70-71 Guitarra feita por Neilton e Neilton com seu irmão Nilson e sua Capa do disco “Como é Triste de Olhar”
P.111
Adilson Ronrona
foto: Guilherme Moura
P.112
Capa da primeira fita demo do Matalanamão feita por Neilton
P.115
Integrantes do Matalanamão em 2000
foto: Jaqueline Maia (Jornal Diário de Pernambuco)
P.119 Neilton, Celo e Cannibal
foto: Michele Souza
P.125
Cartaz da versão paulistana do festival Rec-Beat, em 1994
P.128 Set list de show dos Devotos
foto: Fred Jordão - Imago
P.130-131 Devotos e Seu Antônio, inspiração para “Vida de Ferreiro”
em 1995
foto: Gil Vicente
P.134-135Capa da fita demo “Vida de ferreiro”, feita por Neilton em 1995
P.140-141 Cartaz do festival “Recife Summer Fest”, desenho feito por Neilton em 1994 e Cartaz do evento “natalino punk” “Não Papai Noel”, em 1989
P.152-153Neilton, Cannibal e Celo no Alto José do Pinho em 1993
foto: Fred Jordão
P.154-155 Show dos Devotos na segunda edição do festival Abril Pro
primeira guitarra, uma Giannini Sonic (1988)
Arquivo de família
Rock – Recife em 1994
foto: Fred Jordão
P.80 Cartaz de show underground no subúrbio de Prazeres, Jaboatão dos Gararapes, primeiro show com Neilton como guitarrista dos Devotos do Ódio, em 1989
P.163
Segunda formação do Matalanamão em 1994
foto: Gil Vicente
P.168 Devotos assinando com a BMG em 1996
foto: Jornal do Commercio
P.173
Cannibal eleva a bandeira de PE no encerramento da noite do sábado do festival Abril Pro Rock em1998
P.174-175 Tatuagem de Cannibal com uma estrofe da música “Alien”
do CD “Devotos” lançado em 2000
foto: Neilton
P.177
Capa feita por Neilton de “Agora tá Valendo”, lançado em 1997
P.182 Faces do Subúrbio em 2007
P.230-231Capa de “Quem é o pai?”, do Matalanamão, lançado em 2005
P.242-243Quadro de Neilton intitulado “ALT3”
P.244-245 “Imagens Puras 2” e “Na Linha do Tiro”
P.250-251Amplificador Altovolts, feito por Neilton, em 2009
foto: Neilton
P.256-257 Fachada do estúdio da Rádio Alto Falante
foto: Guilherme Moura
P.260-261 Corredor do Mercado Municipal
foto: Guilherme Moura
P.192-193Cannibal e Dado Villa-Lobos na gravação do segundo CD
em 1999 pelo selo Rock It!
foto: Maurício Valadares
P.268-269 Cartaz feito por Neilton do evento “Alto Falante 2 gravando o show”
P.196-197Devotos na cidade de Lisboa (Portugal), outubro de 2000
foto: Paulo André
P.306-307Show dos 20 anos dos Devotos, no Alto José do Pinho em 2008
foto: Michele Souza
P.198
P.308-309Capa feita por Neilton do CD “Devotos 20 anos” em 2009 e Primeiro show dos Devotos do Ódio no festival punk 3º Encontro Anti Nuclear, no centro do Recife, em 1988
foto da capa: Michele Souza
Capa feita por Neilton do disco “Devotos”, e o single “Alien”, lançado em 2000
P.201
Cenário dos shows dos Devotos feito por Neilton para o show
do CD “Devotos” em 2000
foto: Cannibal
P.211
Capa da coletânea Alto Falante, lançada em 1999
P.213 Cartaz do “Da Tribo Festival”, realizado em São Paulo, em 2000
P.219 Capa feita por Neilton de “A Hora da Batalha”, lançado em 2003
P.220-221Cartaz do show de lançamento de “A Hora da Batalha” no Angar 110, em São Paulo, em 2003.
Sobre o autor
Jornalista com pós-graduação em Jornalismo Cultural,
escreve sobre música desde 2002. Paulistano radicado no
Recife, trabalhou na Rádio Cidade, Folha de Pernambuco e
colaborou com as revistas Zero, Rock Press e OutraCoisa.
Desde 2003 trabalha como repórter e crítico de música do
site Recife Rock! Conheceu o Alto José do Pinho na metade
da década de 1990, e, desde então, acompanha de perto
toda a movimentação cultural de lá. É fã de rock, de samba
de breque, de cinema e de literatura.
Este livro foi composto em Akkurat.
O Papel utilizado para a capa foi o Cartão Supremo 250g/m².
Para o miolo foi utilizado o Pólen Bold 90g/m².
Impresso pela Prol Gráfica em março de 2010.
Todos os recursos foram empenhados para identificar e obter
as autorizações dos fotógrafos e seus retratados. Qualquer falha
nesta obtenção terá ocorrido por total desinformação ou por erro
de identificação do próprio contato. A editora está à disposição
para corrigir e conceder os créditos aos verdadeiros titulares.

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