INTERTEXTUALIDADE E PRODUÇÃO TEXTUAL

Transcrição

INTERTEXTUALIDADE E PRODUÇÃO TEXTUAL
Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras
UFF
www.revistaicarahy.uff.br
Edição n.06/2011
ISSN:2176-3798
INTERTEXTUALIDADE E PRODUÇÃO TEXTUAL
Cláudia Pereira da Cruz Franco
RESUMO
O presente trabalho expõe uma reflexão acerca da intertextualidade e sua pertinência no
ensino de produção textual. Com base na concepção sociocognitiva e interacional da
linguagem, de que trata Charaudeau, na concepção de gêneros textuais, segundo Marcuschi,
e no dialogismo entre os textos, busca-se mostrar como a intertextualidade torna-se um
recurso eficaz na construção do sentido objetivado pelo enunciador, a ser explorado no
ensino da produção textual.
Palavras-chave: intertextualidade; gênero textual; ensino da produção textual;
ABSTRACT
This article presents a reflection about intertextuality and its relevance in the teaching of
text production. Based on the sociocognitive and interactional conception of the language,
treated by Charaudeau, on the conception of textual genres, according Marcuschi, and on
the dialogue between the texts, it seeks to show how intertextuality becomes an effective
tool in building of meaning desired by the enunciator, to be explored in the teaching of text
production.
Keywords: intertextuality; textual genre; teaching of text production.
Introdução
A intertextualidade normalmente é tratada na interpretação de textos, sendo menos
comum na produção. Neste estudo, à luz do princípio sociocognitivo e interativo da
linguagem, postulado por Charaudeau, da noção de gêneros textuais de Marcuschi e da
Aluna do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da Universidade Federal Fluminense.
43
Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras
UFF
www.revistaicarahy.uff.br
Edição n.06/2011
ISSN:2176-3798
abordagem feita por Koch acerca da intertextualidade, procuramos mostrar sua eficiência
na produção de textos.
Não é nossa intenção aqui aprofundar quaisquer dos conceitos anteriores; antes,
interessa-nos como tais teorias podem auxiliar no processo de ensino/aprendizagem da
produção escrita. Entendemos que a noção de língua como prática social, em especial seu
aspecto de “transação”, e que a consciência de uma finalidade em todo ato comunicativo –
e suas respectivas peculiaridades traduzidas em gêneros – são essenciais para a formação de
um produtor de textos visto que a todo instante interagimos num mundo cada vez mais
globalizado.
‘Formas de bolo’ são comumente oferecidas aos estudantes, em especial de Ensino
Médio, a fim de que sejam bem-sucedidos no vestibular. Entretanto, sabemos que esse não
é o caminho para quem quer de fato ensinar ou aprender a expressão escrita, e que a autoria
se manifesta não por meio de ‘fórmulas’, mas pelo uso individual, em situações específicas,
de estratégias de que a língua dispõe.
Nesse sentido é que apresentamos a intertextualidade como ferramenta que o aluno
pode utilizar para montar seu texto. Ressalte-se que não tocamos aqui na questão da
polifonia dado seu aspecto mais abrangente. Embora estejam estritamente ligadas,
intertextualidade e polifonia não coincidem em sua totalidade já que nem sempre uma
polifonia é um caso de intertextualidade em virtude da ausência de um intertexto.
O presente trabalho constitui-se de abordagens teóricas e análises, em exemplos de
gêneros diversos, de como o intertexto contribui para a construção de sentido do texto.
44
Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras
UFF
www.revistaicarahy.uff.br
Edição n.06/2011
ISSN:2176-3798
Aspecto interativo da linguagem
É por meio do discurso que expressamos e entendemos a realidade que nos cerca.
Necessitamos, a todo instante, de expressar nossa compreensão do mundo, o que não se dá
unilateralmente já que somos seres sociais e, naturalmente, interativos. Como postula
Charaudeau (apud PAULIUKONIS e GAVAZZI, 2005: 14-16), a semiotização do mundo
se dá em duplo processo: o da “transformação”, em que um sujeito falante parte de um
“mundo a significar” e o “transforma” em “mundo significado”; e da “transação”, em que
o mundo significado se torna “objeto de troca” com um outro sujeito (destinatário deste
objeto).
Assim, parafraseando Charaudeau, podemos dizer que comunicação se dá por um
contrato de comunicativo, isto é, um ato de linguagem se realiza com uma troca entre o
sujeito comunicante (produtor de um ato de linguagem) e o sujeito interpretante (receptor),
os parceiros estão engajados num processo de reconhecimento e legitimação recíprocos;
eles ativam conhecimentos específicos da situação de comunicação em que se encontram
(“quem” diz “o quê” “a quem” com que “finalidade”), determinam “como” dizer a fim de
justificar seu “direito à fala” e estabelecem “estratégias discursivas” (seleção de categorias
de língua e modos de organização do discurso) a fim de lograrem no intento comunicativo.
Essa concepção interacional é corroborada por Koch (2002:15): “(...) o texto passa a
ser considerado o próprio “lugar” da interação e os interlocutores, como sujeitos ativos que
45
Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras
UFF
www.revistaicarahy.uff.br
Edição n.06/2011
ISSN:2176-3798
– dialogicamente – nele se constroem e são construídos.”, e ainda, “O sentido do texto é,
portanto, “construído” na interação texto-sujeitos (...).”
E é na realização desse contrato que os sujeitos comunicativos buscam ser bemsucedidos em sua intencionalidade discursiva. Na busca da construção do sentido, o
locutor/produtor do texto lança mão de recursos, como, por exemplo, o que aqui nos
interessa, a intertextualidade.
Tipos e gêneros textuais
Imprescindível no ensino da produção textual é a abordagem dos tipos e gêneros
textuais. Neste trabalho, escolhemos a conceituação de Marcuschi (2003), que, a nosso ver,
é ampla e facilitadora do trabalho do professor.
Segundo o autor, a expressão “tipo textual” designa “uma espécie de seqüência
teoricamente definida pela natureza lingüística de sua composição [aspectos lexicais,
sintáticos, tempos verbais, relações lógicas]. Em geral, os “tipos textuais” abrangem cerca
de meia dúzia de categorias conhecidas como: narração, argumentação, exposição,
descrição, injunção, enquanto a expressão “gênero textual” se refere a
(...) textos materializados que encontramos em nossa vida diária e que
apresentam características sócio-comunicativas definidas por conteúdos,
propriedades funcionais, estilo e composição característica. (MARCUSCHI,
2003:22-23).
46
Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras
UFF
www.revistaicarahy.uff.br
Edição n.06/2011
ISSN:2176-3798
Assim, um texto do gênero publicitário, por exemplo, pode conter características de todos
os tipos textuais; ou ainda, um tipo de texto pode apresentar vários gêneros (contos,
romances, novelas, carta pessoal etc são exemplos de textos narrativos).
É fundamental, para um ensino/aprendizagem de produção textual eficaz, essa
noção de tipo textual (aspectos lexicais, sintáticos, tipos verbais relações lógicas) e suas
inúmeras possibilidades de gênero, o que permite a produção de um texto adequado a sua
intencionalidade.
Assim, uma vez conscientizado do seu papel no jogo comunicativo, isto é, da
situação discursiva em que se encontra seu interlocutor e sua intenção, e conhecedor dos
tipos e gêneros textuais, o aluno torna-se capaz de lançar mão de estratégias e recursos
eficientes para o cumprimento de seu projeto de comunicação.
Não há, pois, como ensinar produção textual sem levar em consideração sua
natureza comunicativa, sociocultural, traduzida nos gêneros textuais.
Dialogismo
Vivemos cercados de textos, conversas cotidianas, notícias pelo rádio ou televisão,
propagandas, que a todo instante nos remetem a outros textos, ainda que não nos demos
conta.
No dizer de Bakhtin “O texto só ganha vida em contato com outro texto com
contexto. Somente nesse ponto de contato entre textos é que uma luz brilha, iluminando
tanto o posterior como o anterior, juntando dado texto a um diálogo entre textos(...)”
47
Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras
UFF
www.revistaicarahy.uff.br
Edição n.06/2011
ISSN:2176-3798
(BAKHTIN, 1986:162). Podemos dizer, nessa perspectiva, que um discurso nunca está
fechado em si mesmo, pois haverá sempre a possibilidade de uma outra voz.
O dialogismo é, pois, inevitável; o sujeito, por ser ao mesmo tempo individual e
social, constrói sua subjetividade de acordo com as relações sociais de que participa,
elaborando um discurso entrelaçado com outros discursos. Os interlocutores, para
compreensão e produção, ativam em sua memória um discurso pré-existente.
Importa, aqui, ressaltar a separação que Bakhtin faz de enunciado e texto. Para ele, o
enunciado é um todo de sentido que procura mostrar a posição de uma voz dentro da
sociedade, por isso mesmo exige uma réplica, isto é, uma resposta, pode ser verbal e nãoverbal, ao passo que texto “é a manifestação do enunciado, um conjunto de signos, uma
realidade imediata, dotada de materialidade.” (apud FIORIN, 2006:52)
Assim, podemos dizer que se chama interdiscursividade as relações dialógicas entre
enunciados, e “intertextualidade”, as relações dialógicas materializadas em textos.
Intertextualidade
Escolhemos como ponto de partida para o estudo específico de nosso objeto a
distinção feita por Koch (2003) entre intertextualidade em sentido amplo e restrito.
Em sentido amplo, ela se aproxima da noção de interdiscursividade, citada no item
anterior. Nessa ótica, o diálogo entre textos está não necessariamente no plano material, de
signos linguísticos, mas no plano do enunciado, da idéia (intenção). Corrobora
esse
conceito a afirmação de Maingueneau (1976:39; apud KOCH, 2003:61) de que “um
48
Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras
UFF
www.revistaicarahy.uff.br
Edição n.06/2011
ISSN:2176-3798
discurso não vem ao mundo numa inocente solitude, mas constrói-se através de um já-dito
em relação ao qual toma uma posição”.
Reconhecemos tal forma de intertextualidade em situações várias. Ao orientar uma
filha quanto à necessidade de preservar sua reputação resguardando sua virgindade, os pais
estão recorrendo, ainda que inconscientemente, aos preceitos de uma dada religião.
Vejamos ainda o exemplo a seguir:
Texto I
(Fonte: fotografia de outdoor do Hortifruti em Itaipu – 05/2011 )
49
Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras
UFF
www.revistaicarahy.uff.br
Edição n.06/2011
ISSN:2176-3798
Texto II
Papel da dieta na prevenção e no controle da inflamação crônica - evidências atuais
Júnia M. Geraldo; Rita de C. G. Alfenas
Departamento de Nutrição e Saúde da Universidade Federal de Viçosa (UFV), MG, Brasil
O papel dos componentes dietéticos na prevenção das doenças crônicas tem merecido considerável atenção. O
Terceiro Painel de Tratamento de Adultos (Adult Treatment Panel III - ATP III) do Programa Nacional de
Educação sobre o Colesterol (National Cholesterol Education Program - NCEP) recomenda uma série de
alterações no estilo de vida, como base da terapia para prevenção das doenças cardiovasculares (DCV). A
dieta proposta pelos especialistas inclui a redução da ingestão de alimentos ricos em gordura saturada e
colesterol, aumento do consumo de fibra alimentar, hortaliças e frutas, além da prática regular de atividade
física e do controle ponderal(...)
(Disponível em:www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid. Acesso em:10/07/2011)
A propaganda do Hortifruti dialoga com o artigo científico, já que ambos tratam do
efeito da gordura saturada para o corpo. Em outras palavras, o efeito de sentido da
propaganda é possível pelo resgate na memória de ‘dizeres’ científicos, como o do artigo,
de que a gordura saturada faz mal ao coração.
Em sentido restrito, a intertextualidade se dá com “a relação de um texto com
outros textos previamente existentes, isto é, efetivamente produzidos” (KOCH: 2003). No
texto lido, o leitor deve reconhecer marcas de um outro com o qual dialoga, isto é,
imprescinde-se a presença de um “intertexto”. À luz desta abordagem, passaremos a
apresentar alguns tipos de intertextualidade restrita.
50
Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras
UFF
www.revistaicarahy.uff.br
Edição n.06/2011
ISSN:2176-3798
■ Temática
Um mesmo conteúdo é partilhado em textos diversos – de uma mesma área, entre matérias
de jornais diversos (mídia em geral), entre matérias de um mesmo jornal etc.
Supremo derruba validade da ficha limpa nas eleições de 2010
Voto
do
ministro
Luiz
Fux
definiu
posição
Lei que barra candidatos condenados só valerá em eleições de 2012.
do
STF
sobre
o
tema.
(Disponível em: http://g1.globo.com/politica/noticia. Acesso em:14/04/2011 )
(Fig. 1 – “DA LAMA AO ESTADO DE DIREITO”, charge de Leonardo. Fonte: Jornal Extra, 27/03/2011)
Nota-se que ambos os textos tratam do mesmo assunto: o impedimento da
aplicação, para eleições de 2010, da lei que torna inelegíveis pessoas condenadas por
determinados crimes ou parlamentares que renunciaram ao cargo para evitar abertura de
processo por quebra de decoro ou por desrespeito à Constituição e fugir de possíveis
punições. É interessante chamar a atenção do aluno para as características de cada gênero.
51
Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras
UFF
www.revistaicarahy.uff.br
Edição n.06/2011
ISSN:2176-3798
■ Forma / Conteúdo
Quando a mesma linguagem (estilo, registro, variedade) é usada com fins específicos
(imitação, paródia etc.).
Poema das sete faces
Quando nasci,
Um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
(...)
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
(...)
(ANDRADE,Carlos Drummond de.
Drummond
Sentimento do Mundo..Rio de Janeiro:Editora Record,1999)
Até o fim
Quando nasci veio um anjo safado
O chato dum querubim
E decretou que eu tava predestinado
A ser errado assim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim
(...)
Chico Buarque
(Disponível em:www.chicobuarque.com.br.Acesso em 10/07/2011)
Com licença poética
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
(...)
Adélia Prado
(Disponível em: http://pensador.uol.com.br/autor/adelia_prado/ . Acesso em 10/07/2011)
52
Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras
UFF
www.revistaicarahy.uff.br
Edição n.06/2011
ISSN:2176-3798
O texto de Drummond é retomado por Chico Buarque e Adélia Prado tanto em sua forma,
poema e repetição da estrutura do primeiro verso “Quando nasci (...) um anjo (...)”, quanto
ao conteúdo, destino anunciado por um anjo, ainda que com postura diferente do sujeito
poético – no texto de Chico, ele é irreverente e usa linguagem coloquial, e no de Adélia, ele
toma a voz da mulher e vê seu destino de maneira positiva.
■ Explícita
Há citação da fonte do intertexto; são frequentes as referências, citações, menções,
resumos, argumentos de autoridade.
Tênis e frescobol
Depois de muito meditar sobre o assunto concluí que os casamentos são de dois tipos: há os casamentos do
tipo tênis e há os casamentos do tipo frescobol. Os casamentos do tipo tênis são uma fonte de raiva e
ressentimentos e terminam sempre mal. Os casamentos do tipo frescobol são uma fonte de alegria e têm a
chance de ter vida longa.
Explico-me. Para começar, uma afirmação de Nietzsche, com a qual concordo inteiramente. Dizia
ele: ‘Ao pensar sobre a possibilidade do casamento cada um deveria se fazer a seguinte pergunta: ‘Você crê
que seria capaz de conversar com prazer com esta pessoa até a sua velhice?' Tudo o mais no casamento é
transitório, mas as relações que desafiam o tempo são aquelas construídas sobre a arte de conversar.’
Xerazade sabia disso. Sabia que os casamentos baseados nos prazeres da cama são sempre decapitados
pela manhã, terminam em separação, pois os prazeres do sexo se esgotam rapidamente, terminam na morte,
como no filme O império dos sentidos. Por isso, quando o sexo já estava morto na cama, e o amor não mais se
podia dizer através dele, ela o ressuscitava pela magia da palavra: começava uma longa conversa, conversa
sem fim, que deveria durar mil e uma noites. O sultão se calava e escutava as suas palavras como se fossem
música. A música dos sons ou da palavra - é a sexualidade sob a forma da eternidade: é o amor que ressuscita
sempre, depois de morrer. Há os carinhos que se fazem com o corpo e há os carinhos que se fazem com as
palavras. E contrariamente ao que pensam os amantes inexperientes, fazer carinho com as palavras não é
ficar repetindo o tempo todo: ‘Eu te amo, eu te amo...’ Barthes advertia: “Passada a primeira confissão, ‘eu
te amo' não quer dizer mais nada.’ É na conversa que o nosso verdadeiro corpo se mostra, não em sua nudez
anatômica, mas em sua nudez poética. Recordo a sabedoria de Adélia Prado: ‘Erótica é a alma.’ (...)
Rubem Alves
(Disponível em http://www.rubemalves.com.br/tenisfrescobol.htm Acesso em 10/07/2011)
Antes mesmo de apresentar sua tese – de que existem relacionamentos como o tênis e como
o frescobol – o autor a fundamenta em textos alheios, como se pode observar em nossos
53
Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras
UFF
www.revistaicarahy.uff.br
Edição n.06/2011
ISSN:2176-3798
grifos, imprimindo ao seu um tom poético que lhe é peculiar. Exemplos como esse
permitem nosso aluno perceber que o ato de escrever pode ser bem mais interessante e
versátil do que imagina, que ele, também, pode lançar mão da intertextualidade para seu
processo de criação verbal.
■ Implícita
Caracteriza-se pela ausência da citação da fonte do intertexto; é necessário que o
interlocutor resgate-o na memória para a construção do sentido.
(Fig. 2 – Banksy-Napalm – Disponível em http://www.flickr.com/groups/banksy Acesso em 10/07/2011) :
54
Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras
UFF
www.revistaicarahy.uff.br
Edição n.06/2011
ISSN:2176-3798
(Fig. 3 – Foto icônica da Guerra do Vietnã. Fonte: Disponível em: http://forum.mundofotografico.com.br
Acesso em: 10/07/2011)
Neste exemplo o artista recorre à imagem da menina vietnamita, veiculada em jornais
na época da guerra do Vietnã (junho de 1972) e postada em livros de História, agora de
‘mãos dadas’ com seu agressor, EUA, aqui representados pelos ícones americanos Mickey
(Disney) e Ronald ( MacDonald), com a finalidade provável de criticar o ‘perdão’ da
vietnamita expresso por um aperto de mão ao presidente americano Bill Clinton , entre
outras interpretações. A construção de sentido só é possível com o conhecimento prévio da
foto original.
Outro exemplo:
Eros e Psique
(...)
Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.
55
Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras
UFF
www.revistaicarahy.uff.br
Edição n.06/2011
ISSN:2176-3798
Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.
Mas cada um cumpre o Destino –
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.
A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera.
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.
E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E, vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora.
Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado
Ele dela é ignorado.
Ela para ele é ninguém.
E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.
Fernando Pessoa
(Disponível em: andreegs.sites.uol.com.br/eros_e_psique.htm Acesso em 10/07/2011)
Para falar das questões mais profundas e tão comuns da inquietude humana, o amor e o
autoconhecimento entre outras, o poeta faz referência não só ao mito grego Eros (amor) e
Psique (alma) como também ao conto infantil A Bela Adormecida; o resgate dos intertextos
é possível pelos substantivos Eros, Psique, Infante e Princesa Adormecida.
Consideramos ainda um caso de intertextualidade implícita o ‘Détournement’,
termo que “(...) consiste em produzir por meio de adições, subtrações, substituições etc, um
enunciado que possui as marcas lingüísticas de uma enunciação proverbial, mas que não
pertence ao estoque de provérbios conhecidos.” (GRÉSILLON & MAINGUENEAU, 1984;
apud KOCH, 2010:105). Podemos, ainda, dizer que é uma retextualização não só de
provérbios como também de outros enunciados muito utilizados em práticas comunicativas
como anúncios, charges, poemas, títulos de filmes ou matérias jornalísticas:
56
Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras
UFF
www.revistaicarahy.uff.br
Edição n.06/2011
ISSN:2176-3798
(Fig. 4 – Título de matéria de notícia. Fonte: O Globo, 02/05/2011)
Aqui o jornalista reconstruiu a frase popular “Uma luz no fim do túnel”, utilizada para
demonstrar a esperança mesmo em situações difíceis; ao substituir ‘fim do túnel’ por
‘fundo do mar’ o jornalista anuncia a esperança, depositada no encontro da caixa preta no
fundo do mar, de se desvendar o mistério sobre a queda do voo 447 da Air France.
Tal recurso pode ser muito interessante para o aluno ao ser requisitado a produzir
textos publicitários ou charges, dado seu aspecto lúdico.
■ Diferenças e semelhanças
Por semelhança: o texto apoia-se no intertexto para respaldar uma orientação
argumentativa.
“Corajoso o artigo de Lya Luft sobre as cotas nas universidades (Ponto de vista, 6 de
fevereiro de 2008). Ela aborda com propriedade aspecto do tema que são sistematicamente
empurrados para debaixo do tapete pelos entusiastas da ideia. Se não bastassem os
argumentos da articulista, pergunta-se, ainda, como já perguntou Veja: cotas para quê? (...)”
(Fonte: H.P.M – João Pessoa, PB. In: CEREJA e COCHAR Texto e Interação.São Paulo:Atual, 2009)
57
Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras
UFF
www.revistaicarahy.uff.br
Edição n.06/2011
ISSN:2176-3798
O autor demonstra sua opinião contrária às cotas universitárias fazendo alusão a texto de
Lya Luft e da revista Veja. Tal estratégia é muito útil para que se confira ao próprio
discurso certa credibilidade.
Por diferença: “o texto incorpora o intertexto para ridicularizá-lo, mostrar sua
improcedência ou, pelos menos, colocá-lo em questão (paródia, ironia, estratégia
argumentativa da concessão ou concordância parcial)”, como diz Koch (2003:63).
Canção do exílio
Nova canção do exílio
Minha terra tem palmeiras,
Um sabiá na
Onde canta o Sabiá;
palmeira, longe.
As aves, que aqui gorjeiam,
Estas aves cantam
Não gorjeiam como lá.
Um outro canto.
(...)
(...)
Gonçalves Dias
(CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES,
único.3.ed.reform.São Paulo:Atual,2009.p49-50)
Drummond
Thereza
Cochar.
Gramática
Reflexiva:volume
A Canção do exílio tem sido um dos textos com o qual mais se estabelece intertextualidade,
ora aderindo-se ao tom ufanista, ora afastando-se. No exemplo, para além da questão do
estilo literário, Drummond retoma o texto com a intenção de criticar a situação degradante
do nosso meio ambiente – o que fora motivo de exaltação agora é de lamento.
58
Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras
UFF
www.revistaicarahy.uff.br
Edição n.06/2011
ISSN:2176-3798
Vejamos ainda outro exemplo:
O mundo para todos
Durante debate recente, nos Estados Unidos, fui questionado sobre o que pensava da internacionalização da
Amazônia.(...) um debatedor determinou a ótica humanista como ponto de partida para uma resposta minha.
(...) Respondi que, como humanista, sentindo o risco da degradação ambiental que sofre a Amazônia, podia
imaginar a sua internacionalização como também de tudo o mais que tem importância para a Humanidade.
(...)
(...) Como humanista, aceito a internacionalização do mundo. Mas, enquanto o mundo me tratar como
brasileiro, lutarei para que a Amazônia seja nossa. Só nossa.
Cristovam Buarque
(Disponível em http://zamorim.com/textos/amazonia.html Acesso em 04/2011)
Cristovam Buarque teve, nessa situação, um intertexto pré-determinado (discurso
humanista) a partir do qual deveria dar sua opinião sobre a internacionalização da
Amazônia. Ele distancia-se do mesmo questionando-o, colocando em xeque a sua validade:
se os patrimônios das maiores potências e a miséria humana não são considerados ‘bens da
humanidade’, a Amazônia também não deve ser. Estes são exemplos para o aluno de como
ele pode usar a intertextualidade para respaldar seus argumentos – aderindo ou se
distanciando do intertexto.
■ Intertextualidade com enunciador genérico
Enunciações próprias de um enunciador indeterminado, representante de uma opinião geral
de uma comunidade (provérbios e ditos populares).
59
Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras
UFF
www.revistaicarahy.uff.br
Edição n.06/2011
ISSN:2176-3798
“ – E o senhor quer negar? Se não fosse ela, eu não perdia meu emprego. Foi ela. E, veja o
senhor, eu não gostava daquilo. Muitas vezes opinei, sem rebuço: - “ D. Madalena, seu
Paulo embirra com o socialismo. É melhor a senhora deixar de novidade. Essas conversas
não servem.” Está aí. Papagaio come milho, periquito leva a fama. O periquito sou eu.”
Graciliano Ramos
(RAMOS, Graciliano.São Bernardo.Rio de Janeiro:Record,1981.p.147)
Padilha, em intriga com Paulo Honório, defende-se, fazendo-se de vítima, para o que
recorre ao dito popular destacado acima. Não raro garantimos a validade de nosso
argumento com o apoio de uma opinião geral aceita como verdade.
Considerações finais
Considerar a intenção comunicativa é fundamental para o ensino de produção
textual. Pela própria característica dinâmica e veloz da língua, surgem espontaneamente
‘modos’ comunicativos para atender às necessidades dos falantes.
Rejeitar linguagens típicas de determinadas situações como a de sites de
relacionamento, em geral com abreviações e alheias a normas gramaticais, e centrar o
ensino da produção escrita no código linguístico é negar a natureza social da língua.
É senso comum que “escrever bem é não cometer erros de ortografia ou sintaxe”.
Tal idéia desconsidera o caráter sociocomunicativo da língua, ignora que qualquer ato de
produção está imbuído de intenções, dentro de um contexto sociocognitivo que engloba não
60
Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras
UFF
www.revistaicarahy.uff.br
Edição n.06/2011
ISSN:2176-3798
só os conhecimentos linguísticos, como também os conhecimentos de mundo, de situações
comunicativas, às quais o texto deve se adequar.
Os gêneros textuais tornam-se, assim, base de qualquer aula de produção de texto. A
formação de um escritor proficiente deve fundamentar-se na conscientização do aluno de
que “(...) texto é uma entidade concreta materialmente corporificada em algum gênero
textual.” (MARCUSCHI, 2003:24) e manifestação de um discurso. Oferecer ao estudante
esse conhecimento é, no mínimo, democrático.
Importa no ensino de produção textual que o aluno domine, além da norma culta,
estratégias, recursos, a fim de produzir um texto coerente com sua finalidade comunicativa.
A intertextualidade, como podemos ver neste trabalho, é um bom exemplo; ela configura-se
como recurso eficaz na construção do sentido de um texto, conferindo-lhe coerência e
muitas vezes credibilidade. Utilizá-la com propriedade, como apoio argumentativo ou
simplesmente como um jogo lingüístico, pode garantir um texto original e eficiente.
61
Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras
UFF
www.revistaicarahy.uff.br
Edição n.06/2011
ISSN:2176-3798
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M.; VOLOCHINOV, V.N. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Trad. Michel
Lahud e Yara Fratesdri Vieira. São Paulo: Hucitec, 1986.
CHARAUDEAU, Patrick. Uma análise semiolinguística do texto e do discurso. In:
PAULIUKONIS, M. A. L. e GAVAZZI, S. (Orgs.) Da língua ao discurso: reflexões para o
ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005, p. 11-27, 2005.
FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: 2006.
KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça & ELIAS, Vanda Maria. Ler e escrever: estratégias de
produção textual.2.ed. São Paulo: Contexto, 2010.
_________. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 2003.
_________. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONISIO,
Ângela Rachel & BEZERRA, Maria Auxiladora (orgs.). Gêneros Textuais & Ensino. Rio
de Janeiro: Lucerna, 2003.
TROUCHE, LYGIA Maria Gonçalves. Leitura: Polifonia e intertextualidade. In: PERES,
Deila Conceição; OLIVEIRA, Célia Regina de; SOUZA, Eliane Lage; HEFFNER, Gisele
& AFFONSO, Lucia Reis (orgs) 1º Seminário sobre leitura e escrita. A redação no
vestibular da UFF. Niterói – RJ, 2006.
62