Livro Byzas - Centro de Referências Faster

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Livro Byzas - Centro de Referências Faster
Byzas
Centro de Referências FASTER
BYZAS
(Eu, Sísifo II)
Otto Marques da Silva, UBE
Cotia
2016
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INTRODUÇÃO
Tendo revisto de uma forma cautelosa as principais informações disponíveis na
História da Humanidade a respeito da existência de pessoas com deficiências
em realidades anteriores a Jesus Cristo, por meio do volume inicial de Eu,
Sísifo, nada mais esperado do que prosseguirmos com o mesmo esforço para
os séculos posteriores.
O motivo principal tem sido desde o início gradativamente adentrar o mundo
coberto pela História, a Mestra da Vida, em realidades que mais se relacionam
com a nossa e que vão ficando mais próximas no tempo.
Nesse sentido, sempre contando com as informações inseridas nas muitas
obras de historiadores os mais variados, encontramos condições de comentar
para o prezado leitor, pontos de real importância na evolução das atitudes para
com pessoas que viveram com alguma lesão. Conseguimos também
informações sobre pessoas que foram vítimas de penas mutilatórias impostas
por leis sem piedade, próprias de seus dias, principalmente nos muitos séculos
do Império Bizantino.
Ao repassar esse longo período de tempo, ressaltamos muitos casos, tanto de
destacados quanto de obscuros nomes registrados na História, que, por
motivos variados, foram vítimas de problemas que limitaram sua atuação,
devido a dificuldades de ordem física, sensorial ou múltipla, em realidades que
ainda não dispunham de uma ciência médica capaz de dar assistência a todos
os problemas decorrentes das anomalias existentes.
Dentre essas pessoas, algumas chamam a atenção por atuações ou papéis de
alta relevância em sua realidade. No entanto, são mencionadas sem maiores
preocupações quanto a suas dificuldades eventuais por obras que,
circunstancialmente ou não, cobrem momentos especiais da História Universal.
É intenção deste trabalho continuar chamando a atenção para sua existência e
para a relevância que tiveram nos dias em que viveram, a despeito das
desvantagens provocadas pelas lesões que as atingiram.
Dessa forma, como o prezado leitor irá notar, estaremos fazendo juntos, um
vôo alto de reconhecimento pela História da Humanidade, procurando sempre
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que possível localizar exemplos de pessoas – famosas ou não - que
vivenciaram problemas decorrentes de deficiências das mais variadas
naturezas.
E para tanto contaremos, como no primeiro volume de Eu, Sísifo, com obras
famosas de historiadores renomados, com leis consagradas recebidas de
gerações passadas ou culturas já extintas, com ações promovidas por
sentimentos cristãos, ou com documentos que chegaram até nós em obras
reconhecidas universalmente.
Neste volume, faremos um rápido passar pelos séculos posteriores a Jesus
Cristo e que antecederam a Renascença, cujos heróis de alguma forma
vicejaram na Europa Cristã antes da queda de Constantinopla. No entanto,
ressaltamos que, nesse longo período de tempo, é lamentável, mas estaremos
encontrando também aqueles personagens que em muitos aspectos
envergonharam a própria História da Humanidade.
Esses levantamentos e discussões cobrem temas que são os mais cruciais na
grande e multissecular luta pela inclusão social das pessoas com deficiência,
bem antes dos desafiadores dias da atualidade.
Otto Marques da Silva
Membro da UBE - União Brasileira de Escritores
Cotia, em maio de 2016
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Capítulo I - PROPOSTA
Ouvindo o som um pouco abafado de rotores, ainda muito distante, mas que
aos poucos ia aumentando na direção do XPTO Voturuna, Sísifo deixou seu
computador ligado no programa DOSVOX e colocou-se em pé ao lado de sua
mesa de trabalho na sala dos assistentes. Começou a sentir seu coração bater
mais forte e uma sensação de algo que lhe parecia muito estranho e urgente.
Era uma espécie de pressentimento que não sabia de onde vinha.
Percebeu, então, com muito mais clareza, a aproximação inusitada de um
helicóptero.
- Você está ouvindo o que estou ouvindo, não está, Helena?
- Estou, sim, Luis Carlos... Não sei, não, mas estou tendo a sensação clara de
que vem vindo alguém diferente e importante por aí... se é que essa máquina
vem de fato para cá!...
- Concordo, se de fato essa espécie de nave vem mesmo para cá. Ela pode
simplesmente passar por cima e ir para São Roque, Itu... ou para qualquer
outro lugar... Não é mesmo?
- Mas se aqui for seu destino, meu caro, fique você sabendo que será a
primeira vez que isso acontece em nossos ambientes desde que aqui cheguei
faz um tempão, afirmou Labda.
O som característico dos rotores foi aos poucos dominando o ambiente
normalmente muito silencioso de todo o complexo do XPTO Voturuna,
provocando no gramado do amplo jardim interno da entrada um verdadeiro
turbilhão de folhas secas no ar.
Mesmo antes do motor do helicóptero ter parado, os dois haviam interrompido
o que estavam fazendo, ouvindo vozes distantes, orientações apressadas e um
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pouco de corre-corre. Logo em seguida, deixando de lado seus computadores
ligados, caminharam na direção da escada de acesso aos ambientes gramados
do alto do XPTO Voturuna.
Antes de lá chegarem, surgiu no alto da escada de acesso ao salão, onde os
assistentes procuravam trabalhar, ainda assustados, a figura esbelta de
Eurínome, usando um vestido longo.
- Labda, Sísifo... por favor, venham até aqui, fez ela a meia voz, com gestos
insistentes na direção dos dois.
Rapidamente Labda foi subindo os degraus de dois em dois na direção de
Eurínome, seguida pelos olhares preocupados dos assistentes.
- O que foi, Eurínome? Que tumulto foi esse aí fora? perguntou mesmo antes
de chegar.
- Mestre Joshua é que chegou de helicóptero, sussurrou ela.
O coração de Labda deu um salto. Apoiou-se no corrimão por um instante,
levou as mãos aos lábios e depois ao peito e com alguma força agarrou o
braço de Eurínome, respirando fundo. Sísifo subiu rapidamente a escada,
colocou-se ao lado de Labda e ao ouvir a informação assustou-se também e
cruzou os braços com firmeza.
- Ele está acabando de descer dessa máquina incrível e vem vindo para cá,
informou ela com certa ansiedade.
Até aquele dia, ou seja, dez dias depois de Masada, Labda e Sísifo não haviam
comentado em pormenores, nem com Eurínome, nem com Mestre Agostinho,
sobre o que sucedera nas areias do Mar Morto entre eles e Mestre Joshua,
apesar das cobranças e indiretas eventuais de Eurínome. Mesmo sem terem
formalmente decidido, ambos sentiam que deviam manter uma espécie de
segredo bem fechado.
Eurínome vez por outra alegava que Labda andava diferente, estranha, menos
sorridente e pouco falante, como era costumeiro acontecer quando estava meio
adoentada ou tristonha. Mas no fundo de sua alma, apesar do pouco que
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soubera com relação ao passeio ao mar Morto, além do repasse muito claro
por parte de Heródoto sobre os desdobramentos futuros, ela associava essas
diferenças de atitudes de Labda ao projeto que estavam concluindo. Todos, de
uma certa forma, estavam vivendo dias cruciais e de grandes expectativas
quanto a um futuro ainda um pouco incerto.
Eurínome já havia pensado o quanto a reunião com Heródoto em Masada, na
noite da finalização dos trabalhos em Israel, havia deixado felizes todos os
presentes. Além de provocar uma alegria muito espontânea em Noelma, ela
havia notado que as informações haviam colocado um sorriso aliviado nos
lábios de Labda e de Sísifo.
Na ocasião havia ficado muito claro que os quatro deveriam continuar, com
Eurínome vinculando-se mais ao papel específico de consultoria e a uma
contínua cobertura em todos os aspectos do projeto cobertos por Heródoto.
Naqueles dias que corriam, entretanto, a ênfase principal dos trabalhos dos
assistentes não estava mais nas diversas etapas a serem cobertas com a nova
direção e objetivos, mas sim na finalização e na análise crítica da síntese dos
relatos sobre pessoas com deficiência na cultura hebraica de milênios antes de
Cristo. Esse desafio todo deveria ocorrer antes da sua aprovação, da
indispensável duplicação e da remessa aos membros do Grupo de Trabalho,
que deveriam aguardar por meio dos costumeiros e-mails e seus respectivos
anexos.
Eurínome, com um grande sorriso, abriu a porta de vidro que dava para o
gramado externo para Joshua, vestido com um traje esporte fino, blazer com
uma camisa clara e uma gravata sóbria, muito elegante como sempre,
mostrando um sorriso muito espontâneo.
Saudou Eurínome com um tom descontraído de agradecimento, olhando
depois para Sísifo e Labda:
- Salve, Eurínome! Obrigado! Isso é que é recepção! E salve, salve, meus bons
amigos do Mar Morto! Temos os dois juntos aqui. Que bom!
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Abraçou os dois rapidamente, mas, notando os olhos meio assustados de
Labda, aproveitou que Eurínome havia caminhado de volta ao amplo gramado
do jardim interno onde o helicóptero estava estacionado, para dar orientações
ao piloto, com ambas as mãos abertas, fez três vezes um sinal para baixo,
dizendo num sussurro:
- Calma... calma, vocês dois!...Por enquanto ninguém deste lugar sabe o que
só vocês dois sabem a meu respeito... E assim precisaremos continuar por
algum tempo. Será um segredo entre nós três apenas. Aqui, agora e por algum
tempo mais, para todos os efeitos, sou apenas Mestre Joshua, está certo? Eu
sei bem que não é fácil, mas fiquem tranqüilos e o mais natural possível para
comigo
e
nas
diversas
situações,
que
vocês
conseguem.
Estamos
combinados? Sou eu mesmo que diz: Para todos no XPTO Voturuna sou
Mestre Joshua, nada mais!...
Ao olhar fixamente o rosto de Joshua e seus olhos castanhos expressivos, tão
pertinho, Labda sentiu seu coração pulsar tão forte que apertou as mãos no
peito, como se conseguisse diminuir suas batidas. Sob os olhares atentos de
Sísifo, bem ao seu lado, ela segurou as mãos de Joshua entre as suas e
murmurou com a voz meio embargada, um pouco atrapalhada e olhos
marejados de lágrimas de profunda emoção.
- Mestre... Joshua!...A gente entende, sim...
Baixando bastante a voz, continuou:
- Jesus... Meu Deus... Que alívio e prazer encontrá-Lo outra vez!
Com sua pasta de documentos debaixo do braço, ele se aproximou mais dela
de uma forma bastante descontraída, sorridente e com seu braço direito livre
segurou-a pelos ombros com carinho. Logo em seguida tomou sua mão direita
e comentou:
- Você está com a mão fria e um pouco pálida, Labda... Até parece que eu
assustei você. Eu não sou tão feio assim, sou? riu ele para descontraí-la,
enquanto segurava o braço de Sísifo com sua mão esquerda.
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Os dois sorriram sem jeito da observação e ficaram um pouco mais à vontade.
Rapidamente Labda enxugou suas lágrimas com a palma da mão direita,
enquanto Eurínome voltava com toda a pressa para perto deles e observava:
- Que bom encontrar você outra vez, não é mesmo, Mestre? Acho que todos
nós adoramos essa sua idéia diferente de vir de helicóptero, não é mesmo,
Labda e Sísifo?... Achei bem diferente... observou ela com um tom de voz um
pouco alterado, olhando-o com bastante atenção e notando seu traje elegante.
- Bonito conjunto o seu, Mestre... Gostei!
- Obrigado, Eurínome. Antes de eu sair de casa sempre conto com uma
supervisão que me ajuda um bocado, pode acreditar... Minha mãe é uma
orientadora implacável.
Do seu lado, sem saber muito o que dizer, Labda sorriu da informação, mas
não se conteve e perguntou imediatamente:
- Me diga... Sua mãe está bem?...Afinal, ela gostou da sua plantinha?
- Ela está muito bem, sim. No aniversário dela, que foi outro dia... na verdade
no dia 15 de agosto, ela ficou encantada com aquela plantinha que eu havia
comprado na lojinha de Masada, lembra? Ela sempre teve uma forte predileção
por plantas e flores. Acho que ela mandou um agradecimento a você pelo beijo
que você me encarregou de transmitir...
- Imagine... Foi só um beijo de saudação que eu mandei... E ela me escreveu
um cartãozinho lindo que eu mostrei ao Luis Carlos e que tenho guardado no
meu quarto, com todo o meu carinho.
Enquanto falavam, devagar os dedos dela foram passeando pelo dorso da mão
de Joshua, envolvendo seus dedos e chegando à sua cicatriz no punho, num
gesto de um respeito profundo e muito carinhoso. Muito comovida com sua
proximidade, seu coração repetia em silêncio, como se fosse uma oração:
- Meu Deus amado... Você está aqui comigo... Estou segurando sua mão!...
Obrigada!...
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Aproveitando outro rápido afastamento de Eurínome antes de começar a
descer a escada, Labda conseguiu murmurar, olhando-o com intensidade:
- Obrigada por tudo, Mestre... Joshua... Jesus! O Luis Carlos e eu sabemos
muito bem que é a Você, nosso Deus de sempre, que a gente deve as
soluções encontradas para o nosso antigo problema, como parte das novas
providências para o projeto como um todo, não é verdade?
- Foi uma solução discutida entre meu Pai, o Pará e eu... Não se preocupem,
meus caros... Foi, portanto, uma deliberação a três, ouviu, Helena de Corinto?
enfatizou Joshua, brincando com ela e sacudindo um pouco suas mãos, na
tentativa de fazê-la descontrair-se um pouco.
- Entendi bem, mas quem é esse Pará? perguntou ela curiosa.
- Pará é uma abreviação que usamos para o nome clássico dele. Seu nome
completo é Paráclito, que para vocês, popularmente, é representado por uma
pomba, ou seja, o Espírito Santo. Ele tem esse nome de Paráclito porque além
do raciocínio límpido que sempre demonstra, na verdade ele é o que conforta,
consola, dá forças, reanima e também, que intercede pelas pessoas atingidas
por problemas sérios, ou seja, os aflitos. Explicando um pouco, Helena, esse é
o seu papel na Trindade. Ele é de uma índole tão perfeita, que permite
gostosamente que alguns dos assim chamados “santos” desempenhem partes
substanciais de seu papel.
Falando em voz baixa, ele comentou:
- Meu Pai e o Santo comentaram as vantagens que haveria para o projeto se
garantíssemos a presença de vocês dois na equipe básica de apoio. Eles
também gostaram muito e levaram em consideração boa parte daquela nossa
longa conversa, enquanto caminhávamos, lembram-se? Eles ouviram tudo e
comentaram comigo logo que cheguei. Claro que seu papel expandido pelos
anos do futuro irá requerer muito estudo e dedicação. E sob esse ângulo o
Pará está super disposto a ajudar vocês. Podem confiar.
Voltando-se para Sísifo, que estava bem ao seu lado, segurou o braço dele
enquanto mantinha Labda abraçada do seu lado direito.
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- Você está cuidando bem de sua garota querida aqui? perguntou num tom
leve.
- S...sim, M... Mestre Joshua...Eu tenho procurado cuidar... Na verdade, é ela
que mais cuida de mim... porque eu nem tenho muito jeito, sabia?...
- Eu entendo... Eu entendo, meu caro. E você acha que vai conseguir dar-se
bem nessa sua futura nova função? perguntou ele, soltando Labda do seu
abraço.
- Às vezes eu acho que sim. Sabe? Eu estava acostumado a trabalhar só com
os monges cistercienses, lá no interior do Estado, e com o velho Irmão Aristeu,
que era meu companheiro de todas as horas. Ele me aconselhava sempre
sobre tudo, mas... não está mais entre nós. Coitado... Ele foi embora já faz
alguns anos, velhinho que era... Morreu dormindo no quartinho que a gente
ocupava. Como um passarinho... Eu fui acordá-lo para a gente ir se preparando
para o dia de trabalho, quando notei que ele estava muito frio, mesmo embaixo
das cobertas... estava morto!
- Eu sei... eu sei bem, Luis Carlos. Você, devido ao seu dia a dia de atividades
no Mosteiro dos Cistercienses, melhor do que ninguém sabia que ele merecia o
descanso com o qual foi verdadeiramente premiado. Ele, agora em seu novo
ambiente acolhedor, sabe bem disso. Mas não se preocupe nem um pouco,
porque ele está muito bem... muito bem mesmo. Quero que você saiba que eu
estive com ele ontem e quando eu lhe disse que iria ver você, ele me pediu
bastante comovido para lhe dizer que deve sempre prestar atenção em sua
saúde. Pediu para se agasalhar bem nas noites frias, alimentar-se bem sempre
para não ficar doente, comer verduras, legumes e frutas bem frescas, procurar
não ficar resfriado e para tomar cuidado especial com os seus olhos...
Sísifo, segurando a mão de Labda, ficou olhando fixamente para Mestre
Joshua e emocionou-se muito com aquela menção sobre seu velho
companheiro de labutas diárias no mosteiro cisterciense e, com lágrimas
descendo pelo seu rosto, como um agradecimento, apertou a mão de Mestre
Joshua.
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- É... eu sei que ele sempre se preocupou comigo...Eu o considerava como se
fosse um pai.
Mestre Joshua afastou-se um pouco dos dois, assim que Eurínome passou por
eles. Aproveitou então para informar em voz alta, enquanto seguia
imediatamente seus passos e começava a descer os degraus de pedra:
- Eurínome, por favor, eu marquei hoje à tarde uma reunião com Mestre
Agostinho. Nós dois combinamos por e-mails mais ou menos a hora. Por favor
oriente-me por aqui. Deste ângulo aqui fico meio perdido. Não desejo ir para o
lado errado e me perder nas instalações do XPTO Voturuna, onde atuo faz
algum tempo.
Ela, sorrindo com carinho, chegou ao final da escada, voltou-se para Labda e
disse, segurando de leve o braço de Mestre Joshua:
- Está muito bem, Mestre. A Labda vai conduzir o senhor até a sala de Mestre
Agostinho. Lamento não poder acompanhá-lo o tempo todo, porque eu preciso
muito ficar aqui neste canto perto da escada, por causa de problemas muito
sérios que só eu mesmo posso resolver. Olhe só para a minha mesa!... Meu
trabalho destes dias está fortemente relacionado com aquelas reuniões de
Masada. Perdoe-me por não o acompanhar. Eu não posso me ausentar daqui
desta área até tudo ficar em boa ordem. Mas você está em boas mãos aqui
com a Labda e o Sísifo, pode ter certeza.
Enquanto ela se afastava para atender a solicitação de um assistente ao lado
do computador de sua mesa de trabalho, voltando-se para Labda e Sísifo,
Joshua cochichou:
- Eu acho que precisarei um pouco de vocês e de outros assistentes, dentro
dos parâmetros mais ampliados do projeto e por um bom tempo. Mestre
Agostinho pediu minha presença urgente para discutirmos ângulos variados da
nova fase do projeto como um todo.
Alcançando o último degrau da escada, mais perto dele, Labda murmurou aos
seus ouvidos, admirada e enfatizando um pouco as palavras:
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- Você está nos dizendo que vai precisar de nós por um bom tempo... Estou
admirada com essa informação... É isso mesmo?!
- Vocês vão ficar sabendo logo, mas é isso mesmo.
Atravessaram a sala dos assistentes pelo corredor lateral. Foram caminhando
devagar e em silêncio para não atrapalhar aqueles que trabalhavam em duplas
em cada computador.
- Olha, Josh... cochichou Labda. Aquela moça muito sorridente ali perto
daquela porta, que está vestida com aquele longo estampado e em pé ao lado
de sua mesa, olhando para nós agora, é a Noelma. Ela trabalha direto com
Mestre Agostinho.
- Eu a conheço faz tempo, claro!... sorriu ele, fazendo um sinal de saudação
para Noelma.
Labda deu uns passos para o lado e fez um gesto para Noelma, que já havia
se colocado em frente à sua mesa ao perceber a aproximação do pequeno
grupo.
- Dá para você ajudar Mestre Joshua, Noelma? Ele veio para um encontro
marcado com Mestre Agostinho.
Ela caminhou rápido na direção dos três e, apertando a mão de Mestre Joshua,
afirmou:
- Claro que sim, Mestre. Por favor, venha comigo, sim? Boa tarde! E que prazer
em vê-lo outra vez aqui no XPTO Voturuna!...
Ele caminhou com desenvoltura ao seu lado, enquanto Labda, com o coração
ainda um pouco acelerado, olhando de soslaio para Joshua, voltou a
acomodar-se em sua mesa de trabalho. Sentou-se pesadamente, com os dois
braços caídos ao seu lado. Sentiu a mão de Sísifo em seu ombro e apertou-a
de leve. Seus olhos encontraram-se e um largo sorriso dominou o rosto dos
dois, enquanto os olhos de Labda ficavam cheios de lágrimas.
- O nosso Deus veio nos ver, Luis Carlos... E parece que Ele precisa de nós.
Isso não é realmente “divino”? Eu nem estou acreditando...
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Eurínome, tendo ouvido a última observação, chegou rapidamente perto dos
dois e perguntou:
- Você não está acreditando em que, Labda?
- Que Mestre Joshua precisa da gente... É isso mesmo... Que ele precisa da
gente, segundo ele nos disse agora mesmo.
- Ora, não se assuste, mas isso pode acontecer com a participação mais
envolvente desses nossos Mestres, como tem acontecido, por sinal. Até os
deuses do Olimpo por vezes precisam dos pobres seres humanos, não é
mesmo? Por que não o resto de todos nós, Mestres Historiadores e
assistentes, que somos mortais? observou ela com convicção.
- É mesmo, fez Labda, disfarçando seus sentimentos e achando o rosto de
Eurínome um pouco mais iluminado e diferente do usual, com os olhos
perdidos na direção de Joshua e de Noelma, que conversavam.
Colocando a ponta do dedo indicador entre os dentes, como era seu costume
nos momentos de dúvida, e olhando mais firmemente na direção de Mestre
Joshua, antes de entrar na sala de Mestre Agostinho, Eurínome completou
pensativa:
- Não sei se acontece com você, Labda, mas é engraçado como Mestre Joshua
me lembra alguém... por se apresentar sempre tão bem posto, tão elegante...
Me lembra muito alguém... eu nem saberia dizer quem... Só pode ser um dos
mais lindos deuses do Olimpo... Apolo, talvez? Ares? Bom. Deixa pra lá. Não
adianta nada eu ficar dizendo isso, porque vocês não acreditam mesmo nos
deuses do Olimpo!... Esqueçam.
Voltou-se para ir rapidamente à sua mesa de trabalho e assim que conseguiu
sentar-se ficou surpresa quando viu Mestre Joshua fazendo um gesto claro de
agradecimento, olhando diretamente para ela na hora em que entrava na sala
de Mestre Agostinho, saudando-o efusivamente, enquanto Noelma, com um
grande sorriso, fechava a porta sem qualquer ruído.
Eurínome voltou-se para Labda com as mãos abertas sobre o peito, mas muito
sorridente. Vagarosamente soletrou bem às claras, mas sem qualquer som:
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- Parece o A – po – lo...
Ambas sorriram e voltaram às suas atividades sem qualquer comentário.
Sentando-se ao lado de Mestre Agostinho, Joshua observou:
- Quero em primeiro lugar agradecer, Mestre Agostinho, por ter dado atenção
àquelas proposições que eu fiz, tanto nos meus últimos telefonemas quanto
nos meus e-mails. Quero deixar bem claro outra vez que não é minha intenção
alterar a ordem dos trabalhos que irão recomeçar logo, nem eventualmente
substituir as prioridades estabelecidas até agora no inicio de sua gestão. Mas
eu pensei que, assim como o Grupo de Trabalho teve condições de encaixar as
preciosas informações suas sobre a Pré-História, quando de seu primeiro
contato com os nossos historiadores, mesmo sem elas fazerem parte das
preocupações originais do Grupo, poderia ser oportuno que pensemos com
verdadeiro interesse nos pontos que discutimos.
- Mestre Joshua, primeiramente quero agradecer suas ponderações e dizer-lhe
que pensei bastante sobre seus contatos comigo pelo telefone nesses dias
passados e também por e-mails. Conversei também com Heródoto, que já
sabia de sua preocupação. Consultei diversas fontes e ao ler relatos a respeito
dessas crueldades muito frias que aconteceram pela História afora, além das
inverdades sobre fatos relevantes que nos são repassadas pela Historia, eu
concordo que precisamos nos posicionar a respeito, sim.
- Isso mesmo, meu caro. Na verdade nós precisamos divulgar com mais
precisão e mais destaque muitos dos atos que têm demonstrado, de fato,
mentes doentias e por vezes muito cruéis de determinadas figuras históricas e
que provocaram muitas lesões incapacitantes em seres humanos praticamente
indefesos, causando não apenas muitas mortes, mas também muita dor, muita
desgraça individual e social.
- Estou plenamente de acordo, Mestre Joshua. Eu só queria acrescentar para
sua ponderação, que de outra parte preocupa-me também esses falsos
personagens da História, que muitas vezes se locupletaram graças a suas
mentiras e ainda passaram a imagem de heróis que a Humanidade, crédula
como tem sido, admira e até reverencia.
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- Eu sei bem que você sempre menciona aqueles que, embora não
exteriorizem sua alma cruel de uma forma cruenta e seus sentimentos
verdadeiros, são indivíduos sem ética, que se aproveitam da existência de
pessoas com deficiência, seja na sociedade em geral, seja em seu grupo
familiar, para manterem instituições de atendimento bastante questionável,
locupletando-se com altos proventos e enriquecendo-se à sua custa. Você tem
plena razão ao afirmar que esses também precisam ser desmascarados,
eliminando as aparências de beneméritos que carregam como troféus para
todos os cantos. Alguns desses hipócritas acham que têm seu lugar garantido
no Paraíso, com sua dedicação – dedicação entre aspas, hein? - a uma
entidade que atende, por exemplo, jovens com sérias lesões incapacitantes ou
com deficiências múltiplas.
- Ótimo. Sem estabelecer nenhuma idéia de pressa, em seu modo de ver,
quais as providências que poderão ser tomadas?
- Olha, Mestre Agostinho, como eu afirmei antes, eu não desejo de forma
alguma prejudicar os andamentos relacionados ao início das pesquisas sobre o
Advento do Cristianismo ou sobre a Idade Média que logo começarão a ser
cobertas, assim que os novos mestres cheguem, está certo? ponderou Joshua.
- Não se preocupe com isso, por favor. Teremos uma primeira reunião para
iniciar a análise do que foi possível levantar para prosseguimento dos trabalhos
apenas daqui a 10 dias úteis, ou seja, daqui a mais ou menos duas semanas.
Acho que poderemos facilmente absorver sua proposta, que eu considero de
fato relevante, disponibilizando nosso melhor acervo humano que está
trabalhando nos dias atuais para dar início imediato aos esquemas de
prosseguimento do nosso projeto. Não sei se é do seu conhecimento, mas
Eurínome, Labda, Britt e Noelma estão escaladas para continuar no projeto.
Quanto ao Sísifo e minha pessoa, estaremos disponíveis e muito interessados.
Além disso, estaremos recebendo em alguns dias alguns reforços que tornarão
possível o prosseguimento seguro do nosso grande projeto.
- Que bom que tem essa possibilidade. Minha idéia é mostrar ao vivo o que de
verdade teve influência para que os fatos que iremos pesquisar fossem
acontecer, como aconteceram, apesar de tudo. Mas, acima e além disso, por
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que, apesar da estranheza dos mesmos, foram mantidos na História e não
lançados numa fossa comum para serem eliminados da lembrança humana?
Assumindo uma posição resoluta, Agostinho perguntou:
- Quando deseja começar, Mestre Joshua?
- Tão logo haja tempo de sua parte e os recursos humanos com que contar
estiverem disponíveis. Precisaremos ter tudo mais ou menos em ordem para
levantar alguns fatos e trabalhar em cima deles, mesmo que fora de uma
ordem cronológica muito óbvia.
- Eu entendo. Você mencionou outro dia, por exemplo, aquelas famosas
inscrições de Behistoun. Elas deveriam ter sido inseridas no primeiro volume
de Eu, Sísifo, por estarem claramente relacionadas a um rei que viveu diversos
séculos Antes de Cristo. Eu acho que a gente poderia começar por elas..
- Excelente, Mestre. É uma grande idéia, porque de alguma forma logo
estaremos nos movimentando para um ângulo crítico do atendimento de
pessoas com deficiência no século atual, ou seja, o atendimento global de alta
eficiência e sem altos custos.
- Mas que bom! A injustiça do atendimento medíocre precisa acabar mesmo. E
perceba que eu não disse “mau atendimento”. O mau atendimento não pode
existir em hipótese alguma. Eu me referi a um atendimento morno, sem
efetividade, com soluções abaixo de qualquer crítica. Esse tipo de atendimento
é acima de tudo injusto, porque é prestado por profissionais pouco envolvidos e
o mais das vezes pouco competentes... por anos e anos a fio.
- Caminharemos juntos para essa meta também, Mestre Joshua.
- E agora vou-me embora que há pendências muito sérias por aí...Adeus,
Mestre Agostinho. Nós voltaremos a conversar logo para combinarmos
pormenores operacionais, provavelmente começando pela Pérsia... Quando do
meu lado as coisas estiverem no ponto correto, passarei um e-mail para uma
reunião já no sentido operacional, traçando um plano de ação se possível
cronogramado com sua ajuda.
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- Está certo. Obrigado por ter vindo.
Acompanhou Mestre Joshua até a mesa de trabalho de Noelma e comentou
em tom de brincadeira:
- De helicóptero você nem precisou se preocupar com o já famoso “pau de
matar cobras”... não é mesmo?
- É verdade, meu caro. Mas há outras serpentes que me preocupam, Mestre
Agostinho. E elas infestam não apenas o Brasil, que hospeda o nosso projeto,
mas o mundo todo desde muito tempo.
A pedido de Mestre Agostinho, Noelma acompanhou-o até as mesas de Labda
e Sísifo e despediu-se com seu característico sorriso e um leve aceno de
adeus.
Ao chegar perto de Labda e de Sísifo, Joshua fez um gesto com a cabeça para
acompanhá-lo e, com um sorriso especial, convidou Eurínome também para
segui-lo.
- Eurínome, quero agradecer sua atenção quando de minha chegada,
orientando e dando algum conforto ao piloto.
- Se o senhor, Mestre Joshua, está partindo, deixe-me subir a escada em sua
frente, porque o piloto estava na área do refeitório menor para um lanchinho.
Assim, poderei avisá-lo para ficar a postos.
Enquanto Eurínome foi subindo logo antes para deixar tudo em ordem para a
partida, Labda e Sísifo seguiram os passos de Joshua e passaram com ele
pela porta principal de entrada.
Já no gramado, onde o helicóptero estava estacionado, enquanto Eurínome
corria até o refeitório para buscar o piloto, Mestre Joshua colocou sua pasta no
assento de passageiros que iria ocupar e passou os braços pelos ombros de
Labda e Sísifo ao mesmo tempo.
Voltou-se para Sísifo e confidenciou para os dois:
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- Estamos combinados com Mestre Agostinho e tudo está em boa ordem para
trabalharmos em ângulos especiais do grande projeto, que continuará o
mesmo. Não se preocupem que ele fará o devido repasse a vocês no tempo
certo.
Olhando Sísifo de frente informou:
- No entanto, eu já desejo pedir a você, Luis Carlos, para, apenas nas horas
vagas, ir fazendo uma pesquisa prévia na Internet, obtendo primeiramente a
autorização de Mestre Agostinho de Alfenas, se considerar necessário. Mas, de
qualquer forma, procure marcar em sua memória estes nomes: Rei Dario I,
Imperador Basílio II, vários outros Imperadores bizantinos, como a Imperatriz
Irene e também o rei Ricardo Coração de Leão. Veja o que descobre a respeito
deles, Luis Carlos, naquilo que se relaciona a atos de crueldade despótica
contra seres humanos, causando lesões incapacitantes.
- Sei... Rei Dario I, Imperador Basílio II, Imperatriz Irene, Ricardo Coração de
Leão... Certo?
- Perfeito. Claro que há outros... Há outros. Infelizmente há muitos outros na
prática de verdadeiras crueldades para com pessoas, deixando-as com lesões
limitadoras. Além delas, eu pediria aqui para a Helena que procure encontrar
um meio para fazer um tipo de levantamento prévio sobre determinados tipos
de entidades não-governamentais que, bem ou mal, atendem casos
praticamente irrecuperáveis, mas que têm diretores que recebem proventos
astronômicos e indevidos, à custa da causa levantada para angariação de
fundos, por exemplo...
- Quando não ostentando cargos honoríficos que enganam a população,
segundo fui informada, comentou Labda.
- Isso mesmo. Conversei com Mestre Agostinho e dentre nossas preocupações
para o futuro próximo, esses levantamentos poderão significar uma vantagem.
Mas outra vez, verifique se esses estudos extras não irão atrapalhar suas
atividades normais. E se necessário, dialogue com Mestre Agostinho.
- Prometo fazer isso. Obrigado pela confiança!... sorriu ela.
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Byzas
Abraçando-o para se despedir, Labda beijou seu rosto com ternura. Ainda
abraçada a Joshua, murmurou:
- Mais uma vez muito obrigada pelo que fez por nós dois. Mas, independente
disso, nem preciso dizer o quanto o Luis Carlos e eu te amamos como nosso
Deus Único e Verdadeiro...
Ele sorriu com aquela serenidade que só Ele conseguia transmitir e já na porta
do helicóptero segurou as mãos dos dois e respondeu:
- Eu sei... eu sei muito bem. E saibam que eu gosto de ouvir isso. Meu Pai e o
Paráclito valorizam muito também esse reconhecimento das intervenções por
vezes muito sutis que fazemos nos eventos diários. A grande maioria dos seres
humanos nunca se lembra de agradecer seus bons momentos. Lembrem-se
sempre de mim, Helena e Luis Carlos, porque estarei por aí verdadeiramente
ao seu alcance! Acreditem nisso... de verdade, insistiu.
Alojando-se no assento de passageiros, afivelou seu cinto de segurança,
voltou-se para os dois sorrindo e comentou:
- Eu quero lembrar vocês dois de uma linda canção de Mickael Jackson,
intitulada “I`ll Be There”.
- A gente conhece, sim. É uma linda canção, comentou Sísifo.
- Tomem partes do verdadeiro significado daquelas palavras e ao pensar em
mim, acreditem naquilo, porque têm uma aplicação plena com relação ao
nosso relacionamento. Vejam bem: “Onde houver amor, lá estarei... Lá estarei
para confortar vocês... Sempre que vocês precisarem de mim, lá estarei...
Digam o meu nome e lá estarei”...
Ao final das palavras mencionadas, cantarolou um pouco da música, que eles
ouviram e cantaram junto com Ele em inglês, sorrindo.
- Prestem bem atenção para o que vou lhes dizer agora, meus queridos.
Os dois, de mãos dadas, ficaram parados, de olhos fixos naquele rosto amado,
aguardando.
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Byzas
- Vocês não precisam ajoelhar-se, nem decorar qualquer oração, para adorar a
Deus, nem para conversar com este Joshua que vocês sabem perfeitamente
bem quem é. Não é preciso assumir qualquer postura formal. Basta abrirem
seus corações e se disporem não só a falar, mas também a ouvir o que eu
posso querer dizer a vocês. Eu não sou nem surdo nem mudo, apesar de
muitos seres humanos pensarem que sou. Eu estarei sempre atento. É assim
que deve funcionar o relacionamento que eu tenho desejado com toda a
Humanidade, por sinal. Não se assustem nem estranhem, mas de vez em
quando minha voz pode parecer o som longínquo de um trovão, o trinar de um
pássaro, a visão de uma borboleta multicolorida voando ao seu redor, o céu
estrelado cortado por um asteróide, o barulhinho único da chuva caindo sobre
as folhas das árvores... Prestem sempre atenção ao seu redor e naquilo que
vocês genericamente chamam de Natureza, porque eu sempre estarei por
perto. Sempre e a toda hora. Acreditem nisso e vivam com essa certeza.
Labda conseguiu, num último instante, segurar sua mão e pediu:
- Nós dois estaremos sempre procurando acreditar com muita força e certeza
em tudo isso. Nós queremos poder sentir você ao nosso redor em todos os
momentos, não só porque você é o nosso Deus, mas porque de verdade nós o
amamos, Joshua... Jesus... nosso Mestre amigo, nosso Deus verdadeiro.
Ele sorriu seu melhor sorriso para os dois, enquanto se afastavam do alcance
das grandes hélices ainda imóveis e fez um gesto de adeus sorridente para
Eurínome que havia aparecido na porta do gramado.
Num movimento rápido fechou a porta do helicóptero enquanto os dois
afastavam-se para uma distância mais segura. Logo em seguida seu piloto
ligou o motor e acelerou, em pouco tempo subindo por uns cem metros.
Labda e Sísifo conseguiam ver a mão de Joshua na janela do helicóptero,
acenando adeus.
Logo em seguida o veículo começou a seguir na direção Leste, enquanto os
dois
acenavam
suas
mãos
para
retribuir
ao
gesto
de
despedida,
acompanhados por Eurínome que havia caminhado até o ponto em que
estavam no gramado. Aos poucos a nave foi ficando pequena, até quase
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desaparecer na linha do horizonte. Sísifo, que se sentia extremamente
comovido, voltou rapidamente para sua mesa de trabalho, deixando as duas
observando o pequeno ponto correspondente ao helicóptero indo para o Leste
- Adeus, querido, sussurrou Eurínome... Esse nosso Mestre parece muito com
o meu deus preferido, que é Apolo, sabia, Labda?
- É... Você mencionou mesmo.
- E para você, hein? Me diga com toda a sinceridade, está bem?
- Para mim?... Bem, para mim Ele é o que há de melhor já saído de um ventre
materno. Para mim Ele é muito mais do que Apolo... mais do que Ares... mais
do que uma dezena de deuses e deusas do Olimpo.
- Garota!... Pelos deuses todos, você parece que está apaixonada por ele!...
Labda riu, deu meia volta e enlaçou a cintura de Eurínome, enquanto
começavam a descer a escada interna.
- Estou, sim. Mas eu sei que Ele entende com perfeição o tipo de afeto que eu
sinto por Ele... que dá um valor enorme à minha vida e me faz reforçar e
prestar muito mais atenção no amor que eu tenho pelo Luis Carlos.
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Byzas
Capítulo II - PERSAS
Algumas semanas depois, logo após a refeição matutina, Mestre Agostinho
chamou seu recém-composto grupo de assistentes especiais para uma breve
reunião em sua sala e explicou:
- Teremos uma atividade bem diferente e desafiadora hoje, porque, com a
ajuda de Mestre Joshua e seus múltiplos contatos internacionais, estaremos
nos voltando para ações ocorridas no passado, inicialmente não tão distante,
mas depois bem mais afastado, conforme mergulharmos no assunto principal
que precisaremos estudar. Como vocês já foram comunicados ontem, estão
sabendo que, de alguma forma teremos um contato com o Palácio Imperial de
Teherã, na Década de 70, onde seremos recebidos nada mais nada menos do
que pela Imperatriz Farah Diba. E depois, se tudo correr como esperamos,
deveremos conhecer de uma forma especial, em pormenores bem relevantes e
sob determinados ângulos, uma figura famosa da História Universal, que foi o
Imperador Dario I, o Grande, no Século VI Antes de Cristo. Estaremos nos
limitando à análise dos famosos painéis no morro de pedra de Behistun.
Labda assustou-se um pouco com a época, tão próxima de quando havia vivido
em Corinto, trocou olhares com Eurínome, mas nenhuma das duas fez
qualquer comentário.
- Vocês verão que há motivos de sobra para isso, considerados os pontos de
enfoque de nosso grande projeto sobre pessoas com deficiência na História da
Humanidade, até hoje contada com falhas gritantes naquilo que diz respeito à
valorização de seus heróis com deficiência ou dificuldades variadas de
atuação... Daqui a uma hora mais ou menos, Mestre Joshua deverá estar
conosco para essas pretendidas visitas. Ele será uma espécie de facilitador
para o nosso grupo, devido a seus conhecimentos anteriores. Não será
necessário que tenham qualquer preocupação com roupas ou equipamentos, a
não ser pequenos blocos de anotação eventual, máquinas fotográficas de
tamanho reduzido, gravadores portáteis e pouca coisa mais, porque estaremos
de volta bem antes de nossa última refeição do dia.
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O grupo dispersou para tarefas pré-determinadas ou específicas de suas áreas
e em pouco menos de uma hora a marcante presença de Mestre Joshua
polarizou as atenções de todos, especialmente reunidos na pequena sala de
reuniões do sub-solo do setor conhecido por todos como XPTO.
- Meus prezados amigos, sou portador de um convite especial para uma
reunião que antecede os contatos já programados no Iran. Parte do Grupo de
Trabalho que coordena as atividades específicas sobre pessoas com
deficiência na História estará presente a fim de deliberar sobre a tônica
especial pretendida para uma etapa especial do projeto, previamente estudada
pelos Mestres Agostinho de Alfenas e Heródoto. Não se assustem, meus
caros, mas desta sala especial de reuniões
do projeto de transferências
mantido pela NASA, sem maiores esforços, estaremos nos transferindo para
esse local. Quanto à Imperatriz Farah Diba, é bom que todos saibam que ela
sempre esteve interessada num projeto que vale a pena conhecermos e
tomarmos providências para repassar isso para nossos Mestres Historiadores e
evitar que seja esquecido.
- Precisaremos tomar alguma providência, Mestre Joshua? perguntou
Agostinho, a fim de deixar o grupo mais tranqüilo.
- Nenhuma, a não ser o uso livre da palavra para perguntas consideradas
relevantes, claro. Não teremos problema de comunicação. Se todos estiverem
prontos, precisaremos apenas aguardar uns minutos, mantendo-nos bem
acomodados, para que possamos ter acesso imediato ao Palácio Imperial.
Devidamente acomodados, Mestre Joshua passou os olhos por todos os
presentes, levantou sua mão direita e, olhando para a cabine de comando que
ficava na parte de trás da sala, murmurou:
- Pronto.
Fez um sinal pré-combinado com os especialistas no acionamento do
equipamento todo e sentou-se numa das poltronas.
Como num passe de mágica, rapidamente o grupo viu-se acomodado na
esplêndida sala que surgiu à sua frente, na qual três membros seniores do
Grupo de Trabalho já estavam localizados. No silêncio que se seguiu aos
cumprimentos usuais, todos ouviram ao longe o som de um coral de vozes
infantis.
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Em apenas alguns instantes, uma elegante mulher apareceu naquilo que era o
amplo vestíbulo da sala de audiências do palácio imperial em seu vestido
verde, de um tecido fino levemente estampado, com gola justa e sem mangas.
Passou de imediato ao grupo a imagem de uma dama que tinha uma beleza
muito própria, que conseguia atravessar os espaços com perfeição, sem fazer
qualquer ruído, a não ser o farfalhar do tecido de seu vestido.
Era Farah Diba, a Imperatriz da Pérsia, acompanhada por duas auxiliares e
pelo médico encarregado do projeto para o qual a ONU estava dando pleno
suporte técnico.
Com as mãos cruzadas como em oração, segurando de leve um medalhão
preso a uma corrente dourada que descia para seu peito, sorriu ao ver o
pequeno grupo que a esperava em pé, e murmurou, olhando para o Mestre
Joshua:
- “Master Joshua, enchantée de votre visite”...
Trocaram cumprimentos com um leve aceno de cabeça, apenas entre sorrisos.
Sem toques, as apresentações de todos os presentes foram gentis, sóbrias e
contaram apenas com olhares, mesuras elegantes dos renomados mestres
presentes e dos assistentes especiais, sorrisos e palavras próprias para a
ocasião.
Farah Diba sentou-se com marcante elegância no sofá e foi afirmando, num
francês límpido, que o sonhado projeto regional de criação de um centro de
treinamento de especialistas árabes para a fabricação de próteses e órteses
para amputados e pessoas com paralisias na Pérsia, beneficiando participantes
de todos os países árabes vizinhos, estava praticamente na fase final de
acabamento e ia indo muito bem. Diversos candidatos a alunos-bolsistas para
o curso de um ano que ia ser encetado já haviam se apresentado no próprio
local, em Shiraz, de acordo com datas previamente negociadas. Seu total seria
de 30, e, conforme plano inicial, os participantes, professores e trainees seriam
originários de países como Líbano, Arábia Saudita, Jordânia, Síria, Egito,
Iraque, Líbia, Sudão, Etiópia, Kuwait, Yemen e até das distantes Argélia,
Marrocos e Tunísia, sob a coordenação e supervisão de um especialista da
ONU, Werne Wille, que, terminadas suas férias anuais na Alemanha, chegaria
a Teheran dali a três dias.
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Todos sorriram afirmativamente, porque notaram que ela estava orgulhosa do
feito.
Na verdade, ela era a verdadeira “patronesse” desse arrojado projeto regional,
que tinha recebido todo o aval não apenas do seu marido, o Xá Rehza Pahlevi,
e todo o Governo Persa, mas também do Departamento Econômico e Social da
ONU, dentro do qual estava encaixado o Bureau de Assuntos Sociais e sua
Seção de Reabilitação de Pessoas com Deficiência.
Mestre Joshua intercedia naqueles dias, por solicitação da referida Unidade,
para levantar a sugestão de rever o escopo do projeto e com isso criar uma
ação regional mais ampla, coordenada por um especialista da organização,
sem maiores custos para o Iran e financiada pelo Programa Ampliado de
Assistência Técnica da ONU, que dispunha de fundos para tal fim.
Voltando-se para Joshua, ela disse muito séria:
- O senhor não imagina, Mestre Joshua, o significado do envolvimento da ONU
neste nosso projeto, no qual o governo persa acredita muito. A contínua
presença de especialistas de um gabarito internacional, financiados pela ONU,
no seu desenvolvimento é, sem dúvida, um fator de sucesso. Meu marido já
enviou um ofício especial ao Secretário Geral U-Thant, apresentando os
agradecimentos de seu governo pelo apoio contínuo a esse projeto. Esse ofício
foi entregue pessoalmente pelo representante da Pérsia junto à Organização
das Nações Unidas, em New York.
Ao tomar conhecimento do outro objetivo da presença de Joshua, de Agostinho
e de seus assistentes especiais, ao final do breve encontro, ela sorriu
levemente.
Mais à vontade, informou que dias antes ela havia sido informada do interesse
do pequeno grupo em visitar, dentre muitos pontos de extremo interesse em
seu país, a montanha de Behistun. Afirmou então que, como ela, de uma certa
maneira, o grupo poderia admirar a forte postura do rei Dario, o Grande, nos
grandes painéis lavrados no local. Acabou enfatizando sorridente:
- Sei muito bem que seu grupo, Mestre Joshua, ficará chocado com certos
conteúdos daqueles famosos painéis, mas irá lembrar-se de que eram outros
tempos... muito distantes. Os ambientes eram bem outros. Continuamos sendo
persas, sim, mas muito cônscios da visão humanitária que hoje predomina no
mundo todo.
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E, gentil ao extremo, determinou a uma das assistentes que uma confortável
viatura do palácio deveria ficar à disposição para levar e trazer de volta o grupo
nessa longa viagem.
Em uníssono o grupo agradeceu, admirando sua figura marcante e percebeu
muito às claras que ela, de fato, trazia algo mais dentro de si. Seus olhos
sorriram quase que imperceptivelmente para Mestre Joshua, que se despediu
sorrindo e com um leve aceno de cabeça.
Deslocando-se do lado da Imperatriz, o médico assistente do projeto, Dr. Osny,
caminhou na direção do grupo e, segurando os braços de Joshua e de
Agostinho, informou a meia voz:
- O especialista daqui do Palácio Imperial, professor Hassan e dois de seus
assistentes, foram destacados para viajar com o seu grupo até Behistun para
uma indispensável e sucinta análise da evolução do local a ser visitado, para a
necessidade de traduções de textos e também para poder esclarecer eventuais
pontos de dúvidas de sua parte.
- Grato, prezado Doutor Osny. Foi muito gentil de sua Majestade Imperial.
Enquanto aguardavam a viatura, acomodados numa confortável sala de espera
com ar refrigerado, fizeram uma pequena refeição e durante esse tempo
Mestre Agostinho comentou para o grupo:
- Meus caros, é sabido que desde os tempos mais primitivos da História da
Humanidade, o homem tem lutado contra muitos dos males que, quando não
levavam à morte, deixavam seqüelas limitadoras. Durante os muitos milênios
dessas épocas muito remotas, não havia praticamente recurso algum para
tratamento de muitos males misteriosos. Muitas vezes a morte surgia como
solução. Os que sobreviviam a esses males naturais eram os mais fortes ou os
mais afortunados, assistidos muitas vezes por feiticeiros ou curadores
eventualmente existentes. Qual a sua opinião, Mestre Joshua?
Joshua levantou-se e voltando-se para todos informou:
- É preciso enfatizar, meus caros, que, fora as causas naturais de doenças ou
de lesões acidentais de um dia-a-dia cheio de perigos, que eram muito
encontradiças, houve sempre um indeterminado número de pessoas que
passaram a viver com dificuldades devido a arbitrariedades de líderes muito
rudes e cruéis, ou então, devido a penalidades estabelecidas por normas de
convivência social, tais como mãos amputadas, olhos vazados, nariz cortado,
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orelhas decepadas, músculos atrofiados e outros aleijões que aparecem com
certa notoriedade na História de diversos povos. Nem preciso dizer a vocês
que historiadores, antropólogos, paleopatologistas e diversos outros tipos de
analistas de usos e costumes de civilizações muito antigas ressaltam
ocasionalmente determinações legais que impunham castigos mutiladores. Não
eram castigos que causavam a morte do condenado, mas que os marcavam
pelo resto de seus dias. Eu fiquei sabendo ontem que Sísifo andou estudando
aspectos variados desse assunto, não é mesmo?
- É verdade, sim, Mestre Joshua, confirmou Sísifo, levantando-se e colocando
seus papéis e seu boné sobre a poltrona ao lado da sua.
- O que é que você poderia repassar para todos nós agora, enquanto
aguardamos nosso transporte?
- Eu aprendi, por exemplo, que um dos mais antigos e conhecidos documentos
lavrados em pedra é um famoso Código de leis, que foi elaborado por
determinação do rei Hamurabi, da Babilônia, aproximadamente 1.700 anos
antes da Era Cristã. Esse Código de leis está redigido em escrita cuneiforme,
num monolito negro de diorito, com 2,50 m. de altura, contando com 46 colunas
na língua conhecida como acádica.
- Nós chegamos a ver seu original no Museu do Louvre, não é mesmo,
Eurínome? comentou Labda. De fato impressiona a gente.
- Apesar de eu não estar muito seguro, lembro que esse Código de leis inicia
mais ou menos assim: “Eu, Hamurabi, chefe designado pelos deuses, Rei dos
Reis, que conquistei as cidades do Eufrates, introduzi a verdade e a eqüidade
por todo o país e dei prosperidade ao povo”.
- Mas é exatamente esse o início do Código de Hamurabi. Eu estava seguindo
suas palavras aqui nesta cópia que trazia comigo, comentou Mestre Agostinho.
- Pois bem, na formulação de leis as mais variadas, algumas das quais falam
com clareza sobre a imposição de penas mutiladoras, como castigo, como
forma de pagamento ou como inibidora de abusos, a gente encontra
determinações assim: “De hoje em diante se alguém apagar a marca de ferro
em brasa de um escravo, terá seus dedos cortados”... Eu me lembro de várias
outras, como esta: “Se um médico operar um patrício com faca de bronze e
causar-lhe a morte, ou abrir-lhe a órbita do olho e causar-lhe a destruição, terá
sua mão cortada”... “Se um homem bater em seu pai, terá as mãos cortadas”...
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Colocando-se ao lado de Sísifo, Mestre Agostinho complementou sua
exposição, comentando:
- É fácil de imaginar que, tanto entre os babilônios quanto na realidade de
praticamente todos os povos que viviam ao seu redor, sempre houve muita
gente marcada por penas impostas pela vontade dos poderosos, pela
execução de determinações legais ou pela mera aplicação da Lei do Talião vocês se lembram, é claro... olho por olho, dente por dente...- que em geral
podia ser aplicada em nível local. Aqueles tempos primitivos demandavam rigor
na aplicação dos castigos e percebemos que até hoje, em certas culturas,
alguns ainda prevalecem, como no Oriente Médio e Ásia, por exemplo, onde
mãos são amputadas e persistem as penas de apedrejamento e de amputação
do nariz. Essas penas não eram aplicáveis apenas para os mais pobres e para
os reconhecidos assassinos e ladrões, não. Muita gente da nobreza também foi
castigada com essas mutilações. O falso Imperador Gaumata, deposto por
Dario, por exemplo, era um “mago”, que pertencia a uma espécie de classe
social privilegiada. Pois bem, ele tinha as orelhas decepadas! Mas com o uso
daquelas cabeleiras postiças e fantasiosas dos Imperadores, nunca foi
reconhecido...
- Até que... sorriu Sísifo. Conte-nos, Mestre Agostinho.
- Acho melhor você, naquela versão que você me passou uma vez, riu Mestre
Agostinho.
- Está muito bem. Vejamos então... Pois saibam que esse tal de Gaumata
ludibriou toda a corte do Imperador, que estava em campanha no Egito.
Sempre com as cicatrizes das orelhas cobertas por cabeleiras que os magos
usavam como rotina, acabou sendo coroado como Imperador, pois, divulgou
que o trono estava vago e isso era ruim para a Pérsia. Claro que em sua vida
privada, ele tinha várias amantes e uma delas tinha relações familiares com a
nobreza, sem que Gaumata soubesse. À noite, nas horas de sono, sem os
apetrechos e sem a cabeleira, a jovem notou a falta das orelhas e passou a
informação para quem de direito. E Dario foi o corajoso nobre que destronou o
falso Imperador.
Aproximando-se de Mestre Agostinho, Mestre Joshua complementou:
- Como iremos ter a oportunidade de verificar no prosseguimento desta parte
do grande projeto que estamos vivenciando, o Império Bizantino - o assim
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apelidado “Reino de Deus na Terra” - foi pródigo na existência de dezenas e
dezenas de casos de mutilações nos mais altos círculos ligados aos
Imperadores. Seria cansativo citar nome por nome das vítimas, para termos
uma idéia da extensão dessa prática, desde muitos séculos condenada como
desumana ou fora de proporção. Apenas para ilustração, basta lembrar o caso
do General Belizário, um herói nacional bizantino, adorado pelo povo todo, que
foi condenado por seu amigo, o Imperador Justiniano, que acreditou em
boataria na corte. Condenou o famoso “salvador da pátria”, como era
conhecido e admirado, a ter seus olhos vazados, seus bens confiscados e sua
vida posterior possível apenas à custa de esmolas. Nesse universo de
horrores, no entanto, nós teremos oportunidade ainda hoje de tomar
conhecimento e destacar o caso de um soberano de renome na História do
Grande Império Persa/Assírio, que foi Dario I, o Grande, que reinou entre 521 e
485 a.C.
Nesse mesmo instante, Hassan entrou na sala e anunciou que a viatura já
estava à disposição.
Logo no início da viagem, colocou-se no banco dianteiro voltado para os
demais passageiros e informou:
- Na Antiguidade não identificada pelos historiadores persas, o que é hoje
conhecido como Behistoun, ou Bisotun, ou mais dois nomes sem importância,
era conhecido como Bagastona, que significava “lugar onde os deuses vivem”.
Viajantes e caravaneiros sem conta passavam pelo lugar, porque havia uma
estrada que ia de Babilônia até Ecbatana, que hoje corresponde a Hamadan. O
rei Dario I achou que aquela montanha isolada para onde estamos indo, muito
irregular, em pedra bruta e sem vegetação, seria um lugar ideal para divulgar
suas múltiplas vitórias sobre todos os pequenos reinos ao redor. E concretizou
seu sonho, destacando grupos especializados para lavrar na pedra seus feitos
de uma forma indelével e praticamente eterna. Esta é uma explicação inicial
que sempre achamos necessária para poder entender melhor o porquê desse
lugar tão diferente. Aproveitem esta pequena viagem e vejam pela paisagem
que a Pérsia não é o deserto que alguns consideram.
Foi uma viagem bastante tranqüila, num micro-ônibus com ar refrigerado,
espaçoso e muito confortável e com um funcionário destacado para servir um
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lanchinho e bebidas. Foi cortando uma paisagem por vezes árida, por vezes de
um verde exuberante, durante quase duas horas.
Num certo momento, o professor Hassan explicou:
- Como estamos praticamente chegando a Behistun, que é aquela montanha
com picos gêmeos lá no horizonte, deixe-me recordar a todos que o rei Dario I
havia conseguido impor-se após golpe que ele coordenou para derrubar
Gaumata, um falso Imperador que era um mago. Além disso, lutou com muita
persistência contra 9 reis que cercavam a Pérsia, para garantir a
inquestionabilidade de seu poder. Não só fez isso, campanha após campanha,
batalha após batalha, pilhagem após pilhagem, massacre após massacre, mas
mandou registrar seus feitos ad eternum, na montanha de pedra mais estranha
do Iran, ao lado da vila de Behistun, que vocês estão vendo lá longe. Fica bem
na margem de uma antiqüíssima rota das caravanas que ia da Babilônia até
Ecbatana, antiga capital da Média. Saibam que em muitos pontos é a mesma
trajetória desta rodovia asfaltada e de pista dupla que estamos usando agora.
Depois de alguns minutos, conforme a grande montanha foi ficando mais perto,
o confortável veículo cedido pela Imperatriz foi tomando a pista lateral sem
asfalto à direita. Assim que a viatura foi chegando mais perto do morro de
pedra, foi se afastando mais do leito principal da estrada para a direita e
procurou a sombra de umas árvores centenárias nas proximidades da
caravanserai ali existente.
- Não vamos entrar nessa caravanserai porque na verdade nossa parada por
aqui não será longa.
- Caravanserai?! perguntou Sísifo um pouco admirado. O que é isso,
professor?
- Caravanserai é uma espécie de um amplo hotel ou motel de estrada, muito
próprio daqui, todo protegido e originalmente existente desde muitos séculos
para abrigar e mesmo hospedar os cansados componentes das caravanas. Em
algumas delas, além de instalações para abrigar as pessoas, havia aquelas
destinadas aos camelos ou outros animais de carga. Existem aquelas que
dispõem até de produtos a serem vendidos para abastecer as pessoas com
alimentos ou roupas. Só para dar a você uma idéia mais realista de como uma
caravanserai se apresenta, Sísifo, todas elas são construídas com as paredes
das suas instalações de costas para o exterior, sem qualquer janela ou
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abertura.
Em
sua
distribuição
espacial
elas
podem
ser
quadradas,
retangulares, de formas geométricas mais elaboradas, mas, volto a dizer, todas
elas literalmente de costas para os arredores, com uma entrada só e um tanto
larga para permitir a entrada de um camelo carregado.
- Interessante isso, professor! Bem interessante mesmo!
- Esse tipo de construção torna roubos e assaltos muito difíceis de acontecer.
- É claro! É uma adaptação à realidade de áreas desertas, tornando o ambiente
seguro. Com um guarda no portão a segurança está garantida!... comentou
Sísifo.
Ao lado de Labda, numa bolsa de couro, estava colocado um poderoso par de
binóculos do palácio que ela procurou utilizar no mesmo instante.
Do outro lado da estrada, estavam aqueles altos picos irregulares e sem
vegetação, de pedra escura de Behistun. Por mais de uma hora, aproveitando
a leve sombra das árvores, o grupo teve oportunidade de analisar muitos dos
pontos do magnífico conjunto de painéis em pedra, ali existentes, com todas
aquelas mais de 1.000 linhas, que haviam sido lavradas há mais de 2.500
anos, segundo Hassan, o principal intérprete que viajava com o grupo.
De binóculos em punho, Labda puxou Sísifo para ficar perto dela e começou a
descrever o que conseguia ver.
- Há uma enorme gravura, a mais ou menos 100 metros de altura, um pouco
prejudicada pelo desgaste natural do tempo, dos ventos, da poeira e por duas
ou três rachaduras verticais. Na certa primeiramente dava para identificar com
clareza a figura poderosa de Dario I, o Grande, de pé, dedo em riste, pisando o
corpo de Gaumata, o falso Imperador por ele deposto, dirigindo-se a uma fileira
de 9 reis de mãos atadas às costas, presos por cordas no pescoço. Segundo o
motorista me explicou, no alto do painel ilustrativo, está a reprodução do
grande símbolo de Ahura Mazda, o deus protetor de Dario e de toda a Pérsia.
Logo abaixo aparecem diversos painéis retangulares com informações que o
Dr. Hassan seletivamente está traduzindo.
Passados os primeiros momentos de curiosidade muito natural, Hassan
aproximou-se de Joshua e disse, num inglês bastante britânico, que aquelas
frases todas, contidas nos grandes retângulos que cercavam a grande
ilustração, estavam escritas as declarações diretas de Dario I, o Grande.
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Estavam lavradas nas três línguas compreendidas naquelas épocas, em três
painéis diferentes.
- Sabe, Mestre, uma tradução oficial de todo o conteúdo está sendo finalizada
por órgãos oficiais daqui da Pérsia, para divulgação e valorização deste local
como um monumento histórico sem par. No entanto, devo confessar que só
consigo entender um pouco o texto em babilônio que ali está.
- Dá para saber, mais ou menos, o que está afirmado por aqui, por exemplo?
perguntou Sísifo, muito curioso, indicando na gravura que tinha em suas mãos
o que parecia ser um dos primeiros painéis.
Para uma espécie de suspense geral e num silêncio total, Hassan foi
traduzindo devagar, seguindo com os dedos os hieróglifos e todos perceberam
que era uma espécie de relato do próprio Imperador Dario, na primeira pessoa
do singular e na língua babilônia.
-.Aqui o texto diz assim: “Um homem de nome Citrantakhma revoltou-se contra
mim e disse ao seu povo: “Eu sou rei de Sagartia”...
Na continuidade da leitura vagarosa que ressuscitava um passado tão distante,
Labda entendeu que Dario mandou os exércitos da Pérsia e da Média contra
ele. Venceram-no, é claro, e levaram-no acorrentado para o seu palácio.
- Ali adiante continua: “depois... eu cortei seu nariz,... suas orelhas... e o
ceguei!”
Labda ficou meio boquiaberta com a dureza da informação na primeira pessoa
do singular e mal conseguiu balbuciar:
- O que?!... Que horror!... Que frieza!...
- É isso mesmo! afirmou Hassan. Está escrito ali no canto daquele painel: “eu
cortei o seu nariz, suas orelhas e o ceguei”...
Diante do silêncio geral ele reiterou:
- Dario I, o Grande, afirma isso na primeira pessoa do singular, meus caros
amigos...certamente para que ninguém colocasse dúvida.
- Bem que a Imperatriz nos avisou, professor Hassan, que eram outros
tempos... outros tempos, comentou Agostinho.
Na certa o conteúdo daquelas linhas todas de hieróglifos era muito mais
abrangente e continha muito mais do que haviam informado especialistas da
UNESCO, que estudavam o monumento com o propósito de elevá-lo a
patrimônio da Humanidade!....
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Byzas
- Bem... A frase continua assim: “Ele ficou amarrado na entrada do meu palácio
e todo o povo o viu. Depois eu o crucifiquei em Arbela”...
Ele baixou o binóculos muito devagar e, ainda olhando para o morro enorme,
murmurou em inglês, entre os dentes:
- Ufa!... Que rei bonzinho, esse Dario!...
- Ele é um ancestral seu, meu caro...brincou Mestre Joshua com ele, dando-lhe
um tapa carinhoso nas costas.
- Só que hoje em dia não se faz isso na Pérsia, não é mesmo, Mestre? retrucou
o companheiro de viagem.
- Mas eu estou sabendo de fontes limpas que as autoridades policiais daqui da
Pérsia e de outros países do Oriente Médio fazem outras coisas... Outras
coisas...
- É verdade, Mestre Joshua, é verdade”, afirmou Hassan, sem condições de
escapar da realidade.
Mesmo chocado, o bravo persa continuou:
- Vocês sabiam que por crimes de furto, aqui no Iran e em diversos países
árabes, quando o ladrão é flagrado e não há dúvida do crime, ele ainda pode
ter uma das mãos amputada?
Sísifo ficou meio pasmo, mas ficou olhando fixamente o professor Hassan
falando de seus costumes.
- Tem mais, tem mais, gente! Quando um homem ou uma mulher –
especialmente uma mulher - são condenados por “adultério” eles devem ser ape-dre-ja-dos!!!.
Ele explicou um pouco mais, procurando chamar a atenção de todos.
- Claro que isso acontece mais com mulheres. Os homens podem ser
polígamos e as mulheres não vivem com esse privilégio. Se são flagradas, a
acusação é de adultério mesmo. E o apedrejamento é a pena imposta, para
desestimular esse tipo de crime.
- Difícil de acreditar!!! Mas isso acontece... dentro da lei?! É uma forma de
execução de uma sentença condenatória à morte? perguntou Labda, sem se
conformar com aquelas informações.
- Claro que é! Em séculos passados o apedrejamento era feito num canto de
rua qualquer ou num terreno baldio onde poderia haver entulhos e pedras as
mais variadas. Hoje em dia, em locais pré-determinados e com pedras préPágina 33
Byzas
selecionadas, eles amarram os braços e pernas da mulher condenada,
colocam-na dentro de um buraco mais ou menos do seu tamanho e para
prendê-la bem, jogam terra até a altura dos seus ombros...
Cobrem sua
cabeça com um pano preto e os executores atiram pedras até ela morrer. É
assim que funciona.
- Que coisa mais pavorosa, comentou Noelma a meia voz.
- Que coisa mais horrorosa, Deus do Céu!... Ainda bem que no Brasil isso não
existe... pensou Sísifo na hora, com certo nojo e com um beiço meio saliente.
- Lá naquele painel ali, no último do lado esquerdo, o que é que diz?”
perguntou Labda para desviar um pouco o assunto do apedrejamento.
- Diz o seguinte: “... eu o ceguei e mandei de volta ao seu reino...”
E prosseguiu com certa dificuldade:
- “...Eu cortei suas orelhas e seu nariz. Depois, meu exército levou o prisioneiro
de volta à sua cidade e deixou-o, até morrer, amarrado num poste ao alto de
uma pedra.”
Pelo tom pautado da leitura, mesmo que em frases soltas, deu para perceber
que Dario tinha um ângulo que usava para justificar essas atitudes
“desencorajadoras”. Ele aplicava pessoalmente as penas porque “era o
representante de Ahura Mazda, seu deus maior” e ninguém podia duvidar
disso. Jamais!
Mestre Joshua tomou o binóculo e acertou seu foco sobre a fileira dos nove
reis condenados, dando uma informação adicional ao grupo:
- Meus prezados companheiros, isso aconteceu pelos séculos afora, não
apenas na Pérsia, mas também em Constantinopla, por exemplo, com muitos
dos Imperadores bizantinos ou com nobres e generais considerados traidores
ou potencialmente perigosos para o sistema sucessório. Já comentamos que
as lesões causadas por certos “castigos” considerados brandos, como cortar
língua, decepar orelhas, vazar os olhos, garantiam a sobrevivência do
condenado por crime de lesa majestade ou lesa pátria e serviam para
desencorajar qualquer nova tentativa. Mas a noção meridiana dessa certeza de
que no cargo de Imperador, o indivíduo era representante de Deus na Terra,
levou alguns deles a evidentes exageros de zelo. Nós teremos oportunidade de
estudar tudo isso em muitos outros pormenores, mas quero adiantar a vocês
que a muito famosa imperatriz Irene, por exemplo, além de mandar cegar,
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Byzas
cortar orelhas e decepar a língua de diversos pretensos aspirantes ao seu
trono, que tramavam sua queda - todos eles da família de seu finado marido mandou também cegar o próprio filho, que estava sendo preparado por
traidores para destronar a mãe.
Hassan levantou-se da banqueta onde estava acomodado e ficou bem em
frente a Mestre Agostinho.
- Escuta, Mestre Agostinho de Alfenas... Sei de seu papel nesse competente
grupo que re-estuda a História. Por favor, se puder prometa-me uma coisa aqui
neste estranho lugar, enquanto olhamos para cima e analisamos meio
desconcertados esse cenário todo de mais de 2.000 anos atrás. Se puder,
divulgue um pouco essas coisas todas, para que Dario I, o Grande – lá no alto,
todo poderoso e de certa forma admirado pela nossa Imperatriz Farah Diba –
que viveu pelo século VI Antes de Cristo, não leve a pecha do único rei cruel e
desalmado ao extremo.
- Claro que sim, Hassan. Claro que sim. Prometo um dia estudar melhor e
divulgar esses atos que trouxeram como conseqüência tantos infelizes
esmolando
para
poder
sobreviver,
tantas
pessoas
com
verdadeiras
deficiências. Não sei se isso poderá lavar seus nomes nem justificar seus atos.
Mas vale a pena tentar. Vamos deixar que a História, a famosa Mestra da Vida,
faça esse julgamento.
Labda baixou os binóculos bem devagar e muito indecisa. Ela e Sísifo foram
caminhando, sem dizer palavra, na direção de um pequeno quiosque.
Tomaram um café turco numa banca improvisada ali ao lado, servido por um
senhor de turbante, com um rosto amargurado, com seu filho pequeno também
de rosto triste na garupa, num silêncio absoluto.
Impotente diante da situação eternizada por aquele chocante monumento que
a UNESCO havia inserido como uma das relíquias da Humanidade, que lhe
parecia tão triste e injusta, Sísifo soltou um palavrão em flamengo, que havia
aprendido com um cônego premonstratense holandês e chutou inconformado
uma pedra qualquer, que levantou alguma poeira sem qualquer conseqüência.
- É, comentou Labda. Fatos terríveis, relatados na primeira pessoa do singular!
Nem dá para acreditar. E olha que eu estava vivendo naqueles tempos!...
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Byzas
Enquanto bebia o café, Labda recordou as palavras de Farah Diba, afirmando
que, como ela, de certa forma e sob certos aspectos o grupo admiraria figura
do rei Dario I, o Grande.
Lembrando sua postura suave e impecável naquele vestido verde, sentada no
sofá elegante da sala de audiências, Labda pensou:
- Sim, Majestade Imperial, sim. Posso até admirar Dario I, o Grande, não por
atos aqui relatados nesses painéis eternos, mas por motivos bem diferentes
que a História registra. Foram outros tempos, claro... No entanto, certas coisas
que ele mesmo afirma que fez são imperdoáveis.
Mestre Agostinho, ao se instalar outra vez na viatura palaciana que levaria o
grupo ao palácio imperial, comentou:
- No final das contas, graças aos céus e apesar dos males contínuos que
cercam nossa triste Humanidade - não é mesmo, Mestre Joshua? - nosso
grupo está vivendo em pleno século XXI. E nele não há mais espaços para um
Dario e seus assemelhados.
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Byzas
Capítulo III - CRISTIANISMO
Aliviado com o início dos trabalhos destinados ao prosseguimento dos estudos
indispensáveis para a cobertura de novas etapas da História, agora sob sua
responsabilidade direta, Mestre Agostinho olhou com atenção o grupo de
Mestres Historiadores, de certa forma cercados por assistentes de sua própria
escolha. Aos poucos seus olhos voltaram-se para o pequeno grupo dos cinco
assistentes especiais nos quais depositava toda a sua maior esperança.
Sentado ao lado de Heródoto e de Joshua, Agostinho pigarreou
- o que
chamou a atenção de todos – e começou:
- Meus caros, tendo revisto as principais informações disponíveis na História
da Humanidade a respeito da existência de pessoas com deficiência em
realidades anteriores a Jesus Cristo, nada mais indicado do que prosseguirmos
com o mesmo esforço e adentrar o mundo coberto pela História, a Mestra da
Vida, em realidades que podem estar muito mais relacionadas ao nosso mundo
de hoje. Nesse sentido, sempre contando com os mais variados autores, dos
quais um significativo número está aqui presente, temos condições de
comentar pontos de real importância na evolução das atitudes para com essas
pessoas por terem uma lesão limitadora ou que por motivos variados foram
vítimas de problemas que limitaram sua atuação devido a dificuldades de
ordem física, em realidades que ainda não dispunham de condições para dar
cobertura a todos os problemas decorrentes das anomalias existentes. É claro
que precisaremos dar alguns saltos na História, procurando localizar exemplos
de pessoas que vivenciaram dificuldades das mais variadas naturezas. E para
tanto, contaremos com informações de historiadores renomados, com a análise
de leis famosas, com ações promovidas por sentimentos cristãos, ou com
documentos que chegaram até nós em obras reconhecidas universalmente. O
primeiro passo nesse longo caminho cobre necessariamente a auspiciosa
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Byzas
definição e implantação gradativa do Cristianismo, em realidades repletas de
problemas de todas as ordens.
Foi recolhendo aos poucos seu material que estava espalhado sobre a mesa,
enquanto concluía:
- Neste nosso grupo especial de trabalho, no dia de hoje contando com o apoio
de Heródoto, que todos vocês conhecem bem, teremos para a coordenação
das primeiras idéias sobre esse tópico da Chegada do Cristianismo a
colaboração de um dos especialistas mais reconhecidos da atualidade, ou seja,
Mestre Joshua. Ele cobrirá uma multiplicidade de informações sobre a chegada
do Cristianismo e a verdadeira epopéia que a envolveu. Por favor, Mestre
Joshua, estaremos todos atentos a suas palavras.
Com serenidade e pleno domínio do ambiente, Mestre Joshua começou sem
maiores rodeios:
- Meus prezados! Se analisarmos as circunstâncias que cercaram o
aparecimento do Cristianismo no mundo, ficaremos muito admirados, pois foi
precisamente quando o Império Romano apresentava-se a todas as nações
como uma realidade imbatível e de sólidas raízes, com seus mais de sete
séculos de lutas e muitas vitórias, e seus governantes desfrutando de muita
autoridade, sempre garantida pela força por vezes assustadora de legiões bem
treinadas e bem armadas, que um grupo de homens muito simples, sem cultura
e de origem judaica, surgiu e colocou-se face à Humanidade para iniciar uma
substancial transformação que alteraria todo o curso da História do Mundo.
Muito embora a própria origem da nova doutrina tivesse sido um dos principais
fatores diretos de seu sucesso, como vocês todos sabem, ela não pode ser
considerada como o único. Houve também fatores indiretos que deverão ser
levados em conta, e um dos mais significativos foi a consagrada "Pax
Romana", ou seja, a paz garantida a vastíssimas e muito diversificadas regiões
do mundo conhecido, coordenadas num imenso Império cujo poder central
localizava-se em Roma.
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Essa paz, que passou para a História, não foi garantida apenas pelas armas
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Byzas
muito superiores dos romanos e de seus "aliados", mas também, com
exceções aqui e ali no mundo antigo, por um aceitável sistema administrativo
nas províncias e nações conquistadas e, acreditem ou não, sempre pela
existência de boas estradas. Havia um outro fator ponderável: Durante séculos
haver duas línguas básicas em quase todo o Império, ou seja, o latim e o
grego. Mas não podemos nos esquecer do fator que talvez tenha sido dos mais
relevantes àquela época. Ele, de certa forma, viabilizou inicialmente a
divulgação do novo modo de ser e pensar "cristão", ou seja, a uniformidade de
direitos garantidos a todos os seus habitantes, direitos esses que eram
conseqüentes do esmero com que eram tratadas as leis em Roma.
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Deslocando-se com serenidade pela sala, Mestre Joshua serviu-se de um
copo de água no bebedouro e prosseguiu sua exposição, procurando sempre
expressar-se com frases muito lógicas e de fácil assimilação.
- Esses fatores todos - por mais estranho e irônico que possa parecer, meus
caros - apresentaram-se no início da vida cristã como agentes facilitadores.
Mas, talvez muito mais do que eles, convém ressaltar o lamentável estado
moral da sociedade romana como um todo - especialmente a mais favorecida que, além dos desmandos quanto a usos e costumes, não chegava a atinar
com o verdadeiro significado dos problemas que atormentavam continuamente
certas camadas da população, tais como os escravos, os oprimidos, os servos,
os "bárbaros" em geral e outros mais - enfim, todos aqueles que compunham a
massa dos pobres do glorioso Império Romano. Quero aqui ressaltar que o
conteúdo da doutrina cristã, que era toda voltada para maior consideração aos
seres humanos por meio da renovada idéia da caridade, ou seja, para o amor
ao próximo, para o perdão das ofensas, para a valorização e compreensão do
significado da pobreza, da simplicidade de vida e da humildade, conteúdo esse
pregado pelo próprio Jesus Cristo e divulgado com argumentos cada vez mais
convincentes, conquistou a grande horda dos desfavorecidos em primeiro
lugar. No meio deles, aqueles que eram vítimas de doenças crônicas, de
defeitos físicos ou de problemas mentais.
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- Mestre Joshua, esses ângulos todos do novo raciocínio cristão, chegaram
aos ambientes das famílias patrícias que viviam até então sem muito
questionamento? perguntou Labda.
- Na verdade, Labda, tudo isso deixou perplexos todos os que deles viviam
despreocupados. Aos poucos, alguns cidadãos romanos começaram a
posicionar-se favoravelmente a esse novo modo de ver o seu semelhante,
mudando inclusive seu modo de ser. Outros mantiveram-se alienados como
soe acontecer em muitas situações. Mas muitos reagiram de várias formas
contra os cristãos e seu modo de pensar e atuar, procurando cada vez com
mais insistência, aquilo que consideravam negativo e reacionário na religião
que surgia.
- Mestre Joshua, eu gostaria muito de saber como e porque essa nova linha de
raciocínio de fato influenciou novas realidades do grande mundo romano?
perguntou Mestre Tucídides, que ouvira com atenção redobrada, num dos
cantos da grande sala.
- Mestre Tucídides, nos primeiros tempos da Igreja Cristã houve um
significativo impulso ao sentimento fraternal entre os cristãos, não importando
em nada sua situação social ou mesmo sua nacionalidade, fosse ela romana,
grega, egípcia, franca, hebréia ou de qualquer outra natureza. A minoria cristã
foi aos poucos adquirindo mais e mais adeptos para se transformar, em pouco
mais de três séculos, em maioria absoluta, principalmente na Europa e no
Oriente Médio. Na verdade houve, com a implantação e solidificação do
Cristianismo, um novo e mais justo posicionamento quanto ao ser humano em
geral, ressaltando a importância devida a cada criatura como um ser individual
e criado por Deus, com um destino imortal - o que, sem dúvida, muito
beneficiou os escravos e todos os grupos de pessoas sempre colocadas de
lado e menosprezadas na sociedade romana, tais como os que tinham
doenças crônicas ou deficiências físicas e mentais, antes considerados como
meros pecadores ou pagadores de malefícios feitos em vidas passadas,
inúteis, possuídos por maus espíritos, ou simplesmente como seres que, em
muitos casos, deveriam continuar sendo eliminados ao nascer, segundo as leis
e costumes de Roma recomendavam há séculos.
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Tucídides levantou-se e caminhou vagarosamente até onde Mestre Joshua
estava e comentou:
- Perdoa-me por interrompê-lo, Mestre, mas eu gostaria de observar que,
apesar desses aspectos positivos ressaltados em suas palavras, sabe-se de
sobejo que houve dificuldades muito fortes para essa nova religião se solidificar
e conquistar os espaços num mundo complexo e bastante deteriorado como
era o mundo romano. Gostaria muito de ouvi-lo a respeito.
- Sem dúvida alguma, meu caro. A própria História conta-nos que as
conquistas do Cristianismo não aconteceram nem com facilidade nem com
tranqüilidade. Problemas graves e muito sérios surgiram desde os primeiros
anos e mantiveram-se por três séculos. Como vocês todos estão sabendo, a
nascente Igreja Cristã foi primeiramente desalojada da Sinagoga Judaica e
depois perseguida pelos judeus, devido às profundas divergências existentes.
Foram basicamente essas divergências que levaram seus primeiros líderes e
adeptos (muitos dos quais haviam conhecido Jesus em vida) a procurar montar
sua própria organização, em vez de tentar inutilmente manter-se como parte da
religião dos judeus, certamente por falta de conhecimento e de uma visão mais
objetiva do mundo ao redor, como talvez fosse a intenção inicial. O próprio
Concilio de Jerusalém, citado nos Atos dos Apóstolos, estabeleceu as bases
para transformar o Cristianismo incipiente em uma religião de caráter
internacional, universal. Neste ponto eu gostaria de trazer aqui entre nós um
historiador que primou pelo zelo no verdadeiro ordenamento da História da
incipiente Igreja, que foi o Bispo Eusébio de Cesaréa. Ele foi um homem de
confiança de nada menos do que o Imperador Constantino I.
O venerando bispo, caminhando ereto e levemente apoiado por uma espécie
de báculo bem lavrado, postou-se à frente do grupo, portanto um livro em sua
mão esquerda. Acomodado numa cadeira de braços mais confortável, com
uma linguagem límpida, começou seu depoimento com algumas frases de
agradecimento e após poucas explicações do ponto em discussão, por parte de
Mestre Joshua, afirmou:
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Byzas
- Meus bons amigos, essa característica de religião quase que sem fronteiras,
mencionada por Mestre Joshua, chamou imediatamente a atenção dos
governantes romanos, como não poderia deixar de ser. E por que?
Simplesmente porque o Império Romano e seus mandatários, que respeitavam
(ou pelo menos ignoravam) as religiões e crenças locais ou nacionais dos
povos conquistados, não aceitavam em hipótese alguma essa espécie de
organização aparentemente judaica que se instituíra e que afirmava manter
uma religião "não licenciada" pelas autoridades de Roma à busca de adeptos
em qualquer das nações integrantes do Império. Foi dessa maneira que o
Cristianismo começou a ser olhado pelas autoridades romanas como um
movimento ilegal, tendo sido extremamente fácil para seus questionadores
descobrir aspectos "negativos" na audaciosa religião de um só Deus, que não
apenas desprezava deuses sem conteúdo e "surdos-mudos", como afirmavam
seus líderes, como também abria espaços nas mais variadas nações e raças
subjugadas pelos romanos. Mas talvez muito mais do que isso, era uma nova
religião que se recusava a reconhecer a pretensa característica de divindade
no Imperador romano. E o que aconteceu? As autoridades romanas
começaram uma repressão violenta, para desencorajar sua expansão, por
meio das famosas perseguições aos cristãos.
O venerando bispo levantou-se, tomou seu báculo e dirigiu-se para a mesa
central que estava completamente livre.
- Essas perseguições, meus caros, foram decretadas por diversos Imperadores
romanos: Nero, Domiciano, Trajano, Marco Aurélio, Septímio Severo,
Maximino, Décio, Valeriano, Aureliano, Diocleciano e Galério. Tiveram como
conseqüência muitas mortes provocadas por sentenças injustas e por vezes
muito cruéis, cuja intenção principal era alegadamente desencorajar as
afrontas dos cristãos aos usos e costumes estabelecidos. A grande tragédia
das
violentas
perseguições,
por
meio
de
aprisionamentos
sumários,
condenação a suplícios ou a penas perpétuas e mesmo à morte, durou 129
anos. E durou tanto tempo com certos Imperadores que seus juízes chegaram
a ficar literalmente cansados de não obter resultados satisfatórios. Diante
desses fatos cada vez mais freqüentes, alguns dos Imperadores, preocupados
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Byzas
em manter uma certa imagem de clemência e de humanidade, resolveram
mudar de tática. Os juízes passaram a receber ordens para não mais condenar
os cristãos à tortura e à morte, "por um ato de clemência do Imperador".
Eusébio de Cesaréa levantou-se outra vez e apoiado em sua bengala, deu
alguns passos na direção dos participantes. Levantou o livro que trazia consigo
e afirmou:
- No livro que, com a ajuda de muitos cristãos mais cultos, consegui escrever e
que levou o título de História Eclesiástica, cuja cópia está aqui em minhas
mãos, existe um trecho que faço questão de ler para todos vocês.
Voltou a sentar-se numa cadeira confortável, abriu o volume com cautela em
seu colo, folheou-o um pouco e leu:
- "Ordenou-se que a partir de então vazassem nossos olhos e aleijassem uma
de nossas pernas. Esta foi a humanidade e esse lhes pareceu um gênero
brando de suplício contra nós. Dessa forma, por causa dessa brandura dos
homens ímpios, de maneira alguma seria possível contarmos o número
daqueles aos quais foi primeiramente extraído o olho direito e depois
cauterizado com um ferro, ou daqueles aos quais foi estropiada (a musculatura)
a barriga da perna esquerda com um ferro em brasa, sendo imediatamente
após condenados às minas existentes nas províncias, não tanto para
trabalharem, mas para serem atormentados"
Pedindo a palavra, o historiador Mommsen, autor de uma obra valiosa
intitulada Le Droit Pénal Romain, levantou-se para comentar que, segundo
vários historiadores e inserções em tópicos discutidos na Patrística, na questão
das mutilações impostas aos cristãos, sob o ponto de vista do Código Penal
Romano, era costumeiro, durante a perseguição imposta por Diocleciano,
deixar-se inicialmente a cada tribunal a liberdade de agravar as penas como
bem lhes parecesse, pela da mutilação corporal. Com o passar dos anos, o
governo central mandou adicionar à pena das minas o vazamento do olho
direito e a amputação do pé esquerdo.
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Pedindo a palavra, Paul Allart, historiador francês, mesmo sentado, informou
que em seu pormenorizado estudo sobre a implantação do Cristianismo no
Império Romano, intitulado Le Christianisme et l´Empire Romain, que tinha em
suas mãos, existe a seguinte informação, que passou a ler: "De 308 a 310, as
pedreiras da Tebaida, as minas da Cilícia, da Palestina e do Chipre, viam
chegar longas filas de cristãos, quase todos coxos e cegos".
Prosseguindo, comentou que, por vezes os algozes desses muitos cristãos
que estavam condenados às minas pelo resto de seus dias permitiam que se
reunissem para orar e mesmo para formar pequenos grupos que foram sendo
chamados de "igrejas". Depois, todavia, dependendo sempre dos tipos de
homens encarregados de sua vigilância, bem como da produção das diversas
minas, começou a ocorrer a dispersão violenta, sua transferência de mina para
mina e finalmente a decapitação dos condenados enfermos e menos
produtivos, incluindo sempre aqueles que tinham deficiências físicas sérias e
limitadoras da capacidade de trabalho.
Aproveitando o momento, Agostinho interveio para acrescentar:
- Conforme nos relata o historiador Rohrbacher, em sua obra Histoire
Universelle de l´Église Catholique, que tenho aqui comigo, a crueldade dos
juízes e das mais altas autoridades nas diversas Províncias do Império
Romano era por vezes assustadora. E as decisões quanto à imposição de
torturas eram sumárias. Para uma infinidade de condenados, a morte foi o
destino imediato. Para outros, o severo castigo deixaria as marcas impostas
pelo Imperador ou em seu nome. Mutilações ocorriam em muitos casos.
Pedindo a palavra, Sísifo levantou-se e comentou:
- Eu gostaria de relatar aqui um exemplo do que ocorreu durante a
perseguição do Imperador Diocleciano, pelo ano 303 aproximadamente. Um
corajoso diácono da igreja de Cesarea, na Palestina, chamado Romão, chegou
a Antióquia e interpelou um juiz chamado Asclepíades, que estava condenando
os cristãos a diversos tipos de tortura, simplesmente por não quererem se
curvar ou reverenciar o Imperador Diocleciano como divino. Diante do desafio
público, o juiz mandou aprisioná-lo e torturá-lo. No entanto, durante as torturas
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o bravo diácono não deixava de reprovar o que estava acontecendo,
condenando em altos brados a vaidade da idolatria e ressaltando a excelência
do Cristianismo.
..............................................................................................................................
Devido à óbvia inconveniência da palavra desabrida daquele cristão,
Asclepíades mandou cortar sua língua. Para tanto, foi chamado um médico ali
presente, que também era cristão, mas que não havia suportado o martírio.
Esse médico, Ariston, usou instrumentos próprios para essa operação e
guardou consigo a língua decepada, como uma espécie de relíquia.
O mártir, mandado de volta à prisão, foi barrado por um soldado que perguntou
seu nome. E ele respondeu com clareza, apesar da língua amputada.
O juiz e o próprio Diocleciano, presentes em Antióquia, suspeitaram do médico
e mandaram-no chamar. Ariston mostrou a língua decepada e disse-lhes que
Romão era um homem protegido por Deus.
Diocleciano passou a temer tanto a influência desse loquaz cristão aprisionado
que mandou colocá-lo com os pés presos ao chão por argolas de ferro, em sua
própria cela. E assim mesmo, pés presos ao chão, foi enforcado no mesmo dia
em que Diocleciano celebrava a festa do vigésimo aniversário de seu Império,
ocasião em que mandou soltar muitos prisioneiros, inclusive os detestados
cristãos.
0 castigo de que foi vítima Romão é um pequeno exemplo das muitas
mutilações de que foram vítimas, no Império Romano, os criminosos - dentre
os quais os cristãos estiveram inseridos por longo tempo.
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Aproveitando aqueles momentos de uma certa perplexidade com o inesperado
das informações, Joshua levantou-se para comentar:
- O Cristianismo foi muito relevante na mudança da mentalidade imperante no
século IV, pois condenava abertamente muito do que o sistema vigente
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aprovava, como a libertinagem das pessoas solteiras, os banhos públicos para
ambos os sexos, a perversão do casamento, a morte de crianças não
desejadas pelos pais devido a deformações, dentre muitos.
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Foi o Imperador Constantino que, em 315, editou uma lei que bem demonstra
a influência dos princípios defendidos pelos cristãos de respeito à vida. Essa lei
considerava os costumes arraigados - embora não generalizados - de mais de
cinco séculos, prevalecentes no Império Romano desde a Lei das Doze
Tábuas, e em Esparta principalmente, que não só permitiam como também
exigiam que o pai de família, senhor absoluto de tudo e de todos no lar, fizesse
morrer o recém-nascido que ele não queria que sobrevivesse, devido a defeitos
ou a mal-formações congênitas. Constantino considerou esses costumes como
equivalente a um "parricídio" e tomou providências para que o Estado
colaborasse para a alimentação e vestuário dos filhos recém-nascidos de
casais mais pobres. Exigiu que essa nova lei fosse publicada em todas as
cidades da Itália e da Grécia, e que fosse em todas as partes gravada em
bronze para, dessa forma, tornar-se eterna.
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Voltando-se para Mestre Agostinho, Joshua levantou as duas mãos para seu
encerramento.
- Mestre Agostinho, mestres vários aqui presentes e meus demais amigos do
projeto, eram essas as informações que da minha parte eu tinha que passar,
esperando que tenham agora uma idéia mais clara dessa imensa epopéia que
foi a implantação do Cristianismo. Sabemos hoje em dia que todos os seus
posicionamentos e conceitos são de excelente padrão e de verdades
incontestáveis, mas nada disso teria sido repassado para a Humanidade pelos
séculos afora, se não fossem esses homens e mulheres que não se
submeteram às imposições do todo poderoso Império Romano, sacrificando
sua integridade física pelas verdades que defendiam.
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Capítulo IV - REALIDADE de CONSTANTINOPLA
Já passava das dez horas da noite quando, visivelmente feliz, Heródoto deu as
mais calorosas boas vindas a Mestre Agostinho e a Sísifo, logo depois de
ambos terem liberado suas pequenas bagagens na alfândega, conduzindo-os
para o setor VIP previamente reservado do Aeroporto Internacional de Atakurk,
em Istambul.
Naquele local já estavam localizadas Eurínome, Labda e Noelma, acomodadas
ao redor de uma elegante mesa redonda e envoltas em seus afazeres de
assistentes do assim chamado “Grande Projeto”.
Heródoto adiantou-se uns passos para ficar numa posição mais frontal com os
recém-chegados e comentou:
- Meu caro Mestre Agostinho, seja benvindo ao nosso meio.
Voltando-se para Sísifo, que acabara de colocar sobre uma cadeira as poucas
parcelas de suas bagagens, cumprimentou:
- Boas vindas a você também, Sísifo, muito aguardado por aquelas jovens ali
sentadas. Vai lá dizer um alô...
Ele corou um pouco e inclinando levemente a cabeça murmurou:
- Obrigado, Mestre... Quer dizer, Heródoto....
Ele soltou a sua mão e afirmou num tom mais alto para todos na sala ouvirem:
- Logo nos encontraremos com verdadeiros amigos que desejam confirmar
conosco algumas informações que são muito importantes para o sucesso do
nosso projeto. Vários mestres historiadores estarão lá nas instalações
reservadas por Mestre Joshua, num centro de estudos bizantinos em férias
coletivas, localizado no meio de um enorme parque quase na margem da
grande Avenida Kennedy. Na verdade fica nas imediações do eternamente
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famoso Chifre Dourado. Daqui a pouco um confortável ônibus virá nos buscar,
não se preocupem.
Sísifo livrou-se imediatamente das maletas e mochilas, colocando-as sobre
duas cadeiras, para abraçar e beijar Labda com carinho, cumprimentando
Noelma e Eurínome com um abraço bastante efusivo.
Os quatro começaram imediatamente a separar com grande facilidade sobre
uma das outras mesas existentes na ampla sala as pastas de documentos que
estavam em mochilas especiais, colocando ao lado dois micro-gravadores de
som que seriam utilizados logo mais, conforme os planos delineados por
Heródoto no início daquela tarde.
Logo em seguida o grupo procurou o conforto de uma moderna lanchonete ao
lado, acomodando-se em quatro mesinhas colocadas lado a lado.
Antes de sair da sala VIP, Agostinho percebeu com satisfação que tanto Labda
quanto Noelma já haviam localizado estrategicamente sobre a mesa redonda
as extensões dos microfones de seus micro-gravadores.
Notando o preparo para registro das ocorrências que antecediam os trabalhos
específicos sobre a realidade bizantina, Heródoto aproveitou para ir explicando
a mestre Agostinho, seguido de perto pelos quatro assistentes, sempre muito
interessados, algumas circunstâncias dos trabalhos dos próximos dias.
- Nosso encontro aqui nessa imensa metrópole que é Istambul, que, como
vocês sabem, tem uma parte na Europa e outra na Ásia Menor, contará
pessoalmente com dois antigos historiadores de conhecimento enciclopédico e
muito vasto a respeito do Império Bizantino e que escreveram obras de
referência inquestionável, conhecidas em todos os cantos do mundo moderno.
Teremos, já confirmados e de corpo presente, Mickael Psellos e Edward
Gibbon. Seus nomes dispensam comentários, não é mesmo? No caso de
Psellos, devo informar com imensa satisfação que ele virá nos encontrar na
sala VIP, onde estamos instalados, daqui a pouco. Gibbon só estará chegando
amanhã cedo. Outros historiadores foram também convidados. Esperamos que
consigam estar presentes.
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Byzas
- Essa é uma notícia muito importante para os nossos trabalhos, Heródoto.
Contar com a presença desses dois é algo super... comentou Agostinho.
-Teremos, é claro, diversas obras de referência para estudos ou confirmação
de dados já levantados, eventualmente com seus autores ainda não
confirmados. Tanto você quanto Sísifo, além de contarem com materiais
específicos elaborados e publicados com o lançamento do livro A Epopéia
Ignorada, em 1987, já consultaram muitas vezes, pelo que estou sabendo, as
obras de Bérenger, Bréyer, Diehl, Finlay, Schlumberger e Tissot sobre a
realidade bizantina e, é claro, sobre o legado de Gibbon em sua notável e
volumosa obra sobre o declínio e a queda do Império Romano. O livro de
Psellos, intitulado Cronografia, ao estudar a realidade bizantina durante o
século XI, não pode de forma alguma ser ignorado, muito embora possamos ter
sua presença o tempo todo, não é mesmo, Labda?
Ela ficou surpresa com a pergunta, mas aproveitou para colocar uma dúvida
que tinha.
- Mestre Heródoto,este nosso grupo, com o auxílio desses historiadores todos,
estará estudando com todo o cuidado o que acontecia com pessoas vítimas de
lesões graves e limitadoras no sempre famoso Império Bizantino. No entanto,
desculpem-me pela minha falta de conhecimento e talvez pela falta de
oportunidade para colocar minha pergunta, mas, de onde vem essa palavra
“bizantino”, se a capital foi Constantinopla ou Nova Roma e era o Império
Romano do Leste?
E acrescentou antes que Heródoto respondesse:
- Sabe, mestre, nos anos que vivi em Corinto eu ouvi falar muito pouco em
Bizâncio. A região onde agora estamos, era ocupada por pequenas vilas de
origens as mais variadas... e havia um núcleo, me parece, que era chamado de
Bizâncio ou Bizantos, pelo que eu possa recordar.
- Isso mesmo, Labda. A origem de Bizâncio está envolvida em algumas lendas
ou pequenas histórias daqueles tempos que viraram lendas.
- Parece que eu sou uma delas, riu ela descontraída.
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Byzas
- Mas você está aqui conosco, comunicativa e muito vivaz. O que se sabe
mesmo é que a partir de uma certa época no meio do século VII antes de
Cristo, algumas famílias originárias de Mengara, que era uma cidade pujante
perto de Atenas, procuraram novas paragens para viver. Não se sabe os
motivos, mas talvez por dificuldades locais, periculosidade nas vizinhanças,
brigas entre famílias, terras de má qualidade e outros motivos não arrolados.
Começaram uma busca intensa ao norte depois de muitas consultas, sob a
liderança de seu rei que se chamava Byzas.
Labda levantou-se e foi até o quadro branco, pegou uma caneta colorida e
escreveu Byzas com letras maiúsculas.
- Obrigado pela ajuda, Labda. Neste ponto vocês precisam lembrar que na
língua grega havia declinações de palavras, não é mesmo, Labda? Nominativo,
genitivo, dativo, acusativo, vocativo e ablativo. E o genitivo de Byzas era...
Labda me ajude!...
- Byzantos, disse ela com certa surpresa.
- Ah... É isso?! fez Sísifo, muito interessado.
- Sim! Diz a lenda que Byzas, a fim de liderar seu povo para o norte, em busca
de um aprazível local para montar sua cidade, foi antes consultar o Oráculo de
Delphos. A orientação, sempre enigmática, foi a seguinte:
“Localize seu povo na grande área plana que fica do lado oposto do cego”.
- Verdade isso? Mas que legal, hein? Do lado contrário do cego, comentou
Sísifo. Do lado que o cego não podia ter enxergado?... Ou do lado que o líder
da cidade não quis enxergar...
- Exatamente, Sísifo. Foi essa a orientação enigmática. Byzas fez uma
expedição exploratória com alguns líderes de seu pequeno reino, antes de
emigrar com as famílias em barcos de sua propriedade. Chegou ao atual
estreito do Bósforo com seu grupo de desbravadores perto daqui onde estamos
hoje. Do lado asiático encontrou uma vila chamada de Chalcedon que, na
verdade, estava instalada uns três quilômetros abaixo do ponto que seria ideal.
Maliciando as palavras do oráculo, Byzas olhou para o outro lado do estreito e
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Byzas
viu, um pouco ao norte, os contornos do Chifre Dourado, do Mar de Mármara e
não teve dúvida. Ao voltar, para lá levou aos poucos as famílias que o seguiam
e fundou uma cidade que a população, em sua homenagem, batizou de
Bizâncio, ou seja, o Reino de Byzas.
- É... De fato, do lado oposto do cego que não conseguiu ver a maravilha de
região do outro lado, comentou Sísifo.
- Interessante essa história, Mestre. Gostei muito, enfatizou Eurinome.
Orgulhosamente ele se levantou, sorriu para todos e colocou seu dedo
indicador sobre o mapa artístico de Istambul.
- Não duvidem nunca, pois, a Grécia surgirá sempre como uma linda flor num
imenso pântano de lendas, meus caros, não é mesmo, Labda?. É evidente que
hoje tudo isso aqui pertence aos turcos, mas a História consegue resgatar as
origens e, um pouco lá para trás, estaremos nós, os gregos de raiz.
O grupo voltou, logo após seu ligeiro lanche, para a sala VIP e sentou-se para
dar início à reunião de trabalho, enquanto o ônibus não chegava.
Acomodando-se numa das poltronas perto da janela, Agostinho comentou:
- Eu sempre achei, Heródoto e meus companheiros de Projeto, que os
acontecimentos ocorridos no milênio de existência do Império Bizantino
precisam ser muito melhor divulgados, melhor esclarecidos e enfatizados, o
que não tem acontecido. Mas é muito bom que abordemos com grande
atenção esse assunto e os pontos que representam o cerne da questão. Para
este nosso Projeto, estaremos repassando fatos, leis e informações realistas
sobre pessoas com deficiência. E estaremos dando atenção especial a sérias
lesões causadas pela vontade tirânica de determinados Imperadores, ou das
autoridades com poderes claramente delegados, pelo Império Bizantino afora.
Não é justo que esses fatos, que hoje em dia tanto chocam a Humanidade,
quando trazidos à baila, permaneçam no status de total indiferença e sem
qualquer apelo. Achamos também que não é justo nem correto que seus
autores repousem na pretendida paz... e continuem como admiráveis heróis de
suas épocas na História da Humanidade.
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Byzas
Com um forte ar de decepção, desculpando-se diante do grupo muito atento,
Heródoto levantou-se e comentou:
- Ou mantenham-se no eterno castigo que merecem, meu caro. Quem sabe?
Agora, no entanto, peço que me desculpem por alguns instantes. Devo me
ausentar para confirmar uma informação um tanto quanto urgente, com a ajuda
da Eurínome. Fiquem à vontade. Voltaremos logo. Estou sabendo que Mestre
Agostinho precisa repassar todos os seus comentários e as suas análises
sobre pessoas com deficiência no Império Bizantino, que ele já elaborou com a
assistência de Sísifo, antes que cheguemos ao nosso destino, onde estaremos
alojados e onde trabalharemos. Estou notando que Labda e Noelma já
estiveram gravando as informações aqui repassadas, a fim de que o material
conseguido seja utilizado na elaboração da parte introdutória de nossos
relatórios, não é mesmo, Labda? Por favor, Eurínome, venha comigo.
Assim que ele se afastou ao lado de Eurínome, os demais permaneceram
sentados ao redor da mesa redonda, voltados para Mestre Agostinho que
prosseguiu:
- Vamos lá, então, meus caros. Não sei se vocês já notaram, mas de vez em
quando
alguns
historiadores
não
se
conformam
com
essa
posição
condescendente que tem sido reconhecida para com determinadas figuras
ilustres da Historia Bizantina. Na verdade, a História da Humanidade, conforme
nos é transmitida nos países do mundo ocidental, chega ao absurdo de
minimizar e chega mesmo a deturpar, por exemplo, a eventual importância do
Império Bizantino, que durou nada menos do que onze séculos, evitando
passar uma imagem realista de determinados Imperadores.
Voltando-se para Sísifo, ele pediu:
- Meu caro Luis Carlos, sei muito bem de seus esforços, de seus estudos e do
tempo que você tem dedicado a esses assuntos relacionados ao Império
Bizantino desde os anos de Curso sobre História Antiga, na Universidade de
São Paulo. Temos conversado bastante a respeito, não é mesmo? Eu vou
pedir que você repasse para nossas muito atentas assistentes algumas idéias
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Byzas
quanto às características desse famoso Império, a respeito do qual discutimos
ontem, durante nosso vôo da Air France para cá.
- Claro que sim, Mestre! afirmou Sísifo, pigarreando um pouco e acomodandose melhor na mesa diante dos papéis ali separados.
As assistentes sorriram com a seriedade dele e levaram suas mãos para os
respectivos gravadores, que haviam desligado por alguns instantes. Prontas
para acioná-los, Labda e Noelma aguardaram Sísifo começar.
- Já estamos prontas para a gravação, Sísifo, fez Labda, olhando rapidamente
para Noelma.
- Bem... Vamos repetir um pouco alguns dados, mas é muito importante
relembrar que a História relata-nos que o Império Bizantino foi instalado no
ano 330 d.C. por Constantino I, o Grande. Ele foi Imperador entre o ano 274 e
337. No ano 330, ele inaugurou a nova capital imperial com o nome de Nova
Roma. Anos depois, a nova capital do grande império passou a ser chamada
de Constantinopla, para homenagear o Imperador. Para esta região aqui
Constantino transferiu o governo todo, que tinha estado até então em Roma.
Depois de uma incontável série de altos e baixos e sob o comando de
Imperadores por vezes problemáticos, esse império terminou seus dias apenas
em 1453, ano em que Constantinopla tornou-se possessão dos turcos
otomanos liderados por Maomé II.
Caminhando devagar de um lado para o outro, Sísifo continuou:
- Mas vejam bem. Foram mais de onze séculos de existência. Onze séculos
intensamente vividos no mesmo período de tempo em que a Europa mantinhase numa etapa obscura e problemática da História, que foi a Idade Média,
como todos nós sabemos muito bem. Durante vários desses onze séculos
nunca deixou de ser uma notável unidade política que manteve muito viva a
cultura clássica de gregos e de romanos. É interessante notar que desde a sua
criação, durante toda a sua existência, procurou estabelecer com clareza sua
característica fundamentalmente cristã, com evidentes mudanças de ênfase,
pelos muitos séculos afora.
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Byzas
Labda pediu a palavra para informar:
- Luis Carlos, eu gostaria de contar que a Eurínome, a Noelma e eu andamos
lendo aqui e ali em variados sites da Internet que você nos indicou, toda a
opulência dos ambientes que cercavam o Imperador ou seus delegados. No
entanto, ela não reduziu em nada a ocorrência de lesões graves em
autoridades civis, militares e mesmo eclesiásticas em Constantinopla, não foi?
- Veja bem, Labda. Se nós formos nos referir aos desmandos que levaram
multidões a viverem com deficiências físicas ou sensoriais, o Império Bizantino
acabou sendo marcado na História da Humanidade como um lamentável
exemplo, uma vez que diversos de seus Imperadores destacaram-se em sua
gestão, não apenas por suas lutas, conquistas e intransigência na defesa do
Cristianismo, como também pela severidade dos castigos e penalidades que
infligiam, apoiados ou não nas leis. A existência legal de punições, como a
mutilação de membros ou o vazamento dos olhos de muitas vítimas – culpadas
ou não – que caíram nas mãos da justiça, foi uma verdadeira e lamentável
marca registrada da realidade bizantina.
Mestre Agostinho, que estava voltando com uma bojuda pasta de papéis nas
mãos, ouvindo o final da explicação de Sísifo, comentou:
- Em plena concordância com a exposição de Sísifo, devo também solicitar a
opinião de Mestre Gibbon e outros historiadores para esse ângulo da História
do Império Bizantino. Vocês devem saber sem qualquer sombra de dúvidas
que essas punições foram aplicadas em todas as camadas da sociedade
bizantina. Atingiram tanto nobres senhores quanto graduados membros das
forças armadas, chegando até membros das camadas mais simples da
população. E elas atingiram, sim, Imperadores e herdeiros do cargo máximo do
Império Bizantino, como Sísifo acabou de mencionar.
- Isso mesmo, Mestre Agostinho, emendou Sísifo. E olha que não nos é difícil
imaginar a extensão dos problemas das pessoas com deficiências pelas
causas usuais, quando a eles eram acrescentadas as dificuldades de todas
aquelas pessoas cegas e amputadas devido a penalidades impostas pela lei e
pelo poder absoluto dos Imperadores e seus mandatários.
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Byzas
- De fato, é algo muito cruel e descabido, pois, se pararmos um pouco para
pensar, meus caros, dá para formar uma idéia da imensidão dos problemas
sociais causados, ponderou Mestre Agostinho. Eu acho que Sísifo poderia
fazer alguns comentários bem pontuais a respeito, não é mesmo?
- Claro que sim. É importante que saibamos que, as autoridades de um lado, e
as grandes famílias de outro, mobilizaram-se por muitos séculos para dar
cobertura a esses problemas, procurando minimizar a imensa leva de
mendigos, que se espalhavam por todos os lados na linda capital. Durante
nossos próximos dias aqui em Istambul ouviremos falar de tuflokomeion, de
orphanotrophium, de nosocomium, de ptochotrophium e vários outros recursos
destinados a minorar os problemas criados pelas sérias lesões provocadas
pela vontade dos tiranos, de um lado, ou pela miserabilidade dos ambientes
insalubres que provocavam males fatais e o conseqüente esfacelamento de
famílias. Mas, repetindo um pouco, Constantinopla era a famosa cidade
fortemente murada, com muitos palácios e mansões senhoriais muito elegantes
com cúpulas douradas. Estava localizada num ponto estratégico e privilegiado
escolhido com a maior cautela. Era banhada pelas águas do Chifre Dourado,
do Bósforo e do Mar de Mármara. Suas muralhas totalizavam 20 quilómetros e
eram inexpugnáveis. Apesar de seus inúmeros problemas foi por muitos
séculos considerada pelos seus habitantes como o Verdadeiro Reino de Deus
na Terra.
- ... Apesar de tantas barbaridades que aconteceram dentro de seus muros,
comentou Labda.
- Mas os bizantinos – que se diziam romanos – aceitavam e defendiam seu
império como sui generis, pois, havia sido estabelecido, segundo era voz
corrente, continuamente repetida em sermões e nas faustosas cerimônias e
festas organizadas por famílias poderosas, por ordem direta de Deus e
questionar sua existência ou seu sistema de governo estava totalmente fora de
cogitação para todo e qualquer cidadão.
Sísifo passou para circulação entre os assistentes cópias de algumas fotos ou
ilustrações obtidas em variados sites da Internet, que davam uma idéia de
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Byzas
ângulos da antiga capital do Império Romano do Leste, como era conhecido, e
comentou:
- Como vocês devem ter percebido, Constantinopla brilhou como estrela
solitária no mundo durante toda a Idade Média e significou para muitos
poderosos um sonho impossível. Além de tudo, era um posto avançado e
fortificado da Cristandade, que desafiou durante todo um milênio o mundo
bárbaro, durante e após a queda de Roma.
- É a pura verdade, acrescentou Mestre Agostinho. Séculos após séculos,
mongóis, tártaros, búlgaros, mas principalmente os agora reconhecidos como
turcos, atacaram-na, maravilhados pelo que conseguiam ver por cima das
muralhas, ou seja, suas cúpulas douradas, suas igrejas e seus palácios. E
dentro dessas igrejas, desses palácios e mansões, esses inimigos mal
conseguiam imaginar a imensidão das riquezas que poderiam parar em suas
mãos, se tivessem sucesso em seus ataques.
Interrompendo
por
alguns
instantes
sua
apresentação
para
atender
rapidamente a encarregada da sala VIP onde estavam, Mestre Agostinho
continuou, desta vez caminhando de um lado para o outro:
- No entanto, meus caros, como vocês podem imaginar, a vida em
Constantinopla era enclausurada nos tempos de guerra, que foram muitos. Sua
população, constituída de gregos, latinos de várias origens e asiáticos (todos
reconhecendo-se como romanos, conforme já foi comentado pelo Sísifo) não
conseguia ter uma idéia do mundo além do horizonte permitido pelas muralhas.
Nesse universo limitado, dizem os historiadores que seu Imperador sempre foi
considerado como o legítimo representante de Jesus Cristo. Sua figura
autocrática era o próprio coração e a força propulsora de toda a sua
administração, localizada e centrada no seu magnífico palácio.
- E o mais incrível disso tudo é que nada dessa magnificência impediu que
barbáries sem conta acontecessem, muitas delas até em nome de Deus!
exclamou Sisifo.
- Isso é bem verdadeiro. Bem, meus prezados, estou notando daqui do meu
canto que Mestre Heródoto está chegando acompanhado por um dos mais
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Byzas
notáveis convidados para esta nossa rodada de estudos. Vamos fazer um
intervalo para recebê-los. Caso nosso ônibus especial chegue poderemos
continuar com nossas observações com mais conforto. É minha intenção que
cheguemos ao nosso destino bem informados quanto ao passado desse
faustoso Império Bizantino.
Todos levantaram-se e foram caminhando na direção de Heródoto que voltava
acompanhado por um homem idoso, alto, esguio e de barba aparada com
esmero, que vestia uma longa e elegante bata escura de um tecido muito fino,
com gola alta e mangas folgadas e compridas. Usava também uma espécie de
boina muito especial, com bordados finamente acabados sobre seus cabelos
brancos.
Tomando-o delicadamente pelo braço direito, Heródoto aproximou-se do grupo
e dirigiu-se a Mestre Agostinho:
- Mestre e meus caros, quero apresentar a vocês todos o muito respeitado
historiador Mickael Psellos, que estará participando dos estudos e debates que
terão início amanhã cedo, no local já reservado por Mestre Joshua. Como
todos estamos sabendo, Mestre Psellos viveu no século XII e esteve por muitos
anos ligado a atividades palacianas e foi ministro do Imperador Constantino IX,
o Monômaco. É autor de um livro precioso intitulado Cronografia, que alguns de
vocês já conhecem.
Todos foram cumprimentar o iminente historiador com sorrisos e apertos de
mão de boas vindas, com Psellos sorridente, mostrando-se à vontade.
- Eu tive o prazer de ler sua obra, Mestre Psellos, informou Sísifo ao apertar
sua mão.
Psellos mostrou-se surpreso e segurou sua mão para comentar sorridente:
- Espero que não tenha sido muito enfadonho, meu jovem amigo.
- De forma alguma, Mestre! Há nele trechos que incluem pormenores muito
vivos e preciosos e que impressionam o leitor.
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Byzas
Mestre Agostinho aproximou-se devagar para fazer parte da pequena roda que
havia sido formada ao redor de Psellos e de Heródoto, que levantou as mãos e
informou:
- Tenho agora a informação de que nosso ônibus especial já está estacionando
aqui por perto. No entanto, teremos tempo de sobra para saborearmos uma
pequena refeição com tranqüilidade e que já está à nossa disposição, graças à
gentileza da equipe que trabalha com as salas VIP de Atakurk.
No pequeno restaurante Psellos foi localizado entre as cadeiras de Heródoto e
Agostinho e em pouco mais de meia hora tiveram uma refeição leve e tranqüila,
durante a qual puderam relaxar um pouco.
Ao voltarem para a sala VIP, onde tinham iniciado seus trabalhos,
acomodaram-se o melhor possível para conclusão de todos os esclarecimentos
introdutórios que precisavam ser completados. Para tanto, trabalharam por
uma hora mais e cobriram os aspectos mais relevantes da capital do Império
Bizantino e de personalidades envolvidas.
Ao final das discussões, todo o material gravado pelas duas assistentes havia
coberto de sobejo todos os assuntos levantados por Mestre Agostinho, com os
comentários de Heródoto e de Psellos.
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Byzas
Capítulo V - VERDADES DE SEMPRE
Logo após o lanche reforçado da tarde, depois de caminharem uns 30 minutos
pelos bem cuidados jardins ao redor das instalações do Centro de Treinamento
Bicontinental, onde estavam alojados, os seis assistentes especiais do Projeto
em desenvolvimento subiram um lance de escada e sentaram-se em cadeiras
longas com tiras de plástico muito coloridas na ampla área descoberta do
Centro, que correspondia ao seu solário, procurando relaxar.
Devido à localização privilegiada daquelas instalações no alto de uma colina
toda arborizada, era possível ver uma boa parte da cidade. De onde estavam
conseguiam admirar a enorme cúpula da Hagia Sophia e de várias outras
mesquitas, com seus minaretes altos e bastante finos, iluminados diretamente
pelo sol do início do poente.
- O pior mesmo de ficar numa cidade como Istambul é você não entender uma
palavra sequer do que está escrito ou aquilo que o povo fala, não é mesmo?
comentou Sísifo. E aqui parece que muito pouca gente se preocupa em falar
francês ou inglês. Pelo menos é a impressão que eu tenho.
- Apesar de haver diversos locais com traduções em francês, com letras
pequenas que mal dava para ler, é bem verdade que não encontramos
ninguém até agora para nos explicar nada, confirmou Noelma.
Eurínome pegou uma revista ao lado de sua cadeira e comentou:
- Aconteceu o mesmo em Israel, lembra? Mas lá, pelo menos, ao perceber que
você não é do local, alguns até procuram comunicar-se, mesmo que num
inglês meio esfarrapado...Acho que a solução para nós é caminharmos em
grupo. Vocês concordam?
- Acho que todos concordam, mas eu ainda acho que a mímica sempre ajuda,
não ajuda, Eurínome?
- Ajuda, sim, Labda, embora não se consiga nada mais do que informações
bem pontuais...Lá em Roma, se eu desejava saber onde ficava a Piazza
Navona do lugar onde eu estava eu escrevia num pedacinho de papel “Piazza
Navona” A pessoa explicava geralmente com gestos amplos bem romanos e
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Byzas
era capaz até de me levar até lá. Claro que dependia sempre de você ser
simpático, sorrir, mostrar-se leve e... que não é turista. Isso é válido para hoje
em dia, claro, mesmo fora de temporada. O turismo está aos poucos tornando
muitos dos moradores de qualquer lugar mais reservados e frios, embora
alguns se excedam porque querem por vezes alugar um quarto ou vender
algum artesanato...
- Verdade, comentou Sísifo.
Todos foram se acomodando nas cadeiras por ali existentes, enquanto Noelma
comentava:
- Ai, que bom nós estarmos aqui em cima. Mas, olha! Eu estava pensando que
poderia haver uma linguagem mais universal, vocês não acham? Ou, então,
para coisas básicas pelo menos. Eu sei, claro, que as agências turísticas têm
seus pequenos panfletos ou caderninhos especiais de distribuição para sua
clientela com frases usuais da língua local, mas...
- Isso ajuda um pouco, Noelma... Pelo menos eu acho, afirmou Labda. Mas eu
também acredito muito mais na mímica. Em situações difíceis eu às vezes ajo
como se eu fosse muda... tentando chamar a atenção para algo que eu
preciso, sem o uso de palavras. E em geral sou bem atendida.
- Mas isso não deve acontecer com todo o mundo, eu acho, comentou Noelma.
Tanto aqui na Turquia quanto em qualquer outro país do mundo, essas
pessoas que têm alguma limitação podem até receber atenção que merecem,
mas muitas vezes devem ser colocadas de lado como se fossem estorvos.
Disso eu tenho certeza, mesmo porque é exatamente isso que tem acontecido
no mundo inteiro desde que eu me conheço como gente... e isso faz um
tempão, riu ela.
Sísifo, rindo da observação, sentou-se numa posição mais ereta para
comentar:
- Olha, Noelma, eu não tenho nem idéia de como é que as pessoas com
problemas especiais são tratadas aqui na Turquia. Claro que todos esperamos
que haja consideração suficiente. Afinal, todo esse povo reza de joelhos e de
testa no chão todos os dias várias vezes. Espero que essa postura diante de
Alá leve não só a Turquia, mas todos os países muçulmanos a oferecer
serviços bem adequados. E sabem por que motivo eu penso assim? Porque há
estudos de especialistas que afirmam que o grau de civilização e de cultura de
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Byzas
um povo pode ser medido, não apenas pela preocupação que demonstra para
com os seus grupos mais enfraquecidos e/ou minoritários, mas também pelos
tipos de apoio e pela qualidade com que esse apoio é passado para a prática.
- Mas, Sísifo, o fato de todos os muçulmanos orarem várias vezes ao dia,
voltados para Meca, não significa que a Turquia, por exemplo, tenha um povo
completamente civilizado e culto, não é mesmo? observou Labda.
- É verdade, Labda... Sim, é verdade. Quando eu ainda era estudante, aprendi
que algumas formas de prestação de auxílio, utilizadas em certas culturas,
através dos séculos, podem ter sido muito surpreendentes. Houve épocas da
História do Império Bizantino, por exemplo, em que fazer o bem, dar esmolas,
participar de esforços organizados, colaborar com programas destinados a
algum tipo de assistência ao ser humano em dificuldade, era a efetivação pura
e simples da virtude cristã da caridade. Era considerado mais ou menos como
a verdadeira aquisição de um passaporte irrestrito aos céus e a uma vida
eterna repleta de esplendores, conforme ouvimos ontem Mestre Agostinho
comentar.
- Mas isso seria muito bom, se fosse verdade, não é mesmo? perguntou
Noelma.
- Todos nós estamos cansados de saber que o ser humano em dificuldade
pode ser assistido efetivamente de várias maneiras, não sabemos? perguntou
Labda.
- Desculpe minha total ignorância a respeito, Sísifo, mas nesses dias que
correm na História da Humanidade eu não faço a mínima idéia de como essa
ajuda pode acontecer.
- Olha, Noelma, pode-se colecionar exemplos os mais variados para ilustrar o
como fazer e o como não fazer acontecer essa ajuda sempre importante. As
entidades ou movimentos de socorro surgem por vezes espontaneamente, por
vezes graças a um objetivo bem expresso, e, de vez em quando, com
segundas intenções. Vejam o exemplo do Império Bizantino.
- Eu acho que a História tem em seus arquivos exemplos fartos dessas
segundas intenções, não é mesmo? comentou Labda.
- Você tem toda a razão, porque não se trata de situações próprias do Século
XXI, em absoluto. Se a gente parar um pouco para pensar, a doença grave, os
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Byzas
defeitos físicos ou sensoriais, as catástrofes e os desastres naturais, ... o que
mais? perguntou Sísifo, procurando a opinião das demais colegas.
Noelma sentou-se rapidamente em sua cadeira reclinada e afirmou:
- Como eu vivi quase minha vida toda ao redor da VI Legião Romana...
- É a VICTRIX, não é mesmo? emendou Sísifo.
- Isso, Sísifo. Você que é diplomado em História Antiga sabe dessas coisas...
Então, como eu vivi praticamente minha vida inteira perto da VI Legião em
contatos diários com legionários feridos ou doentes, eu diria que as faltas de
membros, as paralisias sempre existiram e foram de alguma forma tratadas...
São as sempre trágicas conseqüências das atividades de uma guerra...
- Eu também acho que os deslocamentos de povos ou grupos tribais em
número gigantesco, que levam seres humanos a manter-se em contínua falta
de condições fundamentais para uma vida normal também foram causadores
de problemas sem fim...emendou Labda.
- Isso mesmo. Essas situações sempre existiram nas sociedades organizadas
ou não, cultas ou não, adiantadas ou primitivas.
- Eu acho pessoalmente que essa é uma grande verdade, Sísifo. Grande
verdade, comentou Eurínome.
- E todas essas sociedades, conforme os livros me ensinaram e de acordo com
a insistência de Mestre Agostinho, de uma forma ou de outra, por um motivo ou
por outro, sempre tomaram providências de ordem prática para efetivação de
alguma assistência, desde épocas as mais remotas da História Universal.
- Eu soube por comentários feitos comigo pelo Robin... lembram-se dele?
indagou Noelma, sentando-se outra vez.
Eurínome apressou-se em informar:
- A gente lembra, sim, Noelma... Era um cidadão inglês de atitudes limpas...E
que era sua grande paixão enquanto esteve conosco.
- Eu adorava aquele “cara”, como dizem os brasileiros... suspirou ela com um
ar saudoso.
- Então é verdade que ele era a sua paixão, não era mesmo? Mas conte para a
gente o que é que o Robin comentou que você ia nos dizer...insistiu Labda.
- Ele me informou que foi da idéia cristã de prestar ajuda que surgiram muitos
dos movimentos de voluntários, nos quais em geral senhoras da sociedade
dedicavam tempo e algum dinheiro à assistência aos pobres, enquanto os
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Byzas
homens dedicavam-se a buscar meios para ter um orçamento suficiente para
cobrir no mínimo suas necessidades básicas. E nesse mesmo meio sempre
ocorreram exemplos de pessoas mais abastadas que escolhiam grupos mais
especiais para dedicarem seu tempo, seu dinheiro e seus esforços.
Eurínome e Labda apoiaram a informação, enquanto Sísifo prosseguia com
mais animação:
- Todavia, vocês devem saber muito bem e eu li outro dia um artigo a respeito,
que desde os meados do século XIX e principalmente nos dias de hoje, é
freqüente encontrar aquelas pessoas que se envolvem com as muitas causas
devido a motivações e posicionamentos não tanto pessoais, mas de ordem
profissional.
- É lógico, fez Labda. Basta ver o caso de determinados profissionais que são
contratados por instituições para prestar atendimento técnico às pessoas com
deficiência, por meio da reabilitação, como você mesmo me explicou outro dia,
Luis Carlos.
- Embora seja ideal que ocorra uma ação conjunta e bem coordenada, esse
atendimento especializado, ao estudar com cuidado a problemática das
pessoas com deficiências e em situações que sozinhas não conseguem
superar, separa as ações em áreas especializadas, como condicionamento
físico, educação especial, por exemplo. Uma dessas áreas está voltada para
questões
de
trabalho,
mundialmente
reconhecida
como
reabilitação
profissional. Concordam com esse raciocínio? perguntou Sísifo.
Mestre Agostinho e Heródoto chegaram ao grande sótão, tomaram duas
cadeiras dobradas idênticas àquelas que os assistentes estavam usando e
sentaram-se com evidentes sinais de satisfação.
- Desculpem-nos por interromper vocês em sua animada discussão...
continuem com seus assuntos...afirmou Mestre Agostinho.
- Aliás, devo dizer que vocês dois chegaram numa hora boa, comentou Sísifo.
A gente estava começando a falar sobre o atendimento especializado que
surgiu para dar cobertura aos problemas sempre variados das pessoas com
deficiência.
- Mas que bom... É sempre um assunto empolgante em nosso grupo.
- Mestre Agostinho...
- Sim, Labda...
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- A gente sabe muito bem que, quando se fala em pessoas com deficiência,
vem na cabeça da gente em geral uma imagem negativa de pobreza, de
esmola, de andrajos, de falta de educação e de higiene, de inutilidade.pessoal
e de rejeição.
- É muitas vezes verdadeiro, mas muitas vezes também são imagens geradas
pelos preconceitos existentes em todos os lugares, Labda. Existem, sim,
pessoas com deficiência com as características que você mencionou, mas
existem também aquelas abrigadas em famílias bem formadas que sofrem as
conseqüências de uma deficiência física ou sensorial. Existem aquelas que
nasceram com muita iniciativa e que procuram sozinhas seus caminhos.
Existem aquelas dotadas de uma inteligência fora do comum e que são
atingidas por males que as limitam de uma forma brutal... Existem, por
exemplo, aquelas que têm paralisia cerebral e que são desconsideradas por
um engano das pessoas que acham serem elas deficientes intelectuais,
quando muitas vezes têm um intelecto invejável.
- É verdade, Mestre. Eu mesma tenho uma deficiência física, mas fui criada por
minha família, que era bem ampla, onde recebi muito carinho... apesar de
depois...
- Sim... depois não foi assim? perguntou Noelma.
Heródoto não se conteve e fazendo um sinal de apoio a Labda comentou:
- Meus caros, eu conheci a história da Labda lá em Corinto. Ela viveu muitos
anos feliz no palácio real, com seu filho Cípselo, que era rei daquela importante
cidade. Mas, quando ela era solteira, a família dela, pressionada pelo ambiente
perfeccionista que imperava na grande família dos Báquidas, percebeu que ela
era rejeitada por ter um pequeno defeito físico...
- Nenhum homem queria casar comigo! riu ela. E eu fui começando a viver
mais isoladamente como adulta, apesar de me dedicar com grande felicidade a
meus sobrinhos pequenos e às crianças de um modo geral.
- Verdade, Labda? Apesar de tão bonita que você é, não é mesmo, gente? Eu
não vejo nem nunca vi defeito físico nenhum em você, afirmou Noelma, muito
solícita, olhando sorridente seu rosto bem de perto.
Labda tomou seu rosto com as duas mãos, beijou-a na testa e comentou:
- Você não vê porque hoje em dia eu uso essas botinhas que você tanto
gosta... Elas eliminam a diferença que eu tenho numa das pernas...
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- Ah... é isso...
- Pois então, continuou Heródoto, casaram esta moça aqui com o filho de um
ricaço de Petra, só para ela desaparecer do ambiente seletivo dos Báquidas.
- E Petra era muito longe!... comentou Labda. Muito longe mesmo.
- Que absurdo, não?
- Mas tive meu filho, que foi o maior tesouro que eu ganhei dos deuses.
Mestre Agostinho aproveitou a ocasião para esclarecer:
- Deixe-me aproveitar esta oportunidade para comentar o seguinte: Uma
pessoa adulta, com algum tipo de deficiência, pequena ou grande, não importa
- seja ela física, sensorial, orgânica, funcional, mental, ou mesmo social –
precisa garantir sua vida com aceitáveis níveis de atuação pessoal, tanto física
quanto psicológica, de acordo com situações próprias da sua vida e da
comunidade onde vive. São esses níveis de equilíbrio, por assim dizer, que
poderão levá-la a uma vida mais digna, mais útil, mais feliz e mais encaixada
em seu meio-ambiente. Eu não desejo estragar a hora de repouso que vocês
estão procurando usufruir, mas, aproveitando o desenrolar do assunto e o
exemplo do caso da nossa Labda aqui, só quero acrescentar que os problemas
de uma pessoa adulta com deficiência vão muito além da luta direta pela
redução ou pela eliminação total ou parcial da dificuldade, não é mesmo,
Labda?.
- É a pura verdade, Mestre Agostinho. É uma verdade que se aplica a qualquer
pessoa, tenha ou não tenha a mesma cor da pele, o mesmo formato de rosto,
as mesmas características físicas... É evidente que suas dificuldades para
acertar sua vida dependem muito do apoio que receberam ou deixaram de
receber de seu núcleo familiar. Não estou falando só de pai e mãe. Estou
falando do conjunto de pessoas da mesma grande família, ou seja, avós, tios,
sobrinhos, primos, cunhados...
- Vejam bem, confirmou Agostinho. A aceitação ou não de uma pessoa com
uma lesão diferente não se limita, em absoluto, à utilização de um parzinho de
botas, como a Labda está fazendo. A questão ultrapassa em muito um simples
emprego remunerado e competitivo. E a grande verdade é que cada pessoa
com deficiência que busca um lugarzinho em seu meio-ambiente tem sido por
vezes pressionada a, não só superar a dificuldade causada pela limitação,
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como também, chegar a um determinado nível de aceitabilidade, que pode
envolver, como de fato envolve, quase todos os aspectos de sua vida.
- Aceitabilidade?! admirou-se Noelma. Olha que eu nunca pensei nesse ângulo
do problema. Acho, pelo pouco que eu sei, que essa aceitabilidade deve ser
algo natural e pressupõe, é claro, aquilo que é comumente conseguido graças
a uma boa educação para a vida adulta, bons hábitos de higiene, modo
educado de falar, maneira de se apresentar... enfim, boa educação. É isso
mesmo?
- Acertou, Noelma. É tão lógica essa quase que exigência dos muitos grupos
sociais que todo o mundo acaba pensando que os seres humanos podem ser
normalmente
aceitáveis.
Mas
infelizmente
isso
não
é
verdade
em
circunstâncias as mais variadas, o que não significa que é exclusividade das
pessoas com deficiência. Seria injusto pensar assim.
A porta de acesso à grande varanda abriu-se e Calil, um jovem empregado e
eventual auxiliar de cozinha do Centro, muito bem posto e sorridente, vestindo
um jaleco impecável, comunicou:
- Desculpem por perturbar vocês aqui... Mas me pediram para avisar que há
um consomé típico de nosso país, bem quentinho no refeitório, à sua
disposição, antes que se decidam quanto ao que desejam fazer à noite que
está chegando, antes do jantar que será servido pelas 21:00 horas..
Voltando-se para o sol que estava quase mergulhando nas montanhas ao
longe como uma grande bola de fogo, colocou uma das mãos em frente aos
olhos e exclamou:
- Olhem só a nossa paisagem e ali os contornos do Chifre Dourado! Parece
que está todo em brasa! Não é lindo? Falem a verdade: Não é lindo mesmo?
Todos levantaram-se e foram até o parapeito para admirar o espetáculo do
ocaso de Istambul. Aproveitando o silêncio de pura admiração do grupo, Calil
não perdeu a ocasião para comentar como que sonhando:
- Foi exatamente daqui do alto que, durante milênios o por do sol chegou a
encantar Imperadores, famílias senhoriais, generais e oficiais superiores,
césares e nobilíssimos, como eram chamados, almirantes de armada, além de
namorados, famílias inteiras, crianças... tanta gente do passado próximo ou
distante! Eles ficavam aqui ou destes lados da grande cidade de
Constantinopla e depois Istambul, ou na beira do Mar de Mármara e do Chifre
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Dourado, nos canteiros gramados, com aqueles bancos acolhedores, pertinho
da Avenida Kennedy dos dias atuais.
- Uau, Calil!... Você é um poeta, hein? comentou Britt.
Ele ficou olhando o sol mergulhar no horizonte, como se estivesse em oração.
Noelma, colocada ao lado de Britt e de Calil, ficou admirando também todo o
parque que cercava o centro. De repente seus olhos fixaram-se num prédio
baixo e redondo, coberto de palha bem acertada em camadas descendentes.
Ficou intrigada e perguntou ao Calil:
- Que prédio redondo é aquele, hein, Calil?
- Aqui ele foi apelidado de ringo, porque na verdade é uma espécie de arena,
ou ring em inglês, que tem sido usado para tratar, treinar e bem condicionar
cavalos que, mesmo em dias de chuva ou de muito frio, conseguem correr do
lado de dentro ao redor, continuamente em segurança e sem qualquer
interrupção. Ele também é sempre usado para um projeto piloto bem
interessante liderado por médicos e fisioterapeutas destinado a idosos. Quer
dizer, não só para idosos. Eu trago o meu avô sempre aqui para andar um
pouco a cavalo, mas sempre por orientação de uma fisioterapeuta daqui do
Centro, é claro. Mas ela desenvolve também um projeto com crianças entre 5 e
12 anos de idade, mas com problemas do tipo... do tipo... ah, eu não sei bem...
- Com alguma paralisia, Calil? Usando os cavalos como exercício ou como
distração? perguntou Britt
- Parece que os dois. Eles chamam o projeto de Horse therapy ou coisa
correspondente na língua turca.
- Não me diga que fazem isso aqui, Calil. Isso é muito interessante. Em Oslo
temos, num parque ao norte de Frognerseteren, bem ao norte de Oslo, uma
espécie de chácara para fins de semana, destinada a jovens com paralisia
cerebral, que usa terapeuticamente cavalos. Há estudos que apóiam a idéia
face aos movimentos que um cavalo, mesmo encilhado, faz e que estimulam
determinados grupos de nervos e músculos das pernas. O uso do cavalo,
quando montado adequadamente e em selas bem planejadas, ajuda no
tratamento feito por profissionais da fisioterapia. Mas é um assunto que requer
muito estudo e que não dispensa os trabalhos próprios tanto de médicos
quanto de fisioterapeutas e das dezenas de recursos mecânicos, elétricos ou
eletrônicos que um fisioterapeuta pode usar.
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- No Brasil a gente chama esse trabalho de equoterapia e chama esse tipo de
prédio de “redondel”, afirmou Sísifo.
- Redondel?... Belo nome... sonoro... fez Eurínome.
Noelma ficou emocionada com a informação e seu rosto ficou bem sério
quando pediu:
- Eu gostaria de ver como é que esse redondel é por dentro, Calil. Será que eu
posso?
- Mas é claro. Tome o seu consomé rapidinho e eu mostro, porque fica tão
pertinho, não é mesmo? Vários instrutores, proprietários e tratadores devem
estar lá neste quase fim de dia, como é costumeiro, porque o redondel, dá para
ver daqui, é todo cercado de baias onde os animais ficam abrigados, são
alimentados, descansam e dormem...
Heródoto parecia bastante animado com as perspectivas das reuniões que
seriam organizadas a partir do dia seguinte e informou ao grupo, enquanto
desciam um a um a pequena escada em caracol:
- Não sei se vocês todos já ouviram falar de alguns dos pontos mais visitados
de Istambul. Talvez vocês queiram andar um pouco e distrair-se por esta
cidade histórica e fascinante, como sempre foi pelos séculos afora. Mas, é
claro, vocês também podem se alertar para o fato de que iremos ficar por aqui
no mínimo uns quatro dias inteiros...Amanhã só iniciaremos nossos trabalhos
no período da tarde. Aproveitem bem este final de dia e amanhã cedo.
- Eu queria de verdade visitar Santa Sofia, Mestre, adiantou Sísifo. Sei que não
é novidade nenhuma para quem chega em Istambul, mas é um desejo que eu
sempre tive. Tem gente que se limita a admirar sua imensa cúpula central e os
quatro minaretes, mas eu gostaria é de entrar e sentir o local, não só como
está hoje, mas como foi no passado.
- Você tem toda a razão, jovem Sísifo. Mas amanhã pela manhã será melhor.
Noelma, Britt e Labda tomaram rapidamente seu consomé e seguiram Calil na
direção do redondel, conforme combinado.
Dentro, os quatro colocaram-se numa reentrância do local que dava para as
baias. Vários cavalariços escovavam três cavalos num ponto mais próximo de
um dos mastros de sustentação daquelas instalações, enquanto um deles,
colocado bem perto do mastro central, controlava por meio de uma rédea de
comprimento longo um belíssimo cavalo branco, que trotava com passadas
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bem marcadas, rente à parede, com um garbo digno de nota. Parecia que
estava de fato se exibindo.
Emocionada e com o coração batendo mais forte, Noelma segurou firme o
braço de Labda, enquanto seguia completamente imobilizada o trotar do belo
animal, que foi diminuindo sua marcha elegante, conforme foi se aproximando
do lado oposto do portão aberto onde elas estavam ao lado de Calil.
Com os olhos fixos no belo animal, ela levou a mão ao coração e murmurou:
- Britt... Labda... Ele é igualzinho o meu cavalo, lá de Tyne... Seu nome era
Albinus, para os legionários. Era o cavalo preferido do Centurião Médico Lucius
Flavius... mas para mim era apenas... apenas... Querido...
O animal parou de trotar do lado oposto onde elas estavam e sem qualquer
comando do cavalariço que o controlada, começou a caminhar na direção do
centro do redondel. Ao chegar próximo ao mastro central, parou por um
instante e foi, a passos lentos, balançando de leve a magnífica cabeça,
aproximando-se de Noelma, que ficou muito emocionada, largou o braço de
Labda e estendeu as duas mãos na direção do cavalo, num movimento
espontâneo. Ele, com os olhos grudados nela, foi chegando perto, relinchando
baixinho e com suavidade, movimentando devagar a cabeça magnífica. Seu
focinho encaixou-se perfeitamente bem nas duas mãos estendidas de Noelma,
que deu uns passos em sua direção para abraçar sua cabeça e para passar as
mãos com muito carinho em seu peito e em seu pescoço.
- Querido... você é lindo de tudo... Você é uma cópia exata de Albinus... que eu
perdi num campo de batalha todo enlameado, com uma flecha cravada bem
no peito.
Ela começou a chorar, mas o cavalo manteve-se calmo em suas mãos e
aceitou seu abraço com serenidade, como se a conhecesse desde sempre. De
vez em quando levantava a cabeça e relinchava baixinho, mostrando seu
carinho e seu contentamento.
- Você por acaso conheceu Albinus, lindo cavalo? brincou ela segurando com
leveza sua orelha preta, enquanto continuava abraçando sua cabeça.
Afastando-se um pouco, ela viu que o cavalariço vinha andando em sua
direção, enrolando devagar a rédea de controle de distância. Quando ele
chegou mais perto, Noelma perguntou:
- Qual é o nome dele?
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- É Blanco... acho que por causa da cor. É um nome latino. Só que ele tem
essa orelha direita diferente, como a senhora percebeu...
- Eu sei... Você não vai acreditar, mas o meu tinha a mesma marca...
Deixando o cavalo tranqüilo nas mãos e no abraço de Noelma, ele chegou
mais perto de Britt e de Labda e foi explicando:
- Pelo que eu ouvi dizer, ele era um cavalo selvagem e meio lendário que vivia
nas planuras da Bulgária, mas que se enturmou com outros mais selvagens do
que ele. Fez isso por causa de uma égua toda branca... e acabou sendo
capturado na grande manada. Mas, apesar de tudo, é um animal sensível, pelo
que eu tenho observado.
Dirigindo-se para Noelma, comentou:
- A senhora é a primeira pessoa da qual ele se aproxima com tranquilidade.
Engraçado. Eu estou acostumado com ele, mas, quando ele parou seu trote,
olhou direto para a senhora do outro lado do redondel e começou a caminhar
num passo lento, mas determinado, me deu a impressão que ele reconheceu a
senhora... De algum lugar, quem sabe?...
Ela sorriu com alguma tristeza e com os olhos cheios de lágrimas. Passou
devagar a mão direita desde o alto das orelhas até suas narinas. Suavemente
cochichou para ele bem baixinho, como se estivesse lá em Tyne, quase dois
mil anos antes...:
- Vai treinar, vai, Albinus... Ninguém nem imagina, mas aqui no meu coração eu
sei que é você!... O meu lindo Querido, que ficou no meu colo na hora de
nascer. Eu tenho certeza de que é você... De que forma eu não sei... Que
Apolo te proteja e garanta sua prole por muitos anos mais, com sua égua
branquinha como a neve que eu estou vendo daqui... me olhando enciumada e
balançando a cabeça várias vezes...
Blanco soltou-se devagar de suas mãos e olhou na direção da égua, do outro
lado.
O cavalariço olhou na mesma direção, riu e disse:
- Aquela é Nora, a namorada dele. Não se deixam por nada...Ela deve estar
enciumada, brincou ele.
Labda riu da observação e passando bem devagar uma das mãos no pescoço
de Blanco observou:
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- Pudera, um garanhão destes!... Ela, ali adiante, mostra que não é burra nem
nada.
Todos riram da felicidade da observação e o cavalariço foi puxando de leve a
rédea, para continuar sua rotina.
- Desculpem, mas eu tenho que continuar meu trabalho com ele e com outros
cavalos... Mas voltem sempre que quiserem.
Albinus foi se afastando devagar, com passadas bem marcadas. Quando
estava a uns dez metros dela, parou e virou a cabeça para olhá-la mais uma
vez, enquanto Noelma abanava a mão devagar, num sinal de adeus,
murmurando entre lágrimas:
- Adeus, Querido! Fico feliz que esteja vivo e muito lindo, e com uma namorada
tão formosa e elegante. Cuide bem dela, Querido.
Lágrimas desceram pelo seu rosto e molharam um pouco sua blusa. Ela se
voltou para Labda e escondeu o seu rosto em seu peito, soluçando um pouco.
- Desculpe minha emoção... É que no destacamento de cavalaria da Victrix, eu
tive um cavalo branco como esse... exatamente como esse, todo branco, com
aquela orelha preta...
e nós dois morremos na mesma hora durante uma
batalha perto de Tyne...
Parou um pouco, enxugou o rosto com um lenço de papel e murmurou:
- Mas, vocês viram... nós dois estamos vivos outra vez!
Labda e Britt, entendendo sua emoção, sem dizer nada foram se afastando
devagar, enlaçando a cintura de Noelma e caminharam na direção do refeitório,
onde o grupo esperava sua chegada.
- Promete contar para nós duas pelo menos essa história de um verdadeiro
amor como o seu?
- Claro que sim! Aliás, pela escala de apresentações, eu serei a próxima a
contar para vocês pormenores de minha vida passada.
Calil, observando os olhos vermelhos de Noelma, chegou perto dela muito
solícito e começou a falar o muito que sabia sobre os pontos de atração de
Istambul:
- Da. Noelma, a senhora sabia que agora Santa Sofia é um Museu, não sabia?
Passou de Basílica Imperial para Mesquita, quando os turcos deram o golpe
final no Império Bizantino, isso em 1453. Faz pouco tempo que ela passou a
ser um museu. Mas é um ponto de importância marcante. Vocês todos têm
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toda a razão de querer visitar essa obra amanhã cedo, como sugeriu o mestre
ali.
- Nós podemos ir juntos, se vocês todos quiserem, comentou Labda. Pelo que
eu li de noite ela deve estar fechada.
- No entanto, preciso dizer que um ponto que nenhum turista quer perder aqui
em Istambul é o assim conhecido Kapaliçarsi, afirmou Calil muito solícito. O
mundo todo conhece o Kapaliçarsi...
E acrescentou para melhor conhecimento de todos:
- É o famoso Grande Bazar ou Mercado Coberto. Ele fica no distrito de Fatih,
que não é longe daqui, quase no fim desta avenida.
- E lá a gente pode encontrar o que, Calil? perguntou Noelma, já refeita da
emoção e segurando o seu braço.
- Uma variedade enorme de joalheria, cerâmica, tapetes, especiarias, roupas,
tecidos, souvenirs... coisas assim daqui da Turquia, Da.Noelma. Muitas coisas
pequenas e lindas para dar para o seu namorado. É um enorme mercado
coberto, com mais de 60 ruas e, segundo alguns turcos exagerados, tem mais
de 4.000 lojinhas. É muito movimentado de dia até o início da noite. Dá para
vocês irem hoje, se quiserem, para uma visita rápida.
Agostinho, diante do interesse do grupo que ainda estava em pé na frente do
Centro e sem destino, emendou:
- O jovem Calil, nosso atencioso mordomo aqui, poderá explicar como se vai
até lá. Fale alguma coisa sobre o Grande Bazar para eles, Calil!...
O jovem turco, bem posto dentro do seu jaleco azul, chegou bem
desembaraçado, sorriu com toda a franqueza, mostrando dentes alvos e bem
alinhados e informou com certo orgulho próprio de habitantes de Istambul:
- Acreditem em mim quando digo que esse Bazar é o mais antigo do mundo
todo!
- Você não está exagerando, não, Calil? perguntou Noelma rindo.
- Não estou, não, Dona Noelma. A gente aqui em Istambul sabe que ele foi
iniciado em 1461, depois que os turcos tomaram posse de fato desta cidade
famosa e ordenaram um pouco a vida aqui na velha Constantinopla, que
estava um verdadeiro caos. Havia muitos pedintes cegos ou... estropiados,
como
dizem
os
franceses,
nas
esquinas,
no
hipódromo,
perto
do
orphanotrophium, perto das grandes igrejas... A maior parte das lojinhas do
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kapaliçarsi está agrupada por tipos de produto. Numa só área vocês podem
encontrar produtos de pele de animais, de joalheria só de ouro ou só de pedras
preciosas...
- Parece fascinante... Gente, vamos dar uma chegada lá antes do anoitecer? O
lugar por lá é seguro, Calil?
- Imagine, gente! Claro que é! Istambul é uma metrópole segura, como
qualquer cidade grande. E é bem iluminada. É só ter cuidado de não ficar
andando por ruas escuras com pacotes ou distraidamente. É igualzinho
Londres, Nova York ou o Rio de Janeiro.
- É a mesma coisa em São Paulo... comentou Mestre Agostinho. É preciso
sempre ter cuidado e não demonstrar que você é turista, tem dinheiro, anda
distraído...
Calil animou-se com a possibilidade deles visitarem o Kapaliçarsi, o que
despertou nele uma pequena esperança de que passassem pela lojinha de sua
irmã Fátima para comprar alguma lembrancinha feita em casa. Assim ela
poderia garantir pelo menos a taxa mensal de aluguel que ela ainda estava
devendo. Aproveitou para esclarecer:
- O Kapaliçarsi fica na parte mais alta da grande área comercial, na encosta sul
do Chifre de Ouro, aqui perto. Exatamente nesse lugar é que os navios
atracavam para trazer abastecimento para a cidade, que deles dependia para
tudo. Fizeram um enorme aterro para poder ampliar a área comercial de
Istambul faz muito tempo. O Kapaliçarsi fica entre duas mesquitas – nem vou
dizer os nomes porque vocês nem vão se lembrar – mas o ponto de referência
melhor é que ele fica bem perto da avenida principal da cidade antiga,
chamada de Divanyolu. Deu para entender? Di-va-ny-o-lu. Essa avenida é dos
tempos dos gregos que se orgulhavam de serem chamados de romanos...ou
seja, dos tempos áureos da Constantinopla cristã, que se dizia Reino de Deus
na Terra.
Todos mostraram-se animados para ir procurar o famoso mercado coberto,
com Calil, na entrada do Centro, fazendo indicações quanto à direção a tomar.
Vendo-o ali parado, de mãos cruzadas como em oração e o grupo se afastando
aos poucos, Noelma não se conformou, voltou correndo e convidou, segurando
seu braço:
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- Calil, você já terminou seu trabalho aqui no centro. Por que não vem com a
gente? Nenhum de nós fala turco e se quiser comprar alguma coisa você
poderia ajudar... E podemos ir ver a lojinha de sua irmã.
- Ah... eu não quero atrapalhar vocês...Imagine!...Olha, Dona Noelma, minha
irmã Fátima – é um amorzinho de gente. Como eu contei antes, ela tem uma
lojinha lá que tinha sido do meu avô. Ela vende esses perfumes em bastões,
sabe? Esses que a gente acende e fica fumegando, dando um cheiro gostoso
numa sala ou num quarto. Lojinha número 2112 – fácil de guardar. Ela fala
inglês também. Ela poderá ajudar vocês. Diga que eu que mandei... Eu, o
Calil... irmão mais novo dela...
- Que bom. Mas mesmo assim, vem Calil!... Vem! Você ajudará muito a
gente!... insistiu Labda, enquanto Noelma segurava a sua mão, tentando puxálo para a rua.
Ele ficou animado. Afastou-se um pouco de Noelma e, fazendo gestos amplos
com os braços, afirmou:
- Espera um pouquinho que eu vou tirar este jaleco aqui e vou pegar o carro do
Centro para levar vocês. Além de mais seguro, dá para ir mais rápido. E fiquem
tranqüilos porque eu sou um motorista licenciado e autorizado pela direção do
Centro. Volto já...
Num instante, de fato estava de volta guiando uma espécie de perua com
diversos lugares e logo estava enturmado, usando um boné de uma equipe de
basebol local e camisa azul clara de mangas curtas. Num instante parou ao
lado do grupo que foi tomando os diversos lugares.
Logo estava enturmado, com Noelma ao seu lado, falando o tempo todo,
explicando cada ângulo dos lugares por onde passavam, contando histórias de
combates, de heróis bizantinos ou turcos mais recentes que ali viveram ou
morreram nesta ou naquela calçada, de monumentos derrubados por
terremotos (Aqui mesmo tinha um, dona Britt, mas os nobres latinos
derrubaram e levaram embora para deixar no Museu Britânico, em Londres),
de milagres ocorridos nos séculos do Império Cristão, de aparições de Maomé
ou de profetas vários a grupos de peregrinos que iam a Meca, da invasão de
Constantinopla pelos Cruzados e muita coisa mais.
De repente ele parou o carro.
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Noelma e Britt olharam intrigadas para ele para saber o que tinha acontecido.
Ele apontou em frente, com as duas mãos estendidas e voltadas para cima,
demonstrando muita alegria. Com um grande orgulho anunciou:
- Aqui está a entrada do Kapaliçarsi, prezados. Não é lindo?
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Capítulo VI - O BEM e o MAL
Mestre Agostinho iniciou os trabalhos do dia em Istambul logo após o término
de um vídeo sobre a cidade.
- Meus prezados, esquemas dignos de nota foram aos poucos organizados no
Império Bizantino para dar cobertura a problemas de maior gravidade que
afetavam parcelas significativas da população. Enquanto alguns deles
relacionavam-se ao desenvolvimento da medicina para dar cobertura à multidão
de doentes que sofriam sem qualquer assistência organizada, outros tentavam
dar cobertura a idosos, órfãos, cegos e vítimas de outros males. A Igreja e o
Estado deram-se as mãos desde a época de Constantino I para prover os
serviços assistenciais básicos, muito antes de existir qualquer serviço ou
esforço organizado na Europa ocidental e cristã.
..............................................................................................................................
Assim é que foram gradativamente estabelecidas entidades diversas que
acabaram sendo classificadas em 9 (nove) categorias, a saber:
"brephotróphium" - lar para recém-nascidos;
"gerontotróphium" - lar ou abrigo para pessoas idosas abandonadas ou sem
condições familiares de sustento contínuo e seguro;
”lobotróphium" - abrigo e internato para pessoas vítimas de limitações físicas
crônicas e muito severas;
"nosokómeion" - criado para tratamento e abrigo de doentes agudos e crônicos
sem posses nem condições para tratamento domiciliar;
"orphanotróphium" - abrigo e alimentação para crianças órfãs ou abandonadas
pela família;
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"pandóchium" - abrigo polivalente destinado indiscriminadamente a todos os
tipos de desamparados não enquadrados nas demais organizações;
"ptochotróphium" - abrigo e alimentação para mendigos e pessoas pobres e
abandonadas sem condições de sustentação própria;
"tuphlokómeion" - abrigo e alimentação para pessoas cegas pobres e
desprovidas de condições familiares para garantir seu sustento;
"xenodóchium" - organização destinada - pelo menos no início - a viajantes e
peregrinos estrangeiros adoentados ou em sérias dificuldades de abrigo.
...............................................................................................................................
- Vejam bem que a eventual "latinização" das palavras não disfarça de maneira
alguma sua origem grega. Os radicais "kómeion" e "dócheion" correspondiam a
abrigo, proteção, cuidado, recipiente, enquanto que o radical "trópheion"
relacionava-se à idéia de alimentação e de educação. É importante observar
que o "Orphanotróphium" de Constantinopla foi muito importante e tão
magnificamente construído e montado que levou o Império a manter o titulo
honorífico de "Orphanotróphus" para seu diretor, geralmente outorgado a um
importante sacerdote ou bispo da Igreja.
...............................................................................................................................
Os Primeiros Hospitais da Terra Santa e de Bagdá
Carlos Magno (742 a 814), rei dos Francos e chamado de "Imperador do
Ocidente", em contraposição aos Imperadores bizantinos que eram por vezes
conhecidos como “Imperadores do Oriente”, tem sido uma das mais
impressionantes figuras da História da Idade Média. Sua vida toda esteve
repleta de lances importantes. Uma de suas características principais era sua
habilidade de administrador. Dizem que em vez de criar organizações novas,
reformava e melhorava as já existentes, levando-as a funcionar bem. Aliado ao
famoso califa Haroun-al-Raschid com o fito de intimidar o Império Bizantino,
foi o co-patrocinador da construção do primeiro hospital ("nosokómeion")
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separado dos abrigos para peregrinos e estrangeiros ("xenodóchium")
construído na Terra Santa. Segundo seus biógrafos, Carlos Magno protegia
também os cegos, tendo estabelecido severas penas para aqueles que os
maltratassem.
Foi no século X que surgiu na cidade de Bagdá um segundo hospital do mundo
islâmico, sob o governo do califa Al-Muktadir. Um terceiro foi construído no
mesmo século (ano 970), também em Bagdá, contando com 25 médicos.
Caracterizava-se este último hospital como entidade de tratamento, de
observação, de ensino e de treinamento dos médicos.
Esses hospitais e todos os demais 34 que foram organizados até o final do século
X recebiam não apenas doentes mas também pessoas com deficiências sérias e
limitadoras.
......................................................................................................................................
Mestre Agostinho interrompeu os relatos para um intervalo que foi muito bem
aceito. Em seu retorno, tão logo todos estavam acomodados, iniciou a segunda
parte da tarde com estas observações:
- Meus prezados, apesar de tomarmos conhecimento dessas iniciativas
meritórias que a sociedade bizantina apoiou por séculos, de outra parte
ocorreram fatos da mais lamentável conotação durante esses mesmos
séculos.
Como
vimos,
enquanto
eram
criadas
várias
entidades
assistenciais, com as quais as grandes e poderosas famílias envolviam -se
para sua sustentação, as autoridades máximas de Constantinopla, elevadas
a posições fantasiosamente sagradas, tomaram providências de muito difícil
aceitação nos dias atuais. Dentre elas cumpre destacar muitas das que
levavam a deficiências em todo o Império Bizantino.
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Muito cruéis para os nossos dias eram as penalidades aplicadas por alguns
Imperadores ou potentados bizantinos. No entanto, ressalte-se que elas estavam
perfeitamente bem estabelecidas em lei e o mundo oriental vivia séculos que
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demandavam fortes providências para cercear o crime, o roubo, o estupro, a
traição e a deserção das forças armadas.
Alguns exemplos serão apresentados deste ponto em diante quanto à aplicação
de diversas dessas penas, embora estejamos todos muito certos de que
inúmeros outros casos poderão ser coletados pelos estudiosos do assunto.
O historiador das realidades bizantinas, que foi Bréhier, informa que em sua
obra intitulada "Vie et Mort de Byzance", há uma introdução escrita por uma
das maiores autoridades no assunto, que foi Henri Berr. Esse famoso
historiador chama-nos a atenção para um fato que caracterizou o Império
Bizantino, ou seja, as mutilações: "Temos encontrado sem cessar nestas páginas,
a menção não apenas de assassinatos, mas de torturas as mais diversas, de
"suplícios refinados": arranca-se os olhos, corta-se a Iíngua, queima-se com ferro
em brasa; mas sobretudo vaza-se os olhos. Vazar os olhos é prática corrente".
De fato, tão corrente era essa prática que, só de acontecimentos importantes e
muito notórios — e tão notórios e importantes que passaram para a História —
poderíamos citar mais de trinta. Todos eles - vazamento dos olhos de um modo
todo especial, mas incluindo mutilações como penas por crimes e traições, ou
mesmo para incapacitar certos pretendentes ao trono ou a postos importantes foram praticados contra membros da nobreza mais alta do Império, contra
príncipes herdeiros, contra Imperadores aprisionados ou destronados, durante
toda a duração do Império Bizantino.
Só no século VIII, por exemplo, encontramos diversos fatos que ocorreram
após 741, ano em que Constantino V (718 a 775) procurava combater com
muita força os povos árabes nas terras da Ásia, tendo para tanto se ausentado
longamente de Constantinopla. Durante seu afastamento da corte, porém, seu
cunhado Artavasde conspirou contra ele e chegou mesmo a ser proclamado
Imperador por suas tropas. Entrou vitorioso e sem maiores resistências na
capital do Império e foi coroado e abençoado pelo patriarca Anastácio. Logo em
seguida, para garantir sua sucessão, associou seu filho mais velho ao trono.
No entanto, um ano e pouco após esses eventos Constantino V retornou e
conseguiu retomar o trono com as forças armadas ainda à sua disposição. Logo
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em seguida castigou severamente a traição do cunhado, mandando vazar seus
olhos e de seus pretensos herdeiros, ou seja, seus filhos. Fez mais o Imperador:
mandou açoitar publicamente a maior autoridade da Igreja que não Ihe tinha
sido fiel, o patriarca Anastácio.
Já reafirmado no poder, encetou vários anos após uma violenta e pertinaz
campanha contra o culto das imagens na Igreja — parte do chamado
movimento iconoclasta, ou seja, movimento contrário à adoração de imagens
no culto cristão — e, demonstrando um quase que incontrolável ódio contra
monges, mandou exilar, aprisionar e mesmo mutilar um imenso número deles.
Nas províncias os governadores e autoridades da justiça procuravam seguir o
exemplo do Imperador. O governador da Trácia, por exemplo, fez reunir à
força todos os monges e religiosas daquelas terras numa praça de Éfeso,
obrigando-os a fazer ali mesmo uma opção: deviam escolher o casamento ou
perder a visão.
A Imperatriz Irene e sua Luta para Garantia do Trono
Ainda no século VIII, durante um curto espaço de vinte anos, a História
Bizantina relata-nos algumas amputações de língua e vazamento de olhos na
mais alta nobreza de Constantinopla durante a vida da famosa imperatriz Irene,
ou seja, entre os anos 780 e 800.
Esse relato poderá ser iniciado com o jovem príncipe herdeiro do trono, Leão,
filho de Constantino V, com 25 anos de idade, casando-se numa faustosa
cerimônia realizada na Basílica de Santa Sofia, com uma belíssima jovem
ateniense de 18 anos de idade, de nome Irene, que era plebéia e órfã de pai e
mãe.
Explica-se: a escolha de algumas imperatrizes ou de esposas de governadores e
de alguns nobres dava-se em verdadeiros concursos de beleza e de talento,
segundo alguns historiadores. Irene fora escolhida exatamente assim, pelo
Imperador Constantino V, cinco anos antes do velho Imperador falecer. Irene
conquistou com extrema facilidade não só o amor e a confiança do marido,
como também do sogro, que já colocava toda a sua esperança de sucessão
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adequada no filho herdeiro do trono e em sua jovem, prendada, inteligente e
belíssima esposa.
Os Primeiros Castigos contra Conspiradores dentro da Família
A morte de Constantino V levou Leão IV ao trono. Já estava casado com Irene
e seu filho Constantino já havia nascido, mas o Imperador estava doente e era
muito inexpressivo em contraposição a Irene, uma esposa saudável e muito
vivaz. Leão IV faleceu logo, deixando Irene como guardiã de seu herdeiro ao
trono, então com 10 anos de idade. Esse acerto prévio esperado, que tinha o
intuito de garantir a coroa para o filho, não agradou os cinco irmãos de Leão IV.
Em circunstâncias normais poderiam ter reconhecido o direito do sobrinho,
mas jamais poderiam permitir que a plebéia Irene assumisse o posto de
imperatriz. Os títulos de "césar" e de "nobilíssimos" que haviam recebido do
falecido pai não Ihes interessavam mais. Queriam o poder, a glória e as
riquezas sem fim.
Foi face a essa situação que os cinco começaram uma trágica seqüência de
conspirações, antes e depois da morte de Leão IV. A primeira tentativa de
golpe, abortada, foi perdoada pelo Imperador enfermo, sem maiores castigos.
A segunda, entretanto, que aconteceu alguns anos após, tinha encontrado Irene
com as rédeas do poder nas mãos, na qualidade de regente. A penalidade
imposta por ela foi suave, mas contundente: os cinco irmãos foram forçados, por
sua expressa determinação, a assumir o estado sacerdotal. E para que toda a
nobreza e todo o povo soubessem da realidade do castigo, "convidou-os" a
oficiar os solenes ritos do Natal na Basílica de Santa Sofia, distribuindo
inclusive a comunhão aos fiéis. O estado sacerdotal forçava as pessoas a
manterem uma atuação a tempo integral e proibia o envolvimento em assuntos
alheios àqueles próprios da função, o que presumivelmente deixaria Irene e o
filho Constantino sossegados.
Poucos anos depois, entretanto, ocorreu nova e séria conspiração dos cinco
irmãos. Irene perdeu a paciência e mesmo na qualidade de regente que ainda
era, considerou-se atingida por crime de lesa-majestade. Mas aplicou penas
"suavizadas", face à perspectiva da pena de morte: mandou amputar a língua
dos quatro "nobilíssimos" e “vazar os olhos do césar" Nicéforo.
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Punições Severas Ordenadas pela Imperatriz
Com o evidente intuito de continuar com a totalidade do poder em suas mãos,
mesmo após a subida do filho ao trono como Constantino VI, Irene procurou
sistematicamente abafar qualquer iniciativa dele, provocando com sutileza e
malícia o fracasso de seus projetos. Seu plano, na verdade, começara muito
antes, quando negligenciara com sagacidade e muita perspicácia sua
preparação para o trono.
No entanto, a situação vivida pelo Império e motivos da mais alta relevância
levou o general Mouselen a destronar a imperatriz, num golpe preparado com
maestria, aprisionando-a e garantindo a plena autoridade de Constantino VI.
Muito embora as forças armadas tivessem a intenção de afastar a má influência
da mãe sobre Constantino VI, a fim de que ele governasse em toda a sua
plenitude, não contaram com o afeto natural, além de uma certa dependência
do jovem Imperador para com sua mãe, o que se tornava cada vez mais
evidente, conforme a visitava na prisão.
A conseqüência não demorou quase nada: Irene foi libertada por Constantino
VI que, arrependido, restaurou-a ao poder com o título de imperatriz e com
poderes para governar ao seu lado.
Ano após ano Constantino provou ser um Imperador fraco e Irene foi crescendo
em sua influência, seu poder e mesmo em sua aceitabilidade durante muitos
anos muito questionada na corte. E foi por influência direta de Irene (e talvez
exigência) que o general Mouselen, comandante da revolta que a levara â prisão
vexatória, foi preso e teve seus olhos vazados, sem maiores considerações.
Para a nobreza e para o povo esse ato demonstrou uma impressionante
ingratidão do Imperador. Demonstrou também a evidente força de Irene que,
com esse ato, vingava-se da vergonha que Ihe fora imposta.
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Tomando a palavra, Gibbon esclareceu:
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- Com o ambiente propício criado pela dualidade do poder de comando, as
intrigas foram crescendo no palácio imperial, agora infestado por eunucos e
por religiosos venais. No ano 797 Constantino percebeu que sua sustentação era
precária e que sua vida corria sério perigo dentro da corte, tal o nível das intrigas
e das conseqüentes e esperadas suspeitas. Sorrateiramente fugiu do palácio,
mas foi preso em curto espaço de tempo e levado de volta; foi trancado, por
ordem da mãe, no mesmo quarto onde nascera, 26 anos antes. E lá mesmo, no
meio da noite, teve seus olhos selvagemente vazados por ordem de Irene.
Sobreviveu à violência do ataque que o inutilizou para o trono, vivendo ainda
muitos anos verdadeiramente oprimido pela corte e esquecido pelo seu povo.
Anos após, a quarta conspiração dos infelizes irmãos de Leão IV aconteceu e
Irene, plenipotenciária e despótica, não teve dúvidas em aplicar a pena que
considerou como definitiva para eliminar de vez suas pretensões ao trono:
mandou vazar os olhos dos "nobilíssimos", já de línguas anteriormente
amputadas e mandou amputar a língua do "césar" Nicéforo, já cego. Para
concluir, logo após, exilou os cinco para longe. Irene foi destronada e exilada
para a ilha de Lesbos alguns anos após. Ali morreu muito pobre, trabalhando
com suas próprias mãos.
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Mestre Agostinho prosseguiu os trabalhos informando que, se o eventual
leitor do relatório que estavam preparando tiver oportunidade de visitar o
Museu Nacional de Espanha, em Madri, poderá admirar muitas miniaturas
que foram pintadas com esmero por monges da Sicília, diversas das quais
registram fatos ligados à história de Basílio I, Imperador bizantino, que reinou
entre os anos 867 e 886. Nessa verdadeira história em quadrinhos nota-se
momentos muito importantes da vida desse surpreendente Imperador.
O primeiro retrata uma encarniçada batalha, aparecendo ao centro o general
bizantino Procópio mortalmente ferido por um magote de soldados inimigos,
enquanto seus comandados, de costas para ele, batem em retirada. O episódio
retrata uma derrota bizantina causada por um desentendimento entre o citado
general e um outro, também de confiança de Basílio, de nome Leão. E o
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desentendimento havia ocorrido pouco antes da batalha, levando Leão a não
colaborar com Procópio na hora necessária.
Tendo tomado conhecimento do fato, o Imperador mandou prender o general
Leão e levá-lo à sua presença. E é exatamente isso que o segundo quadro nos
mostra em seu lado direito, aparecendo Basílio I de dedo em riste e o ar
preocupado de Leão. Mas há algo mais que impressiona neste quadro de
reduzidas proporções: são as duas cenas pintadas em seu lado esquerdo. Tratase da execução das penas impostas pelo Imperador, após Leão ter sido
destituído de seu alto posto de general.
Nessas duas cenas vemos o infeliz condenado com os braços amarrados às
costas e deitado no chão, com o carrasco imobilizando-o com suas pernas e
cegando-o com um ferro em brasa, seguro firmemente com ambas as mãos. E
mais à esquerda vemos ainda o mesmo prisioneiro com o braço estendido sobre
um avantajado pedaço de madeira, enquanto o carrasco está com um machado
a meio caminho para decepar-lhe a mão.
Contam os historiadores que esse comandante deposto não morreu devido a
esses castigos e viveu até idade avançada, mas exilado e na mais negra
miséria.
Basílio II – Estranha Vingança contra 15.000 Soldados Búlgaros
Vários dos historiadores
presentes comentaram a inaceitável atitude do
Imperador Basílio II contra os búlgaros. Em resumo,comentaram o seguinte:
Notícias de barbáries sem precedentes — ou pelo menos conhecidas em países
cristãos — são relatadas no século XI. E a mais chocante de todas relaciona-se
a um Imperador cristão considerado como um dinâmico líder bizantino, no
final do primeiro milênio da Era Cristã. Trata-se de Basílio II, que recebeu
apelido histórico e muito sugestivo: "Bulgaroctonus", ou seja, matador de
búlgaros.
Nascera ele em 958, tendo falecido em 1025. Reinou entre os anos 976 e o ano
de sua morte. Dentre suas campanhas militares mais significativas para a
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História Bizantina, destaca-se a que empreendeu em 1014 contra a Bulgária.
Basílio II subjugou-a completamente.
No entanto, o golpe de misericórdia que aniquilou a resistência dos patriotas e
dos soldados búlgaros e que terminou a guerra, levando os inimigos de
Constantinopla à rendição total daquele país (qual bomba atômica daqueles
tempos) foi uma ação de crueldade fora do usual.
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Gibbon posicionou-se diante do grupo para enfatizar:
- "Sua crueldade infligiu uma vingança fria e estranha a 15.000 cativos que
haviam sido culpados apenas de defender seu país. Foram privados de sua
visão, mas para um em cada cem, um só olho foi deixado, para que pudesse
conduzir a sua centúria cega à presença de seu rei. Dizem que seu rei faleceu
de pesar e de horror; a nação toda ficou traumatizada com esse terrível
exemplo".
Também presente ao debate, o historiador inglês George Finlay reforçou as
informações de Gibbon, adicionando:
- Foi no dia 29 de julho de 1014 que o Imperador bizantino Basílio II e seus
generais estavam analisando a situação da campanha contra a Bulgária.
Estavam achando tudo na mais perfeita ordem para a completa rendição da
Esclavônia, que é uma parte da Bulgária. Acontece que seu inimigo principal e
mais persistente, que era o rei Samuel, opôs-se ao seu poderoso exército num
desfiladeiro, à frente de considerável força militar.
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Muito irritado, Basílio II fez seus homens parar e deu ordens para que o
governador de Philipópolis, Nicéforo Xiphias, com um bem treinado
contingente de soldados, desse a volta numa das montanhas que faziam parte
do grande desfiladeiro, para assim atingir o exército búlgaro por um dos
flancos. E numa ação conjugada, os bizantinos venceram as forças búlgaras;
mas não tiveram a oportunidade de prender Samuel que escapou ileso.
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O historiador Finlay acrescentou naquele momento::
- O ato de vingança de Basílio II foi desproposital e terrível. Sua
desumanidade amedrontadora forçou a História a desprezar sua conduta e a
quase enterrar no esquecimento os relatos de suas conquistas militares. No
caso da ação militar que estamos analisando, ordenou que os olhos de todos
os seus 15.000 prisioneiros fossem vazados, deixando um só olho para o líder
de cada cem. Foi nessa condição que determinou aos desgraçados cativos para
procurar Samuel, seu rei, ou para perecer no meio da jornada. Quando
chegaram a Achrida, Samuel saiu ao seu encontro muito aliviado. Mas, quando
tomou conhecimento da extensão da tragédia toda, caiu desmaiado ao chão,
tomado de excessiva ira e dor. Faleceu dois dias depois. A morte de Basílio II,
que não tinha filhos, levou ao trono o seu irmão que era "co-Imperador",
Constantino VIII (960 a 1028).
Constantino VIII – Imperador frívolo e cruel
Agostinho agradeceu a intervenção oportuna de Finlay e passou a palavra a
Bréhier que começou informando que Constantino VIII. era um homem frívolo
ao extremo, muito forte e de crueldade renomada.
- Esse Imperador incompetente ao extremo, que foi Constantino VIII, meus
prezados amigos, mantinha a violência dos fracos e dos covardes. Acolhia com
facilidade qualquer tipo de calúnia, sem o mínimo discernimento e, acreditem
ou não, punia faltas veniais com a ablação dos olhos. Entre as mais lamentáveis
vítimas desse Imperador eu gostaria de destacar o nobre Constantino Boutzès,
cujo pai havia sido detentor do mais elevado dos títulos existentes fora da
família imperial: o de "magister". O Imperador, que o odiava de longa data,
apressou-se em mandar vazar seus olhos.
Schlumberber aproveitou o momento para pedir a palavra e comentou:
- Creio ser oportuno, Mestre Bréhier, ressaltar que, embora Constantino VIII não
fosse considerado à época um tirano muito cruel, na verdade ele fazia vazar os
olhos de pessoas importantes das quais suspeitava, deixando-as logo após em
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liberdade. O famoso cronista bizantino do século XII, João Zonaras, ao
comentar em sua obra Manual da História Universal a freqüência das penas de
vazamento de olhos aplicadas por Constantino VIII, afirma que essas atitudes
eram menosprezadas. Num certo ponto de seus comentários ele afirma o
seguinte: "Ele tinha verdadeira predileção por esse tipo de suplício que
imobiliza a vítima e a torna incapacitada, sem a fazer perecer. Ele utilizou
continuamente durante seu reinado esse terrível suplício para reduzir a nada
uma multidão de homens eminentes. Dava-se a isso, em Constantinopla, um
nome repleto de dolorosa ironia: a divina clemência do Imperador".
Os demais historiadores presentes concordaram plenamente com as
afirmações de Zonaras, citado por Schlumberger. Vários comentários foram
expressos, relatando fatos indicativos do uso e do abuso do poder por parte
de Constantino VIII. O caso mais flagrante e que provocou uma mudança de
rumo na História do Império Romano do Leste, relacionou-se à sua sucessão.
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Segundo comentários diversos, Constantino VIII tinha três filhas e nenhum
herdeiro do sexo masculino; a mais velha das princesas ingressara num
convento e as duas outras — Teodora e Zoé — já com seus cinqüenta anos de
idade, não haviam casado. Em 1028, nos primeiros dias de novembro, já em seu
leito de morte, após três anos de lamentável reinado, resolveu casar
urgentemente pelo menos uma das filhas, podendo dessa forma passar
seguramente o trono a ela e a seu príncipe consorte.
Para assegurar um casamento condigno, convocou ao palácio o candidato mais
indicado pelos eunucos e por alguns nobres de seu círculo mais próximo:
Romano Argiro.
Colocado aos pés do leito do Imperador moribundo, tendo Romano ao lado
sua própria esposa, foi "intimado a se divorciar dela e a casar-se com uma das
princesas, ou teria os olhos vazados”.
Teodora recusou-se a aceitar a imposição do casamento. Diante disso,
Romano Argiro casou-se com Zoé no dia 8 de novembro, três dias apenas
antes da morte de Constantino VIII.
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Bréhier, envolvido no relato que empolgava o ambiente, acrescentou que,
muito
embora
os
dois
cônjuges
fossem
parentes,
o
patriarca
de
Constantinopla, Alexius, relevou a dificuldade no interesse do Estado.
Romano III, Argiro, foi o primeiro dos três maridos de Zoé.
Miguel V: Imperador Bizantino por Apenas 132 Dias
A imperatriz Zoé é lembrada na História Bizantina, tanto por sua vaidade
quanto por suas aventuras amorosas. Mas ela é também lembrada pelas diversas
tragédias acontecidas durante seus 20 anos de imperatriz, tragédias que
aconteceram devido aos seus casamentos.
Rormano Argiro, seu primeiro marido, por exemplo, que passou para a História
como um Imperador muito voltado aos interesses do Império, esquecendo as
atenções que poderia dar à sua imperatriz que ainda era uma mulher bonita, bem
conservada e saudável, teve sua morte por ela encomendada no ano de 1034,
depois de ocupar o trono por seis anos. 0 motivo de Zoé: estava profundamente
apaixonada por um novo amante seu e queria transformá-lo em Imperador.
Morto Romano, a imperatriz casou-se imediatamente, subindo ao trono Miguel
IV. No entanto, o que logo a imperatriz descobriu foi que seu amado era doente
e sofria de ataques epiléticos cada vez mais constantes. Tanto isso é real que
logo se desinteressou da imperatriz e retirou-se a um mosteiro longínquo. Antes
disso, porém, havia convencido Zoé a adotar um sobrinho seu como herdeiro do
trono, o que a imperatriz fez com poucas hesitações, face à paixão que a
consumia.
Em fins de 1041 o Imperador foi substituído pelo herdeiro que assumiu o
cargo com o nome de Miguel V. Para este jovem Imperador leviano, hipócrita,
bajulador e sem caráter, que reinou por pouco mais de 4 meses, a glória
terminou numa negra tragédia pessoal.
Miguel V irradiava uma antipatia tão forte ao seu redor que logo tornou-se
intolerável para a imperatriz e para a corte toda. Percebendo o perigo que
corria, Miguel procurou bajular e agradar em público a imperatriz. Em tudo
Miguel V procedia de acordo com orientações recebidas de um tio seu,
Constantino, que recebera o título de "nobilíssimo".
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No dia 18 de abril de 1042, entretanto, as intenções de Miguel V e de seu tio
confidente vieram à tona: Zoé foi presa e internada num mosteiro para
mulheres. Antes, porém, foi vítima de supremo ultraje, pois teve seus vistosos e
bem cuidados cabelos loiros cortados e a cabeça raspada por ordem do
Imperador.
No dia seguinte a esses acontecimentos, a revolta popular e das forças armadas
estava montada e o palácio completamente cercado. Teodora, irmã da
imperatriz destronada, foi trazida às pressas de volta a Constantinopla e
coroada como "basilissa" na igreja de Santa Sofia. No dia 21 de abril Miguel V
estava deposto.
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Com os braços levantados, Bréhier ergueu-se da poltrona onde estava
acomodado e esclareceu com vigor:
- Mas sua história não termina aí, pois ele e Constantino conseguiram fugir e
procurar a segurança de um mosteiro longínquo. Lá foram localizados. Miguel
e Constantino fugiram para o mosteiro de Stoudios onde, por ordem de
Teodora, vazaram seus olhos e internaram-nos em mosteiros diferentes”.
Agostinho aproveitou o silêncio que se seguiu e comentou:
- Quanta aberração em nome do poder, não é mesmo? Será que ninguém
pensava no sofrimento humano da pessoa lesionada à força? Eu não acredito
que o povo todo ignorasse esse sofrimento. Mas ele era tão comum que não
era relevante naqueles dias. Mas, na História Bizantina surgiram também
personalidades marcantes naquilo que se relaciona a pessoas com deficiência.
Uma delas foi Constantino IX, Monômaco, com o qual Zoé casou-se logo em
seguida.
Agostinho levantou-se e caminhou na direção de Mickael Psellos, o mais
notório historiador de uma parte dos séculos do Império Bizantino e que foi um
dos ministros de Constantino IX, o Monômaco.
Devidamente apresentado, Psellos colocou sobre a mesa uma cópia de seu
livro Cronographia e iniciou sua exposição.
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Levado ao trono bizantino graças à sua boa estrela, Constantino Monômaco
(980 a 1054) começou a parte mais conhecida de sua vida após o casamento
com Zoé, ele com 62 e ela com 64 anos de idade. Transformou-se dessa forma
em seu terceiro marido e príncipe consorte, com o título de Constantino IX.
Pedindo a palavra, o historiador Diehl levantou-se para comentar:
- Segundo é notoriamente sabido, Constantino era um homem especial. Seu
rosto era encantador: tinha a tez clara, traços finos, um sorriso delicado, uma
irradiação de graça espalhava-se sobre toda a sua figura. Admiravelmente bem
proporcionado que era, tinha um talhe elegante e bem dosado, mãos finas e
bonitas.
Psellos levantou seu braço para pedir a palavra e comentou:
- Concordo plenamente com o preclaro professor Diehl, mas, vejam bem, meus
caros. Estamos falando de um Imperador que posteriormente viveu uma
seríssima deficiência física, sofrendo muito com os problemas decorrentes de
um mal que os historiadores identificaram como gota, mas que poderá ter sido
artrite reumatóide ou artrite deformante, segundo tive oportunidade de me
informar em livros atuais de medicina. Mas, para que tenhamos uma idéia viva
das limitações físicas que atingiram o Imperador bizantino, é importante que
analisemos aquilo que pude elaborar naqueles dias conturbados. Em minha
obra "Chronographie", que tenho aqui comigo, relato o seguinte na linguagem
e com os conhecimentos de medicina daqueles séculos:
"Os elementos essenciais desagregaram-se e embaralharam-se e, tanto nos pés
e no âmago das juntas, quanto nas mãos, afluíam para dali inundar os músculos
e os ossos da própria região lombar. O mal não atingiu de imediato o corpo
todo. Seus pés foram os atingidos em primeiro lugar, impedindo-o
imediatamente de andar. Movimentava-se apenas com a ajuda dos outros,
sempre carregado de um lado para o outro, no palácio, como um fardo”.
Movendo-se para fora do local onde havia sido colocado, Psellos tomou seu livro
nas mãos e comentou:
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- O fluxo que o marcava de imediato atingiu suas mãos e depois seus ombros,
e acabou atingindo o corpo todo. A partir daí, todo membro inundado por esse
fluxo terrível perdia sua energia e, com as fibras e ligamentos embaralhados, os
elementos da harmonia deslocaram-se, resultando em desequilíbrio e
enfraquecimento. E eu vi seus dedos, tão bem feitos, negar sua própria forma
e, retorcidos e desalinhados, tornar-se incapazes de segurar não importa o que;
seus pés ficaram totalmente inchados e dobrados sobre si mesmos; seus
joeIhos, também inchados, formavam uma saliência como um cotovelo, a tal
ponto que não eram capazes de assegurar sua marcha; e, impossibilitado de
manter-se em pé por longo tempo, passava a maior parte do tempo no leito.”
Psellos fechou seu livro e voltou a caminhar um pouco pela sala, na frente de
sua audiência muito atenta.
- No entanto, meus amigos, o povo tinha o direito e ansiava mesmo pelas
cerimônias e procissões imperiais, tão repletas de cores e de fausto.
Constantino reconhecia isso e participava, como era seu dever; mas seu
sofrimento aumentava muito nessas ocasiões. Quando desejava dar audiências,
fazia-se preparar e arrumar para tal fim com zelo e cuidado. Além disso,
algumas providências eram tomadas para reduzir a um mínimo as dores do
Imperador. A arte e a experiência dos cavaleiros o auxiliava e mantinha sobre
a sela. Depois, uma vez a cavalo, respirava com dificuldade e as rédeas eram
supérfluas. Levado por sua montaria, escudeiros vigorosos e de boa estatura
sustentavam-no de ambos os lados e assim, apoiando-o daqui e dali,
seguravam-no como um fardo e transportavam-no para onde deveria ser levado.
Mas ele, mesmo no meio de tantos males, não deixava de lado suas
características básicas; muito pelo contrário, ele cuidava continuamente de sua
aparência; depois movia-se e mudava de lugar sozinho, ao ponto de aqueles
que o viam não ficarem muito seguros de que vivia entravado pelas dores e
minado pela doença.
Britt pediu a palavra para perguntar:
- Mestre Psellos, estou seguindo seu detalhamento dos males que afetavam
Constantino IX com muita atenção, porque sou fisioterapeuta. Cheguei a dar
atendimento a casos de artrite reumatóide e artrite deformante no Centro de
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Reabilitação de Oslo com uma certa intensidade. Esses males são uma verdadeira
caixa de surpresas, como dizem alguns médicos. Eu gostaria de saber que outras
providências eram tomadas nessas procissões solenes para reduzir a um mínimo
as dores e dificuldades do Imperador.
- Dra. Britt... Nessas curtas procissões, os auxiliares cobriam todo o trajeto com
tapetes a fim de evitar que seu cavalo escorregasse nas lajotas do caminho entre
o palácio imperial e a basílica de Santa Sofia. Em sua vida de todo o dia dentro
do palácio, para se movimentar de ambiente para ambiente ele era carregado
por camareiros muito cuidadosos e bastante fortes sem maiores dificuldades, a
menos que houvesse a incidência de um forte ciclo de dores. Para repousar à
noite com um mínimo de desconforto, a dificuldade crescia, pois qualquer
posição era incômoda e diante disso seus camareiros ajudavam-no a procurar
posições, viravam-no com cuidado no leito e com isso conseguiam acertar
almofadas e adaptações não especificadas, até ouvirem Constantino concordar
com a posição buscada.
Psellos não fez, em sua apresentação, qualquer comentário quanto à
intervenção de médicos ou ao uso de medicamentos, muito embora seja certo
que tudo era feito para diminuir as dificuldades do Imperador. Com o passar
dos anos Constantino IX sentia dores até na língua ao falar, sendo-lhe um
suplício mudar de lugar. Assim, ele acabou paralisado num lugar só
praticamente.
Psellos, após tomar uns goles de água, informou:
- Deixem-me agora fazer uma observação sobre uns pontos que sempre me
comoveram quanto às atitudes de Constantino. Apesar da contínua luta com
as dores e os problemas delas decorrentes, ele jamais deixou escapar uma
palavra contra Deus. E se alguém vinha se queixar dos próprios sofrimentos,
ele ficava aborrecido e mandava a pessoa se retirar, às vezes até usando de
palavras rudes. No mais recôndito de seu ser Constantino IX aceitava suas dores
e a limitação física como uma punição pelos seus pecados passados e como
freio de sua natureza, segundo me confessou diversas vezes. Ele me dizia
de vez em quando, com sua voz macia, vez por outra interrompida por
algum momento de excruciante dor: "Como meus instintos não cedem à
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razão, capitulam diante dos sofrimentos do corpo. Meu corpo sofre, mas os
impulsos desordenados de minha alma são assim controlados".
Agostinho retomou seu lugar na sala:
- Muito interessantes esses pormenores da reação de Constantino IX ao mal
que o afligiu até o final de sua vida e como eles nos salientam a vida de uma
pessoa com deficiência nos primeiros anos do segundo milênio. Agradeço
muito ao Mestre Psellos pelas horas dedicadas a essas orientações que foram
tão úteis a todos nós.
Levantando-se para poder olhar melhor sua audiência, continuou:
- Agora eu gostaria de salientar alguns momentos na vida de um outro
Imperador
bizantino, que foi Romano IV. Este Imperador bizantino
permaneceu na liderança do Império de 1067 até 1071. Logo que se casou
com uma imperatriz viúva, que foi Eudóxia, no ano de 1067, Romano, que era
um general muito competente, partiu no comando de um grande exército para
combater sarracenos e turcos Seljuk, em três diferentes campanhas. Na
última delas, levou suas tropas contra o sultão turco Alp Arslan, com ele
defrontando-se na grande batalha de Mantzikert. Muito embora tenha lutado
com extrema valentia e competência, Romano IV foi feito prisioneiro em pleno
campo de batalha.
Gibbon levantou-se para acrescentar à guisa de esclarecimento:
- Por favor, Mestre Agostinho, deixe-me acrescentar alguns pormenores que
muito tem a ver com a presença de soldados com deficiência nas forças
imperiais ou de seus inimigos. Então, Romano IV foi feito prisioneiro em plena
confusão do campo de batalha. Enquanto a esperança sobrevivia em seu
coração, ele tentava reagrupar e salvar o restante de seu exército semidestruído. Quando o centro, a estação imperial, ficou sem proteção de todos
os lados e cercado pelos turcos vitoriosos, ele, ainda com desesperada
coragem, manteve a luta até o final do dia, à testa dos bravos homens que
haviam aderido ao seu estandarte. Eles caíram ao seu redor; seu cavalo foi
morto e o Imperador foi ferido. Apesar disso ele se manteve só e intrépido até
que foi dominado e imobilizado pela força das multidões. Já despojado de
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suas armas, das suas jóias e do seu manto de púrpura, Romano IV passou
uma noite cercado por muitos guerreiros inimigos. Foi uma noite muito perigosa
para sua vida no devastado e muito confuso campo de batalha, tendo por todos
os lados uma multidão quase sem controle que saqueava tudo o que podia. A
glória por essa ilustre presa foi disputada por um escravo e por um soldado: um
escravo que o havia visto no trono de Constantinopla e um soldado cuja
extrema deformidade havia sido relevada face à necessidade de serviços de
sinalização.
Agostinho acrescentou como um comentário adicional importante:
- Bastante surpreendente essa última informação. Como podemos muito bem
notar por ela, às vezes pessoas com deficiência eram consideradas
aproveitáveis nos exércitos em funções que pouco ou nada demandavam
quanto ao uso de armas. E no caso do aprisionamento de Romano IV, esse
soldado com sérias deformidades físicas teve um destacado papel a fim de
possibilitar que seu importante prisioneiro chegasse ao dia seguinte com vida.
Assinale-se que havia prêmios altamente compensadores por prisioneiros
resgatáveis, não é mesmo, Mestre Gibbon?
- Certamente que sim. Um Imperador era um caso altamente excepcional que
levava não só a resgates muito altos a peso de ouro, como a tratados diversos,
além de benefícios e condecorações para os soldados responsáveis pelo
aprisionamento no campo de batalha. E foi na presença de Alp Arslan que
Romano IV foi forçado a assinar um tratado de paz que os bizantinos
consideraram vergonhoso. Voltando a Constantinopla, Romano IV foi
destronado, preso e teve seus olhos vazados, por ordem do césar João
Dukas. Logo depois foi internado num mosteiro, em Proti, no mar de
Mármara, ao sul de Constantinopla.
Neste ponto das discussões, Mestre Agostinho tomou a palavra para dar
prosseguimento aos depoimentos sobre eventos relacionados aos temas em
discussão.
- Desejo apresentar a vocês agora, meus prezados amigos, um dos
assistentes de nosso projeto maior que é formado em História Antiga pela
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Universidade de São Paulo e que dedicou muitas horas de estudos das obras
dos Mestres Historiadores Gibbon, Bréhier, Diehl, Finlay e Psellos para
escrever diversos artigos que foram publicados em diversas revistas. Trata-se
de Luis Carlos, muito mais conhecido em nosso meio pelo apelido de Sísifo.
Sísifo encaminhou-se para a frente do grupo, usando sua bengala longa.
Postou-se ao lado de Mestre Agostinho, que continuou sua apresentação:
- Um dos assuntos que mais interessou este jovem historiador aqui do meu
lado foi o papel que dois cegos tiveram na História Bizantina: Enrico Dandolo e
Isaac V, Angelus. É ao jovem mestre em História que passo a palavra para nos
esclarecer a respeito.
- Obrigado, Mestre, pela apresentação. Prezados Mestres e meus colegas
assistentes. Enrico Dandolo nasceu perto de Veneza, no ano de 1105 e
faleceu com exatamente 100 anos de idade na grande capital do mundo
oriental daquele século: Constantinopla. Sempre muito hábil e corajoso em
suas atividades comerciais e guerreiras, Dandolo foi um ótimo político e um
hábil negociador, excelente orador e dono de um soberbo nome de família
romana das mais antigas tradições que o tornaram muito influente na República
de Veneza.
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Foram essas condições básicas e as circunstâncias relacionadas a negócios de
Estado que o levaram a Constantinopla, em missão oficial e na qualidade de
enviado das autoridades da poderosa República de Veneza, especializada na
construção de muitos tipos de navios. O objetivo era resolver uma pendência
muito séria no ano de 1171 quando Dandolo já estava com 66 anos de idade:
Manuel Comnenus, Imperador bizantino, havia aprisionado navios e
tripulações de Veneza e recusava-se a devolvê-los, desafiando acintosamente os
direitos reclamados e mesmo o cumprimento dos diversos tratados assinados
entre o Império Bizantino e a República Veneziana, que era muito importante
àquela época.
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Dandolo foi incisivo na corte bizantina e expressou com extrema clareza e em
termos convincentes a indignação sentida pelos venezianos face às atitudes do
Imperador quanto aos navios e suas tripulações.
O que o velho embaixador certamente não havia imaginado era o tipo de reação
do Imperador bizantino que, enfurecido ao extremo e ofendido com as
argumentações fortes e unilaterais de Dandolo, apelou para a tortura refinada
e cruel, típica de sua corte. Irado ao extremo com a alegada arrogância de
Dândolo, determinou o Imperador que o embaixador de Veneza fosse amarrado
ali mesmo no salão de audiências e mandou colocar muito próximos aos seus
olhos vasos de metal incandescente que acabaram comprometendo seriamente
sua visão. Dizem os historiadores que Dandolo ficou completamente cego com a
luminosidade excessiva e muito próxima de seus olhos, abertos à força por dois
dos torturadores, provocando a destruição de sua retina.
De volta a Veneza foi reconhecido como fiel intérprete da opinião do governo e
do povo veneziano e, apesar de cego, foi eleito "doge" — cargo supremo daquela
república — alguns anos após o incidente na corte de Manuel Comnenus.
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- Eu gostaria de enfatizar que Dandolo foi extremamente importante nos
eventos que transformaram por completo não só a História Bizantina, como
também a História de Veneza. Esses eventos envolveram a Dinastia Angelus do
Império Bizantino e levaram à introdução de algo totalmente novo na história
tumultuada de Constantinopla: os Imperadores Latinos. Levaram também à
partilha do grande Império entre os nobres cruzados e a República de
Veneza.
Sísifo fez uma pequena pausa para permitir alguns comentários que foram
feitos, ressaltando o fato de que um cego acabou provocando uma alteração
muito benéfica e de dimensões difíceis de serem analisadas na História da
Humanidade.
Voltando à sua posição anterior, Sísifo reiniciou sua exposição.
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- Continuando este relato, desejo informar que durante a primeira parte do
reinado do questionado Imperador Isaac II, Angelus, que vai de 1185 a 1195,
um parente seu, Constantino Angelus, proclamou-se Imperador bizantino com o
apoio de suas tropas. Foi vencido e destronado pelas forças de Isaac II, tendo
sido julgado de acordo com as leis. A sentença: vazamento de seus olhos. No
entanto, um outro parente — e desta vez seu próprio irmão Alexius — liderou
outra revolta no ano de 1195, procurando afastar Isaac II do trono. Desta vez
Isaac II foi preso pelos rebeldes e teve seus olhos vazados por ordem do irmão,
a fim de eliminar suas pretensões de voltar ao trono do Império Bizantino, como
determinavam os costumes e as normas da corte imperial. Alexius assumiu o
Império com o nome de Alexius III e imperou por 8 anos inteiros, de 1195 até
1203, mantendo seu irmão na prisão ao lado do filho também chamado Alexius
e herdeiro do Imperador destronado. Com o passar de alguns anos, porém, o
novo Imperador soltou o sobrinho que estava na mesma cela de Isaac II,
fazendo-o participar de campanhas militares ao seu lado. O jovem príncipe
mantinha-se inconformado e fazia planos para voltar a Constantinopla e
conquistar o trono que por herança teria sido seu. E na primeira oportunidade
Alexius fugiu e foi buscar a colaboração de nobres europeus que em Veneza
procuravam organizar uma cruzada à Terra Santa e ao Egito, sob a forte
liderança do "doge" cego, Dandolo.
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Com o aval do papa Inocêncio III, que foi previamente consultado a respeito
por Alexius, conseguiu convencer o grupo de nobres a refazer seus planos da
Cruzada. Nos novos planos a Cruzada passaria primeiramente por
Constantinopla, a fim de destronar o Imperador Alexius III e de garantir a
instalação do jovem Alexius no trono.
As negociações com o príncipe herdeiro levaram ao estabelecimento de
condições muito pesadas. Dentre elas, pagar o aluguel dos barcos usados para
todo o transporte dos cruzados. Outra condição seria ajudar financeiramente
na organização de uma outra cruzada ao Egito e, por exigência do papa
Inocêncio III, conseguir a submissão da Igreja Ortodoxa a Roma. E a
empreitada foi aceita por Alexius, na presunção líquida e certa de que Isaac II,
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cego como estava, não poderia mais ocupar o trono bizantino e de que ele
seria, como de fato era, seu herdeiro.
No entanto, quando Alexius III foi afastado do trono, enquanto os garbosos
cruzados, levando consigo o jovem pretendente
ao trono, que era Alexius,
avançavam vagarosamente e deslumbrados pelas avenidas e palácios de
Constantinopla, os habitantes de origem grega libertaram Isaac II da prisão
onde estava e colocaram-no no trono como Imperador de fato. Quando o
jovem Alexius e os cruzados chegaram ao palácio imperial tiveram a surpresa
do fato consumado: o trono estava ocupado pelo velho Imperador cego.
A grande obra intitulada Cambridge Medieval History informa, ipsis verbis, o
seguinte: "O choque foi muito grande para Alexius e para os cruzados, pois
de acordo com a tradição bizantina, a cegueira incapacitava um homem para
ser Imperador".
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- No entanto, foi um impasse curto, pois, com o aval dos nobres latinos, pai e
filho, após o reencontro, conversaram muito e Isaac II acabou aceitando as
condições negociadas pelo filho, embora deixando claro que duvidava de sua
viabilidade. E o velho Imperador cego estava certo. Ficou logo claro que não
seria possível pagar os cruzados e cumprir o prometido. Foram ambos
afastados do trono, inaugurando-se então a fase de investidura dos Imperadores
latinos, sob a custódia dos cruzados e Imperadores do ocidente europeu.
Levantando-se com muita naturalidade, Sísifo concluiu:
- Era o que me cabia informar, prezados Mestres e meus amigos assistentes.
O grupo aplaudiu calorosamente Sísifo, enquanto alguns fizeram comentários
bastante elogiosos para o jovem historiador, na curta caminhada para sua
cadeira ao lado de seus colegas assistentes.
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Logo após os aplausos, Agostinho voltou à coordenação dos trabalhos e leu
o relatório preparado por vários assistentes quanto a autoridades bizantinas
castigadas com o vazamento dos olhos.
- Muitos outros eventos aconteceram no milênio de existência do Império
Bizantino, que levaram nobres e Imperadores a terem seus olhos vazados ou
corpos mutilados. Dentre eles eu faço questão de destacar:
- Filípico - cognominado de Bardane - foi Imperador entre 711 e 713, sendo
originário da Armênia. Foi infeliz em seu governo por ter que lutar contra
búlgaros e árabes - inimigos externos - além de enfrentar internamente os
problemas com os ortodoxos e com os que pressionavam em favor da Igreja
vinculada a Roma. Deposto finalmente, teve seus olhos vazados.
- Heracleonas - Imperador de fevereiro a setembro de 641. Ao final do governo
de seu pai, Imperador Heraclius, obteve o título de "augusto", por influência
direta de sua mãe. Dessa forma, foi proclamado Imperador ao lado de seu
irmão, Constantino III. A morte prematura deste levou a corte a suspeitar de
Heracleonas e de sua mãe. Foi logo após destronado e preso; segundo os
historiadores foram mutilados e banidos para a ilha de Rhodes.
- Bryenne, general bizantino - Nicéforo Bryenne, general bizantino do século
XI, era originário de importante família. Foi nomeado duque da Bulgária em
1075, 60 anos após a derrocada provocada por Basílio II. No ano de 1077
proclamou-se Imperador da Bulgária, mas foi derrotado por Nicéforo Botoniate
em 1078, preso e, por ordem do Imperador Miguel VI, teve seus olhos vazados.
- Andrônico I - Andrônico Comnenus liderou revolta contra o Imperador
Alexius II, Comnenus, destronando-o. Enquanto se manteve precariamente no
poder mandou cegar o "protosebaste", cujo titular tinha importância
correspondente à de um primeiro ministro. Entretanto, suas lutas acabaram por
garanti-lo no trono de 1183 até 1185. Foi um Imperador cruel. "Multidões
reuniam-se para ver o desfile ou a imolação de alguns traidores ou criminosos
horrivelmente mutilados; e as ferozes execuções ordenadas por Andrônico I
foram o prelúdio natural para seu terrível fim, que, todavia, ele suportou com
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uma valentia muito própria" ("Cambridge Medieval History", de Hussey).
Andrònico I morreu mutilado.
- Teodoro Dukas - Foi Imperador da província de Tessalônica e era irmão de
Miguel
Angelus
Comnenus.
Fez
algumas
tentativas
para
conquistar
Constantinopla e para tanto procurou atacar a cidade pelo norte. No entanto,
não quis "dar as costas" à Bulgária, considerada um perigo para seus exércitos.
Com isso, provocou um sério atrito com antigo amigo seu, o czar búlgaro João
Asen. Foi por ele derrotado na batalha de Klokotnika, em 1230, tendo lá sido
preso. E, por ordem do "amigo" czar, teve seus olhos vazados. Teodoro Dukas,
no entanto, era muito dinâmico e sagaz. Acabou reconquistando a amizade de
João Asen e foi posto em liberdade. Voltou incontinenti à Tessalônica e viveu
uma vida de contatos políticos muito intensos, conseguindo inclusive lançar o
chamado Império Grego da Tessalônica em violentas lutas, influindo
decisivamente nas tomadas de decisão de seu irmão Manuel e de seus dois
filhos, João e Demétrio.
Acertando as diversas páginas com as duas mãos, Agostinho informou:
- Meus caros, faremos agora um pequeno intervalo para relaxarem um pouco e
tomarem um cafezinho acompanhado de alguns quitutes feitos por uma família
de Araçariguama.
O grupinho de assistentes especiais mostrava-se inconformado pelo abuso de
poder e pela falsidade dos referenciais alegados para uma vítima ser
condenada a ter seus olhos vazados no Império Bizantino, que se considerava
como de origem divina.
Durante o retorno ao salão de reuniões, comentaram esse sentimento com
Mestre Agostinho que, ao reabrir os trabalhos, explicou:
- Todos nós, do século XXI, e tenho a certeza de que vários dos Mestres aqui
presentes, repudiam essas determinações para cegar este ou aquele indivíduo.
No entanto, ao prosseguir com objetividade nosso relato sobre a realidade
bizantina, verificaremos que algumas autoridades passaram dos limites,
mesmo se considerarmos que a lei permitia tudo nos esforços para a defesa da
dignidade e da própria vida dos Imperadores bizantinos. Um ato muito frio e
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cruel nos é relatado por diversos historiadores e em especial pelo Mestre
Gibbon, aqui presente, em sua obra anteriormente citada. A ele passo a
palavra. .
- Obrigado, Mestre. Pediu-me Mestre Agostinho para comentar um pouco
sobre o que veio a acontecer nos séculos XIII e XIV. Vamos começar pelo
jovem príncipe João Lascáris (1250 a 1300 aproximadamente) que passou
para a História Bizantina como João IV, Lascáris, que era filho de Teodoro
II, falecido em 1259. Com apenas 8 anos de idade, o herdeiro do trono
bizantino teve como tutor o próprio patriarca de Constantinopla, Arsenius
Autorianus. No entanto, graças a tramas muito bem urdidas e contando com o
total apoio da grande e influente família dos Paleólogus, Miguel Paleólogus
foi apontado imediatamente depois como tutor do jovem príncipe, tendo então
recebido o título honorífico de "déspota" e algum tempo após o de "Imperadoradjunto". Para efeitos desse segundo título, ele foi coroado na cidade de
Nicéa, em 1260.
Gibbon procurou uma posição mais cômoda para continuar sua exposição.
- Anos depois, estando João IV, Lascáris, com apenas 11 anos de idade,
Miguel Paleólogus resolveu destronar o jovem Imperador e com isso afastar a
dinastia dos Lascáris. Para tanto mandou cegá-lo. Claro que a perda da visão
incapacitou o jovem príncipe para as atividades do mundo. Em vez da
violência brutal de arrancar os olhos, o nervo ótico foi destruído com o intenso
brilho de um vaso incandescente. O jovem João Lascáris foi levado para um
castelo distante, onde passou muitos anos na privacidade e na obscuridade.
Logo após o ato praticado contra aquele menino famoso ter ficado conhecido,
Arsenius Autorianus, ex-tutor de João Lascáris, patriarca da Igreja Ortodoxa,
excomungou Miguel Paleólogus. Vejam bem o problema criado por esse ato do
velho patriarca. Na verdade o Imperador era considerado o representante de
Cristo e sua excomunhão era um ato fora de propósito. Após muita insistência
do Imperador e da corte, não ocorrendo a revogação do ato punitivo, o
patriarca foi trocado e a excomunhão revogada. Além de cegar o jovem
Imperador João IV, Lascáris, o Imperador Miguel VIII, Paleólogus, mandou
cegar vários nobres recalcitrantes e inconformados com a situação.
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O historiador Bréhier, que relatou com pormenores preciosos a situação das
instituições do Império Bizantino, pediu a palavra, levantando seu braço na
direção de Gibbon que assentiu com um leve gesto de cabeça.
- Prezado Gibbon, em meu livro, eu cheguei a relatar que no ano de 1261
Miguel Paleólogus, querendo punir seu secretário Manuel Holóbolus por ter-se
apiedado da sorte do infeliz menino João Lascáris, fez amputar seu nariz e
seus lábios, após ter ele os olhos vazados.
- Grato pela informação, prezado Bréhier. Mais um ato que nós, historiadores,
não podemos deixar de relatar, mas que mereceria ser lançado com desprezo
numa verdadeira fossa negra que a Historia nunca teve a coragem de criar,
concluiu Gibbon.
- Obrigado, Mestres, pelos esclarecimentos. De minha parte, agora, eu
gostaria de comentar a respeito de João V, Paleólogus, que viveu entre
1319 e 1389. Durante boa parte de seu reinado, o Império Bizantino viveu
anos de dúvidas muito sérias, pois o Imperador estava sob uma
verdadeira custódia do sultão otomano Mourad I. Ambos procuravam
manter um relacionamento cordial. Praticamente todo o território do Império
Bizantino já havia sido tomado pelos turcos, à exceção de Constantinopla
fortificada, que se mantinha intocada devido a um certo receio que os tão
aguerridos otomanos tinham dos cruzados e das reações dos nobres da
Europa Cristã, caso a cidadela fosse tomada e saqueada. João V, Paleólogus
mantinha sua capital na inexpugnável Constantinopla e o sultão turco
colocava a sua na cidade de Adrianopla, próximo às fronteiras da Bulgária e
da Grécia, mas a pouca distância da capital bizantina.
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Havia visitas cordiais à corte do sultão e as famílias ficaram se conhecendo
bem. Tanto isso é verdade que Andrônico, o filho mais velho de João V, fez
uma boa amizade com Saoudj, filho mais velho e eventual sucessor de
Mourad I. Os dois jovens pretendentes aos respectivos tronos começaram a
conspirar contra seus pais logo após Andrônico ter sabido que João V o havia
afastado da sucessão em benefício de seu irmão Manuel.
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A conspiração dos dois príncipes foi descoberta e Mourad I tomou uma decisão
drástica contra a traição de seu filho primogênito: determinou o vazamento de
seus olhos. Mas o rigoroso sultão não deixou o assunto morrer aí, pois forçou o
Imperador bizantino a se manifestar antes da execução de sua sentença,
confrontando-o com o aspecto "traição".
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Gibbon levantou-se para informar:
- O otomano, ou seja, Mourad I ameaçou seu vassalo de fato, que era João V,
Paleólogus, com o tratamento de um cúmplice e de um inimigo, a menos que
ele infligisse a mesma punição a seu filho. Paleólogus tremeu e obedeceu, e
uma precaução cruel envolveu na mesma sentença a infância e a inocência de
João, filho do criminoso. Mas a operação foi feita tão brandamente ou tão
imperitamente que um manteve a visão de um olho e o outro foi vítima
apenas do mal do estrabismo.
Gibbon levantou-se e caminhou até a frente do grupo:
- Deixem-me completar essa história com esta informação, sim? Os dois
príncipes conspiradores foram presos na famosa torre de Anema e a sucessão
aos dois poderes ficou garantida para Manuel, do lado bizantino, e para
Bayazet, do lado otomano. Dois anos após a aplicação da pena, os dois
mandatários foram depostos e encerrados na mesma torre da qual os dois
príncipes foram retirados para ocupar os seus respectivos tronos.
Agostinho agradeceu a intervenção oportuna de Gibbon e complementou:
- Como podemos perfeitamente deduzir, as mutilações ou desfiguramentos de
fundo político dos indivíduos considerados como rivais de um determinado
Imperador bizantino foi um meio muito utilizado para afastar da linha de sucessão
os que podiam ser considerados como ameaça, ou como eventuais
conspiradores para depor um Imperador. É importante recordar que na cultura
bizantina o cargo de Imperador era considerado sagrado. No raciocínio vigente
naqueles séculos, como Deus era perfeito e o Imperador era considerado seu
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representante na terra, qualquer desfiguramento de um indivíduo incapacitava-o
para o trono.
Pelos séculos afora ocorreram duas exceções que foram Justiniano II (tinha sido
punido com a amputação do nariz, chamada de rinokopia), e Isaac II, que foi
destronado e cego, mas que voltou ao trono por pouco tempo, como vimos antes.
Cegar alguém levava a vítima a dificuldades sérias, como a incapacidade de se
movimentar com liberdade e, no caso de um Imperador, incapacidade até para
liderar um exército, se necessário. Outra mutilação que impedia o indivíduo de
aspirar o trono era a castração, porque na cultura bizantina, um homem castrado
era considerado meio morto, além de não ter mais capacidade para gerar um
herdeiro ao trono. Eunucos diversos ocuparam cargos muito elevados na corte
bizantina durante muitos séculos, mas jamais foram levados ao cargo de
Imperador. Exemplo notório foi de Basílio Lekapenos, filho do Imperador Romano
II, que foi castrado quando bem jovem. Segundo historiadores, Basílio chegou a
desfrutar do elevadíssimo cargo de parakoimomenos e primeiro ministro de três
Imperadores, mas nunca conseguiu ser considerado para Imperador.
Além dos casos mais notórios já citados em tópicos anteriores, as seguintes
personalidades bizantinas mais destacadas foram vítimas de cegueira ou de
mutilações:
Alexios Mosele – General dos Armênios, teve seus olhos vazados por ordem da
imperatriz Irene de Atenas, co-imperatriz de Constantino VI.
Anastácio de Constantinopla – Apoiou uma insurreição fracassada contra
Constantino V, durante o movimento iconoclasta, e teve também seus olhos
vazados.
Artabasdos – foi preso devido à sua insurreição contra Constantino V e foi cego.
Bardanes Tourkos – Liderou uma revolta contra o Imperador Nicéforo I e
entregou-se. Banido para um mosteiro, lá teve seus olhos vazados por ordem do
Imperador.
Bardas Phocas – Acusado de conspirar contra a Imperador Constantino VII, teve
seus olhos vazados.
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Basílio Lecapenos – Filho ilegítimo do Imperador Romano I, Lecapenos, foi
castrado quando ainda criança para não ter eventuais aspirações ao trono.
Calinicus I, Patriarca de Constantinopla – Apoiou a deposição do Imperador
Justiniano II, mas foi deposto de seu importante cargo e teve seus olhos vazados
quando ele voltou ao poder.
Constantino Diógenes – General muito popular teve seus olhos vazados por
suspeita de participar de uma conspiração contra Romano III, Argiros.
João Atalaricos – Tentou destronar seu pai, o Imperador Heráclio, teve o nariz
cortado e as mãos amputadas.
João Orphanotróphio – Todos os membros do sexo masculino de sua família
foram castrados. Ele próprio teve seus olhos vazados por ordem do Patriarca de
Constantinopla Michael Cerularius.
Justiniano II – Foi um Imperador destronado. Teve seu nariz amputado por ordem
do Imperador Leontios. Anos depois Justiniano II voltou a ocupar o trono do
Império Bizantino. É conhecido pelo cognome de “O Nariz Cortado”.
Leão Phocas, o Velho – Revoltou-se contra a indicação de Romano Lecapeno
para Imperador, mas foi capturado e teve seus olhos vazados. Existe uma
ilustração do ato do vazamento de seus olhos na crônica de Madrid Skylitzes
(acessar pelo Google).
Leão Phocas, o Jovem – Participou de movimento contra o Imperador João
Tzimiskes, foi capturado e teve seus olhos vazados.
Martina – Imperatriz bizantina quase desconhecida do século VII, foi destronada
e teve sua língua amputada por adeptos do Imperador Constâncio II.
Nicéforo – Tio de Constantino VI, teve seus olhos vazados e seus quatro irmãos
tiveram suas línguas amputadas, depois de uma conspiração para colocá-lo no
trono depois da batalha de Marcellae.
Nicéforo – filho de Artabasdos, foi preso pelo mesmo motivo e acabou tendo seus
olhos vazados.
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Nicéforo Diógenes – Era filho de Romano IV. O Imperador Alexios I, Comnenos
acusou-o de traição e mandou vazar seus olhos.
Nicetas – filho de Artabasdos teve o mesmo destino.
Philantropenos – revoltou-se contra Andrônicos III, mas foi capturado e teve os
olhos vazados.
Philipicos Bardanes – Teve seus olhos vazados numa casa de banhos, por
soldados das tropas Opsikianas.
Prousianos – Acusado de planejar um golpe contra o Imperador Romano III
Argiros, teve seus olhos vazados.
Sisínios – Apoiou a insurreição liderada por Artabasdos contra Constantino V
durante a crise conhecida como Iconoclasta e teve seus olhos vazados.
Teodoro – Colaborou no planejamento de um golpe para depor o Imperador
Heráclio, ao lado de Atalarico, e como castigo teve seu nariz cortado, além de
suas mãos e uma perna amputados.
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Capítulo VII - Bizantinos
Logo após o encerramento dos trabalhos, os Mestres Historiadores voltaram
para seus ambientes do passado por vezes séculos distantes, utilizando os
recursos técnicos de transferência no tempo e no espaço garantidos por
equipamentos ultra secretos que estavam à disposição do projeto XPTO
Voturuna.
Heródoto e Agostinho, mesmo sentindo-se cansados, passaram rapidamente
pela área dos mais de 10 assistentes que desenvolviam um trabalho frenético
junto aos gravadores de som, de vídeos e computadores, na tentativa de
compactar e garantir a indispensável lógica para o relatório final daquele
encontro de Istambul.
Os dois sentaram-se no sofá da sala de reuniões para levantar os primeiros
pontos de avaliação de tudo o que foi discutido na multissecular cultura
bizantina naquilo que se relacionava à existência de leis, organizações,
ambientes e pessoas famosas que viveram com deficiências e que tiveram
seus nomes registrados na História.
Os trabalhos desenvolvidos durante os três dias de atividades sobre a evolução
do Império Bizantino haviam contado com as presenças marcantes de Mickael
Psellos e de Edward Gibbon, como consultores e com a coordenação de
Mestre Agostinho de Alfenas. Outros historiadores compareceram por curtos
períodos de tempo para repasse de suas observações mais pontuais, conforme
necessário.
Os fatos que envolveram pessoas com deficiência levantaram inúmeras
informações históricas muito dispersas e que certamente pareciam perdidas
para sempre nos relatos inseridos nas obras de grandes mestres ou
historiadores especializados, conforme pode ser a qualquer momento
levantado por qualquer estudioso, com o uso da relação bibliográfica que foi
cuidadosamente compilada para divulgação.
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Heródoto e Agostinho sabiam também do potencial da Internet para a
divulgação daquilo que considerassem importante, face aos objetivos do
projeto maior.
Os dois foram recebendo aos poucos os resumos trazidos por Noelma e depois
de quase três horas de revisão dos trabalhos desenvolvidos em sessões
plenárias ou apresentados em palestras distintas, ela bateu de leve na porta e
entrou com mais de 50 páginas dentro de um dossier fechado.
- A Labda pediu para eu entregar essas minutas, informando que os
assistentes foram almoçar e estarão de volta assim que terminarem sua
refeição para os acertos finais do relatório, após a revisão que está sendo feita.
- Obrigado, Noelma. Peça para ela vir até aqui quando terminar sua refeição,
está bem? E você também deve ir almoçar. Só peça para Dona Margarida, da
copa, para nos trazer o lanchinho que a gente combinou com ela logo cedo,
porque estamos revendo tudo e agora temos essas mais de 50 páginas para
ler.
- Está bem, mestre Agostinho. Voltarei logo com seu lanche.
Colocando o material sobre a mesa de reuniões, os dois fizeram uma
separação por tópicos que haviam sido combinados, a fim de não transformar o
relatório num documento maçante e difícil de ser consultado.
Logo perceberam que a orientação originalmente discutida e combinada havia
sido seguida e, enquanto Heródoto fazia uma verificação global daquilo que
haviam separado, Agostinho tomou o primeiro tópico, colocou-o sobre os
outros seqüencialmente e começou a ler.
O Imperador Justiniano e as Pessoas Enfermas e Deficientes
Em uma de suas muitas leis (Nova Constituição no. LXXX), o Imperador
Justiniano (482 a 565) tratou dos problemas dos mendigos que não tinham
doenças graves ou deficiências. E nessa norma legal fica muito patente a
preocupação do Imperador Bizantino em ocupar essas pessoas em algum tipo
de trabalho ou atividade. O Imperador deu à mais alta autoridade judicial do
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Império, o questor, a responsabilidade de não deixar essas pessoas à mercê
da sorte e da esmola.
Escreveu ele nessa Nova Constituição de número LXXX:
"Convém que ele (o questor) as faça comparecer imediatamente aos diretores
de trabalhos públicos, aos chefes das padarias, aos encarregados do correio,
aos diretores dos jardins ou das demais oficinas existentes, nas quais elas
possam ao mesmo tempo trabaIhar, ser alimentadas e também passar de uma
vida ociosa para uma vida mais útil. Mas se algumas delas não quiserem
trabalhar nas oficinas para as quais tiverem sido encaminhadas, o questor as
expulsará desta cidade real".
A orientação do Imperador Justiniano era para que o questor usasse sempre de
indulgência para com as pessoas pobres encaminhadas de acordo com a lei.
Sua preocupação expressa era que a preguiça não levasse as pessoas em
dificuldades para atos ilícitos e com isso fossem condenadas pela justiça civil.
Ainda sobre mendigos ou sobre pessoas pobres em dificuldades, existia uma
distinção importante que levou a sociedade bizantina a manter e mesmo
ampliar sua organização de socorro aos necessitados.
Afirmou o Imperador Justiniano, ao final de sua Nova Constituição no. LXXX:
"Não obstante, é nossa vontade que as pessoas de um ou de outro sexo que
não sejam sãs de seus corpos" (ou seja, pessoas com lesões ou em condições
incapacitantes) "ou que sejam gravemente enfermas, não sejam molestadas em
nossa cidade. Queremos, pelo contrário, que elas sejam atendidas por pessoas
piedosas".
Heródoto levantou-se e, aproximando-se de Agostinho, mostrou várias páginas,
informando:
Meu caro, deixe-me ler dois tópicos que acabei de rever e que são marcantes na
Historia do Império Bizantino.
Desenvolvimento da Medicina e dos Hospitais
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No ambiente criado em conseqüência de um governo autocrático com fortes
pinceladas de teocracia e ampla aceitação, havia muitos contrastes entre ricos
e pobres, entre palácios e casebres paupérrimos em ruas por vezes cobertas
de imundícies.
E, segundo especialistas, por influência direta da Igreja Cristã, tudo,
absolutamente tudo, inclusive a miséria, a doença, a mutilação, a cegueira,
tudo era considerado como motivo para se pensar no pagamento de pecados
cometidos, no cerceamento dos impulsos carnais, na purificação da alma e no
seu aperfeiçoamento. E esse modo de ver o mundo era considerado como
uma positiva influência do Cristianismo.
Não é de estranhar que tenha havido uma forte proliferação de entidades
assistenciais e caritativas de um lado, e certa estagnação na ciência médica,
de outro. Houve, entretanto, o cuidado de se estabelecer uma pormenorizada
compilação dos conhecimentos já acumulados de medicina na realidade grega
anterior à construção e ao reconhecimento de Constantinopla como capital do
Império Romano do Leste.
Essa mesma realidade, influenciada pelo Cristianismo tão marcante,
considerava o enfermo, o acidentado, a vítima da justiça, a pessoa com uma
deficiência congênita ou adquirida, como "santos" em potencial. Para todos
os que sofriam, o melhor e mais certo remédio era a oração orientada e
dosada por sacerdotes. O melhor hospital que poderia haver deveria estar
funcionando em ambiente da Igreja. Acima e além disso, o melhor e mais
seguro "curativo" era o próprio Jesus Cristo.
Do milênio de existência do Império Bizantino não podemos dar relevância
especial a quase nada, em termos de medicina, a não ser aos nomes
universalmente conhecidos de Cosme e Damião, santificados pela Igreja e à
criação de diversos hospitais.
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Mutilação nas Leis Bizantinas
A uma análise superficial, a lei criminal bizantina mostra-nos alguns traços de
uma positiva influência cristã, embora haja categóricas afirmações em
contrário.
Vindos de um sistema de penalização muito severo, em que a pena de morte
prevalecia para muitos crimes, os sistemas introduzidos por Justiniano e por
Leão III, o Isauriano (680 a 741), foram amenizando as penas, graças à
influência do Cristianismo.
A "Écloga" (Código de Leis) de Leão III restringe a pena de morte a alguns
crimes apenas, como assassinatos, alta traição, deserção das forças armadas e
práticas sexuais não-naturais. Além disso, prevê diversas penas por mutilação
ou por vazamento dos olhos que não existiam no Código de Justiniano, em
vigência desde o século V.
Muito embora a "Écloga" e as legislações posteriores tenham significado, para
aquela época, uma amenização de parte do sistema penal, o fato concreto é
que, com as penas de mutilação e de vazamento dos olhos provocava uma
verdadeira e desagradável regressão a épocas anteriores a Constantino I, que
proibia mutilar o rosto humano que era "feito à imagem da beleza divina".
A suposta amenização não ocorreu em todas as linhas. Mas, de cominações
estabelecidas no Código de Justiniano em simples multas, verificou-se na
"Écloga" um forte endurecimento para a pena máxima.
No entanto, a Cristandade do Império Bizantino não questionava nada do que
vinha do Imperador e para ela, a substituição da pena de morte por mutilações
podia até ser justificada no próprio Evangelho. Era questão de se tomar a
palavra de Mateus ao pé da letra: ..."se tua mão ou teu pé te escandalizam,
corta-os e atira-os fora"..."e se teu olho te escandaliza, arranca-o e atira-o
fora".
Havia também outro fator de extrema importância que era verbalizado
continuamente. Ao criminoso e ao pecador seria dada a oportunidade de
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arrepender-se de seus pecados e se regenerar na penitência, na dor, na fome, na
miséria e muitas vezes confinado num mosteiro.
Ressalte-se, todavia, que o Imperador bizantino - o alegado representante de
Cristo na Terra - em seu juramento de coroação, obrigava-se a ser
misericordioso e humano para com seus súditos, evitando a pena capital e a
mutilação, tanto quanto possível — isso nos interesses da justiça e da
propriedade, e em fidelidade à verdade e á retidão.
No rolar dos séculos, porém, o que sucedeu nas muitas histórias de mutilações
e vazamentos de olhos foi que essas punições aconteceram, numa grande
variedade de casos, devido a meras vinganças políticas e para afastar sérios
pretendentes ao trono, segundo nos relata a História.
A Igreja Cristã colaborava dentro dessa realidade muito concreta com o
banimento a um de seus muitos mosteiros retirados da civilização,
demonstrando com isso a sua influência no sistema penal em vigor. Ela tomava
em suas mãos tanto a execução de partes das penas, como também a
reabilitação de muitos desses criminosos.
No entanto, apesar de seu posicionamento claro, a profanação de sepulturas, a
rapinagem de igrejas, a pederastia, as fraudes de funcionários continuaram por
muito séculos reprimidos pela pena da mutilação de membros.
"Pergunta-se como esse costume atroz, cuja crueldade refinada supõe uma
perversão do senso moral, pôde ser introduzido na sociedade bizantina",
comenta Bréhier ao analisar as mutilações. Segundo o famoso historiador, o
gosto pela mutilação pode ter sido o resultado do ambiente que cercava a
sociedade local, ao redor do século VII, e a influência da imigração de
consideráveis contingentes de turcos, árabes, sírios e outros, dentre os quais o
suplício era prática corrente desde muitos séculos.
- Muito interessante mesmo, Heródoto. Dentre as páginas que eu tenho comigo,
alguns tópicos referem-se ao Direito Penal Bizantino. Deixe-me ler para você
analisar comigo logo em seguida, está certo?
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Períodos Principais do Direito Penal Bizantino
Para que seja bem entendida a questão das penalidades impostas pelas leis
imperiais que redundavam na instalação de limitações físicas e sensoriais, é
fundamental que distingamos pelo menos dois períodos na história desses
castigos.
O primeiro vai do século V até o século VII, notando-se um esforço para o
estabelecimento de alguma humanização do corpo geral da legislação romana
pertinente, esforço esse feito principalmente sob Justiniano e expresso em seu
Código, aprovado no ano de 534. Esse Código, somado à legislação aprovada
e codificada anteriormente pelo mesmo Imperador, teve o enriquecimento de
mais de 150 "Novas Constituições” que foram assinadas entre os anos 534 e
565, formando o famoso "Corpus Juris Civilis" de Justiniano.
0 segundo período vai do século VII em diante. Nota-se nele, especialmente
pela aprovação da "Écloga" de Leão III, o Isauriano, uma tendência a certa
humanização (ou pelo menos amenização) da drasticidade da pena de morte,
surgindo em seu lugar maior incidência de penas de mutilação ou de castigos
corporais.
Note-se que no estudo das leis todas, tanto de Justiniano e de Imperadores
que ocuparam o trono depois dele, quanto de Leão lll, deve-se ressaltar a
relevância da existência de uma verdadeira universidade, criada no ano 425 em
Constantinopla, na qual estudava-se mais profundamente assuntos leigos (nãoreligiosos), dentre os quais a Filosofia e as Leis.
Moderação nas Penalidades Impostas no Tempo de Justiniano
Inserida numa de suas "Novas Constituições" (a de no.CXXXIV, ou seja,
assinada quando Justiniano estava no final de sua vida) encontramos uma
orientação geral do velho Imperador a todos os governadores e autoridades
judiciais do Império, na qual fica evidente uma séria tendência á humanização,
com determinações explícitas de moderação na aplicação de penas corporais.
Determinou o Imperador:
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"Como precisamos proteger a fraqueza humana, diminuímos uma parte das
penas corporais e abolimos a amputação de duas mãos, de dois pés e o suplício
da separação das juntas, que é ainda mais grave do que a amputação das
mãos"... "Mas se a espécie de crime comportar a amputação de um membro,
limitar-se-á à amputação de uma só mão. Proibimos que seja indicada a
amputação de um membro por um simples furto, ou que o culpado sofra a
pena de morte, mas desejamos que ele seja punido de outra maneira".
Ao final dessas considerações e determinações relacionadas à moderação que
as autoridades deveriam observar na aplicação de penas corporais ou pena de
morte, Justiniano procura garantir a severidade da pena para aqueles que
ameaçavam a estabilidade da coroa imperial, afirmando:
"Mas ordenamos que a força das antigas leis seja conservada para os
indivíduos condenados por crime de lesa-majestade".
As "Novas Constituições" de Leão III: "Leis mais Cristãs"
As chamadas "Novas Constituições" editadas pelo Imperador Leão III, o
Isauriano (717 a 741), após a publicação da "Écloga", são verdadeiras ordens
imperiais. São leis escritas num linguajar quase coloquial, expressas em todos
os seus termos na linguagem própria da época. Trata-se de um total de 113
"Novas Constituições", das quais desejamos aqui fazer menção a algumas que
estabelecem a precisa condenação por certos crimes, incluindo o açoitamento,
a amputação do nariz, da língua ou das mãos, o vazamento dos olhos e
também a pena do "raspamento" de cabelos e barba, considerada como
difamante.
Essas Constituições procuravam impedir a criminalidade por meio de
cominações severas; buscavam também desencorajar que o povo imitasse os
Imperadores ou as autoridades maiores do Império que, no uso (e no abuso) de
seu direito supremo derivado de Deus – assim justificavam - mandavam vazar
os olhos ou amputar as mãos dos traidores do Divino Império. Procuravam
também garantir direitos, estabelecer penas corporais ou pecuniárias e
regulamentar alguns assuntos relacionados ao clero.
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Poderá nos parecer irrelevante nessa legislação, por exemplo, a preocupação
com os cegos poderem ou não fazer testamento de seus bens, uma vez que
não havia provisão alguma que garantisse direitos básicos a esses mesmos
cegos, mas a preocupação da nobreza (das fortes e grandes famílias do Império
Bizantino) era compreensível, face â realidade do que continuamente sucedia:
o problema de muitos dignatários, militares ou nobres, que tiveram seus olhos
vazados, seja por crimes de traição (sob a ótica do Imperador reinante), seja
por falsas acusações, seja mesmo por pertencerem à família de um indiciado
traidor, não poderem legar seus bens.
O próprio texto da Nova Constituição no. LXIX é suficiente para
compreendermos a totalidade do problema e a solução encontrada. Vejamos
como o Imperador considerou a questão:
"Levanta-se muitas vezes dúvidas quanto à questão de se saber como os cegos
podem fazer testamento, e essas dúvidas são originárias das leis que decidiram
em contrário, e também dos costumes existentes sobre esse assunto: Não é
nem inconveniente nem difícil para mim, esclarecer e decidir sobre o assunto.
Há uma lei que proíbe aos cegos de fazer um testamento secreto e estabelece
que tal testamento não terá força a menos que testemunhas confirmem ter
ouvido o testador proferir de viva voz as disposições por ele guardadas. O
testemunho por si só não pode fazer fé de sua vontade. Outra lei, ao contrário,
permite às mulheres e às pessoas iletradas fazer testamento na forma mística,
e não as sujeita a outras formalidades, a não ser assiná-los, se souberem
escrever, ou se não souberem, a fazê-los assinar por um terceiro. Essas duas leis
estão evidentemente em contradição sobre o mesmo objeto; pois se as mulheres
e pessoas desprovidas de toda instrução, que sabem apenas o que desejam,
podem fazer seu testamento na forma mística, por que um cego não o poderia?
Mas se essas leis estão em oposição entre si, estão ainda mais com os
costumes. De fato, os costumes estabelecem que os testamentos das mulheres,
de pessoas iletradas ou de cegos, feitos na forma mística, não podem ter força
alguma. Nesse estado de coisas, ordenamos que os testemunhos secretos dos
cegos ou de quaisquer outras pessoas tenham um pleno e inteiro efeito e
adicionamos a essa disposição que, antes de as testemunhas serem ouvidas,
os que lavraram o testamento e que a ele aporão as suas assinaturas,
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declararão ter escrito o que o testador Ihes ditou; e se logo em seguida for
reconhecido que cometeram alguma falha, serão despojados de seus bens se
forem ricos, ou então serão açoitados e exilados se forem pobres. Adicionamos
mais que, se para confirmação do testamento for necessário recorrer a
juramento, como acontece freqüentemente, os que o lavraram deverão estar
concordes com as testemunhas, que jurarão atestar e confirmar a coisa".
- Muito claro o Imperador! Mas, prezado Agostinho, veja este ponto que nos
esclarece sobre a Penalidade Prevista para o Vazamento dos Olhos de
Outrem.
- O problema deveria ser sério mesmo em Constantinopla a esse respeito.
- Ou muito freqüente e talvez fora de controle, com situações abusivas.
- Vejamos então o que diz a segunda Nova Constituição de Leão III. Ela
procura coibir frontalmente os crimes de vazamento dos olhos de alguém. Para
tanto
o
legislador
imperial
estabeleceu
penas
severas
e
bastante
desencorajadoras. Essa norma específica está intitulada no documento original
como "Qual deve ser a pena para quem cega alguém?".
- E como a coisa era de fato feita? Qual era a opinião do Imperador? perguntou
Heródoto.
- A Constituição, como era chamada qualquer lei baixada pelo Imperador,
analisa a aplicação direta da “lei do talião”, muito conhecida de todos, fazendo
menção expressa desse procedimento. Estuda também o problema que
poderia ser criado com o fato de o malfeitor ter os dois olhos vazados por crime
semelhante. Leão III pondera e decide da seguinte forma:.
..."Se ele tiver tirado" (extirpado, arrancado ou mesmo vazado são termos
correspondentes) os dois olhos, como nesse caso a igualdade da pena não
traria nenhum proveito para o que perdeu a visão (pois qual a vantagem que
pode achar um cego em um outro também ser cego?) e que a pena do talião,
mesmo que merecida, seria muito cruel para o culpado (pois nada é mais triste
do que a cegueira), decidimos que ele não a sofrerá e que será punido de outra
maneira, capaz de garantir alguma compensação à vítima. É assim que
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concebemos a lei: Qualquer pessoa que tiver vazado os dois olhos de um
indivíduo, terá um vazado e, como mereceria perder a mão que cometeu o
crime, pagará em seu lugar uma indenização igual à metade de seus bens, que
será entregue àquele que teve seus olhos vazados, como um abrandamento de
sua miséria. Dessa maneira este será consolado e o culpado será punido,
tendo um olho vazado e em seguida perdendo seus bens no lugar de sua
mão" .
- Mas, meu caro Agostinho, o que sucedia se o malfeitor fosse uma pessoa pobre
ou sem recursos suficientes?
- Neste caso, não podendo o criminoso cumprir o estabelecido em termos de
compensação, era condenado a experimentar idêntico mal infligido à sua
vítima, ou seja, tinha os olhos vazados.
- Bem esclarecido e ponderado pelo Imperador Leão III. Agora, veja bem o que
acontecia com o malfeitor que cometia o crime de rapto, que era bastante
comum naqueles séculos. Qual a sua condenação nos tempos de Leão III?
Eis o que diz a síntese que tenho aqui comigo: Dentre os diversos crimes
citados na legislação coberta pelas Novas Constituições de Leão III, o rapto de
uma jovem solteira merece atenção especial. Essa Nova Constituição — de no.
XXXV — estava intitulada: "Da pena pronunciada contra o raptor de uma jovem
e seus cúmplices". Ela é clara, incisiva e não desperta qualquer dúvida.. . . "Se
o rapto for cometido sem o uso de armas, então o raptor não será punido com
a morte, porque ele não manifesta a intenção de a provocar. Mas terá a mão
cortada e aqueles que o ajudaram, ou que tenham tomado qualquer parte em
seu crime, serão açoitados, raspados e exilados".
Heródoto voltou-se para Agostinho para esclarecer:
- O “raspado” faz menção a um verdadeiro ultraje para aquelas épocas. Mas
vou continuar com esse mesmo tópico. A mesma Constituição estabelece que
todos os que ajudavam nesse tipo de rapto, mas a mão armada, seriam
punidos da seguinte maneira: . . . "terão o nariz decepado e serão açoitados e
raspados". Quanto ao autor desse crime de rapto de uma mulher solteira a mão
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armada, a Nova Constituição no. XXXV confirmava a pena de morte, já
estabelecida séculos antes no Código de Justiniano.
- Heródoto, deixe-me agora ler a você este trecho aqui que fala de um drama até
meio constrangedor devido ao abuso do poder sem uma apuração cuidadosa dos
fatos e às conseqüências de fofocas na corte.
General Belisário: Lenda e Realidade de sua Carreira
Belisário foi um general bizantino nascido na Trácia, aproximadamente em
505, tendo falecido em 565, após ter vivido seus últimos anos cego, pobre e
mendigo.
Após alguns anos de glórias e vitórias à frente dos exércitos que combatiam os
muitos inimigos de Constantinopla, dentre os quais os Godos e os Vândalos, o
Imperador Justiniano transformou Belisário no primeiro general de todo o
Império. Seus contínuos sucessos, todavia, acabaram por despertar em
Justiniano os sentimentos de ciúme e de desconfiança, apesar dos incontáveis
atos de fidelidade de seu general maior.
No ano 562 Belisário foi envolvido numa conspiração e injustamente deposto
de seu cargo. Acusado do crime de lesa-majestade, sofreu a pena usual
amenizada, ou seja, perda da visão, somada à perda de seus proventos e de
todos os seus bens.
A lenda mostra-nos Belisário cego, por ordem direta de Justiniano,
mendigando com o auxílio de um garoto para poder sobreviver. Sua figura
magnífica de general adorado pelos seus subalternos e pelo povo em geral,
transformado em mendigo, levou alguns pintores a criar obras de arte que
ficaram famosas, destacando-se dentre eles Van Dick, Salvatore Rosa, David
e Gérard.
Levou também o escritor Nepomuceno Lemercier a escrever um romance em
versos, que foi musicado por Dominique Pierre Jean Garat, famoso compositor
e cantor francês, no final do século XVIII. Um dos versos musicados da obra
intitulada "Belisário" relata-nos o seguinte:
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"Seguro o capacete do guerreiro,
Terror dos Vândalos e dos Godos.
Caminhou, dizem, sem escudo
Contra a fatal impostura.
Um tirano fez queimar seus olhos
Que velavam sobre toda a terra.
A noite cobre para sempre os olhos
Do triste e pobre Belisário"
(Apud "Larousse du XXe.Siècle").
Em algumas culturas européias de hoje, o nome Belisário é muito utilizado
para fazer referência simbólica a uma pessoa cega de boa educação e de
refinadas maneiras.
- Estou com alguma sorte com as folhas que vieram parar em minhas mãos para
revisão, sabia? comentou Agostinho. Vou ler alto para você ter uma idéia das
coisas boas que viviam acontecendo no Império Bizantino.
Notícia sobre uma Prótese do Século IV
Nos muitos documentos encontrados na pujante nova capital do Império
Bizantino, e que escaparam à fúria destruidora dos seus muitos invasores,
principalmente dos turcos, foram encontradas algumas referências a próteses.
Mencionam essas citações eventuais casos de braços de metal, pernas de
madeira e até mesmo casos de nariz ou de orelhas artificiais.
Segundo o Professor Pournaropoulos, George Kredinos, escritor grego do
século XI, narra-nos o seguinte caso que nos informa da fabricação de uma
importante prótese:
"Uma pessoa da Macedônia, de nome Basílio, afirmava falsamente que era
Constantino, filho de Dukas. Tendo maliciosamente persuadido muita gente a
segui-lo, reuniu-a ao seu redor e, viajando a pé, causou distúrbios nas cidades
e instou com a população para se levantar contra o Imperador de
Constantinopla. E, tendo sido aprisionado por um general chamado Elefantino,
e levado ao Imperador bizantino, foi condenado a ter um dos seus braços
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cortado. Depois de sua libertação da prisão, colocou no lugar do braço cortado
um outro artificial feito de cobre e, fazendo uma enorme espada, perambulou
pelo país ludibriando outra vez os cidadãos mais ingênuos".
- Que indivíduo persistente, não? Mas eu ainda acho chocantes essas
punições que não cabem em nossa cabeça. “Braço cortado”?!... Mas que
idéia,não é mesmo?
- Eram outros tempos,meu caro amigo. Outros tempos. Outros referenciais.
Abrigos para Cegos e outros Refúgios para Doentes e Deficientes
Segundo alguns biógrafos de São Basílio, o Grande, ele patrocinou a criação e
inaugurou um abrigo especialmente destinado a cegos em Constantinopla,
conhecido pela genérica designação de "tuphlokómeion".
Outro famoso santo da Igreja no Império Bizantino foi São Lineu. Ele chegou a
organizar e manter outros abrigos para cegos na cidade de Syr, na Síria atual.
Esses abrigos eram compostos de pequenas cabanas onde os internados viviam
por sua conta e graças à caridade das pessoas que garantiam seu sustento,
todas elas ligadas a ricas famílias da região. Essa experiência foi levada a efeito
durante o século V.
No mesmo século, entre os anos 400 e 403, São João Crisóstomo fez construir
alguns abrigos para doentes crônicos e pessoas que apresentavam condições
incapacitantes de seriedade, impeditivas de atividades rentáveis. Usou para
tanto as esmolas que coletava e os excedentes que juntava de seus proventos
como arcebispo de Constantinopla.
O historiador French testemunhou aqui em nossas reuniões que no final do
século IV, bem nos primórdios da vida monástica, que foi muito pujante no
Império Bizantino, o cuidado dos pobres em geral e das pessoas com
deficiência no meio delas, segundo nos relata São João Crisóstomo, passou a ser
uma preocupação básica e contínua dos mosteiros. Afirma esse famoso santo
da Igreja que "atendem os mendigos e os aleijados que vêm a eles às refeições
e para abrigo" ... "um dos irmãos cuida das feridas de um mutilado, outro cuida
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de um homem cego, enquanto que um terceiro apóia alguém que perdeu uma
perna".
Assistência a Soldados a Partir do Século VI
Comenta o Professor Pournaropoulos que o Império Bizantino, sempre
bastante criativo, mantinha atendimento separado para soldados feridos ou
deficientes, quando eram mutilados em atividades guerreiras, bem antes do
início da Idade Média no mundo europeu ocidental.
Informa-nos ele, também, que, em uma obra escrita pelo Imperador Maurício
Flávio Tibério (539 a 602), intitulado "Strategikón", poderemos encontrar esta
frase que nos surpreende: "Cuidados especiais devem ser prestados para
proteger os feridos após a guerra"
Afirma ainda Pournaropoulos que no mesmo trabalho consta uma referência
quanto à idade de incorporação às forças armadas, indicando que todos os
súditos abaixo de 40 anos de idade eram obrigados ao serviço militar, dandonos assim uma idéia da eventual incidência de lesões graves por ferimentos
inclusive em homens com família formada e quase no final da vida.
Segundo ele, ainda, existem outras referências também quanto ao assunto e
uma delas conta-nos em poucas palavras e sem maiores comentários — como se
estivesse falando de assunto sobejamente conhecido — o que sucedia com os
feridos em campos de batalha.
Garantiam os exércitos bizantinos um sistema de recolhimento desses feridos e
de seu atendimento na retaguarda, salvando-os de morrer devido a hemorragias,
pancadas, pisaduras, queimaduras e outros traumatismos. Esse sistema, com
algumas características próprias a cada Legião Romana, ou à área geográfica
onde estava estacionada, já vinha sendo experimentado por diversas delas.
Afirma o Imperador Maurício o seguinte em sua obra “Les Institutions de
l´Empire Byzantin”:
"Durante as batalhas um corpo de auxiliares volantes, a cavalo – composto
por civis reconhecidos como "deputatoi" - estava encarregado de recolher os
feridos e de os transportar á retaguarda para serem tratados. De suas selas
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pendiam estribos duplos que Ihes permitiam erguer os feridos e os fazer
montar. Recebiam eles um "nomisma" por guerreiro salvo".
Uma referência a benefícios estabelecidos para soldados que voltavam com
sérias deficiências físicas ou doenças graves dos campos de batalha também é
mencionada pelo Imperador Maurício na mesma obra:
... “Sob Constantino VII, o Porfirogeneta, os detentores de bens militares que
ficavam inválidos continuavam a gozar de suas rendas a título de pensão".
..........................................................................................................................
Inconformado com boa parte do resumo de informações coletadas, Agostinho
foi juntando todas as folhas e comentou:
- Bem, Heródoto, temos um volume bastante significativo de informações
quanto ao que sucedeu durante os séculos de duração do Império Bizantino.
Um número realmente chocante desses relatos refere-se a penas impostas
que levavam à cegueira, à amputação, à miséria forçada. Poucas
informações conseguimos sobre esquemas de assistência ou apoio às
vítimas desses males.
Heródoto, igualmente inconformado, preparava-se para passar-lhe as folhas
em seu poder e desabafou:
- Permita-me, Mestre Agostinho, lembrar aqui a opinião do historiador Bréhier
outro dia e que foi transcrita... aqui... espere um pouco que eu acho... sim,
ele afirmou categoricamente: “Pergunta-se como esse costume atroz, cuja
crueldade refinada supõe uma perversão do senso moral, pôde ser introduzido
na sociedade bizantina. O gosto pela mutilação pode ter sido o resultado do
ambiente que cercava a sociedade local, ao redor do século VII, e a influência
da imigração de consideráveis contingentes de turcos, árabes, sírios e outros,
dentre os quais o suplício era prática corrente desde muitos séculos”.
Agostinho procurava ordenar as folhas em seu poder, batendo-as sobre o tampo
da escrivaninha. Parou um pouco para comentar:
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- Eu acredito que ficaremos sem resposta para um questionamento como esse,
por mais relevante que seja. O historiador Bréhier limita seus comentários ao
redor do século VII, mas o problema perdurou por séculos a perder de vista,
antes e depois do século VII, essa é que é a realidade.
- Alguma vantagem para a atualidade em levantar e divulgar problemas assim de
um passado tão longínquo? perguntou Heródoto.
- Eu acho de alta relevância que a sociedade atual tome conhecimento dessas
atitudes para ter uma idéia da imensa epopéia das pessoas com deficiência nas
mais variadas culturas, pelos séculos afora. Não precisamos ter receio quanto a
eventuais perigos de que essas atitudes selvagens e desumanas sejam
aprovadas ou voltem a prevalecer em nosso mundo atual. Vale lembrar que se
torna muito importante ressaltar que, como vimos, partes da sociedade desses
séculos bárbaros já lutavam pela amenização dos sofrimentos impostos pelos
tiranos de então.
- É a pura verdade, Mestre Agostinho. Estou certo de que a sábia História nos
repassa tudo isso para que aprendamos com os erros do passado.
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BIBLIOGRAFIA
Citada nos Diversos Verbetes desta Obra
ALLARD, P. – Le Christianisme et l’ Empire Romain (de Néron a Theodose) – Lecoffre –
Paris, 1898
ALLARD, P. – Histoire des Persécutions – La Persécution de Diocletien et le Triomphe de l’ Église
– Lecoffre – Paris, 1908
BÉRENGER e outros – Les Nouvelles de l’Empereur Justinien suivis des Nouvelles de l’Empereur
Léon – Paris, 1811
BRÉYER, L. – Vie et Mort de Byzance – Michel – Paris, 1948
BRÉYER, L. – Les Institutions de l’Empire Byzantin – Michel – Paris, 1949
DIEHL, C – Choses et Gens de Byzance – Boccard – Paris, 1926
EUSÉBIO DE CESAREA – História Eclesiástica – Nova –Buenos Aires, 1950
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Byzas
ÍNDICE
Introdução ................................................................................................ 2
Capítulo I – Proposta ............................................................................... 4
Capítulo II – Persas ................................................................................. 22
Capítulo III – Cristianismo ........................................................................ 37
Capítulo IV –Realidade de Constantinopla............................................... 47
Capítulo V – Verdades de Sempre .......................................................... 59
Capítulo VI – O Bem e o Mal ....................................................................76
Capítulo VII – Bizantinos ..........................................................................107
- Bibliografia .............................................................................................124
- Índice .....................................’................................................................125
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