8º Encontro da ABCP AT07 – Participação Política As ouvidorias

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8º Encontro da ABCP AT07 – Participação Política As ouvidorias
8º Encontro da ABCP
AT07 – Participação Política
As ouvidorias públicas como instrumento de democracia participativa
Bruno Konder Comparato (Unifesp)
1
As ouvidorias públicas como instrumento de democracia participativa: o
exemplo das ouvidorias da polícia
Bruno Konder Comparato1
Nos últimos anos, as experiências participativas realizadas na esfera local
se multiplicaram em todo o mundo. Elas são divulgadas e incentivadas por
atores tão diversos quanto partidos de esquerda, funcionários do Banco
Mundial, ONGs, cidadãos que fazem parte de conselhos associativos e
comunitários. O exemplo do orçamento participativo é ilustrativo a este respeito:
inventado em Porto Alegre pela administração de esquerda do partido dos
trabalhadores, foi considerado como uma prática modelo pelo Banco Mundial,
apresentado como uma experiência bem sucedida nos fóruns sociais mundiais e
adotado por um número considerável de governos municipais na América Latina
e na Europa. A participação e a deliberação se tornam cada vez mais presentes
no processo de elaboração e implementação de políticas públicas urbanas.
A bem da verdade, trata-se de uma reivindicação mais antiga. A demanda
por mais democracia, partilha do poder e reconhecimento do poder local diante
de um Estado todo poderoso foi uma das bandeiras dos movimentos sociais
urbanos da década de 1960. Como resultado daquelas lutas, surgiram
experiências diversas como os “ateliês públicos de urbanismo” na França e na
Itália, as cooperativas de produção, moradias auto-gerenciadas e outras
experiências de desenvolvimento comunitário, principalmente nos países de
língua inglesa e no terceiro mundo. Nos países latino-americanos, os processos
de redemocratização iniciados nas décadas de 1970 e 1980 se apoiaram em
grande parte numa vida associativa local florescente. Num texto pioneiro,
Renato Boschi falava, por exemplo, num “reflorescimento da sociedade” sob a
forma de associações de moradores, comunidades de bairro, comunidades
eclesiais de base, associações de favela, associações profissionais, o
1 Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo
(PPGCS-Unifesp); [email protected]
2
movimento feminista, o movimento negro, numa grande variedade de
coletividades emergentes. [Boschi, 1987, p. 162]
Hoje em dia, contudo, os objetivos e as condições de efetivação dos
instrumentos de democracia participativa diferem bastante das experiências
participativas das décadas passadas. Na maioria dos casos, a iniciativa vem de
cima e visa a resolver uma crise de legitimidade das instituições políticas
tradicionais que não conseguem dar conta de problemas sociais cada vez
maiores. A pressão da globalização, das políticas neoliberais e do processo de
unificação europeia contribuem para um questionamento crescente do papel dos
Estados nacionais e acarretam uma necessidade de reconfigurar as políticas
públicas e as práticas de governo ao nível local. Na Europa, o debate é sobre a
descentralização e a integração; nos Estados Unidos, o retraimento do estado
federal faz recair na esfera local quase todas as responsabilidades em matéria
de desenvolvimento e administração urbana; nos países do hemisfério sul, as
margens de manobra das autoridades locais estão raramente à altura dos
desafios sociais e urbanos de metrópoles que experimentam verdadeiras
explosões demográficas. Simultaneamente, ao nível internacional, movimentos
sociais críticos à globalização neoliberal se afirmaram, enquanto que ONGs
desempenham um papel crescente e várias delas são aos poucos associadas
aos centros de decisão. Em todo lugar, as maneiras tradicionais de
administração pública são questionadas. Os processos de decisão e a prática
administrativa se tornaram mais complexos, e implicam na cooperação de
diversas instituições estatais e na construção de parcerias entre o poder público,
a iniciativa privada e diversos atores da sociedade civil. A criação e
implementação de fóruns de participação popular é apresentada como uma
solução a estes desafios tanto pelos governos quanto pela sociedade civil.
[Bacqué, Rey e Sintomer, 2005; Blondiaux, 2008]
A crise da representação política e das formas de governo é
acompanhada de uma contestação do conhecimento científico e técnico que
legitima as políticas públicas. Os grandes desafios ecológicos, urbanos ou de
saúde, que se tornam relevantes na esfera local assim como na esfera do
3
planeta, representam novos campos de atuação para os movimentos sociais. A
capacidade da sociedade de deliberar democraticamente sobre questões
científicas e éticas fundamentais é questionada. Recorre-se tanto a fóruns
especializados e agências reguladoras, que pressupõem um saber técnico
consolidado, quanto à valorização das competências dos cidadãos comuns, cujo
conhecimento e vivência na prática são invocados para contrabalançar o
excesso de tecnicismos. Diversas expressões são empregadas para descrever
estas experiências: governança
urbana, gestão
de
proximidade, nova
administração pública, modernização da administração local, democracia
participativa, descentralização administrativa, empoderamento do cidadão.
No vasto campo de discussão aberto por estas práticas de democracia
participativa, a proposta deste texto é contribuir para o debate com a experiência
das ouvidorias públicas que, segundo minha avaliação, ao mesmo tempo que
fiscalizam o exercício do poder, constituem um instrumento relevante de
participação popular. Enquanto que a maioria dos mecanismos de democracia
participativa introduzem a participação popular na definição e formulação de
políticas públicas, mesmo que apenas em caráter consultivo, as ouvidorias
influenciam o aspecto decisivo da implementação das políticas.
A organizações policiais constituem um bom exemplo para o que Michael
Lipsky chamou de “burocracias ao nível da rua”, que ele definiu como “agências
cujos trabalhadores interagem com e têm um alto grau de discricionariedade no
que diz respeito ao fornecimento de benefícios ou à alocação de sanções
públicas”. [Lipsky, 1980, prefácio] A essência das burocracias ao nível da rua é
que elas exigem que indivíduos tomem decisões sobre outros indivíduos. Os
burocratas ao nível da rua possuem um poder discricionário porque a natureza
da sua prestação de serviço requer um julgamento humano que não pode ser
programado antecipadamente e que não pode, portanto, ser substituído por
máquinas. Assim, estes funcionários são responsáveis por tomar decisões
únicas e encontrar respostas apropriadas e individuais para cada cidadão em
circunstâncias que mudam constantemente. [Lipsky, 1980, p. 161] Em
burocracias deste tipo, as chefias têm pouco ou quase nenhum conhecimento
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sobre o que se passa na base da organização que comandam, e a política
pública efetivamente implementada é formada pelo conjunto das decisões
individuais dos funcionários que interagem diretamente com a população. Em
consequência, as ouvidorias públicas que recolhem as denúncias da população
são um instrumento interessante para avaliar o desempenho das agências que
obedecem a estas características.
Neste caso, o incentivo à participação popular é visto também como uma
maneira eficiente de fiscalizar os governantes e promover o respeito e a garantia
dos direitos dos cidadãos. Chama a atenção o grande número de ouvidorias
públicas instaladas no Brasil nos últimos vinte anos. Um caso particularmente
interessante são as ouvidorias de polícia, atualmente instaladas em 17 estados
do país. Numa ouvidoria da polícia, o cidadão pode comunicar abuso de
autoridade da parte de policiais civis ou militares e até fazer denúncia de crimes
cometidos pelas forças policiais. Idealmente, o ouvidor é escolhido pela
sociedade civil e é independente com relação à polícia. Por isto, dizemos que se
trata de órgãos de controle externo da administração pública.
O caso das ouvidorias de polícia: controle externo com participação
cidadã
No Brasil, como na maioria das grandes cidades latino-americanas, os
cidadãos aprendem desde cedo a temer a polícia tanto quanto os criminosos.
[Chevigny, 1995; Hinton e Newburn, 2009; Shaw, 2002] Nossa experiência
cotidiana mostra que os fiscais da lei também podem se transformar em
transgressores e os dados estatísticos comprovam que várias centenas de
mortes são atribuídas anualmente aos policiais em cidades como São Paulo ou
Rio de Janeiro. Os números relativos à corrupção são igualmente alarmantes,
de maneira que aqui se verifica o que já constataram vários pesquisadores de
que a polícia é uma ocupação de alto-risco para a corrupção [Prenzler, 2000;
Kappeler et al., 1994], e é legítimo perguntar se, ao sermos abordados pela
polícia, “o Estado vai nos trazer de volta”. 2 Os agentes policiais são funcionários
2 Trata-se do trocadilho do título “Will the State Bring You Back In? Policing and
Democratization” dado por Murray Scot Tanner a uma resenha de cinco livros sobre
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públicos a serviço do Estado que portam armas e que têm acesso a um grau
considerável de discricionariedade no seu dia a dia. A combinação destas duas
características da atividade policial, ao mesmo tempo que torna imprescindível o
seu controle, faz com que seja muito difícil executá-lo. [Comission de Venise,
2007; Muir, 1977] Paul Chevigny conta a anedota de “Clubber” Williams, um
inspetor de polícia conhecido na Nova York do século XIX por agir segundo a
filosofia de que “há mais lei num cacetete do que em todos os códigos
legislativos”. [Chevigny, 1995, p. 118] Quando os responsáveis pela manutenção
da ordem na sociedade cometem crimes e irregularidades, e até em certos
casos aterrorizam a população, quem é que vai controlar as suas atividades?
Este problema antigo da ciência política, pois que já se colocava para os
romanos da Antiguidade de acordo com a fórmula clássica de Juvenal, “Quis
custodiet ipsos custodes?”, pela qual ele se fazia a pergunta “quem vai guardar
os
guardiões?”,
adquire
dimensões
interessantes
nas
sociedades
contemporâneas pois é preciso conciliar a grande demanda por mais segurança
por parte dos cidadãos com as suas exigências de respeito das liberdades.
[Uildriks, 2009]
Nós sabemos, desde Max Weber, que o emprego da coerção e da
violência é indissociável da ação estatal. A maneira pela qual este monopólio da
violência física é exercido constitui um bom indicador sobre a qualidade da
democracia numa determinada sociedade e o grau de respeito dos direitos
humanos. O Programa do Conselho da Europa para a Polícia e os Direitos
Humanos, lançado no ano de 2000, é claro quanto a este ponto: “Cada vez que
a polícia investiga um delito, executa decisões judiciais ou entra em contato com
os cidadãos a quem serve, a sua conduta simboliza a maneira pela qual os
direitos humanos são respeitados e protegidos nos países em questão (…) A
maneira pela qual a polícia desempenha o seu papel é um indicador infalível da
qualidade da democracia nesta sociedade, bem como do seu grau de respeito
pela preeminência do direito”. No mesmo sentido, o Comitê Europeu de
policiamento em novas democracias, publicada em 2000 na revista Comparative Politics e
que faz alusão à obra clássica do novo institucionalismo de Peter Evans, Dietrich
Rueschemeyer e Theda Skocpol: Bringing the State Back In.
6
Prevenção contra a Tortura recomenda às autoridades nacionais a adoção de
um Código de deontologia específico para as forças de manutenção da ordem.
[Pieret, 2005]
Neste sentido, um controle estrito da ação policial é inseparável de uma
melhor transparência no funcionamento da polícia. Os protestos contra os
responsáveis pela manutenção da ordem podem assim serem necessários para
a manutenção adequada da ordem política. [Brodeur e Jobard, 2005; Ogien e
Laugier, 2010] O aprendizado dos cidadãos se faz tanto ao nível da tomada de
consciência da necessidade da reivindicação para que o respeito dos direitos
seja assegurado, quanto ao nível da necessidade da fiscalização das ações dos
funcionários públicos que, mesmo quando obedecem às ordens dos seus
superiores, estão a serviço da população.
Diante da dificuldade das instâncias internas de prevenir irregularidades,
que é devida à recorrente inabilidade da polícia em investigar colegas,
assistimos nas duas últimas décadas a uma tendência internacional de criar
órgãos de controle externo das forças policiais. Estes órgãos de controle externo
estão presentes sobretudo em países de língua inglesa, como os Estados
Unidos, o Canadá, a Austrália, a Nova Zelândia, o Reino Unido e a Irlanda do
Norte, e são chamados de Civilian Review Board, Citizen Oversight Board,
Police Complaints Authority, Ombudsman. [Goldsmith, 1991; Goldsmith e Lewis,
2000; Gottschalk, 2009; Hayes, 1997; Lewis, 1999; Lewis e Birkinshaw, 1993;
Noble e Alpert, 2009; Oliver, 1987; Prenzler, 2000, 2004 e 2009; Prenzler e
Ransley, 2002; Russell, 1976; sem, 2010; Uildriks, 2009; Walker, 2001] Trata-se
de instâncias de controle da administração pública com a participação popular
nos moldes do Provedor de Justicia ou dos Defensores del Pueblo dos países
de língua espanhola. No Brasil eles levam o nome de Ouvidorias devido à
tradição que este termo adquiriu ao longo da história administrativa do país
desde os tempos coloniais. Todos têm em comum a missão de receber as
denúncias da população sobre as ações das forças policiais, transmitir as
comunicações às autoridades responsáveis e produzir relatórios públicos.
Alguns deles estão autorizados a realizar inquéritos e até a sancionar os
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culpados, tendo, portanto, “poder de polícia”, mas não no Brasil.
A pesquisa que serviu de base para esta comunicação analisou o
conjunto das ouvidorias de polícia instaladas no Brasil até agora. As leis, os atos
administrativos e outros documentos relativos à sua criação foram examinados.
Os titulares destas instituições foram entrevistados, os relatórios produzidos por
cada ouvidoria foram lidos e os resultados confrontados ao diagnóstico
produzido por organizações independentes de defesa e promoção dos direitos
humanos.
O método comparativo adotado permite comparar várias realidades
regionais, institucionais, e até mesmo conjunturais quando as ouvidorias existem
desde um tempo razoável e já foram comandadas por vários ouvidores
sucessivos. Uma nota metodológica é particularmente importante, contudo, pois
os resultados obtidos com esta pesquisa não constituem uma descrição da
realidade das atividades das forças policiais, mas uma interpretação dos fatos
que os cidadãos julgaram importante comunicar às ouvidorias de polícia. Tratase, portanto, de um julgamento das ações policiais a partir da maneira pela qual
elas foram consideradas pela população. Se este procedimento pode parecer
frustrante e limitado, pois trata-se de um método de apreensão indireta da
realidade, ele não se torna menos eficaz para as pesquisas sobre os abusos
policiais. Vale a pena lembrar o que constatou Fabien Jobard na sua pesquisa
sobre os deslizes das forças de polícia na França: “Em primeiro lugar, é preciso,
com humildade, ir ver o que acontece quando a polícia emprega a força, e tomar
nota dos fatos. Ora, menos ainda do que outros, estes fatos não se deixam
apreciar em toda a sua candura, e ainda menos ao sociólogo que declara querer
vê-los (ilusão de transparência dos fatos sociais). Eis nos portanto obrigados a
abordá-los de viés, de recolhê-los sob outra forma do que a partir da observação
bruta, imediata. (…) os fatos apresentados serão fatos discursivos.” [Jobard,
2002, p. 25]
Além do resultado imediato que permite à sociedade espiar o que
acontece quando as forças da ordem agem, as ouvidorias têm, no meu ponto de
vista, um aspecto bem particular pois elas reforçam os direitos civis e
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contribuem assim para o exercício da cidadania e a melhoria da qualidade da
democracia no Brasil. Para situar os direitos civis adoto a definição proposta
pelo sociólogo inglês T. H. Marshall que distingue sucessivamente os direitos
civis, relacionados com as liberdades individuais e assegurados na Inglaterra ao
longo do século XVIII, os direitos políticos, que se expandiram sobretudo
durante o século XIX, e os direitos sociais que foram reivindicados e
conquistados a partir do século XX. [Marshall, 1950] No Brasil, como mostrou
José Murilo de Carvalho, a ordem foi invertida e os direitos civis ainda são os
mais problemáticos. [Carvalho, 2004] Uma consequência dos três longos
séculos de escravidão é que o racismo ainda persiste, a tortura é praticada
regularmente nas delegacias de polícia e nas prisões, a sociedade é
confrontada a níveis excessivos de violência, e os códigos informais de ação
são tão ou mais importantes do que as regras formais definidas pelos
instrumentos legislativos. Obviamente, todos sabem que não é normal ser morto
ou espancado pela polícia, mas daí a denunciar formalmente estes
comportamentos não conformes às liberdades públicas e aos direitos e a exigir
que as autoridades adotem as medidas necessárias para evitar que as
irregularidades se repitam, há um passo considerável a dar. Nessa perspectiva é
que afirmo que as ouvidorias são benvindas, no sentido em que encorajam o
exercício de um direito civil fundamental: o direito de petição e de interpelação
dos poderes públicos.
No que diz respeito aos direitos, as instituições policiais desempenham
um duplo papel, pois são ao mesmo tempo parte de um sistema legal de
organização da justiça criminal e parte de uma comunidade. Na verdade, a
polícia faz a mediação entre uma dada comunidade e o sistema legal. Para a
maioria dos cidadãos, a polícia representa a lei e o sistema legal. Ela é
responsável pelo respeito das leis, mesmo que contra a vontade dos cidadãos
em determinadas ocasiões. (Reiss, 1971, p. 1) Enquanto organização, a polícia
se adapta às demandas dos cidadãos para uma variedade de serviços, alguns
relacionados com o seu papel de fiscal da lei. Isto acontece porque a polícia é a
instituição mais lembrada pelos cidadãos em situações de crise ou de
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emergência, seja esta crise localizada ou generalizada.
Pode-se afirmar que as ouvidorias de polícia estão relacionadas à
legitimidade das organizações policiais, na medida em que restabelecem a
confiança da população numa instituição que é periodicamente retratada na
mídia como uma organização incontrolável e que não presta contas a ninguém,
quando não é mostrada como francamente corrupta e até criminosa. Autores
como Scarman (1982) e Golsdsmith (1991), dentre outros, reconhecem uma
relação estreita entre os sistemas de controle externo das polícias e o grau de
confiança que a população deposita na polícia. Faz-se necessário ressaltar,
contudo, que nenhum autor considera o controle externo da polícia como um
antídoto completo para os problemas de legitimidade enfrentados pelas forças
policiais, pois é evidente que as dificuldades encontradas pela polícia neste
campo não se resumem à falta de um controle apropriado que garanta a
participação da sociedade na fiscalização da atividade policial.
A primeira ouvidoria de polícia instalada no Brasil foi criada por um
decreto de Mário Covas, a 1º de janeiro de 1995. Tratava-se do seu primeiro ato
administrativo como governador do Estado de São Paulo. As circunstâncias são
significativas pois todas as ouvidorias de polícia instaladas no Brasil
dependeram da vontade explícita dos governadores, mesmo que pressionados
ou inspirados pelos movimentos de defesa dos direitos humanos. A criação de
ouvidorias de polícia no Brasil pode, portanto, ser considerada como o resultado
de uma reivindicação da sociedade civil. Faz-se necessário ressaltar, também,
que “incentivar a criação de Ouvidorias de Polícia, com representantes da
sociedade civil e autonomia de investigação e fiscalização” era uma das metas
de curto prazo incluídas no primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos
(PNDH I), elaborado em 1996 pelo governo federal. 3
Mesmo sendo reafirmada nos dois programas nacionais de direitos
humanos subsequentes, e com um incentivo deliberado do governo federal, nem
todos os estados criaram ouvidorias de polícia e um número menor ainda acatou
3
PNDH I, Decreto nº 1.904, de 13 de maio de 1996.
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a ideia de ouvidorias independentes e autônomas. Este fato pode resultar em
constrangimentos para o país diante da comunidade internacional. Com efeito,
quando se trata de pressões sobre o governo federal por parte da sociedade
civil internacional e de organismos internacionais de defesa e promoção dos
direitos humanos, a organização federativa do país torna o governo federal
impotente, pois em muitos casos este não tem como interferir nas
administrações estaduais. No dia 17 de agosto de 2006, por exemplo, o Brasil
foi condenado pela primeira vez pela Corte Interamericana de Direitos Humanos
por violações contra os direitos humanos, em decorrência de uma morte
ocorrida num hospital psiquiátrico de Sobral, no Ceará, em 1999. Um segundo
caso submetido à mesma corte, e que por pouco não resultou em uma nova
condenação para o Brasil, é o assassinato de Gilson Nogueira de Carvalho, em
1996, quando era advogado do Centro de Direitos Humanos e Memória Popular
do Rio Grande do Norte e denunciava a ação do grupo de extermínio Meninos
de Ouro, ligado à polícia potiguar. Esta morte está diretamente ligada à
instalação da Ouvidoria da Defesa Social do Estado do Rio Grande do Norte e
chama a atenção para o fato de que o Brasil é periodicamente denunciado pela
sociedade civil internacional por violações de direitos humanos relativas a atos
cometidos pelas polícias estaduais, que não estão subordinadas ao governo
federal, mas aos governos estaduais. Como no Brasil as polícias, tanto civil,
quanto militar, são subordinadas aos governadores dos estados, contudo, o
governo federal não tem como fiscalizar a sua atuação.
No Brasil as forças policiais são organizadas nos estados da federação
de maneira independente. Cada um dos 26 estados, além do Distrito Federal,
têm uma Polícia Militar que faz o policiamento ostensivo nas ruas e uma Polícia
Civil que é responsável pelas investigações. Tudo se passa como se a lenta
evolução de uma polícia voltada para a repressão das “classes perigosas”, que
eram identificadas às classes trabalhadoras no século XIX em Londres, Paris,
Nova York, para uma polícia focada na contenção do crime no século seguinte
[Silver, 2005], ainda não tivesse sido completada no Brasil e as duas funções
permanecessem necessárias. Alguns autores chegam até a afirmar que, em
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razão das taxas crescentes da criminalidade e do sentimento de insegurança, a
polícia e outras instituições do sistema de justiça criminal tendem a reagir como
“guardas de fronteira”, que teriam por missão proteger as elites contra os mais
pobres. [Pinheiro, 1999, p. 4]
Esta organização das agências policiais no Brasil tem o efeito indesejável
de aumentar ainda mais o número de conflitos de interesses, já naturalmente
elevado nas polícias devido à própria natureza da atividade policial. Estes
conflitos geram, por sua vez, uma grande quantidade de queixas que envolvem
ao menos uma alegação de irregularidade por um agente policial. Para
assegurar a accountability, uma reação imediata é a condução de uma
investigação formal, de modo a determinar a culpa ou a inocência, e
eventualmente punir os culpados. Trata-se de uma função tradicionalmente
atribuída à cúpula das organizações policiais e aos seus órgãos de fiscalização
interna, como as corregedorias. Quando surgem casos de corrupção policial ou
abuso de poder, contudo, as investigações internas deixam quase sempre muito
a desejar. Pior ainda do que a falta empenho por parte das corregedorias, são
os casos em que há cumplicidade com a corrupção e proteção deliberada dos
colegas corruptos. [Prenzler e Ransley, 2002] O “espírito de corpo” presente nas
corporações policiais é explicado pela socialização dos jovens recrutas nas
organizações policiais, pois uma das primeiras lições que eles aprendem é que
“para se proteger dos seus próprios erros, é preciso proteger os outros”. [Van
Maanen, 1973] Por esta razão, o primeiro princípio da accountability da
atividade policial foi definido por David Bayley da seguinte forma: “Não se pode
confiar o policiamento da polícia aos próprios policiais. O recurso exclusivo às
agências internas de investigação e disciplina é imprudente. O controle externo
é essencial.” [Goldsmith, 1991, introdução]
No plano internacional, as ouvidorias de polícia são geralmente instaladas
em locais fisicamente separados dos departamentos de polícia e são geridas
preferencialmente por funcionários que nunca trabalharam na polícia e não têm
ligação com as agências policiais. Em grande parte dos casos, as ouvidorias de
polícia são comandadas por indivíduos com experiência em lidar com o crime
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por já terem sido juízes, promotores ou procuradores. Vários funcionários são
destacados para receber as denúncias e processá-las. Em alguns casos, há
também investigadores. Os poderes e procedimentos destas agências podem
variar significativamente. Geralmente, os funcionários realizam uma auditoria
das investigações e das medidas disciplinares tomadas pelos órgãos de controle
interno das polícias, e recomendam mudanças nos procedimentos ou nas
decisões. Nestes casos, o poder de fogo é bastante reduzido e a experiência
mostra que este tipo de ouvidoria é muito fraco para coibir os abusos.
[Goldsmith, 1991] As agências de controle externo da atividade policial mais
bem sucedidas têm o poder de contestar as decisões disciplinares, além de ter
autorização para conduzir suas próprias investigações e até punir os infratores
em casos mais sérios. Este último modelo é o usualmente apresentado como
desejável para agências de controle externo da atividade policial e foi resumido
por Tim Prenzler de acordo com os seguintes itens:
–
os órgãos de fiscalização interna da polícia realizam a maior parte
do trabalho de investigação das denúncias de irregularidade na atividade policial
e tomam medidas disciplinares;
–
esta atividade é acompanhada pela agência de controle externo
que realiza auditorias em casos selecionados ou que tenham resultado em
insatisfação para os denunciantes;
–
a ouvidoria pode criticar os procedimentos policiais e até apelar
das medidas disciplinares para um juiz ou magistrado superior;
–
a agência de controle externo pode ser obrigada a investigar casos
de denúncias ou incidentes graves como assassinatos cometidos por policiais
ou mortes sob custódia da polícia. [Prenzler, 2002, p. 187]
Só este último item já revela a grande distância entre a realidade
brasileira e o que se passa na maioria das agências de controle externo da
atividade policial consideradas nos trabalhos estrangeiros. Se em grande parte
dos países em que há civilian review boards o número de cidadãos mortos pela
polícia se limita a algumas poucas ocorrências por ano, no Brasil a polícia mata
centenas de cidadãos anualmente nas grandes cidades, como pode ser
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comprovado no quadro a seguir.
Número de mortos pela polícia (fontes variadas)
Estado
BA
ES
GO
MG
RJ
RS
SP
1996
1997
1998
1999
2000
132
2001
112
2002
2003
2004
25
37
406
436
397
44
525
289
30
664
427
26
839
596
24
703
66
897
22
825
110
1195
983
915
669
Fontes: Governo do Estado da Bahia, Governo do Estado de Goiás, Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro,
Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, Secretaria de Justiça e Segurança do Rio Grande do Sul,
Secretaria de Segurança Pública de Minas Gerais.
Na verdade, as condições de funcionamento e instalação das ouvidorias
de polícia no Brasil são bastante precárias, sobretudo quando comparadas às
agências de controle externo da atividade policial estrangeiras. 4
Desde 1995, 17 ouvidorias de polícia foram criadas (SP, PA, MG, RJ, RS,
BA, PE, PR, RN, SC, MT, GO, CE, ES, MA, PB, AM, em ordem de instalação).
Trata-se de organizações de tamanho reduzido, com um mínimo de um e um
máximo de 35 funcionários, que recebem até 5 mil denúncias anuais. Em
algumas delas o ouvidor tem um mandato de dois anos, que pode ser renovado
uma vez, e em outras o ouvidor pode ser substituído a qualquer momento. As
biografias dos ouvidores evidencia uma predominância clara das carreiras
jurídicas. Com efeito, dos 29 ouvidores que já haviam assumido tal função até
julho de 2006, somente quatro não têm uma profissão diretamente ligada ao
direito: dois são sociólogos, um é psicólogo e uma outra é pastora luterana.
Vários ouvidores têm uma relação próxima com a polícia: seis são delegados,
um escrivão, um investigador e dois coronéis da polícia militar. Destacam-se
também sete promotores de justiça, de maneira geral aposentados. Dezoito
4 Para um levantamento sistemático das 17 ouvidorias de polícia instaladas no Brasil, consultar
COMPARATO, B. K. “As Ouvidorias de Polícia no Brasil: balanço de uma década e meia”. In: PINTO,
E., LYRA, R. P. (Orgs.). Modalidades de Ouvidoria Pública no Brasil. João Pessoa: Editora da UFPB,
2009; e COMPARATO, B. K. As Ouvidorias de Polícia no Brasil: controle e participação. Tese de
doutoramento em ciência política defendida no Departamento de Ciência Política da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), em 2006.
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ouvidores são também militantes de direitos humanos, e três dentre eles
destacam em suas biografias o fato de terem sido prisioneiros políticos durante
a ditadura militar. Há também uma grande participação de quadros da
administração pública, pois quinze ouvidores já foram funcionários do executivo,
além dos dez que pertencem às corporações policiais. O fato de alguns
ouvidores pertencerem às carreiras policiais testemunha contra as ouvidorias
que dirigem, pois a independência necessária com relação às corporações
policiais, que é um pressuposto do bom funcionamento de uma ouvidoria é
seriamente comprometida, pelo menos aos olhos do público. Já é difícil
convencer a população de que as ouvidorias não fazem parte da estrutura
organizacional da polícia, quando elas são administrativamente subordinadas às
secretarias de segurança pública dos estados. Com exceção da ouvidoria da
polícia de Minas Gerais, todas as outras fazem parte da estrutura administrativa
da secretaria de segurança pública. Em várias delas, além disso, a indicação do
secretário é decisiva para a escolha do ouvidor. Assim, o ouvidor é subordinado
à mesma pessoa que comanda as polícias civil e militar e orienta a política de
segurança estadual. Atualmente, a sociedade civil participa do processo de
nomeação do ouvidor da polícia em apenas cinco estados (MA, MT, PA, RN e
SP).
Uma segunda maneira de avaliar a independência de uma ouvidoria de
polícia com relação ao governo estadual consiste em verificar se há um
mandato para o ouvidor. Em caso afirmativo, o ouvidor não pode ser demitido do
seu cargo antes do final do período estipulado, o que lhe confere uma certa
liberdade para questionar as ações dos funcionários do estado em matéria de
segurança pública. Nos casos em que há um mandato mas a nomeação do
ouvidor é de livre escolha do governador, a duração do mandato não é sempre
respeitada, principalmente quando há alternância de governo após as eleições.
Nas 17 ouvidorias atualmente em atividade, apenas nove instituiram um
mandato (MA, MG, MT, PA, PR, RJ, RN, RS, SP). De acordo com a terminologia
criada por Samuel Walker, trata-se da independência estrutural. [Walker, 2001,
p. 61-67]
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É também possível considerar a independência administrativa. Como, de
uma maneira geral, as ouvidorias de polícia dependem administrativamente das
secretarias de segurança pública, há uma outra dificuldade que deve ser
considerada, pois além do prejuízo relativo à independência do ouvidor, há o
risco real de que o sigilo das informações confiadas à equipe da ouvidoria não
seja respeitado. Quando as dependências da ouvidoria ficam no prédio da
secretaria de segurança pública, não é fácil convencer a população de que uma
eventual solicitação de preservação da identidade do denunciante será
respeitada. Faz-se necessário ressaltar, também, que em vários casos, para
entrar no prédio da secretaria de segurança pública, o visitante deve
obrigatoriamente se identificar. Mesmo quando ele pede que sua denúncia seja
registrada anonimamente, sua presença nas dependências da ouvidoria naquele
dia pode muito bem ter sido registrada na entrada. No primeiro endereço da
ouvidoria de polícia de São Paulo, por exemplo, havia um guarda fardado com
uma metralhadora. Não é exatamente a recepção mais adequada para alguém
que pretende apresentar uma queixa contra a polícia. Trata-se, aqui, de um
terceiro tipo de independência, que é aquela percebida pela população.
Por todos estes motivos, é desejável que os princípios de funcionamento
das ouvidorias, independência e transparência, sejam reforçados, e a melhor
maneira de fazê-lo é tornar públicas as suas atividades. A elaboração de
relatórios periódicos e sua ampla divulgação constitui um imperativo, mas não
são todas as ouvidorias que o fazem.
Avaliação da experiência de uma ouvidoria de polícia
A dificuldade de exercer o controle da atividade policial vem da
dificuldade em avaliar satisfatoriamente o trabalho da polícia. Essa dificuldade é
devida à característica do trabalho policial que é a autonomia dos agentes
policiais. Essa arbitrariedade dos agentes policiais é justamente o que justifica a
grande necessidade do controle externo da polícia, mas é também o que
dificulta esse controle. Bem ou mal, contudo, algum controle sempre é feito, pois
como afirma Robert Reiner:
16
“A avaliação do desempenho individual da polícia não é apenas
desejável por ser a base substancial da responsabilização democrática,
mas é inevitável. De fato, está sempre ocorrendo: formalmente, quando
os chefes tomam decisões pessoais sobre recomendações, críticas,
disciplina, seleção, e promoção; e informalmente, na cultura dos próprios
policiais comuns, e na censura ou aprovação dos colegas a suas ações.
O que a experiência mostra é o caráter complexo de tais julgamentos e a
base altamente subjetiva e sistemática sobre a qual são feitos. A
exigência de prestação de contas e elaboração de relatórios pode mais
facilmente levar à manipulação dos dados do que à realização de um
trabalho oficial.” [Reiner, 2002]
Para medir a qualidade e a efetividade do controle da atividade policial, é
preciso ter um padrão de comparação. Para isso, é preciso saber com clareza o
que está ou não ao alcance de uma ouvidoria de polícia. A partir da definição do
que uma ouvidoria pode fazer, podemos ter uma idéia de que resultados a sua
instalação e o seu bom funcionamento podem trazer. Para que a experiência
das ouvidorias de polícia possa continuar e frutificar, é preciso que os
argumentos normativos a favor do controle externo que estiveram na origem da
sua criação (transparência, fiscalização, prestação de contas, adequação aos
princípios dos direitos humanos) sejam corroborados por evidências mais
concretas dos seus benefícios (diminuição da violência e dos abusos por parte
da polícia, menos crimes dos policiais, maior satisfação dos cidadãos quanto ao
desempenho da polícia). [Brereton, 2000]
A partir da maneira como foram criadas e institucionalizadas as ouvidorias
de polícia no Brasil, contudo, seria um erro pretender julgá-las e avaliá-las pelo
que elas não podem fazer:
− investigar os crimes cometidos por policiais,
− punir os policiais infratores.
Devemos, contudo, avaliar as ouvidorias pelo que está em seu poder e ao
seu alcance:
− reunir as informações e dados sobre a atuação da polícia e ouvir os
17
cidadãos,
− provocar as organizações policiais e os órgãos competentes para que
tomem providências para a solução das queixas apresentadas, e cobrar dos
mesmos respostas satisfatórias para a população,
− organizar os dados e sugerir mudanças no padrão de comportamento
da polícia, por meio de projetos de lei ou de resoluções internas das polícias,
− divulgar os dados para o público por meio de relatórios, entrevistas
coletivas, artigos na imprensa,
− incentivar e facilitar a participação popular.
Pode-se distinguir três etapas na accountability: o monitoramento, a
investigação, e a punição. Pode parecer frustrante, mas a única das três etapas
ao alcance das ouvidorias de polícia é a primeira, o monitoramento.
É legítimo perguntar-se, por esta razão, se não seria o caso de conferir
aos ouvidores o poder de realizar investigações. Quanto aos principais
interessados, alguns ouvidores são favoráveis a esta proposta, pois ela
aumentaria muito sua capacidade de identificar e sancionar os policiais
infratores e favoreceria bastante a efetividade das ouvidorias ao evitar que as
denúncias não tenham seguimento. No limite, contudo, significaria criar
ouvidorias com poder de polícia, como é o caso, aliás, na Irlanda do Norte e na
África do Sul. Outros ouvidores, contudo, são contra e argumentam que haveria
um risco muito grande de burocratizar excessivamente as ouvidorias e de
sobrecarregá-las: ter poder de investigação significa ser forçado a respeitar os
prazos e determinações legais, o que tira muito da principal vantagem de que
dispõem as ouvidorias que é a receptividade e a informalidade no contato com a
população.
Ainda no capítulo da avaliação das ouvidorias, faz-se necessário ressaltar
que o objetivo implícito na própria razão de ser das ouvidorias de polícia, que é
diminuir os abusos e crimes da polícia, é muito difícil de ser avaliado, pois não
há parâmetros de comparação, mesmo que indiretamente bons resultados
possam ocorrer.
Muitas das frustrações com relação ao funcionamento das ouvidorias de
18
polícia, e aos seus resultados pouco visíveis para a população em geral, se
devem às suas limitações institucionais. Vários denunciantes reclamam da falta
de resposta adequada por parte das ouvidorias, quando, na verdade, as
providências esperadas dependem das corregedorias e do ministério público.
Talvez, contudo, o melhor parâmetro para saber se uma ouvidoria de polícia
funciona seja verificar a reação das instituições policiais ao seu trabalho. Pois,
se uma ouvidoria desempenha minimamente o papel para o qual foi instalada –
controlar a atividade policial – ela inevitavelmente vai incomodar muita gente.
Pois sua razão de ser é cutucar, mostrar o que não funciona a contento,
identificar e levar a público as irregularidades ocorridas, e até mesmo os crimes
cometidos, no interior da polícia e que o público achou que deveria comunicar à
ouvidoria. Isto explica muito das pressões que são exercidas sobre os
ouvidores, mesmo que não sejam explícitas. Não há como evitá-las. Pode-se,
contudo, tentar amenizar o seu efeito conferindo certas garantias ao trabalho
dos ouvidores da polícia: a independência e a autonomia já discutidas aqui.
Faz-se necessário ressaltar, por fim, que além das duas características
altamente desejáveis e já mencionadas para que os ouvidores da polícia
possam desempenhar satisfatoriamente suas funções, a independência e a
autonomia, é muito importante reforçar a sua legitimidade. Uma maneira
interessante de fazê-lo é por meio de um conselho consultivo, que pode ser o
mesmo conselho da sociedade civil que elabora a lista tríplice encaminhada ao
governador. Em algumas ouvidorias de polícia, esta função é prevista pela lei,
mas é raramente utilizada.5 É uma pena, pois os conselhos poderiam
desempenhar um papel semelhante às declarações de direitos no aspecto de
conferir legitimidade e apoio às ouvidorias. A verdade é que quando os
ouvidores atingem pontos sensíveis para o poder executivo estadual e a sua
situação fica insustentável o único apoio com que as ouvidorias podem contar é
junto aos movimentos de defesa dos direitos humanos.
5 Em São Paulo, por exemplo, o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana
(CONDEPE) é o único conselho do estado composto exclusivamente por membros da sociedade civil.
Ele indica a lista tríplice para a nomeação do ouvidor e, segundo a lei que regulamenta a ouvidoria,
funciona como conselho consultivo.
19
Considerações finais
Para que a polícia seja eficiente, ela precisa conquistar a confiança e o
apoio da sociedade. Confiança e cooperação dos cidadãos constituem as bases
do policiamento bem sucedido. A confiança entre a polícia e a sociedade é
baseada no respeito mútuo e se constrói com o desenvolvimento de relações de
cooperação ao longo do tempo. Esta mesma confiança pode, contudo, ser
destruída muito rapidamente. Talvez não haja nada mais devastador para minar
uma confiança construída aos poucos ao longo do tempo do que um policial que
abusa da sua autoridade ao se engajar em atos de corrupção, comportamentos
criminosos ou irregularidades administrativas.
As irregularidades cometidas por policiais têm uma consequência
extremamente nefasta na sociedade, pois elas corroem a autoridade e a
legitimidade democrática e ameaçam a segurança dos cidadãos. Além disso,
possibilitam o crime organizado, incentivam o desperdício do dinheiro público e
resultam na desconfiança da população, na resistência diante da autoridade, e
na não cooperação com a polícia.
As expectativas das autoridades do governo, assim como dos cidadãos,
são bastante altas no que diz respeito à polícia. Estas expectativas incluem a
capacidade do chefe da polícia de descobrir, investigar e corrigir as condutas
inadequadas. Na verdade, essa expectativa é também compartilhada pelos
policiais que se orgulham da sua organização policial e acreditam que as
autoridades vão resolver as irregularidades de maneira justa e firme.
Os conceitos de democracia, direitos humanos, controle da atividade
policial e segurança estão interconectados, mesmo que o elo que os une se
revele muito tênue em certas ocasiões. O desafio aqui é conseguir avanços e
resultados positivos em todas estas frentes, senão corre-se o risco de vermos
cada vez mais a segurança ser associada a uma administração mais autoritária,
não transparente e arbitrária da polícia, enquanto que a democracia e o respeito
dos direitos se tornam sinônimo de desordem e insegurança.
A ouvidoria permite um trabalho de inteligência sobre a atividade policial e
é de grande valia para uma administração mais eficiente dos efetivos da polícia.
20
Se, de um lado, a violência institucionalizada que informalmente autoriza
os policiais a tratar de maneira mais dura e cruel os cidadãos das classes mais
baixas (os “torturáveis”, de acordo com a expressão de Paulo Sérgio Pinheiro)
só pode ser combatida por uma transformação profunda da sociedade, por outro
lado, a experiência mostra que os crimes mais graves são cometidos apenas
por uma minoria dos policiais, e que estes muitas vezes estão também
associados a crimes de corrupção e a todo tipo de irregularidades
administrativas, configurando verdadeiras redes criminosas que necessitam de
métodos de combate semelhantes aos que são empregados para debelar o
crime organizado.
Para o cidadão, a ouvidoria representa um serviço que pode ser
acessado sem grande esforço: basta comunicar a denúncia. Não há
necessidade de contratar advogados caros, não é necessário reunir provas e
evidências, e a denúncia não precisa ser comprovada. O ouvidor assume o
controle do caso e é responsável pelo seu desenvolvimento. Em alguns países,
o ouvidor tem acesso aos documentos e relatórios oficiais e às corporações
policiais, e pode até ter autorização para interrogar informalmente os policiais
relacionados com a denúncia. A desvantagem é que as recomendações do
ouvidor, pois não se trata de julgamentos, não são obrigatoriamente aplicadas,
mesmo que na maior parte dos casos elas sejam obedecidas.
A polícia é apenas uma parte das instituições do estado que administram
a justiça e garantem o respeito das leis. Daí a necessidade de coordenar as
ações da ouvidoria da polícia com a ouvidoria do sistema penitenciário, a
ouvidoria do tribunal de justiça e a ouvidoria do ministério público, mas esta
última nem existe.
Por fim, é sempre bom lembrar que a finalidade das ouvidorias de polícia
não é substituir os mecanismos de accountability internos como as
corregedorias de polícia, mas contribuir para o desenvolvimento de instituições
policiais que prestem contas à sociedade a que servem. De acordo com o que
acaba de ser exposto, as ouvidorias devem ser consideradas como fontes de
conhecimento e oportunidades para o aperfeiçoamento e a auto-correção das
21
polícias.
Mas
para
que
essa
perspectiva
possa
ser
implementada
satisfatoriamente, é necessário superar duas dificuldades. A primeira dificuldade
consiste em convencer as autoridades policiais de que a fiscalização exercida
por órgãos externos como as ouvidorias é ao mesmo tempo inevitável e
benéfica para as instituições policiais, pois as queixas dos cidadãos
representam uma fonte importante de informações relevantes do ponto de vista
do desempenho organizacional da polícia. A segunda dificuldade reside na
determinação do equilíbrio apropriado entre responsabilidades internas e
externas quanto ao tratamento das queixas. Não se trata, aqui, de decidir se as
comunicações dos cidadãos às ouvidorias devem ser desencorajadas ou
toleradas, mas de garantir que haja mecanismos adequados e recursos
suficientes para assegurar que as denúncias possam ser feitas com facilidade, e
que as informações contidas nas denúncias sejam organizadas de maneira
sistemática e devidamente tratadas. O resultado esperado deste processo
consiste em lições administrativas valiosas que podem ser aproveitadas com
sucesso para o aperfeiçoamento organizativo e prático da atividade policial.
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