NARRATIVAS DE SUJEITOS SURDOS NEGROS: A DUPLA
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NARRATIVAS DE SUJEITOS SURDOS NEGROS: A DUPLA
NARRATIVAS DE SUJEITOS SURDOS NEGROS: A DUPLA DIFERENÇA PRESENTE NO CORPO FURTADO, Rita Simone Silveira 1 Eixo Temático 16:Surdez/Deficiência Auditiva Modalidade de apresentação: Comunicação oral RESUMO: Este artigo consiste no recorte dos escritos da pesquisa em andamento, no Curso de pós-graduação em nível de mestrado, no qual investigo as narrativas de sujeitos surdos negros, onde apresento a dupla diferença presente no corpo. Dessa forma aqui estão contidas informações que revelam as primeiras interpretações que farão parte da dissertação de mestrado sobre o tema. Compõem-se de introdução teórica, aspectos da cultura surda, breve abordagem histórica do tema no Brasil, sob o título “um pouco da história dos surdos: cultura surda, língua de sinais, surdos e surdos negros”. Na continuação aborda-se também a história dos negros no Brasil, do regime escravista à contemporaneidade. Para concluir apresenta-se aspectos retirados dos achados da pesquisa, até o momento. Palavras-chave: surdos, negros, inclusão, dupla diferença. 1-INTRODUÇÃO Vivemos em uma sociedade onde é recorrente o discurso do normal, ou seja, daquilo que está dentro da norma considerada ideal, adequada. Nesta perspectiva, Compreendo que a norma é uma espécie de régua que tem o objetivo de “medir” os sujeitos a fim de definir aqueles que farão parte dela e os que serão excluídos, dando origem aos sujeitos anormais. Os sujeitos que não se enquadram nessa norma, são marginalizados, passando a fazer parte dos grupos denominados minoritários. Nestes grupos estão inseridos os negros, os deficientes físicos, os cegos, os gordos os homossexuais, os índios, os surdos e todos aqueles que possuem algo que os caracterize como diferentes Concordo com Skliar (2002) quando explica que provavelmente não exista nenhum grupo que seja minoritário, mas, que existe sim um processo de alterização, de “minorização.” Esse processo é a prática de fazer com que o outro seja pensado, produzido e inventado como minoritário. Assim, podemos 1 Pedagoga com Habilitação em Educação Infantil e Séries Iniciais e Especialista em Educação Especial pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Mestranda do Programa de PósGraduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Bolsista CAPES do Projeto Produção, Circulação e Consumo da Cultura Surda Brasileira. compreender que os grupos minoritários são produzidos nas relações de poder. Quando grupos são nomeados como minoritários, estão automaticamente sendo concebidos como os “outros” os atores coadjuvantes da história. Já no que se refere às diferenças, elas se tornam uma espécie de marca na vida dos sujeitos que as possuem, marcas estas que, na maioria das vezes, os coloca em posição de desvantagem em relação aos ditos normais, fazendo com que os diferentes sejam vistos como inferiores. Nesta perspectiva, é significativo conhecermos a origem e os conceitos dos normal e anormal. Canguilhem (2000) explica que normal é o termo utilizado a partir do século XIX para designar o protótipo escolar e o estado de saúde orgânica. O autor explica ainda que o normal é, ao mesmo tempo, a extensão e a exibição da norma. Ele enfatiza que o conceito de normal não é estático ou pacífico, mas é um conceito dinâmico e polêmico. O referido autor explica ainda que a palavra norma é uma palavra latina que pode ser definida como esquadro. Já a palavra normalis, significa perpendicular. Assim, para ele a norma é uma regra, que serve para retificar, colocar de pé, endireitar e que visa ainda unificar o diverso, eliminando as diferenças. Isso significa que são considerados anormais os sujeitos que não estão de acordo com a norma O conceito de anormal é formulado a partir do conceito de normal e o anormal é a negação lógica do normal. Cabe enfatizar que foi o anormal que originou o conceito de normal. Ser anormal significa estar fora da norma, ser “significativamente diferente” daqueles considerados normais, em função de características físicas, intelectuais ou comportamentais. A anormalidade sugere a realização de práticas de correção, as quais têm o objetivo de normalizar os sujeitos anormais. (Canguilhem, 2000) O conceito de normal teve origem na medicina e penso que isso explique porque as pessoas deficientes são, na maioria das vezes, concebidas como doentes, sendo muitas vezes, submetidas à medicalização e práticas que visam a correção das deficiências. Isso demonstra que numa perspectiva clínica, as deficiências/diferenças são compreendidas como doenças que precisam ser tratadas e, se possível, curadas e eliminadas. 2- UM POUCO DA HISTORIA DOS SURDOS: Cultura Surda, Língua de Sinais, Surdos e Surdos Negros A Cultura Surda pode ser definida como sendo os costumes, hábitos e histórias que a comunidade surda compartilha e transmite às gerações seguintes. (Furtado, 2008). É no interior destas comunidades que as identidades surdas são constituídas e fortalecidas, originando o orgulho surdo. Strobel (2008), define a Cultura Surda como sendo o jeito do sujeito surdo entender e modificar o mundo a fim de torná-lo acessível, ajustando-o a partir de suas percepções visuais. Concordo com Strobel (2008), quando ela descreve a importância da Cultura Surda para os surdos que participam das comunidades surdas, que compartilham algo, que tem em comum um conjunto de normas, valores e estilos de vida. Para estes surdos, é como se a Cultura Surda estivesse impregnada em seus corpos O compartilhamento de uma língua cultural pelo povo surdo foi proibido após o Congresso Internacional de Educadores de surdos, que ocorreu em Milão, na Itália, no ano de 1880. A partir deste momento entrou em vigor nas escolas de surdos a metodologia oralista, sendo que as crianças surdas não podiam mais participar das comunidades surdas e eram levadas pelas famílias a asilos e instituições, nas quais eram entregues em regime de internato, até que estivessem prontos para retornarem ao convívio familiar, o que ocorria na maioria das vezes, quando já eram adultos. Existe um campo de estudos que discute questões relacionadas à língua de sinais e educação de surdos, denominado Estudos Surdos. Os Estudos Surdos são considerados um campo conceitual que propõe uma mudança de paradigma, deslocando a surdez de um modelo clínico, que a concebia como deficiência e patologia, para um modelo sócio-antropológico. Os Estudos Surdos questionam as dicotomias normalidade/anormalidade, saúde/patologia, ouvinte/surdo, maioria/minoria, oralidade/gestualidade etc. (Skliar, 2005) No estereótipo dos ouvintes sobre a surdez, ela representa a falta, e não a presença de algo, nessa concepção ser surdo é sinônimo de silêncio, de vazio, significa viver isolado, sem poder ouvir música, falar ao telefone, ouvir avisos e anúncios e sem poder se comunicar com os ouvintes que estão ao seu redor. Também é recorrente a idéia de que os surdos gostam de viver em guetos, isolados, evitando o convívio com pessoas ouvintes. (Lane, 1992) No entanto, esses discursos se distanciam de outros significados da surdez e de outras experiências de ser surdo. Este fato ocorre, com praticamente todas as representações referentes aos grupos considerados minoritários, pois devido a sua suposta inferioridade, não possuem o direito de narrarem-se, ou seja, de dizer quem são e qual é sua identidade. Numa concepção sócio antropológica da surdez os surdos são entendidos não mais como anormais, mas como sujeitos que possuem uma cultura e uma língua próprias. Assim a surdez passa a ser vista como diferença, e não como deficiência. A Libras, Língua Brasileira de Sinais, foi reconhecida como a língua oficial das comunidades surdas em 24 de abril de 2002, com a regulamentação da Lei 10.436 e pelo Decreto 5.626 de 22 de dezembro de 2005. A Lei 10.436/2002 determina a inclusão de Libras como componente curricular, devendo ser inserida no currículo dos cursos de formação em nível médio e supervisor e nos cursos de fonoaudiologia nas instituições de ensino públicas e privadas. A referida lei determina também que a formação de professores de Libras nas séries finais do Ensino Fundamental, no Ensino Médio e na Educação Superior, deve ser realizada em nível superior em curso de graduação em Licenciatura Plena em Letras/Libras, em Letras/Língua Portuguesa, sendo que as pessoas surdas terão prioridades nestes cursos de formação. As línguas de sinais são consideradas línguas das comunidades surdas e que compartilham uma série de características que lhes atribui caráter específico e que as distinguem dos demais sistemas de comunicação. Elas são consideradas pela lingüística como línguas ou como um sistema lingüístico legítimo e não como um “problema do surdo” ou uma “patologia da linguagem”. (Quadros e Karnopp, 2004) A língua de sinais é uma das principais marcas da identidade do povo surdo, ela é uma das peculiaridades da Cultura Surda por ser uma forma de comunicação que capta as experiências visuais dos sujeitos surdos. É através dela que o sujeito surdo adquire e transmite o conhecimento. E tendo contato com o povo surdo terá acesso às informações e aos conhecimentos necessários para a construção de sua identidade surda. (Strobel, 2008) No que se refere aos surdos negros, Padden e Humphries (1988) fazem um relato significativo. Eles comentam que até a década de 1970, a segregação racial existente nos estados do sul dos Estados Unidos, determinava que crianças surdas brancas e negras devessem frequentar escolas separadas. Esta separação ocasionou o surgimento de uma diferenciação no uso da língua de sinais, pois nas escolas dos surdos negros começaram a surgir novos sinais, novos dialetos, embora tanto nas escolas freqüentadas por surdos brancos, como nas escolas frequentadas pelos surdos negros, a língua de sinais utilizada era a ASL. Quero chamar atenção para o fato de que este relato dos autores evidencia a presença do racismo, separando as crianças surdas brancas das crianças surdas negras, possivelmente, partindo do princípio da suposta superioridade dos brancos em relação aos negros. Cabe salientar ainda, que nem o fato de todas as crianças serem surdas, o que deveria ser motivo para a união entre elas e de terem em comum a língua de sinais, nada disso conseguiu vencer o preconceito materializado através do racismo. 2.1 Os Negros no Brasil: Do Regime Escravista à Contemporaneidade Os negros foram trazidos da África para o Brasil pelos Portugueses como escravos, para trabalharem primeiramente com a cana-de-açúcar, no plantio, colheita e trabalhos nos engenhos (século XVI e XVII), com ouro (século XVIII) e com café (século XIX). Não houve instituição mais persistente, conservadora e duradoura como a escravidão no Brasil. Nosso país foi o último país a extinguir a escravidão, após quatro séculos consecutivos, nos quais os negros passaram por inúmeros sofrimentos e geraram muitas riquezas para seus senhores. Durante este período houve um verdadeiro extermínio da raça negra, pois muitos foram os negros que perderam suas vidas durante a escravidão. Muitos negros morriam ainda na África durante o período de espera para serem colocados nos navios que os traria para o Brasil. Outros morriam durante a viagem, devido às péssimas condições em que eram trazidos, como superlotação dos navios, altas temperaturas, condições precárias de higiene, maus tratos e demais fatores que somados, caracterizavam uma condição totalmente desumana. Alguns negros, ao perceberem que estavam sendo retirados de seu país, sendo separados de suas famílias, para serem levados para um lugar distante como escravos, sendo obrigados a deixar para traz sua história, seus costumes, etc., suicidavam-se, jogando-se ao mar, ou ainda enforcando-se. Por causa disso, estes navios, passaram a ser chamados de tumbeiros. Após a abolição da escravatura, não houve nenhuma melhoria na qualidade de vida dos negros, pois eles não tinham para onde ir, não tinham emprego e muitos deles eram velhos ou tinham o corpo mutilado pelos castigos sofridos ou em função da pesada jornada de trabalho a que eram submetidos e pelas péssimas condições de segurança no trabalho, principalmente quando eram obrigados a trabalhar com máquinas, sem nenhum tipo de proteção ou treinamento prévio. E em tais trabalhos, muitos escravos tiveram dedos, mãos e até braços dissipados. Após as considerações feitas sobre as representações de surdos e negros, salientando que tanto os surdos como os negros possuem uma trajetória caracterizada pela não aceitação de sua diferença e pelo fato de serem concebidos como inferiores, meu objetivo nessa pesquisa é investigar como vivem os surdos negros na condição de sujeitos “duplamente diferentes.” Ou seja, o que busco é conhecer algumas narrativas de sujeitos que possuem essas duas marcas identitárias presentes no corpo. Assim, apresento a seguir as respostas dadas por três surdos negros à pergunta: O que significa para você ser surdo negro? Em sua opinião isso se constitui em uma “dupla diferença?” No grupo de três surdos, obtive as seguintes respostas: Surdo A: “Ser surdo negro para mim é normal. Na verdade nunca fui vítima de preconceito, mas, estou sempre atento. Nunca tive preconceito na escola por ser negro, mas, sim por ser surdo. Já vi um amigo e negro que sofreu preconceito duplo, mas eu nunca vi só sofri preconceito por ser surdo. Por que as pessoas são assim? Na verdade o preconceito é linguístico.” Surdo B: “Eu acredito sim, pois eu já vi críticas sociais, duplo preconceito porque eu sou surdo e também negro, duas deficiências diferentes. Mas eu acredito que isso tem dois significados diferentes, uma parte em relação à surdez e outra em relação à negritude, que tem significados diferentes.” Surdo C: “Pois é, eu não pensava nisso, não pensava na cor, não pensava na dupla diferença, ser surdo negro. Eu sempre ficava angustiada com as questões dos surdos, porque na escola de inclusão que eu estudava todos eram ouvintes e eu me sentia diferente em relação à surdez, em pensar que eu era surda, mas não em pensar em ser negra.” A partir das respostas desses surdos é possível perceber que dois deles (a maioria) não concebe o fato de ser surdo negro como uma “dupla diferença.” Eles afirmam ter enfrentado preconceito mais em função da surdez do que da negritude, como se o ser surdo incomodasse mais aos “outros” do que o ser negro. Cabe enfatizar o comentário feito pelo Surdo A, quando afirma que: “Na verdade o preconceito é linguístico”. Tal afirmação demonstra que o preconceito dos ouvintes em relação aos surdos ocorre principalmente pela diferença lingüística, já que grande parte dos surdos atualmente comunica-se através da Libras e não utilizando a Língua Portuguesa em sua modalidade oral. A diferença lingüística dos surdos é muitas vezes, concebida pelos ouvintes como algo estranho, como uma mímica, que insere os surdos na categoria dos anormais. É possível observar esse fato em locais públicos como ônibus, elevadores, restaurantes, etc, quando há um grupo de surdos sinalizando, conversando em Libras. Os ouvintes que estão presentes ficam olhando admirados como se estivessem assistindo um episódio exótico, como se fossem seres de outro planeta. Penso que isso pode explicar o fato da maioria dos surdos entrevistados nessa pesquisa até o momento, afirmarem que ao longo de suas vidas foram mais discriminados por serem surdos, ficando a questão da negritude em segundo plano. Já a Surda C, menciona que na escola inclusiva onde estudava ela ficava angustiada, se sentia diferente, porque todos os seus colegas eram ouvintes. Considero esse comentário muito significativo porque ele demonstra que a surda se sentia excluída em um ambiente escolar que pretendia ser inclusivo, ou seja, que se propunha a atender e a acolher todos os alunos. Durante a entrevista a referida surda relata para a pesquisadora que ficava angustiada por não conseguir entender o que acontecia ao seu redor na sala de aula, pois não compreendia o que os professores e os colegas falavam. Ela argumenta ainda que a situação que só mudou quando ela passou a frequentar uma escola de surdos. Penso que esses relatos sugerem uma profunda reflexão sobre a inclusão de surdos nas escolas regulares. O Surdo C, o único dos três apresentados nesse texto que afirma ter vivenciado preconceito em função de sua “dupla diferença,” utiliza a expressão: “duas deficiências diferentes”, penso que para demonstrar que ser surdo negro constitui-se de duas diferenças que muitas vezes incomodam, principalmente pelo fato de que cada uma dessas diferenças possui uma carga significativa de estereótipos e representações nos quais os sujeitos surdos e os sujeitos negros sejam concebidos como inferiores. Assim, compreendo, a partir da resposta desse surdo que quando essas duas diferenças estão presentes na mesma pessoa não têm como passar desapercebidas. Finalizo este texto, que é um recorte de uma pesquisa maior, sem a pretensão de ter esgotado as questões aqui discutidas, mas com o desejo de fomentar uma série de discussões e problematizações sobre a temática proposta e sobre os significados de ser “duplamente diferente” na contemporaneidade. REFERÊNCIAS CANGUILHEM, Georges. O Normal e o Patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. FURTADO, Rita Simone Silveira. Surdez e a relação pais - filhos na primeira infância. Canoas: Editora da ULBRA, 2008. KARNOPP, Lodenir Becker; QUADROS, Ronice Muller de. Língua de Sinais Brasileira: Estudos Linguísticos. Porto Alegre: Artes Médicas, 2004. KARNOPP, Lodenir Becker; KLEIN, Madalena. A Língua na Educação do Surdo. V.I Porto Alegre: Governo do Estado. Secretaria Estadual de Educação/Departamento Pedagógico/Divisão de Educação Especial, 2005. LANE, Harlan. A Máscara da Benevolência: A Comunidade Surda Amordaçada. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. LOBO, Lilia Ferreira. Os Infames da história: Pobres, escravos e deficientes no Brasil. Rio de Janeiro: Lamparina, 2008. PADDEN, Carol; HUMPHRIES, Tom. O Surdo na América: Vozes de uma cultura. London England: Harvard University Press,1988. SKLIAR, Carlos (org). A Surdez: Um olhar sobre as diferenças. 3ª. ed. Porto Alegre: Mediação, 2008. SKLIAR, Carlos. La educación de los sordos: Uma reconstrucicíon histórica, cognitive y pedagógica. Mendonça: EDIUNC, 1997. STROBEL, Karin. As Imagens do outro sobre a Cultura Surda. Florianópolis: Editora da UFSC, 2008.
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