UNIRIO Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Transcrição

UNIRIO Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
UNIRIO Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro
Caminhadas de universitários de origem popular
UNIRIO
UNIRIO
Copyright © 2009 by Universidade Federal do Rio de Janeiro / Pró-Reitoria de Extensão.
O conteúdo dos textos desta publicação é de inteira responsabilidade de seus autores.
Coordenação da Coleção: Jailson de Souza e Silva
Jorge Luiz Barbosa
Ana Inês Sousa
Organização da Coleção:
Monique Batista Carvalho
Francisco Marcelo da Silva
Dalcio Marinho Gonçalves
Aline Pacheco Santana
Programação Visual:
Núcleo de Produção Editoria da Extensão – PR-5/UFRJ
Coordenação:
Claudio Bastos
Anna Paula Felix Iannini
Thiago Maioli Azevedo
C183
Caminhadas de universitários de origem popular : UNIRIO / organizado por Ana Inês Souza,
Jorge Luiz Barbosa, Jailson de Souza e Silva. — Rio de Janeiro : Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Pró-Reitoria de Extensão, 2009.
212 p. ; il. ; 24 cm. — (Coleção Caminhadas de universitários de origem popular)
Ao alto do título: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade. Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e
as Comunidades Populares.
Parceria: Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.
ISBN: 978-85-89669-36-8
1. Estudantes universitários — Programas de desenvolvimento — Brasil. 2. Integração
universitária — Brasil. 3. Extensão universitária. 4. Comunidade e universidade — Brasil. I.
Souza, Ana Inês, org. II. Barbosa, Jorge Luiz, org. III. Silva, Jailson de Souza e, org. VI.
Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e as Comunidades Populares.
V. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. VI. Universidade Federal do Rio de
Janeiro. VII. Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.
CDD: 378.81
Ministério da Educação
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares
Organizadores
Jailson de Souza e Silva
Jorge Luiz Barbosa
Ana Inês Sousa
UNIRIO
Pró-Reitoria de Extensão - UFRJ
Rio de Janeiro - 2009
Coleção
Presidente da República
Luiz Inácio Lula da Silva
Ministério da Educação
Fernando Haddad
Ministro
Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade – SECAD
André Luiz de Figueiredo Lázaro
Autores
Adriana Cristina Araújo Souza
Alexsandro da Silva Evangelista
Ana Carolina Pereira dos Santos
Ana Margareth do Nascimento Amorim
Ana Paula da Silva Mendonça
Secretário
Angélica do Carmo Coitinho
Armênio Bello Schmidt
Antonio Celso da Silva Campello
Diretoria de Educação para a Diversidade - DEDI
Caroline de Aquino Pereira
Leonor Franco de Araújo
Emily Maviana da Trindade Santos
Coordenação Geral de Diversidade – CGD
Fabiana Santos de Paula
Fabiana Santos de Souza
Fabíola Estrela Dias
Programa Conexões de Saberes:
diálogos entre a universidade e
as comunidades populares
Jorge Luiz Barbosa
Jailson de Souza e Silva
Coordenação Geral
Diógenes Pinheiro
Coordenação Geral do Programa Conexões de Saberes/UNIRIO
Fabrice da Mota Cardoso
Felipe Jorge Rodrigues Campos
Fernanda Guimarães Felix
Francelino Conceição Lopes Cruz
Francisco de Paula Araújo
Gabriele Silva dos Santos
Janaína Silva Lucas
Julio César da Silva Oliveira
Alba Lucia Castelo Branco
Maria Elena Viana Souza
Coordenação Adjunta
Lellis Hummenigg Cremonez Taveira
Lia Evangelista dos Santos
Lívia Ceschia dos Santos Miranda
Mônica Borges Monteiro
Luciana Campos Golarte
Coordenação Assistente
Louise Storni Vasconcelos de Abreu
Luana Nascimento de Oliveira
Luiz Antonio Gomes Cristóvão
Marcelly Marques Pereira
Maria Aparecida Mesquita dos Santos
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Marília Amaral Pepicon
Melanie Pimenta Amaral
Malvina Tania Tuttman
Reitora
Milena Martins Medina
Priscila do Nascimento Pereira
Luiz Pedro San Gil Jutuca
Vice-Reitor
Priscila Maia Barcelos
Rodolpho de Morais Pereira
Rosana Nunes Dutra
Regina Guedes Moreira Guimarães
Pró-Reitora de Extensão
Rosangela Neder
Sabrina Carvalho de Almeida
Simony Costa de Oliveira
Taíssa Pereira dos Santos
Valéria Paixão de Vasconcelos Nepomuceno
Vanessa Adalgiza Pimenta de Carvalho
Vanessa Barbosa de Brito
Luciana Campos de Golarte
Mônica Borges Monteiro
Prefácio
A sociedade brasileira tem como seu maior desafio a construção de ações que permitam, sem abrir mão da democracia, o enfrentamento da secular desigualdade social e econômica que caracteriza o país. E, para isso, a educação é um elemento fundamental.
A possibilidade da educação contribuir de forma sistemática para esse processo implica uma educação de qualidade para todos, portanto, uma educação que necessita ser efetivamente democratizada, em todos os níveis de ensino, e orientada, de forma continua, pela
melhoria de sua qualidade. No atual governo, o Ministério da Educação persegue de forma
intensa e sistemática esses objetivos.
Conexões de Saberes é um dos programas do MEC que expressa de forma nítida a luta
contra a desigualdade, em particular no âmbito educacional. O Programa procura, por um
lado, estreitar os vínculos entre as instituições acadêmicas e as comunidades populares e,
por outro lado, melhorar as condições objetivas que contribuem para os estudantes universitários de origem popular permanecerem e concluírem com êxito a graduação e pós-graduação nas universidades públicas.
Criado pelo MEC em dezembro de 2004, o Programa é desenvolvido a partir da
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD-MEC) e representa a evolução e expansão, para o cenário nacional, de uma iniciativa elaborada, na
cidade do Rio de Janeiro no ano de 2002, pela Organização da Sociedade Civil de Interesse
Público Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. Na ocasião constitui-se uma Rede de
Universitários de Espaços Populares com núcleos de formação e produção de conhecimento
em várias comunidades populares da cidade. O Programa Conexões de Saberes criou,
inicialmente, uma rede de estudantes de graduação em cinco universidades federais,
distribuídas pelo país: UFF, UFMG, UFPA, UFPE e UFRJ. A partir de maio de 2005, ampliamos
o Programa para mais nove universidades federais: UFAM, UFBA, UFC, UFES, UFMS,
UFPB, UFPR, UFRGS e UnB. Em 2006, o Ministério da Educação assegurou, em todos os
estados do país, 33 universidades federais integrantes do Programa, sendo incluídas: UFAC,
UFAL, UFG, UFMA, UFMT, UFPI, UFRN, UFRR, UFRPE, UFRRJ, UFS, UFSC, UFSCar,
UFT, UNIFAP, UNIR, UNIRIO, UNIVASF e UFRB.
Através do Programa Conexões de Saberes, essas universidades passam a ter, cada uma,
ao menos 251 universitários que participam de um processo contínuo de qualificação como
pesquisadores; construindo diagnósticos em suas instituições sobre as condições pedagógicas dos estudantes de origem popular e desenvolvendo diagnósticos e ações sociais em
comunidades populares. Dessa forma, busca-se a formulação de proposições e realização de
1
A partir da liberação dos recursos 2007/2008 cada universidade federal passou a ter, cada uma, ao
menos 35 bolsistas.
práticas voltadas para a melhoria das condições de permanência dos estudantes de origem
popular na universidade pública e, também, aproximar os setores populares da instituição,
ampliando as possibilidades de encontro dos saberes destas duas instâncias sociais.
Nesse sentido, o livro que tem nas mãos, caro(a) leitor(a), é um marco dos objetivos do
Programa: a coleção “Caminhadas” chega a 33 livros publicados, com o lançamento das 19
publicações em 2009, reunindo as contribuições das universidades integrantes do Conexões de Saberes em 2006. Com essas publicações, busca-se conceder voz a esses estudantes
e ampliar sua visibilidade nas universidades públicas e em outros espaços sociais. Esses
livros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas de centenas de jovens, rapazes e moças, que
contrariaram a forte estrutura desigual que ainda impede o pleno acesso dos estudantes das
camadas mais desfavorecidas às universidades de excelência do país ou só o permite para os
cursos com menor prestígio social.
Que este livro contribua para sensibilizar, fazer pensar e estimular a luta pela construção de uma universidade pública efetivamente democrática, um sociedade brasileira mais
justa e uma humanidade cada dia mais plena.
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
Ministério da Educação
Observatório de Favelas do Rio de Janeiro
Sumário
Apresentação ...................................................................................................... 11
Parte 1: Caminhos e caminhadas
Agradecimento
Adriana Cristina Araújo Souza ......................................................................... 17
A história do nosso Brasil
Alexsandro da Silva Evangelista ....................................................................... 21
Fluxo vertical
Ana Carolina Pereira dos Santos ...................................................................... 23
Ninguém está totalmente só
Ana Margareth do Nascimento Amorim ............................................................ 25
Minha vida é assim...
Ana Paula da Silva Mendonça .......................................................................... 28
Caminhando e cantando e seguindo a canção
Angélica do Carmo Coitinho ............................................................................. 32
O início
Antonio Celso da Silva Campello ..................................................................... 36
Mulheres de fibra, de coragem e de coração
Caroline de Aquino Pereira ............................................................................... 39
Ter um bom motivo pra sonhar
Emily Maviana da Trindade Santos .................................................................. 42
Passo a passo para a universidade
Fabiana Santos de Paula ................................................................................... 45
Minha vida acadêmica em poucas palavras, porém
com muitas conturbações
Fabiana Santos de Souza ................................................................................... 49
Transformando os sonhos em realidade
Fabíola Estrela Dias ........................................................................................... 51
No meio do caminho havia uma pedra
Fabrice da Mota Cardoso .................................................................................. 56
Sonho impossível?
Felipe Jorge Rodrigues Campos ........................................................................ 60
Minha vida contada em versos
Fernanda Guimarães Felix ................................................................................. 63
Olhar Estrangeiro
Francelino Conceição Lopes Cruz .................................................................... 68
Minha percepção de mundo
Francisco de Paula Araújo ................................................................................ 72
Maravilhada
Gabriele Silva dos Santos .................................................................................. 75
Tomada de decisão
Janaína Silva Lucas ........................................................................................... 78
Meus referenciais
Julio César da Silva Oliveira ............................................................................ 80
Acreditar em si mesmo
Lellis Hummenigg Cremonez Taveira ................................................................ 85
Pelas idas e vindas
Lia Evangelista dos Santos ................................................................................ 87
De sonhos à realidade
Lívia Ceschia dos Santos Miranda .................................................................... 93
Minha caminhada, minha vida!
Louise Storni Vasconcelos de Abreu ................................................................. 97
A formação do ser contemplada a beleza do arborecer
Luana Nascimento de Oliveira ........................................................................ 101
Superação
Luiz Antonio Gomes Cristóvão ........................................................................ 104
8
Caminhadas de universitários de origem popular
Era uma vez uma linda gatita
Marcelly Marques Pereira ................................................................................ 106
Vida, minha vida
Maria Aparecida Mesquita dos Santos ........................................................... 110
Minha trajetória de vida
Marília Amaral Pepicon ................................................................................... 114
Entre quedas, lutas e desafios: o doce sabor da vitória!
Melanie Pimenta Amaral .................................................................................. 116
Minha vida
Milena Martins Medina .................................................................................... 124
Caminhadas
Priscila do Nascimento Pereira ....................................................................... 129
Zero zero
Priscila Maia Barcelos ..................................................................................... 132
Risos e lágrimas
Rodolpho de Morais Pereira ............................................................................ 135
Assim a vida foi passando
Rosana Nunes Dutra ......................................................................................... 138
A arte de resistir
Rosangela Neder ............................................................................................... 142
Eu tenho um sonho...
Sabrina Carvalho de Almeida ......................................................................... 146
Conquista
Simony Costa de Oliveira ................................................................................. 150
Metáfora da borboleta
Taíssa Pereira dos Santos ................................................................................. 153
O sonho se alcança
Valéria Paixão de Vasconcelos Nepomuceno ................................................. 156
Caminhando com motivação
Vanessa Adalgiza Pimenta de Carvalho ......................................................... 158
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
9
Minha caminhada
Vanessa Barbosa de Brito ................................................................................. 160
Lembranças da Colina
Luciana Campos de Golarte ............................................................................ 165
Do Ita do Norte para a universidade
Monica Borges Monteiro .................................................................................. 168
Parte 2: a Universidade reencontra a Escola Pública ......................... 175
Parte 3: A formação de um sujeito coletivo
O discurso do sujeito coletivo conexista ........................................................ 203
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Caminhadas de universitários de origem popular
Apresentação
Os textos que o leitor terá acesso neste livro são relatos escritos por bolsistas do
Programa Conexões de Saberes da UNIRIO, narrando suas trajetórias educacionais e
existenciais, desde o Ensino Fundamental até a Universidade. Como se sabe, a palavra
trajetória vem do Latim (trajectore) e significa, basicamente, o que atravessa ou o que está
em movimento. As histórias narradas em primeira pessoa pelos autores deste livro têm essa
característica, pois captam os sentimentos desses estudantes em um momento crucial de
suas caminhadas: a travessia turbulenta entre o Ensino Médio e o Superior, assim como a
proximidade com as responsabilidades da profissão escolhida. Nesse sentido, pode-se dizer
que esses relatos são também ritos de passagem de estudantes - autores e personagens dessas
histórias - que têm em comum a sua origem popular, isto é, são moradores de favelas,
periferias e os primeiros do seu grupo familiar a ingressar no ensino superior, oriundos de
famílias humildes, como a de boa parte do povo brasileiro.
A diferença fundamental é que eles conseguiram romper a barreira que ainda hoje
exclui estudantes pobres da universidade pública. São, portanto, relatos de indivíduos
vitoriosos, no sentido mais generoso do termo, pois são pessoas engajadas em trazer para a
universidade outros tantos jovens pobres que ainda enfrentam a difícil tarefa de buscar
ascender socialmente através da educação. Eles são também os mensageiros de uma postura
intelectual renovada, já que estão fortemente imbuídos da vontade de levar o saber acadêmico
adquirido na universidade para melhorar a vivência nas comunidades populares, como as
de sua origem, ou nas escolas públicas, berços de tantos deles.
Essa talvez seja a primeira vez em que são convidados a falar sobre suas vidas, a
partir de um olhar para o passado, em busca de um sentido para as suas caminhadas até
aqui. Os relatos corajosos que os leitores terão oportunidade de ler contam a aposta e o
compromisso desses estudantes com a sua capacidade de construir uma vida mais digna
para si mesmos, para suas famílias e para suas comunidades. Isso tem um valor extraordinário
e aponta o caminho da solidariedade como o parâmetro ético norteador da ação política
de estudantes de origem popular.
A relevância deste livro está justamente na contribuição que possa dar ao desenho de
políticas sociais consistentes para a juventude, que devem estar vinculadas à ampliação do
campo de possibilidades dos jovens de origem popular, um dos segmentos mais vulneráveis
da sociedade brasileira e, contraditoriamente, aquele que irá definir os rumos da nação mais
justa, generosa e efetivamente democrática que todos desejamos.
A chegada do Programa Conexões de Saberes à UNIRIO, em 2006, materializou um
conjunto de ações e percepções que se tinha a respeito de nossa universidade, ou seja,
algumas pesquisas já apontavam que a UNIRIO possui muitos alunos de graduação que têm
origem popular ou que são trabalhadores, tanto nos cursos diurnos e vespertinos quanto nos
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
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cursos noturnos. Do mesmo modo, políticas institucionais, como a bolsa permanência,
buscavam apoiar alunos que tinham dificuldades de se manter na universidade. No entanto,
não se tinha conhecimento de quantos eles são, quantos trabalham e no que trabalham, e
quais são as condições que enfrentam para se manter na universidade. A realização de
pesquisas qualificadas nessa direção tem sido um passo importante para subsidiar políticas
institucionais de apoio estudantil. Os dados coletados servirão de base para estudos que
dêem elementos para se conhecer melhor os alunos da instituição, permitindo, assim, políticas
mais focadas e eficientes.
A proposta do Programa Conexões de Saberes é estabelecer uma troca de
conhecimento com as comunidades populares, partindo da premissa de que não existe
um único saber, nem hierarquias entre os saberes erudito e popular, e de que a interação
e a soma de esforços é o caminho mais fértil para o desenvolvimento do campo
científico. Logo, o lugar desse projeto só poderia ser na extensão universitária, espaço
privilegiado para essas práticas. A Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários
- PROEX - fundamenta-se em um modelo político pedagógico participativo, que prima
pela busca da qualidade social. Ela é responsável pela formulação de políticas, gerência
e avaliação da Extensão e dos Assuntos Comunitários da Universidade. Apresenta-se
como um espaço de construção do conhecimento, de preservação e recriação da cultura
e de promoção do bem-estar da comunidade universitária, reafirmando o compromisso
social da UNIRIO e interligando-a com as demandas de sua comunidade e
da sociedade.
A PROEX, dessa forma, vem contribuir, junto com outras instâncias da Universidade,
para a instalação de um ambiente universitário estimulador, favorecendo o surgimento de
condições propícias para o desenvolvimento do trabalho dos profissionais que atuam na
UNIRIO, e para uma formação acadêmica crítica dos alunos, a partir do interrelacionamento dos membros da comunidade universitária. A Extensão passa a ser
entendida como processo acadêmico, definido e efetivado em função das exigências da
realidade, indispensável na formação do aluno, na qualificação do professor e no
intercâmbio com a sociedade, implicando em relações multi, inter e transdisciplinares e
interprofissionais. Por isso, a Extensão é o espaço por excelência para se iniciar um
debate amplo sobre a ampliação do acesso e a criação de condições para a permanência
qualificada de estudantes de origem popular.
O que motivou este livro foi a possibilidade de propor outra abordagem para essa
temática. A intenção aqui foi dar um rosto bem visível ao que teoricamente chamamos
de desigualdade e de diferença. Reconhecer a diferença e trabalhar com ela é um passo
essencial na criação de práticas educacionais e sociais mais modernas. O grande desafio
é não permitir que a diferença se transforme em desigualdade. Nesse sentido, os relatos
nos mostram que o acesso à universidade está longe de resolver os problemas dos
estudantes de origem popular. O fato é que sua presença ainda não suscitou ações
afirmativas capazes de garantir sua incorporação efetiva à vida acadêmica. É visível o
despreparo da universidade para recebê-los: sem "bandejões" onde possam se alimentar
a preços justos; sem bibliotecas atualizadas onde possam escapar dos textos
obrigatoriamente "xerocados" para os quais não têm dinheiro; sem alojamentos para
economizar nas passagens de ônibus, que são uma das maiores barreiras para sua
permanência etc.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Quando iniciamos a seleção para o projeto, abrimos a porta para uma dimensão que era
desconhecida mesmo por nós, profissionais acostumados a pesquisar a desigualdade dessa
realidade vinda pela própria voz desses sujeitos, jovens e adultos, homens e mulheres que
estão experimentando também um momento novo e radical nas suas trajetórias existenciais.
Os relatos aqui reunidos são o resultado dessa descoberta, que foi ao mesmo tempo individual
e coletiva, pois, ao ouvirmos eles contarem as suas dificuldades e conquistas na universidade,
nos foi possível olhar para a nossa própria instituição de forma diferente, assim como
compreender, de modo mais denso, a vivência nas comunidades populares de origem de nossos
bolsistas. Entrevistamos dezenas de estudantes de origem popular na UNIRIO, candidatos a uma
vaga no projeto, e percebemos que conhecemos muito pouco os nossos alunos. Cada um tem
uma história de luta e de esperança que não conhecemos. E por não conhecer, não nos
responsabilizamos por transformar a universidade em um lugar melhor, capaz de produzir um
conhecimento mais completo, somente possível à medida que consiga incorporar ao seu quadro
discente e docente pessoas de diversas origens sociais, econômicas e raciais.
A presença cada vez maior de universitários de origem popular é um fenômeno
relativamente novo no cenário político educacional brasileiro. Remonta ao início da década
de 1990, quando mudanças importantes tornaram o acesso à universidade uma possibilidade
real para alguns desses jovens, pois ainda hoje esse é um sonho distante para a maior parte
dos estudantes pobres. A despeito do aspecto quantitativo, os desdobramentos políticoculturais da presença desse novo ator social são importantes e relativamente pouco tratados
no debate sobre políticas institucionais para ampliar a presença de classes populares no
Ensino Superior brasileiro. A intenção principal na publicação desses relatos é ampliar o
debate sobre o acesso, a permanência qualificada e o sucesso de estudantes de origem
popular no Ensino Superior brasileiro. Tornar a universidade a cara do Brasil é talvez o
maior desafio que temos nesse momento e esse livro é um esforço modesto, mas muito
sincero, nessa direção.
A primeira parte do livro contém os memoriais escritos pelos 44 bolsistas que integraram
o Programa em 2006. Embora os relatos sejam marcados pela emoção, incorporam também
o que de melhor existe no espírito dos jovens, que é o bom humor, a vontade de usar o
gracejo como arma de crítica sobre si e sobre os outros, no que Aristóteles chamou de
"insolência polida" que caracteriza a juventude. Fizemos questão de incluir os dois relatos
das bolsistas mestrandas que compõem a equipe de coordenação, pois elas também são
estudantes de origem popular e suas trajetórias nos ajudam a dar um passo além na discussão,
abordando o que chamamos de sucesso acadêmico de alunos com esse perfil.
A segunda parte trata da ação de Extensão realizada pelos bolsistas junto ao Programa
Escola Aberta (UNESCO/MEC). O reencontro de universidade com a escola pública rompe
com uma separação histórica no modo como a estrutura de ensino tem sido pensada, e
principalmente praticada, nos últimos anos no Brasil. Aproximar, de modo progressivo e
orgânico, esses dois espaços está no centro de uma política pública de educação que
aponte para a continuidade da jornada educacional de estudantes de origem popular. E,
finalmente, na terceira parte, enfatizamos o caráter necessariamente coletivo desse
intelectual em formação. Embora as falas individuais sejam importantes por lançarem luz
a trajetórias marcantes e mostrarem estratégias pessoais e familiares relevantes, o ideal
que rege o Programa aponta para a formação de um sujeito coletivo, que aposte na utopia
e se lance no desafio de construí-la.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
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Esta publicação busca se juntar às vozes que afirmam que a universidade pode ser um
ponto de partida para a maior democratização da sociedade brasileira, a partir do momento
em que se torne cada vez mais aberta à presença de estudantes de origem popular no seu
quadro discente. Essa questão tem aparecido de modo insistente nos últimos anos e com
uma enorme carga de polêmica, sobretudo quando associada a algum tipo de ação afirmativa,
especialmente às cotas para negros, pardos e indígenas. O debate tem se polarizado em
torno de posições que são muito mais ideológicas do que analíticas. Os defensores das
cotas, entre os quais nos incluímos, tendem, muitas vezes, a tachar de racistas aqueles que
levantam qualquer objeção, por razoável que seja, a um projeto que é essencialmente
polêmico e experimental e, portanto, naturalmente sujeito a muitas críticas, como aliás
convém que seja o debate em uma sociedade democrática. Por outro lado, os que se colocam
radicalmente contrários às tentativas recentes de democratização do ensino superior se
apóiam em teses restritas de um universalismo inócuo e paralisante, que recusa o
reconhecimento da desigualdade e da diferença em nome de um igualitarismo que mantém
o status quo e que, nesse sentido, é essencialmente conservador.
Como sair desse labirinto ideológico? Tarefa árdua, que naturalmente escapa às
pretensões deste livro. Mas gostaríamos de sugerir a entrada de um personagem pouco
ouvido nessa história, que são os próprios estudantes de origem popular, que têm estado na
linha de frente desse movimento. São eles, em última análise, os sujeitos desse processo
histórico recente e, portanto, possuem também um olhar apurado sobre as desigualdades
que se reproduzem na própria universidade.
O caminho a se percorrer para a construção de uma universidade cada vez mais
democrática é longo, mas a caminhada tem sido, até então, repleta de descobertas e desafios.
Aproximar a universidade das comunidades populares reorganiza, de modo profundo, a
compreensão sobre a produção do conhecimento, associando intrinsecamente mérito
acadêmico à relevância social. Buscamos, assim, repartir com a sociedade esse saber para
que caiba a nós, cidadãos plenos, a decisão sobre os rumos a tomar na caminhada por essa
geografia mítica que chamamos nação.
Diógenes Pinheiro
Alba Lúcia Castelo Branco
Maria Elena Viana Souza
Coordenadores do Programa Conexões de Saberes na UNIRIO
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Caminhadas de universitários de origem popular
Parte 1 CAMINHOS E CAMINHADAS
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Memoriais dos bolsistas do Programa
Conexões de Saberes UNIRIO
Agradecimento
Adriana Cristina Araújo Souza*
Onde tudo começou
Vou contar um pouquinho da história da minha concepção, meus pais eram muito
jovens e uma gravidez naquele momento não era esperada. Não que eles não me
quisessem, mas estavam com medo. E, nesse momento, minha avó materna, madrinha
e amiga, com muita sabedoria, contornou a situação e hoje estou aqui escrevendo
minha caminhada.
A primeira infância
Logo que nasci fui morar com a vovó Ju, meu avô, tios e minha bisavó. Aos cinco anos,
devido ao falecimento da minha bisavó, o que acarretou grande fragilidade na avó Ju, fui
morar com meus pais. Apesar de tudo, eu estava feliz porque teria meus pais perto de mim.
Infelizmente, meus pais brigavam muito e eu tive que ir morar com meus avôs paternos. Lá,
não encontrei o mesmo carinho, atenção que recebia com vovó Ju. Porém não devo esquecer
que foi nesse momento que iniciou minha história com a escola pública. Até o presente
momento eu tinha estudado em redes particulares. No entanto, quando fui morar com meus
avôs paternos, eles julgaram ser melhor para mim o estudo em uma instituição pública, já
que todos os meus tios e primos tinham estudado em escolas públicas.
Quando completaram dois anos em que eu estava com meus avôs paternos, nasceu
minha irmã do meio. Ela nasceu prematura e precisei de muitos cuidados, por isso foi
morar conosco após o término da licença maternidade da minha mãe. A distância entre
minha avó e eu crescia.
Pré-adolescência
Depois de inúmeras discussões, consegui voltar a morar com minha avó materna, o
que para mim era muito bom. Durante os três anos em que morei com meus avôs paternos,
estudei em colégio público, mas, diferente do que eles acreditavam, a educação que recebi
era de péssima qualidade e, por isso, não tive coragem de voltar a estudar na rede particular.
Assim, no retorno ao lar de vó Ju, voltei a estudar em instituição pública.
Nesse período, meus pais se separaram, o que tornou minha relação mais próxima com
minha mãe e muito mais afastada com meu pai.
*
Graduanda em Enfermagem pela UNIRO.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
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Nessa fase, minha mãe ficou desempregada e foi morar com meus avós maternos
porque as dívidas eram muitas e o dinheiro tinha acabado. Enquanto ela não arrumava
outro serviço, resolveu investir na área de festas e cestas de café da manhã, e como eu era
muito responsável passei a fazer diversos cursos sobre esse tipo de atividade para auxiliá-la.
Adolescência
Eu era uma menina tímida, educada e voltava a ter confiança em minha capacidade,
principalmente porque tinha sido envolvida pelo regime de estudo contínuo dos meus tios,
que estavam se preparando para a pós-graduação e o vestibular, respectivamente. Contrariando
minhas professoras e colegas de classe, que não acreditavam na minha capacidade, pela
primeira vez prestei prova para o concurso do Ensino Médio (Colégio Militar, CEFET, Pedro
II, CEFETEC, FAETEC), fui muito feliz na classificação de quase todos eles, porém não passei
para o Colégio Militar, o que me deixou muito chateada por desapontar minha mãe. Com tudo
isso, resolvi me matricular no Colégio Pedro II (Ensino Médio) e CEFET (Ensino Técnico). O
CEFET fazia parte das instituições de ensino em que meus familiares maternos tinham estudado,
o que me deixou feliz em dar continuidade. As duas instituições eram tradicionais e me
proporcionaram boa educação. Diferente das diversas reclamações existentes sobre a educação
pública municipal e estadual, nas instituições federais esses problemas são ínfimos, pois eu
tinha professores qualificados, aula de informática, biblioteca, boa alimentação e etc.
Nessa época, minha mãe se casou novamente e, por problemas pessoais, saí da casa da
minha avó fui morar com minha mãe e meu padrasto.
Durante o Ensino Médio, descobri um mundo novo, repleto de informações que nem
imaginava existir - estudava no centro da cidade do Rio de Janeiro e em São Cristóvão, o
que me permitiu conhecer novos lugares e ganhar certa independência. Eu morava em
Guadalupe, um bairro pequeno no município do Rio de Janeiro, sem atrativos. O pouco que
eu conhecia do município era através dos passeios que fazia com meus pais nos finais de
semana, mas não eram muitos. Logo é de se imaginar a diferença que senti em ter que me
deslocar para tão longe para poder estudar e o enorme conhecimento sobre rotas que adquiri.
Nesse período, minha mãe e meu padrasto se separaram e foi difícil retornar ao trabalho
informal. Ah, eu me lembro como hoje e com lágrimas nos olhos as madrugadas trabalhadas
para confeccionar doces, salgados e mini-bolos, que fazíamos para vender. Eu estudava
longe de casa, tinha de levantar muito cedo, às vezes nem dormia para não chegar atrasada
na escola. Nas mãos, levava bolsas abarrotadas de produtos para vender no recreio. Eu só
tenho a agradecer a todos das escolas que muito me ajudaram não só na compra, pois eles
eram clientes fiéis, mas por me permitirem vender meus produtos, mesmo sendo proibido
em todas as duas instituições de ensino. Foram momentos difíceis, mas eu superei.
Para minha tristeza, minha mãe voltou com meu padrasto e, dessa história, nasceu meu
irmão caçula e minha mãe parou de trabalhar para se dedicar à família.
No último ano do Ensino Médio, eu devia prestar o vestibular, mas não tinha decidido
o curso. Como esperado, me inscrevi para algumas instituições federais (UFRJ, UNIRIO,
UFF). Tinha passado para UFRJ, porém, com o passar do tempo vi que tinha escolhido o
curso errado e abandonei a faculdade. Como a vontade de possuir um ensino superior era
maior, retomei os estudos. Sendo que nesse momento eu fazia parte da lista de funcionários
da empresa onde estagiava e, como trabalhava muito, o tempo para estudar foi limitando-se
e cada dia eu chegava em casa mais cansada. Passei a imaginar que não conseguiria o acesso
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Caminhadas de universitários de origem popular
no curso de Enfermagem, mas, para minha surpresa, fui contemplada nas três universidades
mencionadas anteriormente. Sendo assim, conversei com minha família e optei pela UNIRIO,
apesar de ser a mais distante da minha residência.
Na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
No início das aulas, o entusiasmo era visível e muita era a força de vontade ao ponto de me
desdobrar em duas para manter o emprego e dar conta dos afazeres na faculdade, porém, com o
passar do tempo, o cansaço foi vencendo e se tornou inevitável a escolha. O que fazer? Largar a
curso ou o emprego? Foi uma escolha muito difícil, mas, no início do segundo período, optei
por pedir demissão e manter o curso. Nesse momento, inicio a luta pela permanência na Faculdade.
Como pagar as despesas? Apesar de não trabalhar, o pouco que meu padrasto dava a minha mãe
para algumas despesas de casa, ela me dava para que eu pudesse permanecer na UNIRIO. Aos
trancos e barrancos, passaram-se 18 meses até que começaria minha verdadeira luta pela
permanência; num acidente de trabalho, meu padrasto veio a falecer e a estrutura familiar e
financeira se destruturou por completo. Morando de aluguel, com um filho de três anos e
comigo na faculdade sem poder trabalhar, minha mãe entrou em desespero.
É nesses momentos que conhecemos os amigos, e a família se torna
importantíssima. Minha avó materna doou um lugar para morarmos, além de propor
ficar com meu irmão enquanto minha mãe procurava emprego. Nessa fase das nossas
vidas, não poderíamos perder tempo escolhendo emprego porque as contas não parariam
de chegar e as dívidas aumentariam. Minha mãe, guerreira como sempre, aceitou o
trabalho de cozinheira. Zelosa e preocupada, não deixou que eu largasse a faculdade,
ela e minha avó materna faziam de tudo para me ajudar.
Por me sentir muito mal e por achar que não tinha o direito de deixar minha mãe
se sacrificar sozinha, todos os dias depois da faculdade, passei a ir para a pensão onde
ela trabalhava e ajudá-la na confecção de salgados, doces e bolos, como eu já tinha
feito antes. Foi muito duro lembrar de tudo que tínhamos passado no final da minha
adolescência e ver que teríamos que passar por isso de novo.
Noites de sono mal dormidas, excesso de cansaço nas aulas, baixo rendimento... Foi
assim todo o quinto período, até que duas coisas novas aconteceram na minha vida. A primeira
foi quando, ao saber da seleção para o Programa Conexões de Saberes, não pensei duas vezes,
me inscrevi e tive a sorte e o auxilio de Deus, e fui uma das selecionadas para bolsista, pelos
coordenadores do Programa, o que para mim era um sinal de esperança. Pois alteraria o meu
rendimento dentro da faculdade. O segundo, foi meu casamento, que possibilitou o retorno
para onde morávamos e a ajuda financeira proporcionada pelo meu esposo nas despesas da
casa ajudando a minha mãe. Aos poucos, minha vida foi retornando ao eixo.
Conexões de Saberes
No Programa Conexões de Saberes, encontrei pares, indivíduos com histórias de
lutas de altos e baixos como a minha. Nas aulas, aprendi a ver com outro olhar as
desigualdades, preconceitos e descriminações existentes na sociedade e a acreditar na
necessidade da divulgação maciça dos direitos humanos e é essa a temática por mim
trabalhada na Escola Aberta, na cidade de Queimados, onde realizo oficinas com crianças
em fase escolar, de origem popular, com o objetivo de proporcionar um futuro menos
desigual e mais digno.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
19
Hoje
Hoje, sou uma mulher que sei muito bem o que quero e luto por isso e me orgulho de
todas as barreiras que transpus e por ter, através dessa história de vida, me tornado uma
guerreira como minha avó e minha mãe. Não posso esquecer de agradecer a Deus, a minha
mãe e minha avó materna, a meu marido, aos meus familiares e a todos que, de alguma
forma, fizeram parte da minha vida e colaboraram para eu me tornar o que sou hoje.
20
Caminhadas de universitários de origem popular
A história do nosso Brasil
Alexsandro da Silva Evangelista *
A minha caminhada começa quando meu pai, o senhor José Batista, saiu do Maranhão
e minha mãe, dona Antônia da Silva, saiu do Rio Grande do Norte, os dois vieram para o Rio
de Janeiro atrás do sonho de uma vida melhor.
Como a maioria dos nordestinos faz no Sudeste, trabalharam duro, aproveitando
todas as oportunidades para construírem uma vida digna. Foram morar em uma cidade
dormitório - Belford Roxo - com uma infra-estrutura muito precária, mas era a opção que
os seus salários permitiam. Aos poucos, foram melhorando sua condição de vida, porém
não conseguiram se livrar de certas limitações.
Seu Zé Batista e dona Antônia se conheceram e começaram uma relação, tiveram dois
meninos e formaram mais uma família de camada popular. Como pais, tinham o objetivo de,
através do estudo, dar maiores oportunidades de ascensão social aos filhos, para que não
tivessem que fazer os mesmos sacrifícios que eles.
Com muito esforço, colocaram seus filhos em uma escola considerada a melhor do seu
bairro, porém ainda não era a escola que ofereceria o melhor preparo, eu e meu irmão ainda
enfrentamos algumas dificuldades em disputas com jovens com melhores oportunidades.
Meu irmão, Hugo, passou para uma universidade particular, na cidade de próxima a
nossa casa. Meus pais, muito orgulhosos, fizeram de tudo para conseguir pagar e dar todo o
material necessário para que ele tivesse uma boa formação.
Além de buscarem melhorar a vida dos filhos, meus pais pensaram também nos
sobrinhos, ajudando como podiam aqueles que tinham garra e vontade de mudar.
Conseguiram auxiliar na formação de dois sobrinhos; um deles, Emerson, se tornou uma
grande influência na minha vida, principalmente no incentivo para entrar em uma
universidade pública. Como meu primo tinha um bom emprego, que conseguiu depois de
ter ser formado em Farmácia na Universidade Federal do Maranhão, pagou um pré-vestibular
"de ponta" para minha preparação para o vestibular.
A minha aprovação em uma universidade pública foi uma grande realização pessoal
dos meus pais, pois, na comunidade em que vivemos, passar para uma instituição pública
era só para os que tinham "grana" e os meus pais conseguiram, depois de terem começado
suas vidas do zero.
Novamente, meus pais precisam "ralar" muito para que nada falte na minha formação
e muitas vezes se sacrificam para que eu não sofra como eles na minha vida.
*
Graduando em Enfermagem pela UNIRIO.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
21
Meus pais ficaram muito preocupados, quando escolhi uma profissão pelo simples
prazer de ajudar alguém, que era melhor do que a grana que iria ganhar, pois eles sabem que
hoje no mundo não se pensa assim. Muitas vezes eles tentaram conversar comigo e falar que
na vida é preciso ter cuidado, pois tentar mudar muita coisa não dá muito certo.
Mas eu sempre falei para eles que se um dia eu for apenas mais um não iria honrar toda
história vivida por eles, que estou na universidade para criar idéias, um senso crítico sobre
a realidade da nossa sociedade e não apenas ser mais um que vai se formar, receber o
diploma e entrar no mercado de trabalho, que a cada dia sacrifica cada vez mais a vida das
pessoas, visando apenas o lucro e uma sociedade calada para que uma pequena elite fique
cada vez mais rica.
Às vezes, eles pensam que estou fugindo da minha formação, pois, para eles e para
grande parte da sociedade em que vivemos, Enfermagem não tem nada a ver com política.
Na própria universidade, estudantes, professores e técnicos falam que política é uma coisa
chata. Mas como isso vai mudar se a cada dia que passa piora o modo de fazer política em
nosso país? Onde todos valorizam o individual antes do coletivo, em que o verdadeiro
conceito de sociedade não existe e sim um falso conceito liberal, que não garante, à maior
parte da população, o mínimo de dignidade.
Mais uma vez, meus pais ficam receosos quando eu entro em um programa que fala
sobre mudança da sociedade, Conexões de Saberes, e não das técnicas e dos cuidados em
Enfermagem. Cheguei várias vezes feliz e outras triste, pois o Programa era um sonho que
não era vivido por todos que fazem parte dele, me levando muitas vezes a pensar em desistir
e muitas outras a pensar em continuar.
Mas, como se não bastasse, arrumei uma namorada que pensa parecido comigo.
Minha mãe sempre fala que sonhamos demais, mas sente o quanto nos gostamos e
acreditamos que nossas idéias não são apenas sonhos, mas um ideal de sociedade.
Meus pais simbolizam o nosso país, sabem que vão sofrer e muito com as minhas
idéias de mudança, pois tenho a mesma teimosia que eles tiveram quando decidiram sair de
suas terras natais para tentar uma vida digna no Sudeste. Não sei se eles têm orgulho de mim,
mas sei que sabem que um dia poderão bater no peito e falar que valeu a pena o sacrifício
por esse moleque atrevido.
Como em todo livro, não devemos deixar de agradecer o uso deste pequeno espaço
para mostrar o carinho e a gratidão a meus pais, que, muitas vezes, mesmo com desconfianças,
me apoiaram, sempre aceitando as minhas decisões de vida. Eu sempre falo que, quando
receber meu diploma, 70% é deles, se não fosse a força deles, talvez não conseguisse.
Obrigado, vocês são a minha FORÇA.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Fluxo vertical
Ana Carolina Pereira dos Santos *
Minha vida, assim como a vida de outros tantos, tem sido ascensional em relação aos
degraus de mim mesma. Minha participação no Programa Conexões de Saberes me dirigiu
à consciência da enorme importância de meu ingresso no ensino superior em uma instituição
pública, pois até então eu encarava esse fato como sendo uma simples obrigação minha, o
retorno aos esforços de meus pais. O Programa mostrou-me a importância de eu estar na
universidade pública.
Refletindo sobre a minha vida estudantil, orgulho-me, sobretudo, de meus pais, que
sempre cuidaram para que as três guias que me moveram - educação, cultura e arte - sempre
estivessem presentes na minha vida. Ainda criança, lembro de meus pais freqüentemente
me levarem aos museus espalhados pelo Rio de Janeiro, como se previssem meu futuro
acadêmico. Além disso, o mundo dos livros foi algo que fez minha infância ser mais
doce que o comum. Minha mãe sempre lia para mim histórias infantis e outras, que na
época eu nem entendia o que queriam dizer, mas na adolescência revelaram-se em
Fernando Pessoa e Clarisse Lispector, os favoritos de minha mãe, que me foram passados
como herança.
Nessa época, na infância, a situação financeira era muito mais fácil, mas quando
conclui o ensino fundamental tudo se desconfigurou, meu pai perdeu o emprego e passou a
trabalhar como motorista de transporte alternativo; fui transferida de uma das melhores
escolas particulares para uma "escolinha" mais barata e só concluí o curso de Inglês que
fazia porque ganhei uma bolsa de estudos. Ainda tive de abrir mão de uma sólida paixão, a
dança, que praticava desde os cinco anos de idade, para muitos, isso era o mais efêmero, no
entanto, até hoje sinto falta da dança. Com a impossibilidade de dançar, enterrei-me na
escola municipal de música de Nilópolis, onde encontrei uma nova paixão no violão clássico
e, com isso, vivi belas experiências dando aulas de apoio musical para idosos.
No ano do vestibular, nossa situação financeira estava ainda pior, não pude sequer
comprar as apostilas do terceiro ano, estudei por anotações que fazia durante as aulas,
também não fiz cursinho pré-vestibular.
Fiz prova para UERJ-Geografia; UFF-Letras e, finalmente, UNIRIO-Museologia. Passei
nas três, mas escolhi a UNIRIO porque Museologia era, de fato, o curso que eu queria.
Quando passei, foi uma emoção como acertar na loteria, no entanto, os comentários familiares
sobre a escolha que fiz, questionando a serventia do curso e o mercado de trabalho, me
*
Graduanda em Museologia pela UNIRIO.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
23
fizeram achar meu feito banal, e não conseguia mais enxergá-lo como um sucesso. Mas,
acima disso, estavam meus pais, sobretudo minha supermãe, todos estão sempre ao meu
lado, dando força e acreditando em mim.
Confesso temer decepcionar meus pais e meu irmão, mais sei que assim como as
dificuldades financeiras, das quais ainda estamos nos recuperando, qualquer outra
adversidade servirá para que eu dê mais valor ao que tenho. Ao contrário do que
acontece em muitas famílias com problemas, nós ficamos mais unidos e eu aprendi a
dar valor às mínimas coisas, já não sou mais a menininha mimada e orgulhosa que se
envergonhava do trabalho do pai.
O que mais quero é jamais deixar de me emocionar com os assuntos museológicos e
brevemente usá-los para dar ao meu irmão as oportunidades que meus pais me deram e não
estão conseguindo dar a ele. Agradeço a Deus pelas dificuldades impostas, pois elas me
transformaram em uma pessoa de verdade.
24
Caminhadas de universitários de origem popular
Ninguém está totalmente só
Ana Margareth do Nascimento Amorim *
Nenhum trabalho, de qualquer natureza,
é um ato isolado envolvendo um
único homem.
Ulisses Capozzoli.
Sou filha da terra, dessa amada terra do Brasil. Tenho um verdadeiro amor por essa
terra; por isso nasci nela com muita satisfação. Minha vida começou quando fui concebida
na praia da cidade de Aracaju, no estado de Sergipe, por um casal de adolescentes sem juízo!
Romântico, né?!
Nasci na casa de meus avós paternos, que, diante da imaturidade dos meus jovens pais,
me adotaram de "papel passado" e tudo. Assim, da condição de primeira neta passei a ser a
filha caçula, a oitava de cinco filhos e duas filhas do casal. Fui muito querida, mimada e
amada por todos eles. Tanto que, aos sete anos, minha irmã Maria, que é minha madrinha de
batismo e, também, quem escolheu meu nome, pediu à minha mãe para tomar conta de mim
e me colocar de vez na escola. Isso porque papai e mamãe estavam se separando e brigavam
pela venda da casa em Aracaju, e eu no meio da briga não parava na escola. Meus pais
vieram para o Rio de Janeiro com a família na promessa de uma vida melhor. Após algum
tempo, não deu certo e papai resolveu voltar para nossa terra, mas mamãe preferiu ficar com
os filhos nessa cidade, meus irmãos já estavam grandinhos.
Quando fui morar com minha madrinha, ela já estava casada e com dois filhos, mas,
mesmo assim, quis me ajudar, matriculou-me na escola, responsabilizou-se pelo meu sustento
e acompanhou-me nos estudos. Tive dificuldades para aprender, mas ela teve muita paciência
e, mais ainda, revelou-me a história do meu nascimento, que é uma verdadeira confusão,
irmão que é pai, pais que são avós, irmãos que são tios. Para mim, não faz a menor diferença,
porque meu pai e minha mãe são os que me criaram, pois o que conta é o coração, esses são
os meus verdadeiros pais.
Graças à minha madrinha, eu gosto de estudar, fiquei em sua companhia até os onze
anos, quando terminei o primeiro ciclo do Ensino Fundamental. Outra fase da minha vida
foi quando minha irmã Mirabel, vendo a situação difícil que minha madrinha estava passando
com o meu padrinho desempregado, falou com minha mãe se podia ficar comigo. Então,
passei a tomar conta de sua casa e, em contrapartida, ganhava os materiais escolares, roupas,
*
Graduanda em Biblioteconomia pela UNIRIO.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
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calçados, passeios, além do sustento. Tive o aprendizado da vida com desenvoltura, aprendi
a andar sozinha na cidade do Rio de Janeiro e tive garra para conquistar meus sonhos. Que
não eram poucos.
Agradeço muito a todas essas pessoas: minha mãe Maria Eulina, meu pai José Eleutério
(em memória), minha madrinha Maria N. Ferreira, meu padrinho Luiz Ferreira e minha irmã
Mirabel, que foram responsáveis pela formação do meu caráter. Acredito que sem estas
pessoas - tão queridas - eu não estaria na universidade pública federal.
A leitura esteve presente na minha vida, pois, mesmo sem acesso, por curiosidade
pegava os livros de enciclopédias e folheava sem saber ler. Quando aprendi, lia tudo o que
aparecia, geralmente os mesmos livros que antes folheava e depois os relia. Meu primeiro
livro foi A Bolsa Amarela, de Lígia Bojunga, que ganhei quando estava cursando a 5ª série.
Depois disso, tive uma colega que lia os romances da coleção Bianca, Sabrina e Julia, que
me emprestava quando acabava de ler. Nós disputávamos quem lia mais rápido. Um fato
importante é que minha mãe, quando ia à casa de minhas irmãs, contava várias histórias e eu
adorava, me apaixonei pela leitura.
A trajetória profissional começou aos dezesseis anos. Minhas irmãs não queriam que
eu trabalhasse em casa de família, de certa forma incentivaram para que eu continuasse o
estudo e, mesmo com muita dificuldade para cursar o Ensino Médio, tive que trabalhar para
comprar meus livros e materiais escolares, trabalhava de dia e estudava de noite. Concluí o
curso de Técnico de Contabilidade, aos vinte anos, na rede pública. Tinha planos de voltar
para Aracaju e morar com minha mãe. Duas semanas antes de viajar, com passagem comprada
apenas de ida, conheci um rapaz que mudou meus planos. Cheguei a viajar e ficar um mês
na minha cidade natal, só que o cupido já tinha acertado a flecha do amor.
Voltei para o Rio de Janeiro e, depois de muitas tentativas, consegui uma vaga na Biblioteca
Manuel Bandeira, da Universidade Castelo Branco. Assim trabalhava e continuei morando com
a minha irmã Mirabel até o dia do meu casamento. Nesse meio tempo, prestei vestibular para o
curso de Ciências Econômicas da Universidade Estácio de Sá, cursei com bolsa, só não deu para
terminar por motivos financeiros. Estava casada quando tranquei a matrícula e em seguida
engravidei. Não desisti da idéia de cursar uma faculdade, só dessa vez meu objetivo era uma
universidade pública, não queria depender de bolsa e não poder fazer estágio.
Para retornar aos estudos universitários, precisei fazer um planejamento para ingressar
na faculdade junto com o crescimento do meu "filhote". Assim, procurei cursar inglês,
informática e o pré-vestibular. Só não deu para fazer o pré-vestibular, por motivo de "grana"
e por meu filho ser pequeno, já que não podia deixá-lo muito tempo com minha sogra, pois
ela já tomava conta dele para eu trabalhar.
Meu filho precisou de ajuda na escola, na sua fase de alfabetização, pois apresentou
dificuldades na aprendizagem, principalmente ao ler. Esse foi um tempo em que precisei
ficar exclusivamente dedicada a ele, até alcançar a 1ª série. Então, montei um esquema para
estimulá-lo a ler. Contava histórias a toda instante, principalmente antes de dormir, criei
várias atividades com letrinhas, palavras e textos.
Como não podia pagar e não dispunha de tempo livre para fazer um pré-vestibular,
comecei a estudar uma hora por dia, no horário de meu almoço, lia livros de história,
fazia pesquisas, lia jornais e via na TV no último horário da noite e ficava atenta aos
assuntos do momento.
Quando passei no vestibular para Biblioteconomia, na Universidade Federal do Estado
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Caminhadas de universitários de origem popular
do Rio de Janeiro, foi a maior alegria, uma grande emoção, foi inacreditável.
Organizei a minha vida doméstica, trabalho como auxiliar de biblioteca na Fundação
Souza Marques, mãe de um menino de oito anos, esposa, voluntária da Obra Social Antonio
de Aquino e, aos trinta e quatro anos, estudante universitária.
É muito difícil se manter na universidade, principalmente quando começamos a fazer
o estágio. A bolsa-auxílio é curta e é difícil dar conta de trabalhos, provas, principalmente
como mãe, esposa e ainda fazendo trabalho voluntário. Sorte que posso contar com o apoio
do meu esposo, Alexandre, da minha sogra, Jandira, e do sogro, Aristeu; sem a ajuda deles
não conseguiria me manter na universidade. Faço todas essas atividades colocando
prioridades. Tenho muito a agradecer a essas pessoas nessa fase da minha vida.
Uma boa oportunidade de permanência na universidade é o Programa Conexões de
Saberes, e, ainda, a realização de um sonho pessoal, que é colocar em prática o estímulo à
leitura. Foi o que me chamou atenção para o Programa: leitura. A prática foi além das
espectativas, contar histórias, mostrar a leitura de mundo e aprender junto sobre os direitos
humanos. Como cresci com o trabalho no Programa Escola Aberta e na formação do Conexões
de Saberes! Só sei de uma coisa: quero ser bibliotecária com compromisso social. Espero
usar como ferramenta as atividades de leituração e cidadania e o que consegui com meu
"filhote", Alehandro, que é a minha razão de viver, o despertar pela leitura e o seu progresso
intelectual e social, quero fazer o mesmo por outras crianças.
Quero fazer parte do crescimento do Brasil e, para mim, o melhor caminho é a educação.
Deus é Paz, é Vida, é Luz,
e é simplesmente...AMOR. Muita Paz!
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
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Minha vida é assim...
Ana Paula da Silva Mendonça *
A família
Minha mãe é o sexto fruto de um casamento que durou muitos anos.
Todos sempre dizem que ela era, e é ainda, a filha mais protegida da família. Quando
conheceu meu pai, aos quinze anos, ambos moravam em uma comunidade popular do
Rio de Janeiro.
Meu pai não completou o Ensino Fundamental e minha mãe, que já estava terminando
os estudos e fazendo um curso de contabilidade, teve que adiar seus planos, por conta de
uma gravidez não planejada. Apesar de todas as dificuldades, eles conseguiram montar uma
casinha e foram morar juntos. No entanto, eles contam que iam se casar no civil no dia 22 de
dezembro de 1984, mas isso não foi possível, pois eu, com pressa de vir ao mundo, nasci
justamente naquele dia.
Quando fiz seis anos de idade, a cegonha resolveu visitar meus pais novamente e nos
presenteou com a vinda de minha irmã, Ana Carolina. Para mim, não foi muito agradável
saber que teria que dividir toda a atenção da família com ela, mas fui me acostumando aos
poucos com a idéia, ou melhor, com o fato.
Minha infância foi cercada de muito amor, carinho e amizades. Éramos muito felizes,
pois 90% da minha família também viviam naquela comunidade. Meus primos e eu nos
divertíamos muito correndo, brincando pelas ruas daquele lugar, de velotrol, patins,
bicicletas. Tudo o que tínhamos e precisávamos estava ali.
Adolescência
Um mês depois de ter feito doze anos, meus pais decidiram sair da comunidade. Fiquei
super frustrada, pois não significava apenas mudar de casa, mas sim mudar de costumes e
hábitos. Tivemos muitos problemas e passamos por muitas dificuldades, minha mãe, depois
de anos parada, teve de voltar a trabalhar. Meu papel na família nesse período era estudar,
arrumar a casa e tomar conta da minha irmã.
Eu não gostava da nova casa, ela era pequena e não podíamos fazer bagunça
para não atrapalhar os moradores da casa de baixo. Isso durou um ano e três
meses, até que meu pai conseguiu comprar uma casa através do financiamento da
Caixa Econômica.
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Graduanda em Pedagogia pela UNIRIO.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Quando os meus amigos ficaram sabendo que eu ia morar em Belford Roxo, me zoaram
muito e fiquei com mais raiva do que antes. Mudamos e senti muita falta da escola, dos
amigos e dos primos, porque até então, apesar de ter saído da comunidade, não precisei
mudar de escola e continuei perto dos familiares.
Em Belford Roxo, tudo era longe. Senti-me sozinha e foi muito difícil fazer amizades.
Eu mesma ignorava as pessoas por não querer estar ali.
Os estudos
A minha vida toda estudei em escolas públicas e passei por todos os "apertos" que
estudantes oriundos desse tipo de instituição passam. Mas lembro com muitas saudades,
das amizades, do carinho e do respeito que conquistei nesses espaços por onde passei.
Penso que fazer parte dessa história de tantas lutas tem alguma razão de ser.
A primeira escola em que estudei - Escola Municipal Emmanuel Pereira Filho - foi
muito especial, pois, além de ter aprendido a arte de ler e escrever, a maioria dos alunos, pelo
menos da turma da qual eu pertencia, morava na mesma comunidade que eu. Fazíamos
praticamente tudo juntos, encontrávamos-nos em um local para ir à escola, para voltarmos,
para ir à explicadora e não posso esquecer das horas de brincadeiras.
No período das séries iniciais, as professoras também tiveram sua importância como
tantas outras que me deram aula. Entretanto, algumas marcaram mais a minha vida do que
outras. Lamento apenas pelas marcas negativas deixadas por professoras que faziam questão
de mostrar seu desprezo por alunos oriundos de comunidades populares.
Nas séries seguintes, passei ainda por duas escolas e as únicas surpresas que tive foram
com relação ao número maior de matérias para estudar e foi aí que percebi que meu futuro
estava em minhas mãos e de mais ninguém.
O pré-vestibular e o vestibular
Com toda aquela pressão que as escolas colocam sobre seus alunos do último ano do Ensino
Médio, não podia dar em outra coisa. Eu e meus amigos ficamos muito entusiasmados com as
inscrições que se abriram para o vestibular 2003. Só que, diferente dos meus colegas que desistiram
na primeira barreira que encontraram, eu fui até o final. Pedi isenção taxa de inscrição a todas as
universidades do Rio de Janeiro e meu pedido foi negado em apenas duas: UFF e UNIRIO.
Conversando com minha mãe, a solução que encontramos para persistir com meus
sonhos foi apelar para o meu padrinho. Conseguimos apenas a metade do dinheiro para
efetuar inscrição em uma das universidades em que fui recusada. Optei em me inscrever para
o vestibular da UNIRIO. Foi tudo em cima da hora, minha mãe não sabia, e nem eu, que seria
necessário fazer o pagamento em um banco, pensávamos que era só ir até a universidade
que já estaria tudo certo.
Efetuamos o pagamento no último dia, faltando minutos para o banco fechar, minha
mãe, que correu atrás de tudo, já estava perdendo as esperanças. Mas tudo se acertou e nos
vimos com outro problema nas mãos. Como eu iria me preparar para o vestibular se não
tinha algumas matérias na escola em que estudava? Cursar um pré-vestibular pago estava
fora de cogitação. Então conversei, busquei informação, até que uma amiga disse que
conhecia uma pessoa que estava matriculada em um curso pré-vestibular comunitário.
Resolvi conhecê-lo. O nome era CECIS (Centro de Estudos pela Cidadania e Inclusão
Social) e ficava em Belford Roxo mesmo, mas em um lugar onde "Judas perdeu as botas".
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
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Tive uma surpresa e uma desconfiança, pois o curso custava apenas R$ 5,00. Eram 52
pessoas matriculadas e a sala parecia um ovo, mesmo assim resolvi ficar para ver no que
daria. As pessoas foram sumindo, sumindo, até que ficamos com um grupo de 16 pessoas.
Um belo dia, o proprietário do lugar onde funcionava o curso resolveu pedir um
aumento e tivemos que procurar outro espaço para continuarmos com o pré-vestibular. E,
nessa mudança, oito componentes do grupo ficaram pelo caminho.
Continuamos nosso percurso de estudos, que para mim era de segunda a segunda, pois
prestei vestibular quando ainda estava no último ano e no pré-vestibular eu tinha que
marcar presença nos sábados, domingos e feriados, de 7 horas da manhã às 7 horas da noite.
O fato é que no final tive que fazer minhas opções, algo que eu não havia pensado.
Cismei com Psicologia, mas a RURAL e a UNIRIO não tinham esse curso. Então, minhas
opções foram: UERJ/Psicologia, UFRJ/Psicologia, RURAL/Ciências Biológicas,
UNIRIO/Pedagogia.
A universidade
Passei no vestibular para o segundo semestre de 2003, para o curso de Pedagogia da
UNIRIO. Não sabia direito o que se estudava nesse curso e me senti um peixe fora d'água.
Mas, mesmo assim, no início tudo parecia lindo, maravilhoso, perfeito, até que os professores
começaram a falar palavras estranhas e pedir textos para serem lidos em menos de uma
semana. Vi-me desesperada, nunca ninguém havia dito tantos nomes teóricos.
O fato é que aos poucos fui me acostumando com o ritmo frenético da universidade e
comecei a entender o que um professor do pré-vestibular queria dizer quando falava que o
difícil não era passar para uma universidade, mas sim manter-se nela.
Nos primeiros períodos, corri atrás do grêmio estudantil do colégio onde estudei da 7ª
ao 3ª ano do Ensino Médio, com o intuito de arrumar uma carteirinha e assim economizar
pelos menos duas, das quatro passagens que teria que pagar e, também, para comprar os
textos utilizados nas disciplinas.
As coisas tomaram um rumo diferente quando apareceu o RioCard e, mais uma vez, a
vida me ensinou que sempre tem um jeito. Quando as coisas apertavam, escolhia um dia ou
dois da semana para faltar e, como sortuda que sou, os amigos, mais uma vez, me ajudaram
com passagens, textos, explicações de algumas matérias, entre outras coisas.
Hoje, no Programa Conexões de Saberes, tenho a oportunidade de discutir temas de
meu interesse e, principalmente, trocar experiências ou até mesmo doar o conhecimento
adquirido nesses anos de minha vida para comunidades onde o Conexões atua.
Experiência no Escola Aberta
Ler é um direito de cada cidadão, não é um dever. É alimento do
espírito. Igualzinho à comida. Todo mundo precisa, todo mundo
deve ter à sua disposição - de boa qualidade, variada, em
quantidades que saciem a fome.
Ana Maria Machado
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Caminhadas de universitários de origem popular
Atuar em uma escola da comunidade onde moro foi muito especial. Entretanto, não
posso negar que, mesmo assim, houve resistência por parte da coordenação de uma das
escolas. Ficar sem a assinatura do coordenador no fim do dia foi só um dos problemas,
chegar na escola e não encontrar público foi uma constante, mas apesar dos pesares fui
persistente e compareci a todos os encontros marcados e estou muito satisfeita com os
resultados alcançados.
Ser da Pedagogia também facilitou a execução das tarefas, mas preciso ressaltar que
nunca havia tido uma turma só minha. Atuei no Programa Escola Aberta aplicando a oficina
de Leituração e é com muita satisfação que agradeço a oportunidade de participar do
Conexões de Saberes juntamente com o Escola Aberta.
Depois de todo o percurso nas escolas, percebo que foi positiva a nossa participação
nesta parceria, todos nós demonstramos que estávamos lá realmente para trocar experiências,
para conhecer a realidade daquelas pessoas e, assim, quem sabe, transformá-la.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
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Caminhando e cantando e seguindo a canção
Angélica do Carmo Coitinho*
Passei a ser gerada fora da placenta, aos sete meses de vida, na barriga de minha mãe.
Caso ela levantasse algum alfinete eu poderia morrer. Bom, ela não levantou nenhuma
pena e aqui estou até hoje. Minha mãe disse que chorou muito quando eu nasci, como
nunca havia chorado.
Com dois anos de idade, ganhei uma mochila, para "tristeza" de minha mãe. Todos os
dias, ela acordava meu irmão para ir à escola e, como tinha que levá-lo e não podia me
deixar sozinha em casa, me levava junto. Todos os dias, ela falava: "Vamos para a escola!"
Eu ficava toda animada e, quando chegava lá, não podia entrar, já que ainda não tinha
idade. Por causa disso, fui a responsável por um ano de sofrimento para minha mãe. Como
queria muito ir à escola, eu chorava, dizia que queria entrar e perguntava a ela todos os dias
quando poderia ir à escola.
Felizmente, o longo ano acabou e fui à escola. Não lembro do meu primeiro dia de
aula, mas devo ter ficado muito feliz. Sempre tirei ótimas notas, oscilava entre A e B, nunca
passava disso. Também depois de ter tido tanta vontade de entrar na escola. Nessa época eu
queria ser professora.
Quando estava na quarta série, meus pais viram o anúncio de uma prova para tentar
uma bolsa em um ótimo colégio. Resultado: primeira ida ao Maracanã para fazer uma
prova. Essa, porém, não seria a última. Passei! Fui classificada em uma boa colocação e
consegui uma bolsa parcial. Tudo mudou. Bairro novo, colégio novo e pessoas novas. Logo
no primeiro ano nesse novo colégio consegui notas muito boas e até ganhei certificados de
aluna destaque em algumas matérias.
Minha vida praticamente se resumia a estudar, pois tinha prova toda semana e aos
sábados tinha curso de Inglês. Sempre amei este idioma, desde o momento em que comecei
a ter aulas na escola tinha vontade de fazer um curso, também queria saber o significado das
músicas que tanto gostava. Entrei em um curso durante a quarta série, mas logo depois tive
que sair para que meu pai pudesse pagar o colégio novo. Fiquei muito triste de ter saído,
mas como quem espera sempre alcança, dois anos depois voltei a fazer outro curso de Inglês
mais em conta.
Na oitava série, meu pai decidiu me tirar dessa escola. O que eu não queria. Ele
resolveu que eu tinha que fazer prova para todos os colégios técnicos estaduais e federais.
Hoje entendo que foi para meu bem. Na época, entretanto, achava que ele estava me causando
*
Graduanda em História pela UNIRIO.
32
Caminhadas de universitários de origem popular
um mal. Então, não queria saber de estudar para as provas que viriam nem para as da
escola. Mais idas ao Maracanã para fazer provas que são muito concorridas e eu não dava
importância a elas.
A única coisa que achava legal e que até então não tinha pensado tão a fundo era o
fato de ter que pensar e decidir qual curso técnico eu faria. Desde aquela época, tinha
inclinação para a área de Humanas. Escolhi Turismo dentre as opções que havia, por fazer
curso de Inglês, por amar falar essa língua e pela grande vontade de viajar.
Fiz as provas para os colégios técnicos e não passei em nenhuma, como era de se
esperar, pois não estudei; e ainda fiquei em prova final no colégio pela primeira vez na
minha vida e tive que sair da escola. Meu pai se esforçou para me ajudar, mas eu não fiz o
mesmo, não me ajudei e não me esforcei.
Foi a primeira grande decepção da minha vida. Ouvia muitas coisas ruins sobre o
ensino da escola pública. Fui estudar perto de casa em um colégio estadual e, para aumentar
minha angústia, quando fui para a escola, ela estava em greve, fiquei um tempo sem estudar.
No primeiro dia de aula, não foi tão ruim, exceto pela falta de professores, reencontrei
algumas pessoas com quem tinha estudado até a quarta série e que não via há bastante
tempo. Passei a conhecer uma nova realidade, a do bairro em que morava, que até então não
passava pela minha cabeça, já que havia estudado fora dele uma boa parte do tempo.
As pessoas eram legais, passei a ser uma pessoa bem mais desinibida e mais
comunicativa, mais simpática também. Pela primeira vez na vida, parei de ficar só estudando.
Quase não estudava, pois todas as matérias que eram dadas eu já havia aprendido, fiquei
totalmente desmotivada para estudar para qualquer prova. Nessa época, fazia aula de dança
e um esporte em um centro esportivo.
Foi nesse colégio que conheci uma pessoa maravilhosa, meu então namorado, o
Leonardo. Ele me ensinou muita coisa, me ajudou a amadurecer muito.
Superadas as crises com o ensino público, que é um tanto quanto deficitário, iria
continuar o próximo ano na mesma escola. Estava feliz, já tinha feito muitas amizades,
havia passado para o segundo ano e ficaria todos os dias perto do meu namorado. Porém, na
segunda semana de aula, fui expulsa do colégio por simplesmente falar a verdade. Não! Não
foi na época da Ditadura Militar, foi em 2004, bastante tempo depois. Sofri muito, fiquei
uma semana sem estudar, com meus pais lutando pra me encaixar em outro colégio e ao
mesmo tempo brigando comigo. Voltei para o bairro em que estudava antes e para outro
colégio estadual, mas neste eu tinha vontade de estudar. Como nem tudo acontece na hora
em que queremos, tive que ser expulsa para poder ir para essa escola. As aulas no outro
colégio já haviam começado, logo no primeiro dia também não tinha aula, pelo menos não
na hora em que havia chegado. Encontrei pessoas com quem já havia estudado (no colégio
em que tinha conseguido bolsa). Foi ótimo! Descobri outras pessoas muito especiais.
Nos anos anteriores, uma amiga um pouco mais velha já estava tentando vestibular e
eu fiquei pensando nessa coisa de faculdade. Não tinha pensado muito nisso até então,
desde a época em que tentei prova para os colégios técnicos. Comprei revistas sobre
vestibular, fazia vários testes vocacionais, mas nada combinava com o que eu mais ou
menos desejava. Tinha desistido um pouco de Turismo, já não me atraía tanto.
No final desse mesmo ano, abri a lista telefônica e comecei a ligar para vários cursos
pré-vestibulares. Em dois deles, haveria prova para tentar uma bolsa. Em um deles, a prova
era composta por questões de Ensino Médio. Estava no segundo ano ainda, mas praticamente
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
33
nada daquilo eu havia estudado, dessa vez não por minha vontade, mas porque o colégio
nunca havia dado aquelas matérias. Fiz a prova assustada. Consegui uma bolsa de 10% e a
mensalidade ficaria quase R$400,00. Para resumir: impossível.
Mas ainda havia esperança, no outro pré-vestibular a prova era com questões de
lógica. Passei e com uma bolsa de 60%, grande diferença em relação ao outro. Tive medo de
meu pai não conseguir pagar, mas ele sempre me deu muito apoio para estudar e se esforçou
muito para me proporcionar as melhores oportunidades.
Fazia o terceiro ano, na parte da manhã, em um bairro e o pré-vestibular, na parte da tarde,
em outro. O ano todo foi uma correria. Acordava super cansada, ficava horas no ponto esperando
por um ônibus que raramente parava para estudante da rede pública, quase sempre chegava
atrasada na escola por causa disso, saía meia hora ou quinze minutos mais cedo do fim da aula,
pegava ônibus para ir ao pré-vestibular, comia sempre o mesmo salgado de R$ 1,00 (almoço,
nem pensar), ia embora para casa e estudava as matérias que estava aprendendo pela primeira
vez. Todos os dias a mesma rotina.
Em cada parte do dia, parecia que eu era uma pessoa completamente diferente. Na
escola, eu continuava não querendo saber de estudar. Formamos um grupo de sete amigas
inseparáveis. Só queria saber de ir à escola para não receber muita falta e curtir com as
amigas. Foi o ano em que mais me diverti na escola. Não assistia à maioria das aulas, íamos
para o pátio para sair da sala um pouco e acabávamos ficando ali conversando, conversando...
ih, o sinal... aprontei bastante, sem ser expulsa dessa vez. Até quando tínhamos que ficar na
sala parecia que estávamos no pátio. Mesmo assim, tirava ótimas notas. Já no pré-vestibular,
sentava sempre na segunda fileira, sem exceção. Não conversava, só quando o professor não
estava explicando ou eu não estava fazendo algum exercício. Enfim, eu era uma pessoa
totalmente diferente, irreconhecível. Ainda tinha sábado, ir para o curso de Inglês, não tinha
tempo para estudar, minha última nota (me formaria no meio do ano) não foi tão boa quanto
as outras. Estudava até no domingo em casa, meu namorado foi quem sofreu, mas sempre
soube me compreender e apoiar. Para mim, tudo era novo, não havia nada ali que eu houvesse
aprendido, pelo menos não daquela maneira. Prestava atenção em cada detalhe.
Mas a coisa mais importante eu ainda não havia feito, que era decidir por uma carreira.
Vi um filme em que uma advogada defendia tão bem seu cliente, que fiquei emocionada e
decidi, momentaneamente, fazer Direito. Mas ainda assim estava em dúvida entre Direito e
Psicologia, havia lido um livro daquela minha amiga que me "apresentou" os pré-vestibulares
e fiquei fascinada com a forma com que o psicólogo trabalha. Conversando com o professor
de História do pré-vestibular sobre minha dúvida, ele me contou pelo o que passa quem é
advogado e outras coisas.
Bom, desisti de fazer Direito e optei por Psicologia, que bom. Dessa vez meu pai não
me deu o menor apoio, dizia que eu não ia ganhar dinheiro, que eu teria que abrir um
consultório e tantas outras coisas.
Lá pelo meio do ano comecei a pensar sobre a segunda opção que poderia indicar em
uma universidade e em outras que não tinham psicologia. Como eu estava maravilhada e
muito empolgada com as aulas desse meu professor de História e amava essa matéria, resolvi
colocar História como opção nas outras.
Perto do fim do ano, os estudos ficaram mais intensos, comecei a ter aula até aos
domingos. Não tinha mais vida social, só estudava. Nessa época, pensei até em desistir, mas
quando quero uma coisa, sou determinada e vou até o fim para conseguir.
34
Caminhadas de universitários de origem popular
Quando vieram as provas, em outubro, tive a certeza de que era História o que eu
realmente queria fazer, pensava na aula que eu daria, em várias coisas. Não me via mais
como psicóloga. Porém as inscrições já haviam sido feitas. Não dava mais tempo.
Inscrevi-me em quatro universidades, havia cinco no total. Em três para História e em
uma para Psicologia, só em uma, graças à minha deficiência em entender Biologia.
O ano se passou, chegou 2006 e a expectativa pelos resultados. Saiu a lista da primeira
universidade (UFRJ1) em janeiro, para Psicologia não havia passado. Da segunda saiu logo
depois (UERJ2), para História não havia passado. Em fevereiro, saiu a da terceira (UNIRIO3),
não passei para História de novo. Várias reclassificações e nada. Meu mundo havia desabado,
ou melhor, eu havia caído do mundo. Tanto esforço e nada. Não sabia o que fazer. Havia
conseguido uma bolsa integral pelo ENEM4, em uma universidade particular, mas sonhava
estudar em universidade pública, não queria sentir que meu esforço tinha sido em vão.
Faltava uma universidade, o resultado sairia somente em março, mas o tempo de
espera valeu, eu finalmente PASSEI e para História. Na universidade em que queria (UFRRJ5).
Fiz a matrícula naquele lugar que eu achava o mais lindo do mundo.
Um dia, lembrei que iria sair o edital de vagas da UNIRIO e resolvi ver, sem nem
acreditar que iria passar. Quando vi, meu nome estava lá. Resolvi fazer a matrícula e depois
decidir para qual iria.
Nunca tinha ido naquele bairro antes, um lugar lindo, parecia um outro mundo. Mas
mesmo assim tinha muitas dúvidas, as aulas iriam começar no dia seguinte, enquanto as da
outra só em junho. Pesquisei bastante e, por uma série de fatores, decidi pela UNIRIO.
No primeiro dia de aula, estava literalmente perdida, não achava minha sala e ninguém
sabia informar o prédio em que teria aula. Depois de muito tempo, achei a sala, com a aula
já iniciada. Descobri que as aulas haviam começado já havia duas ou três semanas. Continuei
um pouco perdida nas matérias, mas me esforcei bastante e acabei me achando. Depois de
algum tempinho fiz amizade com pessoas maravilhosas, o contrário do que eu pensava.
Achava que só encontraria meninas riquinhas e que só falassem de roupa de grife. O que é
ruim ainda é o fato de ter professores que não estão nem um pouco interessados em passar os
conteúdos de uma maneira que todos entendam. Aí o jeito é você ignorar e tentar dar a volta
por cima, sabendo que o esforço vai ser seu sempre, poucos são os professores que irão se
esforçar pelos alunos e que estarão preocupados em realmente ensinar em uma linguagem
que todos entendam.
Agora estou aqui, sempre contando com o apoio da família, do meu namorado e das
amigas para passar por tudo. Dificuldade em entender certas matérias? Palavras (em latim,
pode acreditar) e expressões que não entendo (tem professor falando grego literalmente)? A
grande quantidade de tempo que preciso para estudar? A longa (4 horas no total) e cansativa
viagem casa-faculdade entre outras coisas? Sim, tudo existe. Mas, com persistência e vontade
de melhorar, tudo isso se torna pequeno. Agora dou valor a tudo que consegui com meu
esforço e com a ajuda dos meus pais, procurando me empenhar ao máximo. E acabei indo
para a profissão que foi a primeira que pensei: ser professora, com um item a mais, historiadora.
1
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
3
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
4
Exame Nacional do Ensino Médio
5
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
2
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
35
O início
Antônio Celso da Silva Campello *
Começar a falar de mim é mesmo muito difícil; como ser imparcial, já que não sou
um defunto autor como Brás Cubas e memórias sempre trazem à tona coisas que podem
não agradar a todos?
Minha história vai ser contada do jeito usual, ou seja, pelo inicio. Nasci numa tarde
do dia vinte e três de outubro de 1983, em Brasília. Na época, meus pais moravam lá.
Minha mãe trabalhava como empregada na casa de um diplomata e meu pai era funcionário
publico. Não sei como ocorreu o encontro deles, mas, felizmente, principalmente para
mim, acabou acontecendo.
A arte de ser nômade
Morávamos em Brasília, na Asa Sul, mas o apartamento não era nosso, pertencia à
empresa que meu pai trabalhava. Na época do meu nascimento, meu pai contava com 54
anos e estava para se aposentar; dentro de um ano tivemos que nos mudar e fomos para
Goiânia, onde morávamos numa casa alugada. E foi nessa cidade que tive meu primeiro
encontro com a ESCOLA. Lembro como se fosse hoje o primeiro dia de aula, eu não queria
entrar e minha mãe tinha que entrar na sala comigo e, depois, sem que eu percebesse, ia
embora. Esse ritual durou mais ou menos uma semana e passei, talvez, dois anos nessa
escola. Lembro que alguém falou que existia uma bruxa no banheiro, era uma forma de
impedir que fossemos lá a toda hora. Esse foi meu primeiro trauma na escola.
Após algum tempo, saímos de Goiânia, pois o aluguel ficou muito caro e estávamos
muito longe da família do meu pai, que morava no Rio de Janeiro. Então, colocamos
novamente tudo num caminhão e fomos para Cabo Frio. Eu tinha, nessa época, quatro
para cinco anos.
Uma nova estação
Em Cabo Frio, me tornei mais íntimo com a rotina da escola. Comecei a estudar em
uma escola chamada Santa Rita. Entrei lá no jardim I e, durante um tempo, tudo ia às mil
maravilhas, nenhuma dificuldade, então, quando estava na primeira série do ensino
fundamental, começaram a ocorrer problemas financeiros em casa. Aí, sabe como é: aperta
daqui, aperta de lá e acabamos ficando sem dinheiro para pagar a escola. Como sempre,
Deus atento a tudo e, por um "acaso" do destino, minha mãe e a dona (e também diretora da
*
Graduando em Enfermagem pela UNIRIO.
36
Caminhadas de universitários de origem popular
escola) eram devotas da mesma santa e acabaram ficando amigas. Resumo da ópera: estudei
nessa escola da primeira até a oitava série do Ensino Fundamental, sem pagar nada. A
amizade das duas não foi o único motivo, pois, além disso, nessa época era muito bom
aluno, o que também ajudou na manutenção da minha bolsa.
A quarta parada
Como já dizia o poetinha, "tristeza não tem fim, felicidade sim". Nessa época, Cabo
Frio começou a crescer e o custo de vida estava ficando muito caro, inclusive o valor do
aluguel da casa onde morávamos. Então, como sempre, o destino deu um jeitinho: uma tia
que morava no Rio de Janeiro nos convidou para morarmos com ela. Desse modo, vim morar
no centro do Rio e, no começo, foi uma adaptação difícil, mas logo tudo se resolveu.
Como não íamos pagar aluguel, o primeiro pensamento foi que eu iria estudar num
colégio particular, mas o valor era muito alto e minha tia falou que iria ajudar no
pagamento das mensalidades.
As novas mudanças
A mudança dessa vez ocorreu sem que eu precisasse sair do lugar. A tia que tanto me
ajudava pouco tempo depois veio a falecer devido a um câncer no fígado, e como era ela
quem ajudava com o pagamento da escola minha mãe teve que pedir uma bolsa de estudo
para que eu continuasse estudando lá. Pelas minhas notas e também por sorte consegui a
bolsa. Nessa escola, fiz grandes amizades, que duram até hoje e são muito importantes na
minha caminhada.
Em setembro do mesmo ano, aconteceu algo que mudou minha vida radicalmente. Até
esse ponto, acho que ainda não tinha conhecido mesmo o que eram as dificuldades, tudo
havia ficado um pouco "distante", por mais que estivesse próximo. Meu pai sofreu um AVC
isquêmico que paralisou todo o seu lado direito. De uma hora para outra, tive que deixar de ser
um adolescente sem grandes responsabilidades e me tornar um "adulto" que tinha que assumir
a casa, não financeiramente, pois, como disse, meu pai já era aposentado e recebia sua pensão
do Instituto Nacional de Seguro Social, mas sim do lado emocional e de cuidados com ele.
Nós três passamos uma época muito difícil, pois os gastos com medicação eram muito
altos e pouco sobrava para as despesas da casa. Lembro que comíamos frango todos os dias
de todas as formas, pois o quilo do frango estava custando um real e era o que a nossa nova
condição permitia arcar. Essa fase durou mais ou menos um ano, até que começamos a
arranjar os medicamentos em hospitais e postos de saúde.
Um passo rumo ao sonho
Em 2001, me formei no Ensino Médio e fiz o vestibular. Não fui classificado para
nenhuma universidade e, nesse momento, pensei o que iria fazer na universidade, que era
um sonho e parecia tão distante. Sabia que com o ensino que tive na escola seria muito
difícil a aprovação na carreira que havia escolhido.
Então, me lembrei de um conselho que minha mãe havia me dado há muito tempo
atrás: "que deveria pedir as coisas, o máximo que eu ganharia seria um não". Seguindo o que
ela havia me dito, fui até um pré-vestibular e perguntei como poderia conseguir uma bolsa,
nem me lembro quantas vezes tive que ir lá e ficar perturbando o coordenador do curso, mas
no final valeu a pena e ganhei uma bolsa de 70% . Estudei dois meses pagando esse valor e
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
37
fui ao coordenador e falei que teria que sair, pois mesmo com essa bolsa estava com muitas
dificuldades para pagar o curso. Depois de muita conversa e de "encher a paciência", consegui
uma bolsa integral e continuei estudando no curso.
A realização do sonho
O sonho de entrar na universidade sempre me acompanhou, mas tinha noção que,
se não fizesse uma universidade pública, esse sonho não se realizaria. Tentei o vestibular
por três anos e, no concurso de 2005, passei. Lembro como se fosse hoje o dia em que
fiquei sabendo do resultado: meus olhos ficaram marejados e, às vezes, uma lágrima ou
outra escapava.
Nesses dois anos em que estou na UNIRIO, vejo que toda a luta que tive valeu
cada segundo. Adoro estar nesse lugar, pois aqui percebo que meus horizontes aumentam
dia a dia e que meus sonhos se tornam cada vez maiores. Agradeço a todas as pessoas
que fizeram e fazem parte dessa caminhada que está muito longe do fim. Só espero que
um dia todos os jovens desse nosso Brasil possam ter essa oportunidade que agarro com
todas as minhas forças.
38
Caminhadas de universitários de origem popular
Mulheres de fibra, de coragem e de coração
Caroline de Aquino Pereira *
Infância diferenciada
Foi uma gravidez surpresa para mamãe Glória, mas muito amada desde o primeiro
momento e por meu pai Nilson, também. Quando nasci, no dia 10 de novembro de 1984, já
tinha uma irmã nove anos mais velha, filha do primeiro casamento de mamãe aos 15 anos.
Desde bebê, me acostumei ao sangue cigano da família, sempre de mudança. No meu primeiro
ano de vida, a família se dividia entre o Rio de Janeiro e Búzios, por causa do trabalho do
papai, que era caseiro.
Logo nos mudamos para Búzios e de lá partimos para Angra dos Reis, pois o patrão
de meu pai tinha comprado uma ilha e precisava de alguém para cuidar do lugar. Era
lindo, paradisíaco com praias desertas e mata virgem, mas por outro lado a casa onde
ficamos era um "barracão", não tinha luz, água encanada, esgoto, móveis, e o banheiro,
procuramos e não encontramos, também não tinha. Nessa época, me sentia a verdadeira
filha do Tarzan e da Jane, brincadeiras à parte, essa é a verdade. Foram muitas as vezes em
que encontrávamos cobras na porta de casa, aranhas nos cobertores, gambás tentando
comer o almoço... nessa época, já éramos cinco, eu, mamãe, papai, minha irmã e minha
preguiça (podem acreditar eu tive uma preguiça selvagem). Mas o sonho só durou um
ano, meus pais se separaram quando eu só tinha três anos e voltei para o Rio de Janeiro,
com minha mãe e minha irmã.
Como não tínhamos casa própria, fomos morar na casa da minha bisavó na comunidade
Parque União no Complexo da Maré. Mamãe, como sempre, fez o que podia e o que não
podia para erguer uma casa sozinha e criar as filhas. E, nas férias, passava com meu pai, que
ainda morava na ilha, já habitada e com lindas mansões. Lá era uma espécie de paraíso, com
tudo que uma criança sonha e as crianças de lá tinham tudo que queriam, diferente dos meus
amiguinhos do Complexo da Maré, que mal tinham brinquedos.
Eram duas realidades distintas que aprendi a conviver e respeitar da mesma forma, sem
tratamento especial para os que tinham mais bens materiais do que eu. Na ilha, eu era uma
"atração" para as meninas ricas, pois sabia pescar, mergulhar, pegar caranguejos com as
mãos, guiar barco, não tinha medo de nenhum bicho e nem de nada. E acredito que ter
vivido com pessoas tão diferentes e de classes sociais completamente distantes me enriqueceu
como pessoa, me fez ver que o dinheiro e o poder não fazem de ninguém melhor ou pior.
* Graduanda em Enfermagem pela UNIRIO.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
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E foi nessa comunidade que vivi até os 10 anos, convivendo com pessoas maravilhosas
e também com a criminalidade. Para quem não conhece uma favela, é um lugar feliz, alegre,
com pessoas que te estendem as duas mãos quando você precisa, mas, por outro lado, há a
realidade do medo e do silêncio que tive que conviver. Crescer com essa realidade difícil me
fez amadurecer rápido demais, me fez ver que a vida tem apenas dois caminhos, o caminho
árduo, no qual você vive um dia após o outro na esperança que a vida melhore e correndo
atrás para por comida na mesa, e o caminho rápido, onde você consegue tudo o que quer,
mas não sabe por quanto tempo poderá aproveitar o que conseguiu. Perdi amigos por causa
do crime, uns morreram por "azar", estavam no lugar errado e com pessoas erradas, outros se
perderam de mim porque, ao escolher o caminho fácil, a vida nos distanciou.
Passando de adolescente para adulta
Fugindo da violência, fomos morar em outra comunidade chamada Tubiacanga, na
Ilha do Governador, por mais dois anos até mamãe se casar novamente. Dessa vez, fui morar
num bairro popular e mais urbano, onde moro até hoje, mas, para não perder o costume, só
nesse bairro nos mudamos cinco vezes, o sangue cigano fala mais alto.
No início, estava tudo indo bem, mas três anos depois meu padrasto descobriu que
estava com câncer e, ao mesmo tempo, mamãe teve que fazer uma cirurgia. Foi um tempo
difícil, estávamos sem dinheiro e os dois sem poder trabalhar, e eu tive que ajudar no que
podia. Como meu padrasto tinha uma lanchonete, fui ajudar, servia, fazia contas, fazia
pizzas, salgadinhos e tudo o que fosse necessário.
Em 2006, o ano se complicou um pouco, estávamos com pouco dinheiro, mamãe
desempregada e, para complicar, acabou se separando do marido. Como não tínhamos para
onde ir, a prima dela, a quem chamo de madrinha Neuma, nos ajudou e cedeu um apartamento
para morarmos. E, além dela, outras pessoas nos apoiaram e continuam nos ajudando, como
minhas avós, tios e namorado. Uns meses depois, mamãe conseguiu um emprego e as coisas
aos poucos foram se ajeitando.
Conhecimento é tudo
Minha vida escolar começou aos três aninhos, numa escola na Maré, na qual estudei
até a 1ª série do Ensino Fundamental, mas essa escola não era reconhecida pelo MEC.
Quando fui para a 2ª série, mamãe resolveu me matricular em uma escola de qualidade e
reconhecida e foi o período escolar mais difícil da minha vida, pois não tinha base
educacional, por ter vindo de uma escola de baixa qualidade. Sofri muito preconceito nas
escolas por ser a "favelada", a "pobrezinha", e isso me segregou nas salas de aula, pois
ninguém queria ser amiga de uma moradora da favela. Tem muita gente que acredita que em
comunidade popular só mora gente ruim e de má índole. Por um tempo, isso me afetou
demais, tinha envergonha da minha realidade e comecei a agir com violência física quando
me atingiam verbalmente. Mas, conversando com uma professora que jamais esquecerei, a
tia Maria, entendi que isso não resolveria nada e que deveria ser o contrário, eu deveria
mostrar com meu desempenho escolar que era superior a todas as adversidades.
No Ensino Médio, foi tudo diferente, estava mais amadurecida e sabendo o que queria.
Por causa das minhas notas nos colégios anteriores, consegui uma bolsa em uma rede de
colégios. Como me destaquei nas notas, fui convidada pelo colégio a estudar no centro de
excelência pedagógica, onde fiquei até acabar o Ensino Médio.
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Caminhadas de universitários de origem popular
No ano de vestibular, não pude fazer as provas, pois não tive como pagar e não
consegui isenção, porque estudava em colégio particular. Sofri muito com isso, mas não
desisti. Acreditei, segui em frente e, no ano seguinte, consegui um cursinho de técnica de
administração gratuito e um estágio no Tribunal Regional do Trabalho, o que me ajudou a
pagar um curso pré-vestibular com bolsa à noite. Desisti de uma vaga com bolsa de 70% no
curso de Administração de uma faculdade particular e fui tentar o vestibular.
Universidade - um sonho alcançado
Quando se nasce numa família de classe popular, tendemos a sonhar baixo, a crer que
certos lugares não nos pertencem e isso nunca entrou na minha cabeça. Sou a primeira
pessoa da família a estar numa universidade pública e sei que sou um orgulho para todos e
um incentivo para que outros também consigam. Consegui chegar na universidade pública,
passei pra UFF e para UNIRIO, em Enfermagem, no mesmo vestibular.
Hoje, estou na UNIRIO, a primeira escola de Enfermagem do Brasil e indo para o
quinto período, feliz demais, realizada com o curso que escolhi e sonhando em me formar
logo, para poder exercer essa profissão linda. Mas na universidade nem tudo é fácil, temos
muitas despesas com transporte, xerox, comida e tudo o mais que temos que comprar. E
chegou uma hora em que tive que pensar em trancar o curso e começar a trabalhar porque o
dinheiro não daria para custear meus estudos. Fiquei sabendo do Programa Conexões e me
inscrevi. E hoje, se ainda estou na faculdade, é, em grande parte, por causa do Conexões de
Saberes, que, além da ajuda financeira, me dá motivação para continuar, me faz sentir capaz,
útil e merecedora de ocupar uma vaga numa universidade pública.
Por tudo isso, agradeço à minha mãe, que sempre acreditou em mim, mesmo quando
nem eu mesma acreditava. E tem uma frase que ela me fala até hoje: "Eu não fiz mais por
você porque não pude, mas te dei conhecimento e isso ninguém tira de você".
Minha vida não tem nada de diferente, é a vida de uma mulher comum, mas que
acredita que pode mudar o mundo ou, pelo menos, mostrar às pessoas que é possível vencer,
que é possível acreditar que as coisas possam melhorar e fazer acontecer. Eu fui atrás do meu
sonho e conquistei.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
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Ter um bom motivo pra sonhar
Emily Maviana da Trindade Santos *
Nasci em uma pequena cidade do extremo sul da Bahia, uma verdadeira vila de
pescadores, de um lado, o mar, do outro, o rio, ambos percorrem a cidade, que não chega a
ter mais que 8km de comprimento. A cidade é sustentada pela pesca e pelo turismo apenas
no verão. Meu pai (Carlos) é caminhoneiro autônomo, minha mãe (Rosana) é dona de casa
e vende produtos da Natura para ajudar nas despesas de casa. Os dois pararam de estudar na
7ª série, para casar, e até hoje não tiveram como retornar. Tenho um irmão (Ronan), dois anos
mais novo que eu, e uma irmãzinha caçula (Emilyana), dez anos mais nova que eu.
No primário, estudei em um colégio estadual e, desde pequenina, já queria ganhar
meu próprio dinheiro. Por volta de nove anos de idade, comecei a vender chocolates,
bombons e balas, na hora do recreio. Era um sucesso, gastava meu dinheiro sempre na
papelaria, era muito caprichosa com as tarefas da escola.
Na 5ª série, fui para o Centro Educacional de Alcobaça (Escola Municipal), ia de
bicicleta para o colégio. Nessa época, meu tio Márcio tinha um supermercado e eu sempre
ficava ajudando a embalar as compras para os clientes, e ganhava uns trocados.
Todo verão, procurava algum trabalho para fazer e, por volta de 13 anos de idade,
trabalhei em uma loja de artesanato. No ano seguinte, aos 14 anos, trabalhei numa lanchonete
e sorveteria, depois trabalhei num fliperama e bomboniére de uma prima minha. Em todos,
ganhava pouco, mas queria me ocupar e ter meu próprio dinheiro.
O que mais me marcou na época do ginásio foi ouvir meu professor de Matemática e
Ciências (Adalto) falar para meus pais que era para fazerem de tudo para que meu Ensino
Médio não fosse em Alcobaça, pois o ensino era muito fraco e só havia um colégio de
Ensino Médio. Ele disse que seria muito importante aproveitar meu potencial e empenho
nos estudos. Aquela cena marcou minha vida, jamais saiu da minha mente e passei sempre
a pedir aos meus pais para estudar fora. Eles também queriam isso e não era a primeira vez
que algum professor me elogiava, pois sempre recebiam carta de parabéns pela filha estudiosa.
Mas como poderia estudar fora se não tinha condições de pagar uma escola particular e nem
ao menos tínhamos algum parente fora, com quem eu pudesse morar?
Com 14 anos, acabei o Ensino Fundamental e continuaria a estudar em Alcobaça, mas
existe uma cidade próxima da minha que fica a uma hora de distância, que se chama Teixeira
de Freitas, muito mais desenvolvida que Alcobaça, com mais de 100 mil habitantes, tudo o
que eu queria era estudar lá. E surgiu uma oportunidade, uma amiga da minha mãe (Zita)
*
Graduanda em Enfermagem pela UNIRIO.
42
Caminhadas de universitários de origem popular
que morava em Teixeira ofereceu-se para me levar para morar na casa dela, com ela e com
suas três filhas adolescentes, todas mais novas que eu, e o caçula Luís Henrique (dois anos).
Uma família muito parecida com a minha financeiramente. A Zita disse que havia um
colégio estadual a ser inaugurado, apenas de Ensino Médio, um projeto escolar do governador
Antônio Carlos Magalhães, para melhor o ensino na Bahia, no qual foram construídos
unidades de 15 Colégios Modelo Luís Eduardo Magalhães (COLEM). E lá fomos, minha
mãe e eu, pegar aquela fila imensa para fazer a inscrição, mas haveria um tipo de seleção,
porque não havia vagas para todos e o que todos queriam era estudar naquele lindo colégio.
Saiu o resultado e adivinha só? Eu consegui! Nossa quanta felicidade, vou estudar fora,
conhecer pessoas novas, uma cidade diferente, muita mudança.
Zita não quis cobrar a minha estadia em sua casa, por sua amizade com minha família,
e meus pais não queriam deixar que ficasse tudo de graça, pois sabiam das suas dificuldades
com os filhos. Então, toda semana, eu levava uma pequena compra de alimentos, maior ou
menor, isso dependia da semana do meu pai com os fretes que fazia no caminhão. Eu ia todo
domingo à tardinha e retornava após as aulas de sexta.
Primeiro dia de aula - 1º ano do Ensino Médio - ano 1999. Nossa que escola linda!
Quanta gente! Tinha até quem ia de carro para o colégio. Senti um friozinho na barriga! Lá
fui eu procurar minha classe. Tinha muita gente com cara de bagunceira. Um mundo novo
despertava para mim.
Nem tudo foram flores esse ano, com o passar do tempo, comecei a perceber que as
filhas da Zita tinham ciúmes de mim, porque ela me adorava. Ela dava um livro para cada
uma ler em uma semana e, às vezes, eu chegava a ler dois e as meninas raramente liam um
livro, ela sempre pedia para as meninas seguirem o meu exemplo. As crises de ciúmes
aumentaram quando tia Zita me consolou porque eu havia tirado seis em História e cheguei
em casa chorando. Eu chegava do colégio, almoçava e ia fazer as tarefas de casa, meu Deus!
Eu não conseguia me concentrar, elas colocavam o som bem alto para me provocar todas as
vezes em que eu ia estudar, quando não era o som era a televisão ou, então, cantarolavam
bem alto pela casa. Sem falar no serviço de casa, que elas deixavam nas minhas costas e tia
Zita não via nada porque trabalhava o dia inteiro.
Eu gostava do colégio e sabia que, se contasse para meus pais, eles me levariam de volta para
Alcobaça, e a única certeza que eu tinha era que para Alcobaça eu não queria voltar. Então, eu
estava disposta a suportar as afrontas das meninas para poder ficar. Eu passei a prolongar o meu
tempo no colégio, entrei para o basquete, vôlei, teatro, freqüentava muito a biblioteca, isso tudo
para não ficar em casa, chegava do colégio, almoçava, voltava para o colégio e só estava de volta
em casa às 17h. Teve um dia que eu fiquei com muita raiva, achei que fosse odiá-las pelo resto da
minha vida. Cheguei e a casa estava toda trancada, chamei e uma delas abriu a porta, quando entrei,
elas me amarraram com uma corda e me trancaram no quartinho que tinha no fundo do quintal.
Nossa, chorei tanto e pedi a Deus para me ajudar, quando estava próximo do horário de tia Zita
chegar, elas me tiraram e falaram que era para ficar de boca calada. Nesse ano eu conheci Tânia, uma
grande amiga, contava quase tudo o que acontecia pra ela e ela sempre me chamava para ir a casa
dela. Depois desse acontecimento, passei a ir sempre, almoçava, ficava por lá fazendo trabalho e,
muitas vezes, dormia, os pais dela me adoravam e eu igualmente, claro. Eu chorava muito,
principalmente quando chegava domingo e eu teria que retornar a Teixeira e, na sexta-feira, estava
eu de volta super feliz. Hoje, não tenho raiva delas, sei que foi ciúme da mãe, coisas de adolescentes,
elas até já me pediram desculpas por tudo o que fizeram e eu perdoei, é claro.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
43
No ano seguinte, Zita se mudaria para a Itália e eu não teria mais onde ficar. Por um
lado, fiquei feliz, não iria ter mais as meninas para me perturbarem, mas fiquei triste pelo
fato de ter que voltar para Alcobaça.
Minha tia mais velha (Maria) por parte de mãe mora em Posto da Mata, uma cidade
que fica a 50 minutos de Teixeira de Freitas. Ela nos deu uma ótima notícia: a Prefeitura de
lá tem um ônibus que leva e busca os alunos de graça para Teixeira, e me convidou pra ir
morar com ela, visitaria meus pais de 15 em 15 dias, porque era mais longe de Alcobaça.
Outra mudança em minha vida.
Lá fui eu para Posto da Mata, uma cidade pequena, parecida com Alcobaça, só que sem
praia, gostei muito daquele ano, meus tios me acolheram como filha, não me sentia tão
carente quanto na outra casa, ainda havia minha prima Uellian, de 18 anos, éramos
verdadeiras irmãs. O ruim nessa época era ter que acordar de madrugada para pegar o ônibus
às 5:30 e eu só chegava em casa às 13:30, com muita fome e super cansada. Às vezes, o
ônibus quebrava e tínhamos que pegar carona na estrada. E assim o ano de 2000 passou e
deixou boas lembranças e saudades.
Em 2001, fui morar com Nádia, uma amiga do colégio. Morava apenas ela e seu pai,
sr. Osmar, que trabalhava viajando, pois era representante de uma empresa. Foi ótimo morar
com Nádia e seu pai, que me tratava como filha. Nádia e eu éramos grandes companheiras,
fizemos grupos de estudos para o vestibular, vendíamos brigadeiro em uma escola particular
perto de casa, já era uma graninha extra que ganhávamos.
O 3º ano foi um despertar para minha vida, cheguei até aqui e não queria parar, queria
progredir ainda mais, queria fazer faculdade, mas não sabia de que ainda, queria trabalhar e
ajudar meus pais. Também via meus colegas planejando, alguns se mudariam para fazer
faculdade fora dali e eu também sonhava a mesma coisa, mas o que eu faria? Acabou o ano!
Eu retornei para Alcobaça e, no verão, comecei a trabalhar de recepcionista no melhor
Hotel da cidade. Era um trabalho apenas de verão, eu até gostava de lá, mas não queria que
fosse para sempre e sabia que não seria. Depois do carnaval, teria que procurar algo mais.
Nessa mesma época, fui pra Vitória-ES prestar vestibular e adivinhem o curso? Ciências da
Computação. Só sabia que gostava de computador e optei pelo curso, mas hoje sei que não
tem nada a ver comigo. A experiência do vestibular foi péssima, pois percebi que não tinha
nenhuma preparação, que a base que tinha do colégio era muito fraca, precisava de um
cursinho pré-vestibular para me preparar mais, não passei nem na primeira fase do vestibular,
senti muita raiva do colégio.
Acabou o verão e eu parei de trabalhar, foi minha pior época em Alcobaça, sem fazer
nada, estava quase entrando em depressão. Na minha cidade, as mulheres normalmente são
marisqueiras, professoras ou donas de casa, eu tinha certeza que nada disso eu queria ser,
minha família toda por parte de mãe vive da pesca. Eu queria sair de lá, pois sabia que, para
consegui algo, tinha que ser fora dali. Mas pra onde eu iria?
Certo dia, minha mãe chegou em casa com uma ótima noticia: sua prima iria se
mudar para o Rio de Janeiro e estava disposta a me levar. Fomos morar em Nilópolis, na
Baixada Fluminense. Trouxe apenas 100 reais e teria que conseguir um trabalho o mais
rápido possível, caso contrário voltaria para Bahia. Com uma semana, fui trabalhar em um
supermercado em frente à estação de trem de Nilópolis, onde conheci outra realidade.
Não poderia estudar por enquanto por causa da carga horária do trabalho e isso seria
inviável, detestava o fato de só trabalhar.
44
Caminhadas de universitários de origem popular
Certo dia, recebi uma ligação, era a Érika, filha de uma amiga da minha mãe, me
incentivando a ir para o Flamengo onde ela morava, pois lá haveria outras oportunidades. Ela
fazia Enfermagem na UNIRIO, um grande incentivo na minha decisão pelo curso. Tinha pouco
dinheiro, mas, mesmo assim, me arrisquei. Saí de Nilópolis, agradeci aos meus primos e parti.
Precisei arrumar um local para morar no Flamengo, porque a Érika morava numa república
de estudantes que já estava lotada. Fui morar na casa de uma senhora que alugava quartos.
Distribui currículos pelo Shopping Rio Sul e, por insistência, consegui trabalhar em
uma loja de roupa, a Triton. No início, a supervisora não me queria na loja por eu ser baiana
e já havia uma baiana na loja, ela me pediu até para disfarçar meu sotaque, achei aquilo o
fim, mesmo assim fiquei. No primeiro mês, trabalhei no Barra Shopping, no inicio foi
péssimo, tinha dinheiro contado para passagem e lanche e não gostava da loja da Barra da
Tijuca. Havia sido contratada para o Rio Sul, que era mais perto de casa e lá havia a gerente
que eu gostava. No mês seguinte, fui para o Rio Sul e, mesmo assim, às vezes ia para outra
loja cobrir alguém que faltava ou treinar algum caixa. Às vezes, trabalhava em duas lojas no
mesmo dia e chegava em casa 1h da madrugada. Com nove meses de loja, eu cansei dessa
situação disse à minha gerente que ia ficar apenas no Rio Sul, queria algo certo para poder
estudar. Ela me disse que isso seria muito difícil ali, porque a supervisora sabia que eu
precisava do trabalho por estar sozinha no Rio de Janeiro, ela também queria me transferir
para o Barra Shopping e eu teria que decidir pela demissão ou ir para o Barra Shopping. Se
eu tinha um objetivo e daquele jeito não dava... Eu aceitei a demissão.
Um mês depois, a Leila havia saído da loja e já estava em outra, eu a procurei e pedi
para me contratar, dessa vez como vendedora, pois a carga horária era menor. Comecei a
trabalhar na Kipling, onde tinha um horário fixo que era pela manhã. Consegui bolsa no
pré-vestibular e estudava à noite. Da loja, ia direto para o cursinho, chegava em casa, às 22h,
exausta e ainda tinha que cozinhar e revisar matéria. Nessa época, eu dividia um conjugado
com duas amigas no Flamengo e essa foi a minha rotina durante todo o ano.
Nesse período, dediquei-me principalmente às matérias de Biologia e Química, que
eram minhas específicas, pois já havia me apaixonado pela Enfermagem. Nos dias de folga,
lavava roupa e estudava, abri mão de sair para festas, me direcionava apenas nos meus estudos.
Eu levava comida de casa para a loja, mas não podia comer na loja e comia na escada de
incêndio do shopping. Sabia que, com o shopping, não conseguiria nada, pois é um mundo
cheio de futilidades e não era aquilo que eu queria. Ruim foi durante o período do Natal e das
provas da segunda fase, minha gerente queria que eu dobrasse o horário de trabalho e eram as
semanas do "intensivão". Eu combinei com a gerente que iria apenas para as aulas de Biologia
e Química e, depois, retornaria para a loja e lá ficava até meia-noite, horário em que o shopping
fechava na semana do Natal. Não sei como não pirei, recebia forças não sei de onde! Em
janeiro, foi uma pilha de provas, às vezes, nos domingos em que havia provas, eu saía das
provas de cabeça quente e ia direto para a loja trabalhar, era uma loucura.
Em março de 2005, saiu a classificação. Acho que foi o dia mais feliz da minha vida,
todo o meu esforço teve uma recompensa, PASSEI NO VESTIBULAR DA UNIRIO! Tive que
sair da loja porque meu curso é integral e meus pais me ajudariam com as despesas.
Parece um sonho, no primeiro dia, eu ainda não acreditava e tudo o que queria era
viver aquele momento. Muito bom ser caloura e participar dos trotes, foi sensacional. A
faculdade me fez conhecer um mundo diferente, cheio de diversidades maravilhosas, me fez
conhecer muitas pessoas, um mundo novo se abrira para mim.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
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Em 2006, minha prima Taíssa também passou para a UNIRIO, e veio ser uma grande
companheira para mim. Somos uma família aqui no Rio, compartilhamos todos os
momentos juntas.
No 2º período, meu pai ficou desempregado, e, agora, o que eu faria? Ainda tinha uma
grana guardada que daria para segurar por mais um período... Ou, então, talvez eu tivesse
que... Não, isso não, trancar a faculdade jamais, depois de tudo o que já havia lutado, não
poderia desistir.
No final do período, meu dinheiro já estava acabando e minha mãe ainda me ajudava
com alguma coisa. Eu iria trancar algumas matérias para voltar a trabalhar, o que iria prolongar
e atrasar minha formação acadêmica.
Certo dia, descobri o Conexões de Saberes e eu e Taíssa nos inscrevemos. Conseguimos
entrar, graças a Deus, e é com o dinheiro da bolsa, vendendo Natura e Avon e mais uma ajuda
dos meus pais que continuo estudando o curso que eu amo de paixão.
No Conexões, estou descobrindo mais um mundo novo, até mesmo uma nova identidade,
outras ideologias de vida e me identifico muito com as causas sociais que ele abraça. Quero
ajudar a construir um mundo melhor e poder levar oportunidades para meu povo.
Sou muito grata a tudo e a todos que me ajudaram e continuam me ajudando, sei que
ainda haverá muitos obstáculos pela frente e, com garra, passarei por cima de todos eles.
Com os obstáculos, aprendemos a dar mais valor àquilo que conquistamos e, assim,
adquirimos novos conhecimentos.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Passo a passo para a universidade
Fabiana Santos de Paula *
Tudo começou no dia 27 de setembro de 1983. Nascia Fabiana Santos de Paula. A
minha vida não tem fatos que emocionem, porém tem histórias que, com certeza, servem de
exemplo para muita gente não desistir da sua meta.
Estudei todo o Ensino Fundamental em escolas públicas, porém, quando estava na 3ª
série, minha mãe faleceu e tive que sair da escola em que estudava em Copacabana, onde
morávamos, pois ela era empregada doméstica e passávamos a semana no seu trabalho.
Passei a estudar em Nilópolis, onde fui morar com meu irmão e minha cunhada, e lá terminei
a 3ª e as outras séries, inclusive o Ensino Médio. Porém, o Ensino Médio não foi em uma
escola pública e sim em uma particular, pois havia conseguido uma bolsa de estudos e
como, por pura ignorância, queria fazer técnico, lá fui eu cursá-lo em uma instituição
privada, a primeira e única na minha vida.
Desde o Ensino Fundamental, eu tinha como meta fazer faculdade, só não sabia onde
e nem como. Cresci ouvindo minha cunhada falar: “pago até o 2º grau, a faculdade é com
você ou com o seu pai”. Até então não sabia que existiam universidades públicas, ou
melhor, só tinha conhecimento da UERJ, e virou meu sonho de consumo estudar lá.
Então, terminei o Ensino Médio. E agora, o que fazer? Conhecia uns amigos que
coordenavam um pré-vestibular comunitário e, como minha cunhada já havia dito, tinha
que me virar sozinha, pois até então meu pai não era dos mais presentes. Matriculei-me e
comecei a estudar, pelo menos era o que achava. Não levava muito a sério. Era adolescente...
sabe como é... só queria cursar faculdade, mas não fazia por onde.
Prestei o vestibular pela primeira vez, só para a UERJ, era a única que conhecia e
era meu sonho de consumo, lembra? Obviamente, não passei. Fingia que estudava!
Prestei o segundo vestibular, só que agora, depois de um ano no pré-vestibular, já sabia
da existência da UFRJ, então tentei para as duas e, mais uma vez, não passei. Só que
agora estava levando mais a sério. Porém, tive que começar a trabalhar, foi o que
atrapalhou o meu rendimento, sem contar que apesar de ter levado mais a sério, as
estratégias que usei ainda estavam erradas. Sim, estratégias! Porque vestibular, além de
muito estudo, é necessário traçar estratégias.
No terceiro ano de vestibular, a minha vida começou a mudar. Eu me apaixonei pelo
professor de Biologia do curso e ele me apresentou a UFF, UFRRJ e UNIRIO. Pronto, agora
eu conhecia todas as universidades.
*
Graduanda em Pedagogia pela UNIRIO.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
47
Saí do pré-vestibular comunitário e, com meu professor de Biologia, agora meu
namorado, montamos outro curso pré-vestibular, que não era comunitário, mas se podia
dizer que era popular. Isso porque não estávamos interessados em ganhar dinheiro e sim
aprovar pessoas em universidades públicas e tenho certeza que esse objetivo foi alcançado.
Bom! No meu terceiro vestibular, não passei novamente. Porém foi o vestibular em
que cheguei mais perto. Havia traçado a estratégia certa, mas ainda faltou algo mais.
No quarto e último vestibular, eu tinha um namorado, professor e amigo do meu lado,
me apoiando e me dando coragem, porque faltou pouco para eu desistir. Só não aconteceu,
porque ele acreditava em mim. Eu diria que até mais do que eu mesma! Ele me dava bronca
quando eu esmorecia e força quando era necessário. O resultado não poderia ser outro.
Passei! E, por ironia do destino, estudo na mesma universidade em que ele cursou Biologia:
a UNIRIO. Ah, também fui aprovada para a UERJ, só que a essa altura do campeonato, ela já
não era o meu sonho de consumo. Hoje sou estudante do 5º período de Pedagogia e a
mulher mais feliz do mundo. Conseguir atingir a minha meta e, ainda de quebra, ganhei um
homem maravilhoso que quero ter ao meu lado para o resto da minha vida.
48
Caminhadas de universitários de origem popular
Minha vida acadêmica em poucas palavras,
porém com muitas conturbações
Fabiana Santos de Souza *
Meu nome é Fabiana Santos de Souza, tenho 25 anos, sou estudante da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e vou tentar descrever para você, leitor, a
minha vida acadêmica, relacionando-a com as diversas dificuldades, conquistas,
experiências, tristezas e alegrias.
Iniciei minha trajetória escolar em um colégio municipal denominado Mata Machado,
próximo à comunidade em que morava, chamada Tijuaçú, no bairro Alto da Boa Vista. Lá
estudei até a antiga quarta série e tive uma professora que muito me incentivou, fazendo
com que eu me tornasse uma aluna exemplar. Posteriormente, fui estudar em outra escola
municipal na Barra da Tijuca, na qual encontrei diversos problemas, como: falta de
professores, profissionais desinteressados, greves, entre outras coisas. Nessa escola, concluí
o Ensino Fundamental.
Em outro momento, continuei o percurso acadêmico em uma escola particular que se
chamava Instituto Santa Rita, na Tijuca (zona norte do Rio de Janeiro), pois havia conseguido
uma bolsa parcial. Para mim, foi uma imensa alegria, pois sempre quis a oportunidade de ter
um colégio melhor, onde pudesse estudar e ser alguém na vida. Não posso deixar de destacar
o apoio de meus pais que nunca mediram esforços para que eu conseguisse estudar, pois,
mesmo não tendo tido oportunidade de estudar e de não terem boa condição financeira
devido aos seus trabalhos, já que meu pai era balconista numa padaria e minha mãe era
auxiliar de serviços gerais em um colégio, eles foram incansáveis. Outro fato que também
marcou e marca a minha vida é que meus irmãos não estudaram porque as condições não
permitiram, fazendo com que eu me sinta um pouco responsável por isso e com vontade de
poder ajudá-los no futuro.
Prosseguindo a minha trajetória, com o fim do Ensino Médio, tive que passar por
diversos obstáculos, como: trabalhar, a separação dos meus pais e a falta de dinheiro para
conseguir ingressar em uma universidade pública. No ano de 2002, após três anos do término
do Ensino Médio, fui fazer um cursinho pré-vestibular, para tentar Medicina em todas as
universidades públicas e para minha tristeza não consegui passar. No ano novo que entrou,
consegui uma nova bolsa em um cursinho e lá estava eu, perseverante e com muita dedicação,
tentando novamente a faculdade de Medicina e, para minha surpresa, novamente não obtive
sucesso, sendo aprovada somente para o curso de Enfermagem na UNIRIO. Sendo assim,
resolvi aproveitar a oportunidade, já que é tão difícil uma menina de origem popular como
*
Graduanda em Enfermagem pela UNIRIO.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
49
eu, ingressar em uma universidade pública. Durante a graduação, tive e tenho muitas
dificuldades para segui-lá, pois a questão socioeconômica sempre traz os mesmos problemas,
tais como: falta de dinheiro para xerox, alimentação, transporte, livros, ida a congressos,
entre outras coisas.
Ao chegar ao sexto período da faculdade, surgiu a oportunidade de participar de um
Projeto de Extensão, dentro da própria UNIRIO, denominado Programa Conexões de Saberes,
no qual eu iria realizar pesquisas, discutir temas como: questão racial, desigualdade social
e ingresso e permanência de alunos de origem popular nas universidades públicas. Além
disso, o projeto proporcionou a mim e a mais 43 bolsistas a oportunidade de trabalhar em
escolas situadas em comunidades pobres. O Programa me auxiliou muito na questão
financeira e cultural, pois foram diversos debates tanto com professores em sala de aula,
como também com docentes de universidades públicas de todo o Brasil que também fazem
parte do Conexões, além de participar de oficinas e seminários.
Outro fato relevante é o trabalho que realizei em uma comunidade popular no município
de Caxias, estado do Rio de Janeiro, no qual, junto a outro projeto denominado Escola
Aberta, eu realizava oficinas de Leituração, previamente planejadas e elaboradas com o
auxílio das reuniões lideradas por duas mestrandas também integrantes do Conexões. Sendo
assim, acredito que o Programa contribuiu muito para a minha formação acadêmica, tornandome uma pessoa mais crítica, uma profissional mais humana, além de oferecer, para as crianças
com as quais tive contato durante quatro meses, a possibilidade de sonhar e tornar realidade,
como eu tornei, a entrada em uma universidade pública e a conquista de uma profissão.
50
Caminhadas de universitários de origem popular
Transformando os sonhos em realidade
Fabíola Estrela Dias *
"Sonhar não custa nada, o meu sonho é
tão real..."
Paulinho Mocidade / Dico de Viola / Silveira
Sonhar, de fato, não custava nada, acho que sempre soube isso, assistindo a desenhos
animados em minha infância que me reportavam a um mundo onde tudo era possível. Por
outro lado, a timidez exagerada me fazia falar pouco. Mas manifestei o ciúme na chegada da
minha irmã, queria continuar a ser filha única. Porém o tempo se encarregou de modificar
essa minha visão.
Falando em sonho, acredito que os primeiros estímulos foram proporcionados por
minha mãe, baiana, que sempre nos contava histórias da sua infância pobre no interior,
com seus oito irmãos e minha avó, abandonados pelo chefe da família que veio para a
cidade grande tentar uma vida melhor e arrumou outra família. Por conta disso, as crianças
trabalhavam na roça e na casa de família para ajudar em casa. Assim, em muitos momentos
não tiveram o que comer e não poderiam estudar. Com grande sacrifício, conseguiu
conciliar o trabalho de babá e os estudos e alcançar a segunda série, mas, devido a
imposições das patroas e ao cansaço, não passou disso. Meu pai também não estudou
muito, mas concluiu o Ensino Fundamental e também trabalha desde cedo. Apesar dessas
dificuldades, minha mãe conseguiu nos ensinar a escrever nossos nomes antes de entrar
na escola, e isso é um grande orgulho.
Antes do casamento dos meus pais, Del Castilho foi escolhido como o bairro de
moradia, pela oportunidade do apartamento de um quarto no quinto e último andar do
prédio da Campanha Estadual de Habitação - CEHAB, comprado com a união de economias
de toda uma vida e o empréstimo com meu avô paterno.
Minha primeira escola foi a Municipal Eurico Vilela, que ficava ao lado desse prédio,
vaga conseguida através de sorteio. Entrei no Jardim e fiz o C.A. e a 1ª série. Tenho boas
lembranças daquele lugar. Pois ficava ao lado do prédio e eu ia sozinha e minha mãe
conferia minha chegada pelos quadradinhos do nosso corredor e acenava pra que eu
retribuísse. E, então, entrava, tomava café da manhã e ia para a sala. Atrás da porta, havia
uma sapateira cheia de livros de histórias que a professora sempre contava. E isso alimentava
ainda mais minha imaginação e ajudava a manter meu mundo de inocência como se o
*
Graduanda em Museologia pela UNIRIO.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
51
conto de fadas fosse real, onde todos sempre vivessem felizes para sempre. Assim, também
dava margem para as estripulias de criança cometidas por mim e minha irmã, que acabavam
no Posto de Assistência Médica de Saúde a uns 10 minutos da minha casa. Com o nariz
cheio de papel higiênico, outra hora foi com tachinha e a quebra de uma prateleira inteira
da estante de louças de chá. O mais sério mesmo foi um acidente ocorrido comigo e minha
irmã, ainda bem pequenas, e uma tesoura de ponta, que perfurou a vista esquerda dela,
sendo necessário uma delicada cirurgia, que com grande êxito salvou-a, deixando somente
uma mancha que a acompanha até hoje.
Meu nome, Fabíola, tornou-se um problema, pelo menos na infância, pois me queixava
sempre com minha mãe por ter escolhido tal nome, pois era difícil agüentar as piadas dos
colegas, me chamando por vários nomes variantes deste. Porém o aproveitamento desse
período foi excelente na escola, mas precisava de auxílio, no início com a filha da vizinha
e depois com uma explicadora. Mas, devido a problemas de saúde de minha mãe, que
precisava de pequenas cirurgias, passei desde bem pequena a ficar na casa da minha tia de
criação em Inhoaíba, tia Deti. Passava longas temporadas lá. Era muito divertido, eu amava,
pois tinha muitas crianças e espaço, tudo o que eu não tinha em casa. Recordo-me da casa
no alto da rua de barro vermelho que cobria quase todo o bairro e, para chegar, pegávamos
o trem. Observo hoje as diferenças e como tudo mudou.
Sempre fui alta para a minha idade e me destacava entre os demais primos e primas, e as
brincadeiras que predominavam eram de meninos: bola, pipa, bolinhas de gude, pião, subia
em árvore etc., enquanto em casa só brincava com minha irmã e sempre com brincadeiras de
meninas. Porém lá me sentia mais livre e o resultado aparecia nas pernas sempre marcadas com
ferimentos de tombos, o que era motivo para me proibir de sair algumas vezes. As refeições
eram uma festa à parte, pois havia a mesa das crianças, pois somente elas se sentavam tendo
todos os lugares preenchidos e eu era sempre a última a terminar de comer. Depois os adultos
se sentavam, pois a casa vivia cheia, muitas vezes, mas estar junto com todos me fazia esquecer
e ser mais independente. Sentia falta da minha mãe.
Devido aos demasiados apelos para termos espaços para brincar, nos mudamos para
um terreno em Turiaçu, ao lado da fábrica de biscoito Piraquê. Que teve um mês para serem
erguidos cômodos para nos acolher e aos poucos foi sendo continuada. Missão de supervisão
do meu avô e tio, que com nossa chegada meu pai assumiu e ia realizando nos finais de
semana. Nosso padrão econômico vinha decrescendo, apesar de em outro tempo vivermos
mais confortavelmente, nesse momento tudo o que tínhamos investíamos na obra da casa o
que nos fazia economizar em outros setores, como alimentação e lazer, durante 17 anos.
Com a transferência, fui para a Escola Municipal Aspirante Carlos Alfredo, em Turiaçu, um
pouco afastada de minha casa. Permaneci alguns dias na 1ª série até abrir a 2ª e, quando já estava
cursando, troquei novamente para uma mais perto, a Escola Municipal Figueiredo Pimentel, de
onde só saí no término da 8ª série. Fiz muitos amigos lá, Priscila, Carla, Simone, entre outros,
com quem me relaciono até hoje. Sempre levei os estudos a sério, talvez pela influência de
minha mãe, por isso nunca menti ou ocultei em casa algo referente à escola. As notas sempre
foram boas, com poucas decaídas, mas nada que me prejudicasse. Nesse período, iniciei
descobertas e comecei a compreender que o mundo não era como nas histórias que ouvia, a
começar pela minha casa, onde sempre havia discussões e o clima era tenso, pois meu pai sempre
teve uma visão de mundo muito reduzida e machista, não permitindo que minha mãe trabalhasse,
mas ela sempre insistia e fazia bicos como passadeira, fritadeira em festas, faxinas etc.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Comecei, então, a freqüentar a igreja católica do meu bairro, a Paróquia de Santa Rita
de Cássia, depois da 1ª comunhão na paróquia vizinha; no início, estava indo para não ficar
em casa, mas depois gostei. Fiz muitos amigos e ficava na casa deles, saíamos e foi muito
importante para o meu crescimento e desenvolvimento. Ingressei em um grupo de adolescentes,
que posteriormente faria parte de sua equipe e até cheguei a coordená-lo. Esse trabalho me
amadureceu, pois era voluntário e direcionado para outra pessoa. Assim como a fé me deu
forças e o alicerce seguro para não desistir mesmo que tudo parecesse perdido.
O Ensino Médio se tornou difícil, pois não tinha idéia do que fazer e nem como fazer.
Na minha escola, através dos pais de colegas, assim como a maior parte dos alunos, me
inscrevi na Escola Técnica Estadual República, antiga FUNABEM, em Quintino, que iria
abrir e teria ensino técnico. Minha mãe estava sempre comigo e me incentivava. Na prova,
não alcancei os pontos necessários para entrar, o que me deixou arrasada, pois via naquele
lugar meu futuro. Cheguei a me matricular em outra que estava em péssimo estado. Porém,
mais tarde, sobraram vagas e foram chamando os demais classificados. Esse período parecia
uma eternidade, pois não se resolvia e eu chorava muito de preocupação, em cogitar a
hipótese de ficar sem estudar ou ir para a outra, porém perseverei na minha fé e alcancei.
Conheci pessoas maravilhosas, como Michelli e Renata, e vivi experiências únicas
naquelas dependências. Com outro padrão de ensino e média sete, tive que me empenhar
mais, pois na anterior era cinco. Além de ter todas as disciplinas da formação geral, tinha o
técnico com as disciplinas que só iniciaram no segundo ano, devido a obras realizadas no
imóvel enquanto estávamos lá. E assim vimos um lugar caindo aos pedaços e de tanta má
fama se transformar num local de ensino e até mesmo referência. Por ser o dia todo, pela
manhã fazia o técnico nos laboratórios de informática cheirando a novo e, à tarde, fazia a
formação geral. Escolhi, então, Processamento de Dados, para estudar, o que necessitou de
muito empenho, particularmente no primeiro semestre, com a disciplina Lógica de
Programação, na qual fiquei em prova final com quase toda a turma, pois não conseguia
entender a matéria, principalmente a Matemática, da qual nunca gostei muito e ainda tive
problemas no nível fundamental.
Quase não tinha tempo para qualquer outra atividade, pois também tinha aulas aos
sábados. Psicologia e Sociologia também faziam parte da grade no primeiro ano. O cansaço
era comum e pensava em desistir, como muitos de minha turma fizeram. Minha mãe, guerreira,
sempre me estimulava de alguma forma. Formei, então, em 1998, com os outros cursos
técnicos da escola. Juntos, constituímos a primeira turma de formandos da instituição.
Nesse ano, por conta das isenções conseguidas, tentei o vestibular como experiência,
sem grande sucesso. Então, com o conselho de amigos, resolvi procurar um pré-vestibular
comunitário, o que fiz em três tentativas, preenchendo formulários e entregando papeladas,
e ainda faria várias vezes. E consegui no último, em Acari, para negros e carentes, que, mais
tarde, mudou a denominação. As aulas eram aos sábados, o dia todo, com algumas palestras
aos domingos. Foi extremamente importante para ampliar minha visão de mundo, de cidadã,
além de motivar os alunos de escolas públicas a não desistir, apesar da defasagem. Apesar do
bom Ensino Médio que tive, vi muitas matérias pela primeira vez. E, no segundo semestre,
consegui o estágio remunerado referente ao Ensino Médio, para retirar o diploma, o que
colaborou nos custos do curso, já que gastava passagem para ir às aulas, almoço e a
mensalidade, apesar do preço simbólico, mas tinha passagem para pedir isenção, retirar o
kit, enfim, só gastos.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
53
Novamente, a dúvida de qual curso optar, neste caso, não poderia resolver pela eliminação,
pois eram muitos. Resolvi me inscrever em cada universidade em um curso diferente, dentre
os que mais me agradavam. Passei para a segunda fase da UNIRIO, o que me fazia ficar perto
do sonho de entrar em uma dessas instituições. Foi para o curso de Museologia, mas tive que
esperar a tão sonhada notícia, que só veio no início do segundo semestre de 2000.
Enquanto isso, seguia em frente. Fui trabalhar em uma clínica médica, depois de um
rigoroso recrutamento com várias fases, como recepcionista, pois somente com entrevista
provavelmente não teria passado por ser negra. Acredito que, nesse momento, não fez grande
diferença, mas depois sim, pois fui mandada embora com uma justificativa que não se
aplicava. Chorei muito pelas expectativas que depositei nesse emprego e fui pega de surpresa
com essa trágica notícia, no dia 31 de junho. Minha mãe me acalmou e disse que talvez
fosse melhor assim, pois Deus talvez estivesse preparando algo melhor para mim. Estava tão
triste que não dei muita importância a essas palavras.
Poucos dias depois, liguei do telefone de ramal instalado nas residências da comunidade
para saber sobre o resultado do vestibular, e a notícia foi dada. Ajoelhei no chão e chorei, foi
uma explosão de sentimentos ao mesmo tempo, estava muito feliz como nunca, pois havia
conseguido depois de tanto sacrifício e dedicação. E saí para dar a notícia àquela que merecia
ser a primeira, minha mãe, que estava trabalhando há um bom tempo como camelô, em
Madureira, vendendo refrigerantes e lanches. Ela ficou tão orgulhosa com essa boa notícia,
porém a realidade sempre nos desperta do sonho. E a pergunta foi feita, como vamos pagar a
passagem? Pois ainda não havia ido ao campus onde ia estudar. A solução encontrada era usar
o uniforme do nível médio para economizar o dinheiro, estratégia que usei durante quase dois
anos e minha mãe me ajudava um pouco. Verifiquei a grande distância, a quantidade de
passagens e a duração da viagem, que são quatro somente para chegar lá. Comecei a me
interessar muito pelo curso, apesar de ser manhã e tarde e dificultar o trabalho. Mesmo com as
despesas de fotocópias, consegui freqüentar todas as disciplinas oferecidas até o terceiro
período, quando não foi mais possível.
Com o desemprego do meu pai, tudo mudou. Resolvi, então, fazer apenas três
disciplinas para diminuir os custos de almoço e fotocópias, além de estar mais em casa para
vender sacolés, que me possibilitariam manter minha resolução. Mas, mesmo assim, era
difícil e tentei como última solução uma bolsa de projeto para o CNPq e não consegui, foi
a última cartada. Estava quase jogando a toalha, quando fui convocada por telegrama para
trabalhar na Prefeitura do Rio, como servidora temporária, resultado de um concurso feito
no início daquele ano para auxiliar de controle de endemias. Tranquei a matrícula às pressas,
na esperança de acabar ficando, o que não aconteceu e trabalhei seis meses, o que me
possibilitou pagar minhas dívidas.
Ao final desse período, a esperança de retornar à Museologia se esvaía a cada dia, tudo
permanecia como antes, não tinha com pagar passagens, já que não podia mais usar uniforme
de estudantes e essa situação se prolongou por mais oito meses. O retorno só foi possível,
através de auxílio financeiro de amigos para as passagens, que durou por volta de seis meses
até conseguir um estágio indicado por uma conhecida, no Museu do Itamaraty. A bolsa era
de R$ 260,00, pouco, mas fundamental para a minha permanência na universidade. Mas
quando atrasava nos deixava em situações bem complicadas como a que fiquei na
universidade, já que no dia de pagamento fui para aula contando com isso e, por vários
motivos, não confirmei essa informação e deixei para fazer isso depois conclusão, não tinha
54
Caminhadas de universitários de origem popular
um centavo para ir ao estágio ou voltar para casa. Tive que vir andado da Urca à Central do
Brasil onde fica o Museu. Cheguei horas depois, suada e muito cansada, e me emprestaram
dinheiro para chegar em casa.
Meses depois, tive outro problema com minha mãe, que ficou nove dias internada no
Hospital Salgado Filho, no Méier, só tendo eu e minha imã para resolver todas as coisas e foi
extremamente difícil. Dar conta das aulas na universidade, estar presente no hospital e
cuidar da casa, o que se estendeu por mais tempo quando ela veio para casa necessitando de
cuidados especiais, durante quase dois meses. Tive sorte de os professores serem
compreensivo nesse momento. Foram momentos bem difíceis, em que fiquei com fome,
pois não tinha dinheiro para almoçar ou lanchar. Completei o tempo máximo de permanência
de dois anos e a preocupação voltou a me dominar. Como continuar? Então, apareceu o
Conexões de Saberes como uma oportunidade para contribuir nessa permanência.
Minha relação com o carnaval sempre foi de fascinação e magia, pois desde pequena
assistia às transmissões e sempre achei muito interessante porque sempre descobria algo
que não conhecia. Uma das escolas acabou ganhando meu coração, foi a Mocidade, no ano
em que conquistou o bicampeonato, a partir dali sempre torci por ela. Alimentava o sonho
de um dia desfilar na escola de meu coração e, depois de três anos de espera, estou na
expectativa do desfile desse ano, já que consegui ingressar na comunidade de Padre Miguel
e sairei na primeira ala, que é de passo marcado.
Hoje, estou mais próxima de me formar e sem nenhuma reprovação nas disciplinas,
apesar de tudo o que passei. E retiro esse ensinamento da minha trajetória, pois os sonhos
para se tornarem realidade são bem difíceis e precisamos nos agarrar às oportunidades que
aparecem, sendo necessário ter perseverança, dedicação e determinação. Porém hoje espero
poder colaborar e incentivar outros a percorrer esse mesmo caminho, pois a realidade é
construída assim, com lutas, perdas e conquistas que nos fazem transformar.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
55
No meio do caminho havia uma pedra
Fabrice da Mota Cardoso *
Filha de uma família pobre, sou a primeira da família a entrar em uma universidade
pública. Minha mãe largou o Ensino Médio ao engravidar de mim e meu pai precisou
trabalhar muito cedo, só tendo cursado até a quarta série primária. Pelo o que minha mãe
conta e o que eu lembro, o início da nossa vida foi muito difícil, pouco a pouco as coisas
foram melhorando e, com o tempo, meu pai alcançou o cargo de supervisor na empresa onde
trabalhava. Essa empresa era, e é até hoje, uma grande multinacional. Nosso padrão de vida
não era de milionários, mas vivíamos muitos bem. Bom, como sempre existem pedras, as
minhas começaram então a cair do alto!
A primeira pedra
Então, aos nove anos de idade, acompanhei a separação dos meus pais. Eu e meu
irmão chegamos, em pleno século 20, a sofrer discriminação por sermos filhos de pais
separados. Logo, meu pai, movido por até hoje não sei o quê, resolveu pedir
demissão do emprego e, a partir daí, alegando estar desempregado, não pagou mais a
pensão alimentícia.
Talvez até a bailarina tenha problemas familiares...
Com isso, nosso padrão de vida caiu muito, tivemos muitas dificuldades e por pouco
não passamos fome, mas essa história conto mais à frente. No bairro em que morávamos,
havia dois bons e caros colégios, e era em um deles que eu e meu irmão estudávamos. E foi
lá que permanecemos... meu irmão passou por outras escolas, mas eu fiquei ali até o terceiro
ano do Ensino Médio.
Enfrentamos dificuldades financeiras antes de sair a pensão judicial e depois que meu
pai optou por deixar o emprego. E foi em meio a essas pedras que saíram as melhores
histórias da minha vida! Minha mãe nunca abriu mão de que estudássemos em um bom
colégio, por mais que isso custasse a ela. Até hoje ela sofre de tendinite por conta dos muitos
salgadinhos que fez para nos sustentar naquela época. Lembro que o gosto era ótimo, mas
segurar a panela enquanto ela mexia a massa não era nada fácil! Eu segurava de um lado e
Kikito - apelido carinhoso pelo qual só eu chamo meu irmão - segurava do outro. Desses
salgados, uns iam para as encomendas e outros eu vendia escondido na sala na hora do
recreio. Meus "amiguinhos" que compravam também achavam o gosto muito bom, mas me
*
Graduanda em Enfermagem pela UNIRIO.
56
Caminhadas de universitários de origem popular
tratavam de forma diferente. Desculpe o tom, e quem sabe até a revolta, mas, por mais que
na época não me sentisse assim, hoje vejo que era a águia da história do Leonardo Boff e
não a galinha.
Minha mãe era o nosso apoio e nós éramos seu apoio, e houve um dia em que isso
ficou bem claro. Na verdade, não me lembro desse dia! Não sei se foi doloroso o suficiente
para ser apagado da memória, mas sem dúvida gostaria de me lembrar. Tia Naninha (minha
mãe, do Kikito e do Pedrinho) o conta sempre com muitas lágrimas nos olhos. A dispensa foi
esvaziando, esvaziando, esvaziando, esvaziando e quase, por muito pouco, não ficou vazia.
Minha mãe, sempre querendo o melhor, nos explicou a situação e disse que ia ligar para que
meu pai nos buscasse e eu disse que ficaríamos com ela até no arroz com arroz. Mas Deus,
com seu infinito amor, logo mexeu os pauzinhos. Minha mãe tinha comprado um remédio
(ela não lembra disso de jeito nenhum) para minha avó, que naquele dia resolveu ir pagar,
50 reais, e olha que naquela época eram CINQÜENTA REAIS!
Parafuso! Novas pedras?
Mais ou menos uns quatro anos depois, minha mãe casou-se novamente. Muitas
histórias tristes, porém não as convém contar, pois são mais dela do que minhas. E,
então, ao me deslocar rumo à Praia Vermelha, sofri um acidente que modificou não só
meu trajeto naquele dia, mas toda a minha existência daí por diante. Estava indo
prestar vestibular, era a prova da UNIRIO, dia 25 de novembro de 2002. Por ironia do
destino, fui certeiramente atingida por um parafuso. Há quem diga que, na verdade,
ele caiu da minha cabeça! Brincadeiras à parte, isso me rendeu duas fraturas faciais,
uma cirurgia e três meses sem mastigar. Era o mais esnobe dos seres, só por pensar ter
um rosto bonitinho! Desde então vi como tudo pode ser tão passageiro e, apesar de ter
mágoas, enxergo como a vida é curta para não se gostar de alguém! Havia me formado
no curso de modelo dois dias antes e ia dar entrada no tão almejado certificado! O que
direi agora não tem de nenhuma maneira o objetivo de criticar a profissão, mas o fato
é que não tenho esse certificado até hoje. Nunca mais voltei ao curso, passo por ele
quase todos os dias, pois fica na rua em que realizo parte do meu curso. Talvez você
esteja se perguntando o porquê disso, e eu respondo: simplesmente não houve mais
espaço na minha vida.
Amigos?! Aqueles que se imagina serão os primeiros a aparecer? Esses
nem sequer ligam... mas as surpresas são extraordinárias, o carinho surge de onde não
se imagina.
O fato é que naquele ano o vestibular acabou para mim! Apesar das circunstâncias,
quis ir até o fim, fiz todas as provas que restavam. Todos diziam que, frente aos
acontecimentos, aquilo não era necessário e muito menos viável. Só que a minha natureza
não permitia que não enfrentasse esse desafio. Lembro como se fosse hoje o desespero da
fiscal que ficou responsável por mim durante a prova da UERJ! Tinham se passado seis
dias, o nariz ainda sangrava e algumas gotas carimbaram a minha prova de Física! Coloquei
as fórmulas necessárias para cada questão nos devidos lugares e, embora só fosse substituir
pelos dados correspondentes e fazer as operações matemáticas, não consegui desenvolver
nenhuma. A redação então! Não saiu nada... na minha cabeça, só passava a frase: o que foi
que fizeram comigo? Havia me preparado muito para aqueles concursos, mas tinham me
tirado a chance de tentar.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
57
No ano seguinte, precisava continuar tentando! Não tinha dinheiro para pagar um prévestibular. Minha mãe, com sua impagável lábia, conseguiu para mim meia bolsa em um
curso. E lá fui eu... nos anos seguintes, devido aos meus resultados no vestibular e simulados
do curso, ganhei bolsa integral e, como pagamento, era fiscal de provas duas vezes por
semana no colégio do respectivo curso. Porém, em 2003, nada! Em 2004, nada!
Surto!
No vestibular 2005, repetindo o subtítulo: SURTEI. Primeiro cismei que tinha
nascido pra ser assistente social. Depois, que entraria para a faculdade de qualquer
jeito, não agüentava mais aquela vida. Moral da história: minhas opções: UERJ Psicologia; UFRJ - Serviço Social; UFRRJ - Veterinária; UFF - Medicina; UNIRIO Enfermagem. Minha mãe ficou meio desesperada com a minha confusão, também
pudera! Tentei acalmá-la dizendo que, das cinco, pelo menos uma delas seria, e seu
desespero só aumentou!
Meu padrasto cortou minha mesada, mas no início minha mãe pôde bancar. Ela
trabalhava vendendo biquínis e bolsas em empresas no Centro do Rio. Depois descobriu
que estava grávida e teve que parar, daí não tinha mais dinheiro para me deslocar. A
gravidez foi muito complicada, descobriu-se já durante a gestação a grande
probabilidade de a criança ser portadora de alguma síndrome genética e, com 28 semanas
de gestação (sendo que o normal são de 38 a 42 semanas), Pedrinho nasceu. E, embora
fosse dia primeiro de abril, era uma verdade maravilhosa! Nunca vou esquecer a primeira
vez em que o vi, às vezes choro contando isso pra ele! Tinha um pouco mais de
novecentas gramas, era tão disforme que fiquei muito assustada, e eu só queria vê-lo
quando estivesse bem. Foram 72 dias de UTI e, mais uma vez, larguei tudo que era
referente ao vestibular e à minha própria vida. A diferença é que dessa vez foi por
escolha própria, minha mãe e meu irmão precisavam de mim naquela hora, estudar
podia ficar para um outro momento. Isso persistiu mesmo depois de ele ir pra casa, pois,
para minha mãe, depois de passados 18 anos do nascimento do ex-caçula, era tudo novo
e a sua insegurança era total.
O Pedro é portador da Síndrome de Down, costumo dizer que ele não é especial... é
especialíssimo! Não o trocaria de jeito nenhum por uma criança normal. Sou "irmãe" dele. Ele
passou por várias complicações no período de internação, minha mãe estava em depressão e
segurar a onda dela não foi nada fácil. Durante a gestação, ela se via como a mãe de uma criança
normal, negava-se a acreditar e, nesse momento, a coisa era concreta. Depois que ele foi pra casa,
quando dormia, ela ia até o berço a toda hora para se certificar de que ele estava respirando.
Como o momento era de desespero, alguém precisava ser forte e esse alguém fui eu.
Contornando pedras
Nesse ano de 2005 realmente não estudei nada! Realizei o ENEM e coloquei como
opção a UNIRIO. E então veio a surpresa: no dia 16 de novembro já estava aprovada no
vestibular. O mais engraçado é que nunca quis ser enfermeira, sempre disse que enfermeiros
eram empregados de médico! Quanta ignorância a minha, mas o fato é que naquele momento,
em meio a muitos gritos de felicidade, a enfermeira nasceu! Comparei com as outras opções
que havia feito no vestibular e já preferia Enfermagem em detrimento de todas as demais e
só fui fazer a prova da UFF para Medicina por insistência da minha mãe.
58
Caminhadas de universitários de origem popular
As pedras falam e até prometem
Certo dia, meu pai, depois de ter bebido alguma ou talvez muitas coisas, chegou lá em
casa querendo falar comigo, eu tinha 10 anos. Em meio a muitas lágrimas ele me disse que
venderia até as calças, mas que eu realizaria o sonho de ser médica. Hoje faço Enfermagem!
Isso por graça divina, mérito próprio, incentivo materno e devido ao amadurecimento
conseguido depois de três longos anos tentando vestibular para Medicina. Enfim... não
tropecei. Era tudo inerente a minha pessoa e ninguém o podia fazer por mim.
Alçando vôo
Já falei de águias, elas voooooooooooam. E quando se descobre que se é uma águia
é mais fácil lidar com as pedras. Não sou, de forma alguma, frustrada, como podem estar
pensando alguns! Adivinhei, né?! Identifico-me com a minha profissão cada dia mais, é
um namoro onde o sentimento cresce constantemente. O que quero deixar claro agora é
que, no meio do caminho, sempre existirão pedras. Já me servi nesse texto de citações de
autores incríveis e peço agora licença para terminá-lo com outra, não farei apresentação
por julgá-la desnecessária:
"Mas isso não impede que eu repita: é bonita, é bonita e é bonita!!!!!!!!!!!!!!!"
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
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Sonho impossível?
Felipe Jorge Rodrigues Campos*
Nasci no dia vinte e oito de dezembro de 1985, em Jacarepaguá, um dos maiores
bairros da cidade do Rio de Janeiro. Do alto da pequena montanha dos meus então vinte e
um anos posso observar o caminho percorrido, com extrema gratidão aos responsáveis por
uma vida serena, povoada por alguns contratempos construídos pela minha inexperiência,
causadores de grandes aprendizados.
Tive uma infância leve, agraciada de família estável e atenciosa. Meu pai, exemplo de
dedicação aos filhos e esposa, trabalhou sempre (pelo menos desde quando me entendo por
gente) em lugar afastado do lar, como empregado sofredor de pressões e preconceitos que
sua profissão de servir à mesa muitas vezes o acomete. Não pude tê-lo como amigo amparador,
com quem confessar as imperfeições e seguir conselhos experientes e confiáveis de um pai,
estando ele sempre indo e vindo trabalhar, para meu próprio benefício e desenvolvimento
sem maiores obstáculos materiais.
Com minha mãe, as coisas foram menos fáceis. Dona-de-casa extremamente competente,
não perdoava pouca arrumação, pouca higiene, pouco atraso... cuidava de todas as frestas
com teia de aranha, móveis marrom-acinzentados pela poeira, telefone gorduroso de muitas
ligações após o almoço, livros com cocô de mosquito... com ela também não houve uma
possibilidade de diálogo cotidiano devido às nossas grandes diferenças de opiniões... no
então, fui presenteado com uma insuperável trabalhadora do lar, não me recordo ter faltado
uma só vez com os compromissos cotidianos de uma mãe de família.
Tenho também um irmão mais velho, com quem muito me diverti em casa. Quando em
tempos de criança, nós possuíamos maior proximidade devido aos momentos de brincadeiras.
Foi também um ente familiar com quem eu me "afastei" pelas divergências de idéias e,
principalmente, ideologias.
Na escola, pude vivenciar momentos importantíssimos e identificações que em casa
só poderia obter através de maior convivência com meu pai, impossibilitada pelos seus
compromissos de trabalhador incansável. Desde as minhas primeiras aulas, gostei de viver
o ambiente escolar por poder brincar com os colegas de classe (confesso, porém, que
arquitetei um plano para matar aula no primeiro dia do Jardim de Infância). Mudei de
colégio umas seis vezes, do C.A. para a quarta série, da quarta para o Ginásio (chamavam
assim da quinta à oitava), e daí para o Ensino Médio. Hoje posso perceber que isso trouxe
certa experiência no que diz respeito a compreensões de diferentes "universos pessoais" e
*
Graduando em Bacharelado em Violão pela UNIRIO.
60
Caminhadas de universitários de origem popular
até alguma opinião acerca das instituições de ensino. Dentro de tantas séries em tantas
escolas, considero o momento em que estive na Escola Municipal Governador Carlos
Lacerda, da quinta à oitava série, decisivo para a formação da minha visão de mundo. Foi lá
onde tive minhas primeiras experiências de relacionamentos, onde pude criar uma
consciência de participação dos alunos nas atividades escolares (fui membro do Grêmio
Estudantil!), onde comecei a planejar meus métodos de atuação na sociedade e de que
forma poderia trabalhar para somar mais uma força no sentido da corrente mundo melhor.
No ano de 1997, pouco antes de entrar no "Lacerda" (como é chamada a escola aqui
pelas redondezas) comecei a estudar música e violão, através de aulas particulares com o Sr.
Hélcio, conhecido do meu pai em uma de suas viagens de volta do trabalho. Em um gráfico
da minha vida, esse seria um momento de imensa importância e definição. No Lacerda,
tínhamos aulas de música, fato raro em escolas públicas, o que ampliou e incentivou mais
ainda minha vivência musical. Nessa época, pensava em ser enxadrista e violonista ou
matemático e violonista ou engenheiro e violonista... sempre quis ser músico! Outras
profissões por mim cogitadas só maquiavam certos medos impostos pela sociedade: "Músico?
Vai morrer de fome". Era o que diziam e dizem por desconhecimento e pelo fato de eu ter
nascido em família humilde. Mas uma característica que herdei de minha mãe foi a teimosia,
e consegui através daí me libertar aos poucos de certas profecias do terror, recebidas por
todos aqueles que pretendem transcender certos costumes e idéias.
Chegando ao fim do Ensino Fundamental, havia optado por prestar concursos para
escolas técnicas. Fui bastante incentivado pelos professores do colégio e comecei a me
preparar. Estudei sozinho até dois meses antes da prova e senti que precisaria fazer um curso
preparatório... permaneci esses dois meses no esquema escola e curso, e consegui passar nas
provas do CEFET e CEFETEQ. Decidi ingressar no Ensino Médio e curso de Eletrônica do
CEFET, visando atividade de alguma forma aproximada da música, através de conhecimentos
da estrutura de equipamentos e som.
Depois de iniciar no novo colégio, minha vida mudou brusca e rapidamente. Acordava
às cinco da manhã para conseguir chegar pontualmente, nunca tinha estudado tão longe, o
caminho de uma hora para chegar tinha direito a ônibus lotado e barulhento, eu ainda
carregando mochila e violão. A partir dessa realidade, tomei consciência das dificuldades
da vida de pessoas que basicamente trabalham, dormem e andam de ônibus, como o meu
pai. Mas tudo andava bem: foi tempo de muito aprendizado, concretização de idéias e
formulação de planos. Encontrei outros que, assim como eu, pensavam em estudar música
ou que trilhavam um caminho de ultrapassar barreiras para realizar sonhos por muitos
considerados impossíveis.
Foi também o momento em que começavam a se desfazerem os elos que me ligavam
a minha família. Nessa época, comecei a namorar uma menina da minha turma, fato que
acentuou ainda mais as mudanças que vinham acontecendo. Descobri, ao andar de ônibus
com a camisa do colégio, diversos pontos da cidade, que, se estudasse perto de casa,
nunca conheceria, como: centros culturais, museus, parques... o fato de estar longe de
casa impedia certos "nãos" vindos da minha mãe, quando eu ousava pedir autorização
para ir a locais mais afastados.
No CEFET, aprendi a me virar sozinho indo e vindo pela cidade quase toda. Depareime também com uma organização estudantil mais sólida, um Grêmio construído e com
história, onde tive oportunidade de participar de passeatas, assembléias e combates às
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
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injustiças e falhas vindas da direção escolar. Meus dias eram quase todos fora de casa,
saindo cedo e chegando tarde, pois cantava num coral da UERJ, fazia sempre alguma
atividade na Coordenação de Educação Artística, além de tocar violão com os amigos no
pátio do colégio (o que para mim era muito mais interessante que voltar num ônibus cheio
debaixo do Sol do meio-dia). Passava também muito tempo na casa da minha namorada...
Os últimos meses no CEFET não foram muito fáceis. Havia começado a fazer um curso
na Escola de Música da UFRJ e o colégio me tomava um tempo precioso de estudo. Aos
poucos, fui largando de mão as matérias, sob o argumento de que não havia prioridade em
me dedicar à absorção daquele conteúdo. O vestibular estava por vir e eu precisava estudar
para o teste de Habilidade Específica de Música. No final do ano de 2003, prestei vestibular
para a UFRJ... consegui passar na prova de Música, mas no dia da prova de Química eu
estava com a cabeça perturbada e um tanto depressivo, e não consegui passar a limpo as
respostas, o que me desclassificou do concurso. Tudo no seu tempo... no ano seguinte fui
aprovado para o Bacharelado em Violão da UNIRIO, depois de conseguir estudar sozinho
mesmo. Ter estado num bom colégio no Ensino Médio e Fundamental me forneceu uma
base de conteúdo e metodologia de estudos que fizeram da minha aprovação no vestibular
um processo menos doentio de que o normal.
Comecei a faculdade muito bem, apesar dos problemas encontrados em instituições
federais de ensino. Nesse ponto, fui auxiliado pela experiência de três anos em uma escola
federal de grande porte como o CEFET, o que me fez não sentir como situações novas as
imensas diferenças econômicas entres os alunos e a dita "liberdade" de um estudante de
universidade. Na UNIRIO, tive acesso a alguns contatos e conteúdos que me aperfeiçoaram
como músico e ampliaram minhas possibilidades profissionais.
Hoje não sou dono de recursos financeiros o suficientes para comprar o carro do ano e
nem posso almoçar nos restaurantes do shopping perto da faculdade, localizada no bairro da
Urca, a quase duas horas da minha casa. Mas acredito estar exemplificando a alguns irmãos da
nossa sociedade que todo o caminho profissional, se buscado com fé, afinco e paciência, sem
exceções, se torna em algum momento plenamente realizável. Sonho impossível?
Menor que meu sonho não posso ser.
Lindolf Bell
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Caminhadas de universitários de origem popular
Minha vida contada em versos
Fernanda Guimarães Felix *
Foi no ano de 1982, no dia vinte e seis
Começava a minha história
Que conto agora a vocês...
Numa tentativa frustrada
De ocorrer parto normal
Fiquei um tempo no oxigênio, internada
Passei da hora de nascer no hospital.
Porém, isso não me derrubou de jeito algum
Apesar de não ter mamado no peito,
Cresci forte e fui parar no Jardim I.
Indo para um colégio de freiras da Praça Seca
Onde estudei até completar a alfabetização
E na peça de fim de ano, fui a árvore oliveira
Mas numa das brincadeiras perdi minha dentição.
Nessa mesma época, meu tio faleceu
Minha família encontrou apoio nas freiras
E descobrimos que nossa fé não morreu.
*
Graduanda em Enfermagem pela UNIRIO.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
63
Fui para um colégio religioso no Campinho
Um bairro do subúrbio era minha estada
Briguei uma vez pra defender meu irmãozinho
Mas escapei do castigo por não estar errada.
Na 2ª série fundamental eu não estudava direito
E sempre ficava depois das aulas
Para aprender a fazer o dever perfeito.
Assim, continuava na 5ª e 6ª séries meu legado
Dessa vez em um novo colégio de outro local
Onde aumentava aos poucos meu aprendizado
Mérito da feira de ciências, no grupo da Clínica Geral.
Foi aí que, pela área biomédica, comecei a me apaixonar
Neste momento decidi que queria fazer Medicina
Um sonho começava a brotar, mas pra isso eu teria que lutar.
Da 7ª série até o 1º ano procurei ter atenção
No colégio do bairro atual no qual estudei
Assim, com esforço e muita dedicação
Boas colocações na turma alcancei.
Nos meus 15 anos, o príncipe da festa tava mais pra rei
Porque era meu tio muito estimado por mim
Foi um dos dias mais felizes que passei.
Neste mesmo ano, estudei até chegar o Natal
Fiz uma prova de seleção para um colégio "puxado"
Para entrar na 2ª série do 2º grau
E quando passei foi só comemorar o resultado.
No entanto, não podia desistir, tampouco relaxar
A maior meta, minha razão de prosseguir
Era passar no "temido" vestibular.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Mas não passei para Medicina, infelizmente
E tentei mais três anos minha vaga na Federal
Com o apoio da família, da minha mãe especialmente,
Estudando através de TV, livros e jornal.
Decidindo na quarta tentativa
A carreira de Enfermagem
Acreditando e com muita expectativa.
Não tinha escolha: era passar ou trabalhar
Estava muito ansiosa no dia dos resultados
Tive insônia esperando o "site" entrar no ar
Meu nome tinha que estar na lista dos classificados.
E na madrugada veio minha alegria
Acordei minha mãe e a casa toda
Num momento único de desatino e euforia.
Depois disso, foi crítica a situação:
Primeiro a distância da minha casa à Universidade
Seguida pelo problema com a alimentação
E o empréstimo de livros com certa dificuldade.
Mas quando achei que a tempestade estava a findar
Estava apenas começando, porque o desafio
Era não apenas entrar, mas sim como continuar?
Pois passava por momentos pessoais complicados
Como eu iria arcar com os gastos da universidade,
Estudando muito, com meus pais recém-separados,
Com preocupações e excesso de atividades?
Tendo despesas de xerox, alimentação e transporte,
Penei bastante durante os primeiros períodos
E pensei em soluções alternativas, mas todas sem sorte.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
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Até que soube de um projeto de pesquisa/extensão
Chamado "Conexões de Saberes", e me informei
Então, fiz entrevista e levei documentação
Curti minhas férias de julho e aguardei...
Inesperadamente, fui chamada para integrar
Essa equipe de "conexistas" com os quais muito aprendi
E aproveito para agradecer por me ajudarem a caminhar.
Na Universidade, foi a chance de permanecer
Mostrar que o aluno de origem popular
Tem potencial para aprender e crescer
E hoje sou feliz, por esta história compartilhar.
Escola Aberta: sonho que desperta
Quando foi pedido pra do "Escola Aberta" falar
Tive grande dificuldade e ao mesmo tempo emoção
Porque fui para lá com o objetivo de ensinar
Mas acabei recebendo uma lição
Cheguei ao primeiro dia com a minha mala na mão
Com meu saber acadêmico e nenhuma experiência
Tendo que transmitir sobre direitos humanos e leituração.
Como fazer para ser respeitada
Sem nesta comunidade sequer morar?
Belford Roxo aos fins de semana
Tornou-se meu segundo lar.
E com o tempo veio a resposta
Ouvir uma criança me falar:
"Tia, semana que vem você volta?"
Meus olhos se encheram de lágrimas
E meu coração de coragem
Pra lutar por mais oportunidade
Por essa gente de boa vontade.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Dizer a eles que não desistam jamais
De ocupar o lugar que alcei com muita garra
Chegar à Universidade, todo mundo é capaz.
E que também não deixem de sonhar
Mesmo sabendo que nem sempre se acerta
Porque o sonhar é a semente do realizar
Escola Aberta é o sonho que desperta.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
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Olhar estrangeiro
Francelino Conceição Lopes Cruz *
Assim como muitos jovens caboverdianos, a minha caminhada nunca foi fácil, mas, a
partir do momento em que dei o primeiro passo em busca dos meus objetivos e ideais, sentime empenhado a fazer o melhor possível para superar minhas próprias expectativas. É assim
o homem comum caboverdiano, lutador, persistente, determinado e muito esperançoso, e,
quando pára para pensar na vida, logo vem à mente o longo caminho que terá que percorrer
para dominar o destino.
Por termos um país com poucos recursos econômicos, apesar de livre, estamos sujeitos
a várias conjunturas políticas e socioeconômicas, o que leva, por vezes, a que muitos
caminhos sejam desviados ou encontrem o não-desejado pela frente. Eu sempre fui otimista,
sempre acreditei em algo diferente e melhor, e consegui dominar um pouco o meu caminho,
apesar de ter noção que há ainda muito a percorrer. De qualquer forma, acho que posso dizer
que sou um vencedor e sinto orgulho por ter conseguido ultrapassar as primeiras barreiras.
Memorial
Ainda me lembro do meu primeiro dia de aula. Muitos contam que foram levados pela
mãe ou pelo pai. Esse não foi o meu caso, mas os meus motivos eram válidos e perfeitamente
aceitáveis. A minha mãe era pai e mãe ao mesmo tempo e tinha que trabalhar arduamente,
cuidando dos seis filhos.
Por questões burocráticas e por, nessa altura, morar no interior não tive oportunidade
de freqüentar o ensino pré-primário. Entrei para a escola primária aos sete anos de idade e
terminei aos onze anos. Posso dizer que foi um período muito agradável da minha vida que
recordo com certa nostalgia. A escola situava-se perto de casa e éramos crianças do mesmo
estrato social, com experiências e interesses semelhantes.
O ciclo preparatório, com duração de dois anos, tinha por objetivo preparar jovens
para o ensino no liceu, que já não foi muito fácil. Aqui interferiam fatores de outra ordem
que promoveram uma outra visão, menos alegre, dessa nova fase da minha vida. A nova
escola situava-se a cinco km de distância da minha localidade, o que implicava ter de
efetuar minhas refeições naquele local. A matéria de aprendizagem também era mais
significativa, e exigia mais cadernos e materiais de trabalho, que saíam da pequena
mensalidade que minha mãe recebia. Não era fácil arranjar dinheiro para todos os materiais
de que necessitava. Lá em casa só podíamos contar com o pouco dinheiro que a minha mãe
*
Graduando em Medicina pela UNIRIO.
68
Caminhadas de universitários de origem popular
recebia da FAIMO, que era também para as outras despesas da casa e o sustento da família.
Só algum tempo depois, meu pai regressou da Europa, onde passara vários anos. Foi um
momento muito feliz para mim e para a minha família, para mim em especial porque não o
conhecia. Passado algum tempo, por ironia do destino, meu pai faleceu. Vivemos momentos
desesperantes, tudo se tornou ainda mais complicado. Se, durante o primário, já era difícil
comprar um simples caderno, quanto mais seis. Naquela altura, não era qualquer pessoa que
conseguia comprar um caderno para o filho levar à escola, quanto mais uma pobre
trabalhadora com tantos filhos para cuidar.
Eu costumava levantar-me às cinco horas da madrugada para poder chegar à escola às
oito, andava 10km a pé, diariamente, por não ter dinheiro para pagar o transporte. Foi então
que surgiu uma ONG dinamarquesa na minha ilha, que tinha por objetivo ajudar crianças
das comunidades distantes e oriundas de famílias humildes na aquisição de materiais
didáticos ou outro tipo de gêneros que achassem fundamentais. Também pude contar com
o auxílio dessa instituição.
Terminando o ciclo preparatório, ingressei no único liceu da ilha (Liceu Suzete
Delgado). Ele albergava alunos de todos os cantos da ilha. Para mim, o primeiro ano foi
muito difícil, devido à distância e à situação orográfica da ilha (montanhosa). Saía de casa
de madrugada e chegava à tarde. Andava diariamente 48km de carro e ainda tinha que
ajudar nas tarefas domésticas. Por vezes, era muito pouco o tempo que restava para estudar.
No segundo ano, fui chamado pela Direção da escola para ficar numa residencial
estudantil (o INTERNATO da Ribeira Grande). O seu objetivo era albergar alunos de
zonas rurais e distantes, com o intuito de diminuir o índice de abandono escolar
provocado pela situação orográfica. Naqueles cinco anos que lá passei, aproveitei ao
máximo para progredir nos meus estudos. Pude também conhecer melhor a minha ilha
e a minha gente, visto que todos nós éramos dos mais variados pontos da ilha. Era gente
que se parecia comigo, na maioria, de famílias humildes. Passei momentos inesquecíveis
nos intercâmbios que promovíamos aos fins-de-semana, nas diferentes localidades de
que provínhamos. O ambiente era muito acolhedor e fizemos grandes amizades, que
carregamos para o resto da vida.
O fim dos estudos liceais marcou uma nova etapa na minha vida, uma etapa de mais
responsabilidades e novos horizontes no meu caminho. Chegara o momento de entrar na
universidade. No mesmo ano em que concorri, consegui três vagas, duas em universidades
estrangeiras (em Portugal, para cursar Engenharia Química, e no Brasil, para Medicina) e
outra em Cabo Verde, o meu torrão natal (para o curso de Engenharia Informática). Foi um
momento em que houve mudanças governamentais no país e se queixavam do déficit nos
cofres públicos. O número de bolsas de estudo reduziu drasticamente e quase sempre
eram atibuídas tardiamente. Foi um momento muito difícil para mim. Via os meus colegas
saírem do país para continuarem os seus estudos, enquanto eu ficava em terra, parado, por
motivos financeiros.
Numa tentativa de remediar a situação, minha família mandou-me para São Vicente,
para estudar Engenharia Informática, mas não era aquilo que eu queria. Para agravar, o
governo demorou muito tempo para me conceder a bolsa de estudos a que eu tinha direito,
tornando impossível a minha permanência numa ilha que não era a minha e suportar todas
as despesas que tal situação origina. Tive de desistir do curso, para regressar a casa. Nessa
mesma altura, surgiu um concurso para formar observadores meteorológicos no Instituto de
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
69
Metereologia, na área de Aeronáutica, organizado pela Organização Metereológica Mundial.
Concorri, passei no concurso e atribuíram-me uma bolsa de estudos. Terminada a formação,
consegui trabalho no aeroporto da minha ilha, onde passei dois anos.
Findo esse tempo, senti vontade de progredir um pouco mais na vida e dar continuidade
aos sonhos que antes acalentara. Eu queria ser médico. Sentia uma imensa vontade de
ajudar a minha gente no seu bem-estar e na sua saúde. A idéia de ser médico surgiu num dia
em que eu estava com o meu irmão na horta. De lá, via passar as mães com as crianças
enfermas ao colo, em direção ao Posto de Saúde. Ao chegarem lá, tudo o que encontravam
era um enfermeiro, cujos esforços não chegavam para satisfazer as necessidades. Essas mães
levam sempre o coração nas mãos, porque em certas circunstâncias os pacientes têm de ser
enviados para o centro do conselho, onde podem ser acompanhados por médicos, no Hospital.
A situação agrava-se quando a família não possui recursos financeiros para essas deslocações,
o que acontece na maioria dos casos. Então, voltei-me para o meu irmão e disse-lhe que um
dia havia de ser médico, para poder de alguma forma contribuir para a diminuição do
sofrimento daquelas mães. Ele ficou em silêncio. Continuei a trabalhar como observador,
mas não desisti do meu sonho. Mesmo em segredo, continuei a concorrer para conseguir
uma vaga para estudar Medicina, o que acabou por acontecer. A certa altura, consegui uma
vaga na Rússia e, na pré-seleção, uma vaga no Brasil. A minha mãe não concordou com a
minha ida para a Rússia e aguardei o momento da seleção definitiva para o Brasil. Consegui
uma colocação em Biomedicina e atribuíram-me uma bolsa de estudos. Ao chegar ao Brasil,
tudo foi resolvido e estou agora na Faculdade de Medicina.
As tentativas de conquistar uma vaga e uma bolsa de estudos não puderam ser
partilhadas com ninguém. Mesmo quando os resultados saíram, contei apenas à minha mãe
e ao meu irmão. Num primeiro momento, minha mãe ficou muito resistente com a minha
saída de Cabo Verde, porque eu era o seu braço direito e era quase como se a estivesse a
abandonar. Foi uma luta para lhe explicar meus motivos e fazer com que ela os aceitasse. Na
hora da despedida, muita gente não acreditava que eu estava de fato de partida. Só as
lágrimas no rosto da minha mãe foram capazes de convencê-los que minha hora também
chegara. A minha persistência, a minha luta abrira o meu caminho.
A primeira vez que regressei de férias à minha terra natal, ao ver as lágrimas de alegria
da minha gente, tive a certeza que acertara nas minhas decisões e que é esse o meu caminho.
Família
É sempre bom falar da família. Ela é a nossa base. No meu caso, lembro a minha mãe e
o quanto ela tem sido importante nessa caminhada, por tudo o que ela fez e continua a fazer.
Ainda recordo as madrugadas em que ela me acordava para que eu pudesse ir à escola, e
como me preparava o lanche antes de sair. À soleira da porta, todos os dias, a mesma
mensagem, "comporta-te". Lembro-a com muito carinho. Eu era o mais avançado dos meus
irmãos nos estudos e, para eles, a situação seria ainda mais difícil, por isso era tão importante
não desapontar a confiança que minha mãe depositava em mim.
Nessa caminhada, tive outra "família", que não posso deixar de recordar, a que ganhei
na residência estudantil. Não sei se hoje estaria aqui se não tivesse passado por lá. Os laços
que lá construí jamais poderão ser esquecidos. A diretora, os supervisores e o pessoal geral
fizeram-me conquistar amizade, respeito e disciplina, ajudando-me a ser o homem que sou
hoje. Sou muito grato a todas essas pessoas. Elas ajudaram a despertar em mim o interesse,
70
Caminhadas de universitários de origem popular
a curiosidade e a vontade de fazer uma faculdade. Olhando para o passado, para os meus
colegas da escola primária, e com quem estudei até terminar o ciclo preparatório, vejo que
só eu estou no ensino superior. A vida é ingrata e é por isso que sei que tenho a obrigação e
o dever de aproveitar as oportunidades que me foram oferecidas e conquistadas. Os meus
irmãos também não puderam continuar com os estudos. É também por eles que eu luto.
Universidade e Escola Aberta
Para mim, a faculdade começou antes de chegar ao Brasil, ciente das dificuldades que
encontraria, do grau de responsabilidade que teria de ter, além da determinação e disciplina
que precisaria ter para vencer a adversidade.
Nos primeiros dias, tudo é festa, amizade e alegria. De início, tudo parecia bem, mas
logo no segundo período começaram os problemas. O nível de exigência e de dificuldade
era elevado, precisava de livros, que a minha bolsa não dava para comprar, tinha problemas
pessoais, aumentavam as saudades da família, tinha de enfrentar a cidade do Rio de Janeiro,
conhecida pela sua vida agitada e estressante (para quem, como eu, não tinha o hábito), mas
nada venceu a minha vontade de continuar.
Ao entrar nesse Programa Conexões de Saberes, muita coisa mudou: em nível financeiro,
a bolsa atribuída representa uma ajuda significativa; em nível pessoal e pedagógico, as
formações abordam temas importantes e interessantes aos quais eu era alheio, passei a
conhecer melhor a realidade do país dos meus colegas de trabalho.
A articulação entre o Conexões de Saberes e o Programa Escola Aberta tem sido um
presente para mim e sei que virá a dar os seus frutos, apesar de ainda não estar suficientemente
preparado para fazer tais oficinas. Quando olho para aquelas crianças, vejo que elas têm a
minha "cara" quando eu era criança, moram em lugares isolados, com acesso restrito às
oportunidades e à informação. Mas, acima de tudo, são pessoas felizes, com muita vontade
e disposição para aprender e para melhorar.
Ao contatar e conhecer melhor a realidade do país, dos meus colegas, que considero
vencedores, vejo que conseguiram virar a página da vida e, hoje, estão de pé para ajudar a
mudar a situação dos seus irmãos, das pessoas que estão nos seus meios de origem.
Esse Programa veio a reforçar e reanimar os meus ideais. Na hora da partida para a
minha terra natal, com o meu diploma nas mãos, acreditem que não regressarei como um
simples médico. Levarei toda a minha história de vida aqui, levarei outros diplomas, que
consolidarão meus objetivos.
Para os meus colegas do Conexões, hoje vocês pertencem à elite brasileira, a porta foi
aberta, a porta do ônibus foi aberta para vocês; mesmo cheio, mandem abrir a porta nos
próximos pontos para entrarem os nossos irmãos.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
71
Minha percepção de mundo
Francisco de Paula Araújo *
Foi Che Guevara quem disse em seu diário, que posteriormente viraria livro (De moto
pela América do Sul) e filme (Diários de motocicleta), que o trabalhador rural latinoamericano é um ser "eminentemente revolucionário". Com base em suas idéias, eu diria que
o homem é um ser "eminentemente revolucionário". Quando meu pai, um homem ostentando
o vigor de seus trinta e sete anos de idade, resolvera largar uma vida árdua de camelô, em
uma barraca onde se encontrava de tudo um pouco, resolvia, em grande medida, com aquela
decisão, tentar revolucionar sua própria vida. João Gualberto, como se chama meu pai, é um
daqueles homens obstinados. Não nega trabalho. Dispensa domingos e feriados caso precise
adiantar alguma de suas obrigações. Ele e minha mãe, Maria Naiza, são filhos do sertão.
Aprenderam desde cedo a lidar com as dificuldades. Quando meus avós maternos resolveram
se estabelecer no Maranhão, no início da década de 1970, fugindo dos intermináveis períodos
de seca do sertão cearense e levando consigo uma "reca" de filhos (sete ao todo), meu pai já
empreendia uma de suas andanças pelo mundo. Tornara-se um dos, literalmente falando,
construtores de Brasília, recém-fundada capital do Brasil.
João e Maria (meus pais) se reencontram em terras maranhenses, em meados da década
de 1970. Não dá outra: minha mãe rompe o noivado firmado com um outro rapaz e casa-se
com meu pai. Da união, nascemos meus irmãos, Erisvan, e eu, Francisco.
Embora árdua, nossa vida era promissora em meados da década de 1980. Além da
banca já mencionada, onde meu pai comercializava uma variedade de mercadorias, tínhamos
uma pequena bodega, sob responsabilidade de minha mãe. Estudávamos na única escola
particular da cidade: eu pagando mensalidade e meu irmão com bolsa de estudo cedida pela
igreja, instituição a qual devotaríamos anos de dedicação e que marcaria profundamente
minha percepção de mundo.
Nesse período, começa uma reviravolta em nossas vidas: depois de fugir da seca do
sertão se aventurar pelo planalto central desbravar os longínquos garimpos mato-grossenses
testemunhar os eminentes conflitos pela posse da terra no Maranhão e tentar a sorte como
comerciante, meu pai tomaria a grande decisão: iria "bamburrar". As notícias que chegavam,
vindas do interior do estado do Pará, eram as mais animadoras possíveis. Muitos "enricavam"
da noite para o dia, como em um passe de mágica. Era o Eldorado brasileiro. Nas mais
longínquas paragens, as notícias já eram sabidas por todos. Grupos inteiros de homens
deixavam o seu lar na esperança de melhorar de vida, entre esses estava meu pai.
*
Graduando em Biblioteconomia pela UNIRIO.
72
Caminhadas de universitários de origem popular
Durante um ano, as notícias que tivemos sobre ele foram as mais vagas possíveis. O
que sabíamos com certeza era que a situação por aquelas bandas já não andava muito boa.
A quantidade de pessoas que confluíam naquela direção era incalculável. Acirravam-se os
ânimos, sobretudo em virtude da corrida pelo ouro, já escasso em alguns lugares. Os
assassinatos tornaram-se constantes e a malaria alastrava-se garimpo adentro, provocando
um sem número de vítimas, muitas delas fatais.
Quando meu pai retornou um ano depois de sua fracassada empreitada, o que havia
sobrado de seu casamento era uma lacuna que nunca seria preenchida. Depois de uma série
de desentendimentos e um outro tanto de voltas pelo mundo, meu pai já não residia sob o
mesmo teto que minha mãe.
Com o afastamento de meu pai do convívio do lar, as coisas tornaram-se
consideravelmente difíceis. Transferidos para uma escola pública, estudávamos pela manhã
e trabalhávamos à tarde. Nossa principal atividade: vendedor de picolé. Dependendo do
período do ano, substituíamos essa atividade por outra mais adequada à época. No inverno,
por exemplo, vendíamos desde bananas, passando por laranjas até chegar aos bolos
preparados por minha mãe. A caixa de engraxate era companheira em algumas ocasiões.
Mais adiante, em virtude das crescentes necessidades financeiras, resolvemos nos
dedicar a atividades um pouco mais "rentáveis". Foi nessa época que conseguimos um
"belo" emprego como gari ou "capinadores de rua". Entre a limpeza de uma rua e outra,
éramos realocados nas equipes de desobstrução de esgotos. Em certas épocas, atuamos
como metalúrgicos. Lembro-me como se fosse ontem o dia em que Erisvan e eu decidimos
bater o nosso recorde de produção: com macarrão de borracha pretendíamos enrolar quarenta
cadeiras em um só dia. Depois de uma jornada de trabalho iniciada às 6:30 da manhã e
concluída às 19:30, com um intervalo de trinta minutos para o almoço, nossa meta havia
sido alcançada. Para tal, havíamos sacrificado um dia de aula, o que não era de nosso
agrado. Por isso decidimos que não mais alcançaríamos nossas metas, caso faltar à aula
fosse condição para tal. Nossa decisão havia sido tomada: os estudos eram prioridade em
nossas vidas, mesmo que isso significasse algum sacrifício. A condição de trabalhadores
braçais persistiria por mais de uma década, desde que meu pai abandonara definitivamente
o lar. Contudo, nunca abandonamos a escola e nunca fizemos desta uma mera obrigação.
Paralelamente a esses acontecimentos, algo se apresentava como um diferencial em
nossa árdua empreitada de sobrevivência: era a igreja. Em 1991 ingressamos no grupo de
acólitos (coroinhas) da Paróquia São José, de Lago da Pedra, nossa terra natal. Foram oito
anos de uma intensa vivência religiosa, no sentido mais amplo que essa palavra pode
denotar. Foi nesse período que tive os primeiros contatos com as idéias socialistas/
libertárias. Embora ignorasse o verdadeiro sentido daquelas idéias, eu me sentia
profundamente atraído por elas. Foi o convívio nos grupos religiosos que proporcionou
os melhores momentos de minha vida. Ali nasceram as grandes amizades que cultivo,
mesmo à distância, até hoje. Foi ali, também, que em 1995 conheci Osvaldina, minha
grande paixão e que, nove anos mais tarde, depois de uma série de encontros e desencontros,
se tornaria minha companheira. Falar desse tempo é falar de profundas dificuldades, mas,
também, é falar de grandes realizações.
É interessante perceber que a busca por outra condição de vida sempre norteou nossas
idéias e, conseqüentemente, nossa conduta. Uma postura crítica passou a fazer parte de
nossas ações. Nesse sentido, a Igreja foi fundamental, pois se, de um lado, procurava nos
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
73
doutrinar, por outro, nos tornava sujeitos críticos, muitas vezes de suas próprias idéias.
Quando fiz quinze anos de idade, minha mãe resolveu aumentar a prole por meio de
uma adoção. Foi aí que ganhamos uma irmãzinha, negra de olhos claros, e de Martha
resolvemos chamá-la.
A educação, por sua vez, foi sempre o nosso norte. Assim como meu pai, desejávamos
revolucionar nossas vidas, e a educação se mostrou desde sempre o caminho mais viável para isso.
No final de 1998, eu concluía meu Ensino Médio e, como é possível prever, eu era um
jovem desempregado como a maioria daqueles que alcançavam esse feito um tanto heróico.
Essa situação perdurava no início de 1999, quando surgiu a grande oportunidade de deixar
tudo aquilo para trás e tentar mudar minha vida: um primo que embarcaria em uma semana
para o Rio me convidou para acompanhá-lo nessa grande empreitada. Enquanto o ônibus
adentrava sucessivamente outras terras, dei-me conta de que para além do horizonte nem
tudo era babaçu; nem tudo era vale e de que nem tudo era Maranhão. Ironicamente chegamos
ao Rio em um sábado de carnaval, enquanto essa cidade explodia em folia e nós explodíamos
em aflição por não saber o que aquele exílio nos reservava.
Há um ditado preconceituoso que diz que "chegando ao Rio, o nordestino deve ser
arremessado à parede, se grudar vai ser pedreiro ou servente. Se cair vai ser porteiro, faxineiro,
garçom, doméstica ou exercer atividades similares". Pois bem, acho que quando fui
arremessado, devo ter caído, pois o meu primeiro emprego foi em um restaurante como
copeiro, atividade similar a de garçom. Um mês depois, estava ocupado na atividade de
faxineiro de condomínio, onde ficaria por um ano. Sempre otimista, dei-me conta de certo
ceticismo que me fazia preso àquela condição que, em certos momentos, parecia definitiva.
Acredito na idéia, um tanto marxista/sartreana, que diz que o homem é construtor de
sua própria realidade. Pois bem, foi por acreditar nessa idéia que resolvi dar um rumo à
minha vida. Pouco mais de três anos após haver aportado na cidade maravilhosa, decidi
retomar o antigo sonho de cursar uma faculdade. Em 2002, por via de experiência resolvi
prestar vestibular. Aprovado para a segunda fase com conceito "C", percebi que o vestibular
não era nenhum bicho de sete cabeças. Mesmo não classificado na lista definitiva do
vestibular, um novo ânimo tomava conta de mim e apontava para novos tempos.
Em 2003, aproveitando as horas ociosas de que dispunha como porteiro de condomínio,
estudei com um pouco mais de afinco. Foi então que consegui duas aprovações: uma para
Pedagogia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ e outra para Biblioteconomia
na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/UNIRIO. Optando pela segunda, realizava
o antigo sonho de cursar uma faculdade, embora não se tratasse do curso de Jornalismo, que
tanto desejava. De modo a acompanhar minha companheira, que empreendia sua luta no
intuito de chegar à universidade, resolvi prestar vestibular novamente e, não me pergunte por
qual motivo, talvez por estagiar em uma biblioteca jurídica, resolvi me inscrever em Direito.
Para minha surpresa, fui aprovado, fiz a matricula e devo começar por lá no próximo semestre.
Sinto hoje o quanto minhas idéias têm amadurecido, muito embora não tenha perdido
nem um pouco de minhas utopias. Sei que a universidade é uma "faca de dois gumes": se, de
um lado, procura atender às exigências do mercado, por outro, se mostra como um espaço de
resistência frente ao domínio desse sistema perverso.
Sartre dizia que, à medida que o homem constrói sua realidade, reconstrói a realidade
a sua volta. Nesse sentido, é construindo a minha história que espero, de alguma maneira,
contribuir para a construção de um mundo melhor.
74
Caminhadas de universitários de origem popular
Maravilhada
Gabriele Silva dos Santos *
Muda que quando a gente muda o mundo
muda com a gente,
a gente muda o mundo com a mudança na
mente e quando a
mente muda a gente anda pra frente e
quando a gente manda
ninguém manda na gente...
Gabriel O Pensador
Escola
Estudei todo o meu Ensino Fundamental em escola pública, na Escola Municipal
Cecília Meireles, em Juiz de Fora, Minas Gerais, lugar onde fui criada. Nessa escola,
sempre tirei ótimas notas sem ter que estudar tanto. Mas, ao chegar na 8ª série, teria que
mudar de escola, pois não tinha turmas de Ensino Médio no colégio, foi aí que se
iniciaram as mudanças de minha vida... a escola que iria estudar estava em greve e como
corria o risco de perder o ano letivo, meus pais foram em busca de bolsa na escola
particular e conseguiram.
Ao chegar à nova escola particular, foi um choque, eu que sempre obtive notas altas na
antiga escola, no primeiro bimestre peguei nada mais nada menos do que recuperação em
SEIS matérias do total de nove. De repente, me vi desesperada, afinal de contas nunca havia
passado por uma situação como aquela, mas depois de muito sofrimento e muitas noites
sem dormir, consegui! Passeio de ano, mas foi esse desespero por todo o Ensino Médio, foi
um período de minha vida em que me dediquei exclusivamente aos estudos, pois estudava
no turno da manhã, tinha provas e testes no turno da tarde, além de fazer curso de inglês (que
também pagava com bolsa).
Nesse período, ainda não sabia bem ao certo o que queria fazer, afinal de contas, com
dezessete anos, tinha como tarefa escolher o que iria fazer no resto da minha vida.
Inicialmente, queria fazer Psicologia, mas como gostava tanto de História fiquei na dúvida
entre uma das duas opções, mas no fim decidi por tentar História. A única coisa que me
desagradava no curso era o fato de que provavelmente acabaria tendo que dar aula, o que
*
Graduanda em História pela UNIRIO.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
75
não me agradava (quando criança, ao brincar de escolinha, nunca queria ser a professora,
sempre dizia que nunca iria dar aulas na minha vida). Optei por tentar História e, ao terminar
o Ensino Médio, consegui passar no vestibular.
Fiquei tão feliz, pois não tinha esperança nenhuma, havia passado na Universidade Federal
de Juiz de Fora para o segundo período do ano de 2004, porém, para minha tristeza e desespero
TOTAL, perdi o dia da matrícula, ou seja, perdi a vaga que tinha lutado tanto para conseguir, é
muito triste e difícil tocar num assunto tão delicado quanto esse, que ainda me toca de maneira tão
forte e dura. Mas é melhor dar continuidade a essa história, pois, apesar das tristezas e dificuldades,
é uma história de vitória.
Nesse período, meu pai estava aposentado, mas a renda mensal não estava dando para
os gastos de casa e não conseguia um trabalho lá em Juiz de Fora, então decidiu voltar para
o Rio de Janeiro, pois aqui seria mais fácil para conseguir um emprego e foi o que aconteceu,
viemos morar no Rio.
Comecei a fazer um curso pré-vestibular, porém não consegui passar em nenhuma das
quatro faculdades que havia tentado, foi outro impacto muito forte para mim, que já tinha
ficado tão triste ao perder a vaga no ano anterior. Mas não desisti apesar de muitas pessoas me
incentivarem a tentar bolsa em uma escola particular, me mantive firme em minha decisão de
continuar tentando a faculdade pública. Fiz outro ano de pré-vestibular, mas dessa vez me
dediquei de maneira como nunca havia feito anteriormente, estudava desde a parte da manhã
até o anoitecer, incluindo os sábados e domingos. Não fazia nada além de estudar, com medo
de não conseguir passar para o curso que agora tinha certeza que realmente queria - História.
Tentei outro considerado um pouco mais fácil, mas que também me interessava bastante,
Administração. Valeu a pena tanto esforço! Havia saído o resultado das universidades UFRJ,
UFF, UERJ, UNIRIO e UFRRJ e tinha passado para a Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro, para o curso de Administração. Apesar de na ser a minha primeira opção, fiquei muito
feliz, pois, além de ter conseguido passar, havia conseguido a nona colocação neste curso! Fiz
a matrícula, que agora não deixei escapar como havia feito anteriormente, mas as aulas só
iniciariam no mês de junho, pois estava com o calendário atrasado devido às greves.
Mas meu ingresso na universidade ainda não termina agora... havia ido a uma
farmácia quando a UNIRIO ligou para a minha casa procurando por mim, cheguei em
casa e minha irmã me deu a notícia da ligação. Bom, dá até para imaginar o quanto
fiquei curiosa, mas já era tarde e não dava mais para entrar em contato com a universidade,
mas no dia seguinte me retornaram e nem pude acreditar! Imagina só, a UNIRIO me
ligou para saber se eu estava interessada em uma vaga, pois estava no edital de vagas e
eu era a próxima da lista. Foi uma correria para fazer a matrícula, pois nem sabia como
chegar nessa universidade e tinha que fazer a matrícula no curso de História naquele
mesmo dia ou, então, perderia a vaga no curso que tanto queria (de novo)! Meu pai,
então, saiu do seu trabalho para me levar até a Urca, local onde se situa a UNIRIO, achei
que aquele era um dos lugares mais lindos que já havia ido, enfim, consegui fazer a
minha matrícula.
O que é a universidade
Nos primeiros dias de aula, fiquei simplesmente maravilhada e, ao mesmo tempo, um
tanto perdida, pois as aulas já haviam iniciado há três semanas. Mas consegui com muita
dificuldade, como tudo o que conquistei em minha vida, acompanhar as matérias e estou
76
Caminhadas de universitários de origem popular
tão maravilhada com o curso que agora tenho certeza que fiz a escolha certa. E, digo mais,
penso até em dar aulas para ter a oportunidade de demonstrar aos outros o quanto a História
é uma matéria simplesmente linda, mas me acho um tanto suspeita para dizer sobre a matéria
que estou cursando.
A universidade era um ambiente tão novo e ao mesmo tempo tão diferente daquele
que estava habituada. Vou tentar fazer a descrição de como me senti nesse novo ambiente:
era perfeito, do ponto de vista intelectual, além de uma expressão cultural muito forte.
Também percebi que pessoas como eu (de origem popular) eram uma pequena minoria, foi
só então que me dei conta que o ensino é manipulado por uma elite capaz de monopolizar
e acumular em suas mãos um poder econômico e ao mesmo tempo intelectual e cultural.
Considero isso uma forma de manipulação das pessoas, pois retira de uma maioria a
oportunidade de esclarecimento intelectual, facilitando a manipulação dessa massa para
que não sejam possíveis mudanças radicais na estrutura de nossa sociedade brasileira
massacrante com a massa populacional. Sinto-me, portanto, na obrigação de romper e
proporcionar a outros oriundos do mesmo ambiente de onde vim a mesma oportunidade
que estou tendo ao conseguir romper as barreiras quase que intransponíveis, acreditando
que, com a mudança de percepção da realidade, haverá mudanças estruturais significativas.
Família
Aproveito este espaço que me foi concedido para agradecer às pessoas que se esforçaram
tanto para que eu tivesse a oportunidade de chegar até onde cheguei, aos meus pais, que,
mesmo não tendo oportunidade tão maravilhosa e privilegiada, não me privaram de poder
estudar. Além disso, foram eles que me mostraram o quanto é importante os estudos e é a
partir dos estudos que estou conseguindo alcançar meus objetivos.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
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Tomada de decisão
Janaína Silva Lucas *
Minha vida começou com muita luta desde o momento em que fui gerada, pois minha mãe
não esperava essa gravidez. Fui em frente e hoje estou aqui para contar minha caminhada. Minha
origem familiar é de muitas lutas, começando pelo meu pai, que, quando menino, foi engraxate
para poder pagar os estudos. Conseguiu vencer os desafios e hoje é exemplo para minhas batalhas.
Sempre morei em bairro de classe média, mas não é por isso que não conheça a realidade
de muitas famílias desse país. Minha educação foi embasada em não "olhar" só para mim,
mas para o próximo também. Pois todos fazemos parte de um mesmo universo e não sabemos
qual "prova" a vida poderá, de um momento para outro, nos apresentar.
Estudei em escolas particulares, mas era através de muito suor que meu pai pagava as
mensalidades. Nessas sofri preconceito racial por não ter os cabelos lisos, o nariz fino e a
pele clara. Até hoje lembro de um desses momentos: era dia de São Cosme e São Damião, a
menina que "cismava" comigo distribuiu saquinhos de doce para a turma e fui a única que
não ganhou. Foram momentos desagradáveis e difíceis, superados através da minha
autoconfiança porque me respeito e, diante da vida, somos todos iguais.
No Ensino Médio, os atos eram mais amenos. Mas lembro o seguinte fato: a professora
de Literatura havia me chamado de "docinho de coco" e certo rapaz completou a frase com
a palavra "queimado", "docinho de coco queimado". Nesse caso, o preconceito foi sutil,
mas não é por isso que passou desapercebido.
Da 5ª à 8ª série e no Ensino Médio, as discriminações não eram como nas primeiras
séries do Ensino Fundamental, mas pequenas situações não deixavam de acontecer. Sentiame certamente discriminada, mas não me intimidava.
Na 8ª série, decidi que faria faculdade. A opção por fazer um curso de nível superior foi
devido à preocupação de ter boa formação para a conquista do mercado de trabalho e assim
obter uma vida financeira estável. A faculdade foi uma necessidade e não apenas um sonho
de alcançar a carreira desejada.
Ao decidir pelo caminho da universidade na 8ª série, pensava em fazer Odontologia,
mas tal idéia mudou com o passar do tempo e decidi seguir a Medicina por achar que tem mais
opções de especialização e mercado mais favorável no que diz respeito à oferta de emprego.
Fui à luta pela vaga no curso de Medicina, fiz a 3ª série preparatória e não passei, mas
tentei novamente e sem cursinho, pois não era possível pagá-los por serem caros. Em uma
das inscrições, optei por Odontologia e passei na UERJ, mas não ocupei a vaga, pois não era
*
Graduanda em Enfermagem pela UNIRIO.
78
Caminhadas de universitários de origem popular
o que eu queria. Resolvi fazer Enfermagem devido ao fato de ser a carreira mais próxima da
Medicina, apesar de terem funções bem diferentes.
Lá fui eu. Estudei sozinha e prestei o vestibular para Enfermagem na UFF e UNIRIO.
Passei para as duas e optei pela UNIRIO, devido à proximidade do meu bairro. Mesmo assim,
enfrento uma viagem para chegar à universidade de, aproximadamente, uma hora e meia.
Entrei na universidade posso dizer que bastante consciente da sua grande importância
na vida de um estudante. Sabendo que não é a total garantia de um excelente emprego e
altos salários, pois depende também da competência e do esforço em mergulhar no mercado
de trabalho que é bastante concorrido e injusto.
Vou sair da "casa" com um pensar mais sólido e objetivo. Vou me formar ano que vem
e já sinto saudades da faculdade. Houve momentos de desafios que foram puro aprendizado
e preparação. Amo a universidade, pois é muito importante na minha vida.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
79
Meus referenciais
Julio César da Silva Oliveira *
Cresci dentro de uma verdadeira confusão de idéias, com seis irmãos, mais uma
irmã adotiva que, minha mãe, praticamente, salvou da morte, após a sua mãe tê-la
renegada e a abandonado. Desde pequeno, presenciei e estive envolvido em diversas
tentativas de auto-afirmação, entre o meu pai e minha mãe, que divergiam em suas
formas de ver o meu futuro.
Meu pai, um homen, semi-analfabeto, trabalhador, oriundo de comunidades
nordestinas, que a duras custas conseguiu aprender uma profissão nas muitas obras em que
trabalhou no ramo de construções civil, defendia, dentro de sua própria realidade, a minha
inserção no mesmo processo, a fim de garantir o meu sustento através de uma profissão.
Essas eram as suas falas: "Esse menino tem é que aprender uma profissão, você tem que parar
de fazer ele sonhar tanto". Enquanto minha mãe, com um grau de instrução um pouco maior,
fazia das tripas coração, incentivando a mim e aos meus irmãos a continuarem os estudos.
Foi dela própria a iniciativa de voltar a estudar e com muitas dificuldades, além de estar
grávida, cursar e terminar o antigo ginásio.
Pai e mãe, dois amores que jamais poderia deixar de ouvir, aliado a essa realidade, o
fato de morar em uma invasão, hoje um bairro. Sofríamos constantemente com a falta de
saneamento básico, com o tráfico de drogas, com poucos recursos financeiros e descaso das
autoridades. Perdi as contas de quantas mortes presenciei ou tive conhecimento, amigos,
vizinhos, jovens, homens e mulheres, dizimados pelo tráfico, essa sempre foi a minha
realidade. A educação religiosa foi o divisor de águas em minha vida, pois nas horas decisivas
fui influenciado a decidir pelo que hoje me manteve vivo. Com poucos recursos, sucumbi
aos anseios de meu pai, sem deixar de sonhar com um futuro melhor. Sem saber ao certo a
importância de continuar os estudos, mergulhei nas muitas obras, ajudando meu pai.
Começou, então, outra etapa de minha vida, a de trabalhador braçal, que não
conseguiria levar por muito tempo, pois se trabalhava muito e ganhava-se pouco. Fui
incentivado, mais uma vez, por minha mãe, e passei a trabalhar como ambulante, na
economia informal. Aos 13 anos, comecei a vender picolé no trem e, por ser ilegal, vivia
correndo dos "rapas", policiais ferroviários federais. Após um dia inteiro de árduo trabalho
no trem, após pegar a última carga de picolé, justamente no dia em que eu estava
ganhando mais, fui pego pela polícia e levado para DP, na Central do Brasil, onde fui
autuado, além de perder toda a mercadoria. Em prantos, completamente desnorteado,
*
Graduando em Biblioteconomia pela UNIRIO.
80
Caminhadas de universitários de origem popular
preso, cerceado de meu direito de trabalhar, com a minha mãe esperando-me em casa.
Depois de tamanha decepção e angústia, fui liberado, afinal de contas não havia
cometido crime algum.
Retornando para a minha casa, minha mãe, ao me receber, deparou-se com a minha
revolta, decepção e amparou-me. Juntos, decidimos, sem muitas alternativas, que iríamos
trabalhar nas praias. Foi então que conheci as praias do Rio, não como turista ou
freqüentador, mas sim como trabalhador desesperado em busca de seu sustento. Perdi as
contas de quantos quilômetros de areia eu caminhei, suando, ralando, em busca de uma
fonte de sustento. Até hoje posso ouvir os ecos de meus gritos na praia: camarão, camarão,
ta pulando, vai, camarão, vai, etc.
Trabalhei em outros ramos, sempre ligado à construção civil e ao comércio, sem
um futuro certo, pois passava pouco tempo trabalhando nesses lugares onde a exploração
é muito grande e com poucas opções de futuro. Nesse meio tempo, eu e minha família
passamos a enfrentar uma dificuldade maior, por conta do envolvimento de meus irmãos
no trafico de drogas. Minha mãe viveu momentos de angústia, tendo que, muitas vezes,
sair de casa em busca de meus irmãos, tirando-os das mãos de policiais, que tinham o
objetivo de extorsão; além de outras facções que invadiam a nossa residência com a
intenção de tirar-lhes a vida.
Certa vez confundiram, eu e minha irmã, com outros dois bandidos e quase nos
levaram para a morte. Já com 19 anos, nasceu a minha primeira filha, fruto de uma união
com uma jovem da própria localidade. Na esperança de conquistar uma condição melhor e
influenciado por familiares de minha mulher, viajamos para o estado de São Paulo, em
busca de melhores oportunidades de trabalho. Para minha decepção, os sonhos tornaram-se
pesadelos. Não conhecia a cidade, que é muito maior que o estado do Rio de Janeiro, tendo
um preconceito em relação a pessoas oriundas do Rio, o que dificultou demais a minha
inserção no mercado de trabalho daquela cidade.
Passamos por momentos angustiantes e conflitantes, culminando inclusive com
uma situação inédita em nossas vidas, passamos necessidades, sem ter o que comer e onde
morar, após uma discussão e desentendimentos com os familiares de minha esposa, já
acostumados em convidar familiares, humilhar e fazer voltar para o Rio, como derrotados.
Como havia passado em um concurso para assistente patrimonial, na prefeitura local e
diante do desafio de provar que não éramos derrotados como os outros que voltaram,
aceitando a argumentação de que não eram capazes, permaneci lutando, muito embora o
sofrimento e a angústia fossem grandes, pois já não estava mais sozinho, tinha esposa e
filha, entretanto acreditava que tudo tem um preço, e estava disposto a pagar. Certa vez,
após receber uma quantia em dinheiro enviado por minha mãe com a finalidade de fazer
um bolo para minha filha, trouxe na verdade alívio, pois ela não tinha ciência das
necessidades que nós passávamos, inclusive, já há alguns dias, não tínhamos nada para
comer. Esses fatos jamais eram revelados nas cartas e telefonemas endereçados aos meus
familiares no Rio.
Chamado pela prefeitura para começar a trabalho como funcionário público, agora
sem um lugar para morar e sem muitas alternativas, mandei minha esposa, grávida de minha
segunda filha, ficar um tempo com minha família no Rio e fui morar de favor com uma
conhecida que também estava em São Paulo a trabalho, adiando um pouco os nossos
sofrimentos, pois logo comecei a trabalhar.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
81
Em seguida arrumei outro emprego e consegui alugar uma casa. Trabalhava em dois
empregos e ainda encontrei forças e tempo para estudar. Freqüentei e terminei o Ensino
Médio supletivo, no colégio público estadual. Como precisava me alimentar e morava
sozinho, juntei o útil ao agradável, pois na escola eu tinha a merenda e a possibilidade de
concluir o segundo grau, em busca de uma oportunidade melhor no mercado de trabalho.
Foi, então que consegui alugar uma casa e reunir novamente a minha esposa e minhas
filhas, continuando a nossa jornada no estado de São Paulo. Graças a Deus, o preço foi pago
e começamos a vencer os obstáculos ao longo do nosso caminho.
Cresci profissionalmente, arrumando outro emprego, no qual passei a ganhar mais
do que os outros dois juntos e as coisas começaram a melhorar. Depois de mais um dia
de trabalho, retornando para minha casa, deparei-me com uma cena que demonstra o
quanto o mundo dá voltas e favorece aqueles que nunca desistem, mas perseveram.
Encontrei os familiares de minha esposa, que tinham praticamente nos lançado na rua,
comendo e matando a fome. A vida tinha dado uma reviravolta, eles antes empregados,
agora estavam desempregados e dependendo de nossa ajuda, o que, em momento algum,
pagamos na mesma moeda.
Entretanto a vida nos preparou outras surpresas. Depois de tantas cartas recebidas de
minha mãe querendo me ver, enviei minha esposa e minhas filhas ao Rio para matar as
saudades, pedindo que ela esperasse, pois faltavam alguns dias para eu sair de férias e
novamente encontrá-la no Rio. Mas isso acabou não acontecendo, pois, nas vésperas de
entrar de férias, fui surpreendido com um telegrama, informando que ela havia morrido e
todos estavam me esperando para o enterro. Justamente aquela que mais me incentivava e
amparava agora lá não estaria mais para ouvir o meu lamento e desabafo.
Devido a essa situação, aliada a outras, tais como: após estar próximo de receber
uma promoção ao cargo de chefia, fui seduzido por uma oportunidade de emprego,
dentro da Fundação Bradesco e acabei por pedir demissão de meu emprego promissor.
Quando lá cheguei, fui entregue a um funcionário, sem saber ao certo os seus motivos,
ao invés de ensinar a forma correta de trabalhar, acabou por me colocar na rua. Revoltado
e desesperado diante de mais um golpe de tristeza e agora pensando em fazer uma
besteira ou tentar a vingança, resolvi voltar para o Rio de Janeiro. Aqui chegando, a
realidade de trabalho estava pior, porém para quem já tinha vencido vários obstáculos,
não seria esse que iria me fazer parar.
Comecei a trabalhar, realizando bicos, porém olhando para o futuro. Novamente
busquei alternativas, mas acabei envolvendo-me com amizades e farras que quase levaram
à destruição de minha família. Certo dia, ao despertar de mais uma noite findada nos
devaneios que a vida oferece, fui indagado por minha esposa, relatando-me: "Sua filha
sente-se envergonhada por suas atitudes". Reflexivo e desmotivado, olhei para o meu
reflexo no espelho, observando que o homen ali na minha frente era o reflexo da
desesperança, descrédito, desconfiança, ausência de sonhos, à espera de um referencial
que pudesse fazer mudar aquela realidade, bem a minha frente. Nesse momento, deixei
que todas as vozes falassem aos meus ouvidos. Entretanto uma voz falou mais forte:
"Essa pessoa ou ser que você está esperando está em você mesmo, é só acreditar e lutar".
Desse dia em diante, tenho me tornado um referencial de vida para muitos em minha
volta, tais como família, amigos, comunidade etc., inclusive minha filha, que outrora
havia questionado as minhas atitudes, hoje tem se destacado em suas redações, sendo
82
Caminhadas de universitários de origem popular
elogiada por professores, justamente por apresentar com clareza de detalhes os seus
sonhos, baseada nas realizações de seu pai, algo incomum dentro de uma comunidade
marcada pelas desigualdades sociais.
Já cansado de trabalhar e não encontrar uma saída satisfatória, voltei a relembrar as
palavras de minha mãe e resolvi cursar um pré-vestibular comunitário que funcionava
dentro de meu bairro. Novamente lá estava eu, trabalhando em dois empregos, mas
encontrando forças, tempo para estudar e encarar um vestibular. Até então, meu conhecimento
em relação à universidade era quase nenhum, era um sonho distante.
O pré-vestibular comunitário não contava com maiores apoios. Os professores eram
alunos de universidades públicas e ex-alunos de outros ou do próprio pré-vestibular. Davam
aulas sem nenhum incentivo financeiro; em meio às guerras do tráfico de drogas, por diversas
vezes éramos obrigados a fechar a escola e interromper as aulas, e alguns professores,
temendo o pior, não voltavam mais.
Em meio a tantas dificuldades, prestei vestibular pela primeira vez e passei para área
de Biblioteconomia na UNIRIO. É de suma importância frisar que sempre estudei em escolas
públicas e, por muitos anos, fui obrigado a estudar com livros de colegas nos intervalos
entre um tempo de aula e outro, pois meus pais jamais puderam comprar sequer material
escolar que, hoje, está mais acessível. Porém a vontade de sonhar e lutar por seus sonhos
parece estar mais distante, e os profissionais da educação que outrora se dedicavam para
ensinar os alunos parecem não ter mais o mesmo ânimo, passando uma triste impressão de
realmente ser impossível alcançar as universidades. Contribuindo, assim, negativamente
para a realidade de muitos que ainda não conseguiram alcançar esse objetivo.
Foi então que se iniciou uma nova etapa de minha vida. Estar em uma faculdade federal
ainda é um sonho que se realiza todas as manhãs em que entro pelas portas do mundo de
esperanças que ela pode me proporcionar. Amo estar aqui, o sonho ainda não acabou, apenas
está começando. Entretanto, agora posso ver o quanto sou vitorioso em ter alcançado um
lugar que muitos sonham e não conseguem. Estou há oito anos na Guarda Municipal do Rio
de Janeiro, instituição em que entrei através de concurso público. Interessante que, um dia
após ter pago a inscrição para o concurso, minha filha adoeceu, necessitando de remédios que,
com certeza, eu compraria com o dinheiro que me levou a estar hoje na Guarda.
Justamente foi através dessa instituição que me deparei com a dura realidade da cidade
chamada maravilhosa e sua elite passiva diante de tantas desigualdades sociais. Participei
de várias incursões, dentro das inúmeras missões que faziam partes de nosso dia a dia de
serviço. Presenciei e conheci o lado miserável de nossa cidade, bem debaixo das barbas das
autoridades. Mendigos, pivetes, crianças fugidas de casa, vitimas de maus tratos, pessoas
oriundas de outros estados, em busca de oportunidades de trabalho, que, aqui chegando,
descobrem que a cidade não é tão maravilhosa quanto parece ser. Bandidos, prostituição,
drogas, disputas de jurisprudências, jovens delinqüentes, pichadores (inclusive conduzindo
alguns desses menores ao DPCA, em flagrante delito, para averiguações). Famílias inteiras,
sem teto, abrigadas debaixo de pontes, viadutos e marquises, mendigando o pão de cada
dia. Um de meus maiores constrangimentos foi ter que combater o comércio de vendas
ilegais, justamente o outro lado da moeda, que há muito pouco tempo fazia parte de minha
vida como principal atividade de sustento. Senti na pele a angústia que aquelas pessoas
estavam passando, sabendo que aquele combate fazia parte do trabalho que hoje representa
o sustento de minha família.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
83
Graças a DEUS, não tive só momentos de tristeza, houve momentos em que me senti
útil, tais como: socorro de pessoas acidentadas, auxílio a crianças e menores abandonados
e perdidos (como foi o caso de uma menina menor de idade, do estado de São Paulo, que
veio parar aqui no Rio, perambulando pelas ruas da zona sul, conseguindo encaminhá-la de
volta ao seu estado de origem).
Hoje, pai de três filhos, tenho me tornado o exemplo para minha família e pessoas de
meu círculo de convivência social, um verdadeiro referencial de bênçãos. As dificuldades
ainda são muitas, porém lembro-me das palavras de minha mãe e continuo a minha caminhada.
Certa vez, o engenheiro responsável pelos trabalhos que eu desempenhava virou-se, depois
de tanto ter nos humilhado com suas palavras de tom agressivo, e declarou: "Vocês pensam
que vão ganhar dinheiro aqui para comprar carro ou ter uma condição melhor, vocês estão
enganados, ganharão somente para comer e vestir". Essa frase serviu de incentivo para eu
abandonar de vez pensamento de trabalhar sem estudar, e hoje me sinto amparado pelo projeto
Conexões dos Saberes, colocando-me no lugar em que sempre desejei estar, ajudando para
que portas como essa nunca venham a se fechar e sim serem ampliadas, possibilitando a outros
jovens de origem popular conseguir uma vaga em uma universidade pública. Que esse
Programa jamais perca o seu referencial, pois já temos referenciais demais de descasos de
políticos corruptos que usurpam o direito do povo, roubando seus sonhos. Independentemente
de nossa continuação no Conexões, o Programa firma-se como um pólo de oportunidades
para outros conexistas que virão em busca da realização de seus sonhos. Que Deus abençoe o
Conexões, conexistas, coordenadores, idealizadores e colaboradores deste Programa.
84
Caminhadas de universitários de origem popular
Acreditar em si mesmo
Lellis Hummenigg Cremonez Taveira *
Se você tem um sonho, lute por ele!
Renato Russo
Minha história de vida começa no dia 10 de abril de 1986, na Casa de Saúde João XIV
em Itaocara, cidade do interior do estado do Rio de Janeiro. Oriundo de família de classe
popular, sempre tive meus objetivos e planos bem delineados, que convergiam para a inserção
no curso superior como mecanismo para a promoção da melhoria da qualidade de vida da
minha família.
Minha infância foi muito diferente das pessoas que conheço. Na primeira infância,
meu entretenimento favorito era destruir os móveis da casa e as panelas, fazendo-as de
tambor na maior parte das vezes. Após essa fase, comecei a interagir com pessoas de faixa
etária mais avançada, o que me permitiu um rápido amadurecimento intelectual.
Meus pais, Elpídio dos Santos Taveira e Ana Catarina Figueira Cremonez Taveira,
oriundos de classe popular, apesar da situação socioeconômica e da conjuntura política
financeira vivida pelo Brasil na época, sempre investiram, na medida do possível, na nossa
formação acadêmica e social.
Estudei, durante os primeiros anos de minha vida, no Colégio Estadual Frei
Tomás até a conclusão do Ensino Fundamental, quando obtive o primeiro lugar em
um concurso de bolsas de estudo no Colégio SEI (Sociedade Educacional de Itaocara).
Conquistando uma bolsa integral que me permitiu a inserção em um Ensino Médio
com uma qualidade um pouco melhor, tendo acesso ao caminho que me levaria ao
Ensino Superior.
Conseguir essa bolsa me fez sentir confiante e seguro, mas ciente de que era somente o
começo do caminho. No Colégio SEI, comecei a interagir com questões concernentes ao
vestibular e visualizava o ingresso no curso superior como uma conquista possível.
Paralelo aos estudos, ajudava meu avô materno na manutenção de sua propriedade
rural e fazia uns trabalhos extras na empresa de cinegrafia em que minha mãe trabalhava, em
que exercia a função de cabo-man.
Meu objetivo primordial era conquistar uma vaga no curso de Medicina, porém, ao
concluir o terceiro ano do Ensino Médio, percebi que não seria possível, dada a concorrência
para esse curso e o meu preparo intelectual insuficiente naquele momento. Então, optei por
*
Graduando em Enfermagem pela UNIRIO.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
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fazer o curso de Enfermagem, onde conquistei o terceiro lugar das vagas reservadas para o
ENEM. Tal conquista foi motivo de alegria para toda a minha família, sendo parabenizada
por um número expressivo de pessoas da cidade.
Esse sentimento de felicidade foi acompanhado por preocupações sobre a viabilização
da continuidade desse projeto de vida, uma vez que acarretava despesas muito elevadas,
que impactariam de forma relevante o orçamento familiar. Tal situação levou-me a começar
a realizar entrevistas de opinião pública para empresas de pesquisas mercadológicas, como
uma forma de levantar algum recurso financeiro. Realizei as atividades até me inserir no
Programa Conexões de Saberes, que alterou positivamente a minha vida acadêmica e social,
visto que, além da ajuda financeira (imprescindível para mim), eu participaria de um projeto
de ação afirmativa, junto com pessoas de origem semelhante a minha, engajadas e
comprometidas com o seu papel de agentes produtores e transformadores da sociedade a
qual estão inseridos.
Caro leitor, não poderia deixar de mencionar o acontecimento mais importante de
todos acima relatados, conhecer Marília Amaral Pepicon, minha namorada, foi simplesmente
a melhor coisa que aconteceu na minha vida e que, por si só, já faria valer toda a minha
caminhada.
Então, prezado leitor, gostaria de parafrasear um dos maiores artistas que a humanidade
teve o privilégio de conhecer, Renato Russo.
Se você tiver alguém em quem confiar,
Confie em si mesmo,
Quem acredita, sempre alcança...
Espero, senhores leitores, que a minha caminhada, junto com esses versos, exemplifique
o quanto é importante lutar e acreditar em si mesmo.
86
Caminhadas de universitários de origem popular
Pelas idas e vindas
Lia Evangelista dos Santos *
Tenho muitas estórias, assim como todas as pessoas. Mas preciso escolher algumas
para publicar. Publicar, esse é um verbo que tem muito a ver comigo, já que estou
permeada de publicidade (diz a numerologia que meu número principal é o três, o
número da comunicação).
Toda a vida foi assim, em contato com muitas pessoas. Na infância, a necessidade
de trabalhar para sobreviver e me sustentar fez com que minha mãe me entregasse aos
cuidados de parentes e amigos. Eu sempre gostei, fui uma criança comunicativa,
sorria para todos, ia ao colo e na casa de qualquer um. Geniosa, sim, porém carinhosa.
Convivi pouco com minha avó materna, mas foi quem primeiro me cuidou, eu a
amo, por tudo o que ela foi quando encarnada, e só depois de crescida tomei consciência:
lembro que para toda doença ela tinha uma erva que curava, lembro das minhas “perebas”
tratadas com álcool e confrei. Lembro da concha, pesadíssima para mim, na época,
prendendo a porta de seu quartinho atrás da minha casa lá em Nova Iguaçu (a cidade do
Rio de Janeiro, onde nasci).
Desculpe-me, amigo leitor, acho que devo explicações: meu pai me registrou
com o nome de Lia Evangelista dos Santos, no ano de 1984, na cidade de Nova
Iguaçu, Baixada Fluminense do estado do Rio de Janeiro. Um “causo”: depois de
capinar o quintal de nossa casa, no terreno da minha avó materna, sob um sol
escaldante, ele se arrumou e foi ao cartório registrar o nascimento de sua primeira
filha (prematura de sete meses). Durante o preenchimento do documento o tabelião
perguntou: Qual a cor da criança? E meu pai respondeu: Ah! Assim da minha cor.
E assim o tabelião me definiu como parda. Esse fato minha mãe comentou comigo e
dei boas risadas, porque posso ver várias das minhas veias superficiais, digo que
minha cor não é branca é assim um amarelo, meio gaveta, e até que o tabelião estava
certo, porque o meu cabelo não nega a mulata que há em mim.
Meus pais se separaram depois de quatro anos de casamento, eu tinha três anos
de idade e foi muito duro de aceitar. Acho que um dos principais motivos dessa
união foi por minha causa. Depois da separação, cada um seguiu atrás das suas
necessidades, hoje raramente se falam, não têm mais nada em comum além de mim
e o passado está devidamente guardado. E eu parei de dar preocupações
na adolescência.
*
Graduanda em Enfermagem pela UNIRIO.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
87
Fiz a alfabetização em uma escola em Alcântara, em 1990, porque morei esse ano com
meus tios e um primo, que cuidaram de mim como se fosse uma filha. Destaco que sou muito
grata por isso. Morava no bairro Raul Veiga, um dos muitos do município de São Gonçalo,
a rua não tem asfalto até hoje. Na escolinha, eu era muito querida pelas professoras, por ser
daquele jeito que falei, comunicativa e esperta. Aprender a ler foi fantástico, lia qualquer
coisa. O que estivesse na minha frente com letras, eu lia.
Naquele ano, subi ao palco pela primeira vez. Foi a apresentação para a festa da
primavera, todas as meninas como flores murchas e eu era a fada da primavera que
trazia a vida ao jardim, ao som da “linda” voz da Xuxa Meneguel, por quem tinha
paixão (oh! Que horror!).
Nos três anos seguintes, já morando com minha mãe, estudei em uma escola particular
no bairro do Andaraí, era pequena, com poucas turmas, do jardim à quarta série, ficava lá em
período integral. Não me lembro de outras crianças nessa situação, só sei que conhecia a
todos, de manhã assistia às aulas da minha série e, na parte da tarde, almoçava uma
“quentinha”, fazia os trabalhos de casa, ajudava as professoras das turmas anteriores à
minha, implicava com o zelador e brincava na sala do diretor.
Durante a primeira série, morávamos num condomínio na Freguesia, próximo ao bairro
Cidade de Deus, em Jacarepaguá, dividindo o apartamento com um colega de trabalho da
minha mãe. Todos os dias tínhamos que descer uma escadaria enorme para pegar uma
condução até o Andaraí, e tinha uma super escola em frente ao ponto de ônibus, meu sonho
era estudar lá. O condomínio era bom, mas o pior era nos dias de supermercado, porque
depois de subir aquilo tudo, xingando a mãe do engenheiro que projetou a maldita escada,
ainda subíamos até o quarto andar, pois não tinha elevador. Depois mudamos para o Andaraí,
perto da escola. Moramos em duas casas de vila no mesmo bairro em três anos. Agora ficava
na casa de uma explicadora, umas dez crianças fazendo a maior bagunça. Ah! Fiz a quarta
série em um colégio de freiras na Tijuca, foi ótimo, mas só deu pra ficar um ano, pois era
muito caro. Estudava à tarde, minha mãe quase sempre chegava depois da hora da saída. Por
conta disso, fazia o terço católico com as freiras, na hora da ave-maria, até ela chegar. Teve
uma época em que ela vendeu “quentinha”, fazia comida de manhã, botava no carro e saía
pra vender.
Em 1995, morei com um casal de amigos no bairro de Vila Isabel, porque queria
estudar na mesma escola de uma amiga. Era uma escola muito boa, com bons professores,
porém o nível social dos alunos era um pouco mais alto do que estava acostumada. Sofri
bastante com a discriminação, implicavam muito com meu cabelo. Não suportei mais que
um ano naquele lugar, continuamos amigas, porém troquei de escola e voltei a morar com
minha mãe.
Mudamos para uma quitinete no terraço de um conhecido, a varanda era maior que a
casa, a cozinha era improvisada. Essa casa fica em frente a uma praça, no Pechincha, em
Jacarepaguá. Em dois anos, tinha conquistado a amizade da vizinhança, fui a várias festinhas,
tinha um caderno de “ficantes” (eu e minhas amigas competíamos para ver quem beijava
mais). Na minha pré-adolescência, nasceu a “Lia louca”, para você ter idéia, um amigo meu
me chamava de “funkeira de radinho”.
Graças a uma tia de um ex-namorado de minha mãe, consegui vaga numa escola
municipal perto de casa, a melhor das que já tinha estudado. Tinha aulas de francês, inglês
e vários cursos como: técnica agrícola, técnica industrial, técnicas comerciais, educação
88
Caminhadas de universitários de origem popular
para o lar, teatro e dança. Nunca tive problemas com falta de professor, no máximo paralisação
de meio turno. Sempre fui boa aluna, sabia separar a hora da bagunça da hora do estudo.
Posso dizer que fui popular nessa escola, entrei para o grupo de dança e foi maravilhoso, a
professora é um exemplo de força de vontade, ela tinha esclerose múltipla e uma das pernas
era teimosa, porém mais teimosa é ela, que dança muito bem, esbanja criatividade.
Com esse grupo, dancei em vários teatros e lugares legais do Rio, sempre
ganhávamos as competições de dança contemporânea. Com 12 anos, fiz um curso a
distancia de vendas do SENAC. Aprendi a fazer salgados e bolos, tentaram me ensinar a
costurar, eu quis aprender, mas não deu, devo ter problemas, não conseguia costurar
uma linha reta, mesmo seguindo os pontilhados, mas aprendi a pregar o botão, pelo
menos isso, né? Também aprendi a fumar e beber vinho, minha mãe quase pirou quando
descobriu, gritou, chorou, botou de castigo, bateu e me mandou para casa do meu pai.
Ele veio com um papo super cabeça e conversamos por uma semana. Voltei para a casa
da minha mãe, um pouco melhor, um pouco... Entrei também para o grupo de teatro e
tive certeza que seria atriz. Uma vez, durante a apresentação, escutei do palco uma
mulher me elogiando, ela se referiu a mim como “aquela cabeludinha ali”, foi gostoso
ouvir que meu cabelo era referência para um elogio.
Mais uma vez, mudamos, agora para Praça Seca, no bairro de Jacarepaguá, mas dessa
vez mantive algumas amizades. Essa casa era melhor, finalmente tinha meu próprio quarto.
Nesse ano, minha prima veio morar conosco e nos aproximamos mais, como se fôssemos
irmãs. No final da oitava série, ela pagou um cursinho pré-técnico para mim, estudava
sábados e domingos, de 8 às 17 horas, foram três meses de ralação.
Prestei concurso para quatro escolas públicas de segundo grau: Politécnica da
FIOCRUZ, FAETEC, Colégio Pedro II (turno da noite) e Federal de Química. Passei para
FAETEC e, depois de fazer minha matrícula, minha mãe me contou que eu também tinha
passado para o Colégio Pedro II. Fiquei uma “arara”, mas ela disse que seria melhor fazer um
curso técnico, porque depois de formada poderia trabalhar. Eu queria estudar no Pedro II,
mesmo que fosse à noite e longe de casa, porque sabia que o ensino era melhor, mas saiu um
ranking no jornal e a FAETEC estava muito bem, e minha mãe se encantou. Escolhi ensino
médio atrelado à Enfermagem, sei lá por quê. Até que gostei, mexeu com meu lado cuidadora,
conselheira e nunca tive frescuras com feridas, sangue ou fezes. Convenci-me que era possível
ser enfermeira.
Mas o sonho de ser atriz profissional continuou bem vivo. A rede FAETEC oferece,
além de cursos técnicos, uma gama de cursos livres em artes, esportes, lutas, línguas e
informática. Em 1999, me inscrevi nas aulas de teatro, este curso foi muito bom, diferente
dos cursinhos que eu já tinha entrado. Tinha uma carga teórica rica e a prática era uma
delícia. Fiz amigos importantes lá, uma amiga me convidou para entrar no grupo de
teatro ao qual pertencia, por uns meses fiquei em jornada tripla: pela manhã, o ensino
médio mais o técnico; à tarde, o curso livre e à noite ensaiávamos.
Meu amor pelo teatro cresceu e nos inscrevemos, cinco amigos, para o vestibular da
Escola Técnica Estadual de Teatro Martins Pena. Muito bom quando se tem apoio, minha mãe
pagou a taxa de inscrição e o livro da bibliografia. Eram três etapas, meu pai ficou dando
orientações pelo telefone (ele foi ator amador em Nova Iguaçu), minha amiga dirigiu minha
cena da prova prática. Estudei bastante e, antes que acabassem as férias de meio de ano de
2000, passamos os cinco para a “Martins”, eram 20 vagas e eu fiquei em segundo lugar!
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
89
Eu tinha 15 anos e um monte de expectativas. A escola de teatro me marcou muito, lá
descobri quem sou e decidi quem queria ser. Aprendi a observar as pessoas, minha sensibilidade
aflorou. Reconheci alguns limites, expandi outros e não me arrependo de nada.
Como eu gosto de fazer várias coisas ao mesmo tempo, já estava ficando com estafa:
encarar as aulas do ensino médio mais o estágio no hospital mais as aulas de teatro. Enfim,
não era fácil. Não me alimentava direito porque vivia ensaiando ou estudando.
No meio disso tudo, nos mudamos para o bairro Maria da Graça, para um apartamento
de dois quartos em uma vila. Era financiado pela Caixa Econômica Federal. Minha mãe,
através do meu tio, se tornou mutuária e estava tão feliz que não viu o tamanho do problema
em que entrara. Mas o sonho da casa própria, finalmente, estava se realizando. Foram cinco
anos morando lá, adoro o subúrbio, ruas residenciais, quase não passa carro, passarinho
cantando de manhã, uma linda vista da lua na janela do meu quarto... mas acabou. Trocamos
de Ministro da Saúde, que fez uma mudança na diretoria dos hospitais públicos, e minha
mãe, que trabalhava numa revendedora de medicamentos, perdeu um monte de contatos, o
trabalho ficou difícil, atrasaram várias parcelas do apartamento, e a saída foi alugá-lo.
Mudamos às pressas para a casa do meu tio em Madureira, construímos uma quitinete no
terraço. Emprestei meus móveis de quarto para um amigo que, assim como eu, estava com
dificuldades, e o resto da casa foi dado, vendido ou encaixotado.
Depois que terminei o Ensino Médio, comecei a tentar o vestibular, em 2002.
Prestei prova para Enfermagem na UNIRIO, meus professores do técnico falavam muito
bem, segui o conselho deles, mas não estava com a cabeça voltada para isso. Estava
estagiando no hospital e me formando na Martins Pena, fiquei tão envolvida com a
montagem final que tive um “faniquito”. No dia da estréia, pela terceira vez na vida,
não pude controlar minhas emoções, foi um episódio muito estranho: chorava e ria ao
mesmo tempo, e entramos em cena.
No ano seguinte, trabalhei como a secretária de uma amiga da minha mãe. Estagiava
de manhã, trabalhava à tarde, e consegui uma bolsa de estudos parcial num curso prévestibular à noite. Dessa vez consegui isenção nas taxas de inscrição da UFF, UERJ, UNIRIO
e só paguei UFRJ. Levei bomba, como poderia conseguir se dormia nas aulas e não conseguia
repassar as matérias em casa, se quando todos relembravam o conteúdo, eu desesperava.
Simplesmente nunca tinha ouvido falar de vários assuntos, os professores foram ótimos,
mas eu estava por fora e tive de aprender na marra.
Eu e minha mãe conversamos com o diretor e ele manteve minha bolsa para 2004.
Mas, então, mudei para o turno da tarde. Como não estava trabalhando, fiquei mais dura
ainda, ia e voltava a pé, para economizar. Pelo menos adquiri o hábito de caminhar e devo
ter engrossado as pernas. Graças à amizade que fiz com os funcionários, assistia às aulas das
minhas específicas de manhã e à noite. Passava, em média, 12 horas diárias no Pré em
Cascadura, levava comida de casa e, para o lanche, às vezes comprava frutas no mercadinho
perto e dividia com o pessoal. Valeu a pena, consegui as isenções das taxas de inscrição
novamente e passei para a UNIRIO (primeiro semestre), UFF e UERJ (segundo semestre).
Minha mãe tinha acabado de comprar uma lanchonete, deu o carro como garantia em
um empréstimo, estava muito ruim a venda de medicamentos. Reformou e transformou o
boteco em Casa de Sucos e Restaurante. Trabalhou muito e perdeu muito, também. Durante
o período das minhas provas, fui trabalhar com ela e vi o quanto esse tipo de comércio suga
as energias do trabalhador. Não tínhamos estrutura financeira, administrativa ou psicológica
90
Caminhadas de universitários de origem popular
para ter um negócio desse tamanho. Éramos gerente, caixa, garçonetes e, vez em quando,
cozinheiras. Ilógico e absurdo! Foi difícil vendê-lo, já que o proprietário anterior escondeu
muitas dívidas quando passou o ponto para nós. Mas, graças a Deus, vendemos o restaurante.
Nesse período, ganhei um padrasto, ele sempre foi taxista e, por sua sugestão, minha mãe
deu entrada em um táxi com o que restou do dinheiro. Agora, eles trabalham nesse carro.
Eu já estava freqüentando as aulas de Enfermagem na UNIRIO, quando percebi que
minha mãe tinha saído de casa. Sim, ela casou e nem avisou, digo, nem percebeu, quer
dizer, sabe quando vai ficando na casa do namorado e quando se dá conta, todas as roupas
já estão lá? Foi assim. Por uns quatro meses, eu morei sozinha lá em Madureira e até que
gostei. Mas, como “alegria de pobre dura pouco”, meu tio pediu a quitinete para o meu
primo morar com a esposa. Mas e eu? Bem, me mudei com um terço do havia restado da
mobília para a casa do, agora, marido da minha mãe. Um “apertamento” no bairro Praça
Seca, onde dividia o quarto com o meu novo irmão adolescente. Eu, que já não ficava
muito em casa, passei a dormir no apartamento da amiga para quem trabalhei como
secretária, em Santa Tereza, muito mais perto da Urca e Centro, onde são os campi da
UNIRIO, do que a minha nova casa. Só duas passagens. A partir do segundo período,
voltei a dormir na Praça Seca e me aproximei um pouco da nova família, que inclui a filha
do meu padrasto também. Por falar em irmãos, há treze anos meu pai teve uma filha, ele é
casado com a mãe dela, e todos nos damos bem. Minha irmã é uma jóia nas nossas vidas.
Confesso que, no início, senti ciúmes, mas logo me apaixonei por ela e hoje somos
amigas. Sou um pouco ausente com relação a esse lado da família, mas tento sempre que
possível visitá-los. Moram em São Gonçalo e a distância e minhas “mil e uma” atividades
atrapalham um pouco.
Minha faculdade é em período integral e assisto às formações do Conexões de Saberes
à noite, levo cerca de duas horas para ir e voltar da Escola de Enfermagem. É cansativo, mas
agradeço a Deus e sei que tem gente em situação muito pior.
Participo, desde 2005, de um trabalho com moradores de rua do Centro do Rio de
Janeiro, levamos assistência básica, como comida, água, roupas e, desde que com a receita,
remédios. Para as gestantes, em troca da freqüência às consultas do pré-natal, conseguimos
enxovais de bebê. Sei, e me irrito com isso, que o estado deveria tomar providências com
relação à situação dessas pessoas, gerações e gerações de pedintes, a exclusão salta em
nosso rosto. E como parte da sociedade, decidi ajudar dessa forma. Mesmo que seja
assistencialismo, a má-vontade política e a morosidade dos órgãos públicos empurram os
chefes de família para as ruas, claro que é um processo muito mais complexo, mas a realidade
grita, chora de fome, frio, doenças, desabrigo, desamor até. A minha parte é ajudar quem eu
puder agora, porque Betinho disse uma verdade incontestável: “Quem tem fome, tem pressa”.
Existem muitos grupos como o que eu participo aqui no Rio, igrejas e centros espíritas, em
maioria. Chamamos de caridade, mas, para mim, assim como dar valor à minha universidade
pública, é uma forma de cidadania.
Quase me esqueço! Eu vendo bolo integral na faculdade. E com isso garanto as minhas
passagens e algumas cópias. É um sistema lindo: tem um jardim aqui dentro, onde os alunos
trazem os produtos, tudo caseiro, e colocam um cofrinho do lado, vão para a aula, e quando
retornam tudo se vendeu e o cofrinho está cheio! Melhor, esses cofrinhos ficam abertos,
caso o comprador precise fazer seu troco. Tem um ano que ponho meu bolo lá, e raras vezes
tive problemas.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
91
Eu adoro estudar aqui e, para permanecer, dou meu jeito. Agora, com a bolsa, fica mais
fácil, posso até comprar alguns livros, ter acesso à Internet e fazer um curso de inglês.
Espero ajudar em uma mudança no pensamento dominante da UNIRIO, conquistar
cada vez mais meu espaço na academia e abrir caminho para que aqueles que são de origem
popular, que tiveram tantas ou mais dificuldades que eu, também tenham a oportunidade de
completar um curso superior público e de qualidade, como deveria ser toda a educação
brasileira. Sinto a responsabilidade do Programa Conexões de Saberes, principalmente com
a parceria com o Programa Escola Aberta, no qual atuo em duas escolas em Belford Roxo
(cidade periférica, próximo a Nova Iguaçu) aos sábados. Tenho aprendido muito com as
crianças. Eu levo os conceitos de direitos humanos, trabalho a Leituração e elas me devolvem
carinho e um jeito lindo de encarar a vida, que desde cedo é sofrida.
No mais, é só o futuro. Que venha!
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Caminhadas de universitários de origem popular
De sonhos à realidade
Lívia Ceschia dos Santos Miranda *
A educação pode ajudar a nos tornarmos
melhores, se não mais felizes, e nos ensinar
a assumir a parte prosaica e viver a parte
poética de nossas vidas.
Edgar Morin
Escrever sobre minha trajetória até a universidade significa relembrar fatos da minha
vida que me tornaram a pessoa que sou hoje. Posso dizer que, apesar de todas as dificuldades
encontradas por minha família, nunca sofri ou achei que fosse impossível realizar meus
sonhos, por ter tido sempre ao meu lado essas pessoas maravilhosas às quais dedico minha
história: meus pais. A união familiar, nosso amor e principalmente a fé em Deus nunca
deixaram a esperança e a força para lutar irem embora, mesmo nos momentos mais difíceis.
Minha família
Nasci e cresci na cidade de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. Trata-se de um
município na Baixada Fluminense, onde o grande desafio é conseguir um emprego, estudos,
uma vaga na universidade, enfim, levar uma vida digna. Quando perguntava aos meus
amigos o que eles gostariam de fazer ao terminar o Ensino Médio, muitos diziam que
queriam fazer faculdade, mas que não poderiam pagar uma particular e dificilmente
conseguiriam uma vaga na universidade pública.
Minha família tentava se estabelecer no Brasil. Minha avó, que é italiana, veio para cá
por causa da Segunda Guerra Mundial. Meu avô, pernambucano, veio tentar a sorte no Rio
de Janeiro. Somente depois de algum tempo de casamento conseguiram sair da casa dos
pais, vindo morar numa rua de barro, em uma casa humilde, e tiveram três filhos. É nesse
mesmo local que moro hoje, mas está muito diferente, pois a cidade cresceu e a rua foi
asfaltada há mais ou menos dois anos.
Apesar das dificuldades, meus dois tios e minha mãe conseguiram estudar até o Ensino
Médio. Um dos meus tios, Flávio, sempre teve muita dificuldade em aprender e, dizem
minha avó e minha mãe, que ele chegou a rasgar três cadeiras de tanto ficar sentado estudando.
Ele se esforçava para realizar seu sonho, e conseguiu. Cursou Química na UFF, passava o dia
*
Graduanda em Enfermagem pela UNIRIO.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
93
sem comer e tinha que pedir carona na estrada para voltar para casa. Logo após terminar a
faculdade, ganhou bolsa para estudar na Inglaterra, onde trabalha até hoje como professor.
Minha mãe, apesar de muitas dificuldades, também conseguiu completar seu curso de nível
superior, com muita ajuda de meu pai e já com dois filhos pequenos. Dessa forma, minha
avó, que estudou até a quarta série primária, conseguiu que seus três filhos concluíssem o
ensino superior.
A família de meu pai também tem dessas histórias. Meu tio Elim, muito pobre e criado
na roça, sonhava em fazer Medicina. Estudou tanto, que conseguiu realizar seu grande
sonho em outra universidade pública. Muito pobre e sem dinheiro para comprar algo para
comer, colocava as mãos para o lado de fora do quarto onde foi morar e puxava algumas
folhas de uma árvore, que mastigava para enganar a fome e agüentar até a noite. Tornou-se
um excelente médico, realmente preocupado com seus clientes. Foi com ele que aprendi a
beleza da profissão, a cuidar dos que precisam com amor.
Meu pai, vindo do interior da Bahia para tentar a sorte no Rio, casou-se com minha
mãe, tendo dois filhos: meu irmão e eu. Nunca fomos ricos, mas sempre fomos esforçados e,
principalmente, unidos como família. Meus pais sempre fizeram todos os esforços possíveis
para que pudéssemos estudar. Minha mãe sempre dizia que, como não éramos ricos, toda a
herança que ela poderia me deixar seriam os estudos, e fizeram de tudo para me oferecer as
melhores oportunidades possíveis.
Minha história
Passamos por muitas dificuldades. Quando eu tinha oito anos, a multinacional
onde meu pai trabalhava faliu. Ele usava o dinheiro que recebia do auxílio desemprego
para pagar a mensalidade da minha escola e do meu irmão, pois isso sempre foi prioridade
para eles. Meus pais tinham horror de que precisássemos estudar em escola pública e,
para pagar as mensalidades, faltava dinheiro para as outras coisas. Minha avó e bisavó
ajudaram muito nessa época. Como quase todo o dinheiro era gasto com minha escola,
meu tio Josias, irmão de meu pai, trazia sempre uma cesta básica que ele pegava na
igreja. Quando ele chegava com os alimentos e os iogurtes que comprava pra mim e
para meu irmão, minha mãe se ajoelhava para guardar no armário e chorava, silenciosa,
em cima da caixa de papelão.
Então, minha mãe pediu a uma amiga que lhe ensinasse a bordar. Primeiro aprendeu
ponto cruz, depois vagonite. Começou a bordar panos de prato e a sair para vendê-los.
Acredito que, no início, as pessoas compravam para ajudá-la, porque não eram bonitos, já
que ela nem teve tempo de aprender, tinha necessidade de vender logo e não poderia ter
vergonha de abordar as pessoas. Enquanto isso, meu pai também tentava vender suco na
praia e procurava emprego, foi uma época muito difícil.
A infância
Eu era muito nova, mas sabia que as coisas não estavam bem. Por todo esse esforço,
sabia que minha família era a coisa mais importante na minha vida e fazia questão de
dar-lhes orgulho. Esse era o maior objetivo na minha vida. Então, eu estudava, estudava,
estudava. Ganhava medalhas todos os anos pelo meu bom desenvolvimento escolar,
não tirava nota menor que oito. Fui convidada a fazer curso de robótica, gratuitamente,
e não perdi a oportunidade. Além de ver todo o esforço dos meus pais em me oferecer
94
Caminhadas de universitários de origem popular
estudo, conhecia toda a luta da minha família inteira, tios e avós. Apesar de sempre ter sido
uma das melhores alunas da classe, até o terceiro ano primário dei muito trabalho a minha
mãe: gostava de estudar, mas chorava todos os dias para ir à escola, de medo que tinha da
vice-diretora.
Sempre fui uma menina muito tranqüila. Como não havia meninas na minha rua
com quem pudesse brincar, passava o dia conversando com as plantas do quintal de
minha avó e lembro que uma de minhas brincadeiras preferidas era dar aulas de inglês
ao meu pai. Que paciência ele tinha! Eu sabia que ele não falava outro idioma e achava
que poderia ajudá-lo a arrumar um bom emprego se aprendesse alguma coisa de inglês,
e quando ele chegava cansado no fim do dia, ainda se sentava no chão, em frente ao
quadro negro que ganhei de aniversário e me via repetir a mesma aula todos os dias:
yellow, blue, green...
Adolescência
Cheguei ao Ensino Médio e a situação financeira ainda estava um pouco
complicada. Minha mãe passou em um concurso público e começou a dar aulas, o que
ajudou um pouco. Sabia que a escola particular ficaria ainda mais cara, mas não queria
estudar na escola pública, pois ouvia falar que era muito ruim. Na verdade, nunca havia
entrado em uma. Então, continuei estudando, me esforçando e fui fazer uma prova para
tentar bolsa em uma boa escola particular próxima à minha casa. Era uma prova longa,
com 100 questões, e eu queria muito essa bolsa. Quando saiu o resultado, descobri que
havia acertado todas as questões que compunham a prova. Recebi uma homenagem
diante de toda a escola e um livro de presente da diretora. Foi uma alegria muito grande,
consegui 100% de bolsa e fui estudar de graça. Nesse dia, soube que seria capaz de
alcançar meus objetivos se lutasse por eles, e que poderia ser mais um motivo de orgulho
para minha família, já que minhas vitórias, assim como essa, seriam homenagens aos
seus esforços em me fazer crescer.
Tendo garantido meu estudo na escola, quis fazer curso de inglês. Fiz prova para
tentar bolsa e, como consegui abatimento grande do valor da mensalidade e meus pais não
precisavam pagar a escola de ensino médio, eles conseguiram pagar meu curso de inglês,
que não demorei a terminar e pegar meu certificado.
Terminei o Ensino Médio sentindo um imenso frio na barriga. Sempre ouvira dizer
que a universidade pública é para quem tem dinheiro para estudar nos melhores cursos
pré-vestibulares. O fato é que minha família jamais conseguiria pagar uma faculdade
particular e, além disso, passar para uma universidade pública era o mínimo que eu
podia fazer em troca de tanto esforço da minha família. Além de um grande sonho que
tinha de crescer profissionalmente, era uma obrigação, uma prestação de contas, e eu
queria provar para mim mesma e para aqueles que desistiam que não precisava ser rica
para conseguir estudar em uma federal. E estimulava meus colegas de classe a fazerem
o mesmo, não desistirem.
Desde pequena, sempre gostei de estudar ciências e dizia que, quando crescesse, iria
cuidar de nenéns. No Ensino Médio, me apaixonei pela Biologia e decidi pela área de
saúde. No primeiro ano, terminando o Ensino Médio em 2003, tentei Medicina e não
consegui passar. Fiquei triste, mas não desisti, porque passar para uma pública era minha
única possibilidade de ingressar no ensino superior. No ano seguinte, em 2005, tentei outra
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
95
vez. Fiquei muito orgulhosa de ter passado, em quarto lugar, para Fisioterapia na UFRJ1 e,
em segundo lugar, para Enfermagem na UNIRIO2 e na UFF3.
A universidade
Resolvi estudar na UNIRIO. A universidade foi um ambiente totalmente novo pra
mim. Criada dentro de casa, foi uma experiência diferente ter que pegar ônibus sozinha
todos os dias e passar o dia inteiro fora de casa. Aliás, foi no trote da faculdade que aprendi
a me virar com os ônibus e a andar pelo centro da cidade, com 18 anos! Lembro que, quando
cheguei na Urca, fiquei encantada com a beleza da cidade e orgulhosíssima de estudar em
uma universidade pública. Apaixonei-me pela cidade, pela universidade, pelo curso e pelos
amigos que fiz aqui.
O curso de Enfermagem na UNIRIO é integral, o que representava mais um desafio,
pois teria que passar o dia inteiro na faculdade e não poderia trabalhar. Isso aumentaria os
gastos e eu não poderia ajudar a me manter na universidade. Esse é outro grande desafio que
a camada popular enfrenta ao conseguir ingressar na faculdade. Apesar de toda a dificuldade
para entrar, ainda acho mais difícil permanecer dentro dela.
Foi no terceiro período que tomei conhecimento do Programa Conexões de Saberes,
uma nova esperança. Além da ajuda financeira oferecida, me encantei com o projeto de
extensão e pesquisa, voltado para alunos provenientes de camadas populares, além da
possibilidade de contato com os alunos de comunidades pobres, onde eu poderia estimulálos a ter mais confiança e também aprenderia muito com eles. Foi aqui que conheci outras
pessoas que, como eu, encontraram dificuldades em suas trajetórias, mas que persistem para
mostrar que, com perseverança e fé, conquistaremos nosso lugar.
1
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
3
Universidade Federal Fluminense.
2
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Caminhadas de universitários de origem popular
Minha caminhada, minha vida!
Louise Storni Vasconcelos de Abreu*
Escrever é procurar entender, é procurar
reproduzir o irreproduzível, é sentir até o
último fim o sentimento que permaneceria
apenas vago e sufocador. Escrever é
também abençoar uma vida que não foi
abençoada.
Clarice Lispector
Na esperança de encontrar meu nome, pesquisava todos os dias na Internet as
listas de classificados no vestibular. Na verdade, minha família já estava desiludida
com a possibilidade do meu ingresso em alguma universidade pública, pois somente
meu primo de primeiro grau, Raphael, havia conseguido ingressar em uma instituição
de ensino superior público, mas não teve condições de concluí-la. Para mim, ingressar
em uma instituição federal de ensino, além de ser a oportunidade de ter um dos melhores
ensinos e ingressar no mercado de trabalho em pé de igualdade com aqueles que têm
melhores condições financeiras do que eu, era realmente o meu maior objetivo naquele
momento, pois sabia que seria difícil para meus pais arcarem com a despesa de uma
universidade particular e sempre foi meu grande sonho, que eu só iria conquistar
depois de muita luta.
Nasci em um dia que não estava previsto pelo médico. Naquele dia, minha mãe
havia se aborrecido e minha reação foi me enrolar no cordão umbilical, isso fez meu
coração bater bem devagar, quase inaudível. Com essa manobra de protesto, descobriram
logo que não podiam aborrecer minha mãe perto de mim. Depois do susto nos médicos,
nasci bem e com saúde.
Meus pais já estavam casados há quatro anos. Como as condições financeiras não
eram as melhores, minha mãe continuou trabalhando, até que o Plano Collor1 fechou algumas
empresas e lojas, inclusive a clínica de estética que minha mãe administrava. Nessa mesma
época, meu irmão, Victor, tinha acabado de nascer.
*
Graduanda em Histório pela UNIRIO.
Medida econômica implantada pelo então presidente da República Fernando Collor de Melo, em
1990, que pretendia acabar com a inflação que estava em níveis hiperinflacionários.
1
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
97
Sempre morei em um apartamento em Alcântara, um bairro de São Gonçalo. Minhas
brincadeiras preferidas eram boneca, pique e escolinha, em que eu sempre era a professora.
Fiz muita bagunça no pátio do prédio, principalmente quando brincava de pique-esconde
com meus amigos. Como não tínhamos o costume de brincar na rua, pois era muito perigosa,
por causa da grande quantidade de veículos que circulava por ela, o porteiro sempre chamava
nossa atenção ao brincarmos no play.
Na alfabetização, tive muita dificuldade para aprender a ler e escrever, principalmente
porque estava passando por problemas em casa, pois meus pais estavam em processo de
separação e eu sofri muito com isso na época.
Sempre estudei em escola particular, pois meus pais achavam o ensino público sem
qualidade. Mas um dia, quando a situação estava difícil, minha mãe conversou comigo e
com meu irmão expondo o problema e nos disse que no ano seguinte iríamos estudar em um
colégio municipal. Eu estava na 3ª série e de início fiquei triste, porque aquela proposta era
apenas colocada como uma ameaça caso eu repetisse o ano na escola. Antes de fazer a
mudança, minha mãe conversou com meu pai e ele disse que não era preciso, pois ele arcaria
com as despesas dos nossos estudos, material e uniforme, além da pensão. Então, continuamos
estudando em colégio particular e minha mãe voltou a trabalhar.
Na 5ª série, mudei de escola mantendo-me, porém, no ensino particular, pois acreditava
que era mais forte. Lá fiz muitas amizades e fortaleci outras que permanecem até hoje e que
são muito importantes para mim, pois acredito que amigos são uma espécie de família que
cada um escolhe para si. Eu escolhi e ainda estou escolhendo a minha.
No Ensino Médio, mudei novamente de escola, continuando no ensino privado, pois
acreditava que preparava melhor para o vestibular e o ensino público no município de São
Gonçalo está entre os piores do estado do Rio de Janeiro. No entanto, a adaptação foi difícil,
porque sofri muito preconceito, pois, além de ser gordinha e usar aparelho, eu era fanhosa e,
por esse motivo, comecei a freqüentar sessões de fonoaudióloga para consertar esse “detalhe”.
Sentia que para a sociedade nós devemos ser perfeitos, para agradar a todos.
Como era (e continuo sendo) uma aluna muito esforçada, conseguia tirar boas notas e,
no 2º ano, a turma foi dividida por rendimento escolar. Algumas pessoas que me
discriminavam saíram da escola e outros ficaram em turmas diferentes da minha. No entanto,
isso só durou um ano, porque, no 3º ano, juntaram todos na mesma turma. Naquele momento
os alunos já me conheciam melhor, passaram a me respeitar pelo que sou e não pelo que
aparentava ser. Então, finalmente, pararam de implicar comigo. Nesse mesmo ano, muitas
mudanças ocorreram na turma, acho que o clima de vestibular faz as pessoas se unirem, fiz
muitas amizades e fiz uma dieta também!!!! Isso porque não agüentava mais me olhar no
espelho e me sentir uma verdadeira baleia!
Entretanto, não consegui passar no vestibular. Eu havia tentado Jornalismo na
UERJ 2, UFF 3 e UFRJ 4, mas não havia estudado muito, acho que não fazia idéia do que
era o vestibular. Eu pensava que era uma conseqüência de meu desenvolvimento
cognitivo intelectual e não um mérito. Pensava que a universidade viria junto com os
18 anos, imaginava que minha vida iria mudar, pois passaria no vestibular, começaria
2
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Universidade Federal Fluminense.
4
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
3
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Caminhadas de universitários de origem popular
a trabalhar e ganharia um carro. Primeiro, passar no vestibular requer muito estudo e
dedicação. Segundo, trabalhar somente com o Ensino Médio completo é ser escravo.
E terceiro, ganhar um carro, só se meus pais fossem ricos, mas tudo isso eram fantasias
de adolescente.
No entanto, minha vida não mudou e eu não passei no vestibular. Todavia, comecei a
pensar na possibilidade de estudar em uma faculdade particular, mas eu sabia que seria um
gasto muito grande. Além disso, gostaria de recompensar meus pais por tudo o que fizeram
e fazem por mim. Então resolvi estudar mais e prestar vestibular outra vez, apesar de já estar
com dia marcado para fazer a matrícula em uma faculdade particular. Mas eu desejava outro
destino e sabia que era capaz de conseguir realizar meu sonho.
Estudei muito, como nunca tinha estudado antes. Consegui aprender física, biologia,
química e matemática, que no meu percurso estudantil eram as matérias que eu tinha maior
dificuldade. Em 2005, prestei vestibular para as cinco universidades do Rio de Janeiro
(UNIRIO5 e UFRRJ6 para História; UFF, UFRJ e UERJ para Jornalismo). Foram todos os
finais de semana e feriados, de novembro a janeiro (excluindo os finais de semana de Natal
e Ano Novo), dedicados às provas de vestibular. No final, já estava saturada de tanto fazer
prova. E, quando saíram os resultados, nada de classificação, eu não poderia imaginar não
passar no vestibular outra vez, isso seria terrível e, sinceramente, não sei o que poderia fazer
em relação aos meus estudos. Não consegui ingressar na UFF, universidade mais próxima da
minha casa, pois a relação candidato/vaga para Jornalismo era muito grande e,
conseqüentemente, eu precisaria de uma média maior do que a que eu obtive. O mesmo
ocorreu com as outras universidades, as quais eu não consegui ingressar. Por saber que
Jornalismo é muito concorrido, optei por prestar vestibular para UNIRIO e para UFRRJ, que
não têm Jornalismo, mas têm História (que também gosto muito, vale ressaltar!), curso no
qual a relação candidato vaga é menor.
Em um dia pela manhã, fui a um laboratório de informática e vi o resultado da Rural,
eu havia passado para História em Nova Iguaçu, fiquei muito feliz. Entretanto, nem a matrícula
eu pude fazer, porque não iria ter dinheiro para arcar com as despesas de passagens para a
universidade todos os dias. Chorei durante uma semana, mas ainda tinha esperança na
reclassificação da UNIRIO, que ofereceu edital de convocação, no qual me inscrevi e, no dia
24 de março de 2006, data do meu aniversário, recebi o melhor e maior presente que eu
poderia ganhar: ingressei em uma universidade pública! Foi um dia muito feliz e a
comemoração foi dupla.
Fui fazer a matrícula na segunda-feira, dia 28 de março, e iniciei as aulas no dia
seguinte. Minha primeira dificuldade foi saber como chegar à UNIRIO, porque sempre vivi
em São Gonçalo e dificilmente freqüentava o Rio de Janeiro sozinha, ainda mais que a
distância de onde eu moro para a universidade é de 50km, em média, e eu preciso pegar
quatro ônibus, dois de ida e dois de volta.
No primeiro dia, tive aula o dia inteiro, não sabia onde almoçar e não conhecia
ninguém do turno da manhã, muito menos do turno da tarde. Foi então que comecei a
construir meu círculo de amizade na faculdade, por não saber onde me dirigir para
almoçar, onde seriam as aulas no turno da tarde, isto é, eu estava me sentindo sem
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Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
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rumo, quando encontrei a Milena e a Mariana, que se tornaram minhas amigas.
Perguntei se elas também iriam fazer a aula da tarde e se eu poderia ficar fazendo
companhia a elas.
Outras dificuldades foram os gastos com cópias dos textos, só no primeiro dia foram
R$35,00 mais as passagens. Só de transporte a despesa era de R$12,00 por dia, para diminuir
esse gasto resolvi pegar uma van para ir da minha casa até Botafogo (R$4,00 na ida e mais
R$4,00 de volta). Como o ônibus de Botafogo até a Urca custava R$2,00 na ida, mais
R$2,00 de volta, passei a fazer uma caminhada de Botafogo até a Urca economizando por
dia R$4,00, ou seja, R$80,00 por mês!
No final do 1º semestre, fiquei sabendo que estavam abertas as inscrições para participar
do Programa Conexões de Saberes. Em minha opinião, esse Programa é muito mais
interessante do que somente a bolsa permanência, na qual o estudante ganha R$180,00 de
ajuda de custo, para se manter na universidade. No Programa Conexões de Saberes, os
estudantes estão trabalhando tanto com a pesquisa quanto com a extensão. Na semana
seguinte à inscrição, fui selecionada para a entrevista e estava muito ansiosa para o resultado.
Na segunda semana do mês de julho, numa quarta-feira, saiu o resultado e eu fui selecionada,
fiquei muito feliz!
Observando minha trajetória, percebo que tudo o que vivi foi necessário para meu
aprendizado e engrandecimento como pessoa. O Projeto Conexões de Saberes está sendo
uma grande oportunidade, pois aprendi, aprendo e pretendo aprender muito mais construindo
ele. Além dos ensinamentos, o Programa é de grande ajuda para minha manutenção e
permanência na universidade. Penso que o acesso à educação é direito de todos, então a
universidade também deveria ser. No entanto, de acordo com a “Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão”, o acesso à universidade é uma questão de mérito, isto é, não é
acessível a todos. Por isso, que a discrepância social e racial permeia a nossa sociedade.
Para finalizar, agradeço a OPORTUNIDADE da minha vida aos meus pais. Ao meu pai,
que investiu nos meus estudos como um meio de melhorar o meu futuro e me tornar uma
mulher independente, mas, principalmente, à minha mãe, por ter estado sempre ao meu lado
em todos os momentos da minha vida e por acreditar sempre nos meus sonhos. Agradeço por
ela ser minha base, meu alicerce, minha referência do que é ser família e por ser minha maior
inspiração, pois todas as vezes que lembro tudo o que passamos juntas, essas lembranças me
dão forças para continuar estudando e lutando para vencer todas as dificuldades e tornar
nosso futuro melhor.
100
Caminhadas de universitários de origem popular
A formação do ser contemplada
a beleza do arborecer
Luana Nascimento de Oliveira *
As imigrações fazem parte da história do Brasil e o êxodo rural, ocorrido a partir dos
anos de 1960, trouxe muitos nordestinos para os pólos industrializados do Sudeste do país.
É dessa realidade histórica que se inicia a minha história, pois sou o fruto da união entre um
casal proveniente do agreste paraibano que em busca de uma vida melhor e de oportunidades,
veio tentar a sorte no Rio de Janeiro.
Com uma família composta por cinco pessoas, sou a primeira da geração de meus familiares
a entrar na universidade e devo grande parte desta conquista aos meus pais, Francisco de Oliveira,
que há mais de vinte anos trabalha como porteiro de edifício, e Maria do Socorro Nascimento,
dona de casa e doceira, que me proporcionaram a vida que não puderam ter quando jovens. O
comprometimento dos meus pais com minha educação é um dos mais importantes motivos que
me fizeram conquistar a tão sonhada vaga em uma universidade pública.
Fortalecimento do tronco...
Aos três anos de idade, entrei na rede particular de ensino, posteriormente, na 4ª série do
Ensino Fundamental, por questões financeiras, passei a freqüentar a Escola Municipal Dr. Cócio
Barcellos. A mudança de escola foi bastante positiva, apesar de toda problemática do ensino
público, que acarretou uma deficiência na aprendizagem da disciplina Língua Portuguesa, nas
6ª e 7ª séries do Ensino Fundamental, em razão de não ter aulas dessa matéria. Enfim, tenho boas
lembranças, pois boa parte dos meus amigos hoje é de amizades construídas nessa época.
Aos quatorze anos, iniciei o Ensino Médio (antigo 2° grau) em um colégio estadual,
o Colégio Pedro Álvares Cabral, posso dizer que foi um período muito bom, pois os
professores nos incentivavam e a direção da escola freqüentemente buscou parcerias com
outras instituições, que organizavam palestras sobre o mercado de trabalho, profissões,
drogas e gravidez precoce.
Lembro-me de uma vez que realizamos uma visita à Universidade Estácio de Sá,
fomos aos laboratórios e departamentos, conhecemos os trabalhos realizados por
determinados cursos e tivemos uma palestra sobre o processo do vestibular tanto na rede
pública, como nas instituições privadas. Essa informação foi bastante útil, afinal éramos
alunos de escola pública e não sabíamos informações importantes como: possibilidade de
pedido da isenção, regras para inscrição e possibilidade de acesso a uma universidade
privada através das bolsas integrais e parciais.
*
Graduanda em Pedagogia pela UNIRIO.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
101
A partir da palestra, de alguns testes vocacionais, do incentivo por parte da
minha família, da torcida pela minha entrada em uma universidade pública e da
experiência como “explicadora” (que exerci durante todo o período do Ensino Médio,
quando ministrava aulas particulares aos amigos dos meus irmãos), optei pelo curso
de Pedagogia. No começo, fiquei um pouco indecisa entre Pedagogia e Psicologia,
mas o magistério, para mim, é algo muito mais interessante do que estar numa clínica
a fazer análises, não que essas áreas se restringiam aos dados aqui explicitados, mas
assim era o meu conhecimento de mundo na época, uma idéia que mais adiante
compreendi ser equivocada.
No terceiro ano do Ensino Médio (2002), ocorreu um fato desestimulador, os
colégios estaduais e federais entraram em greve, situação que deixou em pânico parte
do corpo docente do colégio onde estudara. E a partir daí me deparei com uma situação
complicada, pois, em uma família onde a renda mensal mal cobria as despesas, ficava
inviável ingressar em uma escola privada, como também freqüentar um qualificado
curso pré-vestibular.
A melhor saída, visando um ideal, fora estudar por conta própria, cair sobre os livros
às duas horas da manhã, freqüentar bibliotecas, realizar grupos de estudo com colegas na
mesma situação e procurar auxílio com professores do colégio, pois mesmo em greve lá
estavam para discutir questões políticas em defesa da classe.
Minha família custeou aulas particulares com uma professora de português e, por
ajuda divina, o professor do laboratório de química e física freqüentara a mesma biblioteca
durante o período de greve e, com ele, tirei minhas dúvidas até de matemática. Na volta às
aulas, ao conversar com um amigo do colégio, soube da existência de um curso précomunitário da UFRJ, porém a entrada consistia na esperança de vagas, o que acabou não
acontecendo, pois as vagas eram restritas.
Em agosto de 2002, faltavam três meses para a primeira fase do vestibular, foi
quando uma luz radiante passou pela minha vida através da intervenção da
fonoaudióloga do meu irmão, que indicou à minha mãe um missionário da Paróquia
Santa Mônica, cuja trajetória de vida se resume a um gesto divino, ajudar aqueles que
necessitam. Assim, o missionário Carvalho proporcionou minha entrada em um curso
pré-vestibular comunitário – INVEST –, que funciona em um prédio anexo ao Colégio
Santo Inácio.
O pré-vestibular possui uma história interessante, pois a partir de uma conversa informal
entre ex-alunos do Colégio Santo Inácio, em uma pequena reunião, surge a proposta de
ajudar aqueles que também possuem um ideal de entrar na universidade. Lá conheci pessoas
magníficas, jovens universitários e professores já aposentados, que deram total atenção a
mim e aos demais alunos, em sua maioria, de classe popular. Os alunos do curso tinham
100% de bolsa na PUC-Rio e, na época, pensei em prestar o vestibular para essa instituição,
mas refleti e percebi que meu desejo era estar em uma universidade pública.
E como toda estrela tem que brilhar, lá estava eu, à minha frente a prova objetiva da
UERJ e, semanas depois, da UNIRIO. Prestei vestibular apenas para as duas, pois conseguira
a isenção por completo na primeira e parcial na segunda. Em ambas, o resultado foi
satisfatório e, como o primeiro passo fora dado, bastava o segundo, o momento de decisão
estava prestes a acontecer, e tudo se concretizaria da melhor maneira se não fosse a bendita
greve a me deixar sem uma resposta imediata...
102
Caminhadas de universitários de origem popular
Os ramos se enchendo de folhas...
Em 2003, as universidades federais e estaduais no Rio de Janeiro enfrentavam uma
greve que perpetuou até meados de agosto, e ansiosamente esperei o resultado sair no site
das universidades.
Durante a manhã de uma quinta-feira, eu e minhas amigas, gêmeas, filhas de um
zelador de edifícios também, estávamos no curso de Informática, trabalhando com Internet,
quando pedi ao professor para visitar a página da UNIRIO, e lá estava o meu nome, habilitado
para o segundo semestre de 2003. Todas nós pulamos, nos abraçamos mutuamente, peguei
o celular e avisei a minha mãe. “Mãe eu passei para a UNIRIO!!!” Ela não acreditou e pediu
para falar com uma das minhas amigas, depois de toda euforia, esta chegou para mim e disse
que minha mãe, emocionada, perguntava se era mesmo o meu nome: “...é Luana Nascimento
de Oliveira, filha de porteiro?”. A partir daí, percebemos como esse comentário reflete sobre
a questão de nem sempre ingressar um indivíduo oriundo de espaço popular, com um
histórico de vida que nem o meu e de boa parte das pessoas que conheço, pessoas humildes
e que lutam diariamente pela obtenção de uma vida melhor.
Colhendo os frutos...
Em setembro de 2003, iniciei minha jornada universitária na UNIRIO e mal sabia das
dificuldades que me esperavam. Mas só o fato de saber que se encontrara em uma universidade
pública era exatamente tudo que queria, um sonho maravilhoso do qual despertar é bobagem,
porém minhas preocupações surgiram mais adiante ao me deparar com a quantidade de
textos para tirar xerox, lê-los e realizar trabalhos digitados, além da passagem de ida e volta,
durante toda semana.
Algumas medidas de emergência foram tomadas, como comprar o computador, fruto
da limpeza de uma conta bancária e mais o que recebia como professora particular; e
outras suavizadas, como a ida à faculdade com a blusa da escola, diminuindo uma das
passagens do dia.
Em 2006, algumas decisões foram tomadas e a minha dedicação à vida acadêmica
tornou-se prioridade. O que me rendeu a entrada no Programa Conexões de Saberes, a
participação e organização de eventos e fóruns sobre temáticas de acesso e permanência de
estudantes oriundos de comunidades populares e a intensificação pessoal pela luta de uma
universidade pública realmente democrática. Pois o momento que vivencio na UNIRIO
como conexista me orienta a incentivar os caminhos de outras pessoas iguais a mim e a
você, que tem o direito de estar aqui.
O ano de 2007, para mim, é motivo de festa, pois obterei meu diploma de Licenciatura
Plena em Pedagogia, com 22 anos de idade, e com toda a dedicação que assim exigir,
continuarei meus estudos e assim prosseguirei com o mestrado. Pois, a partir de agora,
determinadas palavras tais como cessar e desistir não fazem parte do meu vocabulário.
Concluo com o seguinte pensamento: “Ter o canudo em minhas mãos não é apenas
uma conquista isolada, mas sim uma vitória de todos aqueles que participaram positivamente
ao longo desses anos, minha família, amigos e professores. Desistir jamais e seguir em frente
é apenas o começo!”.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
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Superação
Luiz Antonio Gomes Cristóvão*
Meu pai, sr. Evaristo Cristóvão Filho, era estivador e veio a falecer quando eu tinha apenas
oito anos de idade; minha mãe, sra. Silvia Maria Gomes Cristóvão, até os dias de hoje, trabalha
como doméstica. Eu sou o primogênito de nove irmãos e o primeiro a ingressar na faculdade.
Infância
Minha caminhada teve início quando minha avó entrou em contato com uma senhora
que dava aula particular de reforço em sua casa, quando eu tinha 10 anos. No meu caso, não
foi reforço, ela simplesmente se dedicou à minha alfabetização.
Morava em Caxias e minha avó em Nova Iguaçu e, um dia, embarquei em um ônibus
e perguntei ao cobrador se passava no bairro onde minha avó morava e ele me perguntou se
não sabia ler. Daí, senti a necessidade de aprender a ler.
Adolescência
Logo após, minha avó matriculou-me em um colégio público com nome de Escola
Estadual Dom Wolmor, quando eu tinha 12 anos. Eu fui amparado pela Lei e não precisei
cursar a 1ª e a 2ª séries, começando a cursar a 3ª com algumas dificuldades que me levaram
à repetência. Fiz supletivo na 5ª série para me adiantar, pois já estava com 15 anos, mas não
tive sucesso e retornei a minha escola de origem, onde não desanimei e persisti em minha
busca de conhecimento.
Neste colégio tive contato com excelentes professores, que, além de ensinarem as
disciplinas normais, me incentivaram a estudar e a desejar novos objetivos.
Tive várias desistências nesse percurso, devido à necessidade de conciliar o
trabalho com o estudo. Em 1995, concluí o Ensino Fundamental e, em 1999, concluí
o Ensino Médio.
Adulto
Para complicar, aos 20 anos, tornei-me pai, se já não era fácil estudar e trabalhar,
imagine ainda ser pai de família, mas isso não me fez desistir dos meus ideais.
Fiz meu 1º vestibular em 2003 na UNIG, pois consegui isenção da inscrição,
me inscrevi para o curso de História e fui aprovado, porém não tinha dinheiro para
financiar a faculdade.
*
Graduando em Biblioteconomia pela UNIRIO.
104
Caminhadas de universitários de origem popular
Em 2004, me inscrevi no vestibular da UNIRIO, com taxa de isenção, e fui aprovado
no curso de Biblioteconomia no turno da noite. Não me inscrevi no curso de minha
preferência, História, devido ao curso ser diurno e não conciliar com o trabalho. Não fiz
nenhum cursinho pré-vestibular seja ele comunitário ou particular.
Meu primeiro ano na faculdade foi no 2º semestre de 2005, eu estava com trinta e
quatro anos de idade e foi um ano de surpresas, dificuldades e companheirismo. As surpresas
vieram ao descobrir que a faculdade não é aquele monstro todo que as pessoas falavam. As
dificuldades surgiram por eu não ter nenhum contato com o computador e, a partir desse
momento, foi necessário que eu me familiarizasse com a informática e o uso da Internet para
a realização dos trabalhos solicitados pelos professores. Nesse momento, surgiu o
companheirismo dos colegas de classe, que me ajudaram ao máximo com as minhas
dificuldades em relação à informática.
Realizei meu primeiro trabalho acadêmico manualmente e pedi para o meu irmão
digitar, pois tem acesso e sabe usar a informática. Nos dias de hoje, já consigo realizar
algumas tarefas no computador.
Estou no 4º período e as pessoas dizem que é difícil entrar para a faculdade, eu
discordo, pois difícil é se manter na faculdade, não dá para conciliar estudo, trabalho e
estágio. Estou vivendo somente com a renda dos estágios. O trabalho é importante, porém
preciso do estágio para o aperfeiçoamento do meu conhecimento e desenvolvimento
acadêmico. Essa situação levou-me a optar pelo estágio, não é fácil viver só de estágio,
por isso tenho que ter dois ou mais estágios. Com muita luta e perseverança, atingirei meu
ideal, que é concluir a graduação.
Dedico aos familiares e amigos, que foram e são fundamentais no meu desenvolvimento
pessoal e acadêmico:
Familiares:
Maria Juliana (avó)
Marcos José (irmão)
Ailton Luiz (irmão)
Amigos:
André Luiz
Andréa Saroldi (madrinha)
Adriana Socorro
Geiselane Salvador
Roberta Graciane
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
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Era uma vez uma linda gatita
Marcelly Marques Pereira *
“Mas se você achar
Que eu tô derrotado
Saiba que ainda estão rolando os dados
Porque o tempo, o tempo não pára.”
Cazuza/Arnaldo Brandão
Quando acordei, estava numa sala, com vários médicos me olhando e um engraçadinho
que bateu em meu bumbum, para me fazer chorar. Minha mãe estava ali, exatamente às onze
e cinco da manhã, me admirando. Pensando em como faria para criar uma linda menininha,
tendo ela apenas quinze anos, ainda uma adolescente.
Encurtando essa parte de minha história, nunca soube como ela fez, pois
ela morreu quando eu tinha somente um ano e onze meses. Após a partida de mamãe
para o céu, minhas avós solicitaram à justiça a minha guarda. Cresci vendo minhas
duas avós sem nenhum diálogo. Penso que você, querido amigo leitor, pode estar
sentindo pena, pois pode guardar para um livro de auto-ajuda, minha intenção é
mostrar que, com determinação e força de vontade, tudo é possível. “Mesmo quando
parecer que possa estar derrotado, saiba que estão rolando os dados, porque o tempo
não pára”.
A segunda fase de minha infância, entre sete e onze anos, obtive importantes conquistas
escolares. Ganhei medalhas na escola com o campeonato de Matemática, participei do
grêmio e de um congresso estudantil com a presença do Ciro Darlan. Como lembrança,
guardei a bolsa do evento. Ressalto que não tive nenhum mérito por bom comportamento
dentro da sala de aula.
Até a quinta série, eu não havia me apaixonado, isso ocorreu na série seguinte,
quando vivenciei minha primeira frustração. Ele era tudo de bom! Muito parecido
com o Kevin, aquele cantor do grupo Backestreet Boys, minha banda favorita na
época. Só que ele era mais velho e nem percebeu a minha existência... Sabe o que fiz
como atitude protesto? Raspei a sobrancelha! A façanha ficou conhecida como: “Vó
se acalma...”. Minha avó não sabe até hoje o motivo da depilação facial.
*
Graduanda em Museologia pela UNIRIO.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Como em toda adolescência, a minha foi um período de muitos altos e baixos e, com ela,
chegou o ensino médio. Meu primeiro ano foi de muito estudo e boas notas, o que resultou na
participação no projeto da Nestlé, de iniciação científica, e no Projeto Afro Ascendentes.
Participar dessas ações não foi fácil, cada uma tem sua história.
No Projeto da Nestlé, o objetivo era desenvolver uma redação com um tema delimitado
pela empresa, fiquei dois anos nesse projeto. Nos encontrávamos algumas vezes na semana
para debater sobre a redação. Recordo-me que, no dia de São Cosme e Damião, as crianças
passavam pedindo doce, e eu (que não tinha idade para pegar doce) estava discutindo sobre
a conclusão do nosso trabalho.
Uma professora de Filosofia conseguiu uma vaga no grupo de pesquisa para ser bolsista
pela FAPERJ, e fomos nós de novo. Era para atuar no departamento de Geologia na área de
Paleontologia, em dois anos observei que a traça, velha amiga, constituiu família e destruiu
grande parte do acervo de fósseis. Que bom que ela constituiu família, assim não ficaria
sozinha na minha ausência.
Larguei a pesquisa, ou melhor, a amizade com as traças por causa do Projeto Afro
Ascendentes, o responsável pela minha carreira acadêmica e estabilidade emocional. Sendo
sincera, através do Afro passei a me identificar como negra, antes me enxergava como parda.
Lembro que naquela época achava chato o que o coordenador (Dudah - Eduardo Pereira) e
os educadores diziam e não fazia muito sentido para mim. Hoje percebo que é minha vida.
Amanhã será o futuro do meu filho...
Digo que o Projeto Afro Ascendentes foi a melhor experiência da minha vida. Fiz
muitos amigos, a maioria está no meu coração. Na época, tínhamos aulas de reforço devido
à defasagem escolar em Biologia, Geografia, História, Química e Redação. Nessas aulas,
conheci uma pessoa muito especial, a qual atribuí grande carinho, meu professor de reforço
em Matemática, Ubiraja Ferreira Pinto.
Meu primeiro ano de vestibular foi um “fracasso”. Não estava preparada e, para
piorar, fui estudar no curso GPI (pré-vestibular para/da elite) porque o Projeto Afro
Ascendentes fez parceria com a instituição. Esse curso pré-vestibular tem por filosofia
acreditar em sua bagagem escolar, aplicar matérias somente para RELEMBRAR os
conceitos. Para mim, era terrível, pois não poderia relembrar o que não havia aprendido,
naquele momento eram assuntos inéditos, Tela Quente Especial na Rede Globo
(tecnicamente os professores achavam que todos haviam aprendido, só que eu nunca
tinha visto, que dirá aprendido).
Reconheço que os professores do curso e do reforço tentavam me ajudar, mas era muito
complicado. Na escola pública, nunca fui apresentada realmente, de forma que eu pudesse
entender, à Química e à Física, o que tornava minha vida de vestibulanda um inferno. Nesse
período, as aulas de reforço no Projeto Afro Ascendentes foram muito importantes.
Enfim, não passei para nenhuma universidade, mas serviu para que eu me preparasse
para o vestibular de 2005. Para isso, contei com o apoio dos professores do cursinho, cito,
Jorge Bahiense (História), Ricardo Luiz (Física), Marcelo (Química), Carnevale (Matemática),
Carlos Gomes (Português). O “segundão” foi de muita determinação. Queria ingressar no
curso de Jornalismo.
Chegando próxima à primeira prova da UERJ15, briguei com meu namorado (pai do
meu filho), foi grave e resultou em uma média E, de eliminada. Fiquei arrasada, minha
frustração foi grande. Resolvi preparar-me para o ENEM e a outra chance que a UERJ dá,
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
107
ainda na primeira fase. Obtive uma pontuação excelente no ENEM e passei para a segunda
fase da UERJ1 com média C. Acredito que meu filho motivou o êxito, porque perto das
provas descobri a gravidez. Ao contrário de outras pessoas de minha idade, eu não me
desesperei, resolvi estudar ainda mais para propiciar ao meu filho um futuro melhor.
Encurtando a história, para não parecer novela mexicana do SBT ou um drama, ingressei
na UNIRIO2 utilizando a pontuação do ENEM. Logo em seguida, realizei um sonho de ser
aprovada no curso de Jornalismo da PUC3, consegui uma bolsa de estudo que proporcionava
100% de desconto no curso. Porém, já havia me apaixonado pelo curso de Museologia
(ressalto que Museologia não tem relação com música e não toco nenhum instrumento).
Na época da inscrição da PUC, estava no hospital dando à luz ao meu filho, Cauã, que
nasceu de oito meses. Meu bebê perdeu muito oxigênio, quase morreu... por isso perdi a
inscrição na PUC e, por destino, fui estudar na UNIRIO. Não me arrependo de estar no curso
de Museologia, gosto muito da minha área. Na Escola de Museologia, encontrei docentes
preocupados com a situação do universitário de baixa-renda: Leila Beatriz Ribeiro, Sul
Brasil, Mário Chagas, Regina Bibiani, entre outros.
Cheguei a essa altura do meu testemunho e percebi, amigo leitor, que não havia
apresentado pessoas fundamentais e especiais para minha vida. Acredito que você pode
estar pensando ser desnecessária tal apresentação, mas fazê-la esclareceria algumas questões
como: quem ficou com meu filho quando fui para a faculdade, como consegui ir para a
universidade por causa das passagens ou até mesmo tirar xerox (diga-se de passagem, que
toda semana os professores pedem para tirar, acredito que eles tem pacto com o dono da
xerox). A princípio, apresento as duas mulheres de suma importância na minha vida: minhas
avós (ambas Dalva). Minha avó paterna, com quem moro, ofereceu a oportunidade de
escolher o que faria da minha vida, se estudaria ou trabalharia. Fiz a escolha e ela me apóia
até hoje... entretanto tinha um problema, quem ficaria com meu filho para que eu pudesse
estudar. Meus avós são muito velhinhos e não poderiam... a minha avó materna é bem mais
nova, não tem 60 anos, e aceitou ficar com ele. A vida é assim, quando você pensa ter
resolvido os seus problemas, aparece mais um, e o meu estava no fato de que a minha avó
morava em outro bairro, e como eu não tinha verba para pegar dois ônibus a mais, tive que
ir andando. Me recordo como se fosse hoje, todas as vezes que levantava às 4 da manhã,
para sair de casa às 5 horas, ir andando com meu filho até chegar a casa de minha avó às 6
horas da manhã. Tinha vezes que chorava na rua com medo que algo acontecesse ao meu
filho... certa vez, uma velhinha me indagou se não estava muito tarde para chegar da festa
com meu filho, pois ela me rotulou como mãe irresponsável... como chorei...por fim, ressalto
o nome de duas grandes amigas que me ajudaram muito, nos três primeiros períodos, e
ajudam até hoje: Julianna Luzia e Aline Pereira. Quando as conheci, nos primeiros dias de
aula, vi que havia encontrado parceiras pra vida toda. Quantas vezes elas me emprestaram
dinheiro para comer, tirar xerox e até pra passagem... que época! Creio que não teria
conseguido resistir a todas dificuldades sem o apoio das duas parceiras/gatitas.
Conheci o Conexões de Saberes através de uma amiga, Ana Carolina, que também
entrou para o Programa. Ela me falou que na Reitoria tinha um formulário que o candidato
deveria preencher. Fui chamada para entrevista e hoje estou no Conexões de Saberes – UNIRIO.
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Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
Pontifícia Universidade Católica
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Caminhadas de universitários de origem popular
Entrei para o Conexões no momento mais difícil da carreira acadêmica que todo estudante de
camada popular passa: desistir ou não desistir, eis a questão. Graças a Deus e ao Conexões,
estou aqui, num espaço desenvolvido para elite... estou terminando o terceiro período, muito
feliz por estar nesse projeto e por ter conhecido pessoas maravilhosas entre conexistas,
mestrandas, Alba, Maria Helena e o Didi (Diógenes, coordenador geral). Penso em voltar a
minha carreira para memória, brasão... enfim, até me formar tenho muito para conhecer.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
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Vida, minha vida
Maria Aparecida Mesquita dos Santos *
São três anos de muitas saudades, mas ainda me lembro das histórias que meus pais
nos contavam da sua infância e namoricos de adolescente, até sua saída de Aracaju para São
Paulo, onde se estabilizou como alfaiate e teve até um sobrado. Meu pai era um homem
incrível e marcante e, apesar da sua pequena estatura, era muito namorador, o que levava a
minha mãe à loucura. Bem, em São Paulo meu pai chegou a viver com uma mulher, mas a
relação não deu certo, o que o fez abandonar tudo o que havia conquistado e partir para o
Rio de Janeiro, para tentar refazer a vida.
Nessas histórias que o meu pai contava e eu pude testemunhar, além da coragem
de se lançar aos desafios, o desejo de encontrar a felicidade, havia o fato de o meu
querido pai ser analfabeto. Sim, meu pai não sabia ler nem escrever, mas conseguia
assinar o nome e possuía uma grande habilidade com os números, era capaz de fazer
cálculos em segundos de cabeça, sem rabiscar uma linha sequer. Era um homem bem
informado, conversava com qualquer um sobre qualquer assunto, e foi essa habilidade
que o ajudou a sobreviver e a ter um pequeno comércio de Secos e Molhados, que
dividia com sua profissão de alfaiate, na Baixada Fluminense, em Belford Roxo, onde
ele criou quatro filhos e dois enteados.
Minha saudosa mãezinha, como meu pai, era uma contadora de causos. Sergipana,
neta de índio, era dona de uma vasta cabeleira negra e uma pele muito bronzeada,
dizia que era mistura de branco, negro e índio. E, além disso, exibia um sorriso de
causar inveja.
Parece que foi ontém, me recordo da casa em que morávamos quando crianças. Uma
casa grande e telhado de barro. Essa casa possuía uma peculiaridade, você entrava em um
quarto e saía em outro, entre eles não havia corredor e, assim, eram todos os outros cômodos
mal divididos. O comércio do meu pai ficava na frente da casa, ligado diretamente a ela.
O quintal, para nós, que éramos crianças, parecia um mundo. Lembro-me das árvores,
mas uma em particular me chamava atenção, era uma mangueira, seu tronco já havia sido
cortado várias vezes, mas ela forte resistiu e floresceu. Ao seu lado, ficava o tanque, onde
minha mãe, após todos os afazeres da casa, passava as tardes lavando roupa e onde meus
irmãos e eu nos reuníamos em cima do tronco cortado da mangueira, que nos oferecia um
gigantesco banco, para ouvir as histórias da terra natal da minha mãe e, assim, conhecer um
pouco, sobre nossas origens. Eram lendas da região onde ela cresceu, contos de donzelas,
*
Graduanda em Museologia pela UNIRIO.
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Caminhadas de universitários de origem popular
almas penadas e muito mais, até como foi sua saída de Sergipe para o Rio de Janeiro, em
busca de trabalho. Ela foi trazida por um casal de amigos, de navio, e toda sua trajetória, até
conhecer meu pai. E ali, ao seu lado, passávamos tardes inteiras ouvindo seus contos.
Minha mãe se dividia entre seus afazeres domésticos e ajudar meu pai. Como meu pai,
minha mãe também era analfabeta, só sabia escrever o seu nome. Ela contava muito com a
ajuda da minha irmã mais velha. Em resumo, minha mãe, era uma mulher aparentemente
forte, mas, com o passar do tempo, ela mergulhou numa profunda tristeza.
Nossa infância foi marcada por vários momentos, na época, porque éramos crianças,
não compreendíamos muito bem os problemas que minha mãe passava e que a levaram a
um grau tal de depressão que combinou com alcoolismo. Logo em uma época em que não
se entendia que se tratava de uma doença, testemunhamos momentos muito difíceis e
traumáticos para todos, cenas de agressões entre meus pais e, até mesmo, ambulância do
hospício, que a levou várias vezes. Ainda me lembro do olhar de preconceito de todos.
Hoje sei por que meus irmãos e eu sempre brincávamos no quintal, nunca íamos para rua,
nunca havia outras crianças brincando com a gente, porque as mães não deixavam...
éramos os filhos da alcóolatra. Por várias vezes, devido ao alcoolismo, minha mãe me
esquecia na escola.
Com o passar do tempo, a situação só foi piorando, meu pai já não sabia o que fazer e
onde buscar ajuda. Minha mãe passou a beber mais e mais, ao ponto de cair pelas ruas do
bairro. Minha irmã mais velha não agüentou a pressão, saiu de casa. Foi morar com uma tia
e logo casou. Minha outra irmã, abaixo dela, era apenas um menina, tinha na época 15 anos
e nós, os menores, ficamos quase no estado de abandono total, se não fosse meu pai, que
ainda se esforçava para cuidar de tudo. Foi quando meu irmão mais velho, que era enteado
do meu pai, há muito já vinha dando trabalho, se misturou com más companhias e
desapareceu sem deixar pistas. Para minha mãe, foi o fim, ela chegou ao limite, não se
alimentava mais e, assim, logo morreu, aos 42 anos, deixando uma filha adolescente de 15
anos e três crianças pequenas, que ainda precisavam muito dela.
Minha irmã mais velha conta que parecia que minha mãe sabia que ia morrer, pois, na
véspera de sua morte, era domingo de Ramos e ela saiu e visitou todas as suas amigas, como
se estivesse se despedindo de todos.
Hoje, acredito que todos esses problemas afetaram muito nossa vida escolar. Minha
irmã de 15 anos, naquele momento, abandonou a escola para ir trabalhar. Meu irmão, abaixo
dela, não conseguiu passar da 4ª série. O caçula passou a ser agressivo na sala de aula com
os colegas e professores, xingava, brigava e até mordia a mão da professora. Eu, que já havia
iniciado os estudos tarde, passei a sentar na última carteira e me distraía conversando
durante a aula ou, simplesmente, baixava a cabeça e ficava quieta, até que uma professora,
de Matemática, notou meu comportamento e passou a exigir a minha participação, mandou
que eu me sentasse na frente e sempre chamava ao quadro e eu ia aos prantos. Mas, hoje,
gostaria de agradecer o carinho e a atenção da minha querida professora Lurdinhá, da 3ª
série, do Colégio Estadual Presidente Kennedy, em Belford Roxo, no bairro da Piam. A ela,
agradeço por não me deixar desistir.
Meu pai, com todos esses problemas, perdeu seu pequeno comércio e a casa. Tivemos
que nos mudar e sem emprego, ele resolveu deixar minha irmã e eu com a nossa irmã mais
velha, que havia se casado há pouco tempo, e ele ficou só com os meninos. Minha irmã,
como não tinha condições de ficar com as duas, me mandou para a casa de uma tia e esses
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
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foram um dos piores momentos de minha infância. Perder minha mãe e ficar longe dos meus
irmãos. Mas logo meu pai reestruturou sua vida e encontrou uma companheira que se
sensibilizou com a situação dos meninos e ele pôde reunir toda a família novamente.
Morando com a tia da minha irmã, pude continuar meus estudos até a 5ª série. Quando
retornei à casa de meu pai, fui trabalhar em casa de família, no Leblon, onde meus patrões
eram pessoas muito boas. Pude me matricular em um curso noturno, no Colégio Santo
Agostinho, e conciliar os afazeres domésticos, os passeios do Fritz, um “chinalzesr” lindo,
de manhã e, à tarde, a escola noturna.
Terminei meu Ensino Fundamental na Escola Municipal Percy Batista Crispin, no bairro
Jardim Tropical, em Nova Iguaçu, onde descobri meu primeiro amor e professores maravilhosos,
que muito me ajudaram. Na época, era muito difícil encontrar uma escola pública para cursar
o Ensino Médio, sem que tivesse que fazer concurso, então resolvi fazer o Instituto de Educação
de Nova Iguaçu, mas infelizmente não consegui. Fiquei muito frustrada e até pensei em
desistir, fiquei sem estudar por algum tempo, mas tudo que fazia, para mim, não era o suficiente,
sempre sentia que algo estava faltando. Lembro que a filha do meu padrinho era chefe de uma
firma de limpeza e estava trabalhando na UFRJ, ela arrumou uma vaga para eu ir trabalhar com
ela. Fiquei muito animada, foi a primeira vez que pisei em uma universidade, fiquei de boca
aberta, tantos jovens, todo aquele ambiente acadêmico, é nítido na minha mente as maquetes
que vi na sala de arquitetura, os alunos de belas artes desenhavam uma modelo vivo, era uma
negra linda que estava totalmente nua. Fiquei muito impressionada e, naquele momento,
decidi a minha vida, o caminho que eu queria seguir a partir dali. Foi claro na minha cabeça
que não era daquela maneira que eu queria pisar na universidade, atrás de um esfregão e de um
balde, mas sim atrás de uma carteira de aula, fazendo parte do corpo discente. Aquele era o
meu lugar e foi o primeiro e o último dia em que pisei em uma universidade como auxiliar de
serviços gerais, e esse dia, determinou todos os outros dias de minha vida.
Retomei meus estudos, meu primeiro passo foi me inscrever na Escola Técnica João Luiz
do Nascimento, no Centro de Nova Iguaçu. A partir da inscrição, que fora seis meses antes das
provas, estudei de dia e de noite, recolhi todo material possível, provas anteriores, livros, conversei
com pessoas que já tinham feito a prova. E, no dia da prova, fui com muita confiança, aguardei
o resultado e não deu outra... meu nome foi um dos primeiros da lista dos aprovados, para a turma
do 1º ano do Ensino Médio no curso de Técnico de Administração do ano seguinte e, daí por
diante, passei a acreditar que tudo na vida era possível, bastava querer e acreditar.
Essa vitória eu agradeço ao meu pai e a sua companheira, que me deram muito incentivo
e acreditaram em mim. Fui a primeira da minha família a concluir o Ensino Médio e em uma
escola técnica, o que trouxe muito orgulho para o meu querido pai.
No último ano do curso, procurei logo um pré-vestibular comunitário, já tinha há
muito ouvido falar do pré para negros e carentes, organizado pelo Frei David, em São João
Meriti. Fui aceita e consegui uma vaga no CIEP de São João, que funcionava aos sábados e
domingos das 8 às 19 horas. Mas logo descobri que estava grávida, o que não me desanimou,
ao contrário, só me deu mais força e coragem para continuar. Quando concluí o Ensino
Médio, estava com sete meses, dona de uma barriga imensa e todos brincavam dizendo que
eu iria receber dois diplomas, um para mim e o outro para o bebê.
Meus planos de ir para a universidade tiveram que esperar um pouco, pois agora eu
não era mais sozinha, não podia mais pensar só em mim, resolvi esperar o meu filho crescer
um pouco para continuar a perseguir o meu ideal.
112
Caminhadas de universitários de origem popular
Tudo correu bem. Quando meu bebê fez quatro anos, pensei, agora já posso
prosseguir, e me dividi entre o trabalho, meu filho e o pré-vestibular comunitário PVNC
(Pré-Vestibular par Negros e Carentes), na Posse, onde passei por um processo de seleção
e, mais uma vez, consegui.
Agora, tendo passado algum tempo, minha cabeça mudou, o curso que eu pensava
fazer já não fazia mais sentido para mim. No ano de 2003, quando iniciei o pré da Posse,
resolvi só estudar para fazer uma revisão das matérias, sem me preocupar em prestar o
vestibular, pois estava muito confusa a respeito do curso que iria escolher. Lá conheci
muitas pessoas e professores que me ajudaram muito nessa decisão, esses momentos que
passei no pré foram muito importantes, senti que realmente fazia parte de alguma coisa e ali
todos se uniam em prol de um ideal. O pré exigia muito dos alunos, eram aulas de 2ª a 6ª
feira, das 18 às 22 horas, sábado, de 7 às 19 horas, e domingo, das 7 às 12 horas, as aulas eram
exaustivas, mas necessárias. Acabei mudando de idéia e, por empolgação, me inscrevi para
alguns vestibulares, movida pela curiosidade de saber como era fazer um prova de vestibular,
sensação que nunca tinha experimentado.
Mas foi só no ano de 2004, mesmo passando por vários problemas e contando com o
apoio dos professores – Karina (História Geral), Marcos (Redação), Leandro (Geografia), o
coordenador Vagner, Cristiane (Química), minha amiga Lívia e muitos outros, que consegui
ser aprovada em duas universidades federais, o que me deixou muito feliz. Optei em me
matricular no curso de Museologia da UNIRIO, com o qual me identifiquei muito com as
disciplinas oferecidas.
Hoje, curso o 4º período, extremamente satisfeita com a escolha que fiz em minha vida
e com três motivos a mais para prosseguir, um deles é o meu filho Leonardo, que hoje tem
nove anos e se espelha muito em mim. Espero deixar um bom exemplo de vida para ele e
que um dia ele possa se orgulhar da mãe que tem e que ele possa sempre contar comigo. O
segundo motivo é recuperar a memória de minha mãe, desenvolvendo uma pesquisa que
valorize as origens e os costumes de imigrantes como ela e meu que ajudaram a construir
esse país, mas que fazem parte de uma minoria discriminada e marginalizada. E o terceiro e
último é dar um retorno para a minha comunidade, que eu possa estar ajudando de alguma
forma, acredito que todo universitário tem uma obrigação social, não basta se formar, colocar
o diploma embaixo do braço e tchau! Temos que dar um retorno, sim, desenvolvendo
trabalhos sociais que possa ajudar e informar, pois são projetos sociais que vão diminuir o
índice de violência no nosso país.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
113
Minha trajetória de vida
Marília Amaral Pepicon *
Tentar e falhar é, pelo menos, aprender.
Não chegar a tentar é sofrer a inestimável
perda do que poderia ter sido.
Geraldo Eustáquio
Um resumo da minha trajetória de vida
Desde os 10 anos, sempre tive um sonho: fazer Medicina em uma universidade pública.
Ficava encantada quando ia a um consultório médico, sempre imaginava como seria o meu
consultório, queria ser ginecologista e obstetra. Fiz vários planejamentos para meu futuro,
mas alguns tiveram que sofrer modificações ao longo da minha trajetória de vida sendo
adequados à minha realidade.
Meus pais, apesar de todas as dificuldades encontradas pelo caminho, sempre investiram
na educação de seus filhos (meu irmão e eu). Afirmam que essa é a melhor herança que
podem deixar sem a preocupação de um dia alguém tomá-la.
Sempre estudei em escola particular, pensávamos que o ensino teria uma qualidade melhor
e que seria uma boa escolha para a preparação do ingresso à universidade. No entanto, a escola
acabou oferecendo muitos gastos e o ensino não preparava tão bem assim como se pensava,
deixando muito a desejar. Na instituição em que cursei o Ensino Médio, havia a possibilidade
de realizá-lo juntamente com um curso profissionalizante. Optei pelo curso técnico de
Enfermagem, queria conhecer melhor a área de saúde e ver se era realmente o caminho profissional
a ser seguido. Tive a oportunidade de estagiar em vários hospitais e obter a confirmação de que
iria prestar vestibular para Medicina, como sempre havia planejado.
Após terminar o Ensino Médio, prestei dois anos de vestibular para o curso de Medicina,
porém foram tentativas sem sucesso. Na terceira tentativa, resolvi optar pelo curso de Enfermagem,
na UERJ e UNIRIO, e Medicina, na UFF e UFRJ. Queria muito ingressar na universidade pública,
não importando se a aprovação seria para a minha primeira opção. Estaria muito feliz com a
aprovação em Enfermagem, uma vez que já conhecia um pouco da profissão. Havia um sentimento
de insegurança muito grande dentro de mim, não queria olhar os resultados e foi através de uma
amiga que fiquei sabendo que havia sido aprovada em nono lugar para UERJ e, depois, fiquei
muito feliz por conquistar o primeiro lugar no vestibular da UNIRIO, onde atualmente estudo.
*
Graduanda em Medicina pela UNIRIO.
114
Caminhadas de universitários de origem popular
Para recompensar os esforços dos meus pais, dou o melhor de mim, sendo dedicada
com os estudos e tendo o reconhecimento de boa aluna.
Você leitor(a) deve estar fazendo o seguinte comentário: “uma médica frustrada que
rouba a cena de uma enfermeira bem-sucedida! Está cursando Enfermagem por causa do
fracasso na Medicina!” Essa segunda frase está correta, sim, e isso não é ruim, pois o curso
de Enfermagem me conquistou e conquista cada vez mais mostrando novos olhares e
caminhos sobre a área da saúde. Admiro muito a profissão, mas não me sinto totalmente
realizada, pois não foi o que havia planejado, desde a infância, para mim. Pretendo me
formar e exercer com muito carinho e dedicação a profissão de enfermeira, uma profissão
tão digna e bonita, mas que infelizmente não é muito bem vista por alguns. No entanto,
assim que tiver oportunidade, farei o curso que tanto sonho, pois acredito que nunca é tarde
para realizar minha grande conquista. Considero-me uma pessoa determinada que luta para
alcançar seus objetivos e assim pretendo continuar nessa caminhada.
Na universidade, conheci uma pessoa muito especial, meu namorado Lellis Hummenigg
Cremonez Taveira, um grande amigo e companheiro, com quem pretendo construir um
futuro. Foi através dele que fiquei sabendo sobre o Programa Conexões de Saberes, uma
oportunidade que só tem a influenciar de maneira positiva no meu percurso acadêmico,
pois permitiu investir melhor na minha formação ao possibilitar a aquisição de material
didático, realização de cursos extracurriculares, um auxílio nas despesas com passagem e
alimentação (uma grande ajuda de custo) e, principalmente, adquirir uma bagagem
intelectual que contribui na minha formação de cidadã.
A respeito da minha família, meu pai vem de uma família humilde que sempre teve
muitas dificuldades, mas também procurava investir em educação, na medida do possível.
Todos os quatro filhos finalizaram o Ensino Médio e depois cada um optou por fazer um
curso técnico. Atualmente, papai tem a formação de projetista e trabalha junto ao
desenvolvimento de plantas de prédios, casas, entre outros projetos. Minha mãe também
vem de uma família de origem humilde, morava no Espírito Santo, numa cidade do interior
chamada Apiacá. Depois, as condições foram melhorando e, na sua adolescência, mudou-se
com a família para Volta Redonda. Começou a trabalhar com 13 anos fazendo roupas de
crochê para vender, aos 18 foi trabalhar como vendedora em uma loja de material eletrônico
e, por último, em um escritório de administração. Com seus esforços, começou a fazer uma
faculdade particular onde cursava Biologia, mas os gastos ficaram pesados e não deu
prosseguimento aos estudos.
Tenho muito orgulho da minha família e gostaria de retribuir aos meus pais tudo o que
fizeram e fazem para me ajudar a vencer. Sei que, quando conseguir alcançar os meus
objetivos, pessoais e profissionais, terão certeza da eficiência de seus esforços.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
115
Entre quedas, lutas e desafios:
o doce sabor da vitória!
Melanie Pimenta *
Eu vou dizer porque o mundo é assim,
poderia ser melhor, mas ele é tão ruim.
Tempos difíceis, está difícil viver,
procuramos um motivo vivo, mas ninguém
sabe dizer. Milhões de pessoas boas morrem
de fome, o culpado, o condenado disto é o
próprio homem.
Racionais MC’ S – Edy Rock; KLJ
Posso dizer que tive uma infância feliz, porém marcada por algumas situações difíceis,
que permearam toda a minha trajetória educacional e a minha árdua, mas vitoriosa, caminhada
até a universidade pública.
Quando tinha apenas três anos de idade, meus pais se divorciaram. Meu pai resolvera
constituir outra família. Meu pai começara um negócio. Tinha uma fábrica de bolsas e
mochilas jeans que nos dava certa comodidade financeira e foi erguida com muito esforço
de meus pais. Vivíamos em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, cidade onde fui
criada, apesar de ter nascido em Vitória, no Espírito Santo, onde meu pai (cearense) e
minha mãe (mineira de Timóteo) viveram por, aproximadamente, um ano, até pouco
tempo após o meu nascimento.
Minha mãe e eu nos mudamos para um apartamento onde morávamos apenas nós
duas. Ela trabalhava para nos manter, visto que meu pai não colaborava financeiramente e
tia Leca – personagem fundamental em toda minha caminhada – ajudava a pagar o aluguel.
Em minha infância, estudei em duas escolas pequenas de educação infantil, das quais
não me recordo bem, uma se chamava Meus Primeiros Passos, mas lembro que estudara em
uma escola de artes que gostava muito.
Aos quatro anos de idade, mudei de escola, enfim, para um colégio maior, particular e
tradicional de Belo Horizonte. Como meu pai se recusava a nos ajudar financeiramente teve
que aceitar judicialmente custear meus estudos e tudo o que dizia respeito a ele como
transporte escolar, material didático, lanche, uniforme etc. Bem, diante dessas circunstâncias,
mamãe fez questão de exigir, então, uma educação de qualidade.
*
Graduanda em Pedagogia pela UNIRIO.
116
Caminhadas de universitários de origem popular
O ensino era forte e a escola era muito boa, mas, desde o início, sentia-me um tanto
deslocada. Não fazia parte daquele mundo onde as pessoas não tinham problemas financeiros.
Sofri muito preconceito (talvez discriminação) por ser “diferente” das demais crianças. Por
possuir vitiligo, doença que apresenta “manchas” que, na realidade, são a despigmentação
de determinadas regiões da pele, meus colegas zombavam muito de mim causando certo
incômodo. A doença manifestou-se ainda em minha infância, fora reflexo da traumática
separação dos meus pais.
Nesse momento, aos cinco anos de idade, minha mãe já estava casada com Amaro e minha
irmã Thaís havia nascido logo após nos mudarmos para um pequeno apartamento na Cidade
Nova, onde vivíamos modestamente. Enquanto mamãe e Amaro trabalhavam, Thaís ficava com
a empregada ou com a avó paterna e eu ia para a escola, onde me “refugiava” nos estudos.
Nos finais de semana, costumava passear com a tia Leca, minha tia e madrinha que
muito estimo, e íamos ao teatro, cinema, feiras, shoppings e eu fazia a tão esperada
“programação cultural” que alegrava e divertia minha vida. Tia Leca era solteira, não tinha
filhos e ainda morava com minha avó materna e eu era a sobrinha “predileta”, como diziam
na família. Às vezes, passava os finais de semana com meu pai e sua então esposa e viajava
com eles nas férias. Vale lembrar que o poder aquisitivo de meu pai naquela época era muito
superior ao de minha mãe e sua condição era bem mais confortável.
Cabe ressaltar, também, que em minhas brincadeiras, quando criança, eu sempre brincava de
“escolinha”, representando a professora, o que, como veremos adiante, reflete em minha vida atual.
A escola
Sempre fui uma boa aluna, estudiosa, meio C.D.F.. Gostava de ler e estudar e sentia
prazer ao fazê-lo. As disciplinas de ciências humanas e sociais sempre me atraíram mais,
enquanto sentia certa repulsa pelas ciências exatas.
Quando tinha seis anos de idade, tia Leca me dera uma coleção de livros no Natal.
Eram seis ou oito livros coloridos que contavam a estória da Rainbow Brite e seus amigos
que tinham as cores do arco-íris. Fiquei maravilhada com a beleza e vivacidade que o livro
apresentava com tantas cores. Eles eram, a partir de então, meu melhor “entretenimento”.
Lia, relia, lia e os relia novamente e o fazia incessantemente. Eram livros “mágicos” e eu me
imaginava naquele mundo perfeito de cores e magia, sem problemas e sofrimento. Um
pequeno, mas importante, detalhe é que eu ainda estava em fase de alfabetização e acabei
me forçando a aprender a ler para poder entender tudo o que havia naqueles livros. Desde
então, tomei gosto pela leitura e passei a ler com freqüência – mesmo porque o colégio
exigia a leitura de oito livros de literatura infanto-juvenil a cada ano – e fazer disso um
hábito.
Alguns problemas de ordem familiar acabaram por influenciar negativamente em
minha formação escolar. Meu pai nunca comprava meu material na época certa e eu chegava
a ficar até dois ou três meses sem. Os colegas zombavam disso, pois, em uma escola particular
desse nível, no primeiro dia de aula estavam todos com o material completo. Muitas vezes,
após incansáveis ligações e pedidos meus e de minha mãe, acabávamos desistindo e tia
Leca intervinha e efetuava a compra do material, solucionando, então, o problema. Esse e
outros fatos como não poder participar de certos passeios oferecidos pela escola por questões
financeiras me causaram certo “trauma”. Sem contar o preconceito sofrido pelo vitiligo,
que persistia.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
117
Minha adolescência
Aos 11 anos, morávamos, eu, mamãe, Amaro, Thaís e meu irmão caçula Mário (nascido
um ano e meio após Thaís, enquanto, paralelamente, nasceu a Fabíola, filha mais nova de
meu pai) em um apartamento no bairro Serra, em Belo Horizonte. Mamãe trabalhava em
dois, três até quatro empregos e Amaro agora era policial civil. Era necessário muito esforço
e muito trabalho para que eles pudessem sustentar três filhos sem a ajuda financeira de meu
pai, que, apesar de custear os estudos, exigia certo sacrifício de minha mãe para a manutenção
na escola. Meu colégio não condizia com a minha realidade social e financeira, que era de
dificuldades e de luta. Nunca nos faltou nada e minha mãe, apesar de passar maior parte do
tempo fora, nos deu uma boa educação, mesmo que à sua maneira.
Nessa época, após tanto sofrimento com aluguel, mudanças, fiador, mamãe decidiu
construir uma casa – mesmo sendo considerada completamente maluca, pois diziam que
levantar uma casa não era tarefa fácil – em um terreno herdado de meu padrasto e que estava
em desuso. Fomos morar com minha avó materna, Vovó Rita, a quem muito estimo e sempre
esteve presente em nossa vida ajudando no que podia (e o faz até hoje) para que pudéssemos
economizar para a construção da “nossa” casa. Ficamos lá por pouco mais de um ano, eu,
minha mãe e meus irmãos maternos, praticamente morando em um quarto onde dormíamos
“apertadinhos”. A vantagem, para mim, era estar perto da tia Leca, que ainda morava nessa
casa com minha avó. O apartamento era próximo à minha escola, podia ir a pé e tia Leca
arcava com o custo de lanches e determinados materiais didáticos. Minha mãe e Amaro
davam início ao lento e conturbado processo de separação.
A casa ficou pronta, se é que posso dizer isso, pois ainda estava por fazer, estava no
reboco, não tinha vidros nas janelas, muro, piso na entrada, além da enorme quantidade de
entulho que ainda existia no local. A casa é no bairro Esplanada, local pouco conhecido na
zona leste de Belo Horizonte. Pouco tempo após a mudança, Amaro e minha mãe se
divorciaram. Meu pai faliu e perdera seu último comércio, um restaurante. Por ser alcoólatra,
acabou perdendo tudo o que tinha por má administração e excessos alcoólicos.
Tive que sair do colégio às pressas e sofri muito porque agora já me sentia parte
daquele lugar, pois estudara lá por muitos anos.
Eu estava com 13 anos e tia Leca pagou uma escola particular bem mais simples e
modesta que a anterior para que eu pudesse concluir o Ensino Fundamental sem perder o
ano. A escola se chama Frederico Ozanan e não tinha um ensino muito bom como eu estava
habituada. Toda a matéria da 8ª série eu já tinha visto na 7ª. Neste ano, tia Leca arcou com
todas as despesas do colégio.
No ano seguinte, prestei concurso para o CEFET de Belo Horizonte, buscando um Ensino
Médio de qualidade e que, ao mesmo tempo, fosse profissionalizante, mas não fui aprovada. De
última hora, pois esperava entrar para o CEFET, consegui uma vaga em uma escola estadual de
Ensino Médio em Santa Tereza, bairro próximo à minha casa. O ensino dessa escola era precário
e não me lembro do nome nem de muita coisa relativo a ela. Mal tínhamos professores, aula, bem
como papel para fazer prova ou trabalhos. Não lembro de ter aprendido muita coisa, apenas que
eu jogava vôlei a maior parte do tempo, devido à falta de professores.
Nessa mesma época, meu padrasto faleceu após sofrer um acidente de moto. Minha
mãe e meus irmãos, que eram muito novos na época, ficaram muito tristes. Com isso, a
situação econômica ficou mais difícil. Apenas meus irmãos recebiam pensão e a quantia era
insuficiente para cobrir as despesas da casa. Minha mãe havia perdido há pouco tempo um
118
Caminhadas de universitários de origem popular
bom emprego no Estado e começou a fazer da venda de roupas e acessórios femininos – que
era uma atividade extra – o seu trabalho efetivo. Eu cuidava da casa e dos meus irmãos para
que ela pudesse trabalhar. Levava e buscava-os na escola e era responsável pelos afazeres
domésticos. À tarde, tínhamos um horário de estudo e eu ensinava-lhes o dever, trabalhos,
entre outros. Minha mãe não tinha tempo para se preocupar com isso e, como eu tinha esse
hábito, tentei transmiti-lo aos meus irmãos.
No 2° ano do Ensino Médio, fui para outra escola estadual, Maestro Villa-Lobos, situada
na zona sul de Belo Horizonte, bem melhor e com o ensino mais forte. Eu e mais duas amigas
conseguimos as vagas através de uma professora de Química que lecionava nas duas escolas
e nos indicou como sobrinhas dela, já que o ingresso nesse colégio não era tarefa fácil.
O vestibular
No 3° ano, ainda estudando no “Lobão”, como chamávamos carinhosamente a
escola, tia Leca pagou um cursinho pré-vestibular extensivo (durante todo o ano) para
que eu pudesse me preparar para o vestibular. Ela queria que eu cursasse o Ensino
Superior, o que ela não havia feito (como todos da minha família) por ter feito um curso
técnico que a possibilitou ter uma melhor remuneração no trabalho, mas não era o que
gostaria de ter feito.
Estudava de manhã na escola e ia a pé até a casa de minha avó no centro da cidade
onde almoçava para ir ao pré-vestibular à tarde. À noite, não dispunha de tempo para
estudar, pois tinha que dar conta das tarefas domésticas, que eram divididas entre minha
mãe e eu e, mesmo assim, ficávamos sobrecarregadas.
Meu sonho era poder ingressar em uma universidade federal. Meu pai possui apenas a
5ª série do Ensino Fundamental e minha mãe conseguiu concluir o Ensino Médio pagando
seus estudos, ou seja, eu seria a primeira da família toda a ingressar um uma IFES, apenas um
primo havia se formado e em uma faculdade particular. Devido à deficiência do meu Ensino
Médio, não fui aprovada em nenhum dos vestibulares prestados para Ciências Biológicas e
Nutrição na UFMG1, UFOP2, UFV3.
No meio do ano seguinte, tia Leca e seu esposo Paulo conversaram com minha mãe
para que eu pudesse morar com eles em Lagoa Santa, a fim de me dedicar exclusivamente
aos estudos e à preparação para os vestibulares. Eles não admitiam que meu futuro fosse
ser uma dona de casa (muito comum nas cidades mineiras) ou que tivesse que interromper
os estudos para trabalhar e ajudar nas despesas da casa, como minha mãe almejava,
alegando que “pobre não estuda, trabalha. Universidade é coisa para rico e que, apesar
de eu ter estudado em um colégio deste tipo, essa não era a minha realidade”. Mesmo
com muitas controvérsias e desavenças, minha mãe aceitou. Paulo e tia Leca foram
peças-chave para meu sucesso. Ele é um homem formado no Ensino Superior e muito
sábio. Aconselhava-me sobre a forma de estudar, falava sobre determinação e relatava
suas incríveis estórias de universidade e como professor universitário na UFOP. Eles
ficaram responsáveis por toda a minha despesa nesse período: cursinho, aulas
particulares, alimentação, transporte etc.
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Universidade Federal de Minas Gerais
Universidade Federal de Ouro Preto
Universidade Federal de Viçosa
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
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Eu acordava às 7 horas da manhã com meu Tio Paulo dizendo:
– Acoooooooooooooooorda, Melaniiiiiiiiiiiiiiiiie!!! Seu concorrente está estudando
desde as 5 horas da manhã! – e assim brincava comigo.
Eu corria ou andava de bicicleta em volta da lagoa da cidade e iniciava os estudos às 8
horas e só interrompia para as refeições. Às 17 horas, eu ia para o pré-vestibular em Pedro
Leopoldo, cidadezinha vizinha. Estudava muito, mas, no tão esperado dia do vestibular, tive
uma desavença com minha mãe e fui em prantos fazer a prova. Devido a esse fato, não tive
condições psicológicas de realizar a prova e acabei não sendo classificada mais uma vez.
Havia prestado vestibular para uma faculdade particular que, por sinal, era o
colégio em que estudara por muitos anos. Fui aprovada e chorei por não ter condições
de pagar a mensalidade. Eu queria estudar e não podia. Tia Leca não poderia bancar
mais um ano de curso.
A faculdade
Consegui um emprego como pesquisadora de mercado e, assim, pude cursar um
ano de Ciências Biológicas – Licenciatura, no Centro Universitário Metodista Izabela
Hendrix. Tia Leca e Paulo contribuíam com 1/3 da mensalidade. Trabalhava muito
durante o dia e fazia o curso à noite. Morava com meu pai nessa época, devido a
alguns problemas com minha mãe e meus irmãos. Estava complicado morar com minha
mãe sem colaborar com as despesas da casa e não prover de tempo para, ao menos,
ajudar nas tarefas domésticas. Minha família, com certa razão, queixava-se
dessa situação e, então, fui morar com meu pai (agora divorciado) em um apartamento
simples. Ele estava dando início a um novo negócio e não ganhava muito,
mas o suficiente para nos manter modestamente. Foi uma experiência importante,
meu contato com meu pai na infância se restringia aos finais de semana e algumas
viagens de férias.
Meu pai, com seus altos e baixos, começou a beber muito e faliu novamente. Fui morar
com uma amiga, Marcela, que, coincidentemente, havia estudado comigo no Ensino Médio
e agora éramos da mesma classe da faculdade. Nessa época, estreitamos mais as relações de
amizade, que perduram até os dias de hoje, mesmo com a distância. Sua mãe fazia o doutorado
e, ao viajar para a Austrália, pediu que eu ficasse em sua casa com Marcela e sua irmã Paula,
para ajudar no funcionamento estrutural e administrativo do lar e em sua pesquisa que seria
realizada também no Brasil.
Após concluir um ano de curso, tive que trancar a faculdade, a despesa era muito alta
e, mesmo trabalhando bastante, estava ficando inviável dar continuidade aos estudos. De
qualquer forma, não estava me interessando tanto pelo curso, gostava das matérias da
Licenciatura. Voltei a morar com minha mãe por, aproximadamente, quatro meses.
Movimento rap e eletrônico
Aos 14 anos, meu irmão mais velho, Serginho, filho do primeiro casamento de meu
pai, o qual somos muito próximos e companheiros, começou a promover festas de “Rap e
Hip Hop”. Era um movimento novo e pequeno onde tive contato desde skatistas moradores
da zona sul a moradores de comunidades populares, em sua maioria negros. Comecei a fazer
parte desse movimento que despertou em mim maior consciência sobre a situação social e
as diferenças econômicas e raciais em que vivemos.
120
Caminhadas de universitários de origem popular
Paralelamente, tive contato e imediata paixão pelo novo mundo da música
eletrônica. Me infiltrei nesse meio de atores da sociedade intelectual pensante ou elite.
Apesar de não condizer, mais uma vez, com o nível socioeconômico do grupo, decidi
ser DJ (Disc-Jóquei).
Um grande desafio, por ser mulher e de origem popular. Não dispunha de dinheiro para
a compra de equipamentos de discotecagem e CDs. Comecei a tocar com a ajuda de minha
amiga Marcela, que me ajudava com as pesquisas musicais na Internet (em sua casa). À
medida que comecei a receber pela atividade, pude investir em CDs para o meu repertório
de Lounge Music, estilo ainda pouco difundido no Brasil.
Nessa época, viajei muito, financiada pelos promotores de eventos que me contratavam para
apresentação de discotecagem, e os cachês eram suficientes para minhas despesas pessoais.
Apresentei-me em festas de todo o Brasil e trabalhava ao mesmo tempo em que me divertia. Nesse
universo, tive contato com pessoas que tinham acesso à determinados bens culturais, ainda restrita
à minoria, como arte, teatro, cinema, música e literatura, que me garantiram o capital cultural.
À medida que me tornava conhecida e me afirmava na profissão de DJ, fui ganhando
respeito e visibilidade pelos colegas de trabalho e promotores de eventos. Atribuo à minha
situação financeira, que me impede de investir mais nessa área, o fator determinante para a
descontinuidade e certa estabilização da atividade. Gostaria de investir mais nessa profissão,
mas acabo me vendo impossibilitada de continuar por falta de recursos. Como já dizia a
minha mãe: “Isso é coisa de rico, não é pra você”, apesar de hoje em dia ela se orgulhar do
meu pouco, mas existente, sucesso.
Cidade maravilhosa
Devido às minhas viagens e ao intercâmbio com as pessoas da cena de música eletrônica
no Brasil, comecei a namorar um garoto do Rio de Janeiro. Viajava sempre para cá e ele para
Belo Horizonte. Em uma dessas minhas viagens ao Rio, acabei ficando por aqui. Não
conseguia emprego fixo em Belo Horizonte e minhas expectativas quanto ao ingresso em
uma universidade federal eram mínimas. Julguei ter uma possibilidade de crescimento
profissional e financeiro aqui.
Morei em repúblicas, dividi a casa com amigos, trabalhei em empregos que me
remuneravam vergonhosamente e me exploravam; discotecava, fazia free-lance e ia levando,
mesmo que aos trancos e barrancos, minha humilde, mas alegre vida no Rio de Janeiro.
Passei dificuldades financeiras, mas não dizia à minha família. Acabava dando um jeito em
tudo e sempre me virava.
Certo dia, decidi prestar vestibular novamente. Meu então namorado Bruno me
encorajou, dizendo que eu tinha plena capacidade de ser aprovada, mesmo eu não
concordando com isso. Foi então que surgiu a dúvida que já existia há dois anos –
período no qual eu fiquei sem estudar – de fazer Pedagogia ou Comunicação. Optei pela
primeira, pois não queria ser jornalista ou publicitária (apesar de ter uma forte queda pela
Comunicação Social), queria ser uma educadora. Minha família já dizia que eu tinha
vocação e comprovei a “tese” ao me interessar pelas disciplinas da Licenciatura na primeira
faculdade em Belo Horizonte.
Fiz somente o vestibular da UNIRIO, pois já havia perdido as inscrições das outras
IFES. Considerava essa prova como um teste para saber se havia necessidade de cursar um
pré-vestibular (o que seria impossível por questões financeiras) ou estudar em casa.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
121
No fim das contas, acabei sendo aprovada. Fiz a prova com tanta tranqüilidade por
não ter mais aquela “obrigação” de passar que me recordei de coisas que não imaginava
que lembrava. E entrei, finalmente, para a universidade federal, aos 22 anos, entre quedas,
lutas e desafios que me dão o sabor da vitória de ingressar na tão sonhada Instituição
Federal de Ensino Superior.
Mesmo estando sozinha no Rio de Janeiro, sem ajuda dos meus pais (minha
família ainda está em Minas Gerais), mas contando com a ajuda de amigos e familiares,
ocupo hoje um lugar que poucos estudantes de origem popular alcançam e posso
dizer que, após essa enorme batalha, consigo, atualmente, fazer o curso que amo e da
forma como eu queria.
Todavia, a estória não termina por aí. Quando fui me matricular no curso de
Pedagogia, me encontrava desempregada devido a uma tendinite que me impossibilitou
de continuar trabalhando como operadora de telemarketing. Então, veio o desespero de
ser aprovada na universidade e não poder cursá-la por falta de dinheiro e dificuldades de
conseguir emprego.
Fui morar de favor com três amigos, em Botafogo, até conseguir um trabalho. Tia
Leca, tio Cláudio, tia Deinha e vovó Rita se juntaram pra enviar algum dinheiro durante
dois meses, enquanto eu estava desempregada. Foi um período muito difícil, eu chorava em
sala de aula diante dessa situação desesperadora em que me encontrava mais uma vez, eu
queria estudar e talvez tivesse que interromper novamente os estudos. A possibilidade de
ter de deixar a universidade me assombrava.
Alguns professores incentivavam e me davam as cópias dos textos para que eu pudesse
estudar para as provas. Mesmo estando em depressão clinicamente diagnosticada, ainda
conseguia me concentrar nos estudos e a cada dia ficava mais maravilhada com tudo que ia
aprendendo na Pedagogia. Definitivamente era o que eu queria. Havia encontrado a minha
vocação e me sentia realizada. Consegui um emprego em uma escola de informática, fui a
selecionada entre 40 pessoas. Até o semestre passado, esse emprego me possibilitou
permanecer na universidade e pagar todas as minhas despesas, sozinha, inclusive a de
aluguel. Vovó Rita e tia Leca continuaram enviando uma pequena quantia mensal para
ajudar no pagamento de transporte e textos da universidade.
Com a entrada no Conexões, optei por deixar o trabalho e ter uma renda menor, mas
dedicando-me àquilo que tenho prazer em fazer, que é estudar e lutar por uma sociedade
igualitária. Ainda não consigo me manter exclusivamente com a bolsa do Programa, mas
isso não é um problema desde que eu tenha força e saúde como tive até hoje para trabalhar
e unir rendas de estágios, free-lance, etc., para ir me mantendo no curso.
Com o pouco tempo que me resta para estudar, procuro dedicar-me para que eu consiga,
ainda, alcançar o Mestrado, Doutorado e tudo o mais que for possível.
Tenho o sonho de ver meus irmãos mais novos em uma universidade pública,
mas sei que não será fácil. Algumas situações, ao menos, foram modificadas. Meu pai
parou de beber há dois anos e, com apenas a 5ª série, mas muita criatividade e
empreendedorismo, reergueu-se e consegue viver apesar de não poder me auxiliar
financeiramente. Meu irmão mais velho não visa terminar o Ensino Médio, muito
menos o Ensino Superior, mas com muito trabalho conseguiu comprar seu próprio
táxi. E minha mãe hoje diz: “Se Deus quiser, eu verei todos os meus filhos formados
no Ensino Superior”.
122
Caminhadas de universitários de origem popular
Conexões de Saberes e Escola Aberta
Quando conheci, através de meu então professor e atual coordenador, o Programa
Conexões de Saberes, vi ali uma possibilidade de me dedicar exclusivamente aos estudos e
à pesquisa (o trabalho na escola de informática me tomava todo o dia e eu não dispunha de
muito tempo para estudar e participar de pesquisas e seminários, o horário de estudo se dava
no metrô, madrugadas e domingos). Além de poder ajudar, através da parceria do Programa
Escola Aberta, outras pessoas que, assim como eu, almejam ocupar o espaço das Instituições
Federais de Ensino Superior – ainda excludentes – e, que na maioria das vezes, não têm
condições ou, até mesmo, força de vontade para lutar para isso.
Agora como bolsista do Conexões de Saberes, podemos nos afirmar como um grupo
de Estudantes de Origem Popular que ocupam e dividem os mesmos espaços da universidade
que outrora eram destinados somente à minoria dos estudantes, em sua maior parte, burgueses.
Através da parceira do Conexões de Saberes com o Programa Escola Aberta, nós
bolsistas levamos, a crianças e jovens – que, assim como eu e muitos outros, vivem diante
da deplorável situação econômica existente em nosso país que tem suas bases na exploração
que se perpetua da colonização até os dia de hoje –, a possibilidade do ingresso em uma
universidade pública.
Nossa atuação em algumas escolas municipais com crianças de comunidades populares
do Rio de Janeiro, mesmo que minimamente, é fundamental para a conscientização desses
indivíduos sobre a sociedade injusta em que vivemos e as suas potencialidades para reverter
tal situação.
Somente nós podemos mudar essa triste realidade e, por meio da educação, mesmo
não sendo a única ferramenta, podemos chegar, ainda, ao “país ideal”. Em minha concepção,
estamos muito distantes dessa aspiração a que todos tenham os mesmos direitos e usufruam
os meios de ingressar em uma universidade pública, bem como se manter nela, e que isso
não seja a exceção. Para tal, não deve existir tanta luta e dificuldade, TODOS devem ocupar
o seu espaço na universidade de forma justa e, nos afirmando como um grupo minoritário,
mas potente e resistente, podemos, quem sabe, realizar esse sonho.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
123
Minha vida
Milena Martins Medina *
Família
Bem, antes de começar esse memorial, gostaria primeiro de agradecer a Deus,
por todas as graças que recebi, e agradecer a meus pais Francisca e Pimentel,
que deixaram de construir uma vida confortável, pois sempre prezaram pelos meus
estudos e os da minha irmã Louise. Hoje, o que sou devo a eles, à minha irmã, a meu
namorado Thiago Elias Gomes, que esteve presente nos momentos mais importantes
e difíceis da minha vida, sempre me apoiando e me fazendo muito feliz. Aos meus
amigos, Davi, Cris, Jéssica, Renata Dantas, Leidy e outros, que, muitas vezes, foram a
base da minha vida.
Minha família passou por momentos difíceis e o mais marcante foi o roubo do carro
e dos instrumentos de trabalho do meu pai, na véspera em que eu ia fazer a prova discursiva
da UNIRIO. Foi horrível, meu pai ligou para casa, nervoso, e nos deu a notícia de que fora
assaltado, ficamos toda a madrugada de sábado para domingo acordados esperando meu
pai chegar, pois ele tinha ido à delegacia fazer o Boletim de Ocorrência.
Minha família tinha ficado muito abalada, pois o carro não estava no seguro e ainda
faltavam prestações a pagar, sem contar com as ferramentas que meu pai usava no trabalho.
Eu também estava abalada e tinha até decidido não fazer a prova da UNIRIO, mas acabei
fazendo a prova sem ter dormido por conta do ocorrido. Fiz a prova muito bem, sem encontrar
muitas dificuldades e, no final, disse para minha mãe: “Mãe, fica calma que uma vaga é
minha”. Naquele domingo, Deus me carregou no colo.
Amigos
Nessa parte do memorial, gostaria de lembrar dos meus amigos da infância, como a
Leidy, a Jéssica, minha irmã; da adolescência, como a Leidy, a Jéssica, minha irmã, o
Davi, a Cris, a Renata Dantas, o Dervelin; e meus amigos da juventude, como meu noivo
Thiago, minha irmã, a Leidy, a Cris, o Davi, a Renata Dantas, a Jéssica, a Angélica, a Gabi,
a Louíse e a Flora.
Queria ressaltar que eu sou feliz e forte, pois tenho amigos como vocês, que foram
essenciais e, como dizem, “quem tem amigo, tem um tesouro”. Quero que lembrem que um
amigo de verdade permanece por toda a vida e, sem dúvida, vocês fazem parte da minha
*
Graduanda em História pela UNIRIO.
124
Caminhadas de universitários de origem popular
vida. Meus amigos, vocês vão estar sempre guardados no meu coração e cada um de vocês
é responsável pelo sucesso da minha vida. Não agradeço só pelo que sou agora, agradeço
pela pessoa que vocês ajudaram a crescer, do fundo do meu coração, obrigada.
Infância
Eu era uma criança bem levada, brincalhona e muito inteligente, o que não mudou
muito. Meus pais queriam que eu me relacionasse com outras crianças e decidiram me matricular
na creche, mas, como eu era uma peste, na hora em que eles iam me deixar lá eu armava um
escândalo, arrancava os cabelos, chorava o dia todo e, quando eles chegavam, eu estava toda
inchada de tanto chorar. Meus pais, com pena, me tiraram da creche e tentaram o método
“babá”. Eu deixava todas elas loucas, ninguém me agüentava, mas eu queria mesmo era
brincar, então, ia à casa da frente perturbar o seu Raimundo ou gritar por Juliana ou Thiago.
Acabamos nos mudando de casa e fomos morar numa avenida, onde passei os momentos
mais divertidos da minha infância, com as amigas lá conquistadas. Brincávamos demais e,
como os moradores da avenida eram muito animados, festejávamos sempre as festas juninas
e outras no decorrer do ano. Aos poucos, as pessoas foram se mudando de lá e nós também
fomos. Dessa época, perdura minha amizade com a Leidy, que é como se fosse uma irmã.
Logo depois entrei no maternal no Colégio São Francisco de Assis e lá fui me
desenvolvendo como aluna. Enfim, entrei, com cinco anos de idade, no Colégio Santo
Antônio, uma escola que amo demais e que sempre estará guardada em meu coração. Lá
passei longos anos da minha vida, criei amizades, conheci religiões, aprendi a respeitar as
diversidades que a vida nos impõe. É uma escola religiosa de irmãs franciscanas, dentre elas
gostaria de destacar a Irmã Judith, que sempre esteve a meu lado, assim como acompanhava
todos os outros alunos do colégio. Não éramos apenas alunos que pagavam a escola, éramos
conhecidos por nossos nomes.
Gostaria de lembrar do seu Eliseu, que era responsável pelos jardins do colégio e
ficava cuidando de mim enquanto minha mãe demorava a me buscar. A Tânia, que trabalhava
na secretaria e me aturava quando sentia cólica ou me machucava na educação física.
Lembro-me que eu era muito feliz nessa escola, vivia comendo o cachorro quente de
sexta-feira, participava das brincadeiras na hora do recreio, como pular corda, pique pega,
adorava as aulas de GRD, dança e handball, com a professora Rosane.
Adolescência
Minha adolescência foi marcada por várias mudanças, muitas delas complicadas de
serem aceitas por mim. A mudança de colégio no Ensino Médio é um ponto-chave. Tive
dificuldades de me relacionar com os outros e, por isso, focalizei nos meus estudos. Estudava
em horário integral, por ter decidido fazer técnico de informática e, concomitantemente,
fazia curso de inglês. Aos poucos, os amigos foram vindo, dentre eles o Davi, a Renata
Dantas, a Cristiane, que permanecem na minha vida e foram essenciais na minha caminhada
dentro daquele colégio que eu não agüentava.
Aquela escola, que, para mim, parecia um tormento, foi se amenizando com a presença
dos meus amigos e, pensando bem, até que passamos momentos divertidos. Quem não vai
lembrar da hora do almoço na Matriz? E do medo do escuro quando a gente saía do técnico
à noite? Das aulas super engraçadas do Nuno no laboratório de química? Do “Ave César” do
professor Maurício? Do nosso vovô Gilberto? Até que dá saudade.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
125
Algo que nunca vou esquecer foi o “protesto” que todos os alunos do colégio
fizeram porque as madres demitiram seu Antônio, o porteiro. Tudo bem que as madres não
voltaram atrás, mas nós, alunos, nos unimos e, tenho certeza, que isso tirou o sono da Irmã
Helena, a diretora.
O curso de inglês foi uma etapa importante da minha vida. Conheci pessoas
divertidas, professores competentes, outros nem tanto, mas, enfim, eu gostava muito de
passar minhas manhãs de sábado lá. Com o tempo, as amizades foram criadas dentro do
curso, já que todo período a turma era a mesma. A hora do intervalo era super legal,
conversávamos sobre nossos estudos, as perspectivas para o futuro, perturbávamos a
Carla, que era a moça da secretaria. Só que, quando eu estava no último período do
curso, quase tive que parar, pois o curso técnico de informática seria aos sábados,
exatamente no mesmo horário do curso de inglês. Ainda bem que o curso de inglês tinha
o estudo individualizado e, assim, consegui concluir o curso. Depois tivemos a formatura
e percebemos que menos da metade da turma conseguiu se formar. Uma parte chata foi
que uma menina muito querida do grupo tinha ficado com anorexia e estava muito mal.
Eu queria que ela soubesse que todo o grupo rezou pela saúde dela e espero que hoje ela
já tenha se curado.
Houve outros momentos marcantes da minha adolescência, como, por exemplo, os
meus quinze anos, os quinze anos da minha irmã, minha operação de adenóide…
Mais uma vez, valem os agradecimentos aos professores maravilhosos, como Roberto,
Maurício, Jorge, Gilberto, Nuno, Andréa. Eles não foram apenas professores que nos passam
a matéria e se vão, foram verdadeiros educadores, que me ensinaram para a vida, me mostraram
que o que se aprende não termina na sala da aula, vai muito além e, desde cedo, mostraram
a realidade de uma vida fora do colégio. Obrigada.
Vestibular
A época do vestibular é uma época complicada pra qualquer pessoa. Como assim
decidir a carreira da minha vida com apenas 17 anos? Mas, enfim, independentemente da
profissão por mim escolhida, eu tinha por dever estudar, pois queria passar para uma
universidade pública. Essa idéia de fazer faculdade pública surgiu ao mesmo tempo em que
percebi que já não era justo meus pais pagarem por mais tempo meus estudos, e queria dar
o orgulho a eles de passar numa faculdade pública.
Enquanto cursava o terceiro ano, procurava estudar o máximo possível, participava
de módulos que eram feitos aos sábados no meu próprio colégio, já que não preparava
para o vestibular. Confesso que me dediquei, não tanto quanto deveria, mas me dediquei.
O mais complicado era que eu queria passar em Direito, que é uma carreira muito disputada.
Não obtive êxito.
Aí, entra minha fase de desânimo, vergonha perante meus pais por ter falhado. Mas
não terminou assim. Meus pais sempre me apoiaram e me fizeram acreditar no meu potencial
e me convenceram a tentar novamente.
No ano seguinte, me matriculei em um cursinho pré-vestibular, tentei um bolsão e
consegui um bom desconto, o que garantiria a continuidade dos meus estudos, pois nessa
mesma época o colégio da minha irmã tinha ficado mais caro, o que dificultava a situação
econômica de casa. Como percebi que eu precisaria de mais aulas de Física e Matemática,
entrei também na turma da AFA/EEAR.
126
Caminhadas de universitários de origem popular
Nesse cursinho, cresci muito, encontrei amigos que tinham a mesma finalidade que
eu, dar valor ao que nossos pais pagam e conquistar o sonho de passar no vestibular.
O estudo era incessante, de manhã era o pré-vestibular, onde conheci o Tássio, Thiago
E. Gomes e Renan; à tarde era a turma da AFA, onde conheci a Mariana; e, para completar,
íamos à noite à biblioteca de uma faculdade para estudarmos juntos e tirarmos dúvidas uns
com os outros. Tivemos problemas com essa biblioteca, pois não fazíamos parte dos alunos
dessa faculdade e, muitas vezes, não podíamos estudar lá, o que foi muito complicado para
um grupo que se ajudava mutuamente. Muitas foram as vezes em que ficamos sem lugar
para estudar. Foi nessa época que conheci meu noivo, que sempre esteve a meu lado, e devo
também a ele meu êxito no vestibular. Era difícil namorar, pois quase não tínhamos tempo,
na maioria das vezes estávamos nos ajudando, ele sempre muito bom nas exatas e eu, nas
humanas. Daí a receita do sucesso, ele passou na UFRJ e eu na UNIRIO.
Mas até passar, vivi momentos de medo, tristeza, estresse, ansiedade. Quando descobri
que não passei na UERJ foi um choro e as esperanças iam se acabando, mas, graças a Deus,
aos meus pais e a minha família como um todo, ao meu noivo, meus amigos e professores
(querendo ressaltar o Joaquim, Jean, Edson, Gessé, William), consegui passar em uma
faculdade pública.
Universidade
Quando, enfim, cheguei à UNIRIO, pensei: passei, e agora? Zona Sul, pessoas ricas,
inteligentes, bem vestidas, pensei mais uma vez: e agora? Tendo que bancar xerox, ônibus,
livros e, mais uma vez, e agora?
O primeiro impacto que tive era que ia ser muito difícil ter dinheiro para todas as
necessidades da faculdade, que, apesar de pública, exige gastos elevados e também exigia
muita força de vontade, pois eu demoro duas horas para ir à faculdade e duas para voltar.
Acredito que existem muitas pessoas que chegam a passar na universidade pública,
mas não conseguem permanecer. Confesso que eu tinha pensado em desistir, me perguntei
se ficaria mais barato fazer uma faculdade particular perto de casa.
Logo de início, encontrei amigas maravilhosas, que espero que fiquem sempre na
minha vida, Angélica, Gabi, Flora. Nesse grupo de amigas, percebi que não era só eu que
tinha dificuldades, e decidimos procurar algum recurso, uma bolsa, sei lá, algo que nos
fizesse permanecer na faculdade. Tivemos nossa primeira decepção, alunos do 1º período
não têm direito à bolsa permanência e, agora, o que fazer? Aí, a gente pensa como esse
governo é injusto, por que não liberar verba para a permanência dos alunos que acabaram
de entrar na universidade?
Minhas amigas e eu não desistimos e ficamos sondando as possibilidades de bolsa, até
que nos apareceu o Programa Conexões de Saberes. Decidimos tentar, mesmo sem ter muito
conhecimento sobre o projeto. Fomos chamadas para a entrevista e conseguimos fazer parte
do grupo de conexistas. Depois de freqüentar as formações e os seminários, entendemos o
que era o projeto e, assim como nossos companheiros, nos sentimos parte dele. Hoje, eu sou
apenas uma formiguinha, mas, no Seminário Nacional que teve na UFRJ, percebi que tem
um monte de formiguinhas espalhadas em todo o país.
Depois de cursados dois períodos de História na UNIRIO, tenho uma interpretação
diferente da que eu defendia outrora. Hoje, acredito que todos, sem distinção de cor, gênero,
credo, são capazes de entrar em uma universidade pública. Temos milhares de caminhadas
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
127
árduas que poderiam constar nesse livro, caminhadas de escolhas, de quedas, de suor, de
solidão, de força de vontade, mas, acima de tudo, são caminhadas de vitória, de conquista,
fruto da determinação de cada um de nós, da vontade de vencer, de quebrar essa grande farsa
de que faculdade pública é só para brancos e ricos.
128
Caminhadas de universitários de origem popular
Caminhadas
Priscila do Nascimento Pereira*
Rendição às dificuldades, sinônimo de derrota
Relatar minha caminhada até a conquista de uma vaga em uma universidade
pública não é uma tarefa difícil para mim. Diferentemente de muitos outros, não tive
uma história sofrida e cheia de pesares, mesmo tendo passado por dificuldades, contudo
não me sinto melhor, tampouco pior do que ninguém por tal motivo. Sou feliz, pois,
como poucos em nosso país, atingi algo que me fará ter um futuro melhor e um maior
desenvolvimento intelectual.
Tive uma infância sadia e boa criação e sempre fui motivada por meus pais a estudar.
Somos de origem popular e, assim como a maioria dos brasileiros, lutamos pelo sustento
diário e por um melhor porvir, o que não impediu a obstinação de meus pais em garantir a
mim e ao meu irmão, através dos estudos, uma perspectiva de crescimento e ascensão
intelectual. Ainda me lembro das inúmeras investidas de meu pai a levar-me a fazer as lições
de casa, enquanto eu gostaria de brincar e assistir à televisão. Dizia que eu o agradeceria no
futuro, mas, como criança que era, retrucava e, hoje, vejo que aquilo que outrora parecia
impossível se fez realidade.
Através do empenho e da dedicação de meus pais, pude cursar o ensino Fundamental
e Médio em instituições particulares. Foi necessário passar por dificuldades, como também
o abdicar familiar de muitas coisas para que isso fosse garantido; contudo todo o esforço foi
válido, visto que alcancei o nível superior de ensino, sendo a primeira em minha família a
obter tal conquista.
Cursei o Ensino Médio com formação geral e, por algum tempo, após iniciá-lo, me
preocupava se havia feito a melhor opção. No início, não tinha a pretensão de cursar uma
faculdade no futuro, minha preocupação se dava pela razão de, ao concluir o Ensino Médio,
não ter ao menos formação técnica para poder trabalhar. Durante o transcorrer das minhas
primeira, segunda e terceira séries do “segundo grau”, fui estimulada a lutar por uma vaga
em uma universidade pública. Onde estudei nesse período aprendi a pensar em formação
superior e, desde então, não me via em outra condição senão essa.
Meu maior desejo era fazer Medicina, mas ainda persistiam dúvidas quanto a outras
opções, tais como: Biologia, Enfermagem, Geografia e História. Meu universo de opções
era grande e estas eram bem distintas. No terceiro ano do Ensino Médio, quis prestar vestibular
*
Graduanda em Enfermagem pela UNIRIO.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
129
e, dentre tantas alternativas, resolvi optar por Enfermagem, apesar de o meu desejo real ser
prestar o concurso para Medicina. Assim decidi porque a relação candidato-vaga para
Medicina era muito grande e, como ainda estava no terceiro ano, julguei-me incapaz de
passar nessa oportunidade. Então, como a prova para ambas as carreiras era a mesma, queria
fazê-la para obter experiência e, no ano seguinte, tendo cursado o pré-vestibular e estar mais
preparada, prestaria o concurso para Medicina, com maiores possibilidades de aprovação.
Inscrevi-me no vestibular de quase todas as universidades públicas do Rio de Janeiro,
o que se deu com certo esforço, já que havia conseguido isenção da taxa de inscrição em
apenas uma delas. Em todas, concorri a uma vaga para o curso de Enfermagem, exceto na
que eu havia conseguido a isenção, pois nela não havia esse curso, logo prestei para
Licenciatura em Química. A meu ver, obter sucesso ainda no terceiro ano e, sobretudo, sem
ter passado por um curso pré-vestibular, era algo pouco provável, então não esperava tal
acontecimento em minha vida, apesar de nutrir uma diminuta esperança.
Mesmo com todas as dificuldades vividas, muitas vezes consideradas intransponíveis,
surpreendi-me com o fato de ter sido aprovada em três universidades federais, contrariando
as minhas expectativas pessimistas; em duas delas, para o curso de Enfermagem (UFF E
UNIRIO) e, em uma, para Licenciatura em Química (CEFET QUÍMICA). Sou grata a Deus,
por tão grande surpresa.
A partir de então, tais dúvidas foram persistentes em mim: devo desistir de todas as
oportunidades, em prol de no ano seguinte, e, após fazer o “cursinho pré-vestibular”,
concorrer a uma vaga para Medicina? Devo fazer somente Enfermagem? Em qual das
faculdades? Ou seria melhor cursar Enfermagem e Licenciatura em Química
simultaneamente? Custei a chegar a uma conclusão e, enfim, optei por Enfermagem na
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), ainda pensando em, no
futuro, tentar a carreira de Medicina.
Ao iniciar meu ano letivo, espantei-me ao perceber que o ambiente universitário era
totalmente diferente do que eu imaginava: o ambiente não era hostil, as oportunidades de
inserção em atividades acadêmicas eram grandes e as dificuldades, mesmo não inexistentes,
eram bem menores do que eu julgava encontrar.
Percebi que, na realidade, o mais difícil não era conseguir uma vaga no ensino superior,
mas sim a permanência e sua vindoura conclusão. Por ser o curso escolhido de horário
integral, é extremamente complicado conciliar os estudos com um trabalho. Dessa forma,
conto com o auxílio dos meus pais, a fim de me manter na faculdade.
Mesmo existindo empecilhos, hoje, aos 22 anos, me encontro no sexto período do
curso e tenho a convicção de ser essa a profissão que quero para mim. As possibilidades
antes cogitadas não me fazem desistir do que conquistei. Não digo que foi algo que desejei
desde criança, mas sim que aprendi a amar a partir do momento em que me foi apresentado.
Por lutas, apesar de não tão árduas, passei, mas com grande vitória alcancei e isso torna a
Enfermagem especial para mim.
Infelizmente, para a camada popular de nosso país, ainda é muito difícil atingir a formação
de nível superior, principalmente sendo proporcionada por uma universidade do sistema público.
Reconheço que tive chances das quais a minoria dos brasileiros de origem popular
pode desfrutar, como o privilégio de um ensino de qualidade durante toda a minha formação
até, enfim, atingir o nível universitário, o que contribuiu sobremaneira para a esse fim
chegar. Sou imensamente agradecida a Deus por tudo isso.
130
Caminhadas de universitários de origem popular
Mesmo em face dessa cruel realidade, que aqui, no Brasil, se apresenta, e das
dificuldades que sempre se manifestam, digo que todos devem lutar por uma formação
superior e jamais se julgarem incapaz. Considerei-me incapaz de ser aprovada no
vestibular ainda no terceiro ano do Ensino Médio, mas me senti desafiada a tentar, e
assim o fiz. Aprendi que a incapacidade muitas vezes não está no fato de não obtermos
subsídios para lograr o sucesso, mas sim por não sermos condescendentes o bastante, a
ponto de nos proporcionarmos ao menos a chance da tentativa de nele chegar. Mais
doloroso do que lamentar o sucesso não alcançado é cultivar a tristeza por não ter se
permitido avançar em sua direção.
Em suma, acredito que devemos nos esforçar em prol daquilo que acreditamos e
sonhamos. Não devemos nos prostrar diante das barreiras que irão surgir, todavia nosso
empenho e dedicação nos conduzirão a fins altamente satisfatórios. Ser universitário
realmente não é privilégio da maioria, mas se, nos julgando minoria, não lutarmos pelo
nosso ideal, jamais atingiremos o que sempre nos foi de direito, contudo não tão facilmente
concedido: o ensino de nível superior de caráter público.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
131
Zero zero
Priscila Maia Barcelos *
Da luta não me retiro
Atiro-me do alto e que me atirem no peito
Da luta não me retiro
Escola
00*, esse foi o número que abriu as portas de uma educação de qualidade na minha
vida, abriu as portas de um dos melhores colégios públicos do Rio de Janeiro: Colégio
Pedro II. Foi um “golpe de sorte”... entrei no Pedro II por meio de sorteio e lá fiquei durante
12 anos da minha vida, do CA até o terceiro ano.
Pedro II foi uma escola que não me ensinou apenas matérias como Português, Matemática
e Física, me ensinou a viver e a conviver com os mais diversos tipos de seres humanos. Aprendi
com os bons e os maus professores, com as greves, a falta de professores, os amigos de todas as
horas, as advertências, as matadas de aula e com as “colas”.
Por mais que tenha passado por momentos difíceis como as já citadas greves e a falta
de professores de Matemática e Sociologia, por exemplo, o Pedro II é motivo de grande
orgulho na minha vida. Conhecer e fazer parte de família CPII foi muito importante pra
mim, poder contar em qualquer momento com todos os tipos de funcionários, desde os
coordenadores, passando por inspetores, faxineiros, professores, até a direção.
Nesse colégio, conheci pessoas muito especiais e sei que sem a ajuda delas minha vida
não teria sido a mesma, sei que sem elas eu provavelmente não estaria aqui na universidade,
pessoas que me deram muito apoio psicológico, escolar e até moral. Apesar de tantos
conhecidos que pudessem me apoiar, foi no CPII também que eu aprendi que não podia
depender de ninguém, que eu teria que saber me virar sozinha, me virar para fazer meus
trabalhos, provas, recuperação, a preencher minhas fichas de matrícula, a conseguir resolver
sozinha meus problemas com os professores, foi inclusive voltando do colégio que tive
que, com oito anos de idade, aprender a andar de ônibus sozinha para voltar para casa.
Conheço cada pedacinho daquela imensidão que é o CPII de São Cristóvão e sei da vital
importância que cada pedacinho daquele teve na minha vida, as salas de aulas, pátios,
laboratórios, anfiteatros, pilastras, piscina, enfim, incontáveis lugares que são inesquecíveis.
E todo esse sentimento me permite entrar lá ainda hoje e me sentir como se estivesse em casa.
*
Graduanda em ???????? pela UNIRIO.
132
Caminhadas de universitários de origem popular
Família
Minha família é um fator importante na minha caminhada da escola para a universidade,
ou melhor, em toda a caminhada da minha vida.
Começando bem no princípio, minha mãe se separou do meu pai quando eu tinha
apenas cinco anos de idade e meu irmão havia acabado de nascer. O que a princípio
parece ser uma grande tragédia, na verdade, foi a atitude mais sensata que minha mãe
tomou, mesmo sabendo de todas as dificuldades que ela ia passar devido a esse fato.
Desde então, minha figura paterna se distorceu e se transformou em duas mulheres
muito importantes: minha tia Valnizia e minha tia-madrinha Verônica. Essas duas grandes
mulheres foram e são até hoje, juntas, o meu pai, tanto financeira quanto moralmente,
uma questão vital. Foram elas que, com minha mãe, me deram os esporros que eu
precisava, brigavam comigo quando eu ficava em recuperação, me deram remédios
quando precisei, compraram meu material escolar, meu uniforme, enfim, todas as funções
de um pai.
Minha mãe, minha guerreira, sempre trabalhou para fazer o máximo que podia por
mim e pelo meu irmão e, mesmo sem ter estudo, me deu as maiores lições de vida, me
ensinando a ser quem eu sou hoje. Acredito, inclusive, que a falta de estudo e a necessidade
dela de trabalhar me ensinaram a ter que me virar sozinha na escola, procurando meus
cursos e estágios, dentre milhares de outras coisas que tive de fazer sozinha, claro que
contando sempre com o apoio e a ajuda dela. Mesmo com a falta de estudo, ela estava
sempre me mostrando que estudar seria o melhor caminho para que um dia pudéssemos
melhorar de vida. E, para que eu seguisse meu caminho apenas estudando, ela
continuou e continua trabalhando até hoje, mesmo em meio a problemas de saúde.
Por muitas vezes, me dei conta de que eu teria que trabalhar para ajudar em casa, mas
ela sempre me impediu dizendo que o certo seria eu estudar muito e me dedicar a essa
função, porque enquanto ainda for possível ela estará dando o suor dela para me
ajudar nessa caminhada.
Quando escolhi minha profissão e resolvi que seria professora me inscrevendo no
vestibular para Pedagogia e Letras, confesso que minha família não gostou muito, exceto
minha mãe que me deu muita força para que eu seguisse minha profissão com o coração. O
resto da minha família falava que eu ia ter que trabalhar muito e que nunca ia conseguir ter
dinheiro. Queriam que eu seguisse carreiras da área de Saúde, como Medicina e Enfermagem,
ou já que eu ia seguir uma carreira de Humanas que fosse pelo menos Direito. Porém, mesmo
sem apoiarem muito minha escolha, foram minhas tias que, mais uma vez, me apoiaram
financeiramente para que eu pudesse fazer um pré-vestibular.
Bem, minha família tem muitos outros membros que também sempre me apoiaram,
cuidavam de mim e do meu irmão quando tínhamos que ficar sozinhos e me ajudaram nas
mais diversas dificuldades, mas, sem dúvida, sei que a minha base tem um tripé com grandes
mulheres: Vanilde, Valnizia e Verônica, três grandes guerreiras que me ensinaram a ser mais
do que a pessoa que sou hoje, mas a mulher que sou.
Universidade
Devo minha entrada na universidade mais do que a minha família, meus amigos ou
minha escola, a uma pessoa muito especial que conheci no Pedro II: Thiago, com quem
passei quase sete anos da minha vida.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
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No último ano na escola, refleti muito e percebi que teria que começar a trabalhar, até
pensava no vestibular e inclusive prestei vestibular naquele ano, porém não consegui passar,
nem o Thiago. A partir daí, pensei que não tinha mais jeito, eu não teria dinheiro para pagar
um pré-vestibular e ia ter que começar a trabalhar. Foi aí que entrou o Thiago, que fez um
grande trabalho psicológico e me convenceu a fazer o pré. Ele também conseguiu com a tia
dele um desconto no pré em que ela era diretora, o que facilitou bastante. Entram na história,
mais uma vez, minhas super tias e foram elas quem pagaram meu pré, as passagens, minhas
apostilas, o intensivo, os projetos, as inscrições, enfim, tudo.
Foi um ano muito difícil, estudando o dia todo, todos os dias da semana, de domingo
a domingo, almoçando quase todos os dias na casa do Thiago, o que também ajudou muito,
pois eu não teria dinheiro para comer fora todos os dias, tendo dias inclusive que tinha aula
até à noite. Nesse pré, conheci professores maravilhosos, amigos para todas as horas, que
muito me ensinaram e que enfiaram nas nossas cabeças que não existia outra universidade
de qualidade que não fosse a pública.
Depois de tudo isso, saber que passei no vestibular foi um alívio e a entrada na faculdade
uma festa. Até me deparar com professores loucos, fichamentos, resumos, textos e mais textos,
livros e mais livros, pensadores e mais pensadores. Perceber que não tenho dinheiro para tirar
todas as xerox nem pra comprar todos os livros e, às vezes, até esbarrar em não ter passagem ou
dinheiro pra comer na faculdade... ufa! As dificuldades são muitas! Porém, tenho passado por
elas e até agora, no quinto período, sobrevivi. Mas não posso dizer que entrar na faculdade
seja só mazelas, aqui dentro conheci mais pessoas especiais e que sei que também farão muita
diferença na minha vida, a curtição do trote e das festas quebram um pouco o clima de extrema
responsabilidade em que nos deparamos na universidade.
*Obs: o número do sorteio ainda não foi definido porque ainda estou procurando.
134
Caminhadas de universitários de origem popular
Risos e lágrimas
Rodolpho de Morais Pereira *
Acredito que falar da trajetória educacional me trará grandes e boas lembranças da
minha vida, que ajudaram a traçar esse momento. Bem, me chamo Rodolpho, faço Pedagogia,
mas isso deixa para depois, porque não foi esse meu ponto de partida.
Papai e mamãe, ambos de família grande, com muitos irmãos, porém com trajetórias de
vida e de educação bem diferentes. Na minha casa, meus pais sempre deram grande valor à
formação dos filhos, que não são muitos como no caso deles (risos), somos eu e minha irmã
somente. Meu pai e minha mãe não têm nível superior, meu pai mal tem o Ensino
Fundamental, mas isso não quer dizer que eu tenha o direito de não ter; ao contrário, na
minha casa não temos a opção de dizer: “Ah, pai, eu não estou a fim de fazer faculdade,
não”, isso na minha casa é um pecado capital.
Na família do papai, eu devo ser um dos poucos, senão o único, na universidade
pública, mas, na família da mamãe, eu sou só mais um – “eita” povo pra passar no vestibular
(risos) – e isso influencia muito e diretamente na visão educacional dos meus pais e na
nossa também, já que todos temos expectativas, por ser uma característica familiar.
Meu primeiro contato com escola foi em uma daquelas de fundo de quintal, onde há
educação infantil, as antigas turmas de Jardim 1, 2, Maternal. Então, foi em uma dessas, mas
muito significativa, que fiquei até o antigo Jardim 2. Finalmente, fui para uma escola com
estrutura de escola, até chamávamos de colégio, só por ser um pouco maior do que a outra,
mas ali cursei meu primário e ginásio. Foram nove anos de muito aprendizado, de grandes
relacionamentos, de pessoas que marcaram muito a minha vida de estudante.
Lembro bem das famosas feiras da cultura que existiam nessa escola, uma espécie de
feira de ciências, onde a escola abria as portas para a comunidade, para apresentação de
muitos trabalhos. Era uma correria durante aquela semana, ficava depois do horário arrumando
para o dia seguinte e, nessa época, a maioria dos meus trabalhos era coordenado por uma
professora que contribuiu muito para o meu crescimento em vários sentidos, seu nome é
Rosália. Ela fez grandes e duradouros investimentos em mim e acreditou em muitos dos meus
ideais e das minhas possíveis conquistas como aluno, como pessoa, como amigo, como
alguém que ela queria e quer muito bem. Aprendi muito com essa professora, que foi mais do
que professora de Biologia, mas sim da vida, efetivamente. Hoje faço Educação e muito do
que vejo na faculdade claramente identifico as atitudes dela. Lembro de um trabalho de
virologia em que até gravamos um vídeo e foi um trabalho de destaque muito interessante.
*
Graduando em Pedagogia pela UNIRIO.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
135
Nessa tão querida escola, obtive alguns prêmios por notas, olimpíadas de
matemática – olha que gosto da matéria, mas nem tinha tanta afinidade como tinha com
outras, mas nem adianta olhar com aquela cara de “poxa, que menino CDF”, porque não
é isso, acho que são coisas da vida e do momento, que são vividas a seu tempo. Naquele
tempo, algumas dessas coisas aconteceram, porém nem tudo é para sempre e a tão
esperada oitava série chegou e eu tive que sair de lá, não por falta de Ensino Médio, mas
já estava nessa escola há um tempo e queria outros horizontes. Por isso, decidi estudar
para entrar em uma escola técnica, fiz um cursinho bem “ralézinho”, “fundão de quintal”,
passei no concurso e fui para a escola técnica.
Na escola técnica fiz Patologia Clínica, o que realmente tem tudo a ver com Pedagogia
(risos), e foi interessante porque eu queria muito fazer Medicina e, ao entrar em Patologia,
descobri que amo a área de saúde, mas com outro tipo de amor, não no sentido obrigatório,
diferente da educação que já entrou no sangue. São amores diferentes, mas são amores.
Então, continuando, realizei o Ensino Médio e o Técnico naquele estabelecimento. Foi um
período de maturidade, em que a característica do público não era única, mas diversificada,
o que me ensinou a conviver com diferentes tribos, algumas que eu não tive contato antes,
mas foi uma experiência singular. Eu falo que é a escola do coração e é mesmo. Recentemente
fui lá e confesso que fiquei com o coração apertado de saudade, saudade de tudo, dos
momentos, dos amigos, dos professores, do ambiente, mas a vida passa e minha época pela
escola do coração também passou.
Antes de continuar, queria registrar que nessa escola as feiras, que lá tinham outro
nome, não me abandonaram, tive pessoas que me ensinaram muitas coisas, também
participei de projetos, só que, por ser técnico, o Ensino Médio era ótimo, porém reduzido
em algumas matérias. Tinha todas, mas em menor tempo, o que não ajudou muito no
vestibular, a não ser pelos professores que tive, eu falava que alguns apresentavam “talent
show” de tão bons que eram, mas passou e passou muito bem, fiz grandes amigos nessa
escola de Ensino Médio. Ah, claro, da escola primária tenho amigos até hoje em contato
e muitos estão muito bem sucedidos, graças a Deus. Aliás, tenho muito a agradecer a Deus
por todos esses momentos e sei que, se não fosse por Ele, não seria por ninguém. Ele é
perfeito e lindo demais.
Passado esse período, chegou o tão esperado vestibular e, nesse ano, que foi um
período bem agitado dentro e fora dos estudos, eu tive a oportunidade de optar por Pedagogia.
Fiquei em dúvida entre Pedagogia e Letras, mas estou na Pedagogia. Entrei na UNIRIO e
tive aquele primeiro impacto com a faculdade, pois a agitação e os tratamentos são bem
diferentes do que numa escola. A responsabilidade aumenta justamente por termos
“liberdade”, podendo ver que o meu crescimento ou não depende somente de mim e do meu
esforço, que a universidade é pública, mas o custo não é assim barato, não. Tenho grandes
gastos e o Conexões foi um baita de um empurrão para poder suprir minhas necessidades.
Essa é minha bem resumida, mas bem resumida mesmo, trajetória educacional,
lembrando que não estou falando ou relatando minha vida pessoal, mas minha trajetória
educacional, e ressaltando que não tenho pais, tenho guerreiros e grandes batalhadores. Só
eu sei o esforço deles para que eu estivesse aqui hoje, e, claro, sem Deus, não faríamos nada.
Agradeço por Ele nos confiar certas missões, e digo a meus pais, obrigado por não desistirem,
mesmo quando todos nós não víamos caminho algum, e investirem na minha educação. Sei
que vocês queriam fazer mais, porém não podem, mas vejam o grande começo que deixaram
136
Caminhadas de universitários de origem popular
na minha vida. Podem ter certeza de que terão grandes frutos, amo vocês e, quando falo de
mim, falo de vocês também. Lembro que, quando era pequeno, qualquer lugar em que eu ia,
eu avisava mãe, pai, cheguei!! Estou indo para outro lugar agora, então, mãe e pai, estou
dizendo daqui, de dentro da universidade, um lugar em que, como o senhor diz, né, pai,
pobre entra como intruso (risos) MÃEEEEEE, PAIIIIIIIII, TÔ AQUI,
CHEGUEIIIIIIIIIIII!!!!!!!!!!!!!!!!!!! (agora, sim, lágrimas).
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
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Assim a vida foi passando
Rosana Nunes Dutra *
Comecei minha vida acadêmica na Escola Municipal Estados Unidos, próxima de
onde nasci e moro até hoje. A escola possui a fama “entra burro e sai bandido”. Por muitas
vezes, minha mãe ouviu de outras mães que preferia deixar o filho analfabeto a deixar
estudar lá. Minha mãe, por diversas vezes, tentou uma bolsa na escola particular de freiras,
que ficava ao lado, mas nada conseguiu, pois era necessário ter alguém conhecido lá dentro.
Assim fiz todo o Ensino Fundamental. Meu pai sempre bebeu, nunca quis saber de
nada, somente dizia que tinha que estudar. Tínhamos que nos “virar”. Nessa época, meu pai
tinha uma condição financeira razoável, porém nunca usufruímos dela. Ele apenas nos
sustentava com a alimentação.
Quando estava concluindo a 8ª série, aos 14 anos, soube de um curso no Campo de
Santa Teresa que preparava e encaminhava menores estagiários ao mercado de trabalho. Fiz a
prova em 1994 sem meu pai saber. Achei que não havia passado, mas, com tanta insistência de
meus amigos, fui no último dia saber o resultado. Foi quando vi que havia passado. Entre o
medo e a felicidade, me perguntava: “E agora?” Tinha a certeza que minha vida ia mudar.
Nunca mais ouviria meu pai “jogar na cara o prato de comida” que ele dava. Só tinha um
“porém”, a única exigência era que deveríamos continuar os estudos, só que no turno da noite.
Chegou a hora, minha mãe exigiu que eu comunicasse a meu pai. E, nessa época, eu
vivia com medo dele, mas lá fui eu:
– Pai, preciso contar-lhe uma coisa. Vou trabalhar e terei que estudar à noite.
O que eu poderia esperar? Eu ainda era ingênua. Precisava de apoio, aquela palavra
amiga que eu esperava...
– Tenho a certeza que você não vai conseguir. Vai acabar desistindo!!!
A partir daí, foi me lançado um desafio. Vamos ver! Vou mostrar para ele!
Eu queria muito fazer o Ensino Médio técnico em informática, era quase impossível
achar o curso em colégios públicos. Meu pai, mais uma vez, não estava disposto a me ajudar.
E eu insistia que queria uma boa escola, principalmente porque seria à noite. Fiz provas para
outros cursos técnicos e não passei. Resultado, quase fiquei sem estudar. Finalmente, por falta
de melhor opção, matriculei-me no Colégio Estadual Infante Dom Henrique.
Ótimo, morando em Santa Teresa, onde não existe ônibus após as 22h, e estudando
nada menos que em Copacabana. Ônibus só de hora em hora e eu descia na parte mais
perigosa de onde moro.
*
Graduanda em Museologia pela UNIRIO.
138
Caminhadas de universitários de origem popular
Começou... “Sua filha será confundida com ‘mulher da vida’ andando a essa hora da
noite em Copacabana”.
Eu, que nunca tinha saído sozinha, tinha acabado de fazer 15 anos e estava estudando
em uma escola em que eu era a mais nova e não conhecia ninguém. Por diversas vezes tive
que mostrar a identidade. Aí, ouvia:
– Não sei como sua mãe deixa você estudar à noite. Ainda por cima longe de casa.
Coitada da minha mãe, no primeiro dia ela ficou na porta da escola me esperando. Depois,
ela se arriscava me esperando no ponto de ônibus que fica entre duas “comunidades rivais”.
Começou o curso. Fui escolhida no primeiro grupo para trabalhar na empresa que era
considerada a melhor. Foi quando meu pai ficou desempregado e eu ajudava nas despesas.
No ano seguinte, minha mãe conseguiu minha transferência para um bom colégio
no Centro (CESA), mais perto de casa e menos perigoso, pois eu pegava o ônibus e
subia Santa Teresa. Só tinha um problema: se eu perdesse o último, subia a pé. Isso leva
uma hora, mais ou menos.
Pronto, em 1997 acabou o Ensino Médio. Novo dilema, ao completar 18 anos, também
deveria sair do emprego. Porém, contrataram-me como prestadora de serviço e me indicaram
para trabalhar com uma psicóloga. Ótimo, dois empregos. Como eu faria para estudar?
Consegui um pré-vestibular no prédio do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
da UFRJ, somente aos sábados, o dia todo. Só que eu trabalhava dois sábados ao mês até
meio dia. Uma das piores experiências, eu dormia nas primeiras aulas, e depois do
almoço também. Resultado, não passei no vestibular.
No ano seguinte, soube de um pré-vestibular para pessoas de baixa renda no Colégio
Santo Inácio de Loyola. Porém as inscrições já haviam acabado. Meu trabalho da tarde era
perto do Colégio, eu saía todos os dias e passava lá para falar com o coordenador. Durante
um mês, tentei todos os dias, já conhecia todo mundo, os professores, os porteiros e até
alunos. Até que, um belo dia, o coordenador apareceu. Ele disse que não havia mais vagas,
pois a turma estava cheia. Porém eu venci pelo cansaço, todo mundo já me conhecia e já
tinham falado de mim para ele. Nem que eu sentasse na cadeira dele ou em pé, mas eu ficaria.
Pronto, menos um obstáculo. Eu sabia que teria que estudar muito para passar para
uma universidade pública, pois não podia pagar uma particular.
Fiz inscrição para todas as universidades públicas e consegui 100% de isenção em
todas. Após o vestibular, fiquei doente com pneumonia (nunca tinha tido uma, nem quando
criança). Não consegui acompanhar os resultados. No último dia (à noite) para inscrições da
PUC, uma amiga que havia passado me ligou perguntando se eu havia feito a inscrição, pois
estava no quadro de pendências. Através do vestibular, nós teríamos 100% de bolsa. Perdi
a inscrição para o curso que eu mais queria: Psicologia.
Eu estava doente e arrasada, achava que não havia passado em mais um ano para
nenhuma universidade. Foi quando chegou a carta da UNIRIO, informando a classificação
e o prazo para inscrição do segundo semestre. Não acreditei, ia ingressar na universidade,
seria a segunda pessoa da família a cursar uma universidade pública. Eu e uma prima, pois
meus pais possuem apenas o Ensino Fundamental.
Rumo à Museologia, todos achavam loucura, mas eu estava feliz da vida. Decepção,
na universidade nem tudo são flores, ou melhor, quase tudo é espinho. Comecei a perceber
os olhares de indiferença e preconceito. Depois descobri o porquê, os meus “colegas”
diziam que eu não queria nada com a universidade, não me engajava em nada, não participava
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
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de cursos, palestras, assistia às aulas e ia logo embora, não comprava os livros, não fazia
todas as matérias. Eles só não sabiam que eu estava me desdobrando para estudar e trabalhar.
Meu horário de trabalho não permitia que eu cursasse todas as matérias.
Ficava muito difícil também devido à doença de meu pai, ele bebia e não deixava
ninguém em casa dormir. Eu chegava do trabalho e tentava fazer as atividade das aulas e, na
maioria das vezes, não conseguia. Aconteceu o que eu esperava, tinha que entregar um
trabalho impreterivelmente naquele dia, pois a professora não aceitava fora do prazo. Eu já
estava fazendo “à mão”, já que não tinha computador, e ela não gostava. Foi a pior noite,
meu pai não me deixou terminar. Loucura, vou ficar reprovada. Fui com uma amiga conversar
com a professora, ela permitiu a entrega no dia seguinte, porém me perguntou até quando eu
permitiria que ele fizesse isso com a minha vida. Minha ficha realmente caiu naquele
momento. Percebi o quanto eu já tinha me prejudicado e continuava me prejudicando.
Isso aconteceu no final do semestre. Logo no início do ano aconteceu mais um grande
desentendimento, pois meu pai, quando bebe, quer matar todo mundo. Dessa vez ele queria bater
em minha mãe, eu não permiti e ele quase me enforcou. Eu lembrei das palavras daquela professora
e tomei a decisão que não passaria mais por isso. Fui morar com a família de uma amiga.
Assim, a vida foi passando, depois acabei voltando para perto de minha mãe, por
insistência dela. Mas nunca para a mesma casa. Agora eu morava sozinha. Eu continuava
atrasada na universidade. Mesmo assim tentando continuar, troquei diversas vezes de horário
no trabalho para fazer as matérias. Trabalhei inclusive de 0:00 às 6:00, um terror. Fazia uma
matéria às 7:00 e dormia na aula. Resultado: reprovação.
Muitas vezes tentei desistir. Achava que eu estava em um meio que eu não pertencia.
Estava muito difícil permanecer. Ao mesmo tempo me questionava por que não. A
universidade não era pública? Então, era para mim, sim, que era pobre. Os que iam de carro
importado, compravam livros caríssimos e tinham “sobrenome” (alguns professores
identificam os alunos pela sua família, eu estava ferrada) não precisavam estar ali, podiam
pagar uma ótima universidade. E ainda me olhavam de lado. Ninguém merece!
Acho que o pior foi, agora, no final do ano de 2006, quando possuía uma matéria
pendente que era oferecida apenas na parte da tarde, pois a professora recusa-se a dar aula na
parte da manhã, mesmo sendo professora concursada para dedicação exclusiva. Avisei no
trabalho que chegaria atrasada uma vez na semana. Até aí tudo bem, eu entrava às 16:00 e
a aula terminava às 16:00, só que nunca terminava na hora. Eu avisei à professora e ela disse
que não podia fazer nada.
Até aquele momento, consegui permanecer na universidade, pois estava trabalhando
e não podia prejudicar minha vida profissional pela acadêmica, pois era o que me sustentava.
Meus atrasos resultaram em demissão. E minhas saídas no horário previsto para o término
da aula resultaram em faltas e, posteriormente, uma bela reprovação. Não só isso, eu sou
pobre e esse “Zé Povinho” não pode ter vez na Museologia.
Desespero, pela primeira vez, desde que comecei a trabalhar, estava desempregada. O
que fazer da minha vida? Penso até hoje que agora eu tenho como terminar a universidade,
já que entrei no segundo semestre de 2000. Comecei a fazer um estágio voluntário, até que
acabou o auxilio desemprego. Eu já sabia do Conexões, pois tenho uma amiga que faz parte
do projeto, um dia eu assisti a uma apresentação dos bolsistas. E, pela primeira vez depois
de tanto tempo na universidade, eu me identifiquei. Vi que existiam pessoas com as mesmas
dificuldades. Inscrevi-me para a próxima seleção, mas não sabia que esta estaria tão próxima.
140
Caminhadas de universitários de origem popular
Para minha felicidade, fui selecionada. Tenho pouco tempo de Conexões de Saberes, mas já
aprendi tanta coisa que parece que tenho muito tempo. A articulação com o Programa
Escola Aberta permitiu que eu mostrasse para crianças que a universidade não é “só para
rico”, como eles achavam. E claro não posso mentir que a bolsa vai me socorrer nesse
momento de dificuldade financeira.
Claro que meu ingresso na universidade não foi em vão, fico muito feliz em saber que
os alunos de origem popular estão tendo vez. E tenho a certeza que muitos vão conseguir
concluir seu curso e realizar seus sonhos. E não será mais necessário abandonar, como eu sei
que acontece.
Valeu a pena ê ê
sou pescador de ilusões...
O Rapa
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
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A arte de resistir
Rosangela Neder *
A vida é sobrenatural, e caminho
segurando um guarda-chuva aberto sobre
corda tensa, caminho
até o limite do meu sonho grande.
Clarisse Lispector
Sou aluna do curso de Museologia, me chamo Rosangela Neder, e estou aqui nessa
caminhada com o Programa Conexões de Saberes, que me interessou logo no primeiro
momento em que tomei conhecimento. Assim que saiu a classificação, verifiquei que meu
nome não figurava na lista dos selecionados, isso significa dizer que faço parte de uma
repescagem, aliás, isso não é a primeira vez que me acontece.
Nos anos 80, tentei ingressar na Escola de Teatro Martins Penna, uma escola pública
de formação de ator, localizada na cidade do Rio de Janeiro.
Na primeira prova, que era de conhecimentos gerais, soube que não havia sido
classificada. Confesso que fiquei muito deprimida com a notícia, tal qual como aconteceu
com o Conexões, quando abri a página da UNIRIO e verifiquei que meu nome não estava lá.
A auto-estima foi lá para o subterrâneo.
Na época da Martins Penna, houve uma reavaliação da comissão julgadora e,
para minha surpresa, recebo um telefonema da secretaria, comunicando que
eu havia sido selecionada e pedindo meu comparecimento para a próxima prova,
que também era eliminatória, ao todo foram seis provas, ou seja, uma verdadeira
“maratona”.
No caso do Programa Conexões, estou nele graças à desistência de um colega de
faculdade, o Isaque, que, por sinal, também é de Museologia.
Gosto muito do curso que faço, foi a minha única opção, pois verifiquei no site da
universidade as disciplinas que compunham o curso e me identifiquei bastante. Interessome muito por arte, história e pela questão da memória e do patrimônio, acredito que as duas
últimas são fundamentais para o crescimento do nosso país e, sobretudo, para o aumento da
conscientização e auto-estima do povo brasileiro.
Como alguns já podem perceber, não sou propriamente o que se pode chamar de
uma jovem, talvez uma jovem senhora de quarenta e um anos de idade. Sou a caçula de
*
Graduanda em Museologia pela UNIRIO.
142
Caminhadas de universitários de origem popular
três irmãos, somos duas mulheres e um homem. Minha infância e adolescência foram
bastante turbulentas.
Meu pai, apesar de exercer um cargo de remuneração razoável, foi ausente sobre
vários aspectos. Não havia espaço para o diálogo em casa e passávamos por muitas privações
a despeito de seu ganho. Eu e minha irmã, principalmente, podemos dizer que, por muitas
vezes, tínhamos e não tínhamos um pai em casa. Faltou-nos afeto, compreensão e até mesmo
as necessidades mais básicas.
Éramos uma família, aos olhos dos outros, de classe média, no entanto, não era bem
essa a realidade vivida dentro de casa e até mesmo fora dela. Aos quinze anos, comecei a
trabalhar, a pressão era muito grande em casa. Meu pai achava que já estava mais do que na
hora de começarmos a trabalhar e que tínhamos que suportar tudo aquilo caso contrário, “a
porta da rua é a serventia da casa”, palavras dele.
De todas as privações, a mais sentida por mim e pela minha irmã, acho até que pelo
meu irmão também, era a afetiva, muito embora ele gozasse de alguns poucos privilégios
dentre os quais nunca pudemos gozar. O fato é que, para todos nós, ou seja, eu e meus
irmãos, tudo aquilo consistia numa grande incógnita.
Não sabemos até hoje se minha mãe tinha conhecimento do motivo pelo qual tudo
aquilo ocorria e não revelava ou se realmente ela não sabia mesmo e aceitava resignadamente
os fatos. Acredito mais na última hipótese, pois meu pai sempre foi um homem muito
intransigente e não admitia jamais ser questionado pelas suas ações, na sua visão ele era o
“chefe” da casa, tal qual um ditador.
Sempre estudamos em colégios públicos e, na ocasião em que comecei a trabalhar,
tornou-se difícil conciliar trabalho e estudo, pois trabalhava em uma empresa bem distante,
em horário integral. Saía de casa antes do nascer do Sol e, pela distância, sempre chegava
atrasada, perdia sempre a primeira aula e, às vezes, até a segunda.
Por volta de 1981, comecei a desenvolver um problema de saúde, lembro-me de ter
sido internada por alguns dias e iniciei um longo tratamento. Admito que, em conseqüência
disso tudo, perdi um pouco do rumo e acabei desanimando e deixando de lado muitas
daquelas coisas que faziam parte dos meus sonhos de realização.
Casei-me aos vinte anos de idade, em 1985, já grávida de minha filha, em 1987 foi o
ano em que ingressei para o Martins Penna e, em 1989, finalmente concluí o curso. Tentei,
durante mais de dez anos, sobreviver de teatro, mas não obtive êxito.
Em 1991, veio a separação entre mim e o pai de minha filha. O período pós-separação
foi muito difícil, sobretudo para manter o aluguel de uma casa, criar uma filha, tentando
proporcionar a ela uma infância e adolescência, que creio ter sido saudável e de algum
modo feliz, pois me empenhei bastante para isso.
Uma amiga chamou-me para trabalhar em uma corretora de seguro de saúde, foi aí que
consegui dar conta de todas as coisas necessárias para nos manter juntas. Renato, o pai dela,
pagava uma pensão que era toda destinada aos seus estudos. Durante seu crescimento, permanecemos
sempre muito unidas, havia muita cumplicidade e companheirismo em nossa relação, e, à medida
que o tempo ia passando, essas coisas se intensificavam entre a gente. Que saudade! Hoje, Lívia,
esse é o nome da pessoa que mais deu sentido a minha vida, já não mora mais comigo.
Quando ingressei na UNIRIO, em 2003, os problemas financeiros se agravaram, não
pude mais me dedicar ao trabalho na corretora. Essa área exige de preferência tempo integral,
para que se possa obter algum ganho.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
143
Meu entusiasmo e minha expectativa logo que ingressei na universidade eram muito
grandes, acho até que quase com a mesma intensidade das dificuldades que enfrentei. Tive
uma interrupção escolar muito longa, de, aproximadamente, 13 anos. Fiz pré-vestibular
comunitário um ano antes do meu ingresso à universidade e isso me causou alguns problemas
como adaptação à leitura de textos científicos, eu precisava lê-los, pelo menos, quatro
vezes. Outro fato que me assustou bastante foi a indiferença de professores com relação à
realidade de um aluno de comunidade popular, o professor partia do princípio que todos
tinham acesso a computador, Internet, e a elaboração de trabalhos que exigiam esses recursos
significava um custo bem alto para mim.
Atualmente, convivo com essas dificuldades em menor grau, sabe como é, a gente se
vira daqui e dali e acaba, senão superando, aprendendo a conviver com elas.
Começaram a surgir os estágios e muita dificuldade de conciliar tudo, foi então que as
dificuldades financeiras aumentaram significativamente. Finalmente, quando minha filha
completou dezoito anos, o inevitável aconteceu, ela foi morar com o pai e a avó, pois
chegamos a uma conclusão bem simples, já não conseguia mais dar conta das despesas
básicas e a situação tornou-se insustentável.
A ausência de minha filha em casa ainda dói, mas acho que nossa relação amadureceu
bastante. Na verdade, estamos caminhando juntas “braços dados ou não”, como diz o
compositor. Atualmente, ela trabalha e é estudante de Comunicação Social, nos falamos
quase todos os dias e temos uma relação não só de mãe e filha, mas também de amigas, e me
orgulho disso, porque acredito que ajudei muito a construir esse tipo de relação.
Iniciar um trabalho é sempre algo que constitui grande desafio, e minha entrada no
Escola Aberta foi algo que suscitou em mim vários sentimentos, entre eles o medo, sobretudo,
de não ser aceita, de cometer mais erros que acertos – hoje sei que cometi alguns equívocos,
mas também deixei algumas sementes.
Esse início assemelha-se muito ao que estou fazendo neste momento, ou seja, começar
um texto, trabalho que significa quase sempre grande dificuldade, contudo quando você
consegue dar o pontapé inicial, logo toma o “gostinho”.
No primeiro momento, iniciei as oficinas no Escola Aberta em dupla com Louise,
outra conexista, e me pareceu que rolava perfeita simbiose entre a gente. Posteriormente, vi
que não foi bem assim, mas, enfim, as conexões nem sempre se dão da maneira que
idealizamos, por isso acredito que tropeços e divergências façam parte de todo processo
coletivo, só desse modo exercitaremos o princípio da dialética.
No momento seguinte, passei a trabalhar sozinha, pois constatamos no decorrer do
processo que se tornara inviável atuarmos em duas escolas no mesmo dia. Foi então que o
desafio tomou uma dimensão ainda maior e junto com ele todos os medos.
Certamente, essa é uma daquelas experiências que irão marcar não somente minha participação
dentro do Programa Conexões de Saberes, como também toda a minha trajetória de vida.
Nessa hora, passa uma espécie de filme na nossa cabeça, me vem à cabeça, então,
a experiência do primeiro dia aplicando a oficina na Escola Municipal Francisco
Portugal Neves, a expectativa das crianças, para, em seguida, ocorrer o pior, o
desinteresse delas, foi simplesmente um grande vazio, seguido de uma sensação de
fracasso terrível. Mas não pensem que me dei por vencida, no outro final de semana lá
estava eu com várias idéias que fervilhavam em minha cabeça no decorrer daquela
mesma semana.
144
Caminhadas de universitários de origem popular
Resolvi que iria trabalhar com todos os oficineiros, ou quase todos, do Escola Aberta,
e acredito ter dado certo, pois a partir dali passei a conhecê-los melhor e a receptividade
aconteceu não só por parte deles, como também das crianças. Tive a oportunidade de ouvir
relatos incríveis e, sobretudo, aprender e trocar com uma boa parte deles (oficineiros e as
crianças).
Claro que nem todo sábado era o que se pode chamar de “um sucesso de público e
crítica”, contudo pude constatar que quantidade nem sempre representa qualidade e que, às
vezes, sem que nós mesmos percebamos, alguma coisa fica.
É isso aí gente, estou caminhando, às vezes tropeçando, mas acredito que tudo isso
faz parte de um processo e que, um dia, vou olhar pra trás e ver que valeu a pena.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
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Eu tenho um sonho...
Sabrina Carvalho de Almeida *
Minhas origens e nossas dificuldades
Em meu histórico familiar, acabei quebrando algumas barreiras ao ser a primeira da
família a entrar na universidade pública. Ainda mais sendo a filha do meio (tenho uma irmã
um ano mais velha e um irmão mais novo) de um casal de pernambucanos que decidiram
sair de sua terra em busca de uma vida melhor, que por lá passaram diversas dificuldades,
devido ao grande número de membros que compunham suas famílias. Eles não tiveram
acesso à educação porque tinham que trabalhar na roça para sobreviver.
Aos 20 anos, meu pai veio para o Rio de Janeiro e conseguiu trabalhar, primeiramente
como auxiliar de cozinha e, depois, como cozinheiro. Foi essa profissão que lhe permitiu
aproveitar as oportunidades de empregos melhores no interior do Rio de Janeiro, Valença.
Ele sempre viajava para rever os familiares e ajudá-los, e foi durante essas viagens que ele
começou a ter interesse pela minha mãe, que era vizinha de seus pais. Pelo que minha mãe
nos conta, o início do relacionamento deles foi bem diferente dos que ocorrem nos dias de
hoje: ela e meu pai namoravam e noivaram por correspondência. Embora fosse analfabeto,
meu pai não tinha vergonha em pedir às pessoas para escrever as cartas.
A partir do momento em que minha mãe, aos 22 anos, decidiu sair de casa para se casar,
tinha em seu pensamento a chance de ganhar liberdade, já que tinha uma educação rigorosa.
Ao casar-se, ela logo engravidou e, a partir daí, durante 14 anos, passou a se dedicar aos
filhos, pois não tinha condições de pagar alguém para cuidar de nós.
Sempre passávamos por dificuldades financeiras, pois toda renda vinha do esforço do
meu pai, no entanto, isso foi piorando quando ele já não trabalhava direito, devido ao
alcoolismo. Então, minha mãe percebeu que os filhos já estavam grandes e sentiu a
necessidade de trabalhar para sustentá-los, já que meu pai não conseguia estabilidade no
emprego. Com o mercado de trabalho cada vez mais exigente, as dificuldades se ampliavam
devido à baixa escolaridade de meus pais – meu pai analfabeto e minha mãe com apenas a
1ª série do Ensino Fundamental.
Mesmo assim, minha mãe não desistiu e acabou se cadastrando numa agência de
emprego, que a indicou ao cargo de cozinheira familiar, que, no entanto, exigia experiência
que ela não tinha. Para não perder a oportunidade, ela inventou que havia trabalhado e que
sua ex-patroa mudou-se para o município do Rio de Janeiro. Mas, para ratificar essa história,
*
Graduanda em Pedagogia pela UNIRIO.
146
Caminhadas de universitários de origem popular
contou com o auxílio da sobrinha, que morava há anos no Rio para se passar pela ex-patroa.
Com isso, ela conseguiu o emprego numa casa de família de classe alta. Após três anos nesse
emprego, as dificuldades financeiras estavam piores, pois meu pai encontrava-se
desempregado e o aluguel estava atrasado há meses, o que levou a justiça a decidir nossa
permanência na casa. Para tentar solucionar o problema e não esperar pela decisão da
justiça, pois não tinha dinheiro para pagar um advogado, minha mãe explicou à patroa o
nosso problema para ver se ela ajudaria. A patroa acabou cedendo a casa do caseiro, que
estava desabitada, para moramos, mas com a seguinte condição: que meu pai não morasse
com a gente, pois a patroa não aceitava um alcoólatra. Com isso, meu pai foi morar com
alguns parentes no Rio de Janeiro para arrumar emprego e ajudar nas despesas da família.
Nossas condições financeiras eram razoáveis, já não tínhamos a preocupação com
algumas despesas (luz e aluguel). Mesmo assim, minha mãe não estava satisfeita com nossa
vida. E, em 1999, ela pretendia morar no Rio, mas consegui convencê-la em permanecer em
Valença, pois receava que meu currículo escolar fosse prejudicado, porque faltava apenas
um ano para terminar o Ensino Médio. Além disso, poderia haver dificuldades em encontrar
uma escola com o curso normal (magistério) e havia também o medo da violência. Mas,
quando me formei, fomos morar no Rio e tentar arrumar um emprego. Construímos como
família a responsabilidade em contribuir na renda familiar, tanto que minha mãe e minha
irmã foram trabalhar com uma tia, eu não conseguia trabalhar como professora, pois as
escolas exigiam experiência. Acabei trabalhando, por indicação, como secretaria de um
consultório dentário, onde aprendi muito da área odontológica. Depois de três anos nesse
emprego, fui demitida, porque minha chefe fecharia o consultório. Então, passei a procurar
por estágios remunerados que me ajudariam na renda familiar e a sustentar os gastos com
a faculdade até hoje.
O apoio familiar na educação e o desenvolvimento desta
Por mais que meus pais não tivessem terminado os estudos, tomaram a decisão em dar
uma educação básica a mim e a meus irmãos, pois queriam dar aos filhos a educação que não
tiveram. Acabamos estudando desde a educação infantil até o Ensino Médio em uma escola
estadual de boa qualidade. A nossa única dificuldade na escola era comprar o material
escolar e, principalmente, os livros. Esses livros nem sempre serviam aos três irmãos, mas
alguns deles conseguíamos emprestados.
Os conhecimentos que perpassavam pela escola durante o Ensino Fundamental foram
retificados no Ensino Médio, por exemplo, a “Descoberta do Brasil”. Durante o Ensino
Fundamental, adquiri alguns conhecimentos com certas dificuldades por não ter o hábito
de leitura. Lembro que, quando estava na 2ª série, tive um trauma: a professora havia pedido
para interpretar um exercício do livro de Português e, quando terminei, ela pediu para
refazer. Tentei refazer cinco vezes o exercício e sempre estava errado. A professora não me
ajudava, então desisti e comecei a chorar. A única atitude dela foi colocar um bilhete para
minha mãe dizendo que não sabia o porquê do meu comportamento. A partir disso, tinha
medo em escrever o que compreendia, mas minha alegria era compreender a Matemática.
Mas esse medo está sendo superando, quando optei em fazer o Magistério, pois é muita
responsabilidade compartilhar o conhecimento e conduzir o aluno à compreensão do mundo.
Quando escolhi o Magistério, meu pai não compreendia meus estudos, pensava que eu já
estava trabalhando como professora, pois essa profissão era um orgulho para ele.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
147
Durante o Magistério, alguns professores – Física e Química – não tinham consideração
pelos alunos ao não se aprofundar nessas disciplinas, porque acreditavam que as normalistas
não necessitariam. No entanto, essas disciplinas têm sua importância em algumas situações
cotidianas, em que se poderia ensinar a criança. Por isso, no 3º ano do Ensino Médio,
freqüentava um curso pré-vestibular comunitário oferecido pela Prefeitura, pois queria
compreender melhor as disciplinas ignoradas no Magistério.
Nesse período, havia sido criada uma lei exigindo o nível superior ao professor
de nível médio, então me preocupava em não perder meu diploma e nem a vontade de
ser professora. Pois eu tenho um sonho de ser professora de Matemática para trabalhar
com os anos iniciais, porque acredito na mudança dos estigmas negativos criados em
relação à Matemática.
O vestibular e o pré-vestibular
Em 2002, há dois anos morando no Rio de Janeiro, comecei a pensar em fazer o
vestibular devido à Lei. Então, procurei compreender o sistema do vestibular e as
universidades públicas e, assim, recebi isenção para o vestibular da UERJ. Nessa época,
estudava sozinha, sabia que seria difícil, ainda mais com alguns déficits de algumas
disciplinas, tinha em mente apenas tentar. Com todo o esforço, acabei indo para a segunda
fase do vestibular, mas esqueci de acompanhar as datas das notas e do resultado. Então, no
ano seguinte, decidi me dedicar mais para alcançar a universidade pública, já que não tinha
condições de pagar uma universidade privada.
Como trabalhava até tarde, não tinha condições de fazer um pré-vestibular durante a
semana, por isso optei por um que funcionasse no final de semana. Acabei entrando para o
pré-vestibular comunitário Martin Luther King, que havia sido criado por um universitário
de origem popular. O curso pré-vestibular é vinculado até hoje à ONG Educafro-Rio, que
defende as ações afirmativas, a questão do negro e o acesso à universidade pública para as
classes populares. O pré-vestibular trabalha esses assuntos, implanta “aulas de cidadania”,
nas quais os alunos refletem sobre os problemas sociais.
Assim, passei a ter outro olhar em relação às questões citadas, chegando a participar
em atos públicos em defesa das cotas. Hoje, não vejo as cotas como uma saída ao acesso à
universidade, mas uma medida temporária em benefício das classes populares, pois sabemos
que a falta de qualidade e de infra-estrutura na educação básica são as causas do difícil
acesso ao ensino superior.
Nesse pré-vestibular, aprendi a dar importância à participação social e compreendi a
homenagem que fizeram ao dar ao curso o nome de Martin Luther King, um líder ativista do
movimento negro nos EUA que lutou pelos direitos civis. Ele tinha uma frase que eu venero
em que ele fala de um sonho que pode tornar-se real algum dia em nossa sociedade, onde o
preconceito não existiria mais: “Eu tenho um sonho... de que, um dia, viverão numa nação
onde eles não serão julgados pela cor da sua pele, mas pela essência do caráter” (Rev.
Martin Luther King Jr., 1963).
Bem, como todo pré-vestibular comunitário sobrevive de professores voluntários e
sofre com a falta deles, comecei a me virar nos estudos, abrindo mão do final de semana e
das minhas férias, chegando a fazer grupo de estudos. Contudo, durante o processo do
vestibular, consegui isenção para todas as universidades públicas do Rio, menos na UFF.
Mas qual curso fazer? O meu sonho, Matemática? Pois é, notei que faltava maior
148
Caminhadas de universitários de origem popular
conhecimento de Física para alcançar meu sonho, no entanto, optei em fazer Pedagogia
para aprofundar meus conhecimentos do magistério. E nesse processo do vestibular, verifiquei
como era excludente, desde a isenção (burocracia) até a realização das provas, que talvez
não prove nossas capacidades.
Após todas as etapas, o pior é o resultado, pois esperava passar para a UERJ e para a
UNIRIO, devido ao horário do curso ser noturno. Na UERJ, tomei bomba logo na primeira
fase, faltava a UFRJ e a UNIRIO. Enfim, consegui nota para a UNIRIO, mas só havia a
esperança de entrar no segundo semestre e esperar as listas de reclassificação. Durante essa
espera, fui convidada a participar da coordenação do pré-vestibular em que estudei (e ainda
continuo atuando), daí não poderia esperar o resultado e decidi começar todo o processo do
vestibular, mas dessa vez em outro curso pré-vestibular durante a semana.
Acompanhar cada data da reclassificação era muito angustiante, até orava para os
meus concorrentes optarem por outra faculdade, pois na UNIRIO poderia estudar e trabalhar
ao mesmo tempo. Faltando uma semana para realizar a prova da UERJ e, às vésperas da
penúltima reclassificação, eu estava no trabalho quando recebi o telefonema de minha mãe.
Era a notícia mais feliz de minha vida, ainda mais dita pela pessoa mais importante para
mim. Minha mãe não tinha nem palavras para falar comigo ao telefone porque estava
chorando de emoção e eu, claro, acompanhava-a no choro.
A faculdade, o Conexões dos Saberes e meus caminhos
Ao entrar na faculdade, estimulei minha irmã mais velha a tentar entrar na universidade
pública e também minha mãe, que voltou a estudar o Ensino Fundamental e necessita do
meu auxílio para aprender (engraçado como as coisas se inverteram, antes era ela tentando
ensinar, e hoje sou eu ensinando). Em relação ao espaço universitário, me sinto em um
ambiente tranqüilo, ainda mais com a bela paisagem do morro da Urca, mas o importante
nesse espaço são as discussões políticas e pedagógicas que perpassam a academia, ainda
mais com o sucateamento do ensino superior.
Minha perspectiva no início do curso de Pedagogia era aprofundar alguns
conhecimentos adquiridos no magistério, mas, ao longo curso, notei que os conhecimentos
passados são superficiais e muito teóricos deixando um pouco de lado a relação com a
prática. Isso é notável durante as críticas sobre a educação tradicional, em que alguns
professores universitários conseguem transmitir a práxis de uma educação inovadora,
enquanto outros professores dizem ser contra a metodologia tradicional, mas se utilizam da
própria. No entanto, fui aprendendo a importância da práxis e da atuação do pedagogo, que
está além da docência, sendo um eterno pesquisador.
Por isso, hoje, ao participar do Conexões de Saberes, vejo como posso trabalhar em
pesquisas que busquem a implantação de ações afirmativas na universidade, ainda mais
estando na coordenação pedagógica do curso pré-vestibular comunitário que estimula alunos
de classes populares a obter o acesso ao ensino superior. Por isso, venho me esforçando para
ser uma boa profissional, pois tento compartilhar meus conhecimentos nas oficinas do Escola
Aberta e com os alunos do pré-vestibular comunitário. Por fim, pretendo terminar o curso de
Pedagogia e retornar para realizar o meu sonho ser PROFESSORA DE MATEMÁTICA.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
149
Conquista
Simony Costa de Oliveira *
Senhor, tu tens sido o nosso refúgio,
de geração em geração.
Antes que os montes nascessem e
se formassem a terra e o mundo,
de eternidade a eternidade, tu és Deus.
Salmos 90: 1; 2
Poderia começar minha história de várias maneiras, mas preferi iniciar um pouco
antes do meu nascimento. Meus pais, logo depois que se casaram, foram morar em uma
comunidade em Costa Barros e tinham uma casa humilde com um bar que era a fonte de
renda. Meus pais trabalhavam muito nesse bar e minha mãe, grávida de mim, contou
que não tinha tempo de fazer xixi, nem de cuidar da minha irmã. Até que, no dia 28 de
agosto de 1985, eu nasci, o bebê magrelo, cabeludo e, por incrível que pareça, branquela,
apesar de ser totalmente diferente atualmente. Quem cuidou de mim, enquanto minha
mãe trabalhava, foi minha irmã, que era apenas quatro anos mais velha que eu. Vejam
que tamanha responsabilidade, uma criança de quatro anos cuidando de um bebê, mas
o bom disso é que hoje tenho uma boa amizade e companheirismo imenso com a minha
irmã Monique.
Meus primeiros anos escolares, do CA à 4ª série, foram em escolas particulares, que
minha mãe se esforçava muito em pagar, pois ela vendeu o bar e saiu daquela comunidade,
que era bem perigosa, e virou comerciante ambulante de carne. Nesse momento, eu era a
diferente da escola, minhas amiguinhas tinham os pais advogados, engenheiros, e o meu era
açougueiro ambulante. Para mim, isso não é vergonha, mas orgulho, meus pais sempre foram
exemplo de trabalho e determinação. Eles são exemplos de vitória, minha mãe veio do interior
do Rio Grande do Norte, do Timbó, e concluiu o Ensino Médio, meu pai é semi-analfabeto,
veio da Paraíba e, com muito trabalho duro, hoje tem uma casa própria, um fusquinha velho
para andar, a Xaninha (a gatinha) e a Pretinha (a cadelinha vira-lata) para sustentar.
Bem, continuando, na 4ª série, minha mãe já não estava mais conseguindo pagar a
mensalidade da escola, afinal era eu e minha irmã. Minha mãe decidiu nos colocar na escola
pública. Foi um grande choque, pois lá conheci crianças da minha idade que já se drogavam,
bebiam e tinham vida sexual ativa e, para mim, eram coisas que só “gente grande” fazia.
*
Graduanda em Enfermagem pela UNIRIO.
150
Caminhadas de universitários de origem popular
Apesar de já ter morado em comunidade, eu era muito pequena e a minha criação foi muito
rígida, pois eu não brincava e não tinha amigos na rua. Minha única amiga era a Monique.
Ir para escola pública mostrou como era importante estudar e ver que a minha realidade era
diferente de algumas daquelas crianças, ver meninas da minha faixa etária grávidas e meninos
passando fome, que iam para escola para se alimentar, pois aquela seria a única refeição do
dia. Percebi como o ensino da escola pública era fraco, pois matérias que eu estava vendo na
5ª série, já havia visto na escola particular.
Desde muito pequena, gostava da área de saúde. Minha mãe perguntava: “Neném, o
que você quer ser quando crescer?” E eu respondia: “Médica”; eu nem sabia o que era
saúde, muito menos Enfermagem, pois não é uma profissão que as crianças conheçam. Mas
eu sabia que jamais conseguiria ingressar em uma universidade pública, para cursar Medicina,
muito menos meus pais pagarem uma faculdade particular. Então, decidi fazer o curso
técnico em qualquer coisa e ganhar dinheiro para ajudar nas despesas de casa.
Fiz provas para as escolas técnicas públicas e a minha preferência era CEFET e Federal
de Química, porque minha irmã “cabeçuda” tinha ingressado para o CEFET e eu, a “burrinha”
da família, não passei de primeira, nem de segunda. No segundo ano de tentativa, passei
para o CEI de Quintino e decidi fazer Enfermagem, pois resolvi enfrentar o medo da Medicina
e ficar mais perto da área de saúde, pois tive um problema na minha perna e fui atendida nos
Anjos do Rio (um postinho móvel de pronto atendimento, que não existe mais). Uma
médica fofa me atendeu, mas lá não havia suporte para resolver meu problema e ela me
encaminhou para o Hospital Carlos Chagas, onde uma médica estúpida me atendeu, então
decidi seguir o meu antigo sonho de menina e ajudar, com o meu trabalho, esse sistema de
saúde brasileiro com tantas deficiências e injustiças.
Deus é muito fiel e terrível, pois ele nos prepara coisas que nem esperamos e quando
entregamos nossa vida a Ele, Ele faz o melhor. Ingressei no Ensino Médio fazendo o curso
técnico em Enfermagem e, no primeiro mês na Escola Técnica Estadual República, descobri que
existia graduação em Enfermagem. Amei a profissão e vi que era o que realmente queria, pois
essa profissão me permitia ajudar ao próximo cuidando de sua saúde e, de alguma maneira, de
sua vida social, é uma profissão perfeita. Foi muito bom estudar nessa escola, pois tive a
oportunidade de ter uma visão crítica da sociedade e mudá-la fazendo minha parte como cidadã.
Terminei o Ensino Médio e ficou mais forte a vontade de ingressar em uma universidade
pública, também porque minha irmã, como sempre cabeçuda, foi aprovada no curso de
Engenharia no CEFET, que é federal. Minha mãe queria que eu fizesse um cursinho para
tentar ser sargento e ajudar nas despesas de casa, pois não conseguiria pagar meu curso prévestibular, muito menos me manter na universidade pública, já que Enfermagem é um curso
integral e não poderia trabalhar. Mas, como Deus é misericordioso, conversei com meu pai
e ele me apoiou completamente, apesar de meu pai ser praticamente analfabeto, ele sempre
valorizou o estudo e daria um jeito para resolver esses “pequeninos” problemas financeiros.
E foi isso que aconteceu, ele arranjou um trabalho e pagou meu pré-vestibular. A misericórdia
de Deus, meu pai e meu esforço possibilitaram meu ingresso na UNIVERSIDADE FEDERAL
DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - UNIRIO, (muito obrigada, pai, eu te amo).
Nesse momento, tenho que agradecer também a minha mamãe, que teve sabedoria e
compreensão comigo nos meus momentos de nervosismo e sempre orou por mim; minha
amiga do coração Júlia, que dividia seus materiais de estudo comigo, e ao meu querido
cunhado Anderson, que mesmo em Goiânia me dava força e se tornou um irmão para mim.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
151
Atualmente, estou cursando o quinto período de Enfermagem, passei algumas
dificuldades, para pagar passagem e fotocópias, mas Deus me ajudou sempre e nunca deixou
faltar nada na minha vida. O Programa Conexões de Saberes foi uma dessas providências,
que não só me ajudou financeiramente, mas como pessoa. Os contatos com alunos de outros
cursos e as formações me ensinam muito. Agradeço a esse Programa, por ter me possibilitado
conhecer as crianças incríveis do Escola Aberta e poder ajudá-las também, dando orientações
que competem a minha área.
Agradeço toda essa história de vida ao meu Deus, pois, mesmo com lutas, Ele sempre
tem me dado a vitória.
152
Caminhadas de universitários de origem popular
Metáfora da borboleta
Taíssa Pereira dos Santos *
Cheguei ao mundo como um carma, minha mãe e meu pai, muito novos, tiveram que
casar graças a uma gravidez indesejada. Esse fato seria facilmente contornado se não fôssemos
pobres e se eu não tivesse nascido tão doente: adenóide, amidalite, intolerância à lactose e
uma série de doenças respiratórias que consumiram toda a grana de uma recente família.
Nesse período, meu pai, Márcio, era corretor de imóveis e minha mãe, Raíssa, recém-formada
em magistério, trabalhava como professora em Alcobaça, na Bahia, cidade pequena e litorânea,
onde eles residem até hoje.
O fato é que, às vezes, eu ameaçava morrer, parei de mamar aos dois meses e minha
alergia a leite, que me causava diarréia, fazia com que meus pais tivessem que comprar leite
de soja em Vitória, no Espírito Santo, já que nessa época não se vendia tal modernidade no
interior da Bahia. Por azar ou sorte, sobrevivi às diarréias, passando pela minha primeira
operação aos dois anos de idade, pois a minha adenóide não me deixava respirar.
Mas, como diz o velho ditado, “depois da tempestade, vem a bonança”. As condições
dos meus pais vieram a melhorar com a compra de um supermercado, então, com dinheiro
para cuidar da minha saúde, a família prosseguia feliz. Esses tempos realmente foram bons,
lembro-me que a minha irmã mais velha, fruto de um namoro da adolescência de papai, veio
morar conosco. Enfim, minha doente infância teve uma felicidade! Sempre tive muito orgulho
de ter uma irmã mais velha, a Andréa.
Não sei quantos anos eu tinha nessa época, mas quase completando cinco anos me
recordo que foram várias mudanças. Passamos a morar no centro da cidade, meus pais
adotaram uma menina mais velha que eu, a Cristiane, “mainha” descobre que estava grávida,
ou seja, eu, uma menina mimada e sozinha, passou a ter três irmãs! Pirei nessa época,
maltratava minha irmãzinha caçula, detestava a minha irmã adotiva, Cris, e fazia “calandu”
(birra) dentro de casa. E a partir daí, minha infância passou a ser marcada por revolta contra
minhas irmãs (excetuando a Andréa) e ciúmes dos meus pais.
Quando completei nove anos, o supermercado do meu pai veio a falir e começamos a
passar dificuldades em casa. Lembro-me que não tínhamos dinheiro nem para comer. Fui
obrigada, então, a me afastar dos amigos de infância mudando para uma escola pública, o
Colégio Estadual Lomanto Júnior, não gostava de estudar lá. Lembro-me que achava as
pessoas feias e mal-educadas, via coisas que não me agradavam, brincadeiras de mau gosto,
flatulências, e eu me sentia diferente daquele novo mundo no qual me inserira. Então me
*
Graduanda em Biologia pela UNIRIO.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
153
isolei, passei a terceira e quarta séries só. Foi uma mudança muito dolorosa para mim, pois
estava sem amigos e acho que o bom desses tempos sofridos foi o respeito que aprendi a ter
para com a minha irmã adotiva, Cristiane, e passei também a aceitar melhor a condição
financeira da minha família.
Quando passei para a quinta série, mudei para a cidade de Itamaraju, também do
interior da Bahia, onde fui morar na casa de tia Toinha e tio Jorge. Lá tive uma grande lição
de vida, pois tinha muita dificuldade de entrar na rotina da casa. Hoje, compreendo que
tudo o que passei serviu de experiência e foi um aprendizado. Nesse ano, convivi com
Maiza, minha grande companheira, filha caçula da minha tia. Ela sempre esteve ao meu
lado em tudo! Uma pessoa muito boa e religiosa que me fez refletir muito sobre quem eu era,
apesar de não concordar com suas idéias sobre religião.
No final da quinta série, retornei à casa dos meus pais, pois tinha apenas onze anos
e sentia muito a falta deles. Superado os problemas com minha irmã de criação (esse foi
sempre um problema interno e é a primeira fez em que falo sobre esse assunto), estava
pronta para finalmente ser uma garota da minha idade. Comecei, então, a sexta série no
Centro Educacional de Alcobaça, colégio público no qual cursei até a oitava série. Lá,
reencontrei Daniele, uma amiga de infância com quem eu brincava no Novelo, bairro
pobre de Alcobaça, e com ela descobri minha pré-adolescência, passei a andar também
com Vana. Formávamos um trio imbatível, aprontávamos muito no colégio e fora dele
também. Fomos chamadas algumas vezes na diretoria, nunca por causa de nota baixa, mas
sim porque éramos muito levadas. Falo delas porque foi a partir daí que percebi que algo
de errado estava acontecendo, pois eu terminava a oitava série e partia da minha cidade,
comecei a falar em vestibular, pensava no futuro e a Dani engravidou... fiquei muito
triste! Percebi que a lógica do mundo é torta, pois a queria junto de mim, chegando à
faculdade comigo.
Tristezas à parte, minha vida prosseguia, sempre fui boa para superações! Voltei para a
casa dos meus tios, em Itamaraju, com mais experiência e não passei mais por problemas de
convivência. Entrei para a primeira série e, no ano seguinte, a segunda série do Ensino
Médio, no colégio particular Doze de Agosto. E nesse tempo, sim, fui muito feliz! Dava-me
bem com meus tios, com meus pais (tirando as crises de ciúme do meu pai), fazia muitas
amizades, pois era muito comunicativa, curtia muito e compensava a grana que meus pais
pagavam no colégio sendo a melhor da sala e uma das melhores do colégio. Ah, sim! Sem
esquecer que, no Doze, estudava com bolsa parcial.
Enfim, cheguei ao terceiro ano, vestibular por perto, muitas dúvidas e decisões a
tomar. Resultado: entrei em uma crise existencial! Um período de autoconhecimento e
reflexão familiar e social. Um fato que me fez muito feliz nessa época foi a chegada do meu
sobrinho, Caio Júlio, filho da Milena, a filha mais velha do meu tio Jorge, minha “irmãzona”
também. O que tenho a dizer desse ano é que minha família deu o verdadeiro significado a
minha vida e não me incomoda o fato de que penso neles, antes de tomar qualquer decisão.
Terminado o terceiro ano, primeiro vestibular perdido, fui morar em Vitória, Espírito
Santo, com o apoio da minha mãe e do meu pai, que não mediram esforços para me colocar
no melhor cursinho do Espírito Santo. Consegui bolsa de estudos e fui morar em uma
república mista com meus amigos de Itamaraju, que, na verdade, se tornaram meus amigos
com a convivência. Nesse ano, nos tornamos politizados, nos revoltamos contra o “mensalão”,
discutíamos sobre o futuro do presidente, torcemos pelo PSol, ouvíamos Gonzaguinha,
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Caminhadas de universitários de origem popular
Chico Buarque, Elis Regina, Paulinho Nogueira, tocávamos violão e, para fechar, íamos
para a UFES (Universidade Federal do Espírito Santo) nos divertir com os universitários,
sem nos esquecer, é claro, de estudar.
Foi um ano muito rico cultural e intelectualmente, o resultado veio com a aprovação
no vestibular em Biomedicina da UNIRIO, curso com o qual não me identifiquei e, junto
com minha amiga, Lígia, resolvemos mudar para Biologia, curso que nos identificamos
pelo o que somos e pensamos.
Hoje, tenho muitos amigos no Rio de Janeiro e não falei da minha mudança para esta
cidade porque sinto como se aqui fosse meu verdadeiro lar. Moro com grandes amigas que
me acolheram num momento de muita dificuldade... a gente se aceita por lá! Estou mudando
de casa com minhas amigas e o momento é de muita instabilidade e vou carregar comigo
uma grande companheira, a Emily, ela foi a grande motivação da minha vinda para o Rio,
sempre sonhamos em morar juntas e agora vai rolar.
Minha vida continua muito instável, porém, com essas confusões, sempre adquiro
muitas experiências, respeito as diferenças, almejo sempre o bem ao próximo. E por isso
faço parte do Conexões de Saberes, Programa onde encontrei minha identidade, compartilho
minhas experiências com o grupo e visamos viabilizar o acesso e a permanência de alunos
da camada popular, como nós, na universidade pública.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
155
O sonho se alcança
Valéria Paixão de Vasconcelos Nepomuceno *
Não pensava que poderia fazer um curso universitário, principalmente em uma
universidade pública, achava fora da realidade de uma pessoa pobre. Então, um curso
técnico era a minha salvação e, como gostava muito de criança, tinha que ser algo nessa
direção. Um sonho de criança era ter uma escolinha, dar aula e ser muito inteligente, eu
tinha até um quadro de giz e apagador com que brincava sempre. “Vou ser professora!”
Nasci em uma família humilde. Meu pai, Victor Alves de Vasconcelos, é técnico em
máquinas eletrônica, estudou apenas até a 5ª série do Ensino Fundamental, chamado por
ele o tempo todo de científico. Minha mãe, Marli Paixão, do lar, também só estudou até aí.
Morávamos em Irajá, na cidade do Rio de Janeiro, até então, eu, meu pai e minha mãe.
O aluguel era muito caro e nos mudamos para a cidade de Nova Iguaçu, na Baixada
Fluminense, onde minha irmã Fabiana e meu irmão Júnior nasceram e crescemos. Meus pais
se esforçavam para dar aos filhos o essencial, principalmente nas escolas, que foram públicas,
mas na época tinham que comprar uniformes e material escolar, caso contrário, não
poderíamos freqüentar as aulas.
Em relação aos estudos, sempre fui esforçada, porque gostava de aprender. Quando
minha tia Josineide, que morava conosco, repetiu a 5ª série por duas vezes, cheguei a
alcançá-la e achei o máximo, porque iríamos ficar na mesma turma. Mas logo entristeci,
porque ela abandonou os estudos e se casou. Daí, pensei, mesmo que eu ficasse reprovada,
nunca deixaria a escola, não fiquei reprovada e me formei professora de 1ª a 4ª série. Não
pude nem pensar em faculdade ou qualquer curso preparatório, pois precisava trabalhar
para ajudar em casa.
Morávamos de aluguel e sempre estávamos nos mudando, mesmo por perto, até que
meu pai ficou com a casa de sua mãe, que faleceu. Voltamos, então, para Irajá e lá continuei
a lecionar, porém não tentei cargo público. Eu era considerada uma boa professora, pois
tudo o que fazia era com dedicação e os alunos me adoravam.
Aos 21 anos, me casei, meu marido e companheiro chama-se Alberto Vitorino
Nepomuceno. Voltei a morar em Nova Iguaçu, tive minha filha Agatha e, um ano e meio
depois, meu filho Vangler. Nessa época, morei na casa de minha sogra e comecei a trabalhar
em uma creche-escola onde meus filhos ficavam. Lá participei de um projeto da Fundação
para Infância e Adolescência/FIA, onde as crianças que estudavam lá e em outras escolas
iam para fazer as atividades escolares e extracurriculares, como teatro, artesanato e esporte.
*
Graduanda em Pedagogia pela UNIRIO.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Mais uma vez, me mudei, só que dessa vez para a tão sonhada casa própria, que
construímos bem no interior da cidade de Nova Iguaçu, no bairro Gerard Danon. Longe de
tudo, não deu para continuar trabalhando, pois a escola não custeou a passagem. E resolvi
melhorar o que aprendi a gostar naquela escola, fazendo cursos de artesanato, boneca e
tricô, enquanto meus filhos estavam na escola.
Minha irmã sempre pensou em fazer faculdade, falava de seu curso pré-vestibular e
ficou me incentivando, falava que meus filhos já estariam com 11 e 13 anos e eu poderia
estudar sem preocupação e que nunca é tarde para estudar.
Foi então que resolvi tentar Pedagogia, consegui isenção na UNIRIO e na RURAL e
fiz as provas, pensei que não tinha passado, porém consegui e fui chamada pela UNIRIO.
Minha irmã, também, só que ela tentou outros cursos de acordo com o que cada universidade
tinha e passou logo de primeira no que mais queria fazer, Oceanografia na UERJ.
Aos 34 anos, eu só pensei na oportunidade de voltar à ativa e não nas conseqüências,
como o tempo que levo para chegar à faculdade, que fica na Urca, onde eu só visitava as
praias, de vez em quando, além do preço das passagens que são altas. Mas, e agora, iria
desistir? Pois, se trabalhar, não dá tempo de estudar!
Prossegui e consegui a bolsa do Conexões de Saberes, que está me ajudando, sem falar
em como estou me reconhecendo com o programa. Agora, basta perseverar, pois estou
apenas começando a minha jornada universitária.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
157
Caminhando com motivação
Vanessa Adalgiza Pimenta de Carvalho *
Desde de pequena meus pais diziam: “a maior herança que um pai deixa para seus
filhos são os estudos e a curiosidade pelo conhecimento”, e acrescentavam “o estudo é algo
que ninguém pode lhe roubar”. Devido a esses fatos sempre tive enorme satisfação em
estudar e sempre me esforçava para corresponder às expectativas e aos esforços que ambos
sempre realizaram para que eu pudesse chegar à Universidade.
Fiz o Ensino Fundamental na rede pública e o Ensino Médio também, no Colégio
Estadual Heitor Lira, e ao final não me sentia preparada para prestar vestibular pois meu
curso era em formação de professores, as matérias como Matemática, Física e Química só
eram oferecidas no primeiro período, ficando uma defasagem de dois períodos nessas matérias
que são importantes para o processo de entrada na Universidade.
Chegar e concluir o 2º grau já foi difícil pelas dificuldades financeiras que encontrávamos
pelo meio do caminho, passar para a graduação pública seria mais difícil ainda tendo em vista
a nossa realidade, pois meu pai trabalhava por conta própria e sua situação estava cada vez
mais instável, minha mãe sendo manicure ganhava para ajudar nas despesas da casa. Voltei a
trabalhar, mas com o que ganhava não conseguiria pagar um curso pré-vestibular, então minha
mãe ficou sabendo, através de uma amiga, sobre os cursos comunitários e começamos a
procurar, até que ela conseguiu encontrar um, e me informou do que precisava para
ser entrevistada. Consegui passar na entrevista e estudei durante dois anos na Paróquia
São Sebastião de Olaria.
Eu estudava de Domingo a Domingo no Pré, sendo que durante a semana o horário era
na parte da noite e no final de semana era até às 14h. No começo foi difícil, pois trabalhava
durante o dia ficando cansada e muitas das vezes desmotivada, porém a minha vontade era
maior e mesmo desanimada continuava.
Tentei para todas as Universidades, exceto a Rural por ser muito distante de minha casa.
As minhas escolhas no primeiro ano foram: UERJ\Geografia, UFRJ\História, UFF\História e
UNIRIO\Museologia. No segundo ano a única mudança foi na UERJ, onde optei por História.
No meu segundo ano de cursinho consegui passar para a Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro, a UNIRIO, curso de Museologia, que apesar de ser um curso
pouco conhecido eu tinha me encantado com a grade que é oferecida. Era a realização de
um sonho, tanto pra mim como para meus pais, só que quando passou a alegria e a euforia
comecei a pensar em como ia me manter, pois meu curso é integral, manhã e tarde.
*
Graduanda em Museologia pela UNIRIO.
158
Caminhadas de universitários de origem popular
Durante os dois primeiros períodos da faculdade eu trabalhei. E então teve um momento
em que tive que optar entre trabalhar e estudar, pensei em desistir mas meus pais não
permitiram e disseram que nós iríamos nos apertar ainda mais, porém eu não iria deixar de
estudar. Nesse tempo na faculdade vi que algumas pessoas faziam doces, salgados dentre
outras coisas e deixavam no jardim do Centro de Letras e Artes – CLA com um potinho para
deixarem o dinheiro e iam para suas aulas, fiquei surpresa quando vi pela primeira vez, e
comecei a fazer brigadeiros para vender e com isso passei a bancar minhas passagens,
comida e tirava as cópias mais importantes.
Posteriormente, consegui um estágio no Museu Imagens do Inconsciente, passando a
ganhar uma bolsa-auxílio e pude também contribuir um pouco com as despesas da casa.
Estagiei durante dois anos no MII, limite máximo para estágio, e quando estava prestes a
sair fiquei sabendo da possibilidade de entrar no Programa Conexões de Saberes, fiz a
entrevista e fiquei muito feliz e tranqüila, quando vi que faria parte desse Programa.
A oportunidade de trabalhar em um Programa que visa tornar acessível a entrada de
pessoas que, como eu, são de origem popular, auxiliar na formulação de propostas que
permitam a sua permanência e poder, através do Escola Aberta, trocar experiências, ser um
referencial positivo e incentivar crianças e jovens a chegarem à Universidade, é pra mim
muito gratificante. Além de estar aprendendo, o Programa permite que eu conclua meu
curso. Todas as dificuldades que vivi foram necessárias, me servindo de aprendizado, onde
aprendi que na vida temos que ultrapassar os obstáculos que ela mesma nos impõem e
nunca desistir, buscando sempre realizar nossos projetos.
Essa é a trajetória de quem sempre teve nos pais a ajuda e a motivação para conseguir
atingir os objetivos, acreditando num futuro melhor e desejando que fosse independente.
Tudo que conquistei até hoje foi devido aos esforços e aos sacrifícios dessas duas pessoas
que tanto amo e que pretendo retribuir, em breve, todo esforço e sacrifício que eles fizeram
e que ainda fazem.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
159
Minha caminhada
Vanessa Barbosa de Brito *
A formação da minha família se deu da seguinte maneira, minha mãe veio, junto com
seus pais e mais sete irmãos, da Paraíba para o Rio de Janeiro, em busca de melhores
condições de vida. Chegando aqui, foi morar em uma comunidade popular localizada no
bairro de Benfica. Nessa época, ela era adolescente e para ajudar a sua família não deu
continuidade aos seus estudos, e logo foi trabalhar. Na mesma localidade em que ela morava,
residia o rapaz que, após alguns anos, seria meu pai, ele vivia com seus avós. Ao se
conhecerem, logo se apaixonaram e, em menos de três anos, se casaram. Após o casamento,
foram morar de aluguel, dividiam as despesas com o suor do trabalho dos dois e, aos poucos,
a vida foi melhorando.
Depois de dois anos de união, decidiram que era já era hora de ter filhos e, assim, nasceu
a primogênita da família, minha irmã Vivian. Quatro anos mais tarde, conseguiram realizar o
sonho da casa própria, melhor dizendo, do apartamento, pois compraram um da Campanha
Estadual de Habitação do Rio de Janeiro - CEHAB. No ano seguinte, devido a um “descuido”
ou, se preferir, um “erro de cálculo”, chegou a minha hora de nascer. Nasci no dia sete de abril
de 1981. Tive uma infância muito feliz e, apesar de sermos uma família humilde, meus pais
sempre batalharam muito para não deixar nada faltar em casa. Desde o meu nascimento, moro
em um conjunto habitacional da CEHAB. Quando eu era pequena, o nosso apartamento só
tinha um quarto, de modo que eu e minha irmã o dividíamos e meus pais dormiam na sala.
Mesmo com todas as dificuldades que enfrentávamos, éramos muitos felizes e unidos.
O nosso bairro, Senador Camará, fica situado na zona oeste do Rio de Janeiro e, além
de farto comércio, tem transporte para vários lugares. Gosto tanto do bairro que escolhi
continuar vivendo nele após me casar. O único problema, ao menos o que mais incomoda,
é a presença do tráfico de drogas. Desde a minha infância, percebi que os traficantes
influenciavam a vida dos moradores, mas naquela época eles cultivavam uma imagem
paternalista ou assistencialista, algo assim, de maneira que ajudavam os moradores
comprando gás e alimentos, apaziguando brigas de famílias e respeitavam as pessoas. Ao
contrário do que fazem hoje, já que andam armados, expondo seus “produtos” e fazendo
questão de cultivar o temor entre as pessoas. Do passado, só me recordo de algumas conversas
de adultos sobre a morte de algum bandido e os dias em que a minha mãe não me permitia
brincar na rua porque a polícia estava na comunidade.
*
Graduanda em Pedagogia pela UNIRIO.
160
Caminhadas de universitários de origem popular
Minha vida escolar
Com três anos de idade, iniciei minha vida escolar em uma escola particular, na qual,
através de fotos e algumas recordações, posso afirmar que vivi bons momentos. No entanto,
ao ingressar no primário, meus pais não podiam mais me manter na escola particular, por
questões financeiras, então fui transferida para uma escola pública municipal. Sendo assim,
cursei meu primário na Escola Municipal Dias Martins.
Logo na primeira semana de aula, minha mãe foi chamada pela diretora e questionada
se gostaria que eu prestasse uma prova para avaliar minha aptidão para cursar a 2ª série, pois
a professora achava que eu estava adiantada em relação ao conteúdo e ao desenvolvimento
dos demais alunos da 1ª série. Minha mãe ficou muito feliz e me estimulou a aceitar a
mudança, mas até hoje me questiono se foi prejudicial ou favorável a mim.
A avaliação era em relação ao conteúdo programático, pois fui para a turma da 2ª série
e tudo foi um choque para mim. Todas as crianças eram mais velhas do que eu, e já tinham
malícia, coisa que eu ainda não tinha, por ter estudado sempre em uma escola particular
com crianças calmas, carinhosas e bem educadas. Senti-me perdida no meio daquelas crianças
barulhentas e com mau comportamento, que não deixavam nem a professora abrir a boca.
Foi difícil a minha adaptação nessa turma. Lembro-me que a toda hora eu pedia para ir ao
banheiro, somente para chorar. Meu desabafo era o choro, uma vez que eu não me achava no
direito de contar meu sofrimento à minha mãe, pois sabia que ela tinha ficado muito feliz
com a minha promoção de série, e não queria contrariá-la.
Contudo, meu desempenho escolar não foi mais o mesmo. Sempre fui uma aluna
exemplar, mas não conseguia acompanhar o ritmo da turma e prossegui o meu primário
inteiro somente com notas regulares.
O primeiro ponto decisivo na minha trajetória escolar foi o ingresso no ginásio, quando
minha mãe optou por não me matricular em uma escola do nosso bairro. Estudei em uma
escola do bairro vizinho, Bangu. Eu marco esse momento como crucial, pois o simples fato
de sair da minha comunidade, de precisar utilizar ônibus e me relacionar com outras pessoas
mostrou que eu podia sempre ir além e que a minha comunidade não era o meu limite.
Quando estava na 8ª série, minha turma foi avisada que a escola federal, CEFET, iria realizar
um sorteio para escolher alguns alunos para participarem de sua primeira turma de alunos do curso
prepatório PRÉ-TÉCNICO. Fiz minha inscrição e, graças a Deus, fui sorteada. Eu acordava todos
os dias às 5:00 da manhã, pegava o ônibus com meu pai, às 5:30, e seguia para o CEFET. Participava
do curso até às 11:30 e voltava de trem. Tudo correndo para que chegasse a tempo na outra escola
onde eu cursava a 8ª série. Freqüentar o curso preparatório foi muito importante como experiência
de vida, já que pude conhecer novas pessoas e ambientes, mas em nível educacional não consegui
atingir todos os propósitos. Penso que tal “insucesso” pode ter ocorrido por sermos a primeira
turma desse projeto, de modo que ele ainda não estava muito bem estruturado e ainda havia déficit
de professores e material didático. Sem contar que, na época do curso, ocorreu uma greve de,
aproximadamente, três meses, atrasando todas as matérias. No final desse mesmo ano, prestei o
exame, mas, como já esperava, não consegui passar para o CEFET.
A escola de Ensino Médio estadual para qual eu fui encaminhada não oferecia um
bom ensino. Então, minha mãe me matriculou em uma escola particular que fica ao lado da
paróquia que freqüentávamos. Por meio de um pedido de minha mãe ao padre, consegui
uma bolsa de estudos, o que foi muito bom, pois o valor da mensalidade estava muito alto.
O padre conseguiu um abatimento em que teríamos que pagar somente 60% da mensalidade.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
161
Minha mãe sempre foi uma pessoa muito religiosa, ela participava da pastoral da
criança. Essa pastoral desenvolvia várias atividades com as famílias da nossa comunidade
e também tinha uma parceria com alguns projetos, entre eles havia um especial que
encaminhava adolescentes de 14 a 18 anos para um estágio remunerado, de meio salário
mínimo, em algumas empresas municipais do Rio de Janeiro. Ao tomar conhecimento dessa
oportunidade, minha mãe me questionou se eu não achava interessante participar. Aceitei
porque achava que seria bom como uma primeira experiência profissional, além de que o
dinheiro ajudaria no orçamento da minha família. O único problema seria o fato de precisar
trocar de turno na escola, pois precisaria estudar à noite, mas isso logo foi resolvido.
Sendo assim, aos quatorze anos comecei a trabalhar em uma empresa municipal, situada
em Botafogo, executando algumas funções administrativas. Eu gostava muito daquele
ambiente, dos funcionários e, principalmente, do grupo de estagiários. Permaneci nesse
estágio por um ano e oito meses, saí porque estava atrapalhando meus estudos e por ver que
aquele projeto não tinha perspectivas para o futuro. Sentia que se continuasse ali, iria
simplesmente terminar o Ensino Médio e ingressar no mercado de trabalho em alguma
função subalterna, sem nenhuma promoção. Eu sabia que não podia me contentar com isso,
precisava realizar meu sonho acadêmico, ter um diploma.
Concluí o Ensino Médio, mas tinha consciência que não teria possibilidade de prestar
o vestibular devido ao meu curso ter sido técnico. Meus pais, sabendo do meu desejo de
estudar, se esforçaram, mais ainda, cortaram gastos extras e conseguiram pagar um curso
pré-vestibular para mim. Freqüentei o curso, corri atrás da isenção da taxa de inscrição de
todas as federais e prestei o vestibular para Psicologia. Infelizmente, não consegui passar
em nenhuma faculdade. Diante desse fato, fiquei muito decepcionada, mas minha querida
mãe me deu muita força e não me deixou desistir. Como prova de que acreditava no meu
potencial, ela pagou mais um ano de “cursinho” para mim.
Nessa nova tentativa, fui tomando mais consciência da importância do vestibular.
De modo que me dediquei aos estudos quase que integralmente. Após muita reflexão e
conversas com amigos, resolvi trocar minha opção de curso. Ao invés de tentar Psicologia,
decidi concorrer à vaga de Pedagogia. Tomei essa decisão por saber que o horário do
curso de Psicologia era integral, o que significaria que eu não poderia trabalhar para
manter meus estudos. Também levei em conta o fato de que as oportunidades nessa área
eram muito restritas.
Novamente, consegui isenção em todas as inscrições das federais, prestei o vestibular
e passei para a segunda fase de todas, o que me deixou muito feliz e cansada, pois vivi uma
intensa maratona de provas e todos os locais de provas eram muito distantes. Eu precisava
acordar de madrugada, pegar ônibus e ir rezando para não pegar nenhum engarrafamento.
Quando chegou a época dos resultados, fui conferindo todos: UFRJ, UFF e UERJ. A cada
lista, aumentava minha decepção, pois não encontrava meu nome, apesar de ter conseguindo
atingir a média para ser classificada. Já estava sem esperança de ser uma estudante
universitária. Ao desabafar com uma amiga, ela me convidou para acompanhá-la a um
escritório, a fim de tentarmos uma vaga de emprego em uma rede de supermercados, topei
na hora, pois eu precisava ajudar nas despesas da minha casa, haja vista os dois anos de
tantos gastos. Enquanto estávamos na fila, vi um rapaz lendo um jornal de esportes que, na
capa, tinha uma manchete ressaltando a lista de aprovados da UNIRIO. No momento em que
eu li aquilo, me dei conta que tinha esquecido de conferir o resultado dessa universidade.
162
Caminhadas de universitários de origem popular
Então, mais que depressa, pedi o jornal emprestado ao rapaz e busquei meu nome,
ansiosamente. Para meu espanto e alegria, meu nome ali estava, enfim havia conseguindo a
tão sonhada vaga em uma universidade federal.
Minha família toda ficou muito feliz. Era a realização de um sonho coletivo. Passado
a euforia, começamos a pensar nas questões finaceiras e na distância entre a UNIRIO e a
minha casa. Sem contar que o curso era noturno, o que agravava mais as preocupações.
Mesmo com todos esses “probleminhas”, valia a pena enfrentar o desafio, pois eu e meus
familiares tínhamos a consciência de que tudo o que acontece na vida de pessoas humildes
é sempre através de muita luta.
Enfim, chegou o tão sonhado primeiro dia de aula. Ao entrar naquele espaço, eu me senti
muito feliz e perdida. Não possuía conhecimento da rotina universitária, mas logo fiz algumas
amizades que ajudaram na minha adaptação naquele ambiente. Um fato interessante é que, a
partir do primeiro dia, os alunos já haviam se dividido em grupos de acordo com sua classe
social. No grupo em que me enturmei, todas tinham, mais ou menos, o mesmo perfil social.
Quando estava cursando o segundo período, fui trabalhar em uma creche
comunitária conveniada com a Prefeitura, no meu bairro. Eu adorava o trabalho, mas o
problema era o horário. Eu trabalhava no turno da tarde, das 13h às 17h, e estudava à
noite, por isso, eu chegava atrasada todos os dias na faculdade, além de muito cansada.
Mesmo com essas dificuldades, prossegui com o trabalho e a graduação. No quarto
período, precisei trancar o curso devido à violência do movimento do tráfico no meu
bairro. As facções estavam em guerra, promovendo uma onda de terror na nossa
comunidade e impondo um toque de recolher a partir das 22h. Nos primeiros dias,
tentei dormir na casa de uma amiga, mas me sentia muito mal, então, optei pelo
trancamento de minha matrícula.
No período seguinte, retornei e, assim, prossegui com o curso. Nessa época, fiquei
noiva. Após alguns meses de noivado, engravidei. Esse fato causou um alvoroço na minha
família, só que, mesmo estando grávida, não desisti. Continuei a estudar e a trabalhar
grávida. Em fevereiro de 2003, nasceu minha querida filha, Maria Beatriz. Após o seu
nascimento, continuei a estudar. Quando a minha filha completou seu primeiro ano de vida,
engravidei novamente. Nesse momento, eu me desesperei. Percebi que o sonho de me
formar estava escapando das minhas mãos e tudo por minha culpa. Se já não fosse o bastante
ter outro filho, ainda estudando, outro agravante tirava meu sono: eu e meu marido
morávamos na casa dos meus pais. De modo que o clima estava muito tenso. Na verdade, eu
estava com vergonha dos meus pais, da minha mãe para ser mais exata, já que ela havia me
incentivado tanto nos estudos. Sendo assim, eu e meu marido tomamos a decisão de morar
de aluguel. Contudo, o valor do aluguel era alto, meu marido não podia pagar sozinho,
então tive que trancar mais uma vez o meu curso. Nessa época, perdi totalmente as esperanças
de me formar e já tinha tomado a decisão de não retornar à UNIRIO. Depois de alguns meses,
conseguimos comprar um apartamento financiado.
Após uma gravidez super atribulada, nasceu meu caçulinha Yuri. Graças a Deus, ele
veio ao mundo lindo e forte. Com o nascimento do meu segundo filho, veio, também, meu
amadurecimento como mãe e mulher. De maneira que percebi o quanto era importante meu
retorno aos estudos. Cheguei à conclusão de que minha formatura poderia proporcionar
uma vida melhor para os meus filhos. Formando-me, eu teria a certeza de que eles, no futuro,
não se sentiriam culpados por eu não ter concluído o curso.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
163
No inicio do ano de 2005, quando tudo parecia favorável ao meu retorno à faculdade,
tive que enfrentar outro desafio. Ao descer a escada do meu prédio, sofri um acidente. Para
meu desespero e de toda a minha família, eu tinha fraturado a tíbia e a fíbula da perna
esquerda, de modo que precisaria ficar internada para aguardar uma cirurgia ortopédica. Foi
uma fase muito dolorosa para todos. Dois meses após a cirurgia, iniciei a fisioterapia. No
começo, por não poder andar, me locomovia com cadeira de rodas. Depois de alguns meses,
passei a andar de muletas e, no final desse mesmo ano, voltei a andar sem apoio.
Apesar de toda essa via-crucis, não desisti da universidade. Assim que pude, entrei
com o pedido de reingresso, que, graças a Deus, foi aceito. Voltei à UNIRIO! No primeiro
semestre de 2006, eu estava de volta à minha universidade, muito feliz e decidida de que,
somente com meu canudo na mão, sairia de lá. Meu marido e minha mãe estavam bancando
meus gastos com passagens e fotocópias. No final desse semestre, tomei conhecimento do
Programa Conexões de Saberes, me inscrevi e fui aceita. A minha entrada no Programa foi
mais uma confirmação de que eu estava seguindo o caminho certo. O valor da bolsa me
ajuda muito nas despesas de minha permanência na universidade, mais do que isso, ter
entrado para o Conexões significou, para mim, ingressar num grupo no qual eu me sinto
feliz e estimulada para seguir em frente.
164
Caminhadas de universitários de origem popular
Lembranças da Colina
Luciana Campos de Golarte *
Nasci na colina do Estácio de Sá, verso cantado em prosa pelo meu pai responsável
pelo nome que tenho... no dia 28 de julho, à 01:30 da madrugada, nasci no Hospital do
Corpo de Bombeiros, como a segunda filha do casal que morava no Morro de São Carlos.
Ambos filhos de mães e pais guerreiros, que, através do trabalho, davam conta do sustento
e do cuidado com os filhos.
Minha avó paterna morava numa casa de estuque, aquela que é feita de madeira, barro
e latão, muito comum nas comunidades populares. Tinha o chão onduloso, porque era de
barro e iluminada por lampião. Eu adorava chegar lá e beber chá mate bem quentinho com
biscoito cream cracker e sentir aquele cheiro de casa limpa e cuidada. Dos becos, eu sabia
todos os esconderijos e caminhos que me levavam à vitória do pique-esconde. Meus amigos,
quase todos da minha idade, eram meus primos e vizinhos. Cada um tinha hora para tudo.
Para brincar e para estudar.
Quando a cambada não estava nos becos, era sinal de escola ou de serviços domésticos.
Como muitos de nossos pais e mães trabalhavam fora, éramos nós quem também cuidávamos
da casa. Meu pai, nos fins de semana, sempre me levava para passear no parquinho do
Flamengo (na Zona Sul do Rio), onde brincava descalça, com o cabelo cheio de cachinhos
nas casinhas, nos balanços e escorregas. Depois de tanta brincadeira, íamos tomar o famoso
caldo-de-cana com pastel de carne nos botecos do Flamengo. Pouco a pouco, fui me afastando
dos meus amigos e parentes do morro e fiz novas amizades no parquinho e na escola que
ficava na Rua Haddock Lobo, na Tijuca.
A cobrança nos estudos era constante. Meu pai e minha mãe todos os dias me mandavam
fazer cópia de livros e textos para ter boa caligrafia. Então, apoiava uma fina tábua de
madeira em cima das pernas e colocava por cima o livro e caderno para copiar as histórias do
Sítio do Pica-Pau Amarelo e as poesias de Cecília Meirelles...
De noite, à sombra da cozinha, ficava dançando como bailarina, rodopiando pra cá e
pra lá, enquanto meus pais viam ou fingiam que viam TV, porque, alguns dias depois, meu
pai me levou para participar de uma seleção de balé clássico, na Escola de Dança Maria
Olineiva, que fica na Lapa.
No dia do teste, eram tantas, mas tantas meninas que parecia que eu estava ali a
passeio, porque não daria tempo para todo mundo fazer o teste. Mas deu tempo, sim. O teste
foi feito ao som do piano. Dancei tal como dançava na sombra lá de casa. E, para surpresa
*
Mestranda em Educação pela UNIRIO.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
165
minha, fui selecionada com uma excelente pontuação. Na entrega do resultado, a pianista
perguntou ao meu pai se tínhamos piano em casa, mas se ela soubesse que, lá onde morava,
mal cabia uma mesa na sala! Cursei as aulas de dança pouco tempo, porque não tivemos
dinheiro para custear as idas e as roupas. Acabei perdendo a bolsa. E saí daquele sonho. Mas
fazer o quê?
Na escola, nunca dei esquentação de cabeça. Sempre tirei boas notas e contei com
elogios da Tia Regina e da Tia Vera. Também, se uma notinha ficasse vermelha, era palmada
na certa! Ao terminar a 4ª série, conseguimos uma matrícula no Instituto de Educação do
Rio de Janeiro, depois de eu ter sido tomada pelo porteiro da escola como afilhada, em troca
de um dinheiro para uma cerveja. Com a vaga garantida, cursei da 5ª série ao 3º ano do
Ensino Médio no colégio considerado de excelência por minha família.
Aos 18 anos, aproximadamente, tive meu primeiro emprego como auxiliar de caixa de
uma grande loja de roupas, onde percebi que aquele trabalho não era meu sonho. Então,
enfiei na cabeça, que iria entrar na universidade pública, porque através dela teria um
trabalho e uma vida melhor. Matriculei-me, então, anos depois, num pré-vestibular
comunitário na 1ª Igreja Batista, no bairro Estácio de Sá. Estudava dia, noite e finais de
semana. Levava apostilas para o trabalho e dava umas lidas no ônibus e nas horas vagas.
Compartilhava com os amigos do trabalho o desejo de entrar na universidade, chegando a
ser, aos olhos de um antigo namorado, obsessiva e chata! Ainda bem! Todo o esforço deu
certo. Passei, no ano de 2000, para o curso de Pedagogia da UNIRIO, buscando conciliar o
emprego com as aulas do período noturno. Não foi fácil. Cheguei a pedir demissão do
trabalho, porque era preciso haver dedicação nos estudos, então, mais uma vez, contei com
a força e o apoio de meus pais, que não fizeram questão da minha ajuda nas despesas da casa
para o pagamento das contas, principalmente.
Nos meados de 2003, conheci uma professora recém-chegada à UNIRIO, a professora
doutora Lúcia Mello, quando, em sala em sala, apresentava a temática de sua pesquisa,
intitulada: “A imagem corporal do adolescente: pertencimento e exclusão”. Fiquei
interessada no assunto e me coloquei à disposição como voluntária. Com o tempo,
conseguimos financiamento da FAPERJ, o que ajudou no custeio das despesas com os
estudos e nas viagens em seminários ou apresentações de trabalhos.
Agora, faço mestrado em Educação e trabalho junto ao Conexões de Saberes, fazendo
jus aos ensinamentos dos meus pais, que me diziam: “Conhecimento, filha, é a única coisa
que a gente leva, independente de qual origem somos”.
É dessa origem que me orgulho e canto:
“Nasci na colina do Estácio de Sá
Tal qual partideiro aprendi improvisar
Nas rodas de samba aprendi declamar poesias
Transformando em música popular
Saí do berço da Deixa Falar
Lá nasci e me criei
Aprendi tudo que sei
Desse mundo de ilusão
Hoje me encontro no asfalto
Vou cantar partido alto
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Caminhadas de universitários de origem popular
Para essa miscigenação
Vou disfarçar a amargura
Repousar na brandura no tom da viola
Carregar amor à bandeira da minha escola
Viajar ao passado
Andar lado a lado
Com a inspiração
Sentir necessidade de compor uma linda canção
Nasci.”
Canção de autoria do meu grande mestre e exemplo:
Meu pai, Luciano José Golarte
(Luciano Primo da Escola de Samba Estácio de Sá).
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
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Do Ita do Norte para a universidade
Monica Borges Monteiro*
Peguei um Ita no norte
Pra vim pro Rio morar
Adeus meu pai, minha mãe
Adeus Belém do Pará
Ai, ai, ai, ai
Adeus Belém do Pará
Ai, ai, ai, ai
Adeus Belém do Pará
Vendi meus troços que eu tinha
O resto dei pra “aguardar”
Talvez, eu volte pro ano
Talvez eu fique por lá.
Dorival Caymmi
Vim para a metrópole do Rio de Janeiro cheia de sonhos no convés do meu Ita do
Norte. Assim como a canção de Dorival Caymmi, deixei meu pai, minha mãe, minha irmã e
minha Belém do Pará. Ai, ai, ai, como dói estar tanto tempo longe.
Contudo, esse saudosismo não foi sempre assim. No início, tinha vergonha de falar
sobre minha terra, porque era um pouco tímida, mas também porque falar de lá era muito
cansativo, principalmente se abordasse a descendência materna dos povos marajoaras.
Primeiro, esclarecer o que é o Marajó1, que lá não morávamos em ocas, que não usávamos
flechas para caçar, que as ruas têm asfalto e as casas têm televisão ligada na Rede Globo.
Também tinha que explicar que quem nasce no Pará não é “paraíba”, é paraense e que esse
estado pertence à região Norte.
*
Mestranda em Educação pela UNIRIO.
A Ilha de Marajó pode ser considerada um lugar à parte do Brasil. A vida é mais calma, a fauna e a flora
são exóticas e as paisagens mudam de tempos em tempos. Localizada bem ao norte do estado do Pará, está
é a maior ilha fluviomarinha do mundo. Em toda a Ilha de Marajó, moram cerca de 250 mil pessoas,
quatro vezes menos que na capital do Pará, em um espaço equivalente aos estados de Alagoas e Sergipe
juntos. Banhada pelo Oceano Atlântico e pelos rios Amazonas e Tocantins, Marajó conta com a maior
criação de búfalos do Brasil. O vaqueiro, aliás, é o personagem típico da Ilha. Além dos búfalos fornecerem
o couro e a carne, eles também são o meio de transporte. As grandes criações da Ilha estão do lado mais
próximo a Belém, por ser predominantemente composto por planícies. Na região, vive a maioria dos
habitantes. Soure, que é considerada a capital, tem pouco mais de 20 ruas e todas são conhecidas por
números. A 5ª avenida é a principal.
1
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Caminhadas de universitários de origem popular
Isso era muito desgastante, pois, além de proporcionar um sentimento de alienígena
em uma cidade como o Rio de Janeiro, que é freqüentada por cidadãos do mundo, pareceme esquizofrênico o fato de pessoas conhecerem a Disney e não conhecerem o Pará. Logo o
Pará2, do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, do Pato no Tucupi, da Maniçoba, do Tucunaré.
Esse estado tem que ser conhecido por todos os brasileiros e nossos irmãos latinos. Querem
saber uma característica do paraense? Ser orgulhoso. Não sabemos muito bem por que, mas
sabemos que nossa terra tem tudo de bom que foi criado, esse é um sentimento de caboclo
que vive na ribeirinha do rio. Agora mudei. Agora posso falar de minhas origens, detalhe por
detalhe, porque aprendi a valorizar minha cultura e sei que minha história tem muitas
semelhanças com milhares de outras, que sonham com um mundo melhor.
Lá vou eu, lá vou eu, lá vou eu
Me levo pelo mar da sedução (sedução)
Sou mais um aventureiro
Rumo ao Rio de Janeiro, adeus adeus,
Adeus Belém do Pará
Dimá Chagas, Arizão, Celso Trindade, Bala, Guaracy e Quinho3
Foi em um mar de sedução chamado basquetebol, que me fez passar parte da minha
adolescência em uma quadra, não importava em qual bairro ou cidade ou estado ela estava,
o que importava era estar lá, sonhando ser jogadora de basquete. Logo eu, mulher, paraense
descendente de marajoara e com apenas 1,70cm de altura, achava que um dia poderia fazer
parte da seleção brasileira de basquete feminino.
Esse sonho começou na Escola Estadual Augusto Montenegro, em Belém, quando
descobri que não gostava de Educação Física. Para fugir das aulas, entrei para a equipe de
basquete. Nos jogos intercolegiais, um técnico do Clube do Remo4 me chamou para fazer
parte da equipe. Como atleta eu poderia frequentar as dependências do clube. Logo eu,
estudante de escola pública, filha de pais que concluiram o equivalente ao atual Ensino
Médio e moradora da periferia do bairro Telégrafo-sem-fio, em um tradicional clube
belenense. Posteriormente, isso me causou grandes transtornos.
No inicio era legal, conhecer gente nova, outras culturas, diferentes hábitos, tomar
banho na piscina, entre outros prazeres. Depois essa convivência foi ficando rara, isso
porque eu não tinha tempo para o lazer, pois estudava, trabalhava e treinava basquete. Essa
parte do trabalho foi dura. Minha mãe, já separada do meu pai e tomando conta da prole (eu
e minha irmã), havia perdido o emprego. Com a rescisão salarial, comprou uma barraca na
2
O estado do Pará está ligado à Amazônia e é uma terra de incrível beleza e grande riqueza cultural e
folclórica. Belém, considerada a capital da Amazônia, foi fundada em 1616. Banhada pela Baía do
Guajará e pelo Rio Guamá. Devido à proximidade com a linha do Equador, seu clima é quente e úmido.
Suas praças são arborizadas, onde a mangueira é uma espécie predominante, por isso é conhecida como
a cidade das mangueiras. Outro destaque do Pará é a culinária exótica, autenticamente brasileira, descendente
direta dos povos de origem das florestas.
3
Peguei o Ita no Norte, um samba composto por Demá Chagas, Arizão, Celso Trindade, Bala, Guaracy e
Quinho e com o carnavalesco Mário Borriello, com o qual o Grêmio Recreativo Escola de Samba
Acadêmicos do Salgueiro conquistou, em 1993, seu último título do carnaval carioca.
4
Em Belém, existem dois grandes clubes: o Clube do Remo e o Paissandu, suas torcidas são inimigas desde
que estavam na barriga da mãe.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
169
feira para vender farinha d’água. Eu e minha irmã tinhamos que ajudá-la na venda. Nesse
período, chegava na feira às quatro da manhã, saía às dez para cozinhar o almoço, às treze
horas estava na escola, às dezoito horas estava no treino e às vinte e duas horas estava
exausta na cama. Mas o cansaço não era o pior sentimento. O pior era quando um amigo de
escola ou do clube chegava na barraca para comprar farinha. Naquele momento, eu morria
de vergonha. Não entendia por que precisava trabalhar e eles não, por isso, como toda
adolescente, me sentia anormal. O dia mais constrangedor na semana era sábado, o dia mais
movimentado da feira. Logo cedo, meus amigos passavam na frente da barraca a caminho
da praia ou do clube, eu ficava ali, trabalhando pacas! Foi um período de muita insegurança,
fragilidade familiar e poucos sonhos.
Um dia, depois da chuva, achamos um “olho de boto”5 perdido na rua. Depois disso
um monte de coisas boas aconteceram. Minha mãe conseguiu um novo trabalho e eu fui
convocada para a seleção paraense, categoria infanto (até 14 anos). Eram os jogos estudantis
brasileiro (JEB’S). Foi quando conheci Brasília, fique encantada e ao mesmo tempo
assombrada com as características do local, cheio de viadutos e sem nenhum igarapé6. Na
época, eu achava que uma cidade que não tinha igarapé, não era boa. Agora tenho certeza
que uma cidade pode ser muito melhor com um igarapé, mas também estou convencida que
o mar é um excelente substituto para os igarapés. Sei que isso é um contrasenso ecológico,
pois o igarapé é muito menor que o mar, mas paraense pensa invertido.
Depois de conquistar o terceiro lugar, vencendo a Paraíba, fortíssimo time, voltamos
para Belém e foi a glória. Entrevistas, reportagens e patrocinador para o time, o que significou
maior investimento em material esportivo para as atletas, por isso ganhei um tênis de basquete
novinho. Com esse tênis, eu tirava a maior onda de atleta na escola, isso me proporcionava
status, o que era representado na ajuda dos colegas com as tarefas, na flexibilidade com as
faltas nas aulas pelos professores e na tolerância do supervisor pelos atrasos. Eu me transformei
em referência para a juventude daquela comunidade, ratificando o jargão de que o esporte
afasta o jovem das drogas e reduz a violência.
O número de jogos foi aumentando e ficava cada vez mais difícil conciliar os treinos
com o estudo. Nesse período, as atletas ganhavam ajuda financeira, o que contribuia muito
com as despesas de casa. Aos dezessete anos, recebi um convite para jogar no Clube Botafogo,
no Rio de Janeiro. Na minha imaginação, era o grande passaporte para um teste na seleção
brasileira, devido à proximidade com São Paulo (principal centro de formação de atletas de
basquetebol no Brasil). Estava concluindo o Ensino Médio em escola pública e deveria
prestar vestibular, então, não pensei duas vezes, abandonei os estudos e dei adeus a Belém
do Pará, em busca do sonho.
5
Tradicionalmente na região Norte o “olho de boto” é um amuleto que dá sorte.
Igarapé é o nome de “pequeno curso d’água”, palavra que no Brasil foi adotada do nheengatu,
originária do tupi-guarani. O igarapé (igara, que significa embarcação escavada no tronco de uma só
árvore, e pé, que significa caminho), em termos científicos, significa cursos de água amazônicos de
primeira ou segunda ordem, braços estreitos de rios ou canais existentes em grande número na bacia
amazônica, caracterizados por pouca profundidade, e por correrem quase que no interior da mata. A
maioria dos igarapés tem águas escuras semelhantes às do Rio Negro, transportando poucos sedimentos.
São navegáveis por pequenas embarcações e canoas e desempenham um importante papel como vias
de comunicação.
6
170
Caminhadas de universitários de origem popular
Sou mais um aventureiro
Rumo ao Rio de Janeiro, adeus adeus,
Adeus Belém do Pará
Um dia volto, meu pai
Não chore, pois vou sorrir
Felicidade, o velho Ita vai partir
Oi no balanço das ondas, eu vou
No mar eu jogo a saudade, amor
O tempo traz esperança e ansiedade
Vou navegando em busca da felicidade
Em cada porto que passo
Eu vejo e retrato em fantasias
Cultura, folclore e hábitos
Com isso refaço minha alegria
Chego ao Rio de Janeiro
Terra do samba, da mulata e futebol
Chegar aqui foi duro, além da cidade ter características culturais muito diferentes
da minha, eu estava sozinha e morando em alojamento de atletas. Essa temporada foi a
mais dificil, pois tinha que me superar em muita coisa, principalmente na maturidade que
não tinha. Como atleta, em geral, eu ia bem, o dinheiro que ganhava dava para ajudar a
minha mãe e me sustentar. O que faltava era pespectiva para o futuro, pois sabia que a
carreira de atleta era efêmera.
Dito e feito, após jogar em diversos clubes no eixo Rio–São Paulo, sem nunhum
convite à seleção brasileira de basquetebol, percebi que precisava de outros projetos na
minha vida. Voltar para Belém era impensável sem ter conseguido entrar para a seleção.
Era orgulho mesmo, pois tinha vergonha de ser encarada como fracassada.
Com o tempo, os contratos no basquete foram ficando mais escassos e para sobreviver
eu precisava de outra fonte de renda. Fui trabalhar no Mc’Donalds. Nesse momento,
não era mais adolescente e consegui não ter vergonha dos meus amigos que freqüentavam
o restaurante. Fiquei um ano e meio nesse trabalho para descobrir que precisava voltar
a estudar.
Prestei vestibular para Educação Física na Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ) e na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com a
cara e a corragem, pois não tinha dinheiro para pagar cursinho e não tinha
conhecimento da existência de cursinhos comunitários. Recordo-me do dia em que
saiu o resultado do vestibular, vi que tinha sido aprovada para as duas universidades,
comemorei sozinha, bem diferente do Pará, onde uma notícia como essa é motivo para
um grande festa.
Optei pelo Bacharelado em Educação Física pela afinidade com o esporte
(basquetebol) e pela UFRJ, porque oferecia curso noturno, o que me possibilitava continuar
trabalhando como “Mc’escrava”. Quando estava no segundo período, comecei a fazer
estágio com aulas de natação para crianças. Larguei o trabalho em fast food e entrei na
área do fitness.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
171
Meu percurso na graduação foi muito difícil porque tinha que conciliar o estudo e o
trabalho. Contudo avaliava que era melhor do que vender farinha na feira. Depois de graduada
e com duas especializações na área, estava trabalhando em academia de ginástica e
novamente percebi que estava sem sonhos. Foi quando resolvi pedir reingresso na UFRJ,
entrei para a licenciatura em Educação Física e no grupo de pesquisa ANIMA7, um marco
muito importante em minha vida, pois foi a semente de uma carreira acadêmica. Fazer parte
de um grupo de pesquisa foi/é fundamental para melhor compreensão das possibilidades
profissionais que essa área de conhecimento pode te proporcionar.
Oi no balanço das ondas, eu vou
No mar eu jogo a saudade, amor
O tempo traz esperança e ansiedade
Vou navegando em busca da felicidade
Em cada porto que passo
Eu vejo e retrato em fantasias
Cultura, folclore e hábitos
Com isso refaço minha alegria
Foi com o sentimento de renovação e comprometimento político de mudar o
mundo e a minha vida que ingressei no Programa de Alfabetização da UFRJ para
Jovens e Adultos em Espaços Populares (PAJA). Esse programa prevê que graduandos
de diferentes áreas possam alfabetizar jovens e adultos. Então, usando o conhecimento
acumulado com o ANIMA, fui como educadora popular para a Vila do João, meu
primeiro contato com uma comunudade popular no Rio de Janeiro, o que me
proporcionou um sentimento de identidade com as características culturais do local.
Resultado, abandonei o fitness e me dediquei à educação popular, ganhando uma
miséria, mas cheia de utopia.
Após dois anos como educadora de comunidade popular, fui selecionada para o
Programa de Mestrado em Educação na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro,
com projeto sobre o PAJA. Durante o mestrado, surgiu a possibilidade de entrar no Programa
Conexões de Saberes. Nesse momento, trabalhava em um projeto do SESC que exigia muito
tempo de dedicação e atrapalhava muito o andamento do mestrado, por isso achava que não
conseguiria concluir o curso.
O Conexões de Saberes me possibilitou trabalhar, estudar e fazer pesquisa. Eu
ainda não acredito que tenho essa oportunidade. Graças a ele, poderei terminar o
mestrado esse ano e sonhar com ingresso no doutorado. Aqui, avalio que retomo minha
capacidade de sonhar, de ser vencedora. Agora posso voltar para minha terra e falar que
não consegui ser jogadora da seleção brasileira de basquetebol, mas consegui que,
7
O objetivo do “Anima” é estudar/pesquisar o lazer em suas múltiplas dimensões, com denotado interesse
para a questão da intervenção pedagógica, concedendo-se a “Animação Cultural” espaço especial de
discussão e de construção teórica. A perspectiva dos Estudos Culturais concede o norte teórico que embasa
as ações e reflexões do Grupo de Pesquisa “Anima”. Mais informações em http://www.lazer.eefd.ufrj.br
172
Caminhadas de universitários de origem popular
através do meu trabalho, esteja em discussão o acesso e a permanência de estudantes de
origem popular na universidade. Estudantes que lutam por um espaço no mundo. Agora,
volto a sonhar com um mundo melhor.
Explode Coração
Na maior felicidade
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
173
Parte 2 A UNIVERSIDADE REENCONTRA A
ESCOLA PÚBLICA
________________________
Relatos sobre a parceria entre os
Programas Conexões de Saberes
(MEC/SECAD) e Escola Aberta (MEC/UNESCO)
O ingresso da UNIRIO no Programa Conexões de Saberes, em 2006, foi possível a
partir de uma parceria com o Programa Escola Aberta (UNESCO/MEC), o que levou a que
nossas ações de extensão fossem feitas em escolas públicas da periferia de seis municípios
fluminenses: Belfort Roxo; Duque de Caxias; Mesquita; Niterói; Queimados e São João
de Meriti. Atuamos em 41 escolas desses municípios, geralmente em localidades distantes,
isoladas e extremamente pobres. Em muitos lugares, a escola era a única instituição
pública existente.
Foi um trabalho difícil, mas muito importante na formação deste grupo e, arriscaríamos
dizer, na ruptura com uma separação histórica e equivocada que marca os níveis de ensino
no Brasil nas últimas décadas: a distância cada vez maior entre a universidade pública e as
escolas públicas. Sabemos que nem sempre foi assim, isto é, quando a escola pública era, em
sua maioria, de boa qualidade havia uma interação maior entre esses dois espaços, até
porque muitos alunos oriundos da rede pública ingressavam facilmente na universidade
pública. O saudosismo em relação à “época de ouro” da escola pública mal disfarça um
elitismo equivocado, pois essa escola de qualidade era uma experiência acessível apenas
aos setores médios e altos da sociedade. A massificação da escola, a partir da década de
1970, foi acompanhada pela perda de qualidade e pelo progressivo distanciamento entre a
escola e a universidade pública. A escola pública virou, desde então, um tema e um problema,
geralmente lembrada quando se aborda temas como o fracasso escolar, a falência da estrutura
física dos estabelecimentos, a proletarização do quadro docente e discente etc.
Atualmente, a idéia de que a escola pública é caracterizada pela precariedade domina
a representação sobre os níveis de ensino fundamental e médio no Brasil. Os baixos salários
dos professores, a sobrecarga de trabalho, as instalações físicas insuficientes ou destruídas
e, mais recentemente, o avanço da violência no cotidiano escolar têm transformado a escola
pública em sinônimo de decadência. Esse quadro, que é dramático e real, principalmente
nos grandes centros urbanos, não dá conta, porém, do importante papel econômico, social
e político que a escola pública continua desempenhando como espaço de socialização da
juventude e, também, de ascensão social dos filhos das classes populares.
Em um texto importante, Sposito (2005, p.123) define como uma das marcas
identitárias fundamentais da juventude brasileira contemporânea o que classificou de um
“mergulho na sociedade escolarizada”, isto é, a escola está no centro da vivência cotidiana
dos jovens brasileiros. Nesse sentido, a universidade e a escola pública são espaços
privilegiados para a ampliação das ações no campo da educação e da cultura, pois tem um
forte impacto na criação de alternativas reais para os jovens pobres, criando novas redes
sociais no campo da cultura democrática. As instituições públicas de ensino seriam, assim,
os nós centrais dentro de uma rede de intervenções republicanas de ampliação dos
horizontes educacionais e existenciais da juventude. A dimensão pedagógica das redes
socioculturais deriva do fato delas serem espaços fundamentais para a construção das
identidades e práticas sociais dos indivíduos.
Pensar a cultura como política pública é uma perspectiva que só recentemente começa
a se afirmar no Brasil, a despeito da nossa tradição de país produtor de inúmeras e variadas
manifestações culturais. Por isso, adotar esta perspectiva no âmbito de instituições públicas,
como são as universidades e as escolas públicas, pode vir a ter um impacto positivo sobre
setores populares e, conseqüentemente, sobre as condições de acesso ao emprego, renda e
afirmação dos valores dos quais são portadores. Essas redes têm o papel central de transformar
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
177
a cultura em espaço de sociabilidade e de afirmação da democracia, dando um sentido mais
palpável à idéia de cidadania, o que pode ser feito articulando-se algumas dimensões muito
presentes na discussão contemporânea sobre política cultural, tais como a interlocução
criativa com o mercado e a afirmação de novos valores e identidades desses grupos populares.
Nesse sentido, a escola pública, sobretudo de periferia, é hoje freqüentada prioritariamente
por estudantes de origem popular e, portanto, se tornou para nós um espaço privilegiado
para a intervenção dentro da perspectiva filosófica do Programa Conexões de Saberes, isto
é, integrar o saber erudito e o saber popular na produção do conhecimento.
O nosso objetivo passou então a ser o reencontro do jovem universitário de origem
popular com a escola pública, buscando criar uma nova compreensão sobre os espaços
populares, para além dos estigmas que os caracterizam. Muitos de nós, conexistas, cursamos
escolas públicas e reencontramos esse espaço pior, em vários aspectos, do que quando o
deixamos há menos de uma década atrás. Foi um reencontro necessário, pois acreditamos
que fortalecer a escola pública contribui para se tornar a universidade mais aberta a
estudantes de diferentes origens sociais e, portanto, transformá-la em um espaço capaz de
produzir um conhecimento mais amplo, plural e socialmente relevante. A vivência nas
escolas públicas de periferia é o que narraremos a seguir.
A percepção da distância
A universidade e os espaços populares criam entre si representações simbólicas que
favorecem cada vez mais o distanciamento e a divisão já existente entre eles. Nessa relação,
o conhecimento científico e o conhecimento popular também se afastam e cada um vê o
outro com estranheza, criando conceitos, que muitas vezes não representam de fato a
realidade. O objetivo da nossa intervenção foi favorecer a leitura e discussão sobre direitos
humanos, ocupando a escola durante os fins de semana para oferecer essas oficinas à
comunidade, partindo da compreensão de que a escola é um espaço público cuja finalidade
vai além de sua abertura no período letivo. O grande desafio era atrair as pessoas para essas
atividades, torná-las uma atividade interessante e culturalmente relevante e, nesse processo,
trocar experiências que, acreditamos, nos enriqueceria mutuamente.
A palavra conexão traz em si um sabor de integração, de diálogo, sugere uma ruptura
com o paradigma da fragmentação dos conhecimentos, da hiperespecialização. Por isso, o
Programa Conexões de Saberes busca valorizar a aptidão para problematizar e ligar os
conhecimentos para (re)pensar o modo como aprendemos a entender a própria estrutura da
Universidade. Uma estrutura em que habitam conhecimentos importantíssimos, mas pouco
difundidos, pois cria departamentos estanques, constrói em volta de si um muro invisível
onde continuamente se luta para impedir a penetração de novos saberes que possam
estremecer as certezas já tão concretas. Pensar na conexão de saberes, então, é admitir a
ruptura com o modo de se fazer Ciência e de se compreender o conhecimento. É ver as
condições de possibilidades das ações humanas projetadas no mundo a partir de um espaço/
tempo local, propondo a adesão ao que se estuda, ensinado e aprendendo a viver, traduzindo
os conhecimentos em saberes práticos, para usar a idéia central do filósofo Edgar Morin.
Nesse sentido, a parceria do Programa Conexões de Saberes com o Programa Escola
Aberta buscou contribuir para a construção da cidadania consciente, responsável e
participante, favorecendo a inclusão sociocultural, particularmente do jovem e crianças
estudantes da educação básica das escolas públicas. A prática metodológica e a postura
178
Caminhadas de universitários de origem popular
ética adotada levaram à aproximação gradual com o universo de intervenção (a escola
e a comunidade do entorno), respeitando a dinâmica de atividades que já existiam,
ouvindo antes de propor, visando, enfim, uma construção coletiva baseada no que cada
parceiro tem a oferecer. Para tanto, foi necessário desvelar inicialmente esses territórios
desconhecidos mesmo por estudantes de origem popular que, supostamente, teriam
afinidades com esse universo da escola pública e das periferias urbanas. O intuito é
transformar a escola em um ambiente mais atuante e presente na vida dos jovens e suas
comunidades, promovendo maior diálogo, cooperação e participação entre a
universidade e a comunidade escolar.
Para iniciar essa aproximação, fizemos um Estudo de Viabilidade, ou seja, um
diagnóstico ligeiro formulado e proposto pela UNIRIO e aceito pelas demais universidades,
que consiste em um instrumento quantitativo e qualitativo de coleta rápida de dados
sobre a escola e a comunidade que seriam alvos de intervenção. Esse estudo foi realizado
pelos bolsistas em todas as escolas integrantes do Programa e permite uma avaliação,
ainda que parcial, do impacto da intervenção dos programas na melhoria das condições
originalmente encontradas.
Devido à estratégia de divisão das escolas por municípios e os municípios por
universidades, as escolas as quais a UNIRIO está atuando são em localidades diferentes das
de origem dos bolsistas. Essa organização nos acarretou maior recurso financeiro com o
transporte até a escola, embora tenha possibilitado uma maior circulação do grupo por
realidades diferentes nos municípios atendidos. Pelos relatos dos percursos até a escola
percebemos que muitos bolsistas não conhecem o próprio estado em que residem. Alguns
conhecem somente o percurso de suas casas até a universidade. A necessidade de
deslocamento para outro município proporcionou experiências de apropriação de novos
espaços urbanos, como também, viabilizou reflexões a partir da comparação entre
comunidades, ou seja, trocas de conhecimento.
Na investigação sobre a escola, perguntamos: “A escola é de fácil acesso? Sob qual
meio de transporte?” Esse questionamento iniciou um debate sobre “a precariedade do
transporte coletivo” e “as dificuldades de acesso à população da baixada fluminense”.
Pelo formulário, 80% das respostas retratam a escola como de difícil acesso e com
pouquíssimas linhas de ônibus, situação que se agrava nos fins de semana, quando os
horários dos ônibus são mais espaçados. Vejamos algumas observações, optamos por não
identificar o bolsista já que acreditamos que cada fala compõe o painel do que o grupo
vivenciou nesse período:
“... foi preciso pegar 2 ônibus e um metrô”.
“... utilizo 3 ônibus e 10 minutos de caminhada”.
“... o único meio de transporte é o ônibus, duas empresas cobrem
essa linha: a Riod´oro e a Flores, aos sábados esses ônibus não
têm hora para passar. Também existe um valão em frente ao Ciep.
Quando chove ele transborda e fica inviável chegar”.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
179
A dificuldade de acesso à escola nos possibilitou perceber que a comunidade que
reside próximo à escola também tem dificuldade para se deslocar pelas cidades, ou seja,
menos oportunidade de circulação e apropriação do ambiente urbano. Se associarmos a
dificuldade de locomoção com a existência de equipamentos culturais presentes na
comunidade pudemos refletir sobre como a dificuldade de circulação pode comprometer o
acesso a trocas culturais e a produção cultural.
Pelo estudo, a vizinhança das escolas é composta de:
· Comercio: 85% têm comércio variado e 15% somente pequenos bares;
· Posto de Saúde: 37% têm projetos em parceria com a escola, 27% com postos que
não são parceiros e 36% sem postos de saúde nas proximidades;
· Escolas vizinhas: 75% estão em parceria (articuladas pelo programa Escola Aberta),
5% de escolas vizinhas não são parceiras e 20% sem escolas nas proximidades;
· Biblioteca: 85% das bibliotecas públicas necessitam de pelo menos um meio de
transporte para acesso.
· Espaços culturais: 15% possuem espaços culturais diversificados (cinema, teatro,
lona cultural, clubes e outros) nas proximidades; 55% com quadra esportiva, praça e
igreja como espaços de encontro e 30% somente as atividades promovidas pela escola
(entre elas o programa Escola Aberta).
Identificamos que a rede social que envolve a escola é fortalecida à medida que
outras escolas vizinhas estão articuladas, mas fica bastante fragilizada quando faltam
instituições e/ou ações que promovam quantitativamente e qualitativamente possibilidades
de trocas entre os membros da comunidade. Algumas observações apontaram que a única
instituição presente, sem objetivo religioso, é a escola. Nesse sentido a presença dos
programas Conexões de Saberes e Escola Aberta potencializa encontros, promove atividades
culturais e a troca de saberes e afetos entre a escola e a comunidade. Assim como articula
propostas práticas de melhoria de vida e transforma os conhecimentos produzidos em
reflexões e ações críticas e coletivas acerca de interesses comuns. Em suma, propor espaços
de trocas de conhecimento fortalece a participação da comunidade.
Pelo formulário respondido, 87% das escolas contam com a participação de pais na
elaboração e desenvolvimento de propostas pedagógicas, mas o número efetivo de pais
envolvidos é pequeno. Outro dado importante é que 88% das escolas não possuem organização
estudantil. Os 12% que existem contam com apoio da direção da escola. Buscando dados para
perceber a identidade da escola, pesquisamos o espaço físico destinado às oficinas do programa
Escola Aberta. Identificamos que todas as escolas disponibilizam as salas de aulas, que 80%
dispõem de biblioteca e/ou sala de leitura, 75% de salas de vídeo, 80% de pátio, 60% de
quadras esportivas, 12,5% de laboratórios de informática e 2,5% de teatro.
Sobre o principal responsável pela realização do Escola Aberta, identificamos que em
20% delas é o(a) diretor(a), em 40% é o professor comunitário, em 35% são os dois e em 5%
é o coordenador/supervisor pedagógico. Pudemos traçar uma relação direta com o tempo
do Programa Escola Aberta com o número de oficinas atuantes. Sobre o tempo do projeto na
escola percebemos que 62,5% têm um ano ou mais de atuação, 10% têm menos de um ano,
20% têm menos de seis meses e 7,5% estão com menos de três meses de atuação. Ou seja,
quanto maior o tempo de permanência do projeto na escola, maior as possibilidades de
atividades. Em escolas com mais de um ano com o Programa Escola Aberta encontramos
uma boa variedade de oficinas.
180
Caminhadas de universitários de origem popular
Sobre as oficinas desenvolvidas nas escolas: 52,5% são oficinas de dança; 20% de
ginástica; 67% de trabalhos manuais (biscuit, tricô, crochê, tapeçaria e outros); 35% de artes
(pintura, teatro, desenho e outros); 40% de lutas (capoeira, karatê); 50% de recreação e jogos;
7,5% de leitura; 50% de desporto; 7,5% de reciclagem; 50% de cursos profissionalizantes;
50% de reforço escolar; 25% de música; 5% CTO e 2,5% o projeto Escola que Protege.
Identificar o tipo de oficinas desenvolvidas nas escolas é importantíssimo para a
articulação da proposta de atuação do Programa Conexões de Saberes às atividades
existentes. Os conexistas aproveitam as temáticas trabalhadas pelos oficineiros para
introduzir as propostas de Leituração e Direitos Humanos. Quanto às primeiras impressões
sobre a escola e às possibilidades de intervenção, percebemos que 40% relatam que há
maior procura pelas oficinas relacionadas à geração de renda, principalmente por parte da
escola. Outras percepções importantes foram: a) a boa recepção por parte do responsável
pelo projeto na escola; b) precariedade em muitas instalações; c) a falta de segurança; d) a
falta de organização da escola para o Escola Aberta; e) a falta de comprometimento de
todos os professores da escola; f) o bom público presente; g) a solidariedade dos oficineiros
na divulgação das propostas do Conexões; entre outras.
“O público maior é de alunos e seus respectivos pais. Essa é a
impressão que ficou, pois a escola parece fechar-se para si”.
“Constatamos que alguns membros da comunidade não
reconhecem a escola como espaço comunitário, o que os levaram
a destruir a biblioteca”.
“Os coordenadores da escola foram bastante receptivos com a
minha entrada na escola, disponibilizando salas de aula para a
realização da oficina. A escola responsabilizou-se em fazer a
divulgação indo de sala em sala nas aulas da turma do noturno.
Mas apesar de toda receptividade e interesse pelo trabalho a
escola era muito carente de equipamentos, dificultando um pouco
o desenvolvimento das atividades. No início os alunos eram
bastante interessados, pois estavam ali para ganhar pontuação
na disciplina de história. No fim do ano letivo eles não iam mais à
oficina porque já tinham passado em história não havendo
necessidade para eles continuar participando, apesar de ter
incentivado e estimulado que continuassem. A faixa etária dos
alunos era de 15 a 70 anos.”
“A comunidade foi tão receptiva quanto os que trabalham na
escola. Lá, os pais dos alunos e moradores próximos também
participam das oficinas, assim como ex-alunos e alunos de outras
escolas. A freqüência nas oficinas era grande, e eram quase
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
181
sempre os mesmos alunos. Como as idades iam de 4 aos 19 anos e
os interesses dessas crianças e adolescentes eram diversos,
preparávamos oficinas ora para um grupo mais jovem, de
crianças, ora para os adolescentes, mas a freqüência de meninas
sempre prevalecia sobre a de meninos.”
É unânime a compreensão que as possibilidades de atuação são inúmeras e que o
estudo de viabilidade facilitará a elaboração do planejamento pedagógico. Realmente, os
dados organizados neste formulário contribuem para elaboração das oficinas pela riqueza
de suas informações, nos ajuda a organizar as oficinas de acordo com os espaços existentes
na escola e a proporcionar contato com os oficineiros, os espaços e os instrumentos que
poderemos utilizar.
A formação para o Programa Escola Aberta
Partimos, nesse sentido, de nossa experiência de professoras buscando descobrir o que
esses estudantes já sabiam a fim de que pudéssemos pesquisar e construir a nossa proposta
metodológica. Foi preciso que tomássemos contato com textos e obras que tratassem de
Direitos Humanos e Alfabetização (de suas concepções teóricas e cotidianas), foi necessário
que entrássemos em diálogo não com conhecimentos prontos, mas, sim, com uma postura
curiosa diante de saberes que, até então, tínhamos vivido em escolas e projetos sociais
como formadoras e educadoras. Nesse sentido, foi preciso que, também, aprendêssemos a
trabalhar com alunos da graduação, fazendo com que a frase “professor não é somente
aquele ensina, mas, também, aprende” ganhasse sentido.
Os nossos encontros voltados para o Programa Escola Aberta foram atravessados
por leituras que visavam uma aproximação teórica com conceitos e teorias, bem como
com momentos em que olhássemos a prática. Pensamos sempre em formar nossos
estudantes/bolsistas não somente para atuarem em oficinas, mas, principalmente, para
que fossem capazes de problematizar a respeito da vivência que estavam construindo
dentro das escolas, lançando sobre elas um olhar de estranhamento e reflexão sobre
o lugar, sobre a escola, sobre e, principalmente, o papel de educadores que passavam
a exercer.
A preparação para a entrada nas escolas contou com um processo de reuniões, discussões
e criação de metodologias. Nesse processo, o diálogo e os possíveis acordos foram realizados
com aqueles que estariam ligados à parceria.
De um lado, tivemos contato com os representantes nacionais do Programa Conexões
de Saberes e, de outro, com os representantes nacionais do Programa Escola Aberta. Além
disso, participamos de reuniões com as quatro Instituições Federais do Ensino Superior do
Rio de Janeiro (IFES)1, mediadas pela articuladora estadual Elisa Prestes. Nesses encontros,
falamos sobre os objetivos que movem a parceria entre os Programas, os limites e os desafios,
na medida em que sempre consideramos a diversidade cultural existente dentro do estado
do Rio de Janeiro.
1
Universidades: UFF, UFRJ e UFFRJ.
182
Caminhadas de universitários de origem popular
Verificou-se, nesse conjunto, a necessidade de entrar nas escolas atendidas pelo Programa
Escola Aberta mediante encontros com o comitê metropolitano, que perfaz o conjunto de
representantes de alguns municípios do Rio de Janeiro2 onde estaria se dando a parceria.
Junto a esse grupo, haveria uma explanação sobre o que é o Programa Conexões, a forma
como os estudantes iriam atuar, bem como nossos interesses e objetivos nessa parceria.
Na maioria dos encontros, fica clara a necessidade de se respeitar às hierarquias – os
chamados trâmites burocráticos – presentes na configuração da parceria. Então, nossa
intervenção começaria nas escolas a partir da mediação da ULE3 junto ao comitê metropolitano.
Este, depois, realizaria contato com as escolas em seus respectivos municípios através dos
diretores ou professores comunitários e, por fim, os oficineiros ficariam sabendo da entrada
dos estudantes universitários na escola.
Esse cuidado visava, sobretudo, evitar os possíveis descompassos entre as ações realizadas
pelas universidades dentro das escolas. Buscava-se certa homogeneidade, tanto com relação aos
primeiros contatos, quanto com o trabalho proposto. Por outro lado, realizando uma outra leitura,
podemos pensar, também, que esse passo a passo pode demonstrar que a fragmentação está presente,
não em forma somente de saberes, mas de poder. A organização por hierarquias dentro da
interlocução desses programas nos permite refletir que existe uma necessidade da ordem. Uma
ordem que está fundamentada no paradigma da modernidade em que é preciso dividir para melhor
controlar e conhecer. Conhecendo as partes, torna-se possível, posteriormente, conhecer o todo.
Contudo, essa hierarquia não conseguiu minimizar por completo as possíveis dificuldades.
Ora, as escolas eram diferentes, cada município atendido tinha uma particularidade,
alguns professores comunitários se comunicavam com a escola e seus oficineiros, outros
nem sempre. Além disso, consideramos, também, que cada universidade tinha e tem suas
particularidades. A UNIRIO, nesse caso, não está longe disso. Abriu espaço para universitários
de diferentes bairros de moradia e de vários cursos, mas, também, encontrou dificuldades
com relação ao deslocamento para as escolas que se encontravam em municípios afastados
dos locais de moradia, tendo que gastar muito com as passagens.
Por outro lado, na UNIRIO, reconhecemos que, ao enfrentar essas dificuldades, nossos
estudantes passaram a ter mais consciência das dificuldades que os moradores enfrentam,
principalmente, com transporte público não somente nos finais de semana, quando se dá a
intervenção do Programa Escola Aberta nas escolas. Nesse sentido, na prática, adotar uma
postura inclusiva e dialógica não se faz sem esbarrar em certos limites. Tivemos que romper
com a limitação geográfica imposta pela distância e perceber que era possível trabalhar e
construir uma ação crítica e comprometida dentro das escolas atendidas na parceria, visando
propor saídas coletivas para impasses comuns.
A entrada nas escolas
Diante da diversidade de escolas e municípios, nos vimos com a necessidade de criar
um meio de entrada comum, que nos forneceria dados sobre a escola e, posteriormente,
caminhos possíveis para a efetivação das oficinas de Leituração e Direitos Humanos. Então,
fizemos um conjunto de perguntas que, a nosso ver, poderiam nos levar a fazer um diagnóstico
2
Os municípios de Duque de Caxias, São João de Meriti, Queimados, Belford Roxo, Mesquita e Niterói.
ULE – Unidade Local no Estado - braço da UGP, com a tarefa primordial, a meu ver, de garantir a gestão
e estratégias respeitando a diversidade e peculiaridades de cada região.
3
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
183
preliminar sobre a nossa atuação. Construímos o Estudo de Viabilidade, que corresponde a
um formulário com perguntas estruturadas e semi-estruturadas. A primeira parte diz respeito
à identificação da escola; a segunda aborda o Programa Escola Aberta; a terceira identifica
as redes sociopedagógicas ligadas à escola; e a quarta, as percepções do pesquisador.
Com esse instrumento, organizamos o perfil das oficinas respeitando as faixas etárias
atendidas pelas escolas, verificamos os recursos na escola que poderiam estar sendo usados
pelos bolsistas e, principalmente, pudemos realizar algumas análises teóricas a partir do
Estudo de Viabilidade que poderão ser usados para futuros estudos e (re)organização do
próprio Programa Escola Aberta.
Gostaríamos de começar falando a respeito do público-alvo: os jovens, moradores dos
espaços populares, residentes, de acordo com a proposta pedagógica do Escola Aberta, em
áreas de risco. Iremos, nesse sentido, nos apropriar de experiências e percepções que tivemos
do programa, destacando, sobretudo, a presença de oficinas ligadas a trabalho manuais e
refletindo, ao lado disso, sobre as concepções que ajudam a delimitar a presença das mesmas
no espaço escolar.
Entender a juventude a partir das diferenças permite, então, pensar a respeito do valor
subjetivo que o trabalho exerce em suas vidas e, principalmente, refletir em que medida as
oficinas do programa Escola Aberta estão se aproximando dos interesses do seu públicoalvo, que não pode ser tratado como homogêneo.
Já nas linhas anteriores é possível verificar que a concepção que define o
público-alvo desse programa é de um tipo de jovem: morador de periferia e cercado
pela violência. Essa imagem, bastante nítida nas linhas do programa, tem potencializado
a oferta de oficinas manuais e profissionalizantes na maioria das escolas, uma vez que
maior a parte desses estudantes, também, contribui para o sustento familiar ou
de si mesmos.
A relação entre oficinas de trabalhos manuais e oficinas recreativas e desportivas,
sendo marcante a entrada de mulheres nas primeiras e nas segundas, majoritariamente, os
jovens do gênero masculino, mostra que mesmo sendo focado no público juvenil, o Programa
Escola Aberta não consegue atingir de modo equilibrado pessoas de ambos os gêneros. Esse
fato é um dado importante para a oferta e procura de determinados tipos de oficinas e,
principalmente, para o desenho do programa, que pensou em atingir os jovens do gênero
masculino, sendo estes mais expostos à criminalidade e à violência por talvez possuírem
maior mobilidade sociocomunitária no espaço público.
Todavia, a entrada maciça de mulheres nas oficinas manuais e profissionalizantes
do programa indica que elas estão, também, saindo do espaço doméstico com o intuito de
contribuir com o sustento da família, uma vez que sabemos que inúmeras pesquisas apontam
que tem ocorrido maior tendência de casamentos entre os grupos com renda familiar
baixa, que perfaz a faixa de dois a cinco salários mínimos, e, com isso, o trabalho feminino
acaba sendo um meio para contribuir com a família e afastar o desemprego, que é grande
entre as mulheres.
A presença desse público juvenil nas oficinas também permite que se reflita acerca da
passagem da vida familiar para a escola e desta para o ambiente profissional. Verificamos
que essa passagem está distante para grande parte da amostra de jovens brasileiros, na
medida em que muitos já ingressam no trabalho ainda na infância, sendo partícipes e
provedores desde cedo na organização da vida material do seu grupo de referência. Assim,
184
Caminhadas de universitários de origem popular
para muitos jovens dos grupos populares, a passagem da juventude para a vida adulta não
tem como demarcador a idade biológica, mas, sim, a capacidade de assumir responsabilidades,
construir família, ter filhos e trabalhar.
O Programa Escola Aberta, através do interesse de atingir esse grupo juvenil, acaba
por tocar na fragilidade e insegurança, que também se assemelha à realidade vivida dentro
do Programa Conexões de Saberes em que notamos que o trabalho é, sim, uma das
preocupações dos jovens, mas que assume diferentes significados quando consideramos o
gênero e o estado civil desses sujeitos.
Com isso, inferimos que as atividades ligadas ao lúdico e ao jogo acabam sendo as
que possuem maior público juvenil nos finais de semana, devido ao fato de não existirem
nas comunidades espaços que viabilizariam tais práticas. A busca pelo lazer, pela cultura e
por jogos demonstra, também, que precisamos, na nossa formação para o Programa Escola
Aberta, pensar sobre oficinas dinâmicas que valorizam a expressividade corporal e o lúdico.
Diálogos entre formadoras e conexistas
A entrada na escola foi marcante para os bolsistas; em seus relatos, verificamos um
misto de surpresa, entusiasmo e frustração. Suas falas estão expressas em um relatório
realizado no final da primeira parte de intervenção nas escolas, compondo um documento
a ser entregue para a ULE-RJ que passará, posteriormente, para as respectivas unidades
escolares. Nesse documento, também, há uma parte de nossas percepções avaliando o
acompanhamento que conseguimos realizar ao longo dos sete meses de trabalho. A
oportunidade de retornar às escolas públicas das regiões metropolitanas do Rio de Janeiro
permitiu que voltássemos para a nossa vida escolar, para o começo de nossa caminhada
educacional. Agora, não somos mais alunos, mas assumimos, nesse espaço, o papel de
educadores através da promoção de oficinas. Temos um olhar de estranhamento e
distanciamento dessa realidade, que consegue enxergar, em um primeiro momento, a
precariedade das instalações escolares, que são marcadas pela ausência de equipamentos e
de infra-estrutura adequada para permitir a abertura e as realizações de oficinas. Essa realidade
é também expressa nas seguintes observações feitas pelos bolsistas:
“Um dos motivos de evasão (das oficinas) que percebi é a falta de
alimentação para os freqüentadores, nem mesmo o bebedouro
funciona e temos que beber água da bica, como fazem os alunos.”
“Mas, apesar de toda receptividade e interesse pelo trabalho, a
escola era muito carente de equipamentos, dificultando um pouco
o desenvolvimento das atividades.”
“Os espaços utilizados para as oficinas são o pátio, a quadra e as
salas, com isso, a aplicação das minhas oficinas foi, em sua
maioria, na sala de aula, que era mal conservada e o
descolamento das carteiras dificultava a ampliação de espaço
para a realização de algumas atividades.”
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
185
A abertura das escolas públicas durante os finais de semana é também a abertura para
tomarmos contato com uma realidade que não está afastada de nossa caminhada educacional.
Tivemos, como universitários e oriundos de espaços populares, que driblar essas adversidades
estruturais que são deflagradas a partir da má conservação de muitas das escolas da rede
pública de ensino e agora verificamos que fazemos parte das tentativas de superação e
reconstrução dessas escolas. O começo possível está no desenvolvimento de estratégias que
levem ao engajamento da própria comunidade com os problemas que são da sua escola.
É preciso criar meios para que pais, alunos e demais moradores possam se sentir
partícipes de tudo o que tem a ver com a escola, com seus sucessos ou fracassos. O caminho
a percorrer rumo a esse objetivo, para ser tornar prático e efetivo, contudo, não se basta nos
finais de semana, nos dias em que ocorrem as oficinas. É preciso que haja a união entre a
escola do horário regular e a escola do final de semana, no sentido de que o pertencimento
não se dê apenas entre aqueles que são da comunidade de fora da escola, mas também para
os de dentro da escola. O que foi possível aos nossos bolsistas foi deflagrar, a partir de suas
falas e experiências, essa possibilidade, uma vez que os mesmos, muitas vezes, não eram
moradores de tais bairros. Devido à particularidade da UNIRIO, acabamos não conseguindo
ir ao encontro do objetivo de permitir que os bolsistas retornassem às suas comunidades de
origem. Com isso, inicialmente, o desenvolvimento do trabalho ficou comprometido, sendo
mostrado com os seguintes depoimentos:
“As condições de acesso são boas, mas a comunidade onde se
localiza a escola é longe de nossas residências, sendo um fator de
dificuldade já que não sabemos a realidade da comunidade.
Podemos perceber a pouca interação das escolas próximas que
realizam o projeto, sabendo que, se essas agissem em conjunto, a
freqüência e a divulgação seriam melhoradas.”
“A escola funciona nos horários da manhã, tarde e noite, durante
a semana, e, nos fins de semana, de 9h às 17h. Tenho que pegar
dois ônibus para chegar e andar um pouco. Em relação ao acesso,
pode não ser tão difícil, mas a distância é grande, em torno de
1:40h de viagem. Não fico insatisfeita, mas, com certeza,
preferiria estar atuando na minha comunidade, por estar mais
habituada com a realidade onde moro.”
“A escola é em outro município, levava muito tempo para chegar.
Dispunha de mais tempo no ônibus do que na realização das
oficinas.”
186
Caminhadas de universitários de origem popular
O encontro do jovem universitário com novas compreensões sobre os espaços populares
No Rio de Janeiro, em todos os aspectos heterogêneos em que vivemos quando nos
referimos a uma cidade partida (VENTURA, 1994), estamos diante de uma sociedade dividida
territorialmente (espaços populares e espaços de elite), na qual uma parcela muito pequena
de cidadãos controla e usufrui a maioria das riquezas produzidas pela maior parte da
população. Uma dessas riquezas é a universidade pública, que foi criada para formar uma
elite aristocrática e se transformou através dos tempos, se adequando às novas condições
impostas pela sociedade.
Essa adequação está longe de ser satisfatória, mas podemos identificar ações em espaços
populares, geradas por grupos de dentro da universidade, que a compreendem como geradora
de conhecimento também em prol das classes menos favorecidas. Desse modo, os cidadãos
moradores de espaços populares, que constituem a maior parte da população, têm direito a
universidades públicas, não somente para freqüentarem seus cursos, mas também para
mostrarem sua cultura e seus saberes. A universidade, em contrapartida, tem o dever social
de trocar com esses cidadãos seus saberes acadêmicos e seu suporte técnico, para que juntos
desenvolvam conhecimento em direção à melhoria na qualidade de vida de ambos.
Na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), a Extensão é uma
das representatividades dos espaços populares na instituição, que, através de um processo
educativo, cultural e científico, procura articular o ensino e a pesquisa de forma indissociável,
para viabilizar a e estreitar a relação entre a universidade e os espaços populares. As atividades
de Extensão na UNIRIO são desenvolvidas por meio de programas, projetos, cursos, eventos
e ações complementares, visando à socialização do conhecimento acadêmico e à interação
com a sociedade. No desenvolvimento das ações extensionistas, professores, técnicoadministrativos, alunos e colaboradores têm buscado junto aos espaços populares o
atendimento das questões prioritárias, por intermédio de atividades educacionais, nas
diferentes áreas do conhecimento, da articulação com movimentos sociais, de programação
cultural, da difusão cientifica e tecnológica e da integração com a educação básica.
A Extensão da UNIRIO, portanto, é um fenômeno educativo com um conteúdo
pedagógico derivado das questões da realidade social. Nesse espírito, o Programa Conexões
de Saberes foi englobado pela Extensão, com o objetivo de criar, juntamente com estudantes
universitários, ações destinadas a identificar demandas dos espaços populares. Esses
estudantes têm a característica de serem ex-alunos de escola pública, oriundos de espaços
populares e pertencerem à primeira geração da família a ter acesso à universidade pública.
Os estudantes bolsistas tiveram um importante papel no desempenho e
desenvolvimento de oficinas de Leituração e Direitos Humanos, nas escolas parceiras. Essa
intervenção foi essencial para o alargamento do campo de possibilidades dos alunos de
escolas públicas, propiciado por esse convívio com estudantes universitários. Esse é um
passo fundamental na ruptura de uma concepção estreita e preconceituosa de um destino
sócio-educacional negativo para estudantes de origem popular, ou seja, de rompimento
com uma representação simbólica pré-concedida equivocadamente sobre esses jovens.
Nessa experiência, observamos que os estudantes que atuaram nas escolas buscaram
entender suas próprias trajetórias, articulada aos saberes adquiridos na universidade, ou
seja, adiquiriram o saber erudito sem romper as vinculações de suas origens e, por isso
mesmo, foram capazes de ser agentes em um processo efetivo de transformação, tanto dos
estudantes, quanto das instituições envolvidas. Quando dizemos transformação das
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
187
instituições, nos respaldamos na reconfiguração do projeto e da parceria, a partir das
demandas dos atores envolvidos. Para o Conexões de Saberes/UNIRIO, encaminhar demandas
significa também ler e dar sentido à trajetória do grupo, bem como eleger um caminho para
a ação, dentro de um vasto espectro de concepções sobre a luta política e seus objetivos.
Contudo, a relação entre a universidade e os espaços populares é possuidora de uma
complexidade que não é muito discutida atualmente, uma vez que parece não haver uma
definição concreta acerca do que uma representa para outra. Esse fato é influenciado pela
falta de diálogos entre a instituição e os espaços populares, que interfere na construção das
definições simbólicas dos papéis que cada um atribui ao outro e a si mesmo.
Este trabalho estabelecerá uma correlação entre as representações construídas sobre a
universidade e os espaços populares, sendo a escola pública o espaço onde essas construções
foram traçadas e, por isso, nesse momento, será considerada como espaço popular. Portanto,
neste estudo nos interessa entender como tem se dado o encontro do jovem intelectual com
uma nova compreensão dos espaços populares, para além dos estigmas que os caracterizam,
através das vivências na escola pública. A analise está dividida em duas partes: primeiramente,
a que verifica as estratégias de atuação; em seguida, a construção das representações simbólicas
criadas na relação da universidade com o espaço popular.
Dialéticas da parceria
A parceria entre o Programa Conexões de Saberes com o Programa Escola Aberta
viabilizou maior interação entre a comunidade e a escola. Essa parceria foi importante para
a UNIRIO na promoção da articulação entre o ensino, a pesquisa e a extensão. A referida
parceria leva em consideração a importância de se ampliar o escopo das atividades da
escola para promover a melhoria da qualidade da educação no local, de se viabilizar maior
diálogo, cooperação e participação entre as comunidades que freqüentam o espaço escolar
e a universidade. Ou seja, essa parceria foi planejada no sentido de direcionar ações que
privilegiam o fortalecimento da relação entre a universidade e a comunidade escolar4, bem
como a ampliação das oportunidades de acesso a espaços de promoção da cidadania.
Ao longo do trabalho de formação, pudemos verificar que Leituração e Direitos
Humanos, temas a serem desenvolvidos a partir dos pressupostos da parceria, constituíramse em “fios condutores” do trabalho realizado nos finais de semanas nas escolas, na medida
em que esses ganharam rico sentido quando relacionados no contexto escolar. Assim, os
objetivos da formação foram: formar em/para a cidadania, favorecendo uma consciência
prática dos Direitos Humanos na sociedade; estimular a prática da leitura na vida cotidiana
do bolsista a fim de formar multiplicadores na prática da leitura e colaborar na formação de
sujeitos sociais comprometidos com a construção da democracia em todos os âmbitos da
vida social, privilegiando a articulação entre teoria e prática social.
4
A expressão “comunidade escolar” é entendida nessa parceria no sentido atribuído pela literatura
educacional, que inclui diretores, coordenadores, professores, assistentes educacionais, pais, alunos e
comunidade como parte da escola. No caso do Programa Escola Aberta, embora os profissionais da escola
não sejam obrigados a participar das atividades que se desenvolvem durante os finais de semana, é
imprescindível para o funcionamento da proposta o envolvimento de todos na aproximação entre o
cotidiano da escola e a vida da comunidade, para que o espaço físico da escola seja um local de convivência
e aprendizagem para as famílias que habitam o bairro em que a escola se encontra.
188
Caminhadas de universitários de origem popular
A metodologia foi desenvolvida privilegiando debates, oficinas, leitura e produção
de textos, onde pudemos avaliar, individual e coletivamente, o modo como os bolsistas
concebiam e compreendiam a temática Direitos Humanos e Leituração, além de como
construíam suas percepções sobre a escola pública. Alternando com as aulas expositivas,
realizamos oficinas pedagógicas, objetivando criar espaços onde poderíamos propiciar a
construção coletiva de valores e de saberes partindo de questões da realidade social e das
experiências vividas pelos bolsistas, que eram chamados a relacioná-las à temática de Direitos
Humanos e Leituração. Além disso, o trabalho voltado para oficinas corresponde ao interesse
de levar os bolsistas a adquirirem confiança na elaboração e implementação das oficinas,
uma vez que estariam colocando em prática, dentro das escolas atendidas pelo Programa
Escola Aberta, os temas trabalhados durante as formações.
Como estratégia de entrada na escola, após a seleção de 44 bolsistas para atuar em
escolas dos municipios de Duque de Caxias, Queimados, Niterói, Belford Roxo, São João
de Meriti e Mesquita, iniciamos o processo de formação para elaboração das oficinas.
Concomitante à formação, trabalhamos com a articuladora estadual Elisa Prestes e
com a coordenadora da ULE Regina Vassimon, no contato com o comitê metropolitano5.
Esse contato nos proporcionou maior abertura com os responsáveis nas escolas pelo Programa
Escola Aberta. Posteriormente, realizamos reuniões com a Secretária de Educação do
município6, os responsáveis pelo Programa Escola Aberta de cada escola e os estudantes
bolsistas do Programa Conexões de Saberes. Essas reuniões nos proporcionaram a
oportunidade de apresentar as bases conceituais da parceria, bem como o primeiro contato
do bolsista com a escola.
Contudo, a “entrada” na escola dependeu de um esforço de divulgação e
conquista de apoio das equipes constituídas para a formação de um grupo mínimo de
beneficiários para realização das atividades, e isso leva um tempo. Esse tempo não estava
“previsto” e, naquele momento, não foi construído o “compromisso” do coordenador escolar
ou do professor comunitário para formar o “público” das oficinas fomentadas de Direitos
Humanos e Leituração.
“Certamente essa é uma daquelas experiências que irão marcar
não somente minha participação dentro do Projeto Conexões de
Saberes, mas também minha trajetória de vida. Nessa hora passa
uma espécie de filme na nossa cabeça. A experiência do primeiro
dia aplicando a oficina na Escola Municipal Francisco Portugal
Neves foi marcada pela a expectativa das crianças em participar.
Contudo, em seguida ocorreu o pior, o desinteresse delas, isso foi
simplesmente um grande vazio, seguida de uma sensação de
5
Comitê Metropolitano – instância formada pelos coordenadores interlocutores responsável por garantir
a unidade das atividades nos diversos municípios parceiros.
6
Secretarias de Educação – parceiras que devem como contrapartida indicar uma equipe formada por
coordenador interlocutor (responsável direto pela gestão e interface com as instâncias acima mencionadas)
e coordenadores temáticos (cultura, esporte, pedagógico), para a qualificação das ações nas suas unidades
escolares e supervisores (recebem ajuda de custo direta do programa) para acompanhamento das atividades
nos finais de semana das unidades escolares de sua responsabilidade.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
189
fracasso terrível. Mas não pensem que me dei por vencida, no
outro final de semana, lá estava eu, com várias idéias que
fervilharam em minha cabeça no decorrer daquela mesma semana.
Resolvi trabalhar com todos os oficineiros7, ou quase todos, do
Escola Aberta e acredito ter dado certo, pois passei a conhecê-los
melhor e a receptividade aconteceu não só por parte deles, como
também das crianças. Tive a oportunidade de ouvir relatos
incríveis e, sobretudo, aprender e trocar com uma boa parte deles
(oficineiros e as crianças). Claro que nem todo sábado era o que se
pode chamar de “um sucesso de público e crítica”, contudo pude
constatar que quantidade nem sempre representa qualidade e que,
às vezes, sem que nós mesmos percebamos, alguma coisa fica.”
Pelo depoimento podemos identificar que a formação desse público dependeu do
esforço individual de cada estudante bolsista do Conexões de Saberes e que esse esforço foi
mais árduo quando o estudante estava alocado em escolas distantes da sua comunidade. Por
isso, muitos estudantes bolsistas apresentaram dificuldades na articulação com os atores da
escola, principalmente pela falta de entrosamento. Essas dificuldades passaram por alguns
aspectos importantes: a) inexperiência do estudante bolsista, que tem pouca ou nenhuma
oportunidade de atuar em escola públicas durante sua graduação; b) insegurança dos
oficineiros, que temiam perder seu espaço na escola para pessoas que eles julgavam mais
qualificadas; c) desconfiança do público, que ao longo do tempo construiu ressalvas a
atividades sazonais.
“O primeiro impacto que tive quando ingressei no projeto
Conexões de Saberes foi saber que iria atuar em uma escola
municipal na minha comunidade. Realmente, eu sou referência
nela, pois sou uma das poucas pessoas que lá vivem que
ingressaram em uma universidade pública. Como só havia
entrado em sala de aula na condição de aluna, fiquei meio
receosa de início. Ainda mais aplicando oficinas de Direito
Humanos e Leituração, pois eu não tinha idéia do que seria
isso. Mas, como amo desafios, aceitei. O segundo impacto foi
saber que não seria mais na minha comunidade. Como ser
referência em uma comunidade que ninguém me conhece? Mas
também fui em frente.”
Como vimos, a falta de oportunidade de vivências dos estudantes em escolas públicas
acarreta um grande distanciamento entre eles. Curioso é que muitos estudantes pretendem
fazer concurso público, após a conclusão da graduação, para atuarem justamente nesses
espaços. Essa falta de vivência em escolas foi o principal indicador da inexperiência dos
estudantes bolsistas.
7
Oficineiro – talento da comunidade responsável por ministrar as atividades nas unidades escolares nos
finais de semana.
190
Caminhadas de universitários de origem popular
“A Escola Aberta tem sido um presente para mim, e que sei que virá
a dar os seus frutos, apesar de ainda não estar suficientemente
preparado para fazer tais oficinas. Quando olho para aquelas
crianças, vejo que elas têm a minha “cara” quando eu era criança,
moram em lugares isolados, com acesso restrito às oportunidades e
à informação. Mas, acima de tudo, são gente feliz, com muita
vontade e disposição para aprender e para melhorar.”
Devido à estratégia de divisão das escolas por municípios e dos municípios por
universidade, as escolas em que a UNIRIO atuou foram em localidades diferentes aos de
origem dos estudantes bolsistas. Essa organização nos acarretou maior recurso financeiro
com o transporte até a escola, mas possibilitou maior circularidade do grupo em ambientes
diferentes. Pelos relatos dos percursos até a escola, percebemos que muitos dos bolsistas
não conhecem o próprio estado em que residem. Alguns conhecem somente o percurso de
suas casas até a universidade. A necessidade de deslocamento para outro município (outra
cidade) não apenas proporcionou experiências de apropriação de novos espaços urbanos,
como também viabilizou reflexões a partir da comparação entre comunidades, ou seja,
trocas de conhecimento.
A construção das representações simbólicas criadas na relação da universidade com
o espaço popular
Pode-se inferir que um estudante bolsista inicialmente poderá ter uma falsa interpretação
simbólica8 da realidade dos espaços populares, principalmente se ele não participar do
cotidiano do local. Como falamos anteriormente, nesse trabalho, estamos considerando a
Escola como espaço popular. Em nossa intervenção, pudemos identificar uma visão
estereotipada tanto dos estudantes bolsista perante a escola pública, quanto da escola
(contando também com os usuários) sobre a universidade (representada naquele momento
pelos estudantes).
“Foi realmente uma experiência importante, mas um testemunho
que tenho a dar foi numa das escolas, onde o foco era a educação
de jovens e adultos, e eu pude ver ali o quanto as pessoas não têm
expectativa nenhuma de melhorar, pelo menos à primeira vista;
contudo, durante as oficinas, pude identificar outras coisas. No
começo, eles não queriam nem passar da oitava série, achando
que tudo já tinha acabado, mas, bastaram alguns debates com
temas voltados para a continuidade do estudo e a possibilidade
de acesso à universidade, que eles já se animaram a buscar algo
além do que vivem e já falavam até na possibilidade de estarem na
universidade. Espero que não fiquem somente no desejo, mas que
alcancem seus objetivos”.
8
Quando falamos em interpretação simbólica, nos referimos no sentido de Ester Lindoso, quando argumenta
que “a representação simbólica é uma interpretação da realidade presente em todo ser humano” (LINDOSO,
Ester. Identidade Nordestina: de imaginário, estereotipo e humor. Revista Labirinto – Centro de Estudos
do Imaginário. Universidade Federal de Rondônia, 2000, p. 34).
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
191
Só podemos conhecer aquilo que está ao nosso alcance, aquilo que faz parte;
representamos simbolicamente o que não participamos ativamente. Obviamente que essa
representação será influenciada pelo arcabouço cultural do observador, que compreende
que a representação dos elementos constitutivos do nosso mundo adquire sentido dentro
de cada um de nós, dependendo de como interpretamos essa realidade. Ou seja, se
inicialmente tivermos um olhar estereotipado sobre as coisas, elas tomarão uma forma
estereotipada de interpretação simbólica. Assim, considerando que essa construção da
simbologia é moldada de acordo com o conhecimento de mundo que possuímos, o
sentido e o significado das imagens que construímos terão como limite o conhecimento
que temos do mundo.
Contudo, o significado de uma interpretação simbólica pode não corresponder
com o real. Em nossa experiência, pudemos perceber que a universidade atribui aos
espaços populares um significado de acordo com seu interesse para atuação, implantando
medidas experimentais, de modo a tentar intervir em uma realidade atualmente distante
de sua apropriação. Por outro lado, os espaços populares idealizam a universidade
como espaço que detém o conhecimento incontestável, que representa a solução
para todos os problemas, ou seja, um universo separado e distante, somente acessível
aos privilegiados.
Quando pensamos nessas representações simbólicas, avaliamos que são muito
complexas, principalmente porque há uma grande distância entre as duas, como se a
universidade não pertencesse aos espaços populares e os espaços populares não pudessem
usufruir dela. Por isso, a parceria do Programa Conexões de Saberes com o Programa Escola
Aberta pode mudar essa realidade, proporcionando que a universidade e os espaços populares
repensem seu papel na sociedade e considerem uma importância recíproca entre eles,
mudando uma representação de carência (espaço popular) e tecnicista/assistencialista
(universidade) que impera no imaginário coletivo.
Nesse sentido, podemos pensar que o papel da universidade nos espaços populares
não é somente promover ação externa, mas criar um espaço de reciprocidade. Ou seja,
quanto maior o compromisso e mais adequada for a forma de intervenção adotada, maior
será o significado da cooperação espaços populares e universidade.
Com esse sentimento, os estudantes bolsistas realizaram as oficinas de
Leituração e Direitos Humanos não somente com uma perspectiva de desenvolvimento
profissional, mas também para fortalecer o sentimento de pertencimento ao espaço, criando
vínculos entre os jovens universitários e suas inserções nos espaços populares.
Como fazer para ser respeitada
Sem nesta comunidade sequer morar?
Belford Roxo aos fins de semana
Tornou-se meu segundo lar.
E com o tempo veio a resposta
Ouvir uma criança me falar:
“Tia, semana que vem você volta?”
192
Caminhadas de universitários de origem popular
Meus olhos se encheram de lágrimas
E meu coração de coragem
Pra lutar por mais oportunidade
Por essa gente de boa vontade.
Trecho do poema: Escola Aberta: sonho que desperta, de Fernanda
Guimarães Felix, graduanda de Enfermagem, UNIRIO, 2006
Desenvolver o sentimento de pertencimento do jovem ao espaço popular é um processo
de incorporação e exteriorização de atitudes que leva a uma identidade de agente que se
materializa na posição que se situa, nesse momento, na escola pública. Esse posicionamento
é vital para a estratégia de intervenção planejada.
“Integrar o quadro de oficineira da Escola Municipal Professora
Julieta Rêgo Nascimento foi uma experiência única que jamais
vou esquecer. A Coordenação nos aceitou de braços abertos
(como esquecer o abraço do Wamberto e o sorriso da Dulcina?),
os outros oficineiros também e a comunidade nos acolheu super
bem, não posso esquecer da Vera que sempre levava suas netas
para participar da nossa oficina. A princípio, Lívia e eu (Milena)
tivemos medo do que íamos encontrar, se eram adolescentes
rebeldes ou crianças, e, na realidade, encontramos crianças
adoráveis como a Marcele e a Carol, adolescentes sorridentes
como a Thais, a Marília, a Carla, a Thamiris e tantos outros que já
participaram das oficinas não tão freqüentemente como as
meninas citadas. Com relação às oficinas, não tivemos
dificuldades para aplicá-las, pois contávamos com todo o apoio
da coordenação, dos outros oficineiros e da comunidade. Tivemos
acesso sem restrições à televisão, DVD, som, salas de aula,
material do próprio colégio que falava sobre sexualidade que foi
o tema de uma ou duas das oficinas que fizemos, que foram um
sucesso. Falando sobre oficinas, não posso deixar de elogiar as
outras oficinas da escola, como a de pintura (a mais freqüentada),
a de artesanato com jornal, a de montagem de jarros, a de tricô, as
aulas de reforço. Todas essas oficinas são frutos da dedicação de
um grupo que acredita no potencial de sua comunidade. Teve uma
vez que escutei a oficineira de artesanato com jarros falar que ela
faz as oficinas por prazer. Essa frase ficou guardada comigo e é
isso mesmo, ir ao Julieta, acordar cedo e encontrar aquelas
crianças e adolescentes é uma atividade que dá prazer. Poder
direcionar caminhos, entender a realidade. Depois de um tempo já
estávamos tão integradas à equipe da escola que participamos de
confraternizações, amigo oculto, fomos convidadas para o
casamento de nosso coordenador Wamberto, enfim, tivemos uma
recepção tão expressiva que, particularmente, me senti parte
daquela escola, daquela comunidade. Nossa parceria com a
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
193
referida escola foi bem sucedida em todos os aspectos, do nosso
ponto de vista. Wamberto, o responsável pelo Escola Aberta nesta
escola, Maria Dulcina, a professora comunitária, Vera, os
oficineiros (Leandro, Dileusa, entre outros) nos receberam muito
bem e se colocaram à disposição para nos ajudar. Temos contato
com eles mesmo fora da escola, participamos de amigo oculto,
festinha de fim de ano. Tivemos acesso a qualquer espaço da
escola, desde o refeitório e quadra até as salas de aula, e a tudo o
que pudéssemos precisar: livros, DVD´s, aparelho de som, vídeos,
mídias sobre as oficinas que iríamos aplicar etc. A comunidade foi
tão receptiva quanto os que trabalham na escola. Lá, os pais dos
alunos e moradores próximos também participam das oficinas,
assim como ex-alunos e alunos de outras escolas. A freqüência nas
oficinas era grande, e eram quase sempre os mesmos alunos. Como
as idades iam de quatro aos 19 anos e os interesses dessas
crianças e adolescentes eram diversos, preparávamos oficinas ora
para um grupo mais jovem, de crianças, ora para os adolescentes,
mas a freqüência de meninas sempre prevalecia sobre a de
meninos. Quando nossos alunos chegavam à escola no fim de
semana, nos procuravam para saber o que faríamos aquele dia.
Alguns adolescentes já trabalhavam na escola em grupos
especiais que debatiam sobre a questão do negro no país,
facilitando nosso trabalho e o entendimento deles sobre o
assunto. Quanto aos horários de funcionamento, percebemos que,
de manhã, há uma freqüência maior de crianças e, à tarde, a
freqüência maior é de adolescentes. Quanto ao acesso: a escola é
um pouco longe de nossas casas, mas há um grande número de
ônibus que nos leve até lá, e demoramos cerca de 45 minutos a
uma hora para chegarmos lá”.
Outro relato complementa a idéia:
“Desde o início de nossa atuação nessa instituição, foi sempre
muito difícil manter um diálogo com a coordenação. No dia em
que fizemos o estudo de viabilidade, a coordenadora não deu a
atenção necessária de que estávamos precisando, pois a todo o
momento se retirava da sala para fazer outras atividades, nos
deixando a sua espera, demonstrando, assim, que nossa presença
naquele espaço para ela não tinha nenhuma importância. Depois
do estudo de viabilidade, foram marcados, com a coordenadora,
dois encontros na escola durante a semana. Entretanto, esta não
compareceu e resolvi, junto com minha colega de trabalho, deixar
cartazes de divulgação das oficinas com uma pessoa da
secretaria. O resultado foi de sábados e sábados sem público nas
nossas oficinas porque a coordenadora alegava não ter tempo
194
Caminhadas de universitários de origem popular
para fazer a divulgação. Um mês depois (novembro) de nossa
entrada na escola, conseguimos um público fixo de três pessoas
até o mês de dezembro. Em janeiro, conseguimos aplicar somente
uma oficina com apenas duas pessoas e, em fevereiro, também não
foi possível aplicar oficina porque não havia público. No período
de janeiro e fevereiro, a coordenadora nos disse que enquanto
muita gente estava querendo ficar em casa, nós estávamos
perdendo o tempo indo para a escola, já que nesses meses há uma
baixa freqüência. Tentamos fazer contato com outros oficineiros,
mas não obtivemos muito êxito. Com relação ao espaço que nos
foi cedido, utilizamos uma sala de aula. Já com relação aos
materiais utilizados nas oficinas, podemos dizer que não houve a
colaboração da escola. O que percebemos é que os pouco
freqüentadores do programa naquela escola são de outras escolas
e se interessam mais pela oficina de esportes. Sendo o público
geral composto por adolescentes de, aproximadamente, 14 anos,
nós tentávamos sempre que possível seduzi-los para freqüentarem
nossa oficina. Quando chegávamos à escola, às 10:00, pedíamos a
coordenadora para assinar o planejamento e ela se recusava, com
o argumento de que no final (12:00) seria mais conveniente; no
entanto, quando íamos a sua procura, ela já havia saído da escola
sem previsão de retorno. Por isso, em muitos planejamentos há a
assinatura de um professor comunitário que também relutou em
assinar, mas, como insistíamos muito, ele acabava assinando”.
Nesses depoimentos, podemos identificar claramente que o posicionamento dos atores
envolvidos foi vital para o desenvolvimento da proposta. Há construção do sentimento de
pertencimento, que se formou progressivamente, construindo o processo de incorporação e
exteriorização de atitudes que as levaram a se considerar parte da escola, ou seja, construíram
uma identidade de agente que se materializou na posição de cada interessado no sucesso da
proposta.
Contudo, entendemos que a construção desse sentimento de pertença é uma tarefa
bastante complexa, que se constitui ao longo da intervenção e se materializa na predisposição
dos agentes. As disposições dos agentes foram vitais para a baixa freqüência nas oficinas,
do desânimo das estudantes bolsistas e da insatisfação da escola.
Por outro lado, mesmo com as mudanças ocorridas, na adequação na forma de atuação
dessa parceria, muitos dos usuários consideravam os estudantes bolsistas (universidade)
como prestadores de serviço. Isso acarretou frustração, insegurança e desconfiança do grupo.
“Desde o início, não houve receptividade tanto pelos alunos,
quanto pelos oficineiros e coordenação. Os oficineiros temiam que
o público “deles” parasse de freqüentar suas oficinas e
recusaram-se a colaborar na divulgação do Programa. Tivemos
pouco público. As oficinas mais produtivas foram as que
conseguimos resgatar as crianças da oficina de reforço escolar,
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
195
que ficavam até 14h na escola. A escola fornecia almoço e quase
todas as crianças iam apenas fazer a refeição, logo em seguida
iam embora. O futebol era a grande atração dos meninos, que
pareciam muito violentos e agitados e não se interessavam pelas
oficinas de Leituração e Direitos Humanos. Não havia material
para ser utilizado, como aparelho de som, TV, DVD ou vídeo, giz,
folhas de papel, etc. A escola disponibilizou a sala de leitura para
que pudéssemos utilizar livros com as crianças, mas receavam que
fossem destruí-los. Foi muito triste não poder realizar o trabalho
da forma como eu gostaria nessa escola e creio que a falta de
apoio da comunidade foi um fator importante para tal resultado”.
Ou ainda:
“Houve cordialidade e boa aceitação do coordenador pelo
projeto, contudo não houve iniciativa em facilitar a atuação do
bolsista, por maior que fosse a cumplicidade existente entre eles.
Entre bolsista e oficineiros não houve aproximação. Durante a
presença destes na escola, estavam sempre em atividade e eram
distantes, de forma que o referido bolsista nem os conhecia, o que
se constituía em uma forte barreira para que a relação fosse
efetivada. Entre bolsista e comunidade, estabeleceu-se um bom
relacionamento, o que foi de suma importância à realização do
trabalho. Acerca da estrutura viabilizada pela escola para a
implementação das oficinas, foram disponibilizados televisão e
aparelho de DVD. A divulgação das oficinas foi feita pelo
representante do Escola Aberta do C. E. Vila Bela, verbalmente,
durante a semana, de sala em sala. A participação da comunidade
foi frustrante. Houve pouca adesão popular aos encontros e o
público era de crianças com idade entre cinco e dez anos, com
predominância de meninas”.
Podemos observar, nesses dois relatos, que a não receptividade por parte dos atores que
constituem os espaços populares acarreta fracasso no desenvolvimento da intervenção.
Acreditamos que isso acontece pelo descrédito fomentado por instituições, que muitas vezes
em atuações pontuais chegam e saem dos espaços populares sem esclarecer adequadamente
suas intenções. Esse esclarecimento é causado pela descontinuidade da intervenção, o que
fomenta um sentimento de laboratorial ao espaço popular (escola).
No caso da universidade, se considerarmos que a representação simbólica dos usuários
sobre a universidade passa pela construção de uma instituição detentora do saber científico
que desqualifica o saber não-científico, podemos inferir que esse simbolismo é mais um
fator agravante ao distanciamento entre a universidade e os espaços populares.
Iniciar trabalho é sempre algo que constitui um grande desafio. Iniciar uma
parceria que envolve dois Programas distintos, mas com uma importante interface
conceitual, é um desafio ainda maior. Em nossa experiência em 2006, podemos avaliar
196
Caminhadas de universitários de origem popular
que a parceria do Programa Conexões de Saberes com o Programa Escola Aberta
delineou o caráter de Ação Afirmativa, pressuposto que está no cerne do Conexões
de Saberes.
A Ação Afirmativa no Programa Conexões de Saberes se configura quando delimita
como objetivo: a) promover a aproximação entre os saberes produzidos na universidade e
os saberes produzidos nas práticas dos espaços populares; b) fortalecer a trajetória acadêmica
de jovens oriundos de espaços populares, incidindo sobre a permanência bem sucedida
desse setor na universidade.
A constituição da parceria pressupõe o desenvolvimento de metodologias que adeqüem
e promovam maior aproximação entre os saberes produzidos na universidade e os saberes
produzidos pelas práticas dos espaços populares.
“Está sendo enriquecedor participar do programa Escola Aberta
juntamente com o Conexões, pois estou conhecendo uma
realidade diferente, em alguns aspectos, da que vivencio na minha
comunidade. Além disso, não estou indo até lá só para ensinar,
mas também para aprender com aquelas crianças, através de
olhares diferentes de uma mesma realidade”.
Como também, nos auxilia na construção da trajetória acadêmica dos jovens oriundos
de espaço populares, no que diz respeito a uma nova compreensão dos jovens sobre esses
espaços, ou seja, a construção de novos olhares sobre os espaços populares.
“Eu sempre ouvi falar que pobre não entra na universidade
pública, não tem capacidade de passar no vestibular, porque não
teve um estudo preparatório, e na faculdade particular até que
entra, só que não tem como pagar. Depois que minha irmã me
ajudou a quebrar este tabu achei ótimo estar no projeto com o
Escola Aberta, pois é uma oportunidade de mostrar, para as
crianças e os adolescentes pobres e de escola pública como eu,
que todos nós podemos e devemos buscar uma graduação, não só
por ascensão social ou status e sim para descobrir, aprender e
mostrar também que somos capazes. Mesmo que todos nos digam
que não! Eu sou um exemplo de que podemos”.
“O Escola Aberta permitiu que eu mostrasse para crianças que a
universidade não é “só para rico” como eles achavam”.
Como falamos anteriormente, nosso interesse nesse estudo é também entender como
tem se dado o encontro do jovem intelectual com uma nova compreensão dos espaços
populares, para além dos estigmas que os caracterizam, através das vivências na escola
pública. Em nossa experiência em 2006, dismitificamos mitos que os estudantes bolsistas
conheciam sobre a escola pública e que as escolas tinham da universidade. Ou seja,
intervimos nas representações simbólicas de ambos.
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
197
“Sinto a responsabilidade do Programa Conexões de Saberes,
principalmente com a parceria com o Programa Escola Aberta, no
qual atuo em duas escolas em Belford Roxo (cidade periférica,
próxima à Nova Iguaçu), aos sábados. Tenho aprendido muito
com as crianças. Eu levo os conceitos de Direitos Humanos,
Trabalho a Leituração, e elas me devolvem carinho e um jeito
lindo de encarar a vida, que, desde cedo, é sofrida. No mais, é só o
futuro. Que venha!”
“Uma boa oportunidade de permanência na universidade é o
Programa Conexões de Saberes e ainda a realização de um sonho
pessoal, que é colocar em prática o estímulo à leitura. Foi o que
me chamou atenção para o Programa, quando li no e-mail,
leitura. A prática foi além das expectativas, contar histórias,
mostrar a leitura de mundo e aprender junto sobre os direitos
humanos. Como cresci com o trabalho no Programa Escola Aberta
e na formação do Conexões de Saberes!”
Referências Bibliográficas
ABRAMO, Helena Wendel e BRANCO, Pedro Paulo Marconi (org.). Retratos da Juventude
Brasileira. Análises de uma Pesquisa Nacional. São Paulo: Instituto Cidadania/Editora
Fundação Perseu Abramo, 2005
SOUZA E SILVA, Jailson – Por Que Uns e Não Outros? Caminhada de Jovens Pobres para
a Universidade. Rio de Janeiro: Editora 7 letras, 2003.
____________________ e BARBOSA, Jorge Luiz. Favela. Alegria e Dor na Cidade. Rio
de Janeiro:Senac-Rio/X-Brasil, 2005.
SPOSITO, Marília Pontes. Algumas reflexões e muitas indagações sobre as relações entre
juventude e escola no Brasil. In: Retratos da Juventude Brasileira. Análises de uma Pesquisa
Nacional, Helena Wendel Abramo e Pedro Paulo Marconi Branco (org.). São Paulo: Instituto
Cidadania/Editora Fundação Perseu Abramo, 2005.
VENTURA, Zuenir. Cidade Partida. São Paulo: Cia das Letras, 1994.
198
Caminhadas de universitários de origem popular
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
199
Parte 3 A FORMAÇÃO DE UM SUJEITO
COLETIVO
O discurso do sujeito coletivo conexista
A Proposta do Discurso do Sujeito Coletivo – DSC
Optamos pela abordagem metodológica denominada Discurso do Sujeito Coletivo,
para encerrar o livro Caminhadas, pois a proposta de tal abordagem é “resgatar o discurso
como signo de conhecimentos dos próprios discursos” (LEFÈVRE e LEFÈVRE, 2000, p. 19),
ou seja, através de partes de discursos individuais reconstróem-se discursos-síntese para
expressar uma dada “figura” ou um dado pensar.
O Discurso do Sujeito Coletivo é obtido a partir da identificação de Idéias Centrais e
Expressões-Chave. Analisa-se cada depoimento e retira-se, de cada um, as diferentes Idéias
Centrais e suas respectivas Expressões-Chave para em seguida as agregarem, formando-se, assim,
o DSC. Idéia Central constitui-se numa ou mais afirmações que vão traduzir o conteúdo essencial
do discurso que os sujeitos expressam formalmente em seus depoimentos. Expressões-Chave
são transcrições literais de partes dos depoimentos. Essas transcrições vão permitir o resgate das
partes essenciais do conteúdo discursivo. Esse resgate torna-se fundamental na medida em que
permite ao leitor julgar a pertinência ou não da seleção e/ou tradução dos depoimentos.
O ponto de partida são os discursos em “estado bruto” (expressão dos autores), que
serão submetidos a um trabalho analítico de decomposição. Esse trabalho analítico consiste
em selecionar as principais idéias presentes em cada um dos discursos individuais e em
todos eles reunidos. É como se o discurso de todos fosse o discurso de um.
O DSC tem alguns pressupostos que também contribuíram para a nossa escolha por essa
proposta metodológica. Dentre eles, destacamos: o DSC como coletividade “discursivada” e
o DSC como resgate da fala do social. No primeiro, o conteúdo do DSC seria composto por
aquilo que um determinado sujeito individual falou e “também por aquilo que poderia ter
falado e que seu ‘companheiro de coletividade’ atualizou ‘por ele’” (idem, p. 30). O pressuposto
sociológico de base é que o DSC é a expressão simbólica do campo1 a que ambos pertencem
e da posição que ocupam dentro desse campo. No segundo, há o resgate da fala do social
através de depoimentos que, apesar de individuais, representam um determinado contexto
social em que a voz de um é a voz de um grupo coletivizado.
Enfim, os indivíduos, mais precisamente os conexistas, por pertencerem a uma
coletividade geradora de representações sociais, deixaram de ser indivíduos para se
incorporarem em vários discursos coletivos que os expressam.
1
A noção de campo pode ser aqui interpretada no sentido que Bourdieu (1997) lhe dá: “Um campo é um
espaço social estruturado, um campo de forças – há dominantes e dominados, há relações constantes,
permanentes de desigualdade, que se exercem no interior desse espaço – que é também um campo de lutas
para transformar ou conservar esse campo de forças.” (p. 57).
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
203
Os Discursos dos Sujeitos Coletivos
1. Apesar das dificuldades...
Idéia Central/Palavras-Chave: Seria muito difícil ingressar em uma universidade pública
“Quem cuidou de mim, enquanto minha mãe trabalhava, foi minha irmã, que era
apenas quatro anos mais velha que eu. Vejam que tamanha responsabilidade, uma criança
de quatro anos cuidando de um bebê... desde muito pequena, gostava da área de saúde.
Minha mãe perguntava: “Neném, o que você quer ser quando crescer?” E eu respondia:
“Médica”; eu nem sabia o que era saúde, muito menos Enfermagem, pois não é uma profissão
que as crianças conheçam. Mas eu sabia que jamais conseguiria ingressar em uma
universidade pública para cursar Medicina, muito menos meus pais pagarem uma faculdade
particular. Então decidi fazer o curso técnico em qualquer coisa e ganhar dinheiro para
ajudar nas despesas de casa. Fiz provas para as escolas técnicas públicas e a minha preferência
era CEFET e Federal de Química, porque minha irmã “cabeçuda” tinha ingressado para o
CEFET e eu a “burrinha da família”, claro, não passei de primeira, nem de segunda.”
“Desde os 10 anos, sempre tive um sonho: fazer Medicina em uma universidade pública...
fiz vários planejamentos para meu futuro, mas alguns tiveram que sofrer modificações ao
longo da minha trajetória de vida, sendo adequados à minha realidade. Na instituição em que
cursei o segundo grau, havia a possibilidade de realizar o Ensino Médio juntamente com um
curso profissionalizante. Optei pelo curso técnico de Enfermagem, queria conhecer melhor a
área de saúde e ver se era realmente o caminho profissional a ser seguido. Tive a oportunidade
de estagiar em vários hospitais e obter a confirmação de que iria prestar vestibular para
Medicina, como sempre havia planejado. Após terminar o segundo grau, prestei dois anos de
vestibular para o curso de Medicina, porém foram tentativas sem sucesso.”
“Terminei o segundo grau sentindo um imenso frio na barriga. Sempre ouvira dizer
que a universidade pública é para quem tem dinheiro para estudar nos melhores cursos prévestibulares. O fato é que minha família jamais conseguiria pagar uma faculdade particular
e, além disso, passar para uma universidade pública era o mínimo que podia fazer em troca
de tanto esforço da minha família. Além de um grande sonho que tinha de crescer
profissionalmente, era uma obrigação, uma prestação de contas, e eu queria provar para
mim mesma e para aqueles que desistiam que não precisava ser rica para conseguir estudar
em uma federal. E estimulava meus colegas de classe a fazerem o mesmo, não desistirem.”
“Na esperança de encontrar meu nome, pesquisava todos os dias na Internet as listas
de classificados no vestibular. Na verdade, minha família já estava desiludida com a
possibilidade do meu ingresso em alguma universidade pública, pois somente meu primo
de primeiro grau Raphael havia conseguido ingressar em uma instituição de ensino superior
público, porém, não teve condições de concluí-la. Para mim, ingressar em uma instituição
federal de ensino, além de ser a oportunidade de ter um dos melhores ensinos e ingressar no
mercado de trabalho em pé de igualdade com aqueles que têm melhores condições financeiras
do que eu e era realmente o meu maior objetivo naquele momento, pois sabia que seria
difícil para meus pais arcarem com a despesa de uma universidade particular e sempre foi
meu grande sonho, que eu iria conquistar depois de muita luta.”
“A minha aprovação em uma universidade pública foi uma grande realização pessoal
dos meus pais, pois, na comunidade em que vivemos, passar para uma instituição pública
era só para os que tinham “grana” e os meus pais conseguiram, depois de terem começado
suas vidas do zero. Novamente, meus pais têm que “ralar” muito para que nada falte na
204
Caminhadas de universitários de origem popular
minha formação e muitas vezes se sacrificam para que eu não sofra como eles na minha vida.
Meus pais ficaram muito preocupados quando escolhi uma profissão pelo simples prazer de
ajudar alguém, que era melhor do que a grana que iria ganhar, pois eles sabem que hoje no
mundo não se pensa assim. Muitas vezes eles tentaram conversar comigo e falar que na vida
é preciso ter cuidado, pois tentar mudar muita coisa não dá muito certo. Mas eu sempre falei
para eles que, se um dia for mais um na vida, não iria honrar toda história vivida por eles,
que estou na universidade para criar idéias, um senso critico sobre a realidade da nossa
sociedade e não apenas ser mais um que vai se formar, receber o diploma e entrar no mercado
de trabalho, que a cada dia sacrifica cada vez mais a vida das pessoas visando apenas o lucro
e uma sociedade calada para que uma pequena elite fique cada vez mais rica.”
2. ...passei no vestibular.
Idéia Central/Palavras-Chave: As estratégias e o sonho realizado
“E agora o que fazer? Conhecia uns amigos que coordenavam um pré-vestibular
comunitário, e como minha cunhada já havia dito, tinha que me virar sozinha, e até
então o meu pai não era dos mais presentes. Matriculei-me. Comecei a estudar, ou pelo
menos era o que achava. Não levava muito a sério. Era adolescente e, sabe como é! Só
queria cursar a faculdade, mas não fazia por onde. Prestei o vestibular, pela primeira
vez, só para UERJ, era a única que conhecia e era meu sonho de consumo, lembra?
Obviamente, não passei. Fingia que estudava! Prestei o segundo, só que, agora, depois
de um ano no pré, já sabia da existência da UFRJ, então prestei para as duas, mais uma
vez não passei. Só que agora estava levando mais a sério. Porém, tive que começar a
trabalhar, então foi o que atrapalhou o meu rendimento, sem contar que, apesar de ter
levado mais a sério, as estratégias que usei ainda estavam erradas. Sim, estratégias!
Porque vestibular, além de muito estudo, é necessário traçar estratégias. No meu terceiro
vestibular, não passei novamente. Porém foi o vestibular em que cheguei mais perto.
Havia traçado a estratégia certa, mas ainda faltou algo mais. No quarto vestibular e
último, o resultado não poderia ser outro: passei!”
“Quando chegou a época dos resultados, fui conferindo todos: UFRJ, UFF e UERJ. A
cada lista, aumentava minha decepção, pois não encontrava meu nome, apesar de ter
conseguindo atingir a média para ser classificada. Já estava sem esperança de ser uma
estudante universitária. Ao desabafar com uma amiga, esta me convidou para acompanhá-la
a um escritório a fim de tentarmos uma vaga de emprego em uma rede de supermercados.
Topei na hora, pois eu precisava ajudar nas despesas da minha casa, haja vista os dois anos
de tantos gastos. Enquanto estávamos na fila, vi um rapaz lendo um jornal de esportes que
na capa tinha uma manchete ressaltando a lista de aprovados da UNIRIO. No momento em
que eu li aquilo, me dei conta que tinha esquecido de conferir o resultado dessa universidade.
Então, mais que depressa, pedi o jornal emprestado ao rapaz e busquei meu nome,
ansiosamente. Para meu espanto e alegria, meu nome ali estava, enfim havia conseguindo a
tão sonhada vaga em uma universidade federal.”
“Saiu a lista da primeira universidade (UFRJ) logo em janeiro, para Psicologia, não
havia passado. Da segunda, saiu logo depois (UERJ), para História, não havia passado.
Em fevereiro, da terceira (UNIRIO), não passei para História de novo. Várias reclassificações
e nada. Meu mundo havia desabado, ou melhor, eu havia caído do mundo. Tanto esforço e
nada. Não sabia o que fazer. Havia conseguido uma bolsa integral pelo ENEM em uma
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
205
universidade particular, mas sonhava estudar em uma universidade pública, não queria
sentir que meu esforço tinha sido em vão. Faltava uma universidade, o resultado sairia
somente em março, mas o tempo de espera valeu. Eu, finalmente, PASSEI.”
“Na minha casa, as pessoas falavam que eu tinha que desistir, que estava perdendo
tempo, que deveria procurar um emprego e tentar fazer uma particular mesmo. Mas o meu
objetivo eram as públicas. Formei um grupo de estudo com outras alunas do pré.
Encontrávamos-nos todos os dias, antes da aula, às 14:00, para estudarmos. Éramos quatro,
duas para a área biológica e duas para humanas. Quando chegou a época das provas
específicas, nos dividimos e intensificamos ainda mais nossos estudos. Finalmente, em
2005, passei para a UNIRIO e as minhas amigas do pré também, exceto uma, passaram para
outras universidades. Depois que fui aprovada, passei de aluna para coordenadora do prévestibular. O mais importante foi que eu pude mostrar para os novos alunos que entrar em
uma universidade pública não é difícil, é apenas trabalhoso.”
“Entrei na universidade bastante consciente da sua grande importância na vida de um
estudante, sabendo que não é a total garantia de um excelente emprego e altos salários, pois
depende também da competência e do esforço em mergulhar no mercado de trabalho que é
bastante concorrido e injusto. Vou sair da “casa” com um pensar mais sólido e objetivo.”
3. E agora? Como fazer o curso?
Idéia Central/Palavras-Chave: Passei no vestibular, mas como conseguir permanecer
e fazer a faculdade?
“Percebi que, na realidade, o mais difícil não era conseguir uma vaga no ensino
superior e sim a permanência e sua vindoura conclusão. Por ser o curso por mim escolhido
de horário integral, é extremamente complicado conciliar os estudos com um trabalho.
Dessa forma, conto com o auxílio dos meus pais, a fim de me manter na faculdade.”
“No primeiro dia, tive aula o dia inteiro, não sabia onde almoçar e não conhecia ninguém
do turno da manhã, muito menos da tarde. Foi então que comecei a construir meu círculo de
amizades na faculdade, por não saber onde me dirigir para almoçar, onde seriam as aulas no
turno da tarde, isto é, eu estava me sentindo sem rumo, quando encontrei a Milena e a Mariana,
que se tornaram minhas amigas. Perguntei se elas também iriam fazer a aula da tarde e se eu
poderia ficar fazendo companhia a elas. Outras dificuldades foram os gastos com cópias dos
textos, só no primeiro dia foram R$ 35,00 mais as passagens. Só de transporte a despesa era de
R$ 12,00 por dia. Para diminuir esse gasto, resolvi pegar uma van para ir da minha casa até
Botafogo: R$ 4,00 de ida e mais R$ 4,00 de volta. Como o ônibus de Botafogo até a Urca
custava R$ 2,00 a ida, mais R$ 2,00 a volta, passei a fazer uma caminhada de Botafogo até a
Urca, economizando por dia R$ 4, 00, por mês R$ 80,00!”
“Depois disso, foram várias novidades consecutivas: primeiro a distância da minha
casa à universidade seguida pelo problema com as refeições nutritivas e o empréstimo de
livros com certa dificuldade. Mas quando achei que a tempestade estava prestes a findar,
estava apenas começando, porque o desafio era não apenas entrar, mas sim como continuar?”
“Isso representava mais um desafio, pois eu teria que passar o dia inteiro na faculdade,
e não poderia trabalhar. Isso aumentaria os gastos e eu não poderia ajudar a me manter na
universidade. Esse é outro grande desafio que a camada popular enfrenta ao conseguir
ingressar na faculdade. Apesar de toda a dificuldade para entrar, ainda acho mais difícil
permanecer nela.”
206
Caminhadas de universitários de origem popular
“Quando estava cursando o segundo período, fui trabalhar em uma creche comunitária
conveniada com a prefeitura, que se situava no meu bairro. Eu adorava o trabalho, mas o
problema era o horário. Eu trabalhava no turno da tarde, das 13h às 17h, e estudava à noite. Por
isso, todos os dias, eu chegava atrasada e muito cansada na faculdade. Mesmo com essas
dificuldades, prossegui com o trabalho e a graduação. No quarto período, precisei trancar o
curso devido à violência do movimento do trafico do meu bairro. As facções estavam em
guerra promovendo uma onda de terror na nossa comunidade e impondo um toque de recolher
a partir das 22h. Nos primeiros dias, tentei dormir na casa de uma amiga, mas me sentia muito
mal, então, optei pelo trancamento de minha matrícula.”
“Outro fato que me assustou bastante foi a indiferença de professores com relação à
realidade de um aluno de comunidade popular. O professor partia do princípio de que
todos tinham acesso a computador e Internet e a elaboração de trabalhos que exigiam
esses recursos significava um custo bem alto para mim. Atualmente, convivo com essas
dificuldades em menor grau, sabe como é, a gente se vira daqui e dali e acaba, se não
superando, aprendendo a conviver com elas.”
“Mesmo com as despesas de fotocópias, consegui me manter freqüentando todas as
disciplinas oferecidas até o terceiro período. Com o desemprego do meu pai, tudo mudou.
Resolvi então fazer apenas três disciplinas para diminuir os custos de almoço e fotocópias, além
de estar mais em casa para vender sacolés. Mas, mesmo assim, era difícil e tentei como última
solução a bolsa de projeto para o CNPq e não consegui, foi a última cartada. E, então, estava
quase jogando a toalha, quando fui convocada, por telegrama, para trabalhar na Prefeitura do
Rio como servidora temporária, resultado de um concurso feito no início daquele ano para
auxiliar de controle de endemias. Tranquei a matrícula às pressas, na esperança de acabar ficando,
o que não aconteceu e trabalhei seis meses, o que me possibilitou pagar minhas dívidas. O
retorno só foi possível, através de auxílio financeiro de amigos para as passagens, que durou por
volta de seis meses até conseguir um estágio indicado por uma conhecida, no Museu do Itamaraty.
A bolsa era de R$ 260,00, pouco, mas fundamental para minha permanência na universidade,
que quando atrasava nos deixava em situações bem complicadas, como a que fiquei na
universidade: era o dia de pagamento, fui para a aula contando com isso e,
por vários motivos, não confirmei essa informação e deixei para fazer isso
depois. Conclusão: não tinha um centavo para ir ao estágio ou voltar para casa. Tive que vir
andado da Urca à Central do Brasil, onde fica o estágio. Cheguei horas depois, suada e muito
cansada e me emprestaram dinheiro para chegar em casa. Hoje estou mais próximo de me formar
e sem nenhuma reprovação nas disciplinas apesar de tudo o que passei. E retiro esse ensinamento
da minha trajetória: que sonhos, para se tornarem realidade, são bem difíceis e precisamos nos
agarrar às oportunidades que aparecem, sendo necessário perseverança, dedicação e determinação.
Porém, hoje espero poder colaborar e incentivar outros a percorrer esse mesmo caminho, pois a
realidade é construída assim: com lutas, perdas e conquistas que nos fazem transformar.”
4. O Programa Conexões de Saberes e o Programa Escola Aberta
Idéia Central/Palavras-Chave: A importância do projeto Conexões de Saberes e do
Programa Escola Aberta
“Fiquei sabendo de um projeto de extensão chamado Conexões de Saberes e me
informei. Então, fiz entrevista e levei documentação. Curti minhas férias de julho e aguardei...
inesperadamente, fui chamada para integrar essa equipe de “conexistas”, com os quais
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
207
muito aprendi e aproveito para agradecer por me ajudarem a caminhar. Na universidade, foi
minha chance de permanecer. Mostrar que o aluno de origem popular tem potencial para
aprender e crescer. E hoje sou feliz por essa história poder compartilhar.”
“Foi no terceiro período que tomei conhecimento do Programa Conexões de
Saberes e isso representou uma nova esperança. Além da ajuda financeira oferecida,
me encantei com o projeto de extensão e pesquisa voltado para alunos provenientes
de camadas populares, e a possibilidade de contato com os alunos de comunidades
pobres, onde eu poderia estimulá-los a ter mais confiança e também aprenderia muito
com eles. Foi aqui que conheci outras pessoas que, como eu, encontraram dificuldades
em suas trajetórias, mas que persistem para mostrar que, com perseverança e fé,
conquistaremos nosso lugar.”
“Dentro do programa Conexões de Saberes, encontrei pares, indivíduos com
histórias de lutas de altos e baixos como a minha. Nas aulas, aprendi a ver com outro
olhar as desigualdades, preconceitos e discriminações existentes na sociedade e a
acreditar na necessidade da divulgação maciça dos direitos humanos, temática por mim
trabalhada junto ao Escola Aberta na cidade de Queimados, onde realizo oficinas com
crianças em fase escolar de origem popular, tendo em vista proporcionar um futuro
menos desigual e mais digno.”
“O Programa Conexões de Saberes alterou positivamente a minha vida acadêmica e social,
visto que, além da ajuda financeira (imprescindível para mim), eu participaria de um projeto de
ação afirmativa, junto com pessoas de origem semelhante a minha, engajadas e comprometidas
com o seu papel de agentes produtores e transformadores da sociedade na qual estão inseridos.”
“Observando minha trajetória, percebo que tudo o que vivi foi necessário para meu
aprendizado e engrandecimento como pessoa. O Programa Conexões de Saberes está sendo
uma grande oportunidade, pois aprendi, aprendo e pretendo aprender muito mais. Além dos
ensinamentos, o Programa é de grande ajuda para minha manutenção e permanência na
universidade. Penso que o acesso à educação é direito de todos, então a universidade
também deveria ser. No entanto, de acordo com a “Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão”, o acesso à universidade é uma questão de mérito, isto é, não é acessível a todos.
Por isso, as discrepâncias social e racial permeiam a nossa sociedade.”
“No Conexões, estou descobrindo mais um mundo novo, até mesmo uma nova identidade,
outras ideologias de vida, me identifico muito com as causa sociais que ele abraça. Quero ajudar a
construir um mundo melhor, poder levar oportunidades para o meu povo. Sou muito grata a tudo
e a todos que me ajudaram e continuam me ajudando. Sei que ainda haverá muitos obstáculos pela
frente e com garra passarei por cima de todos eles, pois, com os obstáculos, aprendemos a dar mais
valor àquilo que conquistamos.”
“A minha entrada nesse Programa foi mais uma confirmação de que eu estava seguindo o
caminho certo. O valor da bolsa me ajuda muito nas despesas de minha permanência na universidade,
mais do que isso, ter entrado para o Conexões significou para mim, ingressar num grupo no qual eu
me sinto feliz e estimulada para seguir em frente.”
“A experiência no Escola Aberta tem sido bastante significativa, pois atende à demanda
profissional na qual estou inserida. Em setembro de 2006, apliquei uma oficina em duas escolas
pertencentes ao município de Belford Roxo, Escola Municipal Manoel Gomes e Escola Municipal
Belford Roxo, na primeira escola, onde o público atendido compreendia jovens de 12 a 15 anos,
a atividade contou com o debate sobre o preconceito racial a partir de textos contendo depoimentos
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de pessoas negras como Netinho, da banda Negritude, o jogador Marcelinho carioca e a atriz Zezé
Mota, com uma proposta final de registro gráfico sobre o tema. Na segunda escola, os participantes
eram, em sua maioria, crianças e a realização da oficina foi gerada com a leitura de obras infantojuvenis que tinham como protagonistas personagens negros, seguido de uma “conversa” sobre a
valorização da identidade negra e o seu registro em desenho, levando-os, assim, à construção de
um pensamento crítico.”
“Iniciar um trabalho é sempre algo que constitui um grande desafio, e minha entrada no
Escola Aberta foi algo que suscitou em mim vários sentimentos, entre eles o medo, sobretudo, de
não ser aceita, de cometer mais erros que acertos – hoje sei que cometi alguns equívocos, mas
também deixei algumas sementes. Esse início assemelha-se muito ao que estou fazendo nesse
momento, ou seja, começar um texto, trabalho que significa quase sempre grande dificuldade,
contudo, quando você consegue dar o pontapé inicial, logo toma o “gostinho”. No primeiro
momento, iniciei as oficinas no Escola Aberta em dupla com Louise, outra conexista, e me pareceu
que rolava perfeita simbiose entre a gente. Posteriormente vi que não foi bem assim, mas, enfim, as
conexões nem sempre se dão da maneira que idealizamos, por isso acredito que tropeços e
divergências façam parte de todo processo coletivo, só desse modo exercitaremos o princípio da
dialética. No momento seguinte, passei a trabalhar sozinha, pois constatamos no decorrer do
processo que se tornara inviável atuarmos em duas Escolas no mesmo dia. Foi então que o desafio
tomou uma dimensão ainda maior e junto com ele todos os medos. Certamente essa é uma daquelas
experiências que irão marcar não somente minha participação dentro do Projeto Conexões de
Saberes, como também toda minha trajetória de vida. Nessa hora, passa uma espécie de filme na
nossa cabeça, me vem à cabeça, então, a experiência do primeiro dia aplicando a oficina na Escola
Municipal Francisco Portugal Neves, a expectativa das crianças e, em seguida, ocorrer o pior: o
desinteresse delas foi simplesmente um grande vazio, seguido de uma sensação de fracasso terrível.
Mas não pensem que me dei por vencida. No outro final de semana, lá estava eu com várias idéias
que fervilhavam em minha cabeça no decorrer daquela mesma semana. Resolvi que iria trabalhar
com todos os oficineiros, ou quase todos, do Escola Aberta e acredito ter dado certo, pois a partir
dali passei a conhecê-los melhor e a receptividade aconteceu não só por parte deles, como também
das crianças. Tive a oportunidade de ouvir relatos incríveis e, sobretudo, aprender e trocar com
uma boa parte deles (oficineiros e as crianças). Claro que nem todo sábado era o que se pode
chamar de “um sucesso de público e crítica”, contudo pude constatar que quantidade nem sempre
representa qualidade e que, às vezes, sem que nós mesmos percebamos, alguma coisa fica. É isso aí
gente, estou caminhando, às vezes tropeçando, mas acredito que tudo isso faz parte de um processo
e que, um dia, vou olhar para trás e ver que valeu a pena.”
Referências Bibliográfica
BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Trad. Maria Lúcia Machado. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1997.
LEFÈVRE, Fernando; LEFÈVRE, Ana Maria C. Os Novos Instrumentos no Contexto da Pesquisa
Qualitativa. In: LEFÈVRE Fernando; LEFÈVRE Ana Maria C.; TEIXEIRA, Jorge Juarez V.
(orgs.). O Discurso do Sujeito Coletivo. Caxias do Sul, Rio Grande do Sul: EDUCS, 2000.
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