UNIRIO Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Transcrição
UNIRIO Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
UNIRIO Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Caminhadas de universitários de origem popular UNIRIO UNIRIO Copyright © 2009 by Universidade Federal do Rio de Janeiro / Pró-Reitoria de Extensão. O conteúdo dos textos desta publicação é de inteira responsabilidade de seus autores. Coordenação da Coleção: Jailson de Souza e Silva Jorge Luiz Barbosa Ana Inês Sousa Organização da Coleção: Monique Batista Carvalho Francisco Marcelo da Silva Dalcio Marinho Gonçalves Aline Pacheco Santana Programação Visual: Núcleo de Produção Editoria da Extensão – PR-5/UFRJ Coordenação: Claudio Bastos Anna Paula Felix Iannini Thiago Maioli Azevedo C183 Caminhadas de universitários de origem popular : UNIRIO / organizado por Ana Inês Souza, Jorge Luiz Barbosa, Jailson de Souza e Silva. — Rio de Janeiro : Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pró-Reitoria de Extensão, 2009. 212 p. ; il. ; 24 cm. — (Coleção Caminhadas de universitários de origem popular) Ao alto do título: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e as Comunidades Populares. Parceria: Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. ISBN: 978-85-89669-36-8 1. Estudantes universitários — Programas de desenvolvimento — Brasil. 2. Integração universitária — Brasil. 3. Extensão universitária. 4. Comunidade e universidade — Brasil. I. Souza, Ana Inês, org. II. Barbosa, Jorge Luiz, org. III. Silva, Jailson de Souza e, org. VI. Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e as Comunidades Populares. V. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. VI. Universidade Federal do Rio de Janeiro. VII. Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. CDD: 378.81 Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares Organizadores Jailson de Souza e Silva Jorge Luiz Barbosa Ana Inês Sousa UNIRIO Pró-Reitoria de Extensão - UFRJ Rio de Janeiro - 2009 Coleção Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva Ministério da Educação Fernando Haddad Ministro Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade – SECAD André Luiz de Figueiredo Lázaro Autores Adriana Cristina Araújo Souza Alexsandro da Silva Evangelista Ana Carolina Pereira dos Santos Ana Margareth do Nascimento Amorim Ana Paula da Silva Mendonça Secretário Angélica do Carmo Coitinho Armênio Bello Schmidt Antonio Celso da Silva Campello Diretoria de Educação para a Diversidade - DEDI Caroline de Aquino Pereira Leonor Franco de Araújo Emily Maviana da Trindade Santos Coordenação Geral de Diversidade – CGD Fabiana Santos de Paula Fabiana Santos de Souza Fabíola Estrela Dias Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares Jorge Luiz Barbosa Jailson de Souza e Silva Coordenação Geral Diógenes Pinheiro Coordenação Geral do Programa Conexões de Saberes/UNIRIO Fabrice da Mota Cardoso Felipe Jorge Rodrigues Campos Fernanda Guimarães Felix Francelino Conceição Lopes Cruz Francisco de Paula Araújo Gabriele Silva dos Santos Janaína Silva Lucas Julio César da Silva Oliveira Alba Lucia Castelo Branco Maria Elena Viana Souza Coordenação Adjunta Lellis Hummenigg Cremonez Taveira Lia Evangelista dos Santos Lívia Ceschia dos Santos Miranda Mônica Borges Monteiro Luciana Campos Golarte Coordenação Assistente Louise Storni Vasconcelos de Abreu Luana Nascimento de Oliveira Luiz Antonio Gomes Cristóvão Marcelly Marques Pereira Maria Aparecida Mesquita dos Santos Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Marília Amaral Pepicon Melanie Pimenta Amaral Malvina Tania Tuttman Reitora Milena Martins Medina Priscila do Nascimento Pereira Luiz Pedro San Gil Jutuca Vice-Reitor Priscila Maia Barcelos Rodolpho de Morais Pereira Rosana Nunes Dutra Regina Guedes Moreira Guimarães Pró-Reitora de Extensão Rosangela Neder Sabrina Carvalho de Almeida Simony Costa de Oliveira Taíssa Pereira dos Santos Valéria Paixão de Vasconcelos Nepomuceno Vanessa Adalgiza Pimenta de Carvalho Vanessa Barbosa de Brito Luciana Campos de Golarte Mônica Borges Monteiro Prefácio A sociedade brasileira tem como seu maior desafio a construção de ações que permitam, sem abrir mão da democracia, o enfrentamento da secular desigualdade social e econômica que caracteriza o país. E, para isso, a educação é um elemento fundamental. A possibilidade da educação contribuir de forma sistemática para esse processo implica uma educação de qualidade para todos, portanto, uma educação que necessita ser efetivamente democratizada, em todos os níveis de ensino, e orientada, de forma continua, pela melhoria de sua qualidade. No atual governo, o Ministério da Educação persegue de forma intensa e sistemática esses objetivos. Conexões de Saberes é um dos programas do MEC que expressa de forma nítida a luta contra a desigualdade, em particular no âmbito educacional. O Programa procura, por um lado, estreitar os vínculos entre as instituições acadêmicas e as comunidades populares e, por outro lado, melhorar as condições objetivas que contribuem para os estudantes universitários de origem popular permanecerem e concluírem com êxito a graduação e pós-graduação nas universidades públicas. Criado pelo MEC em dezembro de 2004, o Programa é desenvolvido a partir da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD-MEC) e representa a evolução e expansão, para o cenário nacional, de uma iniciativa elaborada, na cidade do Rio de Janeiro no ano de 2002, pela Organização da Sociedade Civil de Interesse Público Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. Na ocasião constitui-se uma Rede de Universitários de Espaços Populares com núcleos de formação e produção de conhecimento em várias comunidades populares da cidade. O Programa Conexões de Saberes criou, inicialmente, uma rede de estudantes de graduação em cinco universidades federais, distribuídas pelo país: UFF, UFMG, UFPA, UFPE e UFRJ. A partir de maio de 2005, ampliamos o Programa para mais nove universidades federais: UFAM, UFBA, UFC, UFES, UFMS, UFPB, UFPR, UFRGS e UnB. Em 2006, o Ministério da Educação assegurou, em todos os estados do país, 33 universidades federais integrantes do Programa, sendo incluídas: UFAC, UFAL, UFG, UFMA, UFMT, UFPI, UFRN, UFRR, UFRPE, UFRRJ, UFS, UFSC, UFSCar, UFT, UNIFAP, UNIR, UNIRIO, UNIVASF e UFRB. Através do Programa Conexões de Saberes, essas universidades passam a ter, cada uma, ao menos 251 universitários que participam de um processo contínuo de qualificação como pesquisadores; construindo diagnósticos em suas instituições sobre as condições pedagógicas dos estudantes de origem popular e desenvolvendo diagnósticos e ações sociais em comunidades populares. Dessa forma, busca-se a formulação de proposições e realização de 1 A partir da liberação dos recursos 2007/2008 cada universidade federal passou a ter, cada uma, ao menos 35 bolsistas. práticas voltadas para a melhoria das condições de permanência dos estudantes de origem popular na universidade pública e, também, aproximar os setores populares da instituição, ampliando as possibilidades de encontro dos saberes destas duas instâncias sociais. Nesse sentido, o livro que tem nas mãos, caro(a) leitor(a), é um marco dos objetivos do Programa: a coleção “Caminhadas” chega a 33 livros publicados, com o lançamento das 19 publicações em 2009, reunindo as contribuições das universidades integrantes do Conexões de Saberes em 2006. Com essas publicações, busca-se conceder voz a esses estudantes e ampliar sua visibilidade nas universidades públicas e em outros espaços sociais. Esses livros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas de centenas de jovens, rapazes e moças, que contrariaram a forte estrutura desigual que ainda impede o pleno acesso dos estudantes das camadas mais desfavorecidas às universidades de excelência do país ou só o permite para os cursos com menor prestígio social. Que este livro contribua para sensibilizar, fazer pensar e estimular a luta pela construção de uma universidade pública efetivamente democrática, um sociedade brasileira mais justa e uma humanidade cada dia mais plena. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Ministério da Educação Observatório de Favelas do Rio de Janeiro Sumário Apresentação ...................................................................................................... 11 Parte 1: Caminhos e caminhadas Agradecimento Adriana Cristina Araújo Souza ......................................................................... 17 A história do nosso Brasil Alexsandro da Silva Evangelista ....................................................................... 21 Fluxo vertical Ana Carolina Pereira dos Santos ...................................................................... 23 Ninguém está totalmente só Ana Margareth do Nascimento Amorim ............................................................ 25 Minha vida é assim... Ana Paula da Silva Mendonça .......................................................................... 28 Caminhando e cantando e seguindo a canção Angélica do Carmo Coitinho ............................................................................. 32 O início Antonio Celso da Silva Campello ..................................................................... 36 Mulheres de fibra, de coragem e de coração Caroline de Aquino Pereira ............................................................................... 39 Ter um bom motivo pra sonhar Emily Maviana da Trindade Santos .................................................................. 42 Passo a passo para a universidade Fabiana Santos de Paula ................................................................................... 45 Minha vida acadêmica em poucas palavras, porém com muitas conturbações Fabiana Santos de Souza ................................................................................... 49 Transformando os sonhos em realidade Fabíola Estrela Dias ........................................................................................... 51 No meio do caminho havia uma pedra Fabrice da Mota Cardoso .................................................................................. 56 Sonho impossível? Felipe Jorge Rodrigues Campos ........................................................................ 60 Minha vida contada em versos Fernanda Guimarães Felix ................................................................................. 63 Olhar Estrangeiro Francelino Conceição Lopes Cruz .................................................................... 68 Minha percepção de mundo Francisco de Paula Araújo ................................................................................ 72 Maravilhada Gabriele Silva dos Santos .................................................................................. 75 Tomada de decisão Janaína Silva Lucas ........................................................................................... 78 Meus referenciais Julio César da Silva Oliveira ............................................................................ 80 Acreditar em si mesmo Lellis Hummenigg Cremonez Taveira ................................................................ 85 Pelas idas e vindas Lia Evangelista dos Santos ................................................................................ 87 De sonhos à realidade Lívia Ceschia dos Santos Miranda .................................................................... 93 Minha caminhada, minha vida! Louise Storni Vasconcelos de Abreu ................................................................. 97 A formação do ser contemplada a beleza do arborecer Luana Nascimento de Oliveira ........................................................................ 101 Superação Luiz Antonio Gomes Cristóvão ........................................................................ 104 8 Caminhadas de universitários de origem popular Era uma vez uma linda gatita Marcelly Marques Pereira ................................................................................ 106 Vida, minha vida Maria Aparecida Mesquita dos Santos ........................................................... 110 Minha trajetória de vida Marília Amaral Pepicon ................................................................................... 114 Entre quedas, lutas e desafios: o doce sabor da vitória! Melanie Pimenta Amaral .................................................................................. 116 Minha vida Milena Martins Medina .................................................................................... 124 Caminhadas Priscila do Nascimento Pereira ....................................................................... 129 Zero zero Priscila Maia Barcelos ..................................................................................... 132 Risos e lágrimas Rodolpho de Morais Pereira ............................................................................ 135 Assim a vida foi passando Rosana Nunes Dutra ......................................................................................... 138 A arte de resistir Rosangela Neder ............................................................................................... 142 Eu tenho um sonho... Sabrina Carvalho de Almeida ......................................................................... 146 Conquista Simony Costa de Oliveira ................................................................................. 150 Metáfora da borboleta Taíssa Pereira dos Santos ................................................................................. 153 O sonho se alcança Valéria Paixão de Vasconcelos Nepomuceno ................................................. 156 Caminhando com motivação Vanessa Adalgiza Pimenta de Carvalho ......................................................... 158 Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 9 Minha caminhada Vanessa Barbosa de Brito ................................................................................. 160 Lembranças da Colina Luciana Campos de Golarte ............................................................................ 165 Do Ita do Norte para a universidade Monica Borges Monteiro .................................................................................. 168 Parte 2: a Universidade reencontra a Escola Pública ......................... 175 Parte 3: A formação de um sujeito coletivo O discurso do sujeito coletivo conexista ........................................................ 203 10 Caminhadas de universitários de origem popular Apresentação Os textos que o leitor terá acesso neste livro são relatos escritos por bolsistas do Programa Conexões de Saberes da UNIRIO, narrando suas trajetórias educacionais e existenciais, desde o Ensino Fundamental até a Universidade. Como se sabe, a palavra trajetória vem do Latim (trajectore) e significa, basicamente, o que atravessa ou o que está em movimento. As histórias narradas em primeira pessoa pelos autores deste livro têm essa característica, pois captam os sentimentos desses estudantes em um momento crucial de suas caminhadas: a travessia turbulenta entre o Ensino Médio e o Superior, assim como a proximidade com as responsabilidades da profissão escolhida. Nesse sentido, pode-se dizer que esses relatos são também ritos de passagem de estudantes - autores e personagens dessas histórias - que têm em comum a sua origem popular, isto é, são moradores de favelas, periferias e os primeiros do seu grupo familiar a ingressar no ensino superior, oriundos de famílias humildes, como a de boa parte do povo brasileiro. A diferença fundamental é que eles conseguiram romper a barreira que ainda hoje exclui estudantes pobres da universidade pública. São, portanto, relatos de indivíduos vitoriosos, no sentido mais generoso do termo, pois são pessoas engajadas em trazer para a universidade outros tantos jovens pobres que ainda enfrentam a difícil tarefa de buscar ascender socialmente através da educação. Eles são também os mensageiros de uma postura intelectual renovada, já que estão fortemente imbuídos da vontade de levar o saber acadêmico adquirido na universidade para melhorar a vivência nas comunidades populares, como as de sua origem, ou nas escolas públicas, berços de tantos deles. Essa talvez seja a primeira vez em que são convidados a falar sobre suas vidas, a partir de um olhar para o passado, em busca de um sentido para as suas caminhadas até aqui. Os relatos corajosos que os leitores terão oportunidade de ler contam a aposta e o compromisso desses estudantes com a sua capacidade de construir uma vida mais digna para si mesmos, para suas famílias e para suas comunidades. Isso tem um valor extraordinário e aponta o caminho da solidariedade como o parâmetro ético norteador da ação política de estudantes de origem popular. A relevância deste livro está justamente na contribuição que possa dar ao desenho de políticas sociais consistentes para a juventude, que devem estar vinculadas à ampliação do campo de possibilidades dos jovens de origem popular, um dos segmentos mais vulneráveis da sociedade brasileira e, contraditoriamente, aquele que irá definir os rumos da nação mais justa, generosa e efetivamente democrática que todos desejamos. A chegada do Programa Conexões de Saberes à UNIRIO, em 2006, materializou um conjunto de ações e percepções que se tinha a respeito de nossa universidade, ou seja, algumas pesquisas já apontavam que a UNIRIO possui muitos alunos de graduação que têm origem popular ou que são trabalhadores, tanto nos cursos diurnos e vespertinos quanto nos Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 11 cursos noturnos. Do mesmo modo, políticas institucionais, como a bolsa permanência, buscavam apoiar alunos que tinham dificuldades de se manter na universidade. No entanto, não se tinha conhecimento de quantos eles são, quantos trabalham e no que trabalham, e quais são as condições que enfrentam para se manter na universidade. A realização de pesquisas qualificadas nessa direção tem sido um passo importante para subsidiar políticas institucionais de apoio estudantil. Os dados coletados servirão de base para estudos que dêem elementos para se conhecer melhor os alunos da instituição, permitindo, assim, políticas mais focadas e eficientes. A proposta do Programa Conexões de Saberes é estabelecer uma troca de conhecimento com as comunidades populares, partindo da premissa de que não existe um único saber, nem hierarquias entre os saberes erudito e popular, e de que a interação e a soma de esforços é o caminho mais fértil para o desenvolvimento do campo científico. Logo, o lugar desse projeto só poderia ser na extensão universitária, espaço privilegiado para essas práticas. A Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários - PROEX - fundamenta-se em um modelo político pedagógico participativo, que prima pela busca da qualidade social. Ela é responsável pela formulação de políticas, gerência e avaliação da Extensão e dos Assuntos Comunitários da Universidade. Apresenta-se como um espaço de construção do conhecimento, de preservação e recriação da cultura e de promoção do bem-estar da comunidade universitária, reafirmando o compromisso social da UNIRIO e interligando-a com as demandas de sua comunidade e da sociedade. A PROEX, dessa forma, vem contribuir, junto com outras instâncias da Universidade, para a instalação de um ambiente universitário estimulador, favorecendo o surgimento de condições propícias para o desenvolvimento do trabalho dos profissionais que atuam na UNIRIO, e para uma formação acadêmica crítica dos alunos, a partir do interrelacionamento dos membros da comunidade universitária. A Extensão passa a ser entendida como processo acadêmico, definido e efetivado em função das exigências da realidade, indispensável na formação do aluno, na qualificação do professor e no intercâmbio com a sociedade, implicando em relações multi, inter e transdisciplinares e interprofissionais. Por isso, a Extensão é o espaço por excelência para se iniciar um debate amplo sobre a ampliação do acesso e a criação de condições para a permanência qualificada de estudantes de origem popular. O que motivou este livro foi a possibilidade de propor outra abordagem para essa temática. A intenção aqui foi dar um rosto bem visível ao que teoricamente chamamos de desigualdade e de diferença. Reconhecer a diferença e trabalhar com ela é um passo essencial na criação de práticas educacionais e sociais mais modernas. O grande desafio é não permitir que a diferença se transforme em desigualdade. Nesse sentido, os relatos nos mostram que o acesso à universidade está longe de resolver os problemas dos estudantes de origem popular. O fato é que sua presença ainda não suscitou ações afirmativas capazes de garantir sua incorporação efetiva à vida acadêmica. É visível o despreparo da universidade para recebê-los: sem "bandejões" onde possam se alimentar a preços justos; sem bibliotecas atualizadas onde possam escapar dos textos obrigatoriamente "xerocados" para os quais não têm dinheiro; sem alojamentos para economizar nas passagens de ônibus, que são uma das maiores barreiras para sua permanência etc. 12 Caminhadas de universitários de origem popular Quando iniciamos a seleção para o projeto, abrimos a porta para uma dimensão que era desconhecida mesmo por nós, profissionais acostumados a pesquisar a desigualdade dessa realidade vinda pela própria voz desses sujeitos, jovens e adultos, homens e mulheres que estão experimentando também um momento novo e radical nas suas trajetórias existenciais. Os relatos aqui reunidos são o resultado dessa descoberta, que foi ao mesmo tempo individual e coletiva, pois, ao ouvirmos eles contarem as suas dificuldades e conquistas na universidade, nos foi possível olhar para a nossa própria instituição de forma diferente, assim como compreender, de modo mais denso, a vivência nas comunidades populares de origem de nossos bolsistas. Entrevistamos dezenas de estudantes de origem popular na UNIRIO, candidatos a uma vaga no projeto, e percebemos que conhecemos muito pouco os nossos alunos. Cada um tem uma história de luta e de esperança que não conhecemos. E por não conhecer, não nos responsabilizamos por transformar a universidade em um lugar melhor, capaz de produzir um conhecimento mais completo, somente possível à medida que consiga incorporar ao seu quadro discente e docente pessoas de diversas origens sociais, econômicas e raciais. A presença cada vez maior de universitários de origem popular é um fenômeno relativamente novo no cenário político educacional brasileiro. Remonta ao início da década de 1990, quando mudanças importantes tornaram o acesso à universidade uma possibilidade real para alguns desses jovens, pois ainda hoje esse é um sonho distante para a maior parte dos estudantes pobres. A despeito do aspecto quantitativo, os desdobramentos políticoculturais da presença desse novo ator social são importantes e relativamente pouco tratados no debate sobre políticas institucionais para ampliar a presença de classes populares no Ensino Superior brasileiro. A intenção principal na publicação desses relatos é ampliar o debate sobre o acesso, a permanência qualificada e o sucesso de estudantes de origem popular no Ensino Superior brasileiro. Tornar a universidade a cara do Brasil é talvez o maior desafio que temos nesse momento e esse livro é um esforço modesto, mas muito sincero, nessa direção. A primeira parte do livro contém os memoriais escritos pelos 44 bolsistas que integraram o Programa em 2006. Embora os relatos sejam marcados pela emoção, incorporam também o que de melhor existe no espírito dos jovens, que é o bom humor, a vontade de usar o gracejo como arma de crítica sobre si e sobre os outros, no que Aristóteles chamou de "insolência polida" que caracteriza a juventude. Fizemos questão de incluir os dois relatos das bolsistas mestrandas que compõem a equipe de coordenação, pois elas também são estudantes de origem popular e suas trajetórias nos ajudam a dar um passo além na discussão, abordando o que chamamos de sucesso acadêmico de alunos com esse perfil. A segunda parte trata da ação de Extensão realizada pelos bolsistas junto ao Programa Escola Aberta (UNESCO/MEC). O reencontro de universidade com a escola pública rompe com uma separação histórica no modo como a estrutura de ensino tem sido pensada, e principalmente praticada, nos últimos anos no Brasil. Aproximar, de modo progressivo e orgânico, esses dois espaços está no centro de uma política pública de educação que aponte para a continuidade da jornada educacional de estudantes de origem popular. E, finalmente, na terceira parte, enfatizamos o caráter necessariamente coletivo desse intelectual em formação. Embora as falas individuais sejam importantes por lançarem luz a trajetórias marcantes e mostrarem estratégias pessoais e familiares relevantes, o ideal que rege o Programa aponta para a formação de um sujeito coletivo, que aposte na utopia e se lance no desafio de construí-la. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 13 Esta publicação busca se juntar às vozes que afirmam que a universidade pode ser um ponto de partida para a maior democratização da sociedade brasileira, a partir do momento em que se torne cada vez mais aberta à presença de estudantes de origem popular no seu quadro discente. Essa questão tem aparecido de modo insistente nos últimos anos e com uma enorme carga de polêmica, sobretudo quando associada a algum tipo de ação afirmativa, especialmente às cotas para negros, pardos e indígenas. O debate tem se polarizado em torno de posições que são muito mais ideológicas do que analíticas. Os defensores das cotas, entre os quais nos incluímos, tendem, muitas vezes, a tachar de racistas aqueles que levantam qualquer objeção, por razoável que seja, a um projeto que é essencialmente polêmico e experimental e, portanto, naturalmente sujeito a muitas críticas, como aliás convém que seja o debate em uma sociedade democrática. Por outro lado, os que se colocam radicalmente contrários às tentativas recentes de democratização do ensino superior se apóiam em teses restritas de um universalismo inócuo e paralisante, que recusa o reconhecimento da desigualdade e da diferença em nome de um igualitarismo que mantém o status quo e que, nesse sentido, é essencialmente conservador. Como sair desse labirinto ideológico? Tarefa árdua, que naturalmente escapa às pretensões deste livro. Mas gostaríamos de sugerir a entrada de um personagem pouco ouvido nessa história, que são os próprios estudantes de origem popular, que têm estado na linha de frente desse movimento. São eles, em última análise, os sujeitos desse processo histórico recente e, portanto, possuem também um olhar apurado sobre as desigualdades que se reproduzem na própria universidade. O caminho a se percorrer para a construção de uma universidade cada vez mais democrática é longo, mas a caminhada tem sido, até então, repleta de descobertas e desafios. Aproximar a universidade das comunidades populares reorganiza, de modo profundo, a compreensão sobre a produção do conhecimento, associando intrinsecamente mérito acadêmico à relevância social. Buscamos, assim, repartir com a sociedade esse saber para que caiba a nós, cidadãos plenos, a decisão sobre os rumos a tomar na caminhada por essa geografia mítica que chamamos nação. Diógenes Pinheiro Alba Lúcia Castelo Branco Maria Elena Viana Souza Coordenadores do Programa Conexões de Saberes na UNIRIO 14 Caminhadas de universitários de origem popular Parte 1 CAMINHOS E CAMINHADAS ________________________________________________ Memoriais dos bolsistas do Programa Conexões de Saberes UNIRIO Agradecimento Adriana Cristina Araújo Souza* Onde tudo começou Vou contar um pouquinho da história da minha concepção, meus pais eram muito jovens e uma gravidez naquele momento não era esperada. Não que eles não me quisessem, mas estavam com medo. E, nesse momento, minha avó materna, madrinha e amiga, com muita sabedoria, contornou a situação e hoje estou aqui escrevendo minha caminhada. A primeira infância Logo que nasci fui morar com a vovó Ju, meu avô, tios e minha bisavó. Aos cinco anos, devido ao falecimento da minha bisavó, o que acarretou grande fragilidade na avó Ju, fui morar com meus pais. Apesar de tudo, eu estava feliz porque teria meus pais perto de mim. Infelizmente, meus pais brigavam muito e eu tive que ir morar com meus avôs paternos. Lá, não encontrei o mesmo carinho, atenção que recebia com vovó Ju. Porém não devo esquecer que foi nesse momento que iniciou minha história com a escola pública. Até o presente momento eu tinha estudado em redes particulares. No entanto, quando fui morar com meus avôs paternos, eles julgaram ser melhor para mim o estudo em uma instituição pública, já que todos os meus tios e primos tinham estudado em escolas públicas. Quando completaram dois anos em que eu estava com meus avôs paternos, nasceu minha irmã do meio. Ela nasceu prematura e precisei de muitos cuidados, por isso foi morar conosco após o término da licença maternidade da minha mãe. A distância entre minha avó e eu crescia. Pré-adolescência Depois de inúmeras discussões, consegui voltar a morar com minha avó materna, o que para mim era muito bom. Durante os três anos em que morei com meus avôs paternos, estudei em colégio público, mas, diferente do que eles acreditavam, a educação que recebi era de péssima qualidade e, por isso, não tive coragem de voltar a estudar na rede particular. Assim, no retorno ao lar de vó Ju, voltei a estudar em instituição pública. Nesse período, meus pais se separaram, o que tornou minha relação mais próxima com minha mãe e muito mais afastada com meu pai. * Graduanda em Enfermagem pela UNIRO. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 17 Nessa fase, minha mãe ficou desempregada e foi morar com meus avós maternos porque as dívidas eram muitas e o dinheiro tinha acabado. Enquanto ela não arrumava outro serviço, resolveu investir na área de festas e cestas de café da manhã, e como eu era muito responsável passei a fazer diversos cursos sobre esse tipo de atividade para auxiliá-la. Adolescência Eu era uma menina tímida, educada e voltava a ter confiança em minha capacidade, principalmente porque tinha sido envolvida pelo regime de estudo contínuo dos meus tios, que estavam se preparando para a pós-graduação e o vestibular, respectivamente. Contrariando minhas professoras e colegas de classe, que não acreditavam na minha capacidade, pela primeira vez prestei prova para o concurso do Ensino Médio (Colégio Militar, CEFET, Pedro II, CEFETEC, FAETEC), fui muito feliz na classificação de quase todos eles, porém não passei para o Colégio Militar, o que me deixou muito chateada por desapontar minha mãe. Com tudo isso, resolvi me matricular no Colégio Pedro II (Ensino Médio) e CEFET (Ensino Técnico). O CEFET fazia parte das instituições de ensino em que meus familiares maternos tinham estudado, o que me deixou feliz em dar continuidade. As duas instituições eram tradicionais e me proporcionaram boa educação. Diferente das diversas reclamações existentes sobre a educação pública municipal e estadual, nas instituições federais esses problemas são ínfimos, pois eu tinha professores qualificados, aula de informática, biblioteca, boa alimentação e etc. Nessa época, minha mãe se casou novamente e, por problemas pessoais, saí da casa da minha avó fui morar com minha mãe e meu padrasto. Durante o Ensino Médio, descobri um mundo novo, repleto de informações que nem imaginava existir - estudava no centro da cidade do Rio de Janeiro e em São Cristóvão, o que me permitiu conhecer novos lugares e ganhar certa independência. Eu morava em Guadalupe, um bairro pequeno no município do Rio de Janeiro, sem atrativos. O pouco que eu conhecia do município era através dos passeios que fazia com meus pais nos finais de semana, mas não eram muitos. Logo é de se imaginar a diferença que senti em ter que me deslocar para tão longe para poder estudar e o enorme conhecimento sobre rotas que adquiri. Nesse período, minha mãe e meu padrasto se separaram e foi difícil retornar ao trabalho informal. Ah, eu me lembro como hoje e com lágrimas nos olhos as madrugadas trabalhadas para confeccionar doces, salgados e mini-bolos, que fazíamos para vender. Eu estudava longe de casa, tinha de levantar muito cedo, às vezes nem dormia para não chegar atrasada na escola. Nas mãos, levava bolsas abarrotadas de produtos para vender no recreio. Eu só tenho a agradecer a todos das escolas que muito me ajudaram não só na compra, pois eles eram clientes fiéis, mas por me permitirem vender meus produtos, mesmo sendo proibido em todas as duas instituições de ensino. Foram momentos difíceis, mas eu superei. Para minha tristeza, minha mãe voltou com meu padrasto e, dessa história, nasceu meu irmão caçula e minha mãe parou de trabalhar para se dedicar à família. No último ano do Ensino Médio, eu devia prestar o vestibular, mas não tinha decidido o curso. Como esperado, me inscrevi para algumas instituições federais (UFRJ, UNIRIO, UFF). Tinha passado para UFRJ, porém, com o passar do tempo vi que tinha escolhido o curso errado e abandonei a faculdade. Como a vontade de possuir um ensino superior era maior, retomei os estudos. Sendo que nesse momento eu fazia parte da lista de funcionários da empresa onde estagiava e, como trabalhava muito, o tempo para estudar foi limitando-se e cada dia eu chegava em casa mais cansada. Passei a imaginar que não conseguiria o acesso 18 Caminhadas de universitários de origem popular no curso de Enfermagem, mas, para minha surpresa, fui contemplada nas três universidades mencionadas anteriormente. Sendo assim, conversei com minha família e optei pela UNIRIO, apesar de ser a mais distante da minha residência. Na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro No início das aulas, o entusiasmo era visível e muita era a força de vontade ao ponto de me desdobrar em duas para manter o emprego e dar conta dos afazeres na faculdade, porém, com o passar do tempo, o cansaço foi vencendo e se tornou inevitável a escolha. O que fazer? Largar a curso ou o emprego? Foi uma escolha muito difícil, mas, no início do segundo período, optei por pedir demissão e manter o curso. Nesse momento, inicio a luta pela permanência na Faculdade. Como pagar as despesas? Apesar de não trabalhar, o pouco que meu padrasto dava a minha mãe para algumas despesas de casa, ela me dava para que eu pudesse permanecer na UNIRIO. Aos trancos e barrancos, passaram-se 18 meses até que começaria minha verdadeira luta pela permanência; num acidente de trabalho, meu padrasto veio a falecer e a estrutura familiar e financeira se destruturou por completo. Morando de aluguel, com um filho de três anos e comigo na faculdade sem poder trabalhar, minha mãe entrou em desespero. É nesses momentos que conhecemos os amigos, e a família se torna importantíssima. Minha avó materna doou um lugar para morarmos, além de propor ficar com meu irmão enquanto minha mãe procurava emprego. Nessa fase das nossas vidas, não poderíamos perder tempo escolhendo emprego porque as contas não parariam de chegar e as dívidas aumentariam. Minha mãe, guerreira como sempre, aceitou o trabalho de cozinheira. Zelosa e preocupada, não deixou que eu largasse a faculdade, ela e minha avó materna faziam de tudo para me ajudar. Por me sentir muito mal e por achar que não tinha o direito de deixar minha mãe se sacrificar sozinha, todos os dias depois da faculdade, passei a ir para a pensão onde ela trabalhava e ajudá-la na confecção de salgados, doces e bolos, como eu já tinha feito antes. Foi muito duro lembrar de tudo que tínhamos passado no final da minha adolescência e ver que teríamos que passar por isso de novo. Noites de sono mal dormidas, excesso de cansaço nas aulas, baixo rendimento... Foi assim todo o quinto período, até que duas coisas novas aconteceram na minha vida. A primeira foi quando, ao saber da seleção para o Programa Conexões de Saberes, não pensei duas vezes, me inscrevi e tive a sorte e o auxilio de Deus, e fui uma das selecionadas para bolsista, pelos coordenadores do Programa, o que para mim era um sinal de esperança. Pois alteraria o meu rendimento dentro da faculdade. O segundo, foi meu casamento, que possibilitou o retorno para onde morávamos e a ajuda financeira proporcionada pelo meu esposo nas despesas da casa ajudando a minha mãe. Aos poucos, minha vida foi retornando ao eixo. Conexões de Saberes No Programa Conexões de Saberes, encontrei pares, indivíduos com histórias de lutas de altos e baixos como a minha. Nas aulas, aprendi a ver com outro olhar as desigualdades, preconceitos e descriminações existentes na sociedade e a acreditar na necessidade da divulgação maciça dos direitos humanos e é essa a temática por mim trabalhada na Escola Aberta, na cidade de Queimados, onde realizo oficinas com crianças em fase escolar, de origem popular, com o objetivo de proporcionar um futuro menos desigual e mais digno. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 19 Hoje Hoje, sou uma mulher que sei muito bem o que quero e luto por isso e me orgulho de todas as barreiras que transpus e por ter, através dessa história de vida, me tornado uma guerreira como minha avó e minha mãe. Não posso esquecer de agradecer a Deus, a minha mãe e minha avó materna, a meu marido, aos meus familiares e a todos que, de alguma forma, fizeram parte da minha vida e colaboraram para eu me tornar o que sou hoje. 20 Caminhadas de universitários de origem popular A história do nosso Brasil Alexsandro da Silva Evangelista * A minha caminhada começa quando meu pai, o senhor José Batista, saiu do Maranhão e minha mãe, dona Antônia da Silva, saiu do Rio Grande do Norte, os dois vieram para o Rio de Janeiro atrás do sonho de uma vida melhor. Como a maioria dos nordestinos faz no Sudeste, trabalharam duro, aproveitando todas as oportunidades para construírem uma vida digna. Foram morar em uma cidade dormitório - Belford Roxo - com uma infra-estrutura muito precária, mas era a opção que os seus salários permitiam. Aos poucos, foram melhorando sua condição de vida, porém não conseguiram se livrar de certas limitações. Seu Zé Batista e dona Antônia se conheceram e começaram uma relação, tiveram dois meninos e formaram mais uma família de camada popular. Como pais, tinham o objetivo de, através do estudo, dar maiores oportunidades de ascensão social aos filhos, para que não tivessem que fazer os mesmos sacrifícios que eles. Com muito esforço, colocaram seus filhos em uma escola considerada a melhor do seu bairro, porém ainda não era a escola que ofereceria o melhor preparo, eu e meu irmão ainda enfrentamos algumas dificuldades em disputas com jovens com melhores oportunidades. Meu irmão, Hugo, passou para uma universidade particular, na cidade de próxima a nossa casa. Meus pais, muito orgulhosos, fizeram de tudo para conseguir pagar e dar todo o material necessário para que ele tivesse uma boa formação. Além de buscarem melhorar a vida dos filhos, meus pais pensaram também nos sobrinhos, ajudando como podiam aqueles que tinham garra e vontade de mudar. Conseguiram auxiliar na formação de dois sobrinhos; um deles, Emerson, se tornou uma grande influência na minha vida, principalmente no incentivo para entrar em uma universidade pública. Como meu primo tinha um bom emprego, que conseguiu depois de ter ser formado em Farmácia na Universidade Federal do Maranhão, pagou um pré-vestibular "de ponta" para minha preparação para o vestibular. A minha aprovação em uma universidade pública foi uma grande realização pessoal dos meus pais, pois, na comunidade em que vivemos, passar para uma instituição pública era só para os que tinham "grana" e os meus pais conseguiram, depois de terem começado suas vidas do zero. Novamente, meus pais precisam "ralar" muito para que nada falte na minha formação e muitas vezes se sacrificam para que eu não sofra como eles na minha vida. * Graduando em Enfermagem pela UNIRIO. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 21 Meus pais ficaram muito preocupados, quando escolhi uma profissão pelo simples prazer de ajudar alguém, que era melhor do que a grana que iria ganhar, pois eles sabem que hoje no mundo não se pensa assim. Muitas vezes eles tentaram conversar comigo e falar que na vida é preciso ter cuidado, pois tentar mudar muita coisa não dá muito certo. Mas eu sempre falei para eles que se um dia eu for apenas mais um não iria honrar toda história vivida por eles, que estou na universidade para criar idéias, um senso crítico sobre a realidade da nossa sociedade e não apenas ser mais um que vai se formar, receber o diploma e entrar no mercado de trabalho, que a cada dia sacrifica cada vez mais a vida das pessoas, visando apenas o lucro e uma sociedade calada para que uma pequena elite fique cada vez mais rica. Às vezes, eles pensam que estou fugindo da minha formação, pois, para eles e para grande parte da sociedade em que vivemos, Enfermagem não tem nada a ver com política. Na própria universidade, estudantes, professores e técnicos falam que política é uma coisa chata. Mas como isso vai mudar se a cada dia que passa piora o modo de fazer política em nosso país? Onde todos valorizam o individual antes do coletivo, em que o verdadeiro conceito de sociedade não existe e sim um falso conceito liberal, que não garante, à maior parte da população, o mínimo de dignidade. Mais uma vez, meus pais ficam receosos quando eu entro em um programa que fala sobre mudança da sociedade, Conexões de Saberes, e não das técnicas e dos cuidados em Enfermagem. Cheguei várias vezes feliz e outras triste, pois o Programa era um sonho que não era vivido por todos que fazem parte dele, me levando muitas vezes a pensar em desistir e muitas outras a pensar em continuar. Mas, como se não bastasse, arrumei uma namorada que pensa parecido comigo. Minha mãe sempre fala que sonhamos demais, mas sente o quanto nos gostamos e acreditamos que nossas idéias não são apenas sonhos, mas um ideal de sociedade. Meus pais simbolizam o nosso país, sabem que vão sofrer e muito com as minhas idéias de mudança, pois tenho a mesma teimosia que eles tiveram quando decidiram sair de suas terras natais para tentar uma vida digna no Sudeste. Não sei se eles têm orgulho de mim, mas sei que sabem que um dia poderão bater no peito e falar que valeu a pena o sacrifício por esse moleque atrevido. Como em todo livro, não devemos deixar de agradecer o uso deste pequeno espaço para mostrar o carinho e a gratidão a meus pais, que, muitas vezes, mesmo com desconfianças, me apoiaram, sempre aceitando as minhas decisões de vida. Eu sempre falo que, quando receber meu diploma, 70% é deles, se não fosse a força deles, talvez não conseguisse. Obrigado, vocês são a minha FORÇA. 22 Caminhadas de universitários de origem popular Fluxo vertical Ana Carolina Pereira dos Santos * Minha vida, assim como a vida de outros tantos, tem sido ascensional em relação aos degraus de mim mesma. Minha participação no Programa Conexões de Saberes me dirigiu à consciência da enorme importância de meu ingresso no ensino superior em uma instituição pública, pois até então eu encarava esse fato como sendo uma simples obrigação minha, o retorno aos esforços de meus pais. O Programa mostrou-me a importância de eu estar na universidade pública. Refletindo sobre a minha vida estudantil, orgulho-me, sobretudo, de meus pais, que sempre cuidaram para que as três guias que me moveram - educação, cultura e arte - sempre estivessem presentes na minha vida. Ainda criança, lembro de meus pais freqüentemente me levarem aos museus espalhados pelo Rio de Janeiro, como se previssem meu futuro acadêmico. Além disso, o mundo dos livros foi algo que fez minha infância ser mais doce que o comum. Minha mãe sempre lia para mim histórias infantis e outras, que na época eu nem entendia o que queriam dizer, mas na adolescência revelaram-se em Fernando Pessoa e Clarisse Lispector, os favoritos de minha mãe, que me foram passados como herança. Nessa época, na infância, a situação financeira era muito mais fácil, mas quando conclui o ensino fundamental tudo se desconfigurou, meu pai perdeu o emprego e passou a trabalhar como motorista de transporte alternativo; fui transferida de uma das melhores escolas particulares para uma "escolinha" mais barata e só concluí o curso de Inglês que fazia porque ganhei uma bolsa de estudos. Ainda tive de abrir mão de uma sólida paixão, a dança, que praticava desde os cinco anos de idade, para muitos, isso era o mais efêmero, no entanto, até hoje sinto falta da dança. Com a impossibilidade de dançar, enterrei-me na escola municipal de música de Nilópolis, onde encontrei uma nova paixão no violão clássico e, com isso, vivi belas experiências dando aulas de apoio musical para idosos. No ano do vestibular, nossa situação financeira estava ainda pior, não pude sequer comprar as apostilas do terceiro ano, estudei por anotações que fazia durante as aulas, também não fiz cursinho pré-vestibular. Fiz prova para UERJ-Geografia; UFF-Letras e, finalmente, UNIRIO-Museologia. Passei nas três, mas escolhi a UNIRIO porque Museologia era, de fato, o curso que eu queria. Quando passei, foi uma emoção como acertar na loteria, no entanto, os comentários familiares sobre a escolha que fiz, questionando a serventia do curso e o mercado de trabalho, me * Graduanda em Museologia pela UNIRIO. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 23 fizeram achar meu feito banal, e não conseguia mais enxergá-lo como um sucesso. Mas, acima disso, estavam meus pais, sobretudo minha supermãe, todos estão sempre ao meu lado, dando força e acreditando em mim. Confesso temer decepcionar meus pais e meu irmão, mais sei que assim como as dificuldades financeiras, das quais ainda estamos nos recuperando, qualquer outra adversidade servirá para que eu dê mais valor ao que tenho. Ao contrário do que acontece em muitas famílias com problemas, nós ficamos mais unidos e eu aprendi a dar valor às mínimas coisas, já não sou mais a menininha mimada e orgulhosa que se envergonhava do trabalho do pai. O que mais quero é jamais deixar de me emocionar com os assuntos museológicos e brevemente usá-los para dar ao meu irmão as oportunidades que meus pais me deram e não estão conseguindo dar a ele. Agradeço a Deus pelas dificuldades impostas, pois elas me transformaram em uma pessoa de verdade. 24 Caminhadas de universitários de origem popular Ninguém está totalmente só Ana Margareth do Nascimento Amorim * Nenhum trabalho, de qualquer natureza, é um ato isolado envolvendo um único homem. Ulisses Capozzoli. Sou filha da terra, dessa amada terra do Brasil. Tenho um verdadeiro amor por essa terra; por isso nasci nela com muita satisfação. Minha vida começou quando fui concebida na praia da cidade de Aracaju, no estado de Sergipe, por um casal de adolescentes sem juízo! Romântico, né?! Nasci na casa de meus avós paternos, que, diante da imaturidade dos meus jovens pais, me adotaram de "papel passado" e tudo. Assim, da condição de primeira neta passei a ser a filha caçula, a oitava de cinco filhos e duas filhas do casal. Fui muito querida, mimada e amada por todos eles. Tanto que, aos sete anos, minha irmã Maria, que é minha madrinha de batismo e, também, quem escolheu meu nome, pediu à minha mãe para tomar conta de mim e me colocar de vez na escola. Isso porque papai e mamãe estavam se separando e brigavam pela venda da casa em Aracaju, e eu no meio da briga não parava na escola. Meus pais vieram para o Rio de Janeiro com a família na promessa de uma vida melhor. Após algum tempo, não deu certo e papai resolveu voltar para nossa terra, mas mamãe preferiu ficar com os filhos nessa cidade, meus irmãos já estavam grandinhos. Quando fui morar com minha madrinha, ela já estava casada e com dois filhos, mas, mesmo assim, quis me ajudar, matriculou-me na escola, responsabilizou-se pelo meu sustento e acompanhou-me nos estudos. Tive dificuldades para aprender, mas ela teve muita paciência e, mais ainda, revelou-me a história do meu nascimento, que é uma verdadeira confusão, irmão que é pai, pais que são avós, irmãos que são tios. Para mim, não faz a menor diferença, porque meu pai e minha mãe são os que me criaram, pois o que conta é o coração, esses são os meus verdadeiros pais. Graças à minha madrinha, eu gosto de estudar, fiquei em sua companhia até os onze anos, quando terminei o primeiro ciclo do Ensino Fundamental. Outra fase da minha vida foi quando minha irmã Mirabel, vendo a situação difícil que minha madrinha estava passando com o meu padrinho desempregado, falou com minha mãe se podia ficar comigo. Então, passei a tomar conta de sua casa e, em contrapartida, ganhava os materiais escolares, roupas, * Graduanda em Biblioteconomia pela UNIRIO. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 25 calçados, passeios, além do sustento. Tive o aprendizado da vida com desenvoltura, aprendi a andar sozinha na cidade do Rio de Janeiro e tive garra para conquistar meus sonhos. Que não eram poucos. Agradeço muito a todas essas pessoas: minha mãe Maria Eulina, meu pai José Eleutério (em memória), minha madrinha Maria N. Ferreira, meu padrinho Luiz Ferreira e minha irmã Mirabel, que foram responsáveis pela formação do meu caráter. Acredito que sem estas pessoas - tão queridas - eu não estaria na universidade pública federal. A leitura esteve presente na minha vida, pois, mesmo sem acesso, por curiosidade pegava os livros de enciclopédias e folheava sem saber ler. Quando aprendi, lia tudo o que aparecia, geralmente os mesmos livros que antes folheava e depois os relia. Meu primeiro livro foi A Bolsa Amarela, de Lígia Bojunga, que ganhei quando estava cursando a 5ª série. Depois disso, tive uma colega que lia os romances da coleção Bianca, Sabrina e Julia, que me emprestava quando acabava de ler. Nós disputávamos quem lia mais rápido. Um fato importante é que minha mãe, quando ia à casa de minhas irmãs, contava várias histórias e eu adorava, me apaixonei pela leitura. A trajetória profissional começou aos dezesseis anos. Minhas irmãs não queriam que eu trabalhasse em casa de família, de certa forma incentivaram para que eu continuasse o estudo e, mesmo com muita dificuldade para cursar o Ensino Médio, tive que trabalhar para comprar meus livros e materiais escolares, trabalhava de dia e estudava de noite. Concluí o curso de Técnico de Contabilidade, aos vinte anos, na rede pública. Tinha planos de voltar para Aracaju e morar com minha mãe. Duas semanas antes de viajar, com passagem comprada apenas de ida, conheci um rapaz que mudou meus planos. Cheguei a viajar e ficar um mês na minha cidade natal, só que o cupido já tinha acertado a flecha do amor. Voltei para o Rio de Janeiro e, depois de muitas tentativas, consegui uma vaga na Biblioteca Manuel Bandeira, da Universidade Castelo Branco. Assim trabalhava e continuei morando com a minha irmã Mirabel até o dia do meu casamento. Nesse meio tempo, prestei vestibular para o curso de Ciências Econômicas da Universidade Estácio de Sá, cursei com bolsa, só não deu para terminar por motivos financeiros. Estava casada quando tranquei a matrícula e em seguida engravidei. Não desisti da idéia de cursar uma faculdade, só dessa vez meu objetivo era uma universidade pública, não queria depender de bolsa e não poder fazer estágio. Para retornar aos estudos universitários, precisei fazer um planejamento para ingressar na faculdade junto com o crescimento do meu "filhote". Assim, procurei cursar inglês, informática e o pré-vestibular. Só não deu para fazer o pré-vestibular, por motivo de "grana" e por meu filho ser pequeno, já que não podia deixá-lo muito tempo com minha sogra, pois ela já tomava conta dele para eu trabalhar. Meu filho precisou de ajuda na escola, na sua fase de alfabetização, pois apresentou dificuldades na aprendizagem, principalmente ao ler. Esse foi um tempo em que precisei ficar exclusivamente dedicada a ele, até alcançar a 1ª série. Então, montei um esquema para estimulá-lo a ler. Contava histórias a toda instante, principalmente antes de dormir, criei várias atividades com letrinhas, palavras e textos. Como não podia pagar e não dispunha de tempo livre para fazer um pré-vestibular, comecei a estudar uma hora por dia, no horário de meu almoço, lia livros de história, fazia pesquisas, lia jornais e via na TV no último horário da noite e ficava atenta aos assuntos do momento. Quando passei no vestibular para Biblioteconomia, na Universidade Federal do Estado 26 Caminhadas de universitários de origem popular do Rio de Janeiro, foi a maior alegria, uma grande emoção, foi inacreditável. Organizei a minha vida doméstica, trabalho como auxiliar de biblioteca na Fundação Souza Marques, mãe de um menino de oito anos, esposa, voluntária da Obra Social Antonio de Aquino e, aos trinta e quatro anos, estudante universitária. É muito difícil se manter na universidade, principalmente quando começamos a fazer o estágio. A bolsa-auxílio é curta e é difícil dar conta de trabalhos, provas, principalmente como mãe, esposa e ainda fazendo trabalho voluntário. Sorte que posso contar com o apoio do meu esposo, Alexandre, da minha sogra, Jandira, e do sogro, Aristeu; sem a ajuda deles não conseguiria me manter na universidade. Faço todas essas atividades colocando prioridades. Tenho muito a agradecer a essas pessoas nessa fase da minha vida. Uma boa oportunidade de permanência na universidade é o Programa Conexões de Saberes, e, ainda, a realização de um sonho pessoal, que é colocar em prática o estímulo à leitura. Foi o que me chamou atenção para o Programa: leitura. A prática foi além das espectativas, contar histórias, mostrar a leitura de mundo e aprender junto sobre os direitos humanos. Como cresci com o trabalho no Programa Escola Aberta e na formação do Conexões de Saberes! Só sei de uma coisa: quero ser bibliotecária com compromisso social. Espero usar como ferramenta as atividades de leituração e cidadania e o que consegui com meu "filhote", Alehandro, que é a minha razão de viver, o despertar pela leitura e o seu progresso intelectual e social, quero fazer o mesmo por outras crianças. Quero fazer parte do crescimento do Brasil e, para mim, o melhor caminho é a educação. Deus é Paz, é Vida, é Luz, e é simplesmente...AMOR. Muita Paz! Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 27 Minha vida é assim... Ana Paula da Silva Mendonça * A família Minha mãe é o sexto fruto de um casamento que durou muitos anos. Todos sempre dizem que ela era, e é ainda, a filha mais protegida da família. Quando conheceu meu pai, aos quinze anos, ambos moravam em uma comunidade popular do Rio de Janeiro. Meu pai não completou o Ensino Fundamental e minha mãe, que já estava terminando os estudos e fazendo um curso de contabilidade, teve que adiar seus planos, por conta de uma gravidez não planejada. Apesar de todas as dificuldades, eles conseguiram montar uma casinha e foram morar juntos. No entanto, eles contam que iam se casar no civil no dia 22 de dezembro de 1984, mas isso não foi possível, pois eu, com pressa de vir ao mundo, nasci justamente naquele dia. Quando fiz seis anos de idade, a cegonha resolveu visitar meus pais novamente e nos presenteou com a vinda de minha irmã, Ana Carolina. Para mim, não foi muito agradável saber que teria que dividir toda a atenção da família com ela, mas fui me acostumando aos poucos com a idéia, ou melhor, com o fato. Minha infância foi cercada de muito amor, carinho e amizades. Éramos muito felizes, pois 90% da minha família também viviam naquela comunidade. Meus primos e eu nos divertíamos muito correndo, brincando pelas ruas daquele lugar, de velotrol, patins, bicicletas. Tudo o que tínhamos e precisávamos estava ali. Adolescência Um mês depois de ter feito doze anos, meus pais decidiram sair da comunidade. Fiquei super frustrada, pois não significava apenas mudar de casa, mas sim mudar de costumes e hábitos. Tivemos muitos problemas e passamos por muitas dificuldades, minha mãe, depois de anos parada, teve de voltar a trabalhar. Meu papel na família nesse período era estudar, arrumar a casa e tomar conta da minha irmã. Eu não gostava da nova casa, ela era pequena e não podíamos fazer bagunça para não atrapalhar os moradores da casa de baixo. Isso durou um ano e três meses, até que meu pai conseguiu comprar uma casa através do financiamento da Caixa Econômica. * Graduanda em Pedagogia pela UNIRIO. 28 Caminhadas de universitários de origem popular Quando os meus amigos ficaram sabendo que eu ia morar em Belford Roxo, me zoaram muito e fiquei com mais raiva do que antes. Mudamos e senti muita falta da escola, dos amigos e dos primos, porque até então, apesar de ter saído da comunidade, não precisei mudar de escola e continuei perto dos familiares. Em Belford Roxo, tudo era longe. Senti-me sozinha e foi muito difícil fazer amizades. Eu mesma ignorava as pessoas por não querer estar ali. Os estudos A minha vida toda estudei em escolas públicas e passei por todos os "apertos" que estudantes oriundos desse tipo de instituição passam. Mas lembro com muitas saudades, das amizades, do carinho e do respeito que conquistei nesses espaços por onde passei. Penso que fazer parte dessa história de tantas lutas tem alguma razão de ser. A primeira escola em que estudei - Escola Municipal Emmanuel Pereira Filho - foi muito especial, pois, além de ter aprendido a arte de ler e escrever, a maioria dos alunos, pelo menos da turma da qual eu pertencia, morava na mesma comunidade que eu. Fazíamos praticamente tudo juntos, encontrávamos-nos em um local para ir à escola, para voltarmos, para ir à explicadora e não posso esquecer das horas de brincadeiras. No período das séries iniciais, as professoras também tiveram sua importância como tantas outras que me deram aula. Entretanto, algumas marcaram mais a minha vida do que outras. Lamento apenas pelas marcas negativas deixadas por professoras que faziam questão de mostrar seu desprezo por alunos oriundos de comunidades populares. Nas séries seguintes, passei ainda por duas escolas e as únicas surpresas que tive foram com relação ao número maior de matérias para estudar e foi aí que percebi que meu futuro estava em minhas mãos e de mais ninguém. O pré-vestibular e o vestibular Com toda aquela pressão que as escolas colocam sobre seus alunos do último ano do Ensino Médio, não podia dar em outra coisa. Eu e meus amigos ficamos muito entusiasmados com as inscrições que se abriram para o vestibular 2003. Só que, diferente dos meus colegas que desistiram na primeira barreira que encontraram, eu fui até o final. Pedi isenção taxa de inscrição a todas as universidades do Rio de Janeiro e meu pedido foi negado em apenas duas: UFF e UNIRIO. Conversando com minha mãe, a solução que encontramos para persistir com meus sonhos foi apelar para o meu padrinho. Conseguimos apenas a metade do dinheiro para efetuar inscrição em uma das universidades em que fui recusada. Optei em me inscrever para o vestibular da UNIRIO. Foi tudo em cima da hora, minha mãe não sabia, e nem eu, que seria necessário fazer o pagamento em um banco, pensávamos que era só ir até a universidade que já estaria tudo certo. Efetuamos o pagamento no último dia, faltando minutos para o banco fechar, minha mãe, que correu atrás de tudo, já estava perdendo as esperanças. Mas tudo se acertou e nos vimos com outro problema nas mãos. Como eu iria me preparar para o vestibular se não tinha algumas matérias na escola em que estudava? Cursar um pré-vestibular pago estava fora de cogitação. Então conversei, busquei informação, até que uma amiga disse que conhecia uma pessoa que estava matriculada em um curso pré-vestibular comunitário. Resolvi conhecê-lo. O nome era CECIS (Centro de Estudos pela Cidadania e Inclusão Social) e ficava em Belford Roxo mesmo, mas em um lugar onde "Judas perdeu as botas". Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 29 Tive uma surpresa e uma desconfiança, pois o curso custava apenas R$ 5,00. Eram 52 pessoas matriculadas e a sala parecia um ovo, mesmo assim resolvi ficar para ver no que daria. As pessoas foram sumindo, sumindo, até que ficamos com um grupo de 16 pessoas. Um belo dia, o proprietário do lugar onde funcionava o curso resolveu pedir um aumento e tivemos que procurar outro espaço para continuarmos com o pré-vestibular. E, nessa mudança, oito componentes do grupo ficaram pelo caminho. Continuamos nosso percurso de estudos, que para mim era de segunda a segunda, pois prestei vestibular quando ainda estava no último ano e no pré-vestibular eu tinha que marcar presença nos sábados, domingos e feriados, de 7 horas da manhã às 7 horas da noite. O fato é que no final tive que fazer minhas opções, algo que eu não havia pensado. Cismei com Psicologia, mas a RURAL e a UNIRIO não tinham esse curso. Então, minhas opções foram: UERJ/Psicologia, UFRJ/Psicologia, RURAL/Ciências Biológicas, UNIRIO/Pedagogia. A universidade Passei no vestibular para o segundo semestre de 2003, para o curso de Pedagogia da UNIRIO. Não sabia direito o que se estudava nesse curso e me senti um peixe fora d'água. Mas, mesmo assim, no início tudo parecia lindo, maravilhoso, perfeito, até que os professores começaram a falar palavras estranhas e pedir textos para serem lidos em menos de uma semana. Vi-me desesperada, nunca ninguém havia dito tantos nomes teóricos. O fato é que aos poucos fui me acostumando com o ritmo frenético da universidade e comecei a entender o que um professor do pré-vestibular queria dizer quando falava que o difícil não era passar para uma universidade, mas sim manter-se nela. Nos primeiros períodos, corri atrás do grêmio estudantil do colégio onde estudei da 7ª ao 3ª ano do Ensino Médio, com o intuito de arrumar uma carteirinha e assim economizar pelos menos duas, das quatro passagens que teria que pagar e, também, para comprar os textos utilizados nas disciplinas. As coisas tomaram um rumo diferente quando apareceu o RioCard e, mais uma vez, a vida me ensinou que sempre tem um jeito. Quando as coisas apertavam, escolhia um dia ou dois da semana para faltar e, como sortuda que sou, os amigos, mais uma vez, me ajudaram com passagens, textos, explicações de algumas matérias, entre outras coisas. Hoje, no Programa Conexões de Saberes, tenho a oportunidade de discutir temas de meu interesse e, principalmente, trocar experiências ou até mesmo doar o conhecimento adquirido nesses anos de minha vida para comunidades onde o Conexões atua. Experiência no Escola Aberta Ler é um direito de cada cidadão, não é um dever. É alimento do espírito. Igualzinho à comida. Todo mundo precisa, todo mundo deve ter à sua disposição - de boa qualidade, variada, em quantidades que saciem a fome. Ana Maria Machado 30 Caminhadas de universitários de origem popular Atuar em uma escola da comunidade onde moro foi muito especial. Entretanto, não posso negar que, mesmo assim, houve resistência por parte da coordenação de uma das escolas. Ficar sem a assinatura do coordenador no fim do dia foi só um dos problemas, chegar na escola e não encontrar público foi uma constante, mas apesar dos pesares fui persistente e compareci a todos os encontros marcados e estou muito satisfeita com os resultados alcançados. Ser da Pedagogia também facilitou a execução das tarefas, mas preciso ressaltar que nunca havia tido uma turma só minha. Atuei no Programa Escola Aberta aplicando a oficina de Leituração e é com muita satisfação que agradeço a oportunidade de participar do Conexões de Saberes juntamente com o Escola Aberta. Depois de todo o percurso nas escolas, percebo que foi positiva a nossa participação nesta parceria, todos nós demonstramos que estávamos lá realmente para trocar experiências, para conhecer a realidade daquelas pessoas e, assim, quem sabe, transformá-la. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 31 Caminhando e cantando e seguindo a canção Angélica do Carmo Coitinho* Passei a ser gerada fora da placenta, aos sete meses de vida, na barriga de minha mãe. Caso ela levantasse algum alfinete eu poderia morrer. Bom, ela não levantou nenhuma pena e aqui estou até hoje. Minha mãe disse que chorou muito quando eu nasci, como nunca havia chorado. Com dois anos de idade, ganhei uma mochila, para "tristeza" de minha mãe. Todos os dias, ela acordava meu irmão para ir à escola e, como tinha que levá-lo e não podia me deixar sozinha em casa, me levava junto. Todos os dias, ela falava: "Vamos para a escola!" Eu ficava toda animada e, quando chegava lá, não podia entrar, já que ainda não tinha idade. Por causa disso, fui a responsável por um ano de sofrimento para minha mãe. Como queria muito ir à escola, eu chorava, dizia que queria entrar e perguntava a ela todos os dias quando poderia ir à escola. Felizmente, o longo ano acabou e fui à escola. Não lembro do meu primeiro dia de aula, mas devo ter ficado muito feliz. Sempre tirei ótimas notas, oscilava entre A e B, nunca passava disso. Também depois de ter tido tanta vontade de entrar na escola. Nessa época eu queria ser professora. Quando estava na quarta série, meus pais viram o anúncio de uma prova para tentar uma bolsa em um ótimo colégio. Resultado: primeira ida ao Maracanã para fazer uma prova. Essa, porém, não seria a última. Passei! Fui classificada em uma boa colocação e consegui uma bolsa parcial. Tudo mudou. Bairro novo, colégio novo e pessoas novas. Logo no primeiro ano nesse novo colégio consegui notas muito boas e até ganhei certificados de aluna destaque em algumas matérias. Minha vida praticamente se resumia a estudar, pois tinha prova toda semana e aos sábados tinha curso de Inglês. Sempre amei este idioma, desde o momento em que comecei a ter aulas na escola tinha vontade de fazer um curso, também queria saber o significado das músicas que tanto gostava. Entrei em um curso durante a quarta série, mas logo depois tive que sair para que meu pai pudesse pagar o colégio novo. Fiquei muito triste de ter saído, mas como quem espera sempre alcança, dois anos depois voltei a fazer outro curso de Inglês mais em conta. Na oitava série, meu pai decidiu me tirar dessa escola. O que eu não queria. Ele resolveu que eu tinha que fazer prova para todos os colégios técnicos estaduais e federais. Hoje entendo que foi para meu bem. Na época, entretanto, achava que ele estava me causando * Graduanda em História pela UNIRIO. 32 Caminhadas de universitários de origem popular um mal. Então, não queria saber de estudar para as provas que viriam nem para as da escola. Mais idas ao Maracanã para fazer provas que são muito concorridas e eu não dava importância a elas. A única coisa que achava legal e que até então não tinha pensado tão a fundo era o fato de ter que pensar e decidir qual curso técnico eu faria. Desde aquela época, tinha inclinação para a área de Humanas. Escolhi Turismo dentre as opções que havia, por fazer curso de Inglês, por amar falar essa língua e pela grande vontade de viajar. Fiz as provas para os colégios técnicos e não passei em nenhuma, como era de se esperar, pois não estudei; e ainda fiquei em prova final no colégio pela primeira vez na minha vida e tive que sair da escola. Meu pai se esforçou para me ajudar, mas eu não fiz o mesmo, não me ajudei e não me esforcei. Foi a primeira grande decepção da minha vida. Ouvia muitas coisas ruins sobre o ensino da escola pública. Fui estudar perto de casa em um colégio estadual e, para aumentar minha angústia, quando fui para a escola, ela estava em greve, fiquei um tempo sem estudar. No primeiro dia de aula, não foi tão ruim, exceto pela falta de professores, reencontrei algumas pessoas com quem tinha estudado até a quarta série e que não via há bastante tempo. Passei a conhecer uma nova realidade, a do bairro em que morava, que até então não passava pela minha cabeça, já que havia estudado fora dele uma boa parte do tempo. As pessoas eram legais, passei a ser uma pessoa bem mais desinibida e mais comunicativa, mais simpática também. Pela primeira vez na vida, parei de ficar só estudando. Quase não estudava, pois todas as matérias que eram dadas eu já havia aprendido, fiquei totalmente desmotivada para estudar para qualquer prova. Nessa época, fazia aula de dança e um esporte em um centro esportivo. Foi nesse colégio que conheci uma pessoa maravilhosa, meu então namorado, o Leonardo. Ele me ensinou muita coisa, me ajudou a amadurecer muito. Superadas as crises com o ensino público, que é um tanto quanto deficitário, iria continuar o próximo ano na mesma escola. Estava feliz, já tinha feito muitas amizades, havia passado para o segundo ano e ficaria todos os dias perto do meu namorado. Porém, na segunda semana de aula, fui expulsa do colégio por simplesmente falar a verdade. Não! Não foi na época da Ditadura Militar, foi em 2004, bastante tempo depois. Sofri muito, fiquei uma semana sem estudar, com meus pais lutando pra me encaixar em outro colégio e ao mesmo tempo brigando comigo. Voltei para o bairro em que estudava antes e para outro colégio estadual, mas neste eu tinha vontade de estudar. Como nem tudo acontece na hora em que queremos, tive que ser expulsa para poder ir para essa escola. As aulas no outro colégio já haviam começado, logo no primeiro dia também não tinha aula, pelo menos não na hora em que havia chegado. Encontrei pessoas com quem já havia estudado (no colégio em que tinha conseguido bolsa). Foi ótimo! Descobri outras pessoas muito especiais. Nos anos anteriores, uma amiga um pouco mais velha já estava tentando vestibular e eu fiquei pensando nessa coisa de faculdade. Não tinha pensado muito nisso até então, desde a época em que tentei prova para os colégios técnicos. Comprei revistas sobre vestibular, fazia vários testes vocacionais, mas nada combinava com o que eu mais ou menos desejava. Tinha desistido um pouco de Turismo, já não me atraía tanto. No final desse mesmo ano, abri a lista telefônica e comecei a ligar para vários cursos pré-vestibulares. Em dois deles, haveria prova para tentar uma bolsa. Em um deles, a prova era composta por questões de Ensino Médio. Estava no segundo ano ainda, mas praticamente Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 33 nada daquilo eu havia estudado, dessa vez não por minha vontade, mas porque o colégio nunca havia dado aquelas matérias. Fiz a prova assustada. Consegui uma bolsa de 10% e a mensalidade ficaria quase R$400,00. Para resumir: impossível. Mas ainda havia esperança, no outro pré-vestibular a prova era com questões de lógica. Passei e com uma bolsa de 60%, grande diferença em relação ao outro. Tive medo de meu pai não conseguir pagar, mas ele sempre me deu muito apoio para estudar e se esforçou muito para me proporcionar as melhores oportunidades. Fazia o terceiro ano, na parte da manhã, em um bairro e o pré-vestibular, na parte da tarde, em outro. O ano todo foi uma correria. Acordava super cansada, ficava horas no ponto esperando por um ônibus que raramente parava para estudante da rede pública, quase sempre chegava atrasada na escola por causa disso, saía meia hora ou quinze minutos mais cedo do fim da aula, pegava ônibus para ir ao pré-vestibular, comia sempre o mesmo salgado de R$ 1,00 (almoço, nem pensar), ia embora para casa e estudava as matérias que estava aprendendo pela primeira vez. Todos os dias a mesma rotina. Em cada parte do dia, parecia que eu era uma pessoa completamente diferente. Na escola, eu continuava não querendo saber de estudar. Formamos um grupo de sete amigas inseparáveis. Só queria saber de ir à escola para não receber muita falta e curtir com as amigas. Foi o ano em que mais me diverti na escola. Não assistia à maioria das aulas, íamos para o pátio para sair da sala um pouco e acabávamos ficando ali conversando, conversando... ih, o sinal... aprontei bastante, sem ser expulsa dessa vez. Até quando tínhamos que ficar na sala parecia que estávamos no pátio. Mesmo assim, tirava ótimas notas. Já no pré-vestibular, sentava sempre na segunda fileira, sem exceção. Não conversava, só quando o professor não estava explicando ou eu não estava fazendo algum exercício. Enfim, eu era uma pessoa totalmente diferente, irreconhecível. Ainda tinha sábado, ir para o curso de Inglês, não tinha tempo para estudar, minha última nota (me formaria no meio do ano) não foi tão boa quanto as outras. Estudava até no domingo em casa, meu namorado foi quem sofreu, mas sempre soube me compreender e apoiar. Para mim, tudo era novo, não havia nada ali que eu houvesse aprendido, pelo menos não daquela maneira. Prestava atenção em cada detalhe. Mas a coisa mais importante eu ainda não havia feito, que era decidir por uma carreira. Vi um filme em que uma advogada defendia tão bem seu cliente, que fiquei emocionada e decidi, momentaneamente, fazer Direito. Mas ainda assim estava em dúvida entre Direito e Psicologia, havia lido um livro daquela minha amiga que me "apresentou" os pré-vestibulares e fiquei fascinada com a forma com que o psicólogo trabalha. Conversando com o professor de História do pré-vestibular sobre minha dúvida, ele me contou pelo o que passa quem é advogado e outras coisas. Bom, desisti de fazer Direito e optei por Psicologia, que bom. Dessa vez meu pai não me deu o menor apoio, dizia que eu não ia ganhar dinheiro, que eu teria que abrir um consultório e tantas outras coisas. Lá pelo meio do ano comecei a pensar sobre a segunda opção que poderia indicar em uma universidade e em outras que não tinham psicologia. Como eu estava maravilhada e muito empolgada com as aulas desse meu professor de História e amava essa matéria, resolvi colocar História como opção nas outras. Perto do fim do ano, os estudos ficaram mais intensos, comecei a ter aula até aos domingos. Não tinha mais vida social, só estudava. Nessa época, pensei até em desistir, mas quando quero uma coisa, sou determinada e vou até o fim para conseguir. 34 Caminhadas de universitários de origem popular Quando vieram as provas, em outubro, tive a certeza de que era História o que eu realmente queria fazer, pensava na aula que eu daria, em várias coisas. Não me via mais como psicóloga. Porém as inscrições já haviam sido feitas. Não dava mais tempo. Inscrevi-me em quatro universidades, havia cinco no total. Em três para História e em uma para Psicologia, só em uma, graças à minha deficiência em entender Biologia. O ano se passou, chegou 2006 e a expectativa pelos resultados. Saiu a lista da primeira universidade (UFRJ1) em janeiro, para Psicologia não havia passado. Da segunda saiu logo depois (UERJ2), para História não havia passado. Em fevereiro, saiu a da terceira (UNIRIO3), não passei para História de novo. Várias reclassificações e nada. Meu mundo havia desabado, ou melhor, eu havia caído do mundo. Tanto esforço e nada. Não sabia o que fazer. Havia conseguido uma bolsa integral pelo ENEM4, em uma universidade particular, mas sonhava estudar em universidade pública, não queria sentir que meu esforço tinha sido em vão. Faltava uma universidade, o resultado sairia somente em março, mas o tempo de espera valeu, eu finalmente PASSEI e para História. Na universidade em que queria (UFRRJ5). Fiz a matrícula naquele lugar que eu achava o mais lindo do mundo. Um dia, lembrei que iria sair o edital de vagas da UNIRIO e resolvi ver, sem nem acreditar que iria passar. Quando vi, meu nome estava lá. Resolvi fazer a matrícula e depois decidir para qual iria. Nunca tinha ido naquele bairro antes, um lugar lindo, parecia um outro mundo. Mas mesmo assim tinha muitas dúvidas, as aulas iriam começar no dia seguinte, enquanto as da outra só em junho. Pesquisei bastante e, por uma série de fatores, decidi pela UNIRIO. No primeiro dia de aula, estava literalmente perdida, não achava minha sala e ninguém sabia informar o prédio em que teria aula. Depois de muito tempo, achei a sala, com a aula já iniciada. Descobri que as aulas haviam começado já havia duas ou três semanas. Continuei um pouco perdida nas matérias, mas me esforcei bastante e acabei me achando. Depois de algum tempinho fiz amizade com pessoas maravilhosas, o contrário do que eu pensava. Achava que só encontraria meninas riquinhas e que só falassem de roupa de grife. O que é ruim ainda é o fato de ter professores que não estão nem um pouco interessados em passar os conteúdos de uma maneira que todos entendam. Aí o jeito é você ignorar e tentar dar a volta por cima, sabendo que o esforço vai ser seu sempre, poucos são os professores que irão se esforçar pelos alunos e que estarão preocupados em realmente ensinar em uma linguagem que todos entendam. Agora estou aqui, sempre contando com o apoio da família, do meu namorado e das amigas para passar por tudo. Dificuldade em entender certas matérias? Palavras (em latim, pode acreditar) e expressões que não entendo (tem professor falando grego literalmente)? A grande quantidade de tempo que preciso para estudar? A longa (4 horas no total) e cansativa viagem casa-faculdade entre outras coisas? Sim, tudo existe. Mas, com persistência e vontade de melhorar, tudo isso se torna pequeno. Agora dou valor a tudo que consegui com meu esforço e com a ajuda dos meus pais, procurando me empenhar ao máximo. E acabei indo para a profissão que foi a primeira que pensei: ser professora, com um item a mais, historiadora. 1 Universidade Federal do Rio de Janeiro Universidade do Estado do Rio de Janeiro 3 Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 4 Exame Nacional do Ensino Médio 5 Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro 2 Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 35 O início Antônio Celso da Silva Campello * Começar a falar de mim é mesmo muito difícil; como ser imparcial, já que não sou um defunto autor como Brás Cubas e memórias sempre trazem à tona coisas que podem não agradar a todos? Minha história vai ser contada do jeito usual, ou seja, pelo inicio. Nasci numa tarde do dia vinte e três de outubro de 1983, em Brasília. Na época, meus pais moravam lá. Minha mãe trabalhava como empregada na casa de um diplomata e meu pai era funcionário publico. Não sei como ocorreu o encontro deles, mas, felizmente, principalmente para mim, acabou acontecendo. A arte de ser nômade Morávamos em Brasília, na Asa Sul, mas o apartamento não era nosso, pertencia à empresa que meu pai trabalhava. Na época do meu nascimento, meu pai contava com 54 anos e estava para se aposentar; dentro de um ano tivemos que nos mudar e fomos para Goiânia, onde morávamos numa casa alugada. E foi nessa cidade que tive meu primeiro encontro com a ESCOLA. Lembro como se fosse hoje o primeiro dia de aula, eu não queria entrar e minha mãe tinha que entrar na sala comigo e, depois, sem que eu percebesse, ia embora. Esse ritual durou mais ou menos uma semana e passei, talvez, dois anos nessa escola. Lembro que alguém falou que existia uma bruxa no banheiro, era uma forma de impedir que fossemos lá a toda hora. Esse foi meu primeiro trauma na escola. Após algum tempo, saímos de Goiânia, pois o aluguel ficou muito caro e estávamos muito longe da família do meu pai, que morava no Rio de Janeiro. Então, colocamos novamente tudo num caminhão e fomos para Cabo Frio. Eu tinha, nessa época, quatro para cinco anos. Uma nova estação Em Cabo Frio, me tornei mais íntimo com a rotina da escola. Comecei a estudar em uma escola chamada Santa Rita. Entrei lá no jardim I e, durante um tempo, tudo ia às mil maravilhas, nenhuma dificuldade, então, quando estava na primeira série do ensino fundamental, começaram a ocorrer problemas financeiros em casa. Aí, sabe como é: aperta daqui, aperta de lá e acabamos ficando sem dinheiro para pagar a escola. Como sempre, Deus atento a tudo e, por um "acaso" do destino, minha mãe e a dona (e também diretora da * Graduando em Enfermagem pela UNIRIO. 36 Caminhadas de universitários de origem popular escola) eram devotas da mesma santa e acabaram ficando amigas. Resumo da ópera: estudei nessa escola da primeira até a oitava série do Ensino Fundamental, sem pagar nada. A amizade das duas não foi o único motivo, pois, além disso, nessa época era muito bom aluno, o que também ajudou na manutenção da minha bolsa. A quarta parada Como já dizia o poetinha, "tristeza não tem fim, felicidade sim". Nessa época, Cabo Frio começou a crescer e o custo de vida estava ficando muito caro, inclusive o valor do aluguel da casa onde morávamos. Então, como sempre, o destino deu um jeitinho: uma tia que morava no Rio de Janeiro nos convidou para morarmos com ela. Desse modo, vim morar no centro do Rio e, no começo, foi uma adaptação difícil, mas logo tudo se resolveu. Como não íamos pagar aluguel, o primeiro pensamento foi que eu iria estudar num colégio particular, mas o valor era muito alto e minha tia falou que iria ajudar no pagamento das mensalidades. As novas mudanças A mudança dessa vez ocorreu sem que eu precisasse sair do lugar. A tia que tanto me ajudava pouco tempo depois veio a falecer devido a um câncer no fígado, e como era ela quem ajudava com o pagamento da escola minha mãe teve que pedir uma bolsa de estudo para que eu continuasse estudando lá. Pelas minhas notas e também por sorte consegui a bolsa. Nessa escola, fiz grandes amizades, que duram até hoje e são muito importantes na minha caminhada. Em setembro do mesmo ano, aconteceu algo que mudou minha vida radicalmente. Até esse ponto, acho que ainda não tinha conhecido mesmo o que eram as dificuldades, tudo havia ficado um pouco "distante", por mais que estivesse próximo. Meu pai sofreu um AVC isquêmico que paralisou todo o seu lado direito. De uma hora para outra, tive que deixar de ser um adolescente sem grandes responsabilidades e me tornar um "adulto" que tinha que assumir a casa, não financeiramente, pois, como disse, meu pai já era aposentado e recebia sua pensão do Instituto Nacional de Seguro Social, mas sim do lado emocional e de cuidados com ele. Nós três passamos uma época muito difícil, pois os gastos com medicação eram muito altos e pouco sobrava para as despesas da casa. Lembro que comíamos frango todos os dias de todas as formas, pois o quilo do frango estava custando um real e era o que a nossa nova condição permitia arcar. Essa fase durou mais ou menos um ano, até que começamos a arranjar os medicamentos em hospitais e postos de saúde. Um passo rumo ao sonho Em 2001, me formei no Ensino Médio e fiz o vestibular. Não fui classificado para nenhuma universidade e, nesse momento, pensei o que iria fazer na universidade, que era um sonho e parecia tão distante. Sabia que com o ensino que tive na escola seria muito difícil a aprovação na carreira que havia escolhido. Então, me lembrei de um conselho que minha mãe havia me dado há muito tempo atrás: "que deveria pedir as coisas, o máximo que eu ganharia seria um não". Seguindo o que ela havia me dito, fui até um pré-vestibular e perguntei como poderia conseguir uma bolsa, nem me lembro quantas vezes tive que ir lá e ficar perturbando o coordenador do curso, mas no final valeu a pena e ganhei uma bolsa de 70% . Estudei dois meses pagando esse valor e Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 37 fui ao coordenador e falei que teria que sair, pois mesmo com essa bolsa estava com muitas dificuldades para pagar o curso. Depois de muita conversa e de "encher a paciência", consegui uma bolsa integral e continuei estudando no curso. A realização do sonho O sonho de entrar na universidade sempre me acompanhou, mas tinha noção que, se não fizesse uma universidade pública, esse sonho não se realizaria. Tentei o vestibular por três anos e, no concurso de 2005, passei. Lembro como se fosse hoje o dia em que fiquei sabendo do resultado: meus olhos ficaram marejados e, às vezes, uma lágrima ou outra escapava. Nesses dois anos em que estou na UNIRIO, vejo que toda a luta que tive valeu cada segundo. Adoro estar nesse lugar, pois aqui percebo que meus horizontes aumentam dia a dia e que meus sonhos se tornam cada vez maiores. Agradeço a todas as pessoas que fizeram e fazem parte dessa caminhada que está muito longe do fim. Só espero que um dia todos os jovens desse nosso Brasil possam ter essa oportunidade que agarro com todas as minhas forças. 38 Caminhadas de universitários de origem popular Mulheres de fibra, de coragem e de coração Caroline de Aquino Pereira * Infância diferenciada Foi uma gravidez surpresa para mamãe Glória, mas muito amada desde o primeiro momento e por meu pai Nilson, também. Quando nasci, no dia 10 de novembro de 1984, já tinha uma irmã nove anos mais velha, filha do primeiro casamento de mamãe aos 15 anos. Desde bebê, me acostumei ao sangue cigano da família, sempre de mudança. No meu primeiro ano de vida, a família se dividia entre o Rio de Janeiro e Búzios, por causa do trabalho do papai, que era caseiro. Logo nos mudamos para Búzios e de lá partimos para Angra dos Reis, pois o patrão de meu pai tinha comprado uma ilha e precisava de alguém para cuidar do lugar. Era lindo, paradisíaco com praias desertas e mata virgem, mas por outro lado a casa onde ficamos era um "barracão", não tinha luz, água encanada, esgoto, móveis, e o banheiro, procuramos e não encontramos, também não tinha. Nessa época, me sentia a verdadeira filha do Tarzan e da Jane, brincadeiras à parte, essa é a verdade. Foram muitas as vezes em que encontrávamos cobras na porta de casa, aranhas nos cobertores, gambás tentando comer o almoço... nessa época, já éramos cinco, eu, mamãe, papai, minha irmã e minha preguiça (podem acreditar eu tive uma preguiça selvagem). Mas o sonho só durou um ano, meus pais se separaram quando eu só tinha três anos e voltei para o Rio de Janeiro, com minha mãe e minha irmã. Como não tínhamos casa própria, fomos morar na casa da minha bisavó na comunidade Parque União no Complexo da Maré. Mamãe, como sempre, fez o que podia e o que não podia para erguer uma casa sozinha e criar as filhas. E, nas férias, passava com meu pai, que ainda morava na ilha, já habitada e com lindas mansões. Lá era uma espécie de paraíso, com tudo que uma criança sonha e as crianças de lá tinham tudo que queriam, diferente dos meus amiguinhos do Complexo da Maré, que mal tinham brinquedos. Eram duas realidades distintas que aprendi a conviver e respeitar da mesma forma, sem tratamento especial para os que tinham mais bens materiais do que eu. Na ilha, eu era uma "atração" para as meninas ricas, pois sabia pescar, mergulhar, pegar caranguejos com as mãos, guiar barco, não tinha medo de nenhum bicho e nem de nada. E acredito que ter vivido com pessoas tão diferentes e de classes sociais completamente distantes me enriqueceu como pessoa, me fez ver que o dinheiro e o poder não fazem de ninguém melhor ou pior. * Graduanda em Enfermagem pela UNIRIO. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 39 E foi nessa comunidade que vivi até os 10 anos, convivendo com pessoas maravilhosas e também com a criminalidade. Para quem não conhece uma favela, é um lugar feliz, alegre, com pessoas que te estendem as duas mãos quando você precisa, mas, por outro lado, há a realidade do medo e do silêncio que tive que conviver. Crescer com essa realidade difícil me fez amadurecer rápido demais, me fez ver que a vida tem apenas dois caminhos, o caminho árduo, no qual você vive um dia após o outro na esperança que a vida melhore e correndo atrás para por comida na mesa, e o caminho rápido, onde você consegue tudo o que quer, mas não sabe por quanto tempo poderá aproveitar o que conseguiu. Perdi amigos por causa do crime, uns morreram por "azar", estavam no lugar errado e com pessoas erradas, outros se perderam de mim porque, ao escolher o caminho fácil, a vida nos distanciou. Passando de adolescente para adulta Fugindo da violência, fomos morar em outra comunidade chamada Tubiacanga, na Ilha do Governador, por mais dois anos até mamãe se casar novamente. Dessa vez, fui morar num bairro popular e mais urbano, onde moro até hoje, mas, para não perder o costume, só nesse bairro nos mudamos cinco vezes, o sangue cigano fala mais alto. No início, estava tudo indo bem, mas três anos depois meu padrasto descobriu que estava com câncer e, ao mesmo tempo, mamãe teve que fazer uma cirurgia. Foi um tempo difícil, estávamos sem dinheiro e os dois sem poder trabalhar, e eu tive que ajudar no que podia. Como meu padrasto tinha uma lanchonete, fui ajudar, servia, fazia contas, fazia pizzas, salgadinhos e tudo o que fosse necessário. Em 2006, o ano se complicou um pouco, estávamos com pouco dinheiro, mamãe desempregada e, para complicar, acabou se separando do marido. Como não tínhamos para onde ir, a prima dela, a quem chamo de madrinha Neuma, nos ajudou e cedeu um apartamento para morarmos. E, além dela, outras pessoas nos apoiaram e continuam nos ajudando, como minhas avós, tios e namorado. Uns meses depois, mamãe conseguiu um emprego e as coisas aos poucos foram se ajeitando. Conhecimento é tudo Minha vida escolar começou aos três aninhos, numa escola na Maré, na qual estudei até a 1ª série do Ensino Fundamental, mas essa escola não era reconhecida pelo MEC. Quando fui para a 2ª série, mamãe resolveu me matricular em uma escola de qualidade e reconhecida e foi o período escolar mais difícil da minha vida, pois não tinha base educacional, por ter vindo de uma escola de baixa qualidade. Sofri muito preconceito nas escolas por ser a "favelada", a "pobrezinha", e isso me segregou nas salas de aula, pois ninguém queria ser amiga de uma moradora da favela. Tem muita gente que acredita que em comunidade popular só mora gente ruim e de má índole. Por um tempo, isso me afetou demais, tinha envergonha da minha realidade e comecei a agir com violência física quando me atingiam verbalmente. Mas, conversando com uma professora que jamais esquecerei, a tia Maria, entendi que isso não resolveria nada e que deveria ser o contrário, eu deveria mostrar com meu desempenho escolar que era superior a todas as adversidades. No Ensino Médio, foi tudo diferente, estava mais amadurecida e sabendo o que queria. Por causa das minhas notas nos colégios anteriores, consegui uma bolsa em uma rede de colégios. Como me destaquei nas notas, fui convidada pelo colégio a estudar no centro de excelência pedagógica, onde fiquei até acabar o Ensino Médio. 40 Caminhadas de universitários de origem popular No ano de vestibular, não pude fazer as provas, pois não tive como pagar e não consegui isenção, porque estudava em colégio particular. Sofri muito com isso, mas não desisti. Acreditei, segui em frente e, no ano seguinte, consegui um cursinho de técnica de administração gratuito e um estágio no Tribunal Regional do Trabalho, o que me ajudou a pagar um curso pré-vestibular com bolsa à noite. Desisti de uma vaga com bolsa de 70% no curso de Administração de uma faculdade particular e fui tentar o vestibular. Universidade - um sonho alcançado Quando se nasce numa família de classe popular, tendemos a sonhar baixo, a crer que certos lugares não nos pertencem e isso nunca entrou na minha cabeça. Sou a primeira pessoa da família a estar numa universidade pública e sei que sou um orgulho para todos e um incentivo para que outros também consigam. Consegui chegar na universidade pública, passei pra UFF e para UNIRIO, em Enfermagem, no mesmo vestibular. Hoje, estou na UNIRIO, a primeira escola de Enfermagem do Brasil e indo para o quinto período, feliz demais, realizada com o curso que escolhi e sonhando em me formar logo, para poder exercer essa profissão linda. Mas na universidade nem tudo é fácil, temos muitas despesas com transporte, xerox, comida e tudo o mais que temos que comprar. E chegou uma hora em que tive que pensar em trancar o curso e começar a trabalhar porque o dinheiro não daria para custear meus estudos. Fiquei sabendo do Programa Conexões e me inscrevi. E hoje, se ainda estou na faculdade, é, em grande parte, por causa do Conexões de Saberes, que, além da ajuda financeira, me dá motivação para continuar, me faz sentir capaz, útil e merecedora de ocupar uma vaga numa universidade pública. Por tudo isso, agradeço à minha mãe, que sempre acreditou em mim, mesmo quando nem eu mesma acreditava. E tem uma frase que ela me fala até hoje: "Eu não fiz mais por você porque não pude, mas te dei conhecimento e isso ninguém tira de você". Minha vida não tem nada de diferente, é a vida de uma mulher comum, mas que acredita que pode mudar o mundo ou, pelo menos, mostrar às pessoas que é possível vencer, que é possível acreditar que as coisas possam melhorar e fazer acontecer. Eu fui atrás do meu sonho e conquistei. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 41 Ter um bom motivo pra sonhar Emily Maviana da Trindade Santos * Nasci em uma pequena cidade do extremo sul da Bahia, uma verdadeira vila de pescadores, de um lado, o mar, do outro, o rio, ambos percorrem a cidade, que não chega a ter mais que 8km de comprimento. A cidade é sustentada pela pesca e pelo turismo apenas no verão. Meu pai (Carlos) é caminhoneiro autônomo, minha mãe (Rosana) é dona de casa e vende produtos da Natura para ajudar nas despesas de casa. Os dois pararam de estudar na 7ª série, para casar, e até hoje não tiveram como retornar. Tenho um irmão (Ronan), dois anos mais novo que eu, e uma irmãzinha caçula (Emilyana), dez anos mais nova que eu. No primário, estudei em um colégio estadual e, desde pequenina, já queria ganhar meu próprio dinheiro. Por volta de nove anos de idade, comecei a vender chocolates, bombons e balas, na hora do recreio. Era um sucesso, gastava meu dinheiro sempre na papelaria, era muito caprichosa com as tarefas da escola. Na 5ª série, fui para o Centro Educacional de Alcobaça (Escola Municipal), ia de bicicleta para o colégio. Nessa época, meu tio Márcio tinha um supermercado e eu sempre ficava ajudando a embalar as compras para os clientes, e ganhava uns trocados. Todo verão, procurava algum trabalho para fazer e, por volta de 13 anos de idade, trabalhei em uma loja de artesanato. No ano seguinte, aos 14 anos, trabalhei numa lanchonete e sorveteria, depois trabalhei num fliperama e bomboniére de uma prima minha. Em todos, ganhava pouco, mas queria me ocupar e ter meu próprio dinheiro. O que mais me marcou na época do ginásio foi ouvir meu professor de Matemática e Ciências (Adalto) falar para meus pais que era para fazerem de tudo para que meu Ensino Médio não fosse em Alcobaça, pois o ensino era muito fraco e só havia um colégio de Ensino Médio. Ele disse que seria muito importante aproveitar meu potencial e empenho nos estudos. Aquela cena marcou minha vida, jamais saiu da minha mente e passei sempre a pedir aos meus pais para estudar fora. Eles também queriam isso e não era a primeira vez que algum professor me elogiava, pois sempre recebiam carta de parabéns pela filha estudiosa. Mas como poderia estudar fora se não tinha condições de pagar uma escola particular e nem ao menos tínhamos algum parente fora, com quem eu pudesse morar? Com 14 anos, acabei o Ensino Fundamental e continuaria a estudar em Alcobaça, mas existe uma cidade próxima da minha que fica a uma hora de distância, que se chama Teixeira de Freitas, muito mais desenvolvida que Alcobaça, com mais de 100 mil habitantes, tudo o que eu queria era estudar lá. E surgiu uma oportunidade, uma amiga da minha mãe (Zita) * Graduanda em Enfermagem pela UNIRIO. 42 Caminhadas de universitários de origem popular que morava em Teixeira ofereceu-se para me levar para morar na casa dela, com ela e com suas três filhas adolescentes, todas mais novas que eu, e o caçula Luís Henrique (dois anos). Uma família muito parecida com a minha financeiramente. A Zita disse que havia um colégio estadual a ser inaugurado, apenas de Ensino Médio, um projeto escolar do governador Antônio Carlos Magalhães, para melhor o ensino na Bahia, no qual foram construídos unidades de 15 Colégios Modelo Luís Eduardo Magalhães (COLEM). E lá fomos, minha mãe e eu, pegar aquela fila imensa para fazer a inscrição, mas haveria um tipo de seleção, porque não havia vagas para todos e o que todos queriam era estudar naquele lindo colégio. Saiu o resultado e adivinha só? Eu consegui! Nossa quanta felicidade, vou estudar fora, conhecer pessoas novas, uma cidade diferente, muita mudança. Zita não quis cobrar a minha estadia em sua casa, por sua amizade com minha família, e meus pais não queriam deixar que ficasse tudo de graça, pois sabiam das suas dificuldades com os filhos. Então, toda semana, eu levava uma pequena compra de alimentos, maior ou menor, isso dependia da semana do meu pai com os fretes que fazia no caminhão. Eu ia todo domingo à tardinha e retornava após as aulas de sexta. Primeiro dia de aula - 1º ano do Ensino Médio - ano 1999. Nossa que escola linda! Quanta gente! Tinha até quem ia de carro para o colégio. Senti um friozinho na barriga! Lá fui eu procurar minha classe. Tinha muita gente com cara de bagunceira. Um mundo novo despertava para mim. Nem tudo foram flores esse ano, com o passar do tempo, comecei a perceber que as filhas da Zita tinham ciúmes de mim, porque ela me adorava. Ela dava um livro para cada uma ler em uma semana e, às vezes, eu chegava a ler dois e as meninas raramente liam um livro, ela sempre pedia para as meninas seguirem o meu exemplo. As crises de ciúmes aumentaram quando tia Zita me consolou porque eu havia tirado seis em História e cheguei em casa chorando. Eu chegava do colégio, almoçava e ia fazer as tarefas de casa, meu Deus! Eu não conseguia me concentrar, elas colocavam o som bem alto para me provocar todas as vezes em que eu ia estudar, quando não era o som era a televisão ou, então, cantarolavam bem alto pela casa. Sem falar no serviço de casa, que elas deixavam nas minhas costas e tia Zita não via nada porque trabalhava o dia inteiro. Eu gostava do colégio e sabia que, se contasse para meus pais, eles me levariam de volta para Alcobaça, e a única certeza que eu tinha era que para Alcobaça eu não queria voltar. Então, eu estava disposta a suportar as afrontas das meninas para poder ficar. Eu passei a prolongar o meu tempo no colégio, entrei para o basquete, vôlei, teatro, freqüentava muito a biblioteca, isso tudo para não ficar em casa, chegava do colégio, almoçava, voltava para o colégio e só estava de volta em casa às 17h. Teve um dia que eu fiquei com muita raiva, achei que fosse odiá-las pelo resto da minha vida. Cheguei e a casa estava toda trancada, chamei e uma delas abriu a porta, quando entrei, elas me amarraram com uma corda e me trancaram no quartinho que tinha no fundo do quintal. Nossa, chorei tanto e pedi a Deus para me ajudar, quando estava próximo do horário de tia Zita chegar, elas me tiraram e falaram que era para ficar de boca calada. Nesse ano eu conheci Tânia, uma grande amiga, contava quase tudo o que acontecia pra ela e ela sempre me chamava para ir a casa dela. Depois desse acontecimento, passei a ir sempre, almoçava, ficava por lá fazendo trabalho e, muitas vezes, dormia, os pais dela me adoravam e eu igualmente, claro. Eu chorava muito, principalmente quando chegava domingo e eu teria que retornar a Teixeira e, na sexta-feira, estava eu de volta super feliz. Hoje, não tenho raiva delas, sei que foi ciúme da mãe, coisas de adolescentes, elas até já me pediram desculpas por tudo o que fizeram e eu perdoei, é claro. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 43 No ano seguinte, Zita se mudaria para a Itália e eu não teria mais onde ficar. Por um lado, fiquei feliz, não iria ter mais as meninas para me perturbarem, mas fiquei triste pelo fato de ter que voltar para Alcobaça. Minha tia mais velha (Maria) por parte de mãe mora em Posto da Mata, uma cidade que fica a 50 minutos de Teixeira de Freitas. Ela nos deu uma ótima notícia: a Prefeitura de lá tem um ônibus que leva e busca os alunos de graça para Teixeira, e me convidou pra ir morar com ela, visitaria meus pais de 15 em 15 dias, porque era mais longe de Alcobaça. Outra mudança em minha vida. Lá fui eu para Posto da Mata, uma cidade pequena, parecida com Alcobaça, só que sem praia, gostei muito daquele ano, meus tios me acolheram como filha, não me sentia tão carente quanto na outra casa, ainda havia minha prima Uellian, de 18 anos, éramos verdadeiras irmãs. O ruim nessa época era ter que acordar de madrugada para pegar o ônibus às 5:30 e eu só chegava em casa às 13:30, com muita fome e super cansada. Às vezes, o ônibus quebrava e tínhamos que pegar carona na estrada. E assim o ano de 2000 passou e deixou boas lembranças e saudades. Em 2001, fui morar com Nádia, uma amiga do colégio. Morava apenas ela e seu pai, sr. Osmar, que trabalhava viajando, pois era representante de uma empresa. Foi ótimo morar com Nádia e seu pai, que me tratava como filha. Nádia e eu éramos grandes companheiras, fizemos grupos de estudos para o vestibular, vendíamos brigadeiro em uma escola particular perto de casa, já era uma graninha extra que ganhávamos. O 3º ano foi um despertar para minha vida, cheguei até aqui e não queria parar, queria progredir ainda mais, queria fazer faculdade, mas não sabia de que ainda, queria trabalhar e ajudar meus pais. Também via meus colegas planejando, alguns se mudariam para fazer faculdade fora dali e eu também sonhava a mesma coisa, mas o que eu faria? Acabou o ano! Eu retornei para Alcobaça e, no verão, comecei a trabalhar de recepcionista no melhor Hotel da cidade. Era um trabalho apenas de verão, eu até gostava de lá, mas não queria que fosse para sempre e sabia que não seria. Depois do carnaval, teria que procurar algo mais. Nessa mesma época, fui pra Vitória-ES prestar vestibular e adivinhem o curso? Ciências da Computação. Só sabia que gostava de computador e optei pelo curso, mas hoje sei que não tem nada a ver comigo. A experiência do vestibular foi péssima, pois percebi que não tinha nenhuma preparação, que a base que tinha do colégio era muito fraca, precisava de um cursinho pré-vestibular para me preparar mais, não passei nem na primeira fase do vestibular, senti muita raiva do colégio. Acabou o verão e eu parei de trabalhar, foi minha pior época em Alcobaça, sem fazer nada, estava quase entrando em depressão. Na minha cidade, as mulheres normalmente são marisqueiras, professoras ou donas de casa, eu tinha certeza que nada disso eu queria ser, minha família toda por parte de mãe vive da pesca. Eu queria sair de lá, pois sabia que, para consegui algo, tinha que ser fora dali. Mas pra onde eu iria? Certo dia, minha mãe chegou em casa com uma ótima noticia: sua prima iria se mudar para o Rio de Janeiro e estava disposta a me levar. Fomos morar em Nilópolis, na Baixada Fluminense. Trouxe apenas 100 reais e teria que conseguir um trabalho o mais rápido possível, caso contrário voltaria para Bahia. Com uma semana, fui trabalhar em um supermercado em frente à estação de trem de Nilópolis, onde conheci outra realidade. Não poderia estudar por enquanto por causa da carga horária do trabalho e isso seria inviável, detestava o fato de só trabalhar. 44 Caminhadas de universitários de origem popular Certo dia, recebi uma ligação, era a Érika, filha de uma amiga da minha mãe, me incentivando a ir para o Flamengo onde ela morava, pois lá haveria outras oportunidades. Ela fazia Enfermagem na UNIRIO, um grande incentivo na minha decisão pelo curso. Tinha pouco dinheiro, mas, mesmo assim, me arrisquei. Saí de Nilópolis, agradeci aos meus primos e parti. Precisei arrumar um local para morar no Flamengo, porque a Érika morava numa república de estudantes que já estava lotada. Fui morar na casa de uma senhora que alugava quartos. Distribui currículos pelo Shopping Rio Sul e, por insistência, consegui trabalhar em uma loja de roupa, a Triton. No início, a supervisora não me queria na loja por eu ser baiana e já havia uma baiana na loja, ela me pediu até para disfarçar meu sotaque, achei aquilo o fim, mesmo assim fiquei. No primeiro mês, trabalhei no Barra Shopping, no inicio foi péssimo, tinha dinheiro contado para passagem e lanche e não gostava da loja da Barra da Tijuca. Havia sido contratada para o Rio Sul, que era mais perto de casa e lá havia a gerente que eu gostava. No mês seguinte, fui para o Rio Sul e, mesmo assim, às vezes ia para outra loja cobrir alguém que faltava ou treinar algum caixa. Às vezes, trabalhava em duas lojas no mesmo dia e chegava em casa 1h da madrugada. Com nove meses de loja, eu cansei dessa situação disse à minha gerente que ia ficar apenas no Rio Sul, queria algo certo para poder estudar. Ela me disse que isso seria muito difícil ali, porque a supervisora sabia que eu precisava do trabalho por estar sozinha no Rio de Janeiro, ela também queria me transferir para o Barra Shopping e eu teria que decidir pela demissão ou ir para o Barra Shopping. Se eu tinha um objetivo e daquele jeito não dava... Eu aceitei a demissão. Um mês depois, a Leila havia saído da loja e já estava em outra, eu a procurei e pedi para me contratar, dessa vez como vendedora, pois a carga horária era menor. Comecei a trabalhar na Kipling, onde tinha um horário fixo que era pela manhã. Consegui bolsa no pré-vestibular e estudava à noite. Da loja, ia direto para o cursinho, chegava em casa, às 22h, exausta e ainda tinha que cozinhar e revisar matéria. Nessa época, eu dividia um conjugado com duas amigas no Flamengo e essa foi a minha rotina durante todo o ano. Nesse período, dediquei-me principalmente às matérias de Biologia e Química, que eram minhas específicas, pois já havia me apaixonado pela Enfermagem. Nos dias de folga, lavava roupa e estudava, abri mão de sair para festas, me direcionava apenas nos meus estudos. Eu levava comida de casa para a loja, mas não podia comer na loja e comia na escada de incêndio do shopping. Sabia que, com o shopping, não conseguiria nada, pois é um mundo cheio de futilidades e não era aquilo que eu queria. Ruim foi durante o período do Natal e das provas da segunda fase, minha gerente queria que eu dobrasse o horário de trabalho e eram as semanas do "intensivão". Eu combinei com a gerente que iria apenas para as aulas de Biologia e Química e, depois, retornaria para a loja e lá ficava até meia-noite, horário em que o shopping fechava na semana do Natal. Não sei como não pirei, recebia forças não sei de onde! Em janeiro, foi uma pilha de provas, às vezes, nos domingos em que havia provas, eu saía das provas de cabeça quente e ia direto para a loja trabalhar, era uma loucura. Em março de 2005, saiu a classificação. Acho que foi o dia mais feliz da minha vida, todo o meu esforço teve uma recompensa, PASSEI NO VESTIBULAR DA UNIRIO! Tive que sair da loja porque meu curso é integral e meus pais me ajudariam com as despesas. Parece um sonho, no primeiro dia, eu ainda não acreditava e tudo o que queria era viver aquele momento. Muito bom ser caloura e participar dos trotes, foi sensacional. A faculdade me fez conhecer um mundo diferente, cheio de diversidades maravilhosas, me fez conhecer muitas pessoas, um mundo novo se abrira para mim. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 45 Em 2006, minha prima Taíssa também passou para a UNIRIO, e veio ser uma grande companheira para mim. Somos uma família aqui no Rio, compartilhamos todos os momentos juntas. No 2º período, meu pai ficou desempregado, e, agora, o que eu faria? Ainda tinha uma grana guardada que daria para segurar por mais um período... Ou, então, talvez eu tivesse que... Não, isso não, trancar a faculdade jamais, depois de tudo o que já havia lutado, não poderia desistir. No final do período, meu dinheiro já estava acabando e minha mãe ainda me ajudava com alguma coisa. Eu iria trancar algumas matérias para voltar a trabalhar, o que iria prolongar e atrasar minha formação acadêmica. Certo dia, descobri o Conexões de Saberes e eu e Taíssa nos inscrevemos. Conseguimos entrar, graças a Deus, e é com o dinheiro da bolsa, vendendo Natura e Avon e mais uma ajuda dos meus pais que continuo estudando o curso que eu amo de paixão. No Conexões, estou descobrindo mais um mundo novo, até mesmo uma nova identidade, outras ideologias de vida e me identifico muito com as causas sociais que ele abraça. Quero ajudar a construir um mundo melhor e poder levar oportunidades para meu povo. Sou muito grata a tudo e a todos que me ajudaram e continuam me ajudando, sei que ainda haverá muitos obstáculos pela frente e, com garra, passarei por cima de todos eles. Com os obstáculos, aprendemos a dar mais valor àquilo que conquistamos e, assim, adquirimos novos conhecimentos. 46 Caminhadas de universitários de origem popular Passo a passo para a universidade Fabiana Santos de Paula * Tudo começou no dia 27 de setembro de 1983. Nascia Fabiana Santos de Paula. A minha vida não tem fatos que emocionem, porém tem histórias que, com certeza, servem de exemplo para muita gente não desistir da sua meta. Estudei todo o Ensino Fundamental em escolas públicas, porém, quando estava na 3ª série, minha mãe faleceu e tive que sair da escola em que estudava em Copacabana, onde morávamos, pois ela era empregada doméstica e passávamos a semana no seu trabalho. Passei a estudar em Nilópolis, onde fui morar com meu irmão e minha cunhada, e lá terminei a 3ª e as outras séries, inclusive o Ensino Médio. Porém, o Ensino Médio não foi em uma escola pública e sim em uma particular, pois havia conseguido uma bolsa de estudos e como, por pura ignorância, queria fazer técnico, lá fui eu cursá-lo em uma instituição privada, a primeira e única na minha vida. Desde o Ensino Fundamental, eu tinha como meta fazer faculdade, só não sabia onde e nem como. Cresci ouvindo minha cunhada falar: “pago até o 2º grau, a faculdade é com você ou com o seu pai”. Até então não sabia que existiam universidades públicas, ou melhor, só tinha conhecimento da UERJ, e virou meu sonho de consumo estudar lá. Então, terminei o Ensino Médio. E agora, o que fazer? Conhecia uns amigos que coordenavam um pré-vestibular comunitário e, como minha cunhada já havia dito, tinha que me virar sozinha, pois até então meu pai não era dos mais presentes. Matriculei-me e comecei a estudar, pelo menos era o que achava. Não levava muito a sério. Era adolescente... sabe como é... só queria cursar faculdade, mas não fazia por onde. Prestei o vestibular pela primeira vez, só para a UERJ, era a única que conhecia e era meu sonho de consumo, lembra? Obviamente, não passei. Fingia que estudava! Prestei o segundo vestibular, só que agora, depois de um ano no pré-vestibular, já sabia da existência da UFRJ, então tentei para as duas e, mais uma vez, não passei. Só que agora estava levando mais a sério. Porém, tive que começar a trabalhar, foi o que atrapalhou o meu rendimento, sem contar que apesar de ter levado mais a sério, as estratégias que usei ainda estavam erradas. Sim, estratégias! Porque vestibular, além de muito estudo, é necessário traçar estratégias. No terceiro ano de vestibular, a minha vida começou a mudar. Eu me apaixonei pelo professor de Biologia do curso e ele me apresentou a UFF, UFRRJ e UNIRIO. Pronto, agora eu conhecia todas as universidades. * Graduanda em Pedagogia pela UNIRIO. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 47 Saí do pré-vestibular comunitário e, com meu professor de Biologia, agora meu namorado, montamos outro curso pré-vestibular, que não era comunitário, mas se podia dizer que era popular. Isso porque não estávamos interessados em ganhar dinheiro e sim aprovar pessoas em universidades públicas e tenho certeza que esse objetivo foi alcançado. Bom! No meu terceiro vestibular, não passei novamente. Porém foi o vestibular em que cheguei mais perto. Havia traçado a estratégia certa, mas ainda faltou algo mais. No quarto e último vestibular, eu tinha um namorado, professor e amigo do meu lado, me apoiando e me dando coragem, porque faltou pouco para eu desistir. Só não aconteceu, porque ele acreditava em mim. Eu diria que até mais do que eu mesma! Ele me dava bronca quando eu esmorecia e força quando era necessário. O resultado não poderia ser outro. Passei! E, por ironia do destino, estudo na mesma universidade em que ele cursou Biologia: a UNIRIO. Ah, também fui aprovada para a UERJ, só que a essa altura do campeonato, ela já não era o meu sonho de consumo. Hoje sou estudante do 5º período de Pedagogia e a mulher mais feliz do mundo. Conseguir atingir a minha meta e, ainda de quebra, ganhei um homem maravilhoso que quero ter ao meu lado para o resto da minha vida. 48 Caminhadas de universitários de origem popular Minha vida acadêmica em poucas palavras, porém com muitas conturbações Fabiana Santos de Souza * Meu nome é Fabiana Santos de Souza, tenho 25 anos, sou estudante da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e vou tentar descrever para você, leitor, a minha vida acadêmica, relacionando-a com as diversas dificuldades, conquistas, experiências, tristezas e alegrias. Iniciei minha trajetória escolar em um colégio municipal denominado Mata Machado, próximo à comunidade em que morava, chamada Tijuaçú, no bairro Alto da Boa Vista. Lá estudei até a antiga quarta série e tive uma professora que muito me incentivou, fazendo com que eu me tornasse uma aluna exemplar. Posteriormente, fui estudar em outra escola municipal na Barra da Tijuca, na qual encontrei diversos problemas, como: falta de professores, profissionais desinteressados, greves, entre outras coisas. Nessa escola, concluí o Ensino Fundamental. Em outro momento, continuei o percurso acadêmico em uma escola particular que se chamava Instituto Santa Rita, na Tijuca (zona norte do Rio de Janeiro), pois havia conseguido uma bolsa parcial. Para mim, foi uma imensa alegria, pois sempre quis a oportunidade de ter um colégio melhor, onde pudesse estudar e ser alguém na vida. Não posso deixar de destacar o apoio de meus pais que nunca mediram esforços para que eu conseguisse estudar, pois, mesmo não tendo tido oportunidade de estudar e de não terem boa condição financeira devido aos seus trabalhos, já que meu pai era balconista numa padaria e minha mãe era auxiliar de serviços gerais em um colégio, eles foram incansáveis. Outro fato que também marcou e marca a minha vida é que meus irmãos não estudaram porque as condições não permitiram, fazendo com que eu me sinta um pouco responsável por isso e com vontade de poder ajudá-los no futuro. Prosseguindo a minha trajetória, com o fim do Ensino Médio, tive que passar por diversos obstáculos, como: trabalhar, a separação dos meus pais e a falta de dinheiro para conseguir ingressar em uma universidade pública. No ano de 2002, após três anos do término do Ensino Médio, fui fazer um cursinho pré-vestibular, para tentar Medicina em todas as universidades públicas e para minha tristeza não consegui passar. No ano novo que entrou, consegui uma nova bolsa em um cursinho e lá estava eu, perseverante e com muita dedicação, tentando novamente a faculdade de Medicina e, para minha surpresa, novamente não obtive sucesso, sendo aprovada somente para o curso de Enfermagem na UNIRIO. Sendo assim, resolvi aproveitar a oportunidade, já que é tão difícil uma menina de origem popular como * Graduanda em Enfermagem pela UNIRIO. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 49 eu, ingressar em uma universidade pública. Durante a graduação, tive e tenho muitas dificuldades para segui-lá, pois a questão socioeconômica sempre traz os mesmos problemas, tais como: falta de dinheiro para xerox, alimentação, transporte, livros, ida a congressos, entre outras coisas. Ao chegar ao sexto período da faculdade, surgiu a oportunidade de participar de um Projeto de Extensão, dentro da própria UNIRIO, denominado Programa Conexões de Saberes, no qual eu iria realizar pesquisas, discutir temas como: questão racial, desigualdade social e ingresso e permanência de alunos de origem popular nas universidades públicas. Além disso, o projeto proporcionou a mim e a mais 43 bolsistas a oportunidade de trabalhar em escolas situadas em comunidades pobres. O Programa me auxiliou muito na questão financeira e cultural, pois foram diversos debates tanto com professores em sala de aula, como também com docentes de universidades públicas de todo o Brasil que também fazem parte do Conexões, além de participar de oficinas e seminários. Outro fato relevante é o trabalho que realizei em uma comunidade popular no município de Caxias, estado do Rio de Janeiro, no qual, junto a outro projeto denominado Escola Aberta, eu realizava oficinas de Leituração, previamente planejadas e elaboradas com o auxílio das reuniões lideradas por duas mestrandas também integrantes do Conexões. Sendo assim, acredito que o Programa contribuiu muito para a minha formação acadêmica, tornandome uma pessoa mais crítica, uma profissional mais humana, além de oferecer, para as crianças com as quais tive contato durante quatro meses, a possibilidade de sonhar e tornar realidade, como eu tornei, a entrada em uma universidade pública e a conquista de uma profissão. 50 Caminhadas de universitários de origem popular Transformando os sonhos em realidade Fabíola Estrela Dias * "Sonhar não custa nada, o meu sonho é tão real..." Paulinho Mocidade / Dico de Viola / Silveira Sonhar, de fato, não custava nada, acho que sempre soube isso, assistindo a desenhos animados em minha infância que me reportavam a um mundo onde tudo era possível. Por outro lado, a timidez exagerada me fazia falar pouco. Mas manifestei o ciúme na chegada da minha irmã, queria continuar a ser filha única. Porém o tempo se encarregou de modificar essa minha visão. Falando em sonho, acredito que os primeiros estímulos foram proporcionados por minha mãe, baiana, que sempre nos contava histórias da sua infância pobre no interior, com seus oito irmãos e minha avó, abandonados pelo chefe da família que veio para a cidade grande tentar uma vida melhor e arrumou outra família. Por conta disso, as crianças trabalhavam na roça e na casa de família para ajudar em casa. Assim, em muitos momentos não tiveram o que comer e não poderiam estudar. Com grande sacrifício, conseguiu conciliar o trabalho de babá e os estudos e alcançar a segunda série, mas, devido a imposições das patroas e ao cansaço, não passou disso. Meu pai também não estudou muito, mas concluiu o Ensino Fundamental e também trabalha desde cedo. Apesar dessas dificuldades, minha mãe conseguiu nos ensinar a escrever nossos nomes antes de entrar na escola, e isso é um grande orgulho. Antes do casamento dos meus pais, Del Castilho foi escolhido como o bairro de moradia, pela oportunidade do apartamento de um quarto no quinto e último andar do prédio da Campanha Estadual de Habitação - CEHAB, comprado com a união de economias de toda uma vida e o empréstimo com meu avô paterno. Minha primeira escola foi a Municipal Eurico Vilela, que ficava ao lado desse prédio, vaga conseguida através de sorteio. Entrei no Jardim e fiz o C.A. e a 1ª série. Tenho boas lembranças daquele lugar. Pois ficava ao lado do prédio e eu ia sozinha e minha mãe conferia minha chegada pelos quadradinhos do nosso corredor e acenava pra que eu retribuísse. E, então, entrava, tomava café da manhã e ia para a sala. Atrás da porta, havia uma sapateira cheia de livros de histórias que a professora sempre contava. E isso alimentava ainda mais minha imaginação e ajudava a manter meu mundo de inocência como se o * Graduanda em Museologia pela UNIRIO. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 51 conto de fadas fosse real, onde todos sempre vivessem felizes para sempre. Assim, também dava margem para as estripulias de criança cometidas por mim e minha irmã, que acabavam no Posto de Assistência Médica de Saúde a uns 10 minutos da minha casa. Com o nariz cheio de papel higiênico, outra hora foi com tachinha e a quebra de uma prateleira inteira da estante de louças de chá. O mais sério mesmo foi um acidente ocorrido comigo e minha irmã, ainda bem pequenas, e uma tesoura de ponta, que perfurou a vista esquerda dela, sendo necessário uma delicada cirurgia, que com grande êxito salvou-a, deixando somente uma mancha que a acompanha até hoje. Meu nome, Fabíola, tornou-se um problema, pelo menos na infância, pois me queixava sempre com minha mãe por ter escolhido tal nome, pois era difícil agüentar as piadas dos colegas, me chamando por vários nomes variantes deste. Porém o aproveitamento desse período foi excelente na escola, mas precisava de auxílio, no início com a filha da vizinha e depois com uma explicadora. Mas, devido a problemas de saúde de minha mãe, que precisava de pequenas cirurgias, passei desde bem pequena a ficar na casa da minha tia de criação em Inhoaíba, tia Deti. Passava longas temporadas lá. Era muito divertido, eu amava, pois tinha muitas crianças e espaço, tudo o que eu não tinha em casa. Recordo-me da casa no alto da rua de barro vermelho que cobria quase todo o bairro e, para chegar, pegávamos o trem. Observo hoje as diferenças e como tudo mudou. Sempre fui alta para a minha idade e me destacava entre os demais primos e primas, e as brincadeiras que predominavam eram de meninos: bola, pipa, bolinhas de gude, pião, subia em árvore etc., enquanto em casa só brincava com minha irmã e sempre com brincadeiras de meninas. Porém lá me sentia mais livre e o resultado aparecia nas pernas sempre marcadas com ferimentos de tombos, o que era motivo para me proibir de sair algumas vezes. As refeições eram uma festa à parte, pois havia a mesa das crianças, pois somente elas se sentavam tendo todos os lugares preenchidos e eu era sempre a última a terminar de comer. Depois os adultos se sentavam, pois a casa vivia cheia, muitas vezes, mas estar junto com todos me fazia esquecer e ser mais independente. Sentia falta da minha mãe. Devido aos demasiados apelos para termos espaços para brincar, nos mudamos para um terreno em Turiaçu, ao lado da fábrica de biscoito Piraquê. Que teve um mês para serem erguidos cômodos para nos acolher e aos poucos foi sendo continuada. Missão de supervisão do meu avô e tio, que com nossa chegada meu pai assumiu e ia realizando nos finais de semana. Nosso padrão econômico vinha decrescendo, apesar de em outro tempo vivermos mais confortavelmente, nesse momento tudo o que tínhamos investíamos na obra da casa o que nos fazia economizar em outros setores, como alimentação e lazer, durante 17 anos. Com a transferência, fui para a Escola Municipal Aspirante Carlos Alfredo, em Turiaçu, um pouco afastada de minha casa. Permaneci alguns dias na 1ª série até abrir a 2ª e, quando já estava cursando, troquei novamente para uma mais perto, a Escola Municipal Figueiredo Pimentel, de onde só saí no término da 8ª série. Fiz muitos amigos lá, Priscila, Carla, Simone, entre outros, com quem me relaciono até hoje. Sempre levei os estudos a sério, talvez pela influência de minha mãe, por isso nunca menti ou ocultei em casa algo referente à escola. As notas sempre foram boas, com poucas decaídas, mas nada que me prejudicasse. Nesse período, iniciei descobertas e comecei a compreender que o mundo não era como nas histórias que ouvia, a começar pela minha casa, onde sempre havia discussões e o clima era tenso, pois meu pai sempre teve uma visão de mundo muito reduzida e machista, não permitindo que minha mãe trabalhasse, mas ela sempre insistia e fazia bicos como passadeira, fritadeira em festas, faxinas etc. 52 Caminhadas de universitários de origem popular Comecei, então, a freqüentar a igreja católica do meu bairro, a Paróquia de Santa Rita de Cássia, depois da 1ª comunhão na paróquia vizinha; no início, estava indo para não ficar em casa, mas depois gostei. Fiz muitos amigos e ficava na casa deles, saíamos e foi muito importante para o meu crescimento e desenvolvimento. Ingressei em um grupo de adolescentes, que posteriormente faria parte de sua equipe e até cheguei a coordená-lo. Esse trabalho me amadureceu, pois era voluntário e direcionado para outra pessoa. Assim como a fé me deu forças e o alicerce seguro para não desistir mesmo que tudo parecesse perdido. O Ensino Médio se tornou difícil, pois não tinha idéia do que fazer e nem como fazer. Na minha escola, através dos pais de colegas, assim como a maior parte dos alunos, me inscrevi na Escola Técnica Estadual República, antiga FUNABEM, em Quintino, que iria abrir e teria ensino técnico. Minha mãe estava sempre comigo e me incentivava. Na prova, não alcancei os pontos necessários para entrar, o que me deixou arrasada, pois via naquele lugar meu futuro. Cheguei a me matricular em outra que estava em péssimo estado. Porém, mais tarde, sobraram vagas e foram chamando os demais classificados. Esse período parecia uma eternidade, pois não se resolvia e eu chorava muito de preocupação, em cogitar a hipótese de ficar sem estudar ou ir para a outra, porém perseverei na minha fé e alcancei. Conheci pessoas maravilhosas, como Michelli e Renata, e vivi experiências únicas naquelas dependências. Com outro padrão de ensino e média sete, tive que me empenhar mais, pois na anterior era cinco. Além de ter todas as disciplinas da formação geral, tinha o técnico com as disciplinas que só iniciaram no segundo ano, devido a obras realizadas no imóvel enquanto estávamos lá. E assim vimos um lugar caindo aos pedaços e de tanta má fama se transformar num local de ensino e até mesmo referência. Por ser o dia todo, pela manhã fazia o técnico nos laboratórios de informática cheirando a novo e, à tarde, fazia a formação geral. Escolhi, então, Processamento de Dados, para estudar, o que necessitou de muito empenho, particularmente no primeiro semestre, com a disciplina Lógica de Programação, na qual fiquei em prova final com quase toda a turma, pois não conseguia entender a matéria, principalmente a Matemática, da qual nunca gostei muito e ainda tive problemas no nível fundamental. Quase não tinha tempo para qualquer outra atividade, pois também tinha aulas aos sábados. Psicologia e Sociologia também faziam parte da grade no primeiro ano. O cansaço era comum e pensava em desistir, como muitos de minha turma fizeram. Minha mãe, guerreira, sempre me estimulava de alguma forma. Formei, então, em 1998, com os outros cursos técnicos da escola. Juntos, constituímos a primeira turma de formandos da instituição. Nesse ano, por conta das isenções conseguidas, tentei o vestibular como experiência, sem grande sucesso. Então, com o conselho de amigos, resolvi procurar um pré-vestibular comunitário, o que fiz em três tentativas, preenchendo formulários e entregando papeladas, e ainda faria várias vezes. E consegui no último, em Acari, para negros e carentes, que, mais tarde, mudou a denominação. As aulas eram aos sábados, o dia todo, com algumas palestras aos domingos. Foi extremamente importante para ampliar minha visão de mundo, de cidadã, além de motivar os alunos de escolas públicas a não desistir, apesar da defasagem. Apesar do bom Ensino Médio que tive, vi muitas matérias pela primeira vez. E, no segundo semestre, consegui o estágio remunerado referente ao Ensino Médio, para retirar o diploma, o que colaborou nos custos do curso, já que gastava passagem para ir às aulas, almoço e a mensalidade, apesar do preço simbólico, mas tinha passagem para pedir isenção, retirar o kit, enfim, só gastos. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 53 Novamente, a dúvida de qual curso optar, neste caso, não poderia resolver pela eliminação, pois eram muitos. Resolvi me inscrever em cada universidade em um curso diferente, dentre os que mais me agradavam. Passei para a segunda fase da UNIRIO, o que me fazia ficar perto do sonho de entrar em uma dessas instituições. Foi para o curso de Museologia, mas tive que esperar a tão sonhada notícia, que só veio no início do segundo semestre de 2000. Enquanto isso, seguia em frente. Fui trabalhar em uma clínica médica, depois de um rigoroso recrutamento com várias fases, como recepcionista, pois somente com entrevista provavelmente não teria passado por ser negra. Acredito que, nesse momento, não fez grande diferença, mas depois sim, pois fui mandada embora com uma justificativa que não se aplicava. Chorei muito pelas expectativas que depositei nesse emprego e fui pega de surpresa com essa trágica notícia, no dia 31 de junho. Minha mãe me acalmou e disse que talvez fosse melhor assim, pois Deus talvez estivesse preparando algo melhor para mim. Estava tão triste que não dei muita importância a essas palavras. Poucos dias depois, liguei do telefone de ramal instalado nas residências da comunidade para saber sobre o resultado do vestibular, e a notícia foi dada. Ajoelhei no chão e chorei, foi uma explosão de sentimentos ao mesmo tempo, estava muito feliz como nunca, pois havia conseguido depois de tanto sacrifício e dedicação. E saí para dar a notícia àquela que merecia ser a primeira, minha mãe, que estava trabalhando há um bom tempo como camelô, em Madureira, vendendo refrigerantes e lanches. Ela ficou tão orgulhosa com essa boa notícia, porém a realidade sempre nos desperta do sonho. E a pergunta foi feita, como vamos pagar a passagem? Pois ainda não havia ido ao campus onde ia estudar. A solução encontrada era usar o uniforme do nível médio para economizar o dinheiro, estratégia que usei durante quase dois anos e minha mãe me ajudava um pouco. Verifiquei a grande distância, a quantidade de passagens e a duração da viagem, que são quatro somente para chegar lá. Comecei a me interessar muito pelo curso, apesar de ser manhã e tarde e dificultar o trabalho. Mesmo com as despesas de fotocópias, consegui freqüentar todas as disciplinas oferecidas até o terceiro período, quando não foi mais possível. Com o desemprego do meu pai, tudo mudou. Resolvi, então, fazer apenas três disciplinas para diminuir os custos de almoço e fotocópias, além de estar mais em casa para vender sacolés, que me possibilitariam manter minha resolução. Mas, mesmo assim, era difícil e tentei como última solução uma bolsa de projeto para o CNPq e não consegui, foi a última cartada. Estava quase jogando a toalha, quando fui convocada por telegrama para trabalhar na Prefeitura do Rio, como servidora temporária, resultado de um concurso feito no início daquele ano para auxiliar de controle de endemias. Tranquei a matrícula às pressas, na esperança de acabar ficando, o que não aconteceu e trabalhei seis meses, o que me possibilitou pagar minhas dívidas. Ao final desse período, a esperança de retornar à Museologia se esvaía a cada dia, tudo permanecia como antes, não tinha com pagar passagens, já que não podia mais usar uniforme de estudantes e essa situação se prolongou por mais oito meses. O retorno só foi possível, através de auxílio financeiro de amigos para as passagens, que durou por volta de seis meses até conseguir um estágio indicado por uma conhecida, no Museu do Itamaraty. A bolsa era de R$ 260,00, pouco, mas fundamental para a minha permanência na universidade. Mas quando atrasava nos deixava em situações bem complicadas como a que fiquei na universidade, já que no dia de pagamento fui para aula contando com isso e, por vários motivos, não confirmei essa informação e deixei para fazer isso depois conclusão, não tinha 54 Caminhadas de universitários de origem popular um centavo para ir ao estágio ou voltar para casa. Tive que vir andado da Urca à Central do Brasil onde fica o Museu. Cheguei horas depois, suada e muito cansada, e me emprestaram dinheiro para chegar em casa. Meses depois, tive outro problema com minha mãe, que ficou nove dias internada no Hospital Salgado Filho, no Méier, só tendo eu e minha imã para resolver todas as coisas e foi extremamente difícil. Dar conta das aulas na universidade, estar presente no hospital e cuidar da casa, o que se estendeu por mais tempo quando ela veio para casa necessitando de cuidados especiais, durante quase dois meses. Tive sorte de os professores serem compreensivo nesse momento. Foram momentos bem difíceis, em que fiquei com fome, pois não tinha dinheiro para almoçar ou lanchar. Completei o tempo máximo de permanência de dois anos e a preocupação voltou a me dominar. Como continuar? Então, apareceu o Conexões de Saberes como uma oportunidade para contribuir nessa permanência. Minha relação com o carnaval sempre foi de fascinação e magia, pois desde pequena assistia às transmissões e sempre achei muito interessante porque sempre descobria algo que não conhecia. Uma das escolas acabou ganhando meu coração, foi a Mocidade, no ano em que conquistou o bicampeonato, a partir dali sempre torci por ela. Alimentava o sonho de um dia desfilar na escola de meu coração e, depois de três anos de espera, estou na expectativa do desfile desse ano, já que consegui ingressar na comunidade de Padre Miguel e sairei na primeira ala, que é de passo marcado. Hoje, estou mais próxima de me formar e sem nenhuma reprovação nas disciplinas, apesar de tudo o que passei. E retiro esse ensinamento da minha trajetória, pois os sonhos para se tornarem realidade são bem difíceis e precisamos nos agarrar às oportunidades que aparecem, sendo necessário ter perseverança, dedicação e determinação. Porém hoje espero poder colaborar e incentivar outros a percorrer esse mesmo caminho, pois a realidade é construída assim, com lutas, perdas e conquistas que nos fazem transformar. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 55 No meio do caminho havia uma pedra Fabrice da Mota Cardoso * Filha de uma família pobre, sou a primeira da família a entrar em uma universidade pública. Minha mãe largou o Ensino Médio ao engravidar de mim e meu pai precisou trabalhar muito cedo, só tendo cursado até a quarta série primária. Pelo o que minha mãe conta e o que eu lembro, o início da nossa vida foi muito difícil, pouco a pouco as coisas foram melhorando e, com o tempo, meu pai alcançou o cargo de supervisor na empresa onde trabalhava. Essa empresa era, e é até hoje, uma grande multinacional. Nosso padrão de vida não era de milionários, mas vivíamos muitos bem. Bom, como sempre existem pedras, as minhas começaram então a cair do alto! A primeira pedra Então, aos nove anos de idade, acompanhei a separação dos meus pais. Eu e meu irmão chegamos, em pleno século 20, a sofrer discriminação por sermos filhos de pais separados. Logo, meu pai, movido por até hoje não sei o quê, resolveu pedir demissão do emprego e, a partir daí, alegando estar desempregado, não pagou mais a pensão alimentícia. Talvez até a bailarina tenha problemas familiares... Com isso, nosso padrão de vida caiu muito, tivemos muitas dificuldades e por pouco não passamos fome, mas essa história conto mais à frente. No bairro em que morávamos, havia dois bons e caros colégios, e era em um deles que eu e meu irmão estudávamos. E foi lá que permanecemos... meu irmão passou por outras escolas, mas eu fiquei ali até o terceiro ano do Ensino Médio. Enfrentamos dificuldades financeiras antes de sair a pensão judicial e depois que meu pai optou por deixar o emprego. E foi em meio a essas pedras que saíram as melhores histórias da minha vida! Minha mãe nunca abriu mão de que estudássemos em um bom colégio, por mais que isso custasse a ela. Até hoje ela sofre de tendinite por conta dos muitos salgadinhos que fez para nos sustentar naquela época. Lembro que o gosto era ótimo, mas segurar a panela enquanto ela mexia a massa não era nada fácil! Eu segurava de um lado e Kikito - apelido carinhoso pelo qual só eu chamo meu irmão - segurava do outro. Desses salgados, uns iam para as encomendas e outros eu vendia escondido na sala na hora do recreio. Meus "amiguinhos" que compravam também achavam o gosto muito bom, mas me * Graduanda em Enfermagem pela UNIRIO. 56 Caminhadas de universitários de origem popular tratavam de forma diferente. Desculpe o tom, e quem sabe até a revolta, mas, por mais que na época não me sentisse assim, hoje vejo que era a águia da história do Leonardo Boff e não a galinha. Minha mãe era o nosso apoio e nós éramos seu apoio, e houve um dia em que isso ficou bem claro. Na verdade, não me lembro desse dia! Não sei se foi doloroso o suficiente para ser apagado da memória, mas sem dúvida gostaria de me lembrar. Tia Naninha (minha mãe, do Kikito e do Pedrinho) o conta sempre com muitas lágrimas nos olhos. A dispensa foi esvaziando, esvaziando, esvaziando, esvaziando e quase, por muito pouco, não ficou vazia. Minha mãe, sempre querendo o melhor, nos explicou a situação e disse que ia ligar para que meu pai nos buscasse e eu disse que ficaríamos com ela até no arroz com arroz. Mas Deus, com seu infinito amor, logo mexeu os pauzinhos. Minha mãe tinha comprado um remédio (ela não lembra disso de jeito nenhum) para minha avó, que naquele dia resolveu ir pagar, 50 reais, e olha que naquela época eram CINQÜENTA REAIS! Parafuso! Novas pedras? Mais ou menos uns quatro anos depois, minha mãe casou-se novamente. Muitas histórias tristes, porém não as convém contar, pois são mais dela do que minhas. E, então, ao me deslocar rumo à Praia Vermelha, sofri um acidente que modificou não só meu trajeto naquele dia, mas toda a minha existência daí por diante. Estava indo prestar vestibular, era a prova da UNIRIO, dia 25 de novembro de 2002. Por ironia do destino, fui certeiramente atingida por um parafuso. Há quem diga que, na verdade, ele caiu da minha cabeça! Brincadeiras à parte, isso me rendeu duas fraturas faciais, uma cirurgia e três meses sem mastigar. Era o mais esnobe dos seres, só por pensar ter um rosto bonitinho! Desde então vi como tudo pode ser tão passageiro e, apesar de ter mágoas, enxergo como a vida é curta para não se gostar de alguém! Havia me formado no curso de modelo dois dias antes e ia dar entrada no tão almejado certificado! O que direi agora não tem de nenhuma maneira o objetivo de criticar a profissão, mas o fato é que não tenho esse certificado até hoje. Nunca mais voltei ao curso, passo por ele quase todos os dias, pois fica na rua em que realizo parte do meu curso. Talvez você esteja se perguntando o porquê disso, e eu respondo: simplesmente não houve mais espaço na minha vida. Amigos?! Aqueles que se imagina serão os primeiros a aparecer? Esses nem sequer ligam... mas as surpresas são extraordinárias, o carinho surge de onde não se imagina. O fato é que naquele ano o vestibular acabou para mim! Apesar das circunstâncias, quis ir até o fim, fiz todas as provas que restavam. Todos diziam que, frente aos acontecimentos, aquilo não era necessário e muito menos viável. Só que a minha natureza não permitia que não enfrentasse esse desafio. Lembro como se fosse hoje o desespero da fiscal que ficou responsável por mim durante a prova da UERJ! Tinham se passado seis dias, o nariz ainda sangrava e algumas gotas carimbaram a minha prova de Física! Coloquei as fórmulas necessárias para cada questão nos devidos lugares e, embora só fosse substituir pelos dados correspondentes e fazer as operações matemáticas, não consegui desenvolver nenhuma. A redação então! Não saiu nada... na minha cabeça, só passava a frase: o que foi que fizeram comigo? Havia me preparado muito para aqueles concursos, mas tinham me tirado a chance de tentar. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 57 No ano seguinte, precisava continuar tentando! Não tinha dinheiro para pagar um prévestibular. Minha mãe, com sua impagável lábia, conseguiu para mim meia bolsa em um curso. E lá fui eu... nos anos seguintes, devido aos meus resultados no vestibular e simulados do curso, ganhei bolsa integral e, como pagamento, era fiscal de provas duas vezes por semana no colégio do respectivo curso. Porém, em 2003, nada! Em 2004, nada! Surto! No vestibular 2005, repetindo o subtítulo: SURTEI. Primeiro cismei que tinha nascido pra ser assistente social. Depois, que entraria para a faculdade de qualquer jeito, não agüentava mais aquela vida. Moral da história: minhas opções: UERJ Psicologia; UFRJ - Serviço Social; UFRRJ - Veterinária; UFF - Medicina; UNIRIO Enfermagem. Minha mãe ficou meio desesperada com a minha confusão, também pudera! Tentei acalmá-la dizendo que, das cinco, pelo menos uma delas seria, e seu desespero só aumentou! Meu padrasto cortou minha mesada, mas no início minha mãe pôde bancar. Ela trabalhava vendendo biquínis e bolsas em empresas no Centro do Rio. Depois descobriu que estava grávida e teve que parar, daí não tinha mais dinheiro para me deslocar. A gravidez foi muito complicada, descobriu-se já durante a gestação a grande probabilidade de a criança ser portadora de alguma síndrome genética e, com 28 semanas de gestação (sendo que o normal são de 38 a 42 semanas), Pedrinho nasceu. E, embora fosse dia primeiro de abril, era uma verdade maravilhosa! Nunca vou esquecer a primeira vez em que o vi, às vezes choro contando isso pra ele! Tinha um pouco mais de novecentas gramas, era tão disforme que fiquei muito assustada, e eu só queria vê-lo quando estivesse bem. Foram 72 dias de UTI e, mais uma vez, larguei tudo que era referente ao vestibular e à minha própria vida. A diferença é que dessa vez foi por escolha própria, minha mãe e meu irmão precisavam de mim naquela hora, estudar podia ficar para um outro momento. Isso persistiu mesmo depois de ele ir pra casa, pois, para minha mãe, depois de passados 18 anos do nascimento do ex-caçula, era tudo novo e a sua insegurança era total. O Pedro é portador da Síndrome de Down, costumo dizer que ele não é especial... é especialíssimo! Não o trocaria de jeito nenhum por uma criança normal. Sou "irmãe" dele. Ele passou por várias complicações no período de internação, minha mãe estava em depressão e segurar a onda dela não foi nada fácil. Durante a gestação, ela se via como a mãe de uma criança normal, negava-se a acreditar e, nesse momento, a coisa era concreta. Depois que ele foi pra casa, quando dormia, ela ia até o berço a toda hora para se certificar de que ele estava respirando. Como o momento era de desespero, alguém precisava ser forte e esse alguém fui eu. Contornando pedras Nesse ano de 2005 realmente não estudei nada! Realizei o ENEM e coloquei como opção a UNIRIO. E então veio a surpresa: no dia 16 de novembro já estava aprovada no vestibular. O mais engraçado é que nunca quis ser enfermeira, sempre disse que enfermeiros eram empregados de médico! Quanta ignorância a minha, mas o fato é que naquele momento, em meio a muitos gritos de felicidade, a enfermeira nasceu! Comparei com as outras opções que havia feito no vestibular e já preferia Enfermagem em detrimento de todas as demais e só fui fazer a prova da UFF para Medicina por insistência da minha mãe. 58 Caminhadas de universitários de origem popular As pedras falam e até prometem Certo dia, meu pai, depois de ter bebido alguma ou talvez muitas coisas, chegou lá em casa querendo falar comigo, eu tinha 10 anos. Em meio a muitas lágrimas ele me disse que venderia até as calças, mas que eu realizaria o sonho de ser médica. Hoje faço Enfermagem! Isso por graça divina, mérito próprio, incentivo materno e devido ao amadurecimento conseguido depois de três longos anos tentando vestibular para Medicina. Enfim... não tropecei. Era tudo inerente a minha pessoa e ninguém o podia fazer por mim. Alçando vôo Já falei de águias, elas voooooooooooam. E quando se descobre que se é uma águia é mais fácil lidar com as pedras. Não sou, de forma alguma, frustrada, como podem estar pensando alguns! Adivinhei, né?! Identifico-me com a minha profissão cada dia mais, é um namoro onde o sentimento cresce constantemente. O que quero deixar claro agora é que, no meio do caminho, sempre existirão pedras. Já me servi nesse texto de citações de autores incríveis e peço agora licença para terminá-lo com outra, não farei apresentação por julgá-la desnecessária: "Mas isso não impede que eu repita: é bonita, é bonita e é bonita!!!!!!!!!!!!!!!" Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 59 Sonho impossível? Felipe Jorge Rodrigues Campos* Nasci no dia vinte e oito de dezembro de 1985, em Jacarepaguá, um dos maiores bairros da cidade do Rio de Janeiro. Do alto da pequena montanha dos meus então vinte e um anos posso observar o caminho percorrido, com extrema gratidão aos responsáveis por uma vida serena, povoada por alguns contratempos construídos pela minha inexperiência, causadores de grandes aprendizados. Tive uma infância leve, agraciada de família estável e atenciosa. Meu pai, exemplo de dedicação aos filhos e esposa, trabalhou sempre (pelo menos desde quando me entendo por gente) em lugar afastado do lar, como empregado sofredor de pressões e preconceitos que sua profissão de servir à mesa muitas vezes o acomete. Não pude tê-lo como amigo amparador, com quem confessar as imperfeições e seguir conselhos experientes e confiáveis de um pai, estando ele sempre indo e vindo trabalhar, para meu próprio benefício e desenvolvimento sem maiores obstáculos materiais. Com minha mãe, as coisas foram menos fáceis. Dona-de-casa extremamente competente, não perdoava pouca arrumação, pouca higiene, pouco atraso... cuidava de todas as frestas com teia de aranha, móveis marrom-acinzentados pela poeira, telefone gorduroso de muitas ligações após o almoço, livros com cocô de mosquito... com ela também não houve uma possibilidade de diálogo cotidiano devido às nossas grandes diferenças de opiniões... no então, fui presenteado com uma insuperável trabalhadora do lar, não me recordo ter faltado uma só vez com os compromissos cotidianos de uma mãe de família. Tenho também um irmão mais velho, com quem muito me diverti em casa. Quando em tempos de criança, nós possuíamos maior proximidade devido aos momentos de brincadeiras. Foi também um ente familiar com quem eu me "afastei" pelas divergências de idéias e, principalmente, ideologias. Na escola, pude vivenciar momentos importantíssimos e identificações que em casa só poderia obter através de maior convivência com meu pai, impossibilitada pelos seus compromissos de trabalhador incansável. Desde as minhas primeiras aulas, gostei de viver o ambiente escolar por poder brincar com os colegas de classe (confesso, porém, que arquitetei um plano para matar aula no primeiro dia do Jardim de Infância). Mudei de colégio umas seis vezes, do C.A. para a quarta série, da quarta para o Ginásio (chamavam assim da quinta à oitava), e daí para o Ensino Médio. Hoje posso perceber que isso trouxe certa experiência no que diz respeito a compreensões de diferentes "universos pessoais" e * Graduando em Bacharelado em Violão pela UNIRIO. 60 Caminhadas de universitários de origem popular até alguma opinião acerca das instituições de ensino. Dentro de tantas séries em tantas escolas, considero o momento em que estive na Escola Municipal Governador Carlos Lacerda, da quinta à oitava série, decisivo para a formação da minha visão de mundo. Foi lá onde tive minhas primeiras experiências de relacionamentos, onde pude criar uma consciência de participação dos alunos nas atividades escolares (fui membro do Grêmio Estudantil!), onde comecei a planejar meus métodos de atuação na sociedade e de que forma poderia trabalhar para somar mais uma força no sentido da corrente mundo melhor. No ano de 1997, pouco antes de entrar no "Lacerda" (como é chamada a escola aqui pelas redondezas) comecei a estudar música e violão, através de aulas particulares com o Sr. Hélcio, conhecido do meu pai em uma de suas viagens de volta do trabalho. Em um gráfico da minha vida, esse seria um momento de imensa importância e definição. No Lacerda, tínhamos aulas de música, fato raro em escolas públicas, o que ampliou e incentivou mais ainda minha vivência musical. Nessa época, pensava em ser enxadrista e violonista ou matemático e violonista ou engenheiro e violonista... sempre quis ser músico! Outras profissões por mim cogitadas só maquiavam certos medos impostos pela sociedade: "Músico? Vai morrer de fome". Era o que diziam e dizem por desconhecimento e pelo fato de eu ter nascido em família humilde. Mas uma característica que herdei de minha mãe foi a teimosia, e consegui através daí me libertar aos poucos de certas profecias do terror, recebidas por todos aqueles que pretendem transcender certos costumes e idéias. Chegando ao fim do Ensino Fundamental, havia optado por prestar concursos para escolas técnicas. Fui bastante incentivado pelos professores do colégio e comecei a me preparar. Estudei sozinho até dois meses antes da prova e senti que precisaria fazer um curso preparatório... permaneci esses dois meses no esquema escola e curso, e consegui passar nas provas do CEFET e CEFETEQ. Decidi ingressar no Ensino Médio e curso de Eletrônica do CEFET, visando atividade de alguma forma aproximada da música, através de conhecimentos da estrutura de equipamentos e som. Depois de iniciar no novo colégio, minha vida mudou brusca e rapidamente. Acordava às cinco da manhã para conseguir chegar pontualmente, nunca tinha estudado tão longe, o caminho de uma hora para chegar tinha direito a ônibus lotado e barulhento, eu ainda carregando mochila e violão. A partir dessa realidade, tomei consciência das dificuldades da vida de pessoas que basicamente trabalham, dormem e andam de ônibus, como o meu pai. Mas tudo andava bem: foi tempo de muito aprendizado, concretização de idéias e formulação de planos. Encontrei outros que, assim como eu, pensavam em estudar música ou que trilhavam um caminho de ultrapassar barreiras para realizar sonhos por muitos considerados impossíveis. Foi também o momento em que começavam a se desfazerem os elos que me ligavam a minha família. Nessa época, comecei a namorar uma menina da minha turma, fato que acentuou ainda mais as mudanças que vinham acontecendo. Descobri, ao andar de ônibus com a camisa do colégio, diversos pontos da cidade, que, se estudasse perto de casa, nunca conheceria, como: centros culturais, museus, parques... o fato de estar longe de casa impedia certos "nãos" vindos da minha mãe, quando eu ousava pedir autorização para ir a locais mais afastados. No CEFET, aprendi a me virar sozinho indo e vindo pela cidade quase toda. Depareime também com uma organização estudantil mais sólida, um Grêmio construído e com história, onde tive oportunidade de participar de passeatas, assembléias e combates às Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 61 injustiças e falhas vindas da direção escolar. Meus dias eram quase todos fora de casa, saindo cedo e chegando tarde, pois cantava num coral da UERJ, fazia sempre alguma atividade na Coordenação de Educação Artística, além de tocar violão com os amigos no pátio do colégio (o que para mim era muito mais interessante que voltar num ônibus cheio debaixo do Sol do meio-dia). Passava também muito tempo na casa da minha namorada... Os últimos meses no CEFET não foram muito fáceis. Havia começado a fazer um curso na Escola de Música da UFRJ e o colégio me tomava um tempo precioso de estudo. Aos poucos, fui largando de mão as matérias, sob o argumento de que não havia prioridade em me dedicar à absorção daquele conteúdo. O vestibular estava por vir e eu precisava estudar para o teste de Habilidade Específica de Música. No final do ano de 2003, prestei vestibular para a UFRJ... consegui passar na prova de Música, mas no dia da prova de Química eu estava com a cabeça perturbada e um tanto depressivo, e não consegui passar a limpo as respostas, o que me desclassificou do concurso. Tudo no seu tempo... no ano seguinte fui aprovado para o Bacharelado em Violão da UNIRIO, depois de conseguir estudar sozinho mesmo. Ter estado num bom colégio no Ensino Médio e Fundamental me forneceu uma base de conteúdo e metodologia de estudos que fizeram da minha aprovação no vestibular um processo menos doentio de que o normal. Comecei a faculdade muito bem, apesar dos problemas encontrados em instituições federais de ensino. Nesse ponto, fui auxiliado pela experiência de três anos em uma escola federal de grande porte como o CEFET, o que me fez não sentir como situações novas as imensas diferenças econômicas entres os alunos e a dita "liberdade" de um estudante de universidade. Na UNIRIO, tive acesso a alguns contatos e conteúdos que me aperfeiçoaram como músico e ampliaram minhas possibilidades profissionais. Hoje não sou dono de recursos financeiros o suficientes para comprar o carro do ano e nem posso almoçar nos restaurantes do shopping perto da faculdade, localizada no bairro da Urca, a quase duas horas da minha casa. Mas acredito estar exemplificando a alguns irmãos da nossa sociedade que todo o caminho profissional, se buscado com fé, afinco e paciência, sem exceções, se torna em algum momento plenamente realizável. Sonho impossível? Menor que meu sonho não posso ser. Lindolf Bell 62 Caminhadas de universitários de origem popular Minha vida contada em versos Fernanda Guimarães Felix * Foi no ano de 1982, no dia vinte e seis Começava a minha história Que conto agora a vocês... Numa tentativa frustrada De ocorrer parto normal Fiquei um tempo no oxigênio, internada Passei da hora de nascer no hospital. Porém, isso não me derrubou de jeito algum Apesar de não ter mamado no peito, Cresci forte e fui parar no Jardim I. Indo para um colégio de freiras da Praça Seca Onde estudei até completar a alfabetização E na peça de fim de ano, fui a árvore oliveira Mas numa das brincadeiras perdi minha dentição. Nessa mesma época, meu tio faleceu Minha família encontrou apoio nas freiras E descobrimos que nossa fé não morreu. * Graduanda em Enfermagem pela UNIRIO. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 63 Fui para um colégio religioso no Campinho Um bairro do subúrbio era minha estada Briguei uma vez pra defender meu irmãozinho Mas escapei do castigo por não estar errada. Na 2ª série fundamental eu não estudava direito E sempre ficava depois das aulas Para aprender a fazer o dever perfeito. Assim, continuava na 5ª e 6ª séries meu legado Dessa vez em um novo colégio de outro local Onde aumentava aos poucos meu aprendizado Mérito da feira de ciências, no grupo da Clínica Geral. Foi aí que, pela área biomédica, comecei a me apaixonar Neste momento decidi que queria fazer Medicina Um sonho começava a brotar, mas pra isso eu teria que lutar. Da 7ª série até o 1º ano procurei ter atenção No colégio do bairro atual no qual estudei Assim, com esforço e muita dedicação Boas colocações na turma alcancei. Nos meus 15 anos, o príncipe da festa tava mais pra rei Porque era meu tio muito estimado por mim Foi um dos dias mais felizes que passei. Neste mesmo ano, estudei até chegar o Natal Fiz uma prova de seleção para um colégio "puxado" Para entrar na 2ª série do 2º grau E quando passei foi só comemorar o resultado. No entanto, não podia desistir, tampouco relaxar A maior meta, minha razão de prosseguir Era passar no "temido" vestibular. 64 Caminhadas de universitários de origem popular Mas não passei para Medicina, infelizmente E tentei mais três anos minha vaga na Federal Com o apoio da família, da minha mãe especialmente, Estudando através de TV, livros e jornal. Decidindo na quarta tentativa A carreira de Enfermagem Acreditando e com muita expectativa. Não tinha escolha: era passar ou trabalhar Estava muito ansiosa no dia dos resultados Tive insônia esperando o "site" entrar no ar Meu nome tinha que estar na lista dos classificados. E na madrugada veio minha alegria Acordei minha mãe e a casa toda Num momento único de desatino e euforia. Depois disso, foi crítica a situação: Primeiro a distância da minha casa à Universidade Seguida pelo problema com a alimentação E o empréstimo de livros com certa dificuldade. Mas quando achei que a tempestade estava a findar Estava apenas começando, porque o desafio Era não apenas entrar, mas sim como continuar? Pois passava por momentos pessoais complicados Como eu iria arcar com os gastos da universidade, Estudando muito, com meus pais recém-separados, Com preocupações e excesso de atividades? Tendo despesas de xerox, alimentação e transporte, Penei bastante durante os primeiros períodos E pensei em soluções alternativas, mas todas sem sorte. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 65 Até que soube de um projeto de pesquisa/extensão Chamado "Conexões de Saberes", e me informei Então, fiz entrevista e levei documentação Curti minhas férias de julho e aguardei... Inesperadamente, fui chamada para integrar Essa equipe de "conexistas" com os quais muito aprendi E aproveito para agradecer por me ajudarem a caminhar. Na Universidade, foi a chance de permanecer Mostrar que o aluno de origem popular Tem potencial para aprender e crescer E hoje sou feliz, por esta história compartilhar. Escola Aberta: sonho que desperta Quando foi pedido pra do "Escola Aberta" falar Tive grande dificuldade e ao mesmo tempo emoção Porque fui para lá com o objetivo de ensinar Mas acabei recebendo uma lição Cheguei ao primeiro dia com a minha mala na mão Com meu saber acadêmico e nenhuma experiência Tendo que transmitir sobre direitos humanos e leituração. Como fazer para ser respeitada Sem nesta comunidade sequer morar? Belford Roxo aos fins de semana Tornou-se meu segundo lar. E com o tempo veio a resposta Ouvir uma criança me falar: "Tia, semana que vem você volta?" Meus olhos se encheram de lágrimas E meu coração de coragem Pra lutar por mais oportunidade Por essa gente de boa vontade. 66 Caminhadas de universitários de origem popular Dizer a eles que não desistam jamais De ocupar o lugar que alcei com muita garra Chegar à Universidade, todo mundo é capaz. E que também não deixem de sonhar Mesmo sabendo que nem sempre se acerta Porque o sonhar é a semente do realizar Escola Aberta é o sonho que desperta. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 67 Olhar estrangeiro Francelino Conceição Lopes Cruz * Assim como muitos jovens caboverdianos, a minha caminhada nunca foi fácil, mas, a partir do momento em que dei o primeiro passo em busca dos meus objetivos e ideais, sentime empenhado a fazer o melhor possível para superar minhas próprias expectativas. É assim o homem comum caboverdiano, lutador, persistente, determinado e muito esperançoso, e, quando pára para pensar na vida, logo vem à mente o longo caminho que terá que percorrer para dominar o destino. Por termos um país com poucos recursos econômicos, apesar de livre, estamos sujeitos a várias conjunturas políticas e socioeconômicas, o que leva, por vezes, a que muitos caminhos sejam desviados ou encontrem o não-desejado pela frente. Eu sempre fui otimista, sempre acreditei em algo diferente e melhor, e consegui dominar um pouco o meu caminho, apesar de ter noção que há ainda muito a percorrer. De qualquer forma, acho que posso dizer que sou um vencedor e sinto orgulho por ter conseguido ultrapassar as primeiras barreiras. Memorial Ainda me lembro do meu primeiro dia de aula. Muitos contam que foram levados pela mãe ou pelo pai. Esse não foi o meu caso, mas os meus motivos eram válidos e perfeitamente aceitáveis. A minha mãe era pai e mãe ao mesmo tempo e tinha que trabalhar arduamente, cuidando dos seis filhos. Por questões burocráticas e por, nessa altura, morar no interior não tive oportunidade de freqüentar o ensino pré-primário. Entrei para a escola primária aos sete anos de idade e terminei aos onze anos. Posso dizer que foi um período muito agradável da minha vida que recordo com certa nostalgia. A escola situava-se perto de casa e éramos crianças do mesmo estrato social, com experiências e interesses semelhantes. O ciclo preparatório, com duração de dois anos, tinha por objetivo preparar jovens para o ensino no liceu, que já não foi muito fácil. Aqui interferiam fatores de outra ordem que promoveram uma outra visão, menos alegre, dessa nova fase da minha vida. A nova escola situava-se a cinco km de distância da minha localidade, o que implicava ter de efetuar minhas refeições naquele local. A matéria de aprendizagem também era mais significativa, e exigia mais cadernos e materiais de trabalho, que saíam da pequena mensalidade que minha mãe recebia. Não era fácil arranjar dinheiro para todos os materiais de que necessitava. Lá em casa só podíamos contar com o pouco dinheiro que a minha mãe * Graduando em Medicina pela UNIRIO. 68 Caminhadas de universitários de origem popular recebia da FAIMO, que era também para as outras despesas da casa e o sustento da família. Só algum tempo depois, meu pai regressou da Europa, onde passara vários anos. Foi um momento muito feliz para mim e para a minha família, para mim em especial porque não o conhecia. Passado algum tempo, por ironia do destino, meu pai faleceu. Vivemos momentos desesperantes, tudo se tornou ainda mais complicado. Se, durante o primário, já era difícil comprar um simples caderno, quanto mais seis. Naquela altura, não era qualquer pessoa que conseguia comprar um caderno para o filho levar à escola, quanto mais uma pobre trabalhadora com tantos filhos para cuidar. Eu costumava levantar-me às cinco horas da madrugada para poder chegar à escola às oito, andava 10km a pé, diariamente, por não ter dinheiro para pagar o transporte. Foi então que surgiu uma ONG dinamarquesa na minha ilha, que tinha por objetivo ajudar crianças das comunidades distantes e oriundas de famílias humildes na aquisição de materiais didáticos ou outro tipo de gêneros que achassem fundamentais. Também pude contar com o auxílio dessa instituição. Terminando o ciclo preparatório, ingressei no único liceu da ilha (Liceu Suzete Delgado). Ele albergava alunos de todos os cantos da ilha. Para mim, o primeiro ano foi muito difícil, devido à distância e à situação orográfica da ilha (montanhosa). Saía de casa de madrugada e chegava à tarde. Andava diariamente 48km de carro e ainda tinha que ajudar nas tarefas domésticas. Por vezes, era muito pouco o tempo que restava para estudar. No segundo ano, fui chamado pela Direção da escola para ficar numa residencial estudantil (o INTERNATO da Ribeira Grande). O seu objetivo era albergar alunos de zonas rurais e distantes, com o intuito de diminuir o índice de abandono escolar provocado pela situação orográfica. Naqueles cinco anos que lá passei, aproveitei ao máximo para progredir nos meus estudos. Pude também conhecer melhor a minha ilha e a minha gente, visto que todos nós éramos dos mais variados pontos da ilha. Era gente que se parecia comigo, na maioria, de famílias humildes. Passei momentos inesquecíveis nos intercâmbios que promovíamos aos fins-de-semana, nas diferentes localidades de que provínhamos. O ambiente era muito acolhedor e fizemos grandes amizades, que carregamos para o resto da vida. O fim dos estudos liceais marcou uma nova etapa na minha vida, uma etapa de mais responsabilidades e novos horizontes no meu caminho. Chegara o momento de entrar na universidade. No mesmo ano em que concorri, consegui três vagas, duas em universidades estrangeiras (em Portugal, para cursar Engenharia Química, e no Brasil, para Medicina) e outra em Cabo Verde, o meu torrão natal (para o curso de Engenharia Informática). Foi um momento em que houve mudanças governamentais no país e se queixavam do déficit nos cofres públicos. O número de bolsas de estudo reduziu drasticamente e quase sempre eram atibuídas tardiamente. Foi um momento muito difícil para mim. Via os meus colegas saírem do país para continuarem os seus estudos, enquanto eu ficava em terra, parado, por motivos financeiros. Numa tentativa de remediar a situação, minha família mandou-me para São Vicente, para estudar Engenharia Informática, mas não era aquilo que eu queria. Para agravar, o governo demorou muito tempo para me conceder a bolsa de estudos a que eu tinha direito, tornando impossível a minha permanência numa ilha que não era a minha e suportar todas as despesas que tal situação origina. Tive de desistir do curso, para regressar a casa. Nessa mesma altura, surgiu um concurso para formar observadores meteorológicos no Instituto de Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 69 Metereologia, na área de Aeronáutica, organizado pela Organização Metereológica Mundial. Concorri, passei no concurso e atribuíram-me uma bolsa de estudos. Terminada a formação, consegui trabalho no aeroporto da minha ilha, onde passei dois anos. Findo esse tempo, senti vontade de progredir um pouco mais na vida e dar continuidade aos sonhos que antes acalentara. Eu queria ser médico. Sentia uma imensa vontade de ajudar a minha gente no seu bem-estar e na sua saúde. A idéia de ser médico surgiu num dia em que eu estava com o meu irmão na horta. De lá, via passar as mães com as crianças enfermas ao colo, em direção ao Posto de Saúde. Ao chegarem lá, tudo o que encontravam era um enfermeiro, cujos esforços não chegavam para satisfazer as necessidades. Essas mães levam sempre o coração nas mãos, porque em certas circunstâncias os pacientes têm de ser enviados para o centro do conselho, onde podem ser acompanhados por médicos, no Hospital. A situação agrava-se quando a família não possui recursos financeiros para essas deslocações, o que acontece na maioria dos casos. Então, voltei-me para o meu irmão e disse-lhe que um dia havia de ser médico, para poder de alguma forma contribuir para a diminuição do sofrimento daquelas mães. Ele ficou em silêncio. Continuei a trabalhar como observador, mas não desisti do meu sonho. Mesmo em segredo, continuei a concorrer para conseguir uma vaga para estudar Medicina, o que acabou por acontecer. A certa altura, consegui uma vaga na Rússia e, na pré-seleção, uma vaga no Brasil. A minha mãe não concordou com a minha ida para a Rússia e aguardei o momento da seleção definitiva para o Brasil. Consegui uma colocação em Biomedicina e atribuíram-me uma bolsa de estudos. Ao chegar ao Brasil, tudo foi resolvido e estou agora na Faculdade de Medicina. As tentativas de conquistar uma vaga e uma bolsa de estudos não puderam ser partilhadas com ninguém. Mesmo quando os resultados saíram, contei apenas à minha mãe e ao meu irmão. Num primeiro momento, minha mãe ficou muito resistente com a minha saída de Cabo Verde, porque eu era o seu braço direito e era quase como se a estivesse a abandonar. Foi uma luta para lhe explicar meus motivos e fazer com que ela os aceitasse. Na hora da despedida, muita gente não acreditava que eu estava de fato de partida. Só as lágrimas no rosto da minha mãe foram capazes de convencê-los que minha hora também chegara. A minha persistência, a minha luta abrira o meu caminho. A primeira vez que regressei de férias à minha terra natal, ao ver as lágrimas de alegria da minha gente, tive a certeza que acertara nas minhas decisões e que é esse o meu caminho. Família É sempre bom falar da família. Ela é a nossa base. No meu caso, lembro a minha mãe e o quanto ela tem sido importante nessa caminhada, por tudo o que ela fez e continua a fazer. Ainda recordo as madrugadas em que ela me acordava para que eu pudesse ir à escola, e como me preparava o lanche antes de sair. À soleira da porta, todos os dias, a mesma mensagem, "comporta-te". Lembro-a com muito carinho. Eu era o mais avançado dos meus irmãos nos estudos e, para eles, a situação seria ainda mais difícil, por isso era tão importante não desapontar a confiança que minha mãe depositava em mim. Nessa caminhada, tive outra "família", que não posso deixar de recordar, a que ganhei na residência estudantil. Não sei se hoje estaria aqui se não tivesse passado por lá. Os laços que lá construí jamais poderão ser esquecidos. A diretora, os supervisores e o pessoal geral fizeram-me conquistar amizade, respeito e disciplina, ajudando-me a ser o homem que sou hoje. Sou muito grato a todas essas pessoas. Elas ajudaram a despertar em mim o interesse, 70 Caminhadas de universitários de origem popular a curiosidade e a vontade de fazer uma faculdade. Olhando para o passado, para os meus colegas da escola primária, e com quem estudei até terminar o ciclo preparatório, vejo que só eu estou no ensino superior. A vida é ingrata e é por isso que sei que tenho a obrigação e o dever de aproveitar as oportunidades que me foram oferecidas e conquistadas. Os meus irmãos também não puderam continuar com os estudos. É também por eles que eu luto. Universidade e Escola Aberta Para mim, a faculdade começou antes de chegar ao Brasil, ciente das dificuldades que encontraria, do grau de responsabilidade que teria de ter, além da determinação e disciplina que precisaria ter para vencer a adversidade. Nos primeiros dias, tudo é festa, amizade e alegria. De início, tudo parecia bem, mas logo no segundo período começaram os problemas. O nível de exigência e de dificuldade era elevado, precisava de livros, que a minha bolsa não dava para comprar, tinha problemas pessoais, aumentavam as saudades da família, tinha de enfrentar a cidade do Rio de Janeiro, conhecida pela sua vida agitada e estressante (para quem, como eu, não tinha o hábito), mas nada venceu a minha vontade de continuar. Ao entrar nesse Programa Conexões de Saberes, muita coisa mudou: em nível financeiro, a bolsa atribuída representa uma ajuda significativa; em nível pessoal e pedagógico, as formações abordam temas importantes e interessantes aos quais eu era alheio, passei a conhecer melhor a realidade do país dos meus colegas de trabalho. A articulação entre o Conexões de Saberes e o Programa Escola Aberta tem sido um presente para mim e sei que virá a dar os seus frutos, apesar de ainda não estar suficientemente preparado para fazer tais oficinas. Quando olho para aquelas crianças, vejo que elas têm a minha "cara" quando eu era criança, moram em lugares isolados, com acesso restrito às oportunidades e à informação. Mas, acima de tudo, são pessoas felizes, com muita vontade e disposição para aprender e para melhorar. Ao contatar e conhecer melhor a realidade do país, dos meus colegas, que considero vencedores, vejo que conseguiram virar a página da vida e, hoje, estão de pé para ajudar a mudar a situação dos seus irmãos, das pessoas que estão nos seus meios de origem. Esse Programa veio a reforçar e reanimar os meus ideais. Na hora da partida para a minha terra natal, com o meu diploma nas mãos, acreditem que não regressarei como um simples médico. Levarei toda a minha história de vida aqui, levarei outros diplomas, que consolidarão meus objetivos. Para os meus colegas do Conexões, hoje vocês pertencem à elite brasileira, a porta foi aberta, a porta do ônibus foi aberta para vocês; mesmo cheio, mandem abrir a porta nos próximos pontos para entrarem os nossos irmãos. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 71 Minha percepção de mundo Francisco de Paula Araújo * Foi Che Guevara quem disse em seu diário, que posteriormente viraria livro (De moto pela América do Sul) e filme (Diários de motocicleta), que o trabalhador rural latinoamericano é um ser "eminentemente revolucionário". Com base em suas idéias, eu diria que o homem é um ser "eminentemente revolucionário". Quando meu pai, um homem ostentando o vigor de seus trinta e sete anos de idade, resolvera largar uma vida árdua de camelô, em uma barraca onde se encontrava de tudo um pouco, resolvia, em grande medida, com aquela decisão, tentar revolucionar sua própria vida. João Gualberto, como se chama meu pai, é um daqueles homens obstinados. Não nega trabalho. Dispensa domingos e feriados caso precise adiantar alguma de suas obrigações. Ele e minha mãe, Maria Naiza, são filhos do sertão. Aprenderam desde cedo a lidar com as dificuldades. Quando meus avós maternos resolveram se estabelecer no Maranhão, no início da década de 1970, fugindo dos intermináveis períodos de seca do sertão cearense e levando consigo uma "reca" de filhos (sete ao todo), meu pai já empreendia uma de suas andanças pelo mundo. Tornara-se um dos, literalmente falando, construtores de Brasília, recém-fundada capital do Brasil. João e Maria (meus pais) se reencontram em terras maranhenses, em meados da década de 1970. Não dá outra: minha mãe rompe o noivado firmado com um outro rapaz e casa-se com meu pai. Da união, nascemos meus irmãos, Erisvan, e eu, Francisco. Embora árdua, nossa vida era promissora em meados da década de 1980. Além da banca já mencionada, onde meu pai comercializava uma variedade de mercadorias, tínhamos uma pequena bodega, sob responsabilidade de minha mãe. Estudávamos na única escola particular da cidade: eu pagando mensalidade e meu irmão com bolsa de estudo cedida pela igreja, instituição a qual devotaríamos anos de dedicação e que marcaria profundamente minha percepção de mundo. Nesse período, começa uma reviravolta em nossas vidas: depois de fugir da seca do sertão se aventurar pelo planalto central desbravar os longínquos garimpos mato-grossenses testemunhar os eminentes conflitos pela posse da terra no Maranhão e tentar a sorte como comerciante, meu pai tomaria a grande decisão: iria "bamburrar". As notícias que chegavam, vindas do interior do estado do Pará, eram as mais animadoras possíveis. Muitos "enricavam" da noite para o dia, como em um passe de mágica. Era o Eldorado brasileiro. Nas mais longínquas paragens, as notícias já eram sabidas por todos. Grupos inteiros de homens deixavam o seu lar na esperança de melhorar de vida, entre esses estava meu pai. * Graduando em Biblioteconomia pela UNIRIO. 72 Caminhadas de universitários de origem popular Durante um ano, as notícias que tivemos sobre ele foram as mais vagas possíveis. O que sabíamos com certeza era que a situação por aquelas bandas já não andava muito boa. A quantidade de pessoas que confluíam naquela direção era incalculável. Acirravam-se os ânimos, sobretudo em virtude da corrida pelo ouro, já escasso em alguns lugares. Os assassinatos tornaram-se constantes e a malaria alastrava-se garimpo adentro, provocando um sem número de vítimas, muitas delas fatais. Quando meu pai retornou um ano depois de sua fracassada empreitada, o que havia sobrado de seu casamento era uma lacuna que nunca seria preenchida. Depois de uma série de desentendimentos e um outro tanto de voltas pelo mundo, meu pai já não residia sob o mesmo teto que minha mãe. Com o afastamento de meu pai do convívio do lar, as coisas tornaram-se consideravelmente difíceis. Transferidos para uma escola pública, estudávamos pela manhã e trabalhávamos à tarde. Nossa principal atividade: vendedor de picolé. Dependendo do período do ano, substituíamos essa atividade por outra mais adequada à época. No inverno, por exemplo, vendíamos desde bananas, passando por laranjas até chegar aos bolos preparados por minha mãe. A caixa de engraxate era companheira em algumas ocasiões. Mais adiante, em virtude das crescentes necessidades financeiras, resolvemos nos dedicar a atividades um pouco mais "rentáveis". Foi nessa época que conseguimos um "belo" emprego como gari ou "capinadores de rua". Entre a limpeza de uma rua e outra, éramos realocados nas equipes de desobstrução de esgotos. Em certas épocas, atuamos como metalúrgicos. Lembro-me como se fosse ontem o dia em que Erisvan e eu decidimos bater o nosso recorde de produção: com macarrão de borracha pretendíamos enrolar quarenta cadeiras em um só dia. Depois de uma jornada de trabalho iniciada às 6:30 da manhã e concluída às 19:30, com um intervalo de trinta minutos para o almoço, nossa meta havia sido alcançada. Para tal, havíamos sacrificado um dia de aula, o que não era de nosso agrado. Por isso decidimos que não mais alcançaríamos nossas metas, caso faltar à aula fosse condição para tal. Nossa decisão havia sido tomada: os estudos eram prioridade em nossas vidas, mesmo que isso significasse algum sacrifício. A condição de trabalhadores braçais persistiria por mais de uma década, desde que meu pai abandonara definitivamente o lar. Contudo, nunca abandonamos a escola e nunca fizemos desta uma mera obrigação. Paralelamente a esses acontecimentos, algo se apresentava como um diferencial em nossa árdua empreitada de sobrevivência: era a igreja. Em 1991 ingressamos no grupo de acólitos (coroinhas) da Paróquia São José, de Lago da Pedra, nossa terra natal. Foram oito anos de uma intensa vivência religiosa, no sentido mais amplo que essa palavra pode denotar. Foi nesse período que tive os primeiros contatos com as idéias socialistas/ libertárias. Embora ignorasse o verdadeiro sentido daquelas idéias, eu me sentia profundamente atraído por elas. Foi o convívio nos grupos religiosos que proporcionou os melhores momentos de minha vida. Ali nasceram as grandes amizades que cultivo, mesmo à distância, até hoje. Foi ali, também, que em 1995 conheci Osvaldina, minha grande paixão e que, nove anos mais tarde, depois de uma série de encontros e desencontros, se tornaria minha companheira. Falar desse tempo é falar de profundas dificuldades, mas, também, é falar de grandes realizações. É interessante perceber que a busca por outra condição de vida sempre norteou nossas idéias e, conseqüentemente, nossa conduta. Uma postura crítica passou a fazer parte de nossas ações. Nesse sentido, a Igreja foi fundamental, pois se, de um lado, procurava nos Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 73 doutrinar, por outro, nos tornava sujeitos críticos, muitas vezes de suas próprias idéias. Quando fiz quinze anos de idade, minha mãe resolveu aumentar a prole por meio de uma adoção. Foi aí que ganhamos uma irmãzinha, negra de olhos claros, e de Martha resolvemos chamá-la. A educação, por sua vez, foi sempre o nosso norte. Assim como meu pai, desejávamos revolucionar nossas vidas, e a educação se mostrou desde sempre o caminho mais viável para isso. No final de 1998, eu concluía meu Ensino Médio e, como é possível prever, eu era um jovem desempregado como a maioria daqueles que alcançavam esse feito um tanto heróico. Essa situação perdurava no início de 1999, quando surgiu a grande oportunidade de deixar tudo aquilo para trás e tentar mudar minha vida: um primo que embarcaria em uma semana para o Rio me convidou para acompanhá-lo nessa grande empreitada. Enquanto o ônibus adentrava sucessivamente outras terras, dei-me conta de que para além do horizonte nem tudo era babaçu; nem tudo era vale e de que nem tudo era Maranhão. Ironicamente chegamos ao Rio em um sábado de carnaval, enquanto essa cidade explodia em folia e nós explodíamos em aflição por não saber o que aquele exílio nos reservava. Há um ditado preconceituoso que diz que "chegando ao Rio, o nordestino deve ser arremessado à parede, se grudar vai ser pedreiro ou servente. Se cair vai ser porteiro, faxineiro, garçom, doméstica ou exercer atividades similares". Pois bem, acho que quando fui arremessado, devo ter caído, pois o meu primeiro emprego foi em um restaurante como copeiro, atividade similar a de garçom. Um mês depois, estava ocupado na atividade de faxineiro de condomínio, onde ficaria por um ano. Sempre otimista, dei-me conta de certo ceticismo que me fazia preso àquela condição que, em certos momentos, parecia definitiva. Acredito na idéia, um tanto marxista/sartreana, que diz que o homem é construtor de sua própria realidade. Pois bem, foi por acreditar nessa idéia que resolvi dar um rumo à minha vida. Pouco mais de três anos após haver aportado na cidade maravilhosa, decidi retomar o antigo sonho de cursar uma faculdade. Em 2002, por via de experiência resolvi prestar vestibular. Aprovado para a segunda fase com conceito "C", percebi que o vestibular não era nenhum bicho de sete cabeças. Mesmo não classificado na lista definitiva do vestibular, um novo ânimo tomava conta de mim e apontava para novos tempos. Em 2003, aproveitando as horas ociosas de que dispunha como porteiro de condomínio, estudei com um pouco mais de afinco. Foi então que consegui duas aprovações: uma para Pedagogia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ e outra para Biblioteconomia na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/UNIRIO. Optando pela segunda, realizava o antigo sonho de cursar uma faculdade, embora não se tratasse do curso de Jornalismo, que tanto desejava. De modo a acompanhar minha companheira, que empreendia sua luta no intuito de chegar à universidade, resolvi prestar vestibular novamente e, não me pergunte por qual motivo, talvez por estagiar em uma biblioteca jurídica, resolvi me inscrever em Direito. Para minha surpresa, fui aprovado, fiz a matricula e devo começar por lá no próximo semestre. Sinto hoje o quanto minhas idéias têm amadurecido, muito embora não tenha perdido nem um pouco de minhas utopias. Sei que a universidade é uma "faca de dois gumes": se, de um lado, procura atender às exigências do mercado, por outro, se mostra como um espaço de resistência frente ao domínio desse sistema perverso. Sartre dizia que, à medida que o homem constrói sua realidade, reconstrói a realidade a sua volta. Nesse sentido, é construindo a minha história que espero, de alguma maneira, contribuir para a construção de um mundo melhor. 74 Caminhadas de universitários de origem popular Maravilhada Gabriele Silva dos Santos * Muda que quando a gente muda o mundo muda com a gente, a gente muda o mundo com a mudança na mente e quando a mente muda a gente anda pra frente e quando a gente manda ninguém manda na gente... Gabriel O Pensador Escola Estudei todo o meu Ensino Fundamental em escola pública, na Escola Municipal Cecília Meireles, em Juiz de Fora, Minas Gerais, lugar onde fui criada. Nessa escola, sempre tirei ótimas notas sem ter que estudar tanto. Mas, ao chegar na 8ª série, teria que mudar de escola, pois não tinha turmas de Ensino Médio no colégio, foi aí que se iniciaram as mudanças de minha vida... a escola que iria estudar estava em greve e como corria o risco de perder o ano letivo, meus pais foram em busca de bolsa na escola particular e conseguiram. Ao chegar à nova escola particular, foi um choque, eu que sempre obtive notas altas na antiga escola, no primeiro bimestre peguei nada mais nada menos do que recuperação em SEIS matérias do total de nove. De repente, me vi desesperada, afinal de contas nunca havia passado por uma situação como aquela, mas depois de muito sofrimento e muitas noites sem dormir, consegui! Passeio de ano, mas foi esse desespero por todo o Ensino Médio, foi um período de minha vida em que me dediquei exclusivamente aos estudos, pois estudava no turno da manhã, tinha provas e testes no turno da tarde, além de fazer curso de inglês (que também pagava com bolsa). Nesse período, ainda não sabia bem ao certo o que queria fazer, afinal de contas, com dezessete anos, tinha como tarefa escolher o que iria fazer no resto da minha vida. Inicialmente, queria fazer Psicologia, mas como gostava tanto de História fiquei na dúvida entre uma das duas opções, mas no fim decidi por tentar História. A única coisa que me desagradava no curso era o fato de que provavelmente acabaria tendo que dar aula, o que * Graduanda em História pela UNIRIO. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 75 não me agradava (quando criança, ao brincar de escolinha, nunca queria ser a professora, sempre dizia que nunca iria dar aulas na minha vida). Optei por tentar História e, ao terminar o Ensino Médio, consegui passar no vestibular. Fiquei tão feliz, pois não tinha esperança nenhuma, havia passado na Universidade Federal de Juiz de Fora para o segundo período do ano de 2004, porém, para minha tristeza e desespero TOTAL, perdi o dia da matrícula, ou seja, perdi a vaga que tinha lutado tanto para conseguir, é muito triste e difícil tocar num assunto tão delicado quanto esse, que ainda me toca de maneira tão forte e dura. Mas é melhor dar continuidade a essa história, pois, apesar das tristezas e dificuldades, é uma história de vitória. Nesse período, meu pai estava aposentado, mas a renda mensal não estava dando para os gastos de casa e não conseguia um trabalho lá em Juiz de Fora, então decidiu voltar para o Rio de Janeiro, pois aqui seria mais fácil para conseguir um emprego e foi o que aconteceu, viemos morar no Rio. Comecei a fazer um curso pré-vestibular, porém não consegui passar em nenhuma das quatro faculdades que havia tentado, foi outro impacto muito forte para mim, que já tinha ficado tão triste ao perder a vaga no ano anterior. Mas não desisti apesar de muitas pessoas me incentivarem a tentar bolsa em uma escola particular, me mantive firme em minha decisão de continuar tentando a faculdade pública. Fiz outro ano de pré-vestibular, mas dessa vez me dediquei de maneira como nunca havia feito anteriormente, estudava desde a parte da manhã até o anoitecer, incluindo os sábados e domingos. Não fazia nada além de estudar, com medo de não conseguir passar para o curso que agora tinha certeza que realmente queria - História. Tentei outro considerado um pouco mais fácil, mas que também me interessava bastante, Administração. Valeu a pena tanto esforço! Havia saído o resultado das universidades UFRJ, UFF, UERJ, UNIRIO e UFRRJ e tinha passado para a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, para o curso de Administração. Apesar de na ser a minha primeira opção, fiquei muito feliz, pois, além de ter conseguido passar, havia conseguido a nona colocação neste curso! Fiz a matrícula, que agora não deixei escapar como havia feito anteriormente, mas as aulas só iniciariam no mês de junho, pois estava com o calendário atrasado devido às greves. Mas meu ingresso na universidade ainda não termina agora... havia ido a uma farmácia quando a UNIRIO ligou para a minha casa procurando por mim, cheguei em casa e minha irmã me deu a notícia da ligação. Bom, dá até para imaginar o quanto fiquei curiosa, mas já era tarde e não dava mais para entrar em contato com a universidade, mas no dia seguinte me retornaram e nem pude acreditar! Imagina só, a UNIRIO me ligou para saber se eu estava interessada em uma vaga, pois estava no edital de vagas e eu era a próxima da lista. Foi uma correria para fazer a matrícula, pois nem sabia como chegar nessa universidade e tinha que fazer a matrícula no curso de História naquele mesmo dia ou, então, perderia a vaga no curso que tanto queria (de novo)! Meu pai, então, saiu do seu trabalho para me levar até a Urca, local onde se situa a UNIRIO, achei que aquele era um dos lugares mais lindos que já havia ido, enfim, consegui fazer a minha matrícula. O que é a universidade Nos primeiros dias de aula, fiquei simplesmente maravilhada e, ao mesmo tempo, um tanto perdida, pois as aulas já haviam iniciado há três semanas. Mas consegui com muita dificuldade, como tudo o que conquistei em minha vida, acompanhar as matérias e estou 76 Caminhadas de universitários de origem popular tão maravilhada com o curso que agora tenho certeza que fiz a escolha certa. E, digo mais, penso até em dar aulas para ter a oportunidade de demonstrar aos outros o quanto a História é uma matéria simplesmente linda, mas me acho um tanto suspeita para dizer sobre a matéria que estou cursando. A universidade era um ambiente tão novo e ao mesmo tempo tão diferente daquele que estava habituada. Vou tentar fazer a descrição de como me senti nesse novo ambiente: era perfeito, do ponto de vista intelectual, além de uma expressão cultural muito forte. Também percebi que pessoas como eu (de origem popular) eram uma pequena minoria, foi só então que me dei conta que o ensino é manipulado por uma elite capaz de monopolizar e acumular em suas mãos um poder econômico e ao mesmo tempo intelectual e cultural. Considero isso uma forma de manipulação das pessoas, pois retira de uma maioria a oportunidade de esclarecimento intelectual, facilitando a manipulação dessa massa para que não sejam possíveis mudanças radicais na estrutura de nossa sociedade brasileira massacrante com a massa populacional. Sinto-me, portanto, na obrigação de romper e proporcionar a outros oriundos do mesmo ambiente de onde vim a mesma oportunidade que estou tendo ao conseguir romper as barreiras quase que intransponíveis, acreditando que, com a mudança de percepção da realidade, haverá mudanças estruturais significativas. Família Aproveito este espaço que me foi concedido para agradecer às pessoas que se esforçaram tanto para que eu tivesse a oportunidade de chegar até onde cheguei, aos meus pais, que, mesmo não tendo oportunidade tão maravilhosa e privilegiada, não me privaram de poder estudar. Além disso, foram eles que me mostraram o quanto é importante os estudos e é a partir dos estudos que estou conseguindo alcançar meus objetivos. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 77 Tomada de decisão Janaína Silva Lucas * Minha vida começou com muita luta desde o momento em que fui gerada, pois minha mãe não esperava essa gravidez. Fui em frente e hoje estou aqui para contar minha caminhada. Minha origem familiar é de muitas lutas, começando pelo meu pai, que, quando menino, foi engraxate para poder pagar os estudos. Conseguiu vencer os desafios e hoje é exemplo para minhas batalhas. Sempre morei em bairro de classe média, mas não é por isso que não conheça a realidade de muitas famílias desse país. Minha educação foi embasada em não "olhar" só para mim, mas para o próximo também. Pois todos fazemos parte de um mesmo universo e não sabemos qual "prova" a vida poderá, de um momento para outro, nos apresentar. Estudei em escolas particulares, mas era através de muito suor que meu pai pagava as mensalidades. Nessas sofri preconceito racial por não ter os cabelos lisos, o nariz fino e a pele clara. Até hoje lembro de um desses momentos: era dia de São Cosme e São Damião, a menina que "cismava" comigo distribuiu saquinhos de doce para a turma e fui a única que não ganhou. Foram momentos desagradáveis e difíceis, superados através da minha autoconfiança porque me respeito e, diante da vida, somos todos iguais. No Ensino Médio, os atos eram mais amenos. Mas lembro o seguinte fato: a professora de Literatura havia me chamado de "docinho de coco" e certo rapaz completou a frase com a palavra "queimado", "docinho de coco queimado". Nesse caso, o preconceito foi sutil, mas não é por isso que passou desapercebido. Da 5ª à 8ª série e no Ensino Médio, as discriminações não eram como nas primeiras séries do Ensino Fundamental, mas pequenas situações não deixavam de acontecer. Sentiame certamente discriminada, mas não me intimidava. Na 8ª série, decidi que faria faculdade. A opção por fazer um curso de nível superior foi devido à preocupação de ter boa formação para a conquista do mercado de trabalho e assim obter uma vida financeira estável. A faculdade foi uma necessidade e não apenas um sonho de alcançar a carreira desejada. Ao decidir pelo caminho da universidade na 8ª série, pensava em fazer Odontologia, mas tal idéia mudou com o passar do tempo e decidi seguir a Medicina por achar que tem mais opções de especialização e mercado mais favorável no que diz respeito à oferta de emprego. Fui à luta pela vaga no curso de Medicina, fiz a 3ª série preparatória e não passei, mas tentei novamente e sem cursinho, pois não era possível pagá-los por serem caros. Em uma das inscrições, optei por Odontologia e passei na UERJ, mas não ocupei a vaga, pois não era * Graduanda em Enfermagem pela UNIRIO. 78 Caminhadas de universitários de origem popular o que eu queria. Resolvi fazer Enfermagem devido ao fato de ser a carreira mais próxima da Medicina, apesar de terem funções bem diferentes. Lá fui eu. Estudei sozinha e prestei o vestibular para Enfermagem na UFF e UNIRIO. Passei para as duas e optei pela UNIRIO, devido à proximidade do meu bairro. Mesmo assim, enfrento uma viagem para chegar à universidade de, aproximadamente, uma hora e meia. Entrei na universidade posso dizer que bastante consciente da sua grande importância na vida de um estudante. Sabendo que não é a total garantia de um excelente emprego e altos salários, pois depende também da competência e do esforço em mergulhar no mercado de trabalho que é bastante concorrido e injusto. Vou sair da "casa" com um pensar mais sólido e objetivo. Vou me formar ano que vem e já sinto saudades da faculdade. Houve momentos de desafios que foram puro aprendizado e preparação. Amo a universidade, pois é muito importante na minha vida. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 79 Meus referenciais Julio César da Silva Oliveira * Cresci dentro de uma verdadeira confusão de idéias, com seis irmãos, mais uma irmã adotiva que, minha mãe, praticamente, salvou da morte, após a sua mãe tê-la renegada e a abandonado. Desde pequeno, presenciei e estive envolvido em diversas tentativas de auto-afirmação, entre o meu pai e minha mãe, que divergiam em suas formas de ver o meu futuro. Meu pai, um homen, semi-analfabeto, trabalhador, oriundo de comunidades nordestinas, que a duras custas conseguiu aprender uma profissão nas muitas obras em que trabalhou no ramo de construções civil, defendia, dentro de sua própria realidade, a minha inserção no mesmo processo, a fim de garantir o meu sustento através de uma profissão. Essas eram as suas falas: "Esse menino tem é que aprender uma profissão, você tem que parar de fazer ele sonhar tanto". Enquanto minha mãe, com um grau de instrução um pouco maior, fazia das tripas coração, incentivando a mim e aos meus irmãos a continuarem os estudos. Foi dela própria a iniciativa de voltar a estudar e com muitas dificuldades, além de estar grávida, cursar e terminar o antigo ginásio. Pai e mãe, dois amores que jamais poderia deixar de ouvir, aliado a essa realidade, o fato de morar em uma invasão, hoje um bairro. Sofríamos constantemente com a falta de saneamento básico, com o tráfico de drogas, com poucos recursos financeiros e descaso das autoridades. Perdi as contas de quantas mortes presenciei ou tive conhecimento, amigos, vizinhos, jovens, homens e mulheres, dizimados pelo tráfico, essa sempre foi a minha realidade. A educação religiosa foi o divisor de águas em minha vida, pois nas horas decisivas fui influenciado a decidir pelo que hoje me manteve vivo. Com poucos recursos, sucumbi aos anseios de meu pai, sem deixar de sonhar com um futuro melhor. Sem saber ao certo a importância de continuar os estudos, mergulhei nas muitas obras, ajudando meu pai. Começou, então, outra etapa de minha vida, a de trabalhador braçal, que não conseguiria levar por muito tempo, pois se trabalhava muito e ganhava-se pouco. Fui incentivado, mais uma vez, por minha mãe, e passei a trabalhar como ambulante, na economia informal. Aos 13 anos, comecei a vender picolé no trem e, por ser ilegal, vivia correndo dos "rapas", policiais ferroviários federais. Após um dia inteiro de árduo trabalho no trem, após pegar a última carga de picolé, justamente no dia em que eu estava ganhando mais, fui pego pela polícia e levado para DP, na Central do Brasil, onde fui autuado, além de perder toda a mercadoria. Em prantos, completamente desnorteado, * Graduando em Biblioteconomia pela UNIRIO. 80 Caminhadas de universitários de origem popular preso, cerceado de meu direito de trabalhar, com a minha mãe esperando-me em casa. Depois de tamanha decepção e angústia, fui liberado, afinal de contas não havia cometido crime algum. Retornando para a minha casa, minha mãe, ao me receber, deparou-se com a minha revolta, decepção e amparou-me. Juntos, decidimos, sem muitas alternativas, que iríamos trabalhar nas praias. Foi então que conheci as praias do Rio, não como turista ou freqüentador, mas sim como trabalhador desesperado em busca de seu sustento. Perdi as contas de quantos quilômetros de areia eu caminhei, suando, ralando, em busca de uma fonte de sustento. Até hoje posso ouvir os ecos de meus gritos na praia: camarão, camarão, ta pulando, vai, camarão, vai, etc. Trabalhei em outros ramos, sempre ligado à construção civil e ao comércio, sem um futuro certo, pois passava pouco tempo trabalhando nesses lugares onde a exploração é muito grande e com poucas opções de futuro. Nesse meio tempo, eu e minha família passamos a enfrentar uma dificuldade maior, por conta do envolvimento de meus irmãos no trafico de drogas. Minha mãe viveu momentos de angústia, tendo que, muitas vezes, sair de casa em busca de meus irmãos, tirando-os das mãos de policiais, que tinham o objetivo de extorsão; além de outras facções que invadiam a nossa residência com a intenção de tirar-lhes a vida. Certa vez confundiram, eu e minha irmã, com outros dois bandidos e quase nos levaram para a morte. Já com 19 anos, nasceu a minha primeira filha, fruto de uma união com uma jovem da própria localidade. Na esperança de conquistar uma condição melhor e influenciado por familiares de minha mulher, viajamos para o estado de São Paulo, em busca de melhores oportunidades de trabalho. Para minha decepção, os sonhos tornaram-se pesadelos. Não conhecia a cidade, que é muito maior que o estado do Rio de Janeiro, tendo um preconceito em relação a pessoas oriundas do Rio, o que dificultou demais a minha inserção no mercado de trabalho daquela cidade. Passamos por momentos angustiantes e conflitantes, culminando inclusive com uma situação inédita em nossas vidas, passamos necessidades, sem ter o que comer e onde morar, após uma discussão e desentendimentos com os familiares de minha esposa, já acostumados em convidar familiares, humilhar e fazer voltar para o Rio, como derrotados. Como havia passado em um concurso para assistente patrimonial, na prefeitura local e diante do desafio de provar que não éramos derrotados como os outros que voltaram, aceitando a argumentação de que não eram capazes, permaneci lutando, muito embora o sofrimento e a angústia fossem grandes, pois já não estava mais sozinho, tinha esposa e filha, entretanto acreditava que tudo tem um preço, e estava disposto a pagar. Certa vez, após receber uma quantia em dinheiro enviado por minha mãe com a finalidade de fazer um bolo para minha filha, trouxe na verdade alívio, pois ela não tinha ciência das necessidades que nós passávamos, inclusive, já há alguns dias, não tínhamos nada para comer. Esses fatos jamais eram revelados nas cartas e telefonemas endereçados aos meus familiares no Rio. Chamado pela prefeitura para começar a trabalho como funcionário público, agora sem um lugar para morar e sem muitas alternativas, mandei minha esposa, grávida de minha segunda filha, ficar um tempo com minha família no Rio e fui morar de favor com uma conhecida que também estava em São Paulo a trabalho, adiando um pouco os nossos sofrimentos, pois logo comecei a trabalhar. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 81 Em seguida arrumei outro emprego e consegui alugar uma casa. Trabalhava em dois empregos e ainda encontrei forças e tempo para estudar. Freqüentei e terminei o Ensino Médio supletivo, no colégio público estadual. Como precisava me alimentar e morava sozinho, juntei o útil ao agradável, pois na escola eu tinha a merenda e a possibilidade de concluir o segundo grau, em busca de uma oportunidade melhor no mercado de trabalho. Foi, então que consegui alugar uma casa e reunir novamente a minha esposa e minhas filhas, continuando a nossa jornada no estado de São Paulo. Graças a Deus, o preço foi pago e começamos a vencer os obstáculos ao longo do nosso caminho. Cresci profissionalmente, arrumando outro emprego, no qual passei a ganhar mais do que os outros dois juntos e as coisas começaram a melhorar. Depois de mais um dia de trabalho, retornando para minha casa, deparei-me com uma cena que demonstra o quanto o mundo dá voltas e favorece aqueles que nunca desistem, mas perseveram. Encontrei os familiares de minha esposa, que tinham praticamente nos lançado na rua, comendo e matando a fome. A vida tinha dado uma reviravolta, eles antes empregados, agora estavam desempregados e dependendo de nossa ajuda, o que, em momento algum, pagamos na mesma moeda. Entretanto a vida nos preparou outras surpresas. Depois de tantas cartas recebidas de minha mãe querendo me ver, enviei minha esposa e minhas filhas ao Rio para matar as saudades, pedindo que ela esperasse, pois faltavam alguns dias para eu sair de férias e novamente encontrá-la no Rio. Mas isso acabou não acontecendo, pois, nas vésperas de entrar de férias, fui surpreendido com um telegrama, informando que ela havia morrido e todos estavam me esperando para o enterro. Justamente aquela que mais me incentivava e amparava agora lá não estaria mais para ouvir o meu lamento e desabafo. Devido a essa situação, aliada a outras, tais como: após estar próximo de receber uma promoção ao cargo de chefia, fui seduzido por uma oportunidade de emprego, dentro da Fundação Bradesco e acabei por pedir demissão de meu emprego promissor. Quando lá cheguei, fui entregue a um funcionário, sem saber ao certo os seus motivos, ao invés de ensinar a forma correta de trabalhar, acabou por me colocar na rua. Revoltado e desesperado diante de mais um golpe de tristeza e agora pensando em fazer uma besteira ou tentar a vingança, resolvi voltar para o Rio de Janeiro. Aqui chegando, a realidade de trabalho estava pior, porém para quem já tinha vencido vários obstáculos, não seria esse que iria me fazer parar. Comecei a trabalhar, realizando bicos, porém olhando para o futuro. Novamente busquei alternativas, mas acabei envolvendo-me com amizades e farras que quase levaram à destruição de minha família. Certo dia, ao despertar de mais uma noite findada nos devaneios que a vida oferece, fui indagado por minha esposa, relatando-me: "Sua filha sente-se envergonhada por suas atitudes". Reflexivo e desmotivado, olhei para o meu reflexo no espelho, observando que o homen ali na minha frente era o reflexo da desesperança, descrédito, desconfiança, ausência de sonhos, à espera de um referencial que pudesse fazer mudar aquela realidade, bem a minha frente. Nesse momento, deixei que todas as vozes falassem aos meus ouvidos. Entretanto uma voz falou mais forte: "Essa pessoa ou ser que você está esperando está em você mesmo, é só acreditar e lutar". Desse dia em diante, tenho me tornado um referencial de vida para muitos em minha volta, tais como família, amigos, comunidade etc., inclusive minha filha, que outrora havia questionado as minhas atitudes, hoje tem se destacado em suas redações, sendo 82 Caminhadas de universitários de origem popular elogiada por professores, justamente por apresentar com clareza de detalhes os seus sonhos, baseada nas realizações de seu pai, algo incomum dentro de uma comunidade marcada pelas desigualdades sociais. Já cansado de trabalhar e não encontrar uma saída satisfatória, voltei a relembrar as palavras de minha mãe e resolvi cursar um pré-vestibular comunitário que funcionava dentro de meu bairro. Novamente lá estava eu, trabalhando em dois empregos, mas encontrando forças, tempo para estudar e encarar um vestibular. Até então, meu conhecimento em relação à universidade era quase nenhum, era um sonho distante. O pré-vestibular comunitário não contava com maiores apoios. Os professores eram alunos de universidades públicas e ex-alunos de outros ou do próprio pré-vestibular. Davam aulas sem nenhum incentivo financeiro; em meio às guerras do tráfico de drogas, por diversas vezes éramos obrigados a fechar a escola e interromper as aulas, e alguns professores, temendo o pior, não voltavam mais. Em meio a tantas dificuldades, prestei vestibular pela primeira vez e passei para área de Biblioteconomia na UNIRIO. É de suma importância frisar que sempre estudei em escolas públicas e, por muitos anos, fui obrigado a estudar com livros de colegas nos intervalos entre um tempo de aula e outro, pois meus pais jamais puderam comprar sequer material escolar que, hoje, está mais acessível. Porém a vontade de sonhar e lutar por seus sonhos parece estar mais distante, e os profissionais da educação que outrora se dedicavam para ensinar os alunos parecem não ter mais o mesmo ânimo, passando uma triste impressão de realmente ser impossível alcançar as universidades. Contribuindo, assim, negativamente para a realidade de muitos que ainda não conseguiram alcançar esse objetivo. Foi então que se iniciou uma nova etapa de minha vida. Estar em uma faculdade federal ainda é um sonho que se realiza todas as manhãs em que entro pelas portas do mundo de esperanças que ela pode me proporcionar. Amo estar aqui, o sonho ainda não acabou, apenas está começando. Entretanto, agora posso ver o quanto sou vitorioso em ter alcançado um lugar que muitos sonham e não conseguem. Estou há oito anos na Guarda Municipal do Rio de Janeiro, instituição em que entrei através de concurso público. Interessante que, um dia após ter pago a inscrição para o concurso, minha filha adoeceu, necessitando de remédios que, com certeza, eu compraria com o dinheiro que me levou a estar hoje na Guarda. Justamente foi através dessa instituição que me deparei com a dura realidade da cidade chamada maravilhosa e sua elite passiva diante de tantas desigualdades sociais. Participei de várias incursões, dentro das inúmeras missões que faziam partes de nosso dia a dia de serviço. Presenciei e conheci o lado miserável de nossa cidade, bem debaixo das barbas das autoridades. Mendigos, pivetes, crianças fugidas de casa, vitimas de maus tratos, pessoas oriundas de outros estados, em busca de oportunidades de trabalho, que, aqui chegando, descobrem que a cidade não é tão maravilhosa quanto parece ser. Bandidos, prostituição, drogas, disputas de jurisprudências, jovens delinqüentes, pichadores (inclusive conduzindo alguns desses menores ao DPCA, em flagrante delito, para averiguações). Famílias inteiras, sem teto, abrigadas debaixo de pontes, viadutos e marquises, mendigando o pão de cada dia. Um de meus maiores constrangimentos foi ter que combater o comércio de vendas ilegais, justamente o outro lado da moeda, que há muito pouco tempo fazia parte de minha vida como principal atividade de sustento. Senti na pele a angústia que aquelas pessoas estavam passando, sabendo que aquele combate fazia parte do trabalho que hoje representa o sustento de minha família. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 83 Graças a DEUS, não tive só momentos de tristeza, houve momentos em que me senti útil, tais como: socorro de pessoas acidentadas, auxílio a crianças e menores abandonados e perdidos (como foi o caso de uma menina menor de idade, do estado de São Paulo, que veio parar aqui no Rio, perambulando pelas ruas da zona sul, conseguindo encaminhá-la de volta ao seu estado de origem). Hoje, pai de três filhos, tenho me tornado o exemplo para minha família e pessoas de meu círculo de convivência social, um verdadeiro referencial de bênçãos. As dificuldades ainda são muitas, porém lembro-me das palavras de minha mãe e continuo a minha caminhada. Certa vez, o engenheiro responsável pelos trabalhos que eu desempenhava virou-se, depois de tanto ter nos humilhado com suas palavras de tom agressivo, e declarou: "Vocês pensam que vão ganhar dinheiro aqui para comprar carro ou ter uma condição melhor, vocês estão enganados, ganharão somente para comer e vestir". Essa frase serviu de incentivo para eu abandonar de vez pensamento de trabalhar sem estudar, e hoje me sinto amparado pelo projeto Conexões dos Saberes, colocando-me no lugar em que sempre desejei estar, ajudando para que portas como essa nunca venham a se fechar e sim serem ampliadas, possibilitando a outros jovens de origem popular conseguir uma vaga em uma universidade pública. Que esse Programa jamais perca o seu referencial, pois já temos referenciais demais de descasos de políticos corruptos que usurpam o direito do povo, roubando seus sonhos. Independentemente de nossa continuação no Conexões, o Programa firma-se como um pólo de oportunidades para outros conexistas que virão em busca da realização de seus sonhos. Que Deus abençoe o Conexões, conexistas, coordenadores, idealizadores e colaboradores deste Programa. 84 Caminhadas de universitários de origem popular Acreditar em si mesmo Lellis Hummenigg Cremonez Taveira * Se você tem um sonho, lute por ele! Renato Russo Minha história de vida começa no dia 10 de abril de 1986, na Casa de Saúde João XIV em Itaocara, cidade do interior do estado do Rio de Janeiro. Oriundo de família de classe popular, sempre tive meus objetivos e planos bem delineados, que convergiam para a inserção no curso superior como mecanismo para a promoção da melhoria da qualidade de vida da minha família. Minha infância foi muito diferente das pessoas que conheço. Na primeira infância, meu entretenimento favorito era destruir os móveis da casa e as panelas, fazendo-as de tambor na maior parte das vezes. Após essa fase, comecei a interagir com pessoas de faixa etária mais avançada, o que me permitiu um rápido amadurecimento intelectual. Meus pais, Elpídio dos Santos Taveira e Ana Catarina Figueira Cremonez Taveira, oriundos de classe popular, apesar da situação socioeconômica e da conjuntura política financeira vivida pelo Brasil na época, sempre investiram, na medida do possível, na nossa formação acadêmica e social. Estudei, durante os primeiros anos de minha vida, no Colégio Estadual Frei Tomás até a conclusão do Ensino Fundamental, quando obtive o primeiro lugar em um concurso de bolsas de estudo no Colégio SEI (Sociedade Educacional de Itaocara). Conquistando uma bolsa integral que me permitiu a inserção em um Ensino Médio com uma qualidade um pouco melhor, tendo acesso ao caminho que me levaria ao Ensino Superior. Conseguir essa bolsa me fez sentir confiante e seguro, mas ciente de que era somente o começo do caminho. No Colégio SEI, comecei a interagir com questões concernentes ao vestibular e visualizava o ingresso no curso superior como uma conquista possível. Paralelo aos estudos, ajudava meu avô materno na manutenção de sua propriedade rural e fazia uns trabalhos extras na empresa de cinegrafia em que minha mãe trabalhava, em que exercia a função de cabo-man. Meu objetivo primordial era conquistar uma vaga no curso de Medicina, porém, ao concluir o terceiro ano do Ensino Médio, percebi que não seria possível, dada a concorrência para esse curso e o meu preparo intelectual insuficiente naquele momento. Então, optei por * Graduando em Enfermagem pela UNIRIO. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 85 fazer o curso de Enfermagem, onde conquistei o terceiro lugar das vagas reservadas para o ENEM. Tal conquista foi motivo de alegria para toda a minha família, sendo parabenizada por um número expressivo de pessoas da cidade. Esse sentimento de felicidade foi acompanhado por preocupações sobre a viabilização da continuidade desse projeto de vida, uma vez que acarretava despesas muito elevadas, que impactariam de forma relevante o orçamento familiar. Tal situação levou-me a começar a realizar entrevistas de opinião pública para empresas de pesquisas mercadológicas, como uma forma de levantar algum recurso financeiro. Realizei as atividades até me inserir no Programa Conexões de Saberes, que alterou positivamente a minha vida acadêmica e social, visto que, além da ajuda financeira (imprescindível para mim), eu participaria de um projeto de ação afirmativa, junto com pessoas de origem semelhante a minha, engajadas e comprometidas com o seu papel de agentes produtores e transformadores da sociedade a qual estão inseridos. Caro leitor, não poderia deixar de mencionar o acontecimento mais importante de todos acima relatados, conhecer Marília Amaral Pepicon, minha namorada, foi simplesmente a melhor coisa que aconteceu na minha vida e que, por si só, já faria valer toda a minha caminhada. Então, prezado leitor, gostaria de parafrasear um dos maiores artistas que a humanidade teve o privilégio de conhecer, Renato Russo. Se você tiver alguém em quem confiar, Confie em si mesmo, Quem acredita, sempre alcança... Espero, senhores leitores, que a minha caminhada, junto com esses versos, exemplifique o quanto é importante lutar e acreditar em si mesmo. 86 Caminhadas de universitários de origem popular Pelas idas e vindas Lia Evangelista dos Santos * Tenho muitas estórias, assim como todas as pessoas. Mas preciso escolher algumas para publicar. Publicar, esse é um verbo que tem muito a ver comigo, já que estou permeada de publicidade (diz a numerologia que meu número principal é o três, o número da comunicação). Toda a vida foi assim, em contato com muitas pessoas. Na infância, a necessidade de trabalhar para sobreviver e me sustentar fez com que minha mãe me entregasse aos cuidados de parentes e amigos. Eu sempre gostei, fui uma criança comunicativa, sorria para todos, ia ao colo e na casa de qualquer um. Geniosa, sim, porém carinhosa. Convivi pouco com minha avó materna, mas foi quem primeiro me cuidou, eu a amo, por tudo o que ela foi quando encarnada, e só depois de crescida tomei consciência: lembro que para toda doença ela tinha uma erva que curava, lembro das minhas “perebas” tratadas com álcool e confrei. Lembro da concha, pesadíssima para mim, na época, prendendo a porta de seu quartinho atrás da minha casa lá em Nova Iguaçu (a cidade do Rio de Janeiro, onde nasci). Desculpe-me, amigo leitor, acho que devo explicações: meu pai me registrou com o nome de Lia Evangelista dos Santos, no ano de 1984, na cidade de Nova Iguaçu, Baixada Fluminense do estado do Rio de Janeiro. Um “causo”: depois de capinar o quintal de nossa casa, no terreno da minha avó materna, sob um sol escaldante, ele se arrumou e foi ao cartório registrar o nascimento de sua primeira filha (prematura de sete meses). Durante o preenchimento do documento o tabelião perguntou: Qual a cor da criança? E meu pai respondeu: Ah! Assim da minha cor. E assim o tabelião me definiu como parda. Esse fato minha mãe comentou comigo e dei boas risadas, porque posso ver várias das minhas veias superficiais, digo que minha cor não é branca é assim um amarelo, meio gaveta, e até que o tabelião estava certo, porque o meu cabelo não nega a mulata que há em mim. Meus pais se separaram depois de quatro anos de casamento, eu tinha três anos de idade e foi muito duro de aceitar. Acho que um dos principais motivos dessa união foi por minha causa. Depois da separação, cada um seguiu atrás das suas necessidades, hoje raramente se falam, não têm mais nada em comum além de mim e o passado está devidamente guardado. E eu parei de dar preocupações na adolescência. * Graduanda em Enfermagem pela UNIRIO. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 87 Fiz a alfabetização em uma escola em Alcântara, em 1990, porque morei esse ano com meus tios e um primo, que cuidaram de mim como se fosse uma filha. Destaco que sou muito grata por isso. Morava no bairro Raul Veiga, um dos muitos do município de São Gonçalo, a rua não tem asfalto até hoje. Na escolinha, eu era muito querida pelas professoras, por ser daquele jeito que falei, comunicativa e esperta. Aprender a ler foi fantástico, lia qualquer coisa. O que estivesse na minha frente com letras, eu lia. Naquele ano, subi ao palco pela primeira vez. Foi a apresentação para a festa da primavera, todas as meninas como flores murchas e eu era a fada da primavera que trazia a vida ao jardim, ao som da “linda” voz da Xuxa Meneguel, por quem tinha paixão (oh! Que horror!). Nos três anos seguintes, já morando com minha mãe, estudei em uma escola particular no bairro do Andaraí, era pequena, com poucas turmas, do jardim à quarta série, ficava lá em período integral. Não me lembro de outras crianças nessa situação, só sei que conhecia a todos, de manhã assistia às aulas da minha série e, na parte da tarde, almoçava uma “quentinha”, fazia os trabalhos de casa, ajudava as professoras das turmas anteriores à minha, implicava com o zelador e brincava na sala do diretor. Durante a primeira série, morávamos num condomínio na Freguesia, próximo ao bairro Cidade de Deus, em Jacarepaguá, dividindo o apartamento com um colega de trabalho da minha mãe. Todos os dias tínhamos que descer uma escadaria enorme para pegar uma condução até o Andaraí, e tinha uma super escola em frente ao ponto de ônibus, meu sonho era estudar lá. O condomínio era bom, mas o pior era nos dias de supermercado, porque depois de subir aquilo tudo, xingando a mãe do engenheiro que projetou a maldita escada, ainda subíamos até o quarto andar, pois não tinha elevador. Depois mudamos para o Andaraí, perto da escola. Moramos em duas casas de vila no mesmo bairro em três anos. Agora ficava na casa de uma explicadora, umas dez crianças fazendo a maior bagunça. Ah! Fiz a quarta série em um colégio de freiras na Tijuca, foi ótimo, mas só deu pra ficar um ano, pois era muito caro. Estudava à tarde, minha mãe quase sempre chegava depois da hora da saída. Por conta disso, fazia o terço católico com as freiras, na hora da ave-maria, até ela chegar. Teve uma época em que ela vendeu “quentinha”, fazia comida de manhã, botava no carro e saía pra vender. Em 1995, morei com um casal de amigos no bairro de Vila Isabel, porque queria estudar na mesma escola de uma amiga. Era uma escola muito boa, com bons professores, porém o nível social dos alunos era um pouco mais alto do que estava acostumada. Sofri bastante com a discriminação, implicavam muito com meu cabelo. Não suportei mais que um ano naquele lugar, continuamos amigas, porém troquei de escola e voltei a morar com minha mãe. Mudamos para uma quitinete no terraço de um conhecido, a varanda era maior que a casa, a cozinha era improvisada. Essa casa fica em frente a uma praça, no Pechincha, em Jacarepaguá. Em dois anos, tinha conquistado a amizade da vizinhança, fui a várias festinhas, tinha um caderno de “ficantes” (eu e minhas amigas competíamos para ver quem beijava mais). Na minha pré-adolescência, nasceu a “Lia louca”, para você ter idéia, um amigo meu me chamava de “funkeira de radinho”. Graças a uma tia de um ex-namorado de minha mãe, consegui vaga numa escola municipal perto de casa, a melhor das que já tinha estudado. Tinha aulas de francês, inglês e vários cursos como: técnica agrícola, técnica industrial, técnicas comerciais, educação 88 Caminhadas de universitários de origem popular para o lar, teatro e dança. Nunca tive problemas com falta de professor, no máximo paralisação de meio turno. Sempre fui boa aluna, sabia separar a hora da bagunça da hora do estudo. Posso dizer que fui popular nessa escola, entrei para o grupo de dança e foi maravilhoso, a professora é um exemplo de força de vontade, ela tinha esclerose múltipla e uma das pernas era teimosa, porém mais teimosa é ela, que dança muito bem, esbanja criatividade. Com esse grupo, dancei em vários teatros e lugares legais do Rio, sempre ganhávamos as competições de dança contemporânea. Com 12 anos, fiz um curso a distancia de vendas do SENAC. Aprendi a fazer salgados e bolos, tentaram me ensinar a costurar, eu quis aprender, mas não deu, devo ter problemas, não conseguia costurar uma linha reta, mesmo seguindo os pontilhados, mas aprendi a pregar o botão, pelo menos isso, né? Também aprendi a fumar e beber vinho, minha mãe quase pirou quando descobriu, gritou, chorou, botou de castigo, bateu e me mandou para casa do meu pai. Ele veio com um papo super cabeça e conversamos por uma semana. Voltei para a casa da minha mãe, um pouco melhor, um pouco... Entrei também para o grupo de teatro e tive certeza que seria atriz. Uma vez, durante a apresentação, escutei do palco uma mulher me elogiando, ela se referiu a mim como “aquela cabeludinha ali”, foi gostoso ouvir que meu cabelo era referência para um elogio. Mais uma vez, mudamos, agora para Praça Seca, no bairro de Jacarepaguá, mas dessa vez mantive algumas amizades. Essa casa era melhor, finalmente tinha meu próprio quarto. Nesse ano, minha prima veio morar conosco e nos aproximamos mais, como se fôssemos irmãs. No final da oitava série, ela pagou um cursinho pré-técnico para mim, estudava sábados e domingos, de 8 às 17 horas, foram três meses de ralação. Prestei concurso para quatro escolas públicas de segundo grau: Politécnica da FIOCRUZ, FAETEC, Colégio Pedro II (turno da noite) e Federal de Química. Passei para FAETEC e, depois de fazer minha matrícula, minha mãe me contou que eu também tinha passado para o Colégio Pedro II. Fiquei uma “arara”, mas ela disse que seria melhor fazer um curso técnico, porque depois de formada poderia trabalhar. Eu queria estudar no Pedro II, mesmo que fosse à noite e longe de casa, porque sabia que o ensino era melhor, mas saiu um ranking no jornal e a FAETEC estava muito bem, e minha mãe se encantou. Escolhi ensino médio atrelado à Enfermagem, sei lá por quê. Até que gostei, mexeu com meu lado cuidadora, conselheira e nunca tive frescuras com feridas, sangue ou fezes. Convenci-me que era possível ser enfermeira. Mas o sonho de ser atriz profissional continuou bem vivo. A rede FAETEC oferece, além de cursos técnicos, uma gama de cursos livres em artes, esportes, lutas, línguas e informática. Em 1999, me inscrevi nas aulas de teatro, este curso foi muito bom, diferente dos cursinhos que eu já tinha entrado. Tinha uma carga teórica rica e a prática era uma delícia. Fiz amigos importantes lá, uma amiga me convidou para entrar no grupo de teatro ao qual pertencia, por uns meses fiquei em jornada tripla: pela manhã, o ensino médio mais o técnico; à tarde, o curso livre e à noite ensaiávamos. Meu amor pelo teatro cresceu e nos inscrevemos, cinco amigos, para o vestibular da Escola Técnica Estadual de Teatro Martins Pena. Muito bom quando se tem apoio, minha mãe pagou a taxa de inscrição e o livro da bibliografia. Eram três etapas, meu pai ficou dando orientações pelo telefone (ele foi ator amador em Nova Iguaçu), minha amiga dirigiu minha cena da prova prática. Estudei bastante e, antes que acabassem as férias de meio de ano de 2000, passamos os cinco para a “Martins”, eram 20 vagas e eu fiquei em segundo lugar! Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 89 Eu tinha 15 anos e um monte de expectativas. A escola de teatro me marcou muito, lá descobri quem sou e decidi quem queria ser. Aprendi a observar as pessoas, minha sensibilidade aflorou. Reconheci alguns limites, expandi outros e não me arrependo de nada. Como eu gosto de fazer várias coisas ao mesmo tempo, já estava ficando com estafa: encarar as aulas do ensino médio mais o estágio no hospital mais as aulas de teatro. Enfim, não era fácil. Não me alimentava direito porque vivia ensaiando ou estudando. No meio disso tudo, nos mudamos para o bairro Maria da Graça, para um apartamento de dois quartos em uma vila. Era financiado pela Caixa Econômica Federal. Minha mãe, através do meu tio, se tornou mutuária e estava tão feliz que não viu o tamanho do problema em que entrara. Mas o sonho da casa própria, finalmente, estava se realizando. Foram cinco anos morando lá, adoro o subúrbio, ruas residenciais, quase não passa carro, passarinho cantando de manhã, uma linda vista da lua na janela do meu quarto... mas acabou. Trocamos de Ministro da Saúde, que fez uma mudança na diretoria dos hospitais públicos, e minha mãe, que trabalhava numa revendedora de medicamentos, perdeu um monte de contatos, o trabalho ficou difícil, atrasaram várias parcelas do apartamento, e a saída foi alugá-lo. Mudamos às pressas para a casa do meu tio em Madureira, construímos uma quitinete no terraço. Emprestei meus móveis de quarto para um amigo que, assim como eu, estava com dificuldades, e o resto da casa foi dado, vendido ou encaixotado. Depois que terminei o Ensino Médio, comecei a tentar o vestibular, em 2002. Prestei prova para Enfermagem na UNIRIO, meus professores do técnico falavam muito bem, segui o conselho deles, mas não estava com a cabeça voltada para isso. Estava estagiando no hospital e me formando na Martins Pena, fiquei tão envolvida com a montagem final que tive um “faniquito”. No dia da estréia, pela terceira vez na vida, não pude controlar minhas emoções, foi um episódio muito estranho: chorava e ria ao mesmo tempo, e entramos em cena. No ano seguinte, trabalhei como a secretária de uma amiga da minha mãe. Estagiava de manhã, trabalhava à tarde, e consegui uma bolsa de estudos parcial num curso prévestibular à noite. Dessa vez consegui isenção nas taxas de inscrição da UFF, UERJ, UNIRIO e só paguei UFRJ. Levei bomba, como poderia conseguir se dormia nas aulas e não conseguia repassar as matérias em casa, se quando todos relembravam o conteúdo, eu desesperava. Simplesmente nunca tinha ouvido falar de vários assuntos, os professores foram ótimos, mas eu estava por fora e tive de aprender na marra. Eu e minha mãe conversamos com o diretor e ele manteve minha bolsa para 2004. Mas, então, mudei para o turno da tarde. Como não estava trabalhando, fiquei mais dura ainda, ia e voltava a pé, para economizar. Pelo menos adquiri o hábito de caminhar e devo ter engrossado as pernas. Graças à amizade que fiz com os funcionários, assistia às aulas das minhas específicas de manhã e à noite. Passava, em média, 12 horas diárias no Pré em Cascadura, levava comida de casa e, para o lanche, às vezes comprava frutas no mercadinho perto e dividia com o pessoal. Valeu a pena, consegui as isenções das taxas de inscrição novamente e passei para a UNIRIO (primeiro semestre), UFF e UERJ (segundo semestre). Minha mãe tinha acabado de comprar uma lanchonete, deu o carro como garantia em um empréstimo, estava muito ruim a venda de medicamentos. Reformou e transformou o boteco em Casa de Sucos e Restaurante. Trabalhou muito e perdeu muito, também. Durante o período das minhas provas, fui trabalhar com ela e vi o quanto esse tipo de comércio suga as energias do trabalhador. Não tínhamos estrutura financeira, administrativa ou psicológica 90 Caminhadas de universitários de origem popular para ter um negócio desse tamanho. Éramos gerente, caixa, garçonetes e, vez em quando, cozinheiras. Ilógico e absurdo! Foi difícil vendê-lo, já que o proprietário anterior escondeu muitas dívidas quando passou o ponto para nós. Mas, graças a Deus, vendemos o restaurante. Nesse período, ganhei um padrasto, ele sempre foi taxista e, por sua sugestão, minha mãe deu entrada em um táxi com o que restou do dinheiro. Agora, eles trabalham nesse carro. Eu já estava freqüentando as aulas de Enfermagem na UNIRIO, quando percebi que minha mãe tinha saído de casa. Sim, ela casou e nem avisou, digo, nem percebeu, quer dizer, sabe quando vai ficando na casa do namorado e quando se dá conta, todas as roupas já estão lá? Foi assim. Por uns quatro meses, eu morei sozinha lá em Madureira e até que gostei. Mas, como “alegria de pobre dura pouco”, meu tio pediu a quitinete para o meu primo morar com a esposa. Mas e eu? Bem, me mudei com um terço do havia restado da mobília para a casa do, agora, marido da minha mãe. Um “apertamento” no bairro Praça Seca, onde dividia o quarto com o meu novo irmão adolescente. Eu, que já não ficava muito em casa, passei a dormir no apartamento da amiga para quem trabalhei como secretária, em Santa Tereza, muito mais perto da Urca e Centro, onde são os campi da UNIRIO, do que a minha nova casa. Só duas passagens. A partir do segundo período, voltei a dormir na Praça Seca e me aproximei um pouco da nova família, que inclui a filha do meu padrasto também. Por falar em irmãos, há treze anos meu pai teve uma filha, ele é casado com a mãe dela, e todos nos damos bem. Minha irmã é uma jóia nas nossas vidas. Confesso que, no início, senti ciúmes, mas logo me apaixonei por ela e hoje somos amigas. Sou um pouco ausente com relação a esse lado da família, mas tento sempre que possível visitá-los. Moram em São Gonçalo e a distância e minhas “mil e uma” atividades atrapalham um pouco. Minha faculdade é em período integral e assisto às formações do Conexões de Saberes à noite, levo cerca de duas horas para ir e voltar da Escola de Enfermagem. É cansativo, mas agradeço a Deus e sei que tem gente em situação muito pior. Participo, desde 2005, de um trabalho com moradores de rua do Centro do Rio de Janeiro, levamos assistência básica, como comida, água, roupas e, desde que com a receita, remédios. Para as gestantes, em troca da freqüência às consultas do pré-natal, conseguimos enxovais de bebê. Sei, e me irrito com isso, que o estado deveria tomar providências com relação à situação dessas pessoas, gerações e gerações de pedintes, a exclusão salta em nosso rosto. E como parte da sociedade, decidi ajudar dessa forma. Mesmo que seja assistencialismo, a má-vontade política e a morosidade dos órgãos públicos empurram os chefes de família para as ruas, claro que é um processo muito mais complexo, mas a realidade grita, chora de fome, frio, doenças, desabrigo, desamor até. A minha parte é ajudar quem eu puder agora, porque Betinho disse uma verdade incontestável: “Quem tem fome, tem pressa”. Existem muitos grupos como o que eu participo aqui no Rio, igrejas e centros espíritas, em maioria. Chamamos de caridade, mas, para mim, assim como dar valor à minha universidade pública, é uma forma de cidadania. Quase me esqueço! Eu vendo bolo integral na faculdade. E com isso garanto as minhas passagens e algumas cópias. É um sistema lindo: tem um jardim aqui dentro, onde os alunos trazem os produtos, tudo caseiro, e colocam um cofrinho do lado, vão para a aula, e quando retornam tudo se vendeu e o cofrinho está cheio! Melhor, esses cofrinhos ficam abertos, caso o comprador precise fazer seu troco. Tem um ano que ponho meu bolo lá, e raras vezes tive problemas. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 91 Eu adoro estudar aqui e, para permanecer, dou meu jeito. Agora, com a bolsa, fica mais fácil, posso até comprar alguns livros, ter acesso à Internet e fazer um curso de inglês. Espero ajudar em uma mudança no pensamento dominante da UNIRIO, conquistar cada vez mais meu espaço na academia e abrir caminho para que aqueles que são de origem popular, que tiveram tantas ou mais dificuldades que eu, também tenham a oportunidade de completar um curso superior público e de qualidade, como deveria ser toda a educação brasileira. Sinto a responsabilidade do Programa Conexões de Saberes, principalmente com a parceria com o Programa Escola Aberta, no qual atuo em duas escolas em Belford Roxo (cidade periférica, próximo a Nova Iguaçu) aos sábados. Tenho aprendido muito com as crianças. Eu levo os conceitos de direitos humanos, trabalho a Leituração e elas me devolvem carinho e um jeito lindo de encarar a vida, que desde cedo é sofrida. No mais, é só o futuro. Que venha! 92 Caminhadas de universitários de origem popular De sonhos à realidade Lívia Ceschia dos Santos Miranda * A educação pode ajudar a nos tornarmos melhores, se não mais felizes, e nos ensinar a assumir a parte prosaica e viver a parte poética de nossas vidas. Edgar Morin Escrever sobre minha trajetória até a universidade significa relembrar fatos da minha vida que me tornaram a pessoa que sou hoje. Posso dizer que, apesar de todas as dificuldades encontradas por minha família, nunca sofri ou achei que fosse impossível realizar meus sonhos, por ter tido sempre ao meu lado essas pessoas maravilhosas às quais dedico minha história: meus pais. A união familiar, nosso amor e principalmente a fé em Deus nunca deixaram a esperança e a força para lutar irem embora, mesmo nos momentos mais difíceis. Minha família Nasci e cresci na cidade de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. Trata-se de um município na Baixada Fluminense, onde o grande desafio é conseguir um emprego, estudos, uma vaga na universidade, enfim, levar uma vida digna. Quando perguntava aos meus amigos o que eles gostariam de fazer ao terminar o Ensino Médio, muitos diziam que queriam fazer faculdade, mas que não poderiam pagar uma particular e dificilmente conseguiriam uma vaga na universidade pública. Minha família tentava se estabelecer no Brasil. Minha avó, que é italiana, veio para cá por causa da Segunda Guerra Mundial. Meu avô, pernambucano, veio tentar a sorte no Rio de Janeiro. Somente depois de algum tempo de casamento conseguiram sair da casa dos pais, vindo morar numa rua de barro, em uma casa humilde, e tiveram três filhos. É nesse mesmo local que moro hoje, mas está muito diferente, pois a cidade cresceu e a rua foi asfaltada há mais ou menos dois anos. Apesar das dificuldades, meus dois tios e minha mãe conseguiram estudar até o Ensino Médio. Um dos meus tios, Flávio, sempre teve muita dificuldade em aprender e, dizem minha avó e minha mãe, que ele chegou a rasgar três cadeiras de tanto ficar sentado estudando. Ele se esforçava para realizar seu sonho, e conseguiu. Cursou Química na UFF, passava o dia * Graduanda em Enfermagem pela UNIRIO. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 93 sem comer e tinha que pedir carona na estrada para voltar para casa. Logo após terminar a faculdade, ganhou bolsa para estudar na Inglaterra, onde trabalha até hoje como professor. Minha mãe, apesar de muitas dificuldades, também conseguiu completar seu curso de nível superior, com muita ajuda de meu pai e já com dois filhos pequenos. Dessa forma, minha avó, que estudou até a quarta série primária, conseguiu que seus três filhos concluíssem o ensino superior. A família de meu pai também tem dessas histórias. Meu tio Elim, muito pobre e criado na roça, sonhava em fazer Medicina. Estudou tanto, que conseguiu realizar seu grande sonho em outra universidade pública. Muito pobre e sem dinheiro para comprar algo para comer, colocava as mãos para o lado de fora do quarto onde foi morar e puxava algumas folhas de uma árvore, que mastigava para enganar a fome e agüentar até a noite. Tornou-se um excelente médico, realmente preocupado com seus clientes. Foi com ele que aprendi a beleza da profissão, a cuidar dos que precisam com amor. Meu pai, vindo do interior da Bahia para tentar a sorte no Rio, casou-se com minha mãe, tendo dois filhos: meu irmão e eu. Nunca fomos ricos, mas sempre fomos esforçados e, principalmente, unidos como família. Meus pais sempre fizeram todos os esforços possíveis para que pudéssemos estudar. Minha mãe sempre dizia que, como não éramos ricos, toda a herança que ela poderia me deixar seriam os estudos, e fizeram de tudo para me oferecer as melhores oportunidades possíveis. Minha história Passamos por muitas dificuldades. Quando eu tinha oito anos, a multinacional onde meu pai trabalhava faliu. Ele usava o dinheiro que recebia do auxílio desemprego para pagar a mensalidade da minha escola e do meu irmão, pois isso sempre foi prioridade para eles. Meus pais tinham horror de que precisássemos estudar em escola pública e, para pagar as mensalidades, faltava dinheiro para as outras coisas. Minha avó e bisavó ajudaram muito nessa época. Como quase todo o dinheiro era gasto com minha escola, meu tio Josias, irmão de meu pai, trazia sempre uma cesta básica que ele pegava na igreja. Quando ele chegava com os alimentos e os iogurtes que comprava pra mim e para meu irmão, minha mãe se ajoelhava para guardar no armário e chorava, silenciosa, em cima da caixa de papelão. Então, minha mãe pediu a uma amiga que lhe ensinasse a bordar. Primeiro aprendeu ponto cruz, depois vagonite. Começou a bordar panos de prato e a sair para vendê-los. Acredito que, no início, as pessoas compravam para ajudá-la, porque não eram bonitos, já que ela nem teve tempo de aprender, tinha necessidade de vender logo e não poderia ter vergonha de abordar as pessoas. Enquanto isso, meu pai também tentava vender suco na praia e procurava emprego, foi uma época muito difícil. A infância Eu era muito nova, mas sabia que as coisas não estavam bem. Por todo esse esforço, sabia que minha família era a coisa mais importante na minha vida e fazia questão de dar-lhes orgulho. Esse era o maior objetivo na minha vida. Então, eu estudava, estudava, estudava. Ganhava medalhas todos os anos pelo meu bom desenvolvimento escolar, não tirava nota menor que oito. Fui convidada a fazer curso de robótica, gratuitamente, e não perdi a oportunidade. Além de ver todo o esforço dos meus pais em me oferecer 94 Caminhadas de universitários de origem popular estudo, conhecia toda a luta da minha família inteira, tios e avós. Apesar de sempre ter sido uma das melhores alunas da classe, até o terceiro ano primário dei muito trabalho a minha mãe: gostava de estudar, mas chorava todos os dias para ir à escola, de medo que tinha da vice-diretora. Sempre fui uma menina muito tranqüila. Como não havia meninas na minha rua com quem pudesse brincar, passava o dia conversando com as plantas do quintal de minha avó e lembro que uma de minhas brincadeiras preferidas era dar aulas de inglês ao meu pai. Que paciência ele tinha! Eu sabia que ele não falava outro idioma e achava que poderia ajudá-lo a arrumar um bom emprego se aprendesse alguma coisa de inglês, e quando ele chegava cansado no fim do dia, ainda se sentava no chão, em frente ao quadro negro que ganhei de aniversário e me via repetir a mesma aula todos os dias: yellow, blue, green... Adolescência Cheguei ao Ensino Médio e a situação financeira ainda estava um pouco complicada. Minha mãe passou em um concurso público e começou a dar aulas, o que ajudou um pouco. Sabia que a escola particular ficaria ainda mais cara, mas não queria estudar na escola pública, pois ouvia falar que era muito ruim. Na verdade, nunca havia entrado em uma. Então, continuei estudando, me esforçando e fui fazer uma prova para tentar bolsa em uma boa escola particular próxima à minha casa. Era uma prova longa, com 100 questões, e eu queria muito essa bolsa. Quando saiu o resultado, descobri que havia acertado todas as questões que compunham a prova. Recebi uma homenagem diante de toda a escola e um livro de presente da diretora. Foi uma alegria muito grande, consegui 100% de bolsa e fui estudar de graça. Nesse dia, soube que seria capaz de alcançar meus objetivos se lutasse por eles, e que poderia ser mais um motivo de orgulho para minha família, já que minhas vitórias, assim como essa, seriam homenagens aos seus esforços em me fazer crescer. Tendo garantido meu estudo na escola, quis fazer curso de inglês. Fiz prova para tentar bolsa e, como consegui abatimento grande do valor da mensalidade e meus pais não precisavam pagar a escola de ensino médio, eles conseguiram pagar meu curso de inglês, que não demorei a terminar e pegar meu certificado. Terminei o Ensino Médio sentindo um imenso frio na barriga. Sempre ouvira dizer que a universidade pública é para quem tem dinheiro para estudar nos melhores cursos pré-vestibulares. O fato é que minha família jamais conseguiria pagar uma faculdade particular e, além disso, passar para uma universidade pública era o mínimo que eu podia fazer em troca de tanto esforço da minha família. Além de um grande sonho que tinha de crescer profissionalmente, era uma obrigação, uma prestação de contas, e eu queria provar para mim mesma e para aqueles que desistiam que não precisava ser rica para conseguir estudar em uma federal. E estimulava meus colegas de classe a fazerem o mesmo, não desistirem. Desde pequena, sempre gostei de estudar ciências e dizia que, quando crescesse, iria cuidar de nenéns. No Ensino Médio, me apaixonei pela Biologia e decidi pela área de saúde. No primeiro ano, terminando o Ensino Médio em 2003, tentei Medicina e não consegui passar. Fiquei triste, mas não desisti, porque passar para uma pública era minha única possibilidade de ingressar no ensino superior. No ano seguinte, em 2005, tentei outra Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 95 vez. Fiquei muito orgulhosa de ter passado, em quarto lugar, para Fisioterapia na UFRJ1 e, em segundo lugar, para Enfermagem na UNIRIO2 e na UFF3. A universidade Resolvi estudar na UNIRIO. A universidade foi um ambiente totalmente novo pra mim. Criada dentro de casa, foi uma experiência diferente ter que pegar ônibus sozinha todos os dias e passar o dia inteiro fora de casa. Aliás, foi no trote da faculdade que aprendi a me virar com os ônibus e a andar pelo centro da cidade, com 18 anos! Lembro que, quando cheguei na Urca, fiquei encantada com a beleza da cidade e orgulhosíssima de estudar em uma universidade pública. Apaixonei-me pela cidade, pela universidade, pelo curso e pelos amigos que fiz aqui. O curso de Enfermagem na UNIRIO é integral, o que representava mais um desafio, pois teria que passar o dia inteiro na faculdade e não poderia trabalhar. Isso aumentaria os gastos e eu não poderia ajudar a me manter na universidade. Esse é outro grande desafio que a camada popular enfrenta ao conseguir ingressar na faculdade. Apesar de toda a dificuldade para entrar, ainda acho mais difícil permanecer dentro dela. Foi no terceiro período que tomei conhecimento do Programa Conexões de Saberes, uma nova esperança. Além da ajuda financeira oferecida, me encantei com o projeto de extensão e pesquisa, voltado para alunos provenientes de camadas populares, além da possibilidade de contato com os alunos de comunidades pobres, onde eu poderia estimulálos a ter mais confiança e também aprenderia muito com eles. Foi aqui que conheci outras pessoas que, como eu, encontraram dificuldades em suas trajetórias, mas que persistem para mostrar que, com perseverança e fé, conquistaremos nosso lugar. 1 Universidade Federal do Rio de Janeiro. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. 3 Universidade Federal Fluminense. 2 96 Caminhadas de universitários de origem popular Minha caminhada, minha vida! Louise Storni Vasconcelos de Abreu* Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada. Clarice Lispector Na esperança de encontrar meu nome, pesquisava todos os dias na Internet as listas de classificados no vestibular. Na verdade, minha família já estava desiludida com a possibilidade do meu ingresso em alguma universidade pública, pois somente meu primo de primeiro grau, Raphael, havia conseguido ingressar em uma instituição de ensino superior público, mas não teve condições de concluí-la. Para mim, ingressar em uma instituição federal de ensino, além de ser a oportunidade de ter um dos melhores ensinos e ingressar no mercado de trabalho em pé de igualdade com aqueles que têm melhores condições financeiras do que eu, era realmente o meu maior objetivo naquele momento, pois sabia que seria difícil para meus pais arcarem com a despesa de uma universidade particular e sempre foi meu grande sonho, que eu só iria conquistar depois de muita luta. Nasci em um dia que não estava previsto pelo médico. Naquele dia, minha mãe havia se aborrecido e minha reação foi me enrolar no cordão umbilical, isso fez meu coração bater bem devagar, quase inaudível. Com essa manobra de protesto, descobriram logo que não podiam aborrecer minha mãe perto de mim. Depois do susto nos médicos, nasci bem e com saúde. Meus pais já estavam casados há quatro anos. Como as condições financeiras não eram as melhores, minha mãe continuou trabalhando, até que o Plano Collor1 fechou algumas empresas e lojas, inclusive a clínica de estética que minha mãe administrava. Nessa mesma época, meu irmão, Victor, tinha acabado de nascer. * Graduanda em Histório pela UNIRIO. Medida econômica implantada pelo então presidente da República Fernando Collor de Melo, em 1990, que pretendia acabar com a inflação que estava em níveis hiperinflacionários. 1 Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 97 Sempre morei em um apartamento em Alcântara, um bairro de São Gonçalo. Minhas brincadeiras preferidas eram boneca, pique e escolinha, em que eu sempre era a professora. Fiz muita bagunça no pátio do prédio, principalmente quando brincava de pique-esconde com meus amigos. Como não tínhamos o costume de brincar na rua, pois era muito perigosa, por causa da grande quantidade de veículos que circulava por ela, o porteiro sempre chamava nossa atenção ao brincarmos no play. Na alfabetização, tive muita dificuldade para aprender a ler e escrever, principalmente porque estava passando por problemas em casa, pois meus pais estavam em processo de separação e eu sofri muito com isso na época. Sempre estudei em escola particular, pois meus pais achavam o ensino público sem qualidade. Mas um dia, quando a situação estava difícil, minha mãe conversou comigo e com meu irmão expondo o problema e nos disse que no ano seguinte iríamos estudar em um colégio municipal. Eu estava na 3ª série e de início fiquei triste, porque aquela proposta era apenas colocada como uma ameaça caso eu repetisse o ano na escola. Antes de fazer a mudança, minha mãe conversou com meu pai e ele disse que não era preciso, pois ele arcaria com as despesas dos nossos estudos, material e uniforme, além da pensão. Então, continuamos estudando em colégio particular e minha mãe voltou a trabalhar. Na 5ª série, mudei de escola mantendo-me, porém, no ensino particular, pois acreditava que era mais forte. Lá fiz muitas amizades e fortaleci outras que permanecem até hoje e que são muito importantes para mim, pois acredito que amigos são uma espécie de família que cada um escolhe para si. Eu escolhi e ainda estou escolhendo a minha. No Ensino Médio, mudei novamente de escola, continuando no ensino privado, pois acreditava que preparava melhor para o vestibular e o ensino público no município de São Gonçalo está entre os piores do estado do Rio de Janeiro. No entanto, a adaptação foi difícil, porque sofri muito preconceito, pois, além de ser gordinha e usar aparelho, eu era fanhosa e, por esse motivo, comecei a freqüentar sessões de fonoaudióloga para consertar esse “detalhe”. Sentia que para a sociedade nós devemos ser perfeitos, para agradar a todos. Como era (e continuo sendo) uma aluna muito esforçada, conseguia tirar boas notas e, no 2º ano, a turma foi dividida por rendimento escolar. Algumas pessoas que me discriminavam saíram da escola e outros ficaram em turmas diferentes da minha. No entanto, isso só durou um ano, porque, no 3º ano, juntaram todos na mesma turma. Naquele momento os alunos já me conheciam melhor, passaram a me respeitar pelo que sou e não pelo que aparentava ser. Então, finalmente, pararam de implicar comigo. Nesse mesmo ano, muitas mudanças ocorreram na turma, acho que o clima de vestibular faz as pessoas se unirem, fiz muitas amizades e fiz uma dieta também!!!! Isso porque não agüentava mais me olhar no espelho e me sentir uma verdadeira baleia! Entretanto, não consegui passar no vestibular. Eu havia tentado Jornalismo na UERJ 2, UFF 3 e UFRJ 4, mas não havia estudado muito, acho que não fazia idéia do que era o vestibular. Eu pensava que era uma conseqüência de meu desenvolvimento cognitivo intelectual e não um mérito. Pensava que a universidade viria junto com os 18 anos, imaginava que minha vida iria mudar, pois passaria no vestibular, começaria 2 Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Universidade Federal Fluminense. 4 Universidade Federal do Rio de Janeiro. 3 98 Caminhadas de universitários de origem popular a trabalhar e ganharia um carro. Primeiro, passar no vestibular requer muito estudo e dedicação. Segundo, trabalhar somente com o Ensino Médio completo é ser escravo. E terceiro, ganhar um carro, só se meus pais fossem ricos, mas tudo isso eram fantasias de adolescente. No entanto, minha vida não mudou e eu não passei no vestibular. Todavia, comecei a pensar na possibilidade de estudar em uma faculdade particular, mas eu sabia que seria um gasto muito grande. Além disso, gostaria de recompensar meus pais por tudo o que fizeram e fazem por mim. Então resolvi estudar mais e prestar vestibular outra vez, apesar de já estar com dia marcado para fazer a matrícula em uma faculdade particular. Mas eu desejava outro destino e sabia que era capaz de conseguir realizar meu sonho. Estudei muito, como nunca tinha estudado antes. Consegui aprender física, biologia, química e matemática, que no meu percurso estudantil eram as matérias que eu tinha maior dificuldade. Em 2005, prestei vestibular para as cinco universidades do Rio de Janeiro (UNIRIO5 e UFRRJ6 para História; UFF, UFRJ e UERJ para Jornalismo). Foram todos os finais de semana e feriados, de novembro a janeiro (excluindo os finais de semana de Natal e Ano Novo), dedicados às provas de vestibular. No final, já estava saturada de tanto fazer prova. E, quando saíram os resultados, nada de classificação, eu não poderia imaginar não passar no vestibular outra vez, isso seria terrível e, sinceramente, não sei o que poderia fazer em relação aos meus estudos. Não consegui ingressar na UFF, universidade mais próxima da minha casa, pois a relação candidato/vaga para Jornalismo era muito grande e, conseqüentemente, eu precisaria de uma média maior do que a que eu obtive. O mesmo ocorreu com as outras universidades, as quais eu não consegui ingressar. Por saber que Jornalismo é muito concorrido, optei por prestar vestibular para UNIRIO e para UFRRJ, que não têm Jornalismo, mas têm História (que também gosto muito, vale ressaltar!), curso no qual a relação candidato vaga é menor. Em um dia pela manhã, fui a um laboratório de informática e vi o resultado da Rural, eu havia passado para História em Nova Iguaçu, fiquei muito feliz. Entretanto, nem a matrícula eu pude fazer, porque não iria ter dinheiro para arcar com as despesas de passagens para a universidade todos os dias. Chorei durante uma semana, mas ainda tinha esperança na reclassificação da UNIRIO, que ofereceu edital de convocação, no qual me inscrevi e, no dia 24 de março de 2006, data do meu aniversário, recebi o melhor e maior presente que eu poderia ganhar: ingressei em uma universidade pública! Foi um dia muito feliz e a comemoração foi dupla. Fui fazer a matrícula na segunda-feira, dia 28 de março, e iniciei as aulas no dia seguinte. Minha primeira dificuldade foi saber como chegar à UNIRIO, porque sempre vivi em São Gonçalo e dificilmente freqüentava o Rio de Janeiro sozinha, ainda mais que a distância de onde eu moro para a universidade é de 50km, em média, e eu preciso pegar quatro ônibus, dois de ida e dois de volta. No primeiro dia, tive aula o dia inteiro, não sabia onde almoçar e não conhecia ninguém do turno da manhã, muito menos do turno da tarde. Foi então que comecei a construir meu círculo de amizade na faculdade, por não saber onde me dirigir para almoçar, onde seriam as aulas no turno da tarde, isto é, eu estava me sentindo sem 5 6 Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 99 rumo, quando encontrei a Milena e a Mariana, que se tornaram minhas amigas. Perguntei se elas também iriam fazer a aula da tarde e se eu poderia ficar fazendo companhia a elas. Outras dificuldades foram os gastos com cópias dos textos, só no primeiro dia foram R$35,00 mais as passagens. Só de transporte a despesa era de R$12,00 por dia, para diminuir esse gasto resolvi pegar uma van para ir da minha casa até Botafogo (R$4,00 na ida e mais R$4,00 de volta). Como o ônibus de Botafogo até a Urca custava R$2,00 na ida, mais R$2,00 de volta, passei a fazer uma caminhada de Botafogo até a Urca economizando por dia R$4,00, ou seja, R$80,00 por mês! No final do 1º semestre, fiquei sabendo que estavam abertas as inscrições para participar do Programa Conexões de Saberes. Em minha opinião, esse Programa é muito mais interessante do que somente a bolsa permanência, na qual o estudante ganha R$180,00 de ajuda de custo, para se manter na universidade. No Programa Conexões de Saberes, os estudantes estão trabalhando tanto com a pesquisa quanto com a extensão. Na semana seguinte à inscrição, fui selecionada para a entrevista e estava muito ansiosa para o resultado. Na segunda semana do mês de julho, numa quarta-feira, saiu o resultado e eu fui selecionada, fiquei muito feliz! Observando minha trajetória, percebo que tudo o que vivi foi necessário para meu aprendizado e engrandecimento como pessoa. O Projeto Conexões de Saberes está sendo uma grande oportunidade, pois aprendi, aprendo e pretendo aprender muito mais construindo ele. Além dos ensinamentos, o Programa é de grande ajuda para minha manutenção e permanência na universidade. Penso que o acesso à educação é direito de todos, então a universidade também deveria ser. No entanto, de acordo com a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, o acesso à universidade é uma questão de mérito, isto é, não é acessível a todos. Por isso, que a discrepância social e racial permeia a nossa sociedade. Para finalizar, agradeço a OPORTUNIDADE da minha vida aos meus pais. Ao meu pai, que investiu nos meus estudos como um meio de melhorar o meu futuro e me tornar uma mulher independente, mas, principalmente, à minha mãe, por ter estado sempre ao meu lado em todos os momentos da minha vida e por acreditar sempre nos meus sonhos. Agradeço por ela ser minha base, meu alicerce, minha referência do que é ser família e por ser minha maior inspiração, pois todas as vezes que lembro tudo o que passamos juntas, essas lembranças me dão forças para continuar estudando e lutando para vencer todas as dificuldades e tornar nosso futuro melhor. 100 Caminhadas de universitários de origem popular A formação do ser contemplada a beleza do arborecer Luana Nascimento de Oliveira * As imigrações fazem parte da história do Brasil e o êxodo rural, ocorrido a partir dos anos de 1960, trouxe muitos nordestinos para os pólos industrializados do Sudeste do país. É dessa realidade histórica que se inicia a minha história, pois sou o fruto da união entre um casal proveniente do agreste paraibano que em busca de uma vida melhor e de oportunidades, veio tentar a sorte no Rio de Janeiro. Com uma família composta por cinco pessoas, sou a primeira da geração de meus familiares a entrar na universidade e devo grande parte desta conquista aos meus pais, Francisco de Oliveira, que há mais de vinte anos trabalha como porteiro de edifício, e Maria do Socorro Nascimento, dona de casa e doceira, que me proporcionaram a vida que não puderam ter quando jovens. O comprometimento dos meus pais com minha educação é um dos mais importantes motivos que me fizeram conquistar a tão sonhada vaga em uma universidade pública. Fortalecimento do tronco... Aos três anos de idade, entrei na rede particular de ensino, posteriormente, na 4ª série do Ensino Fundamental, por questões financeiras, passei a freqüentar a Escola Municipal Dr. Cócio Barcellos. A mudança de escola foi bastante positiva, apesar de toda problemática do ensino público, que acarretou uma deficiência na aprendizagem da disciplina Língua Portuguesa, nas 6ª e 7ª séries do Ensino Fundamental, em razão de não ter aulas dessa matéria. Enfim, tenho boas lembranças, pois boa parte dos meus amigos hoje é de amizades construídas nessa época. Aos quatorze anos, iniciei o Ensino Médio (antigo 2° grau) em um colégio estadual, o Colégio Pedro Álvares Cabral, posso dizer que foi um período muito bom, pois os professores nos incentivavam e a direção da escola freqüentemente buscou parcerias com outras instituições, que organizavam palestras sobre o mercado de trabalho, profissões, drogas e gravidez precoce. Lembro-me de uma vez que realizamos uma visita à Universidade Estácio de Sá, fomos aos laboratórios e departamentos, conhecemos os trabalhos realizados por determinados cursos e tivemos uma palestra sobre o processo do vestibular tanto na rede pública, como nas instituições privadas. Essa informação foi bastante útil, afinal éramos alunos de escola pública e não sabíamos informações importantes como: possibilidade de pedido da isenção, regras para inscrição e possibilidade de acesso a uma universidade privada através das bolsas integrais e parciais. * Graduanda em Pedagogia pela UNIRIO. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 101 A partir da palestra, de alguns testes vocacionais, do incentivo por parte da minha família, da torcida pela minha entrada em uma universidade pública e da experiência como “explicadora” (que exerci durante todo o período do Ensino Médio, quando ministrava aulas particulares aos amigos dos meus irmãos), optei pelo curso de Pedagogia. No começo, fiquei um pouco indecisa entre Pedagogia e Psicologia, mas o magistério, para mim, é algo muito mais interessante do que estar numa clínica a fazer análises, não que essas áreas se restringiam aos dados aqui explicitados, mas assim era o meu conhecimento de mundo na época, uma idéia que mais adiante compreendi ser equivocada. No terceiro ano do Ensino Médio (2002), ocorreu um fato desestimulador, os colégios estaduais e federais entraram em greve, situação que deixou em pânico parte do corpo docente do colégio onde estudara. E a partir daí me deparei com uma situação complicada, pois, em uma família onde a renda mensal mal cobria as despesas, ficava inviável ingressar em uma escola privada, como também freqüentar um qualificado curso pré-vestibular. A melhor saída, visando um ideal, fora estudar por conta própria, cair sobre os livros às duas horas da manhã, freqüentar bibliotecas, realizar grupos de estudo com colegas na mesma situação e procurar auxílio com professores do colégio, pois mesmo em greve lá estavam para discutir questões políticas em defesa da classe. Minha família custeou aulas particulares com uma professora de português e, por ajuda divina, o professor do laboratório de química e física freqüentara a mesma biblioteca durante o período de greve e, com ele, tirei minhas dúvidas até de matemática. Na volta às aulas, ao conversar com um amigo do colégio, soube da existência de um curso précomunitário da UFRJ, porém a entrada consistia na esperança de vagas, o que acabou não acontecendo, pois as vagas eram restritas. Em agosto de 2002, faltavam três meses para a primeira fase do vestibular, foi quando uma luz radiante passou pela minha vida através da intervenção da fonoaudióloga do meu irmão, que indicou à minha mãe um missionário da Paróquia Santa Mônica, cuja trajetória de vida se resume a um gesto divino, ajudar aqueles que necessitam. Assim, o missionário Carvalho proporcionou minha entrada em um curso pré-vestibular comunitário – INVEST –, que funciona em um prédio anexo ao Colégio Santo Inácio. O pré-vestibular possui uma história interessante, pois a partir de uma conversa informal entre ex-alunos do Colégio Santo Inácio, em uma pequena reunião, surge a proposta de ajudar aqueles que também possuem um ideal de entrar na universidade. Lá conheci pessoas magníficas, jovens universitários e professores já aposentados, que deram total atenção a mim e aos demais alunos, em sua maioria, de classe popular. Os alunos do curso tinham 100% de bolsa na PUC-Rio e, na época, pensei em prestar o vestibular para essa instituição, mas refleti e percebi que meu desejo era estar em uma universidade pública. E como toda estrela tem que brilhar, lá estava eu, à minha frente a prova objetiva da UERJ e, semanas depois, da UNIRIO. Prestei vestibular apenas para as duas, pois conseguira a isenção por completo na primeira e parcial na segunda. Em ambas, o resultado foi satisfatório e, como o primeiro passo fora dado, bastava o segundo, o momento de decisão estava prestes a acontecer, e tudo se concretizaria da melhor maneira se não fosse a bendita greve a me deixar sem uma resposta imediata... 102 Caminhadas de universitários de origem popular Os ramos se enchendo de folhas... Em 2003, as universidades federais e estaduais no Rio de Janeiro enfrentavam uma greve que perpetuou até meados de agosto, e ansiosamente esperei o resultado sair no site das universidades. Durante a manhã de uma quinta-feira, eu e minhas amigas, gêmeas, filhas de um zelador de edifícios também, estávamos no curso de Informática, trabalhando com Internet, quando pedi ao professor para visitar a página da UNIRIO, e lá estava o meu nome, habilitado para o segundo semestre de 2003. Todas nós pulamos, nos abraçamos mutuamente, peguei o celular e avisei a minha mãe. “Mãe eu passei para a UNIRIO!!!” Ela não acreditou e pediu para falar com uma das minhas amigas, depois de toda euforia, esta chegou para mim e disse que minha mãe, emocionada, perguntava se era mesmo o meu nome: “...é Luana Nascimento de Oliveira, filha de porteiro?”. A partir daí, percebemos como esse comentário reflete sobre a questão de nem sempre ingressar um indivíduo oriundo de espaço popular, com um histórico de vida que nem o meu e de boa parte das pessoas que conheço, pessoas humildes e que lutam diariamente pela obtenção de uma vida melhor. Colhendo os frutos... Em setembro de 2003, iniciei minha jornada universitária na UNIRIO e mal sabia das dificuldades que me esperavam. Mas só o fato de saber que se encontrara em uma universidade pública era exatamente tudo que queria, um sonho maravilhoso do qual despertar é bobagem, porém minhas preocupações surgiram mais adiante ao me deparar com a quantidade de textos para tirar xerox, lê-los e realizar trabalhos digitados, além da passagem de ida e volta, durante toda semana. Algumas medidas de emergência foram tomadas, como comprar o computador, fruto da limpeza de uma conta bancária e mais o que recebia como professora particular; e outras suavizadas, como a ida à faculdade com a blusa da escola, diminuindo uma das passagens do dia. Em 2006, algumas decisões foram tomadas e a minha dedicação à vida acadêmica tornou-se prioridade. O que me rendeu a entrada no Programa Conexões de Saberes, a participação e organização de eventos e fóruns sobre temáticas de acesso e permanência de estudantes oriundos de comunidades populares e a intensificação pessoal pela luta de uma universidade pública realmente democrática. Pois o momento que vivencio na UNIRIO como conexista me orienta a incentivar os caminhos de outras pessoas iguais a mim e a você, que tem o direito de estar aqui. O ano de 2007, para mim, é motivo de festa, pois obterei meu diploma de Licenciatura Plena em Pedagogia, com 22 anos de idade, e com toda a dedicação que assim exigir, continuarei meus estudos e assim prosseguirei com o mestrado. Pois, a partir de agora, determinadas palavras tais como cessar e desistir não fazem parte do meu vocabulário. Concluo com o seguinte pensamento: “Ter o canudo em minhas mãos não é apenas uma conquista isolada, mas sim uma vitória de todos aqueles que participaram positivamente ao longo desses anos, minha família, amigos e professores. Desistir jamais e seguir em frente é apenas o começo!”. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 103 Superação Luiz Antonio Gomes Cristóvão* Meu pai, sr. Evaristo Cristóvão Filho, era estivador e veio a falecer quando eu tinha apenas oito anos de idade; minha mãe, sra. Silvia Maria Gomes Cristóvão, até os dias de hoje, trabalha como doméstica. Eu sou o primogênito de nove irmãos e o primeiro a ingressar na faculdade. Infância Minha caminhada teve início quando minha avó entrou em contato com uma senhora que dava aula particular de reforço em sua casa, quando eu tinha 10 anos. No meu caso, não foi reforço, ela simplesmente se dedicou à minha alfabetização. Morava em Caxias e minha avó em Nova Iguaçu e, um dia, embarquei em um ônibus e perguntei ao cobrador se passava no bairro onde minha avó morava e ele me perguntou se não sabia ler. Daí, senti a necessidade de aprender a ler. Adolescência Logo após, minha avó matriculou-me em um colégio público com nome de Escola Estadual Dom Wolmor, quando eu tinha 12 anos. Eu fui amparado pela Lei e não precisei cursar a 1ª e a 2ª séries, começando a cursar a 3ª com algumas dificuldades que me levaram à repetência. Fiz supletivo na 5ª série para me adiantar, pois já estava com 15 anos, mas não tive sucesso e retornei a minha escola de origem, onde não desanimei e persisti em minha busca de conhecimento. Neste colégio tive contato com excelentes professores, que, além de ensinarem as disciplinas normais, me incentivaram a estudar e a desejar novos objetivos. Tive várias desistências nesse percurso, devido à necessidade de conciliar o trabalho com o estudo. Em 1995, concluí o Ensino Fundamental e, em 1999, concluí o Ensino Médio. Adulto Para complicar, aos 20 anos, tornei-me pai, se já não era fácil estudar e trabalhar, imagine ainda ser pai de família, mas isso não me fez desistir dos meus ideais. Fiz meu 1º vestibular em 2003 na UNIG, pois consegui isenção da inscrição, me inscrevi para o curso de História e fui aprovado, porém não tinha dinheiro para financiar a faculdade. * Graduando em Biblioteconomia pela UNIRIO. 104 Caminhadas de universitários de origem popular Em 2004, me inscrevi no vestibular da UNIRIO, com taxa de isenção, e fui aprovado no curso de Biblioteconomia no turno da noite. Não me inscrevi no curso de minha preferência, História, devido ao curso ser diurno e não conciliar com o trabalho. Não fiz nenhum cursinho pré-vestibular seja ele comunitário ou particular. Meu primeiro ano na faculdade foi no 2º semestre de 2005, eu estava com trinta e quatro anos de idade e foi um ano de surpresas, dificuldades e companheirismo. As surpresas vieram ao descobrir que a faculdade não é aquele monstro todo que as pessoas falavam. As dificuldades surgiram por eu não ter nenhum contato com o computador e, a partir desse momento, foi necessário que eu me familiarizasse com a informática e o uso da Internet para a realização dos trabalhos solicitados pelos professores. Nesse momento, surgiu o companheirismo dos colegas de classe, que me ajudaram ao máximo com as minhas dificuldades em relação à informática. Realizei meu primeiro trabalho acadêmico manualmente e pedi para o meu irmão digitar, pois tem acesso e sabe usar a informática. Nos dias de hoje, já consigo realizar algumas tarefas no computador. Estou no 4º período e as pessoas dizem que é difícil entrar para a faculdade, eu discordo, pois difícil é se manter na faculdade, não dá para conciliar estudo, trabalho e estágio. Estou vivendo somente com a renda dos estágios. O trabalho é importante, porém preciso do estágio para o aperfeiçoamento do meu conhecimento e desenvolvimento acadêmico. Essa situação levou-me a optar pelo estágio, não é fácil viver só de estágio, por isso tenho que ter dois ou mais estágios. Com muita luta e perseverança, atingirei meu ideal, que é concluir a graduação. Dedico aos familiares e amigos, que foram e são fundamentais no meu desenvolvimento pessoal e acadêmico: Familiares: Maria Juliana (avó) Marcos José (irmão) Ailton Luiz (irmão) Amigos: André Luiz Andréa Saroldi (madrinha) Adriana Socorro Geiselane Salvador Roberta Graciane Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 105 Era uma vez uma linda gatita Marcelly Marques Pereira * “Mas se você achar Que eu tô derrotado Saiba que ainda estão rolando os dados Porque o tempo, o tempo não pára.” Cazuza/Arnaldo Brandão Quando acordei, estava numa sala, com vários médicos me olhando e um engraçadinho que bateu em meu bumbum, para me fazer chorar. Minha mãe estava ali, exatamente às onze e cinco da manhã, me admirando. Pensando em como faria para criar uma linda menininha, tendo ela apenas quinze anos, ainda uma adolescente. Encurtando essa parte de minha história, nunca soube como ela fez, pois ela morreu quando eu tinha somente um ano e onze meses. Após a partida de mamãe para o céu, minhas avós solicitaram à justiça a minha guarda. Cresci vendo minhas duas avós sem nenhum diálogo. Penso que você, querido amigo leitor, pode estar sentindo pena, pois pode guardar para um livro de auto-ajuda, minha intenção é mostrar que, com determinação e força de vontade, tudo é possível. “Mesmo quando parecer que possa estar derrotado, saiba que estão rolando os dados, porque o tempo não pára”. A segunda fase de minha infância, entre sete e onze anos, obtive importantes conquistas escolares. Ganhei medalhas na escola com o campeonato de Matemática, participei do grêmio e de um congresso estudantil com a presença do Ciro Darlan. Como lembrança, guardei a bolsa do evento. Ressalto que não tive nenhum mérito por bom comportamento dentro da sala de aula. Até a quinta série, eu não havia me apaixonado, isso ocorreu na série seguinte, quando vivenciei minha primeira frustração. Ele era tudo de bom! Muito parecido com o Kevin, aquele cantor do grupo Backestreet Boys, minha banda favorita na época. Só que ele era mais velho e nem percebeu a minha existência... Sabe o que fiz como atitude protesto? Raspei a sobrancelha! A façanha ficou conhecida como: “Vó se acalma...”. Minha avó não sabe até hoje o motivo da depilação facial. * Graduanda em Museologia pela UNIRIO. 106 Caminhadas de universitários de origem popular Como em toda adolescência, a minha foi um período de muitos altos e baixos e, com ela, chegou o ensino médio. Meu primeiro ano foi de muito estudo e boas notas, o que resultou na participação no projeto da Nestlé, de iniciação científica, e no Projeto Afro Ascendentes. Participar dessas ações não foi fácil, cada uma tem sua história. No Projeto da Nestlé, o objetivo era desenvolver uma redação com um tema delimitado pela empresa, fiquei dois anos nesse projeto. Nos encontrávamos algumas vezes na semana para debater sobre a redação. Recordo-me que, no dia de São Cosme e Damião, as crianças passavam pedindo doce, e eu (que não tinha idade para pegar doce) estava discutindo sobre a conclusão do nosso trabalho. Uma professora de Filosofia conseguiu uma vaga no grupo de pesquisa para ser bolsista pela FAPERJ, e fomos nós de novo. Era para atuar no departamento de Geologia na área de Paleontologia, em dois anos observei que a traça, velha amiga, constituiu família e destruiu grande parte do acervo de fósseis. Que bom que ela constituiu família, assim não ficaria sozinha na minha ausência. Larguei a pesquisa, ou melhor, a amizade com as traças por causa do Projeto Afro Ascendentes, o responsável pela minha carreira acadêmica e estabilidade emocional. Sendo sincera, através do Afro passei a me identificar como negra, antes me enxergava como parda. Lembro que naquela época achava chato o que o coordenador (Dudah - Eduardo Pereira) e os educadores diziam e não fazia muito sentido para mim. Hoje percebo que é minha vida. Amanhã será o futuro do meu filho... Digo que o Projeto Afro Ascendentes foi a melhor experiência da minha vida. Fiz muitos amigos, a maioria está no meu coração. Na época, tínhamos aulas de reforço devido à defasagem escolar em Biologia, Geografia, História, Química e Redação. Nessas aulas, conheci uma pessoa muito especial, a qual atribuí grande carinho, meu professor de reforço em Matemática, Ubiraja Ferreira Pinto. Meu primeiro ano de vestibular foi um “fracasso”. Não estava preparada e, para piorar, fui estudar no curso GPI (pré-vestibular para/da elite) porque o Projeto Afro Ascendentes fez parceria com a instituição. Esse curso pré-vestibular tem por filosofia acreditar em sua bagagem escolar, aplicar matérias somente para RELEMBRAR os conceitos. Para mim, era terrível, pois não poderia relembrar o que não havia aprendido, naquele momento eram assuntos inéditos, Tela Quente Especial na Rede Globo (tecnicamente os professores achavam que todos haviam aprendido, só que eu nunca tinha visto, que dirá aprendido). Reconheço que os professores do curso e do reforço tentavam me ajudar, mas era muito complicado. Na escola pública, nunca fui apresentada realmente, de forma que eu pudesse entender, à Química e à Física, o que tornava minha vida de vestibulanda um inferno. Nesse período, as aulas de reforço no Projeto Afro Ascendentes foram muito importantes. Enfim, não passei para nenhuma universidade, mas serviu para que eu me preparasse para o vestibular de 2005. Para isso, contei com o apoio dos professores do cursinho, cito, Jorge Bahiense (História), Ricardo Luiz (Física), Marcelo (Química), Carnevale (Matemática), Carlos Gomes (Português). O “segundão” foi de muita determinação. Queria ingressar no curso de Jornalismo. Chegando próxima à primeira prova da UERJ15, briguei com meu namorado (pai do meu filho), foi grave e resultou em uma média E, de eliminada. Fiquei arrasada, minha frustração foi grande. Resolvi preparar-me para o ENEM e a outra chance que a UERJ dá, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 107 ainda na primeira fase. Obtive uma pontuação excelente no ENEM e passei para a segunda fase da UERJ1 com média C. Acredito que meu filho motivou o êxito, porque perto das provas descobri a gravidez. Ao contrário de outras pessoas de minha idade, eu não me desesperei, resolvi estudar ainda mais para propiciar ao meu filho um futuro melhor. Encurtando a história, para não parecer novela mexicana do SBT ou um drama, ingressei na UNIRIO2 utilizando a pontuação do ENEM. Logo em seguida, realizei um sonho de ser aprovada no curso de Jornalismo da PUC3, consegui uma bolsa de estudo que proporcionava 100% de desconto no curso. Porém, já havia me apaixonado pelo curso de Museologia (ressalto que Museologia não tem relação com música e não toco nenhum instrumento). Na época da inscrição da PUC, estava no hospital dando à luz ao meu filho, Cauã, que nasceu de oito meses. Meu bebê perdeu muito oxigênio, quase morreu... por isso perdi a inscrição na PUC e, por destino, fui estudar na UNIRIO. Não me arrependo de estar no curso de Museologia, gosto muito da minha área. Na Escola de Museologia, encontrei docentes preocupados com a situação do universitário de baixa-renda: Leila Beatriz Ribeiro, Sul Brasil, Mário Chagas, Regina Bibiani, entre outros. Cheguei a essa altura do meu testemunho e percebi, amigo leitor, que não havia apresentado pessoas fundamentais e especiais para minha vida. Acredito que você pode estar pensando ser desnecessária tal apresentação, mas fazê-la esclareceria algumas questões como: quem ficou com meu filho quando fui para a faculdade, como consegui ir para a universidade por causa das passagens ou até mesmo tirar xerox (diga-se de passagem, que toda semana os professores pedem para tirar, acredito que eles tem pacto com o dono da xerox). A princípio, apresento as duas mulheres de suma importância na minha vida: minhas avós (ambas Dalva). Minha avó paterna, com quem moro, ofereceu a oportunidade de escolher o que faria da minha vida, se estudaria ou trabalharia. Fiz a escolha e ela me apóia até hoje... entretanto tinha um problema, quem ficaria com meu filho para que eu pudesse estudar. Meus avós são muito velhinhos e não poderiam... a minha avó materna é bem mais nova, não tem 60 anos, e aceitou ficar com ele. A vida é assim, quando você pensa ter resolvido os seus problemas, aparece mais um, e o meu estava no fato de que a minha avó morava em outro bairro, e como eu não tinha verba para pegar dois ônibus a mais, tive que ir andando. Me recordo como se fosse hoje, todas as vezes que levantava às 4 da manhã, para sair de casa às 5 horas, ir andando com meu filho até chegar a casa de minha avó às 6 horas da manhã. Tinha vezes que chorava na rua com medo que algo acontecesse ao meu filho... certa vez, uma velhinha me indagou se não estava muito tarde para chegar da festa com meu filho, pois ela me rotulou como mãe irresponsável... como chorei...por fim, ressalto o nome de duas grandes amigas que me ajudaram muito, nos três primeiros períodos, e ajudam até hoje: Julianna Luzia e Aline Pereira. Quando as conheci, nos primeiros dias de aula, vi que havia encontrado parceiras pra vida toda. Quantas vezes elas me emprestaram dinheiro para comer, tirar xerox e até pra passagem... que época! Creio que não teria conseguido resistir a todas dificuldades sem o apoio das duas parceiras/gatitas. Conheci o Conexões de Saberes através de uma amiga, Ana Carolina, que também entrou para o Programa. Ela me falou que na Reitoria tinha um formulário que o candidato deveria preencher. Fui chamada para entrevista e hoje estou no Conexões de Saberes – UNIRIO. 1 2 3 Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Pontifícia Universidade Católica 108 Caminhadas de universitários de origem popular Entrei para o Conexões no momento mais difícil da carreira acadêmica que todo estudante de camada popular passa: desistir ou não desistir, eis a questão. Graças a Deus e ao Conexões, estou aqui, num espaço desenvolvido para elite... estou terminando o terceiro período, muito feliz por estar nesse projeto e por ter conhecido pessoas maravilhosas entre conexistas, mestrandas, Alba, Maria Helena e o Didi (Diógenes, coordenador geral). Penso em voltar a minha carreira para memória, brasão... enfim, até me formar tenho muito para conhecer. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 109 Vida, minha vida Maria Aparecida Mesquita dos Santos * São três anos de muitas saudades, mas ainda me lembro das histórias que meus pais nos contavam da sua infância e namoricos de adolescente, até sua saída de Aracaju para São Paulo, onde se estabilizou como alfaiate e teve até um sobrado. Meu pai era um homem incrível e marcante e, apesar da sua pequena estatura, era muito namorador, o que levava a minha mãe à loucura. Bem, em São Paulo meu pai chegou a viver com uma mulher, mas a relação não deu certo, o que o fez abandonar tudo o que havia conquistado e partir para o Rio de Janeiro, para tentar refazer a vida. Nessas histórias que o meu pai contava e eu pude testemunhar, além da coragem de se lançar aos desafios, o desejo de encontrar a felicidade, havia o fato de o meu querido pai ser analfabeto. Sim, meu pai não sabia ler nem escrever, mas conseguia assinar o nome e possuía uma grande habilidade com os números, era capaz de fazer cálculos em segundos de cabeça, sem rabiscar uma linha sequer. Era um homem bem informado, conversava com qualquer um sobre qualquer assunto, e foi essa habilidade que o ajudou a sobreviver e a ter um pequeno comércio de Secos e Molhados, que dividia com sua profissão de alfaiate, na Baixada Fluminense, em Belford Roxo, onde ele criou quatro filhos e dois enteados. Minha saudosa mãezinha, como meu pai, era uma contadora de causos. Sergipana, neta de índio, era dona de uma vasta cabeleira negra e uma pele muito bronzeada, dizia que era mistura de branco, negro e índio. E, além disso, exibia um sorriso de causar inveja. Parece que foi ontém, me recordo da casa em que morávamos quando crianças. Uma casa grande e telhado de barro. Essa casa possuía uma peculiaridade, você entrava em um quarto e saía em outro, entre eles não havia corredor e, assim, eram todos os outros cômodos mal divididos. O comércio do meu pai ficava na frente da casa, ligado diretamente a ela. O quintal, para nós, que éramos crianças, parecia um mundo. Lembro-me das árvores, mas uma em particular me chamava atenção, era uma mangueira, seu tronco já havia sido cortado várias vezes, mas ela forte resistiu e floresceu. Ao seu lado, ficava o tanque, onde minha mãe, após todos os afazeres da casa, passava as tardes lavando roupa e onde meus irmãos e eu nos reuníamos em cima do tronco cortado da mangueira, que nos oferecia um gigantesco banco, para ouvir as histórias da terra natal da minha mãe e, assim, conhecer um pouco, sobre nossas origens. Eram lendas da região onde ela cresceu, contos de donzelas, * Graduanda em Museologia pela UNIRIO. 110 Caminhadas de universitários de origem popular almas penadas e muito mais, até como foi sua saída de Sergipe para o Rio de Janeiro, em busca de trabalho. Ela foi trazida por um casal de amigos, de navio, e toda sua trajetória, até conhecer meu pai. E ali, ao seu lado, passávamos tardes inteiras ouvindo seus contos. Minha mãe se dividia entre seus afazeres domésticos e ajudar meu pai. Como meu pai, minha mãe também era analfabeta, só sabia escrever o seu nome. Ela contava muito com a ajuda da minha irmã mais velha. Em resumo, minha mãe, era uma mulher aparentemente forte, mas, com o passar do tempo, ela mergulhou numa profunda tristeza. Nossa infância foi marcada por vários momentos, na época, porque éramos crianças, não compreendíamos muito bem os problemas que minha mãe passava e que a levaram a um grau tal de depressão que combinou com alcoolismo. Logo em uma época em que não se entendia que se tratava de uma doença, testemunhamos momentos muito difíceis e traumáticos para todos, cenas de agressões entre meus pais e, até mesmo, ambulância do hospício, que a levou várias vezes. Ainda me lembro do olhar de preconceito de todos. Hoje sei por que meus irmãos e eu sempre brincávamos no quintal, nunca íamos para rua, nunca havia outras crianças brincando com a gente, porque as mães não deixavam... éramos os filhos da alcóolatra. Por várias vezes, devido ao alcoolismo, minha mãe me esquecia na escola. Com o passar do tempo, a situação só foi piorando, meu pai já não sabia o que fazer e onde buscar ajuda. Minha mãe passou a beber mais e mais, ao ponto de cair pelas ruas do bairro. Minha irmã mais velha não agüentou a pressão, saiu de casa. Foi morar com uma tia e logo casou. Minha outra irmã, abaixo dela, era apenas um menina, tinha na época 15 anos e nós, os menores, ficamos quase no estado de abandono total, se não fosse meu pai, que ainda se esforçava para cuidar de tudo. Foi quando meu irmão mais velho, que era enteado do meu pai, há muito já vinha dando trabalho, se misturou com más companhias e desapareceu sem deixar pistas. Para minha mãe, foi o fim, ela chegou ao limite, não se alimentava mais e, assim, logo morreu, aos 42 anos, deixando uma filha adolescente de 15 anos e três crianças pequenas, que ainda precisavam muito dela. Minha irmã mais velha conta que parecia que minha mãe sabia que ia morrer, pois, na véspera de sua morte, era domingo de Ramos e ela saiu e visitou todas as suas amigas, como se estivesse se despedindo de todos. Hoje, acredito que todos esses problemas afetaram muito nossa vida escolar. Minha irmã de 15 anos, naquele momento, abandonou a escola para ir trabalhar. Meu irmão, abaixo dela, não conseguiu passar da 4ª série. O caçula passou a ser agressivo na sala de aula com os colegas e professores, xingava, brigava e até mordia a mão da professora. Eu, que já havia iniciado os estudos tarde, passei a sentar na última carteira e me distraía conversando durante a aula ou, simplesmente, baixava a cabeça e ficava quieta, até que uma professora, de Matemática, notou meu comportamento e passou a exigir a minha participação, mandou que eu me sentasse na frente e sempre chamava ao quadro e eu ia aos prantos. Mas, hoje, gostaria de agradecer o carinho e a atenção da minha querida professora Lurdinhá, da 3ª série, do Colégio Estadual Presidente Kennedy, em Belford Roxo, no bairro da Piam. A ela, agradeço por não me deixar desistir. Meu pai, com todos esses problemas, perdeu seu pequeno comércio e a casa. Tivemos que nos mudar e sem emprego, ele resolveu deixar minha irmã e eu com a nossa irmã mais velha, que havia se casado há pouco tempo, e ele ficou só com os meninos. Minha irmã, como não tinha condições de ficar com as duas, me mandou para a casa de uma tia e esses Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 111 foram um dos piores momentos de minha infância. Perder minha mãe e ficar longe dos meus irmãos. Mas logo meu pai reestruturou sua vida e encontrou uma companheira que se sensibilizou com a situação dos meninos e ele pôde reunir toda a família novamente. Morando com a tia da minha irmã, pude continuar meus estudos até a 5ª série. Quando retornei à casa de meu pai, fui trabalhar em casa de família, no Leblon, onde meus patrões eram pessoas muito boas. Pude me matricular em um curso noturno, no Colégio Santo Agostinho, e conciliar os afazeres domésticos, os passeios do Fritz, um “chinalzesr” lindo, de manhã e, à tarde, a escola noturna. Terminei meu Ensino Fundamental na Escola Municipal Percy Batista Crispin, no bairro Jardim Tropical, em Nova Iguaçu, onde descobri meu primeiro amor e professores maravilhosos, que muito me ajudaram. Na época, era muito difícil encontrar uma escola pública para cursar o Ensino Médio, sem que tivesse que fazer concurso, então resolvi fazer o Instituto de Educação de Nova Iguaçu, mas infelizmente não consegui. Fiquei muito frustrada e até pensei em desistir, fiquei sem estudar por algum tempo, mas tudo que fazia, para mim, não era o suficiente, sempre sentia que algo estava faltando. Lembro que a filha do meu padrinho era chefe de uma firma de limpeza e estava trabalhando na UFRJ, ela arrumou uma vaga para eu ir trabalhar com ela. Fiquei muito animada, foi a primeira vez que pisei em uma universidade, fiquei de boca aberta, tantos jovens, todo aquele ambiente acadêmico, é nítido na minha mente as maquetes que vi na sala de arquitetura, os alunos de belas artes desenhavam uma modelo vivo, era uma negra linda que estava totalmente nua. Fiquei muito impressionada e, naquele momento, decidi a minha vida, o caminho que eu queria seguir a partir dali. Foi claro na minha cabeça que não era daquela maneira que eu queria pisar na universidade, atrás de um esfregão e de um balde, mas sim atrás de uma carteira de aula, fazendo parte do corpo discente. Aquele era o meu lugar e foi o primeiro e o último dia em que pisei em uma universidade como auxiliar de serviços gerais, e esse dia, determinou todos os outros dias de minha vida. Retomei meus estudos, meu primeiro passo foi me inscrever na Escola Técnica João Luiz do Nascimento, no Centro de Nova Iguaçu. A partir da inscrição, que fora seis meses antes das provas, estudei de dia e de noite, recolhi todo material possível, provas anteriores, livros, conversei com pessoas que já tinham feito a prova. E, no dia da prova, fui com muita confiança, aguardei o resultado e não deu outra... meu nome foi um dos primeiros da lista dos aprovados, para a turma do 1º ano do Ensino Médio no curso de Técnico de Administração do ano seguinte e, daí por diante, passei a acreditar que tudo na vida era possível, bastava querer e acreditar. Essa vitória eu agradeço ao meu pai e a sua companheira, que me deram muito incentivo e acreditaram em mim. Fui a primeira da minha família a concluir o Ensino Médio e em uma escola técnica, o que trouxe muito orgulho para o meu querido pai. No último ano do curso, procurei logo um pré-vestibular comunitário, já tinha há muito ouvido falar do pré para negros e carentes, organizado pelo Frei David, em São João Meriti. Fui aceita e consegui uma vaga no CIEP de São João, que funcionava aos sábados e domingos das 8 às 19 horas. Mas logo descobri que estava grávida, o que não me desanimou, ao contrário, só me deu mais força e coragem para continuar. Quando concluí o Ensino Médio, estava com sete meses, dona de uma barriga imensa e todos brincavam dizendo que eu iria receber dois diplomas, um para mim e o outro para o bebê. Meus planos de ir para a universidade tiveram que esperar um pouco, pois agora eu não era mais sozinha, não podia mais pensar só em mim, resolvi esperar o meu filho crescer um pouco para continuar a perseguir o meu ideal. 112 Caminhadas de universitários de origem popular Tudo correu bem. Quando meu bebê fez quatro anos, pensei, agora já posso prosseguir, e me dividi entre o trabalho, meu filho e o pré-vestibular comunitário PVNC (Pré-Vestibular par Negros e Carentes), na Posse, onde passei por um processo de seleção e, mais uma vez, consegui. Agora, tendo passado algum tempo, minha cabeça mudou, o curso que eu pensava fazer já não fazia mais sentido para mim. No ano de 2003, quando iniciei o pré da Posse, resolvi só estudar para fazer uma revisão das matérias, sem me preocupar em prestar o vestibular, pois estava muito confusa a respeito do curso que iria escolher. Lá conheci muitas pessoas e professores que me ajudaram muito nessa decisão, esses momentos que passei no pré foram muito importantes, senti que realmente fazia parte de alguma coisa e ali todos se uniam em prol de um ideal. O pré exigia muito dos alunos, eram aulas de 2ª a 6ª feira, das 18 às 22 horas, sábado, de 7 às 19 horas, e domingo, das 7 às 12 horas, as aulas eram exaustivas, mas necessárias. Acabei mudando de idéia e, por empolgação, me inscrevi para alguns vestibulares, movida pela curiosidade de saber como era fazer um prova de vestibular, sensação que nunca tinha experimentado. Mas foi só no ano de 2004, mesmo passando por vários problemas e contando com o apoio dos professores – Karina (História Geral), Marcos (Redação), Leandro (Geografia), o coordenador Vagner, Cristiane (Química), minha amiga Lívia e muitos outros, que consegui ser aprovada em duas universidades federais, o que me deixou muito feliz. Optei em me matricular no curso de Museologia da UNIRIO, com o qual me identifiquei muito com as disciplinas oferecidas. Hoje, curso o 4º período, extremamente satisfeita com a escolha que fiz em minha vida e com três motivos a mais para prosseguir, um deles é o meu filho Leonardo, que hoje tem nove anos e se espelha muito em mim. Espero deixar um bom exemplo de vida para ele e que um dia ele possa se orgulhar da mãe que tem e que ele possa sempre contar comigo. O segundo motivo é recuperar a memória de minha mãe, desenvolvendo uma pesquisa que valorize as origens e os costumes de imigrantes como ela e meu que ajudaram a construir esse país, mas que fazem parte de uma minoria discriminada e marginalizada. E o terceiro e último é dar um retorno para a minha comunidade, que eu possa estar ajudando de alguma forma, acredito que todo universitário tem uma obrigação social, não basta se formar, colocar o diploma embaixo do braço e tchau! Temos que dar um retorno, sim, desenvolvendo trabalhos sociais que possa ajudar e informar, pois são projetos sociais que vão diminuir o índice de violência no nosso país. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 113 Minha trajetória de vida Marília Amaral Pepicon * Tentar e falhar é, pelo menos, aprender. Não chegar a tentar é sofrer a inestimável perda do que poderia ter sido. Geraldo Eustáquio Um resumo da minha trajetória de vida Desde os 10 anos, sempre tive um sonho: fazer Medicina em uma universidade pública. Ficava encantada quando ia a um consultório médico, sempre imaginava como seria o meu consultório, queria ser ginecologista e obstetra. Fiz vários planejamentos para meu futuro, mas alguns tiveram que sofrer modificações ao longo da minha trajetória de vida sendo adequados à minha realidade. Meus pais, apesar de todas as dificuldades encontradas pelo caminho, sempre investiram na educação de seus filhos (meu irmão e eu). Afirmam que essa é a melhor herança que podem deixar sem a preocupação de um dia alguém tomá-la. Sempre estudei em escola particular, pensávamos que o ensino teria uma qualidade melhor e que seria uma boa escolha para a preparação do ingresso à universidade. No entanto, a escola acabou oferecendo muitos gastos e o ensino não preparava tão bem assim como se pensava, deixando muito a desejar. Na instituição em que cursei o Ensino Médio, havia a possibilidade de realizá-lo juntamente com um curso profissionalizante. Optei pelo curso técnico de Enfermagem, queria conhecer melhor a área de saúde e ver se era realmente o caminho profissional a ser seguido. Tive a oportunidade de estagiar em vários hospitais e obter a confirmação de que iria prestar vestibular para Medicina, como sempre havia planejado. Após terminar o Ensino Médio, prestei dois anos de vestibular para o curso de Medicina, porém foram tentativas sem sucesso. Na terceira tentativa, resolvi optar pelo curso de Enfermagem, na UERJ e UNIRIO, e Medicina, na UFF e UFRJ. Queria muito ingressar na universidade pública, não importando se a aprovação seria para a minha primeira opção. Estaria muito feliz com a aprovação em Enfermagem, uma vez que já conhecia um pouco da profissão. Havia um sentimento de insegurança muito grande dentro de mim, não queria olhar os resultados e foi através de uma amiga que fiquei sabendo que havia sido aprovada em nono lugar para UERJ e, depois, fiquei muito feliz por conquistar o primeiro lugar no vestibular da UNIRIO, onde atualmente estudo. * Graduanda em Medicina pela UNIRIO. 114 Caminhadas de universitários de origem popular Para recompensar os esforços dos meus pais, dou o melhor de mim, sendo dedicada com os estudos e tendo o reconhecimento de boa aluna. Você leitor(a) deve estar fazendo o seguinte comentário: “uma médica frustrada que rouba a cena de uma enfermeira bem-sucedida! Está cursando Enfermagem por causa do fracasso na Medicina!” Essa segunda frase está correta, sim, e isso não é ruim, pois o curso de Enfermagem me conquistou e conquista cada vez mais mostrando novos olhares e caminhos sobre a área da saúde. Admiro muito a profissão, mas não me sinto totalmente realizada, pois não foi o que havia planejado, desde a infância, para mim. Pretendo me formar e exercer com muito carinho e dedicação a profissão de enfermeira, uma profissão tão digna e bonita, mas que infelizmente não é muito bem vista por alguns. No entanto, assim que tiver oportunidade, farei o curso que tanto sonho, pois acredito que nunca é tarde para realizar minha grande conquista. Considero-me uma pessoa determinada que luta para alcançar seus objetivos e assim pretendo continuar nessa caminhada. Na universidade, conheci uma pessoa muito especial, meu namorado Lellis Hummenigg Cremonez Taveira, um grande amigo e companheiro, com quem pretendo construir um futuro. Foi através dele que fiquei sabendo sobre o Programa Conexões de Saberes, uma oportunidade que só tem a influenciar de maneira positiva no meu percurso acadêmico, pois permitiu investir melhor na minha formação ao possibilitar a aquisição de material didático, realização de cursos extracurriculares, um auxílio nas despesas com passagem e alimentação (uma grande ajuda de custo) e, principalmente, adquirir uma bagagem intelectual que contribui na minha formação de cidadã. A respeito da minha família, meu pai vem de uma família humilde que sempre teve muitas dificuldades, mas também procurava investir em educação, na medida do possível. Todos os quatro filhos finalizaram o Ensino Médio e depois cada um optou por fazer um curso técnico. Atualmente, papai tem a formação de projetista e trabalha junto ao desenvolvimento de plantas de prédios, casas, entre outros projetos. Minha mãe também vem de uma família de origem humilde, morava no Espírito Santo, numa cidade do interior chamada Apiacá. Depois, as condições foram melhorando e, na sua adolescência, mudou-se com a família para Volta Redonda. Começou a trabalhar com 13 anos fazendo roupas de crochê para vender, aos 18 foi trabalhar como vendedora em uma loja de material eletrônico e, por último, em um escritório de administração. Com seus esforços, começou a fazer uma faculdade particular onde cursava Biologia, mas os gastos ficaram pesados e não deu prosseguimento aos estudos. Tenho muito orgulho da minha família e gostaria de retribuir aos meus pais tudo o que fizeram e fazem para me ajudar a vencer. Sei que, quando conseguir alcançar os meus objetivos, pessoais e profissionais, terão certeza da eficiência de seus esforços. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 115 Entre quedas, lutas e desafios: o doce sabor da vitória! Melanie Pimenta * Eu vou dizer porque o mundo é assim, poderia ser melhor, mas ele é tão ruim. Tempos difíceis, está difícil viver, procuramos um motivo vivo, mas ninguém sabe dizer. Milhões de pessoas boas morrem de fome, o culpado, o condenado disto é o próprio homem. Racionais MC’ S – Edy Rock; KLJ Posso dizer que tive uma infância feliz, porém marcada por algumas situações difíceis, que permearam toda a minha trajetória educacional e a minha árdua, mas vitoriosa, caminhada até a universidade pública. Quando tinha apenas três anos de idade, meus pais se divorciaram. Meu pai resolvera constituir outra família. Meu pai começara um negócio. Tinha uma fábrica de bolsas e mochilas jeans que nos dava certa comodidade financeira e foi erguida com muito esforço de meus pais. Vivíamos em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, cidade onde fui criada, apesar de ter nascido em Vitória, no Espírito Santo, onde meu pai (cearense) e minha mãe (mineira de Timóteo) viveram por, aproximadamente, um ano, até pouco tempo após o meu nascimento. Minha mãe e eu nos mudamos para um apartamento onde morávamos apenas nós duas. Ela trabalhava para nos manter, visto que meu pai não colaborava financeiramente e tia Leca – personagem fundamental em toda minha caminhada – ajudava a pagar o aluguel. Em minha infância, estudei em duas escolas pequenas de educação infantil, das quais não me recordo bem, uma se chamava Meus Primeiros Passos, mas lembro que estudara em uma escola de artes que gostava muito. Aos quatro anos de idade, mudei de escola, enfim, para um colégio maior, particular e tradicional de Belo Horizonte. Como meu pai se recusava a nos ajudar financeiramente teve que aceitar judicialmente custear meus estudos e tudo o que dizia respeito a ele como transporte escolar, material didático, lanche, uniforme etc. Bem, diante dessas circunstâncias, mamãe fez questão de exigir, então, uma educação de qualidade. * Graduanda em Pedagogia pela UNIRIO. 116 Caminhadas de universitários de origem popular O ensino era forte e a escola era muito boa, mas, desde o início, sentia-me um tanto deslocada. Não fazia parte daquele mundo onde as pessoas não tinham problemas financeiros. Sofri muito preconceito (talvez discriminação) por ser “diferente” das demais crianças. Por possuir vitiligo, doença que apresenta “manchas” que, na realidade, são a despigmentação de determinadas regiões da pele, meus colegas zombavam muito de mim causando certo incômodo. A doença manifestou-se ainda em minha infância, fora reflexo da traumática separação dos meus pais. Nesse momento, aos cinco anos de idade, minha mãe já estava casada com Amaro e minha irmã Thaís havia nascido logo após nos mudarmos para um pequeno apartamento na Cidade Nova, onde vivíamos modestamente. Enquanto mamãe e Amaro trabalhavam, Thaís ficava com a empregada ou com a avó paterna e eu ia para a escola, onde me “refugiava” nos estudos. Nos finais de semana, costumava passear com a tia Leca, minha tia e madrinha que muito estimo, e íamos ao teatro, cinema, feiras, shoppings e eu fazia a tão esperada “programação cultural” que alegrava e divertia minha vida. Tia Leca era solteira, não tinha filhos e ainda morava com minha avó materna e eu era a sobrinha “predileta”, como diziam na família. Às vezes, passava os finais de semana com meu pai e sua então esposa e viajava com eles nas férias. Vale lembrar que o poder aquisitivo de meu pai naquela época era muito superior ao de minha mãe e sua condição era bem mais confortável. Cabe ressaltar, também, que em minhas brincadeiras, quando criança, eu sempre brincava de “escolinha”, representando a professora, o que, como veremos adiante, reflete em minha vida atual. A escola Sempre fui uma boa aluna, estudiosa, meio C.D.F.. Gostava de ler e estudar e sentia prazer ao fazê-lo. As disciplinas de ciências humanas e sociais sempre me atraíram mais, enquanto sentia certa repulsa pelas ciências exatas. Quando tinha seis anos de idade, tia Leca me dera uma coleção de livros no Natal. Eram seis ou oito livros coloridos que contavam a estória da Rainbow Brite e seus amigos que tinham as cores do arco-íris. Fiquei maravilhada com a beleza e vivacidade que o livro apresentava com tantas cores. Eles eram, a partir de então, meu melhor “entretenimento”. Lia, relia, lia e os relia novamente e o fazia incessantemente. Eram livros “mágicos” e eu me imaginava naquele mundo perfeito de cores e magia, sem problemas e sofrimento. Um pequeno, mas importante, detalhe é que eu ainda estava em fase de alfabetização e acabei me forçando a aprender a ler para poder entender tudo o que havia naqueles livros. Desde então, tomei gosto pela leitura e passei a ler com freqüência – mesmo porque o colégio exigia a leitura de oito livros de literatura infanto-juvenil a cada ano – e fazer disso um hábito. Alguns problemas de ordem familiar acabaram por influenciar negativamente em minha formação escolar. Meu pai nunca comprava meu material na época certa e eu chegava a ficar até dois ou três meses sem. Os colegas zombavam disso, pois, em uma escola particular desse nível, no primeiro dia de aula estavam todos com o material completo. Muitas vezes, após incansáveis ligações e pedidos meus e de minha mãe, acabávamos desistindo e tia Leca intervinha e efetuava a compra do material, solucionando, então, o problema. Esse e outros fatos como não poder participar de certos passeios oferecidos pela escola por questões financeiras me causaram certo “trauma”. Sem contar o preconceito sofrido pelo vitiligo, que persistia. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 117 Minha adolescência Aos 11 anos, morávamos, eu, mamãe, Amaro, Thaís e meu irmão caçula Mário (nascido um ano e meio após Thaís, enquanto, paralelamente, nasceu a Fabíola, filha mais nova de meu pai) em um apartamento no bairro Serra, em Belo Horizonte. Mamãe trabalhava em dois, três até quatro empregos e Amaro agora era policial civil. Era necessário muito esforço e muito trabalho para que eles pudessem sustentar três filhos sem a ajuda financeira de meu pai, que, apesar de custear os estudos, exigia certo sacrifício de minha mãe para a manutenção na escola. Meu colégio não condizia com a minha realidade social e financeira, que era de dificuldades e de luta. Nunca nos faltou nada e minha mãe, apesar de passar maior parte do tempo fora, nos deu uma boa educação, mesmo que à sua maneira. Nessa época, após tanto sofrimento com aluguel, mudanças, fiador, mamãe decidiu construir uma casa – mesmo sendo considerada completamente maluca, pois diziam que levantar uma casa não era tarefa fácil – em um terreno herdado de meu padrasto e que estava em desuso. Fomos morar com minha avó materna, Vovó Rita, a quem muito estimo e sempre esteve presente em nossa vida ajudando no que podia (e o faz até hoje) para que pudéssemos economizar para a construção da “nossa” casa. Ficamos lá por pouco mais de um ano, eu, minha mãe e meus irmãos maternos, praticamente morando em um quarto onde dormíamos “apertadinhos”. A vantagem, para mim, era estar perto da tia Leca, que ainda morava nessa casa com minha avó. O apartamento era próximo à minha escola, podia ir a pé e tia Leca arcava com o custo de lanches e determinados materiais didáticos. Minha mãe e Amaro davam início ao lento e conturbado processo de separação. A casa ficou pronta, se é que posso dizer isso, pois ainda estava por fazer, estava no reboco, não tinha vidros nas janelas, muro, piso na entrada, além da enorme quantidade de entulho que ainda existia no local. A casa é no bairro Esplanada, local pouco conhecido na zona leste de Belo Horizonte. Pouco tempo após a mudança, Amaro e minha mãe se divorciaram. Meu pai faliu e perdera seu último comércio, um restaurante. Por ser alcoólatra, acabou perdendo tudo o que tinha por má administração e excessos alcoólicos. Tive que sair do colégio às pressas e sofri muito porque agora já me sentia parte daquele lugar, pois estudara lá por muitos anos. Eu estava com 13 anos e tia Leca pagou uma escola particular bem mais simples e modesta que a anterior para que eu pudesse concluir o Ensino Fundamental sem perder o ano. A escola se chama Frederico Ozanan e não tinha um ensino muito bom como eu estava habituada. Toda a matéria da 8ª série eu já tinha visto na 7ª. Neste ano, tia Leca arcou com todas as despesas do colégio. No ano seguinte, prestei concurso para o CEFET de Belo Horizonte, buscando um Ensino Médio de qualidade e que, ao mesmo tempo, fosse profissionalizante, mas não fui aprovada. De última hora, pois esperava entrar para o CEFET, consegui uma vaga em uma escola estadual de Ensino Médio em Santa Tereza, bairro próximo à minha casa. O ensino dessa escola era precário e não me lembro do nome nem de muita coisa relativo a ela. Mal tínhamos professores, aula, bem como papel para fazer prova ou trabalhos. Não lembro de ter aprendido muita coisa, apenas que eu jogava vôlei a maior parte do tempo, devido à falta de professores. Nessa mesma época, meu padrasto faleceu após sofrer um acidente de moto. Minha mãe e meus irmãos, que eram muito novos na época, ficaram muito tristes. Com isso, a situação econômica ficou mais difícil. Apenas meus irmãos recebiam pensão e a quantia era insuficiente para cobrir as despesas da casa. Minha mãe havia perdido há pouco tempo um 118 Caminhadas de universitários de origem popular bom emprego no Estado e começou a fazer da venda de roupas e acessórios femininos – que era uma atividade extra – o seu trabalho efetivo. Eu cuidava da casa e dos meus irmãos para que ela pudesse trabalhar. Levava e buscava-os na escola e era responsável pelos afazeres domésticos. À tarde, tínhamos um horário de estudo e eu ensinava-lhes o dever, trabalhos, entre outros. Minha mãe não tinha tempo para se preocupar com isso e, como eu tinha esse hábito, tentei transmiti-lo aos meus irmãos. No 2° ano do Ensino Médio, fui para outra escola estadual, Maestro Villa-Lobos, situada na zona sul de Belo Horizonte, bem melhor e com o ensino mais forte. Eu e mais duas amigas conseguimos as vagas através de uma professora de Química que lecionava nas duas escolas e nos indicou como sobrinhas dela, já que o ingresso nesse colégio não era tarefa fácil. O vestibular No 3° ano, ainda estudando no “Lobão”, como chamávamos carinhosamente a escola, tia Leca pagou um cursinho pré-vestibular extensivo (durante todo o ano) para que eu pudesse me preparar para o vestibular. Ela queria que eu cursasse o Ensino Superior, o que ela não havia feito (como todos da minha família) por ter feito um curso técnico que a possibilitou ter uma melhor remuneração no trabalho, mas não era o que gostaria de ter feito. Estudava de manhã na escola e ia a pé até a casa de minha avó no centro da cidade onde almoçava para ir ao pré-vestibular à tarde. À noite, não dispunha de tempo para estudar, pois tinha que dar conta das tarefas domésticas, que eram divididas entre minha mãe e eu e, mesmo assim, ficávamos sobrecarregadas. Meu sonho era poder ingressar em uma universidade federal. Meu pai possui apenas a 5ª série do Ensino Fundamental e minha mãe conseguiu concluir o Ensino Médio pagando seus estudos, ou seja, eu seria a primeira da família toda a ingressar um uma IFES, apenas um primo havia se formado e em uma faculdade particular. Devido à deficiência do meu Ensino Médio, não fui aprovada em nenhum dos vestibulares prestados para Ciências Biológicas e Nutrição na UFMG1, UFOP2, UFV3. No meio do ano seguinte, tia Leca e seu esposo Paulo conversaram com minha mãe para que eu pudesse morar com eles em Lagoa Santa, a fim de me dedicar exclusivamente aos estudos e à preparação para os vestibulares. Eles não admitiam que meu futuro fosse ser uma dona de casa (muito comum nas cidades mineiras) ou que tivesse que interromper os estudos para trabalhar e ajudar nas despesas da casa, como minha mãe almejava, alegando que “pobre não estuda, trabalha. Universidade é coisa para rico e que, apesar de eu ter estudado em um colégio deste tipo, essa não era a minha realidade”. Mesmo com muitas controvérsias e desavenças, minha mãe aceitou. Paulo e tia Leca foram peças-chave para meu sucesso. Ele é um homem formado no Ensino Superior e muito sábio. Aconselhava-me sobre a forma de estudar, falava sobre determinação e relatava suas incríveis estórias de universidade e como professor universitário na UFOP. Eles ficaram responsáveis por toda a minha despesa nesse período: cursinho, aulas particulares, alimentação, transporte etc. 1 2 3 Universidade Federal de Minas Gerais Universidade Federal de Ouro Preto Universidade Federal de Viçosa Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 119 Eu acordava às 7 horas da manhã com meu Tio Paulo dizendo: – Acoooooooooooooooorda, Melaniiiiiiiiiiiiiiiiie!!! Seu concorrente está estudando desde as 5 horas da manhã! – e assim brincava comigo. Eu corria ou andava de bicicleta em volta da lagoa da cidade e iniciava os estudos às 8 horas e só interrompia para as refeições. Às 17 horas, eu ia para o pré-vestibular em Pedro Leopoldo, cidadezinha vizinha. Estudava muito, mas, no tão esperado dia do vestibular, tive uma desavença com minha mãe e fui em prantos fazer a prova. Devido a esse fato, não tive condições psicológicas de realizar a prova e acabei não sendo classificada mais uma vez. Havia prestado vestibular para uma faculdade particular que, por sinal, era o colégio em que estudara por muitos anos. Fui aprovada e chorei por não ter condições de pagar a mensalidade. Eu queria estudar e não podia. Tia Leca não poderia bancar mais um ano de curso. A faculdade Consegui um emprego como pesquisadora de mercado e, assim, pude cursar um ano de Ciências Biológicas – Licenciatura, no Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix. Tia Leca e Paulo contribuíam com 1/3 da mensalidade. Trabalhava muito durante o dia e fazia o curso à noite. Morava com meu pai nessa época, devido a alguns problemas com minha mãe e meus irmãos. Estava complicado morar com minha mãe sem colaborar com as despesas da casa e não prover de tempo para, ao menos, ajudar nas tarefas domésticas. Minha família, com certa razão, queixava-se dessa situação e, então, fui morar com meu pai (agora divorciado) em um apartamento simples. Ele estava dando início a um novo negócio e não ganhava muito, mas o suficiente para nos manter modestamente. Foi uma experiência importante, meu contato com meu pai na infância se restringia aos finais de semana e algumas viagens de férias. Meu pai, com seus altos e baixos, começou a beber muito e faliu novamente. Fui morar com uma amiga, Marcela, que, coincidentemente, havia estudado comigo no Ensino Médio e agora éramos da mesma classe da faculdade. Nessa época, estreitamos mais as relações de amizade, que perduram até os dias de hoje, mesmo com a distância. Sua mãe fazia o doutorado e, ao viajar para a Austrália, pediu que eu ficasse em sua casa com Marcela e sua irmã Paula, para ajudar no funcionamento estrutural e administrativo do lar e em sua pesquisa que seria realizada também no Brasil. Após concluir um ano de curso, tive que trancar a faculdade, a despesa era muito alta e, mesmo trabalhando bastante, estava ficando inviável dar continuidade aos estudos. De qualquer forma, não estava me interessando tanto pelo curso, gostava das matérias da Licenciatura. Voltei a morar com minha mãe por, aproximadamente, quatro meses. Movimento rap e eletrônico Aos 14 anos, meu irmão mais velho, Serginho, filho do primeiro casamento de meu pai, o qual somos muito próximos e companheiros, começou a promover festas de “Rap e Hip Hop”. Era um movimento novo e pequeno onde tive contato desde skatistas moradores da zona sul a moradores de comunidades populares, em sua maioria negros. Comecei a fazer parte desse movimento que despertou em mim maior consciência sobre a situação social e as diferenças econômicas e raciais em que vivemos. 120 Caminhadas de universitários de origem popular Paralelamente, tive contato e imediata paixão pelo novo mundo da música eletrônica. Me infiltrei nesse meio de atores da sociedade intelectual pensante ou elite. Apesar de não condizer, mais uma vez, com o nível socioeconômico do grupo, decidi ser DJ (Disc-Jóquei). Um grande desafio, por ser mulher e de origem popular. Não dispunha de dinheiro para a compra de equipamentos de discotecagem e CDs. Comecei a tocar com a ajuda de minha amiga Marcela, que me ajudava com as pesquisas musicais na Internet (em sua casa). À medida que comecei a receber pela atividade, pude investir em CDs para o meu repertório de Lounge Music, estilo ainda pouco difundido no Brasil. Nessa época, viajei muito, financiada pelos promotores de eventos que me contratavam para apresentação de discotecagem, e os cachês eram suficientes para minhas despesas pessoais. Apresentei-me em festas de todo o Brasil e trabalhava ao mesmo tempo em que me divertia. Nesse universo, tive contato com pessoas que tinham acesso à determinados bens culturais, ainda restrita à minoria, como arte, teatro, cinema, música e literatura, que me garantiram o capital cultural. À medida que me tornava conhecida e me afirmava na profissão de DJ, fui ganhando respeito e visibilidade pelos colegas de trabalho e promotores de eventos. Atribuo à minha situação financeira, que me impede de investir mais nessa área, o fator determinante para a descontinuidade e certa estabilização da atividade. Gostaria de investir mais nessa profissão, mas acabo me vendo impossibilitada de continuar por falta de recursos. Como já dizia a minha mãe: “Isso é coisa de rico, não é pra você”, apesar de hoje em dia ela se orgulhar do meu pouco, mas existente, sucesso. Cidade maravilhosa Devido às minhas viagens e ao intercâmbio com as pessoas da cena de música eletrônica no Brasil, comecei a namorar um garoto do Rio de Janeiro. Viajava sempre para cá e ele para Belo Horizonte. Em uma dessas minhas viagens ao Rio, acabei ficando por aqui. Não conseguia emprego fixo em Belo Horizonte e minhas expectativas quanto ao ingresso em uma universidade federal eram mínimas. Julguei ter uma possibilidade de crescimento profissional e financeiro aqui. Morei em repúblicas, dividi a casa com amigos, trabalhei em empregos que me remuneravam vergonhosamente e me exploravam; discotecava, fazia free-lance e ia levando, mesmo que aos trancos e barrancos, minha humilde, mas alegre vida no Rio de Janeiro. Passei dificuldades financeiras, mas não dizia à minha família. Acabava dando um jeito em tudo e sempre me virava. Certo dia, decidi prestar vestibular novamente. Meu então namorado Bruno me encorajou, dizendo que eu tinha plena capacidade de ser aprovada, mesmo eu não concordando com isso. Foi então que surgiu a dúvida que já existia há dois anos – período no qual eu fiquei sem estudar – de fazer Pedagogia ou Comunicação. Optei pela primeira, pois não queria ser jornalista ou publicitária (apesar de ter uma forte queda pela Comunicação Social), queria ser uma educadora. Minha família já dizia que eu tinha vocação e comprovei a “tese” ao me interessar pelas disciplinas da Licenciatura na primeira faculdade em Belo Horizonte. Fiz somente o vestibular da UNIRIO, pois já havia perdido as inscrições das outras IFES. Considerava essa prova como um teste para saber se havia necessidade de cursar um pré-vestibular (o que seria impossível por questões financeiras) ou estudar em casa. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 121 No fim das contas, acabei sendo aprovada. Fiz a prova com tanta tranqüilidade por não ter mais aquela “obrigação” de passar que me recordei de coisas que não imaginava que lembrava. E entrei, finalmente, para a universidade federal, aos 22 anos, entre quedas, lutas e desafios que me dão o sabor da vitória de ingressar na tão sonhada Instituição Federal de Ensino Superior. Mesmo estando sozinha no Rio de Janeiro, sem ajuda dos meus pais (minha família ainda está em Minas Gerais), mas contando com a ajuda de amigos e familiares, ocupo hoje um lugar que poucos estudantes de origem popular alcançam e posso dizer que, após essa enorme batalha, consigo, atualmente, fazer o curso que amo e da forma como eu queria. Todavia, a estória não termina por aí. Quando fui me matricular no curso de Pedagogia, me encontrava desempregada devido a uma tendinite que me impossibilitou de continuar trabalhando como operadora de telemarketing. Então, veio o desespero de ser aprovada na universidade e não poder cursá-la por falta de dinheiro e dificuldades de conseguir emprego. Fui morar de favor com três amigos, em Botafogo, até conseguir um trabalho. Tia Leca, tio Cláudio, tia Deinha e vovó Rita se juntaram pra enviar algum dinheiro durante dois meses, enquanto eu estava desempregada. Foi um período muito difícil, eu chorava em sala de aula diante dessa situação desesperadora em que me encontrava mais uma vez, eu queria estudar e talvez tivesse que interromper novamente os estudos. A possibilidade de ter de deixar a universidade me assombrava. Alguns professores incentivavam e me davam as cópias dos textos para que eu pudesse estudar para as provas. Mesmo estando em depressão clinicamente diagnosticada, ainda conseguia me concentrar nos estudos e a cada dia ficava mais maravilhada com tudo que ia aprendendo na Pedagogia. Definitivamente era o que eu queria. Havia encontrado a minha vocação e me sentia realizada. Consegui um emprego em uma escola de informática, fui a selecionada entre 40 pessoas. Até o semestre passado, esse emprego me possibilitou permanecer na universidade e pagar todas as minhas despesas, sozinha, inclusive a de aluguel. Vovó Rita e tia Leca continuaram enviando uma pequena quantia mensal para ajudar no pagamento de transporte e textos da universidade. Com a entrada no Conexões, optei por deixar o trabalho e ter uma renda menor, mas dedicando-me àquilo que tenho prazer em fazer, que é estudar e lutar por uma sociedade igualitária. Ainda não consigo me manter exclusivamente com a bolsa do Programa, mas isso não é um problema desde que eu tenha força e saúde como tive até hoje para trabalhar e unir rendas de estágios, free-lance, etc., para ir me mantendo no curso. Com o pouco tempo que me resta para estudar, procuro dedicar-me para que eu consiga, ainda, alcançar o Mestrado, Doutorado e tudo o mais que for possível. Tenho o sonho de ver meus irmãos mais novos em uma universidade pública, mas sei que não será fácil. Algumas situações, ao menos, foram modificadas. Meu pai parou de beber há dois anos e, com apenas a 5ª série, mas muita criatividade e empreendedorismo, reergueu-se e consegue viver apesar de não poder me auxiliar financeiramente. Meu irmão mais velho não visa terminar o Ensino Médio, muito menos o Ensino Superior, mas com muito trabalho conseguiu comprar seu próprio táxi. E minha mãe hoje diz: “Se Deus quiser, eu verei todos os meus filhos formados no Ensino Superior”. 122 Caminhadas de universitários de origem popular Conexões de Saberes e Escola Aberta Quando conheci, através de meu então professor e atual coordenador, o Programa Conexões de Saberes, vi ali uma possibilidade de me dedicar exclusivamente aos estudos e à pesquisa (o trabalho na escola de informática me tomava todo o dia e eu não dispunha de muito tempo para estudar e participar de pesquisas e seminários, o horário de estudo se dava no metrô, madrugadas e domingos). Além de poder ajudar, através da parceria do Programa Escola Aberta, outras pessoas que, assim como eu, almejam ocupar o espaço das Instituições Federais de Ensino Superior – ainda excludentes – e, que na maioria das vezes, não têm condições ou, até mesmo, força de vontade para lutar para isso. Agora como bolsista do Conexões de Saberes, podemos nos afirmar como um grupo de Estudantes de Origem Popular que ocupam e dividem os mesmos espaços da universidade que outrora eram destinados somente à minoria dos estudantes, em sua maior parte, burgueses. Através da parceira do Conexões de Saberes com o Programa Escola Aberta, nós bolsistas levamos, a crianças e jovens – que, assim como eu e muitos outros, vivem diante da deplorável situação econômica existente em nosso país que tem suas bases na exploração que se perpetua da colonização até os dia de hoje –, a possibilidade do ingresso em uma universidade pública. Nossa atuação em algumas escolas municipais com crianças de comunidades populares do Rio de Janeiro, mesmo que minimamente, é fundamental para a conscientização desses indivíduos sobre a sociedade injusta em que vivemos e as suas potencialidades para reverter tal situação. Somente nós podemos mudar essa triste realidade e, por meio da educação, mesmo não sendo a única ferramenta, podemos chegar, ainda, ao “país ideal”. Em minha concepção, estamos muito distantes dessa aspiração a que todos tenham os mesmos direitos e usufruam os meios de ingressar em uma universidade pública, bem como se manter nela, e que isso não seja a exceção. Para tal, não deve existir tanta luta e dificuldade, TODOS devem ocupar o seu espaço na universidade de forma justa e, nos afirmando como um grupo minoritário, mas potente e resistente, podemos, quem sabe, realizar esse sonho. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 123 Minha vida Milena Martins Medina * Família Bem, antes de começar esse memorial, gostaria primeiro de agradecer a Deus, por todas as graças que recebi, e agradecer a meus pais Francisca e Pimentel, que deixaram de construir uma vida confortável, pois sempre prezaram pelos meus estudos e os da minha irmã Louise. Hoje, o que sou devo a eles, à minha irmã, a meu namorado Thiago Elias Gomes, que esteve presente nos momentos mais importantes e difíceis da minha vida, sempre me apoiando e me fazendo muito feliz. Aos meus amigos, Davi, Cris, Jéssica, Renata Dantas, Leidy e outros, que, muitas vezes, foram a base da minha vida. Minha família passou por momentos difíceis e o mais marcante foi o roubo do carro e dos instrumentos de trabalho do meu pai, na véspera em que eu ia fazer a prova discursiva da UNIRIO. Foi horrível, meu pai ligou para casa, nervoso, e nos deu a notícia de que fora assaltado, ficamos toda a madrugada de sábado para domingo acordados esperando meu pai chegar, pois ele tinha ido à delegacia fazer o Boletim de Ocorrência. Minha família tinha ficado muito abalada, pois o carro não estava no seguro e ainda faltavam prestações a pagar, sem contar com as ferramentas que meu pai usava no trabalho. Eu também estava abalada e tinha até decidido não fazer a prova da UNIRIO, mas acabei fazendo a prova sem ter dormido por conta do ocorrido. Fiz a prova muito bem, sem encontrar muitas dificuldades e, no final, disse para minha mãe: “Mãe, fica calma que uma vaga é minha”. Naquele domingo, Deus me carregou no colo. Amigos Nessa parte do memorial, gostaria de lembrar dos meus amigos da infância, como a Leidy, a Jéssica, minha irmã; da adolescência, como a Leidy, a Jéssica, minha irmã, o Davi, a Cris, a Renata Dantas, o Dervelin; e meus amigos da juventude, como meu noivo Thiago, minha irmã, a Leidy, a Cris, o Davi, a Renata Dantas, a Jéssica, a Angélica, a Gabi, a Louíse e a Flora. Queria ressaltar que eu sou feliz e forte, pois tenho amigos como vocês, que foram essenciais e, como dizem, “quem tem amigo, tem um tesouro”. Quero que lembrem que um amigo de verdade permanece por toda a vida e, sem dúvida, vocês fazem parte da minha * Graduanda em História pela UNIRIO. 124 Caminhadas de universitários de origem popular vida. Meus amigos, vocês vão estar sempre guardados no meu coração e cada um de vocês é responsável pelo sucesso da minha vida. Não agradeço só pelo que sou agora, agradeço pela pessoa que vocês ajudaram a crescer, do fundo do meu coração, obrigada. Infância Eu era uma criança bem levada, brincalhona e muito inteligente, o que não mudou muito. Meus pais queriam que eu me relacionasse com outras crianças e decidiram me matricular na creche, mas, como eu era uma peste, na hora em que eles iam me deixar lá eu armava um escândalo, arrancava os cabelos, chorava o dia todo e, quando eles chegavam, eu estava toda inchada de tanto chorar. Meus pais, com pena, me tiraram da creche e tentaram o método “babá”. Eu deixava todas elas loucas, ninguém me agüentava, mas eu queria mesmo era brincar, então, ia à casa da frente perturbar o seu Raimundo ou gritar por Juliana ou Thiago. Acabamos nos mudando de casa e fomos morar numa avenida, onde passei os momentos mais divertidos da minha infância, com as amigas lá conquistadas. Brincávamos demais e, como os moradores da avenida eram muito animados, festejávamos sempre as festas juninas e outras no decorrer do ano. Aos poucos, as pessoas foram se mudando de lá e nós também fomos. Dessa época, perdura minha amizade com a Leidy, que é como se fosse uma irmã. Logo depois entrei no maternal no Colégio São Francisco de Assis e lá fui me desenvolvendo como aluna. Enfim, entrei, com cinco anos de idade, no Colégio Santo Antônio, uma escola que amo demais e que sempre estará guardada em meu coração. Lá passei longos anos da minha vida, criei amizades, conheci religiões, aprendi a respeitar as diversidades que a vida nos impõe. É uma escola religiosa de irmãs franciscanas, dentre elas gostaria de destacar a Irmã Judith, que sempre esteve a meu lado, assim como acompanhava todos os outros alunos do colégio. Não éramos apenas alunos que pagavam a escola, éramos conhecidos por nossos nomes. Gostaria de lembrar do seu Eliseu, que era responsável pelos jardins do colégio e ficava cuidando de mim enquanto minha mãe demorava a me buscar. A Tânia, que trabalhava na secretaria e me aturava quando sentia cólica ou me machucava na educação física. Lembro-me que eu era muito feliz nessa escola, vivia comendo o cachorro quente de sexta-feira, participava das brincadeiras na hora do recreio, como pular corda, pique pega, adorava as aulas de GRD, dança e handball, com a professora Rosane. Adolescência Minha adolescência foi marcada por várias mudanças, muitas delas complicadas de serem aceitas por mim. A mudança de colégio no Ensino Médio é um ponto-chave. Tive dificuldades de me relacionar com os outros e, por isso, focalizei nos meus estudos. Estudava em horário integral, por ter decidido fazer técnico de informática e, concomitantemente, fazia curso de inglês. Aos poucos, os amigos foram vindo, dentre eles o Davi, a Renata Dantas, a Cristiane, que permanecem na minha vida e foram essenciais na minha caminhada dentro daquele colégio que eu não agüentava. Aquela escola, que, para mim, parecia um tormento, foi se amenizando com a presença dos meus amigos e, pensando bem, até que passamos momentos divertidos. Quem não vai lembrar da hora do almoço na Matriz? E do medo do escuro quando a gente saía do técnico à noite? Das aulas super engraçadas do Nuno no laboratório de química? Do “Ave César” do professor Maurício? Do nosso vovô Gilberto? Até que dá saudade. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 125 Algo que nunca vou esquecer foi o “protesto” que todos os alunos do colégio fizeram porque as madres demitiram seu Antônio, o porteiro. Tudo bem que as madres não voltaram atrás, mas nós, alunos, nos unimos e, tenho certeza, que isso tirou o sono da Irmã Helena, a diretora. O curso de inglês foi uma etapa importante da minha vida. Conheci pessoas divertidas, professores competentes, outros nem tanto, mas, enfim, eu gostava muito de passar minhas manhãs de sábado lá. Com o tempo, as amizades foram criadas dentro do curso, já que todo período a turma era a mesma. A hora do intervalo era super legal, conversávamos sobre nossos estudos, as perspectivas para o futuro, perturbávamos a Carla, que era a moça da secretaria. Só que, quando eu estava no último período do curso, quase tive que parar, pois o curso técnico de informática seria aos sábados, exatamente no mesmo horário do curso de inglês. Ainda bem que o curso de inglês tinha o estudo individualizado e, assim, consegui concluir o curso. Depois tivemos a formatura e percebemos que menos da metade da turma conseguiu se formar. Uma parte chata foi que uma menina muito querida do grupo tinha ficado com anorexia e estava muito mal. Eu queria que ela soubesse que todo o grupo rezou pela saúde dela e espero que hoje ela já tenha se curado. Houve outros momentos marcantes da minha adolescência, como, por exemplo, os meus quinze anos, os quinze anos da minha irmã, minha operação de adenóide… Mais uma vez, valem os agradecimentos aos professores maravilhosos, como Roberto, Maurício, Jorge, Gilberto, Nuno, Andréa. Eles não foram apenas professores que nos passam a matéria e se vão, foram verdadeiros educadores, que me ensinaram para a vida, me mostraram que o que se aprende não termina na sala da aula, vai muito além e, desde cedo, mostraram a realidade de uma vida fora do colégio. Obrigada. Vestibular A época do vestibular é uma época complicada pra qualquer pessoa. Como assim decidir a carreira da minha vida com apenas 17 anos? Mas, enfim, independentemente da profissão por mim escolhida, eu tinha por dever estudar, pois queria passar para uma universidade pública. Essa idéia de fazer faculdade pública surgiu ao mesmo tempo em que percebi que já não era justo meus pais pagarem por mais tempo meus estudos, e queria dar o orgulho a eles de passar numa faculdade pública. Enquanto cursava o terceiro ano, procurava estudar o máximo possível, participava de módulos que eram feitos aos sábados no meu próprio colégio, já que não preparava para o vestibular. Confesso que me dediquei, não tanto quanto deveria, mas me dediquei. O mais complicado era que eu queria passar em Direito, que é uma carreira muito disputada. Não obtive êxito. Aí, entra minha fase de desânimo, vergonha perante meus pais por ter falhado. Mas não terminou assim. Meus pais sempre me apoiaram e me fizeram acreditar no meu potencial e me convenceram a tentar novamente. No ano seguinte, me matriculei em um cursinho pré-vestibular, tentei um bolsão e consegui um bom desconto, o que garantiria a continuidade dos meus estudos, pois nessa mesma época o colégio da minha irmã tinha ficado mais caro, o que dificultava a situação econômica de casa. Como percebi que eu precisaria de mais aulas de Física e Matemática, entrei também na turma da AFA/EEAR. 126 Caminhadas de universitários de origem popular Nesse cursinho, cresci muito, encontrei amigos que tinham a mesma finalidade que eu, dar valor ao que nossos pais pagam e conquistar o sonho de passar no vestibular. O estudo era incessante, de manhã era o pré-vestibular, onde conheci o Tássio, Thiago E. Gomes e Renan; à tarde era a turma da AFA, onde conheci a Mariana; e, para completar, íamos à noite à biblioteca de uma faculdade para estudarmos juntos e tirarmos dúvidas uns com os outros. Tivemos problemas com essa biblioteca, pois não fazíamos parte dos alunos dessa faculdade e, muitas vezes, não podíamos estudar lá, o que foi muito complicado para um grupo que se ajudava mutuamente. Muitas foram as vezes em que ficamos sem lugar para estudar. Foi nessa época que conheci meu noivo, que sempre esteve a meu lado, e devo também a ele meu êxito no vestibular. Era difícil namorar, pois quase não tínhamos tempo, na maioria das vezes estávamos nos ajudando, ele sempre muito bom nas exatas e eu, nas humanas. Daí a receita do sucesso, ele passou na UFRJ e eu na UNIRIO. Mas até passar, vivi momentos de medo, tristeza, estresse, ansiedade. Quando descobri que não passei na UERJ foi um choro e as esperanças iam se acabando, mas, graças a Deus, aos meus pais e a minha família como um todo, ao meu noivo, meus amigos e professores (querendo ressaltar o Joaquim, Jean, Edson, Gessé, William), consegui passar em uma faculdade pública. Universidade Quando, enfim, cheguei à UNIRIO, pensei: passei, e agora? Zona Sul, pessoas ricas, inteligentes, bem vestidas, pensei mais uma vez: e agora? Tendo que bancar xerox, ônibus, livros e, mais uma vez, e agora? O primeiro impacto que tive era que ia ser muito difícil ter dinheiro para todas as necessidades da faculdade, que, apesar de pública, exige gastos elevados e também exigia muita força de vontade, pois eu demoro duas horas para ir à faculdade e duas para voltar. Acredito que existem muitas pessoas que chegam a passar na universidade pública, mas não conseguem permanecer. Confesso que eu tinha pensado em desistir, me perguntei se ficaria mais barato fazer uma faculdade particular perto de casa. Logo de início, encontrei amigas maravilhosas, que espero que fiquem sempre na minha vida, Angélica, Gabi, Flora. Nesse grupo de amigas, percebi que não era só eu que tinha dificuldades, e decidimos procurar algum recurso, uma bolsa, sei lá, algo que nos fizesse permanecer na faculdade. Tivemos nossa primeira decepção, alunos do 1º período não têm direito à bolsa permanência e, agora, o que fazer? Aí, a gente pensa como esse governo é injusto, por que não liberar verba para a permanência dos alunos que acabaram de entrar na universidade? Minhas amigas e eu não desistimos e ficamos sondando as possibilidades de bolsa, até que nos apareceu o Programa Conexões de Saberes. Decidimos tentar, mesmo sem ter muito conhecimento sobre o projeto. Fomos chamadas para a entrevista e conseguimos fazer parte do grupo de conexistas. Depois de freqüentar as formações e os seminários, entendemos o que era o projeto e, assim como nossos companheiros, nos sentimos parte dele. Hoje, eu sou apenas uma formiguinha, mas, no Seminário Nacional que teve na UFRJ, percebi que tem um monte de formiguinhas espalhadas em todo o país. Depois de cursados dois períodos de História na UNIRIO, tenho uma interpretação diferente da que eu defendia outrora. Hoje, acredito que todos, sem distinção de cor, gênero, credo, são capazes de entrar em uma universidade pública. Temos milhares de caminhadas Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 127 árduas que poderiam constar nesse livro, caminhadas de escolhas, de quedas, de suor, de solidão, de força de vontade, mas, acima de tudo, são caminhadas de vitória, de conquista, fruto da determinação de cada um de nós, da vontade de vencer, de quebrar essa grande farsa de que faculdade pública é só para brancos e ricos. 128 Caminhadas de universitários de origem popular Caminhadas Priscila do Nascimento Pereira* Rendição às dificuldades, sinônimo de derrota Relatar minha caminhada até a conquista de uma vaga em uma universidade pública não é uma tarefa difícil para mim. Diferentemente de muitos outros, não tive uma história sofrida e cheia de pesares, mesmo tendo passado por dificuldades, contudo não me sinto melhor, tampouco pior do que ninguém por tal motivo. Sou feliz, pois, como poucos em nosso país, atingi algo que me fará ter um futuro melhor e um maior desenvolvimento intelectual. Tive uma infância sadia e boa criação e sempre fui motivada por meus pais a estudar. Somos de origem popular e, assim como a maioria dos brasileiros, lutamos pelo sustento diário e por um melhor porvir, o que não impediu a obstinação de meus pais em garantir a mim e ao meu irmão, através dos estudos, uma perspectiva de crescimento e ascensão intelectual. Ainda me lembro das inúmeras investidas de meu pai a levar-me a fazer as lições de casa, enquanto eu gostaria de brincar e assistir à televisão. Dizia que eu o agradeceria no futuro, mas, como criança que era, retrucava e, hoje, vejo que aquilo que outrora parecia impossível se fez realidade. Através do empenho e da dedicação de meus pais, pude cursar o ensino Fundamental e Médio em instituições particulares. Foi necessário passar por dificuldades, como também o abdicar familiar de muitas coisas para que isso fosse garantido; contudo todo o esforço foi válido, visto que alcancei o nível superior de ensino, sendo a primeira em minha família a obter tal conquista. Cursei o Ensino Médio com formação geral e, por algum tempo, após iniciá-lo, me preocupava se havia feito a melhor opção. No início, não tinha a pretensão de cursar uma faculdade no futuro, minha preocupação se dava pela razão de, ao concluir o Ensino Médio, não ter ao menos formação técnica para poder trabalhar. Durante o transcorrer das minhas primeira, segunda e terceira séries do “segundo grau”, fui estimulada a lutar por uma vaga em uma universidade pública. Onde estudei nesse período aprendi a pensar em formação superior e, desde então, não me via em outra condição senão essa. Meu maior desejo era fazer Medicina, mas ainda persistiam dúvidas quanto a outras opções, tais como: Biologia, Enfermagem, Geografia e História. Meu universo de opções era grande e estas eram bem distintas. No terceiro ano do Ensino Médio, quis prestar vestibular * Graduanda em Enfermagem pela UNIRIO. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 129 e, dentre tantas alternativas, resolvi optar por Enfermagem, apesar de o meu desejo real ser prestar o concurso para Medicina. Assim decidi porque a relação candidato-vaga para Medicina era muito grande e, como ainda estava no terceiro ano, julguei-me incapaz de passar nessa oportunidade. Então, como a prova para ambas as carreiras era a mesma, queria fazê-la para obter experiência e, no ano seguinte, tendo cursado o pré-vestibular e estar mais preparada, prestaria o concurso para Medicina, com maiores possibilidades de aprovação. Inscrevi-me no vestibular de quase todas as universidades públicas do Rio de Janeiro, o que se deu com certo esforço, já que havia conseguido isenção da taxa de inscrição em apenas uma delas. Em todas, concorri a uma vaga para o curso de Enfermagem, exceto na que eu havia conseguido a isenção, pois nela não havia esse curso, logo prestei para Licenciatura em Química. A meu ver, obter sucesso ainda no terceiro ano e, sobretudo, sem ter passado por um curso pré-vestibular, era algo pouco provável, então não esperava tal acontecimento em minha vida, apesar de nutrir uma diminuta esperança. Mesmo com todas as dificuldades vividas, muitas vezes consideradas intransponíveis, surpreendi-me com o fato de ter sido aprovada em três universidades federais, contrariando as minhas expectativas pessimistas; em duas delas, para o curso de Enfermagem (UFF E UNIRIO) e, em uma, para Licenciatura em Química (CEFET QUÍMICA). Sou grata a Deus, por tão grande surpresa. A partir de então, tais dúvidas foram persistentes em mim: devo desistir de todas as oportunidades, em prol de no ano seguinte, e, após fazer o “cursinho pré-vestibular”, concorrer a uma vaga para Medicina? Devo fazer somente Enfermagem? Em qual das faculdades? Ou seria melhor cursar Enfermagem e Licenciatura em Química simultaneamente? Custei a chegar a uma conclusão e, enfim, optei por Enfermagem na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), ainda pensando em, no futuro, tentar a carreira de Medicina. Ao iniciar meu ano letivo, espantei-me ao perceber que o ambiente universitário era totalmente diferente do que eu imaginava: o ambiente não era hostil, as oportunidades de inserção em atividades acadêmicas eram grandes e as dificuldades, mesmo não inexistentes, eram bem menores do que eu julgava encontrar. Percebi que, na realidade, o mais difícil não era conseguir uma vaga no ensino superior, mas sim a permanência e sua vindoura conclusão. Por ser o curso escolhido de horário integral, é extremamente complicado conciliar os estudos com um trabalho. Dessa forma, conto com o auxílio dos meus pais, a fim de me manter na faculdade. Mesmo existindo empecilhos, hoje, aos 22 anos, me encontro no sexto período do curso e tenho a convicção de ser essa a profissão que quero para mim. As possibilidades antes cogitadas não me fazem desistir do que conquistei. Não digo que foi algo que desejei desde criança, mas sim que aprendi a amar a partir do momento em que me foi apresentado. Por lutas, apesar de não tão árduas, passei, mas com grande vitória alcancei e isso torna a Enfermagem especial para mim. Infelizmente, para a camada popular de nosso país, ainda é muito difícil atingir a formação de nível superior, principalmente sendo proporcionada por uma universidade do sistema público. Reconheço que tive chances das quais a minoria dos brasileiros de origem popular pode desfrutar, como o privilégio de um ensino de qualidade durante toda a minha formação até, enfim, atingir o nível universitário, o que contribuiu sobremaneira para a esse fim chegar. Sou imensamente agradecida a Deus por tudo isso. 130 Caminhadas de universitários de origem popular Mesmo em face dessa cruel realidade, que aqui, no Brasil, se apresenta, e das dificuldades que sempre se manifestam, digo que todos devem lutar por uma formação superior e jamais se julgarem incapaz. Considerei-me incapaz de ser aprovada no vestibular ainda no terceiro ano do Ensino Médio, mas me senti desafiada a tentar, e assim o fiz. Aprendi que a incapacidade muitas vezes não está no fato de não obtermos subsídios para lograr o sucesso, mas sim por não sermos condescendentes o bastante, a ponto de nos proporcionarmos ao menos a chance da tentativa de nele chegar. Mais doloroso do que lamentar o sucesso não alcançado é cultivar a tristeza por não ter se permitido avançar em sua direção. Em suma, acredito que devemos nos esforçar em prol daquilo que acreditamos e sonhamos. Não devemos nos prostrar diante das barreiras que irão surgir, todavia nosso empenho e dedicação nos conduzirão a fins altamente satisfatórios. Ser universitário realmente não é privilégio da maioria, mas se, nos julgando minoria, não lutarmos pelo nosso ideal, jamais atingiremos o que sempre nos foi de direito, contudo não tão facilmente concedido: o ensino de nível superior de caráter público. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 131 Zero zero Priscila Maia Barcelos * Da luta não me retiro Atiro-me do alto e que me atirem no peito Da luta não me retiro Escola 00*, esse foi o número que abriu as portas de uma educação de qualidade na minha vida, abriu as portas de um dos melhores colégios públicos do Rio de Janeiro: Colégio Pedro II. Foi um “golpe de sorte”... entrei no Pedro II por meio de sorteio e lá fiquei durante 12 anos da minha vida, do CA até o terceiro ano. Pedro II foi uma escola que não me ensinou apenas matérias como Português, Matemática e Física, me ensinou a viver e a conviver com os mais diversos tipos de seres humanos. Aprendi com os bons e os maus professores, com as greves, a falta de professores, os amigos de todas as horas, as advertências, as matadas de aula e com as “colas”. Por mais que tenha passado por momentos difíceis como as já citadas greves e a falta de professores de Matemática e Sociologia, por exemplo, o Pedro II é motivo de grande orgulho na minha vida. Conhecer e fazer parte de família CPII foi muito importante pra mim, poder contar em qualquer momento com todos os tipos de funcionários, desde os coordenadores, passando por inspetores, faxineiros, professores, até a direção. Nesse colégio, conheci pessoas muito especiais e sei que sem a ajuda delas minha vida não teria sido a mesma, sei que sem elas eu provavelmente não estaria aqui na universidade, pessoas que me deram muito apoio psicológico, escolar e até moral. Apesar de tantos conhecidos que pudessem me apoiar, foi no CPII também que eu aprendi que não podia depender de ninguém, que eu teria que saber me virar sozinha, me virar para fazer meus trabalhos, provas, recuperação, a preencher minhas fichas de matrícula, a conseguir resolver sozinha meus problemas com os professores, foi inclusive voltando do colégio que tive que, com oito anos de idade, aprender a andar de ônibus sozinha para voltar para casa. Conheço cada pedacinho daquela imensidão que é o CPII de São Cristóvão e sei da vital importância que cada pedacinho daquele teve na minha vida, as salas de aulas, pátios, laboratórios, anfiteatros, pilastras, piscina, enfim, incontáveis lugares que são inesquecíveis. E todo esse sentimento me permite entrar lá ainda hoje e me sentir como se estivesse em casa. * Graduanda em ???????? pela UNIRIO. 132 Caminhadas de universitários de origem popular Família Minha família é um fator importante na minha caminhada da escola para a universidade, ou melhor, em toda a caminhada da minha vida. Começando bem no princípio, minha mãe se separou do meu pai quando eu tinha apenas cinco anos de idade e meu irmão havia acabado de nascer. O que a princípio parece ser uma grande tragédia, na verdade, foi a atitude mais sensata que minha mãe tomou, mesmo sabendo de todas as dificuldades que ela ia passar devido a esse fato. Desde então, minha figura paterna se distorceu e se transformou em duas mulheres muito importantes: minha tia Valnizia e minha tia-madrinha Verônica. Essas duas grandes mulheres foram e são até hoje, juntas, o meu pai, tanto financeira quanto moralmente, uma questão vital. Foram elas que, com minha mãe, me deram os esporros que eu precisava, brigavam comigo quando eu ficava em recuperação, me deram remédios quando precisei, compraram meu material escolar, meu uniforme, enfim, todas as funções de um pai. Minha mãe, minha guerreira, sempre trabalhou para fazer o máximo que podia por mim e pelo meu irmão e, mesmo sem ter estudo, me deu as maiores lições de vida, me ensinando a ser quem eu sou hoje. Acredito, inclusive, que a falta de estudo e a necessidade dela de trabalhar me ensinaram a ter que me virar sozinha na escola, procurando meus cursos e estágios, dentre milhares de outras coisas que tive de fazer sozinha, claro que contando sempre com o apoio e a ajuda dela. Mesmo com a falta de estudo, ela estava sempre me mostrando que estudar seria o melhor caminho para que um dia pudéssemos melhorar de vida. E, para que eu seguisse meu caminho apenas estudando, ela continuou e continua trabalhando até hoje, mesmo em meio a problemas de saúde. Por muitas vezes, me dei conta de que eu teria que trabalhar para ajudar em casa, mas ela sempre me impediu dizendo que o certo seria eu estudar muito e me dedicar a essa função, porque enquanto ainda for possível ela estará dando o suor dela para me ajudar nessa caminhada. Quando escolhi minha profissão e resolvi que seria professora me inscrevendo no vestibular para Pedagogia e Letras, confesso que minha família não gostou muito, exceto minha mãe que me deu muita força para que eu seguisse minha profissão com o coração. O resto da minha família falava que eu ia ter que trabalhar muito e que nunca ia conseguir ter dinheiro. Queriam que eu seguisse carreiras da área de Saúde, como Medicina e Enfermagem, ou já que eu ia seguir uma carreira de Humanas que fosse pelo menos Direito. Porém, mesmo sem apoiarem muito minha escolha, foram minhas tias que, mais uma vez, me apoiaram financeiramente para que eu pudesse fazer um pré-vestibular. Bem, minha família tem muitos outros membros que também sempre me apoiaram, cuidavam de mim e do meu irmão quando tínhamos que ficar sozinhos e me ajudaram nas mais diversas dificuldades, mas, sem dúvida, sei que a minha base tem um tripé com grandes mulheres: Vanilde, Valnizia e Verônica, três grandes guerreiras que me ensinaram a ser mais do que a pessoa que sou hoje, mas a mulher que sou. Universidade Devo minha entrada na universidade mais do que a minha família, meus amigos ou minha escola, a uma pessoa muito especial que conheci no Pedro II: Thiago, com quem passei quase sete anos da minha vida. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 133 No último ano na escola, refleti muito e percebi que teria que começar a trabalhar, até pensava no vestibular e inclusive prestei vestibular naquele ano, porém não consegui passar, nem o Thiago. A partir daí, pensei que não tinha mais jeito, eu não teria dinheiro para pagar um pré-vestibular e ia ter que começar a trabalhar. Foi aí que entrou o Thiago, que fez um grande trabalho psicológico e me convenceu a fazer o pré. Ele também conseguiu com a tia dele um desconto no pré em que ela era diretora, o que facilitou bastante. Entram na história, mais uma vez, minhas super tias e foram elas quem pagaram meu pré, as passagens, minhas apostilas, o intensivo, os projetos, as inscrições, enfim, tudo. Foi um ano muito difícil, estudando o dia todo, todos os dias da semana, de domingo a domingo, almoçando quase todos os dias na casa do Thiago, o que também ajudou muito, pois eu não teria dinheiro para comer fora todos os dias, tendo dias inclusive que tinha aula até à noite. Nesse pré, conheci professores maravilhosos, amigos para todas as horas, que muito me ensinaram e que enfiaram nas nossas cabeças que não existia outra universidade de qualidade que não fosse a pública. Depois de tudo isso, saber que passei no vestibular foi um alívio e a entrada na faculdade uma festa. Até me deparar com professores loucos, fichamentos, resumos, textos e mais textos, livros e mais livros, pensadores e mais pensadores. Perceber que não tenho dinheiro para tirar todas as xerox nem pra comprar todos os livros e, às vezes, até esbarrar em não ter passagem ou dinheiro pra comer na faculdade... ufa! As dificuldades são muitas! Porém, tenho passado por elas e até agora, no quinto período, sobrevivi. Mas não posso dizer que entrar na faculdade seja só mazelas, aqui dentro conheci mais pessoas especiais e que sei que também farão muita diferença na minha vida, a curtição do trote e das festas quebram um pouco o clima de extrema responsabilidade em que nos deparamos na universidade. *Obs: o número do sorteio ainda não foi definido porque ainda estou procurando. 134 Caminhadas de universitários de origem popular Risos e lágrimas Rodolpho de Morais Pereira * Acredito que falar da trajetória educacional me trará grandes e boas lembranças da minha vida, que ajudaram a traçar esse momento. Bem, me chamo Rodolpho, faço Pedagogia, mas isso deixa para depois, porque não foi esse meu ponto de partida. Papai e mamãe, ambos de família grande, com muitos irmãos, porém com trajetórias de vida e de educação bem diferentes. Na minha casa, meus pais sempre deram grande valor à formação dos filhos, que não são muitos como no caso deles (risos), somos eu e minha irmã somente. Meu pai e minha mãe não têm nível superior, meu pai mal tem o Ensino Fundamental, mas isso não quer dizer que eu tenha o direito de não ter; ao contrário, na minha casa não temos a opção de dizer: “Ah, pai, eu não estou a fim de fazer faculdade, não”, isso na minha casa é um pecado capital. Na família do papai, eu devo ser um dos poucos, senão o único, na universidade pública, mas, na família da mamãe, eu sou só mais um – “eita” povo pra passar no vestibular (risos) – e isso influencia muito e diretamente na visão educacional dos meus pais e na nossa também, já que todos temos expectativas, por ser uma característica familiar. Meu primeiro contato com escola foi em uma daquelas de fundo de quintal, onde há educação infantil, as antigas turmas de Jardim 1, 2, Maternal. Então, foi em uma dessas, mas muito significativa, que fiquei até o antigo Jardim 2. Finalmente, fui para uma escola com estrutura de escola, até chamávamos de colégio, só por ser um pouco maior do que a outra, mas ali cursei meu primário e ginásio. Foram nove anos de muito aprendizado, de grandes relacionamentos, de pessoas que marcaram muito a minha vida de estudante. Lembro bem das famosas feiras da cultura que existiam nessa escola, uma espécie de feira de ciências, onde a escola abria as portas para a comunidade, para apresentação de muitos trabalhos. Era uma correria durante aquela semana, ficava depois do horário arrumando para o dia seguinte e, nessa época, a maioria dos meus trabalhos era coordenado por uma professora que contribuiu muito para o meu crescimento em vários sentidos, seu nome é Rosália. Ela fez grandes e duradouros investimentos em mim e acreditou em muitos dos meus ideais e das minhas possíveis conquistas como aluno, como pessoa, como amigo, como alguém que ela queria e quer muito bem. Aprendi muito com essa professora, que foi mais do que professora de Biologia, mas sim da vida, efetivamente. Hoje faço Educação e muito do que vejo na faculdade claramente identifico as atitudes dela. Lembro de um trabalho de virologia em que até gravamos um vídeo e foi um trabalho de destaque muito interessante. * Graduando em Pedagogia pela UNIRIO. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 135 Nessa tão querida escola, obtive alguns prêmios por notas, olimpíadas de matemática – olha que gosto da matéria, mas nem tinha tanta afinidade como tinha com outras, mas nem adianta olhar com aquela cara de “poxa, que menino CDF”, porque não é isso, acho que são coisas da vida e do momento, que são vividas a seu tempo. Naquele tempo, algumas dessas coisas aconteceram, porém nem tudo é para sempre e a tão esperada oitava série chegou e eu tive que sair de lá, não por falta de Ensino Médio, mas já estava nessa escola há um tempo e queria outros horizontes. Por isso, decidi estudar para entrar em uma escola técnica, fiz um cursinho bem “ralézinho”, “fundão de quintal”, passei no concurso e fui para a escola técnica. Na escola técnica fiz Patologia Clínica, o que realmente tem tudo a ver com Pedagogia (risos), e foi interessante porque eu queria muito fazer Medicina e, ao entrar em Patologia, descobri que amo a área de saúde, mas com outro tipo de amor, não no sentido obrigatório, diferente da educação que já entrou no sangue. São amores diferentes, mas são amores. Então, continuando, realizei o Ensino Médio e o Técnico naquele estabelecimento. Foi um período de maturidade, em que a característica do público não era única, mas diversificada, o que me ensinou a conviver com diferentes tribos, algumas que eu não tive contato antes, mas foi uma experiência singular. Eu falo que é a escola do coração e é mesmo. Recentemente fui lá e confesso que fiquei com o coração apertado de saudade, saudade de tudo, dos momentos, dos amigos, dos professores, do ambiente, mas a vida passa e minha época pela escola do coração também passou. Antes de continuar, queria registrar que nessa escola as feiras, que lá tinham outro nome, não me abandonaram, tive pessoas que me ensinaram muitas coisas, também participei de projetos, só que, por ser técnico, o Ensino Médio era ótimo, porém reduzido em algumas matérias. Tinha todas, mas em menor tempo, o que não ajudou muito no vestibular, a não ser pelos professores que tive, eu falava que alguns apresentavam “talent show” de tão bons que eram, mas passou e passou muito bem, fiz grandes amigos nessa escola de Ensino Médio. Ah, claro, da escola primária tenho amigos até hoje em contato e muitos estão muito bem sucedidos, graças a Deus. Aliás, tenho muito a agradecer a Deus por todos esses momentos e sei que, se não fosse por Ele, não seria por ninguém. Ele é perfeito e lindo demais. Passado esse período, chegou o tão esperado vestibular e, nesse ano, que foi um período bem agitado dentro e fora dos estudos, eu tive a oportunidade de optar por Pedagogia. Fiquei em dúvida entre Pedagogia e Letras, mas estou na Pedagogia. Entrei na UNIRIO e tive aquele primeiro impacto com a faculdade, pois a agitação e os tratamentos são bem diferentes do que numa escola. A responsabilidade aumenta justamente por termos “liberdade”, podendo ver que o meu crescimento ou não depende somente de mim e do meu esforço, que a universidade é pública, mas o custo não é assim barato, não. Tenho grandes gastos e o Conexões foi um baita de um empurrão para poder suprir minhas necessidades. Essa é minha bem resumida, mas bem resumida mesmo, trajetória educacional, lembrando que não estou falando ou relatando minha vida pessoal, mas minha trajetória educacional, e ressaltando que não tenho pais, tenho guerreiros e grandes batalhadores. Só eu sei o esforço deles para que eu estivesse aqui hoje, e, claro, sem Deus, não faríamos nada. Agradeço por Ele nos confiar certas missões, e digo a meus pais, obrigado por não desistirem, mesmo quando todos nós não víamos caminho algum, e investirem na minha educação. Sei que vocês queriam fazer mais, porém não podem, mas vejam o grande começo que deixaram 136 Caminhadas de universitários de origem popular na minha vida. Podem ter certeza de que terão grandes frutos, amo vocês e, quando falo de mim, falo de vocês também. Lembro que, quando era pequeno, qualquer lugar em que eu ia, eu avisava mãe, pai, cheguei!! Estou indo para outro lugar agora, então, mãe e pai, estou dizendo daqui, de dentro da universidade, um lugar em que, como o senhor diz, né, pai, pobre entra como intruso (risos) MÃEEEEEE, PAIIIIIIIII, TÔ AQUI, CHEGUEIIIIIIIIIIII!!!!!!!!!!!!!!!!!!! (agora, sim, lágrimas). Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 137 Assim a vida foi passando Rosana Nunes Dutra * Comecei minha vida acadêmica na Escola Municipal Estados Unidos, próxima de onde nasci e moro até hoje. A escola possui a fama “entra burro e sai bandido”. Por muitas vezes, minha mãe ouviu de outras mães que preferia deixar o filho analfabeto a deixar estudar lá. Minha mãe, por diversas vezes, tentou uma bolsa na escola particular de freiras, que ficava ao lado, mas nada conseguiu, pois era necessário ter alguém conhecido lá dentro. Assim fiz todo o Ensino Fundamental. Meu pai sempre bebeu, nunca quis saber de nada, somente dizia que tinha que estudar. Tínhamos que nos “virar”. Nessa época, meu pai tinha uma condição financeira razoável, porém nunca usufruímos dela. Ele apenas nos sustentava com a alimentação. Quando estava concluindo a 8ª série, aos 14 anos, soube de um curso no Campo de Santa Teresa que preparava e encaminhava menores estagiários ao mercado de trabalho. Fiz a prova em 1994 sem meu pai saber. Achei que não havia passado, mas, com tanta insistência de meus amigos, fui no último dia saber o resultado. Foi quando vi que havia passado. Entre o medo e a felicidade, me perguntava: “E agora?” Tinha a certeza que minha vida ia mudar. Nunca mais ouviria meu pai “jogar na cara o prato de comida” que ele dava. Só tinha um “porém”, a única exigência era que deveríamos continuar os estudos, só que no turno da noite. Chegou a hora, minha mãe exigiu que eu comunicasse a meu pai. E, nessa época, eu vivia com medo dele, mas lá fui eu: – Pai, preciso contar-lhe uma coisa. Vou trabalhar e terei que estudar à noite. O que eu poderia esperar? Eu ainda era ingênua. Precisava de apoio, aquela palavra amiga que eu esperava... – Tenho a certeza que você não vai conseguir. Vai acabar desistindo!!! A partir daí, foi me lançado um desafio. Vamos ver! Vou mostrar para ele! Eu queria muito fazer o Ensino Médio técnico em informática, era quase impossível achar o curso em colégios públicos. Meu pai, mais uma vez, não estava disposto a me ajudar. E eu insistia que queria uma boa escola, principalmente porque seria à noite. Fiz provas para outros cursos técnicos e não passei. Resultado, quase fiquei sem estudar. Finalmente, por falta de melhor opção, matriculei-me no Colégio Estadual Infante Dom Henrique. Ótimo, morando em Santa Teresa, onde não existe ônibus após as 22h, e estudando nada menos que em Copacabana. Ônibus só de hora em hora e eu descia na parte mais perigosa de onde moro. * Graduanda em Museologia pela UNIRIO. 138 Caminhadas de universitários de origem popular Começou... “Sua filha será confundida com ‘mulher da vida’ andando a essa hora da noite em Copacabana”. Eu, que nunca tinha saído sozinha, tinha acabado de fazer 15 anos e estava estudando em uma escola em que eu era a mais nova e não conhecia ninguém. Por diversas vezes tive que mostrar a identidade. Aí, ouvia: – Não sei como sua mãe deixa você estudar à noite. Ainda por cima longe de casa. Coitada da minha mãe, no primeiro dia ela ficou na porta da escola me esperando. Depois, ela se arriscava me esperando no ponto de ônibus que fica entre duas “comunidades rivais”. Começou o curso. Fui escolhida no primeiro grupo para trabalhar na empresa que era considerada a melhor. Foi quando meu pai ficou desempregado e eu ajudava nas despesas. No ano seguinte, minha mãe conseguiu minha transferência para um bom colégio no Centro (CESA), mais perto de casa e menos perigoso, pois eu pegava o ônibus e subia Santa Teresa. Só tinha um problema: se eu perdesse o último, subia a pé. Isso leva uma hora, mais ou menos. Pronto, em 1997 acabou o Ensino Médio. Novo dilema, ao completar 18 anos, também deveria sair do emprego. Porém, contrataram-me como prestadora de serviço e me indicaram para trabalhar com uma psicóloga. Ótimo, dois empregos. Como eu faria para estudar? Consegui um pré-vestibular no prédio do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, somente aos sábados, o dia todo. Só que eu trabalhava dois sábados ao mês até meio dia. Uma das piores experiências, eu dormia nas primeiras aulas, e depois do almoço também. Resultado, não passei no vestibular. No ano seguinte, soube de um pré-vestibular para pessoas de baixa renda no Colégio Santo Inácio de Loyola. Porém as inscrições já haviam acabado. Meu trabalho da tarde era perto do Colégio, eu saía todos os dias e passava lá para falar com o coordenador. Durante um mês, tentei todos os dias, já conhecia todo mundo, os professores, os porteiros e até alunos. Até que, um belo dia, o coordenador apareceu. Ele disse que não havia mais vagas, pois a turma estava cheia. Porém eu venci pelo cansaço, todo mundo já me conhecia e já tinham falado de mim para ele. Nem que eu sentasse na cadeira dele ou em pé, mas eu ficaria. Pronto, menos um obstáculo. Eu sabia que teria que estudar muito para passar para uma universidade pública, pois não podia pagar uma particular. Fiz inscrição para todas as universidades públicas e consegui 100% de isenção em todas. Após o vestibular, fiquei doente com pneumonia (nunca tinha tido uma, nem quando criança). Não consegui acompanhar os resultados. No último dia (à noite) para inscrições da PUC, uma amiga que havia passado me ligou perguntando se eu havia feito a inscrição, pois estava no quadro de pendências. Através do vestibular, nós teríamos 100% de bolsa. Perdi a inscrição para o curso que eu mais queria: Psicologia. Eu estava doente e arrasada, achava que não havia passado em mais um ano para nenhuma universidade. Foi quando chegou a carta da UNIRIO, informando a classificação e o prazo para inscrição do segundo semestre. Não acreditei, ia ingressar na universidade, seria a segunda pessoa da família a cursar uma universidade pública. Eu e uma prima, pois meus pais possuem apenas o Ensino Fundamental. Rumo à Museologia, todos achavam loucura, mas eu estava feliz da vida. Decepção, na universidade nem tudo são flores, ou melhor, quase tudo é espinho. Comecei a perceber os olhares de indiferença e preconceito. Depois descobri o porquê, os meus “colegas” diziam que eu não queria nada com a universidade, não me engajava em nada, não participava Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 139 de cursos, palestras, assistia às aulas e ia logo embora, não comprava os livros, não fazia todas as matérias. Eles só não sabiam que eu estava me desdobrando para estudar e trabalhar. Meu horário de trabalho não permitia que eu cursasse todas as matérias. Ficava muito difícil também devido à doença de meu pai, ele bebia e não deixava ninguém em casa dormir. Eu chegava do trabalho e tentava fazer as atividade das aulas e, na maioria das vezes, não conseguia. Aconteceu o que eu esperava, tinha que entregar um trabalho impreterivelmente naquele dia, pois a professora não aceitava fora do prazo. Eu já estava fazendo “à mão”, já que não tinha computador, e ela não gostava. Foi a pior noite, meu pai não me deixou terminar. Loucura, vou ficar reprovada. Fui com uma amiga conversar com a professora, ela permitiu a entrega no dia seguinte, porém me perguntou até quando eu permitiria que ele fizesse isso com a minha vida. Minha ficha realmente caiu naquele momento. Percebi o quanto eu já tinha me prejudicado e continuava me prejudicando. Isso aconteceu no final do semestre. Logo no início do ano aconteceu mais um grande desentendimento, pois meu pai, quando bebe, quer matar todo mundo. Dessa vez ele queria bater em minha mãe, eu não permiti e ele quase me enforcou. Eu lembrei das palavras daquela professora e tomei a decisão que não passaria mais por isso. Fui morar com a família de uma amiga. Assim, a vida foi passando, depois acabei voltando para perto de minha mãe, por insistência dela. Mas nunca para a mesma casa. Agora eu morava sozinha. Eu continuava atrasada na universidade. Mesmo assim tentando continuar, troquei diversas vezes de horário no trabalho para fazer as matérias. Trabalhei inclusive de 0:00 às 6:00, um terror. Fazia uma matéria às 7:00 e dormia na aula. Resultado: reprovação. Muitas vezes tentei desistir. Achava que eu estava em um meio que eu não pertencia. Estava muito difícil permanecer. Ao mesmo tempo me questionava por que não. A universidade não era pública? Então, era para mim, sim, que era pobre. Os que iam de carro importado, compravam livros caríssimos e tinham “sobrenome” (alguns professores identificam os alunos pela sua família, eu estava ferrada) não precisavam estar ali, podiam pagar uma ótima universidade. E ainda me olhavam de lado. Ninguém merece! Acho que o pior foi, agora, no final do ano de 2006, quando possuía uma matéria pendente que era oferecida apenas na parte da tarde, pois a professora recusa-se a dar aula na parte da manhã, mesmo sendo professora concursada para dedicação exclusiva. Avisei no trabalho que chegaria atrasada uma vez na semana. Até aí tudo bem, eu entrava às 16:00 e a aula terminava às 16:00, só que nunca terminava na hora. Eu avisei à professora e ela disse que não podia fazer nada. Até aquele momento, consegui permanecer na universidade, pois estava trabalhando e não podia prejudicar minha vida profissional pela acadêmica, pois era o que me sustentava. Meus atrasos resultaram em demissão. E minhas saídas no horário previsto para o término da aula resultaram em faltas e, posteriormente, uma bela reprovação. Não só isso, eu sou pobre e esse “Zé Povinho” não pode ter vez na Museologia. Desespero, pela primeira vez, desde que comecei a trabalhar, estava desempregada. O que fazer da minha vida? Penso até hoje que agora eu tenho como terminar a universidade, já que entrei no segundo semestre de 2000. Comecei a fazer um estágio voluntário, até que acabou o auxilio desemprego. Eu já sabia do Conexões, pois tenho uma amiga que faz parte do projeto, um dia eu assisti a uma apresentação dos bolsistas. E, pela primeira vez depois de tanto tempo na universidade, eu me identifiquei. Vi que existiam pessoas com as mesmas dificuldades. Inscrevi-me para a próxima seleção, mas não sabia que esta estaria tão próxima. 140 Caminhadas de universitários de origem popular Para minha felicidade, fui selecionada. Tenho pouco tempo de Conexões de Saberes, mas já aprendi tanta coisa que parece que tenho muito tempo. A articulação com o Programa Escola Aberta permitiu que eu mostrasse para crianças que a universidade não é “só para rico”, como eles achavam. E claro não posso mentir que a bolsa vai me socorrer nesse momento de dificuldade financeira. Claro que meu ingresso na universidade não foi em vão, fico muito feliz em saber que os alunos de origem popular estão tendo vez. E tenho a certeza que muitos vão conseguir concluir seu curso e realizar seus sonhos. E não será mais necessário abandonar, como eu sei que acontece. Valeu a pena ê ê sou pescador de ilusões... O Rapa Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 141 A arte de resistir Rosangela Neder * A vida é sobrenatural, e caminho segurando um guarda-chuva aberto sobre corda tensa, caminho até o limite do meu sonho grande. Clarisse Lispector Sou aluna do curso de Museologia, me chamo Rosangela Neder, e estou aqui nessa caminhada com o Programa Conexões de Saberes, que me interessou logo no primeiro momento em que tomei conhecimento. Assim que saiu a classificação, verifiquei que meu nome não figurava na lista dos selecionados, isso significa dizer que faço parte de uma repescagem, aliás, isso não é a primeira vez que me acontece. Nos anos 80, tentei ingressar na Escola de Teatro Martins Penna, uma escola pública de formação de ator, localizada na cidade do Rio de Janeiro. Na primeira prova, que era de conhecimentos gerais, soube que não havia sido classificada. Confesso que fiquei muito deprimida com a notícia, tal qual como aconteceu com o Conexões, quando abri a página da UNIRIO e verifiquei que meu nome não estava lá. A auto-estima foi lá para o subterrâneo. Na época da Martins Penna, houve uma reavaliação da comissão julgadora e, para minha surpresa, recebo um telefonema da secretaria, comunicando que eu havia sido selecionada e pedindo meu comparecimento para a próxima prova, que também era eliminatória, ao todo foram seis provas, ou seja, uma verdadeira “maratona”. No caso do Programa Conexões, estou nele graças à desistência de um colega de faculdade, o Isaque, que, por sinal, também é de Museologia. Gosto muito do curso que faço, foi a minha única opção, pois verifiquei no site da universidade as disciplinas que compunham o curso e me identifiquei bastante. Interessome muito por arte, história e pela questão da memória e do patrimônio, acredito que as duas últimas são fundamentais para o crescimento do nosso país e, sobretudo, para o aumento da conscientização e auto-estima do povo brasileiro. Como alguns já podem perceber, não sou propriamente o que se pode chamar de uma jovem, talvez uma jovem senhora de quarenta e um anos de idade. Sou a caçula de * Graduanda em Museologia pela UNIRIO. 142 Caminhadas de universitários de origem popular três irmãos, somos duas mulheres e um homem. Minha infância e adolescência foram bastante turbulentas. Meu pai, apesar de exercer um cargo de remuneração razoável, foi ausente sobre vários aspectos. Não havia espaço para o diálogo em casa e passávamos por muitas privações a despeito de seu ganho. Eu e minha irmã, principalmente, podemos dizer que, por muitas vezes, tínhamos e não tínhamos um pai em casa. Faltou-nos afeto, compreensão e até mesmo as necessidades mais básicas. Éramos uma família, aos olhos dos outros, de classe média, no entanto, não era bem essa a realidade vivida dentro de casa e até mesmo fora dela. Aos quinze anos, comecei a trabalhar, a pressão era muito grande em casa. Meu pai achava que já estava mais do que na hora de começarmos a trabalhar e que tínhamos que suportar tudo aquilo caso contrário, “a porta da rua é a serventia da casa”, palavras dele. De todas as privações, a mais sentida por mim e pela minha irmã, acho até que pelo meu irmão também, era a afetiva, muito embora ele gozasse de alguns poucos privilégios dentre os quais nunca pudemos gozar. O fato é que, para todos nós, ou seja, eu e meus irmãos, tudo aquilo consistia numa grande incógnita. Não sabemos até hoje se minha mãe tinha conhecimento do motivo pelo qual tudo aquilo ocorria e não revelava ou se realmente ela não sabia mesmo e aceitava resignadamente os fatos. Acredito mais na última hipótese, pois meu pai sempre foi um homem muito intransigente e não admitia jamais ser questionado pelas suas ações, na sua visão ele era o “chefe” da casa, tal qual um ditador. Sempre estudamos em colégios públicos e, na ocasião em que comecei a trabalhar, tornou-se difícil conciliar trabalho e estudo, pois trabalhava em uma empresa bem distante, em horário integral. Saía de casa antes do nascer do Sol e, pela distância, sempre chegava atrasada, perdia sempre a primeira aula e, às vezes, até a segunda. Por volta de 1981, comecei a desenvolver um problema de saúde, lembro-me de ter sido internada por alguns dias e iniciei um longo tratamento. Admito que, em conseqüência disso tudo, perdi um pouco do rumo e acabei desanimando e deixando de lado muitas daquelas coisas que faziam parte dos meus sonhos de realização. Casei-me aos vinte anos de idade, em 1985, já grávida de minha filha, em 1987 foi o ano em que ingressei para o Martins Penna e, em 1989, finalmente concluí o curso. Tentei, durante mais de dez anos, sobreviver de teatro, mas não obtive êxito. Em 1991, veio a separação entre mim e o pai de minha filha. O período pós-separação foi muito difícil, sobretudo para manter o aluguel de uma casa, criar uma filha, tentando proporcionar a ela uma infância e adolescência, que creio ter sido saudável e de algum modo feliz, pois me empenhei bastante para isso. Uma amiga chamou-me para trabalhar em uma corretora de seguro de saúde, foi aí que consegui dar conta de todas as coisas necessárias para nos manter juntas. Renato, o pai dela, pagava uma pensão que era toda destinada aos seus estudos. Durante seu crescimento, permanecemos sempre muito unidas, havia muita cumplicidade e companheirismo em nossa relação, e, à medida que o tempo ia passando, essas coisas se intensificavam entre a gente. Que saudade! Hoje, Lívia, esse é o nome da pessoa que mais deu sentido a minha vida, já não mora mais comigo. Quando ingressei na UNIRIO, em 2003, os problemas financeiros se agravaram, não pude mais me dedicar ao trabalho na corretora. Essa área exige de preferência tempo integral, para que se possa obter algum ganho. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 143 Meu entusiasmo e minha expectativa logo que ingressei na universidade eram muito grandes, acho até que quase com a mesma intensidade das dificuldades que enfrentei. Tive uma interrupção escolar muito longa, de, aproximadamente, 13 anos. Fiz pré-vestibular comunitário um ano antes do meu ingresso à universidade e isso me causou alguns problemas como adaptação à leitura de textos científicos, eu precisava lê-los, pelo menos, quatro vezes. Outro fato que me assustou bastante foi a indiferença de professores com relação à realidade de um aluno de comunidade popular, o professor partia do princípio que todos tinham acesso a computador, Internet, e a elaboração de trabalhos que exigiam esses recursos significava um custo bem alto para mim. Atualmente, convivo com essas dificuldades em menor grau, sabe como é, a gente se vira daqui e dali e acaba, senão superando, aprendendo a conviver com elas. Começaram a surgir os estágios e muita dificuldade de conciliar tudo, foi então que as dificuldades financeiras aumentaram significativamente. Finalmente, quando minha filha completou dezoito anos, o inevitável aconteceu, ela foi morar com o pai e a avó, pois chegamos a uma conclusão bem simples, já não conseguia mais dar conta das despesas básicas e a situação tornou-se insustentável. A ausência de minha filha em casa ainda dói, mas acho que nossa relação amadureceu bastante. Na verdade, estamos caminhando juntas “braços dados ou não”, como diz o compositor. Atualmente, ela trabalha e é estudante de Comunicação Social, nos falamos quase todos os dias e temos uma relação não só de mãe e filha, mas também de amigas, e me orgulho disso, porque acredito que ajudei muito a construir esse tipo de relação. Iniciar um trabalho é sempre algo que constitui grande desafio, e minha entrada no Escola Aberta foi algo que suscitou em mim vários sentimentos, entre eles o medo, sobretudo, de não ser aceita, de cometer mais erros que acertos – hoje sei que cometi alguns equívocos, mas também deixei algumas sementes. Esse início assemelha-se muito ao que estou fazendo neste momento, ou seja, começar um texto, trabalho que significa quase sempre grande dificuldade, contudo quando você consegue dar o pontapé inicial, logo toma o “gostinho”. No primeiro momento, iniciei as oficinas no Escola Aberta em dupla com Louise, outra conexista, e me pareceu que rolava perfeita simbiose entre a gente. Posteriormente, vi que não foi bem assim, mas, enfim, as conexões nem sempre se dão da maneira que idealizamos, por isso acredito que tropeços e divergências façam parte de todo processo coletivo, só desse modo exercitaremos o princípio da dialética. No momento seguinte, passei a trabalhar sozinha, pois constatamos no decorrer do processo que se tornara inviável atuarmos em duas escolas no mesmo dia. Foi então que o desafio tomou uma dimensão ainda maior e junto com ele todos os medos. Certamente, essa é uma daquelas experiências que irão marcar não somente minha participação dentro do Programa Conexões de Saberes, como também toda a minha trajetória de vida. Nessa hora, passa uma espécie de filme na nossa cabeça, me vem à cabeça, então, a experiência do primeiro dia aplicando a oficina na Escola Municipal Francisco Portugal Neves, a expectativa das crianças, para, em seguida, ocorrer o pior, o desinteresse delas, foi simplesmente um grande vazio, seguido de uma sensação de fracasso terrível. Mas não pensem que me dei por vencida, no outro final de semana lá estava eu com várias idéias que fervilhavam em minha cabeça no decorrer daquela mesma semana. 144 Caminhadas de universitários de origem popular Resolvi que iria trabalhar com todos os oficineiros, ou quase todos, do Escola Aberta, e acredito ter dado certo, pois a partir dali passei a conhecê-los melhor e a receptividade aconteceu não só por parte deles, como também das crianças. Tive a oportunidade de ouvir relatos incríveis e, sobretudo, aprender e trocar com uma boa parte deles (oficineiros e as crianças). Claro que nem todo sábado era o que se pode chamar de “um sucesso de público e crítica”, contudo pude constatar que quantidade nem sempre representa qualidade e que, às vezes, sem que nós mesmos percebamos, alguma coisa fica. É isso aí gente, estou caminhando, às vezes tropeçando, mas acredito que tudo isso faz parte de um processo e que, um dia, vou olhar pra trás e ver que valeu a pena. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 145 Eu tenho um sonho... Sabrina Carvalho de Almeida * Minhas origens e nossas dificuldades Em meu histórico familiar, acabei quebrando algumas barreiras ao ser a primeira da família a entrar na universidade pública. Ainda mais sendo a filha do meio (tenho uma irmã um ano mais velha e um irmão mais novo) de um casal de pernambucanos que decidiram sair de sua terra em busca de uma vida melhor, que por lá passaram diversas dificuldades, devido ao grande número de membros que compunham suas famílias. Eles não tiveram acesso à educação porque tinham que trabalhar na roça para sobreviver. Aos 20 anos, meu pai veio para o Rio de Janeiro e conseguiu trabalhar, primeiramente como auxiliar de cozinha e, depois, como cozinheiro. Foi essa profissão que lhe permitiu aproveitar as oportunidades de empregos melhores no interior do Rio de Janeiro, Valença. Ele sempre viajava para rever os familiares e ajudá-los, e foi durante essas viagens que ele começou a ter interesse pela minha mãe, que era vizinha de seus pais. Pelo que minha mãe nos conta, o início do relacionamento deles foi bem diferente dos que ocorrem nos dias de hoje: ela e meu pai namoravam e noivaram por correspondência. Embora fosse analfabeto, meu pai não tinha vergonha em pedir às pessoas para escrever as cartas. A partir do momento em que minha mãe, aos 22 anos, decidiu sair de casa para se casar, tinha em seu pensamento a chance de ganhar liberdade, já que tinha uma educação rigorosa. Ao casar-se, ela logo engravidou e, a partir daí, durante 14 anos, passou a se dedicar aos filhos, pois não tinha condições de pagar alguém para cuidar de nós. Sempre passávamos por dificuldades financeiras, pois toda renda vinha do esforço do meu pai, no entanto, isso foi piorando quando ele já não trabalhava direito, devido ao alcoolismo. Então, minha mãe percebeu que os filhos já estavam grandes e sentiu a necessidade de trabalhar para sustentá-los, já que meu pai não conseguia estabilidade no emprego. Com o mercado de trabalho cada vez mais exigente, as dificuldades se ampliavam devido à baixa escolaridade de meus pais – meu pai analfabeto e minha mãe com apenas a 1ª série do Ensino Fundamental. Mesmo assim, minha mãe não desistiu e acabou se cadastrando numa agência de emprego, que a indicou ao cargo de cozinheira familiar, que, no entanto, exigia experiência que ela não tinha. Para não perder a oportunidade, ela inventou que havia trabalhado e que sua ex-patroa mudou-se para o município do Rio de Janeiro. Mas, para ratificar essa história, * Graduanda em Pedagogia pela UNIRIO. 146 Caminhadas de universitários de origem popular contou com o auxílio da sobrinha, que morava há anos no Rio para se passar pela ex-patroa. Com isso, ela conseguiu o emprego numa casa de família de classe alta. Após três anos nesse emprego, as dificuldades financeiras estavam piores, pois meu pai encontrava-se desempregado e o aluguel estava atrasado há meses, o que levou a justiça a decidir nossa permanência na casa. Para tentar solucionar o problema e não esperar pela decisão da justiça, pois não tinha dinheiro para pagar um advogado, minha mãe explicou à patroa o nosso problema para ver se ela ajudaria. A patroa acabou cedendo a casa do caseiro, que estava desabitada, para moramos, mas com a seguinte condição: que meu pai não morasse com a gente, pois a patroa não aceitava um alcoólatra. Com isso, meu pai foi morar com alguns parentes no Rio de Janeiro para arrumar emprego e ajudar nas despesas da família. Nossas condições financeiras eram razoáveis, já não tínhamos a preocupação com algumas despesas (luz e aluguel). Mesmo assim, minha mãe não estava satisfeita com nossa vida. E, em 1999, ela pretendia morar no Rio, mas consegui convencê-la em permanecer em Valença, pois receava que meu currículo escolar fosse prejudicado, porque faltava apenas um ano para terminar o Ensino Médio. Além disso, poderia haver dificuldades em encontrar uma escola com o curso normal (magistério) e havia também o medo da violência. Mas, quando me formei, fomos morar no Rio e tentar arrumar um emprego. Construímos como família a responsabilidade em contribuir na renda familiar, tanto que minha mãe e minha irmã foram trabalhar com uma tia, eu não conseguia trabalhar como professora, pois as escolas exigiam experiência. Acabei trabalhando, por indicação, como secretaria de um consultório dentário, onde aprendi muito da área odontológica. Depois de três anos nesse emprego, fui demitida, porque minha chefe fecharia o consultório. Então, passei a procurar por estágios remunerados que me ajudariam na renda familiar e a sustentar os gastos com a faculdade até hoje. O apoio familiar na educação e o desenvolvimento desta Por mais que meus pais não tivessem terminado os estudos, tomaram a decisão em dar uma educação básica a mim e a meus irmãos, pois queriam dar aos filhos a educação que não tiveram. Acabamos estudando desde a educação infantil até o Ensino Médio em uma escola estadual de boa qualidade. A nossa única dificuldade na escola era comprar o material escolar e, principalmente, os livros. Esses livros nem sempre serviam aos três irmãos, mas alguns deles conseguíamos emprestados. Os conhecimentos que perpassavam pela escola durante o Ensino Fundamental foram retificados no Ensino Médio, por exemplo, a “Descoberta do Brasil”. Durante o Ensino Fundamental, adquiri alguns conhecimentos com certas dificuldades por não ter o hábito de leitura. Lembro que, quando estava na 2ª série, tive um trauma: a professora havia pedido para interpretar um exercício do livro de Português e, quando terminei, ela pediu para refazer. Tentei refazer cinco vezes o exercício e sempre estava errado. A professora não me ajudava, então desisti e comecei a chorar. A única atitude dela foi colocar um bilhete para minha mãe dizendo que não sabia o porquê do meu comportamento. A partir disso, tinha medo em escrever o que compreendia, mas minha alegria era compreender a Matemática. Mas esse medo está sendo superando, quando optei em fazer o Magistério, pois é muita responsabilidade compartilhar o conhecimento e conduzir o aluno à compreensão do mundo. Quando escolhi o Magistério, meu pai não compreendia meus estudos, pensava que eu já estava trabalhando como professora, pois essa profissão era um orgulho para ele. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 147 Durante o Magistério, alguns professores – Física e Química – não tinham consideração pelos alunos ao não se aprofundar nessas disciplinas, porque acreditavam que as normalistas não necessitariam. No entanto, essas disciplinas têm sua importância em algumas situações cotidianas, em que se poderia ensinar a criança. Por isso, no 3º ano do Ensino Médio, freqüentava um curso pré-vestibular comunitário oferecido pela Prefeitura, pois queria compreender melhor as disciplinas ignoradas no Magistério. Nesse período, havia sido criada uma lei exigindo o nível superior ao professor de nível médio, então me preocupava em não perder meu diploma e nem a vontade de ser professora. Pois eu tenho um sonho de ser professora de Matemática para trabalhar com os anos iniciais, porque acredito na mudança dos estigmas negativos criados em relação à Matemática. O vestibular e o pré-vestibular Em 2002, há dois anos morando no Rio de Janeiro, comecei a pensar em fazer o vestibular devido à Lei. Então, procurei compreender o sistema do vestibular e as universidades públicas e, assim, recebi isenção para o vestibular da UERJ. Nessa época, estudava sozinha, sabia que seria difícil, ainda mais com alguns déficits de algumas disciplinas, tinha em mente apenas tentar. Com todo o esforço, acabei indo para a segunda fase do vestibular, mas esqueci de acompanhar as datas das notas e do resultado. Então, no ano seguinte, decidi me dedicar mais para alcançar a universidade pública, já que não tinha condições de pagar uma universidade privada. Como trabalhava até tarde, não tinha condições de fazer um pré-vestibular durante a semana, por isso optei por um que funcionasse no final de semana. Acabei entrando para o pré-vestibular comunitário Martin Luther King, que havia sido criado por um universitário de origem popular. O curso pré-vestibular é vinculado até hoje à ONG Educafro-Rio, que defende as ações afirmativas, a questão do negro e o acesso à universidade pública para as classes populares. O pré-vestibular trabalha esses assuntos, implanta “aulas de cidadania”, nas quais os alunos refletem sobre os problemas sociais. Assim, passei a ter outro olhar em relação às questões citadas, chegando a participar em atos públicos em defesa das cotas. Hoje, não vejo as cotas como uma saída ao acesso à universidade, mas uma medida temporária em benefício das classes populares, pois sabemos que a falta de qualidade e de infra-estrutura na educação básica são as causas do difícil acesso ao ensino superior. Nesse pré-vestibular, aprendi a dar importância à participação social e compreendi a homenagem que fizeram ao dar ao curso o nome de Martin Luther King, um líder ativista do movimento negro nos EUA que lutou pelos direitos civis. Ele tinha uma frase que eu venero em que ele fala de um sonho que pode tornar-se real algum dia em nossa sociedade, onde o preconceito não existiria mais: “Eu tenho um sonho... de que, um dia, viverão numa nação onde eles não serão julgados pela cor da sua pele, mas pela essência do caráter” (Rev. Martin Luther King Jr., 1963). Bem, como todo pré-vestibular comunitário sobrevive de professores voluntários e sofre com a falta deles, comecei a me virar nos estudos, abrindo mão do final de semana e das minhas férias, chegando a fazer grupo de estudos. Contudo, durante o processo do vestibular, consegui isenção para todas as universidades públicas do Rio, menos na UFF. Mas qual curso fazer? O meu sonho, Matemática? Pois é, notei que faltava maior 148 Caminhadas de universitários de origem popular conhecimento de Física para alcançar meu sonho, no entanto, optei em fazer Pedagogia para aprofundar meus conhecimentos do magistério. E nesse processo do vestibular, verifiquei como era excludente, desde a isenção (burocracia) até a realização das provas, que talvez não prove nossas capacidades. Após todas as etapas, o pior é o resultado, pois esperava passar para a UERJ e para a UNIRIO, devido ao horário do curso ser noturno. Na UERJ, tomei bomba logo na primeira fase, faltava a UFRJ e a UNIRIO. Enfim, consegui nota para a UNIRIO, mas só havia a esperança de entrar no segundo semestre e esperar as listas de reclassificação. Durante essa espera, fui convidada a participar da coordenação do pré-vestibular em que estudei (e ainda continuo atuando), daí não poderia esperar o resultado e decidi começar todo o processo do vestibular, mas dessa vez em outro curso pré-vestibular durante a semana. Acompanhar cada data da reclassificação era muito angustiante, até orava para os meus concorrentes optarem por outra faculdade, pois na UNIRIO poderia estudar e trabalhar ao mesmo tempo. Faltando uma semana para realizar a prova da UERJ e, às vésperas da penúltima reclassificação, eu estava no trabalho quando recebi o telefonema de minha mãe. Era a notícia mais feliz de minha vida, ainda mais dita pela pessoa mais importante para mim. Minha mãe não tinha nem palavras para falar comigo ao telefone porque estava chorando de emoção e eu, claro, acompanhava-a no choro. A faculdade, o Conexões dos Saberes e meus caminhos Ao entrar na faculdade, estimulei minha irmã mais velha a tentar entrar na universidade pública e também minha mãe, que voltou a estudar o Ensino Fundamental e necessita do meu auxílio para aprender (engraçado como as coisas se inverteram, antes era ela tentando ensinar, e hoje sou eu ensinando). Em relação ao espaço universitário, me sinto em um ambiente tranqüilo, ainda mais com a bela paisagem do morro da Urca, mas o importante nesse espaço são as discussões políticas e pedagógicas que perpassam a academia, ainda mais com o sucateamento do ensino superior. Minha perspectiva no início do curso de Pedagogia era aprofundar alguns conhecimentos adquiridos no magistério, mas, ao longo curso, notei que os conhecimentos passados são superficiais e muito teóricos deixando um pouco de lado a relação com a prática. Isso é notável durante as críticas sobre a educação tradicional, em que alguns professores universitários conseguem transmitir a práxis de uma educação inovadora, enquanto outros professores dizem ser contra a metodologia tradicional, mas se utilizam da própria. No entanto, fui aprendendo a importância da práxis e da atuação do pedagogo, que está além da docência, sendo um eterno pesquisador. Por isso, hoje, ao participar do Conexões de Saberes, vejo como posso trabalhar em pesquisas que busquem a implantação de ações afirmativas na universidade, ainda mais estando na coordenação pedagógica do curso pré-vestibular comunitário que estimula alunos de classes populares a obter o acesso ao ensino superior. Por isso, venho me esforçando para ser uma boa profissional, pois tento compartilhar meus conhecimentos nas oficinas do Escola Aberta e com os alunos do pré-vestibular comunitário. Por fim, pretendo terminar o curso de Pedagogia e retornar para realizar o meu sonho ser PROFESSORA DE MATEMÁTICA. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 149 Conquista Simony Costa de Oliveira * Senhor, tu tens sido o nosso refúgio, de geração em geração. Antes que os montes nascessem e se formassem a terra e o mundo, de eternidade a eternidade, tu és Deus. Salmos 90: 1; 2 Poderia começar minha história de várias maneiras, mas preferi iniciar um pouco antes do meu nascimento. Meus pais, logo depois que se casaram, foram morar em uma comunidade em Costa Barros e tinham uma casa humilde com um bar que era a fonte de renda. Meus pais trabalhavam muito nesse bar e minha mãe, grávida de mim, contou que não tinha tempo de fazer xixi, nem de cuidar da minha irmã. Até que, no dia 28 de agosto de 1985, eu nasci, o bebê magrelo, cabeludo e, por incrível que pareça, branquela, apesar de ser totalmente diferente atualmente. Quem cuidou de mim, enquanto minha mãe trabalhava, foi minha irmã, que era apenas quatro anos mais velha que eu. Vejam que tamanha responsabilidade, uma criança de quatro anos cuidando de um bebê, mas o bom disso é que hoje tenho uma boa amizade e companheirismo imenso com a minha irmã Monique. Meus primeiros anos escolares, do CA à 4ª série, foram em escolas particulares, que minha mãe se esforçava muito em pagar, pois ela vendeu o bar e saiu daquela comunidade, que era bem perigosa, e virou comerciante ambulante de carne. Nesse momento, eu era a diferente da escola, minhas amiguinhas tinham os pais advogados, engenheiros, e o meu era açougueiro ambulante. Para mim, isso não é vergonha, mas orgulho, meus pais sempre foram exemplo de trabalho e determinação. Eles são exemplos de vitória, minha mãe veio do interior do Rio Grande do Norte, do Timbó, e concluiu o Ensino Médio, meu pai é semi-analfabeto, veio da Paraíba e, com muito trabalho duro, hoje tem uma casa própria, um fusquinha velho para andar, a Xaninha (a gatinha) e a Pretinha (a cadelinha vira-lata) para sustentar. Bem, continuando, na 4ª série, minha mãe já não estava mais conseguindo pagar a mensalidade da escola, afinal era eu e minha irmã. Minha mãe decidiu nos colocar na escola pública. Foi um grande choque, pois lá conheci crianças da minha idade que já se drogavam, bebiam e tinham vida sexual ativa e, para mim, eram coisas que só “gente grande” fazia. * Graduanda em Enfermagem pela UNIRIO. 150 Caminhadas de universitários de origem popular Apesar de já ter morado em comunidade, eu era muito pequena e a minha criação foi muito rígida, pois eu não brincava e não tinha amigos na rua. Minha única amiga era a Monique. Ir para escola pública mostrou como era importante estudar e ver que a minha realidade era diferente de algumas daquelas crianças, ver meninas da minha faixa etária grávidas e meninos passando fome, que iam para escola para se alimentar, pois aquela seria a única refeição do dia. Percebi como o ensino da escola pública era fraco, pois matérias que eu estava vendo na 5ª série, já havia visto na escola particular. Desde muito pequena, gostava da área de saúde. Minha mãe perguntava: “Neném, o que você quer ser quando crescer?” E eu respondia: “Médica”; eu nem sabia o que era saúde, muito menos Enfermagem, pois não é uma profissão que as crianças conheçam. Mas eu sabia que jamais conseguiria ingressar em uma universidade pública, para cursar Medicina, muito menos meus pais pagarem uma faculdade particular. Então, decidi fazer o curso técnico em qualquer coisa e ganhar dinheiro para ajudar nas despesas de casa. Fiz provas para as escolas técnicas públicas e a minha preferência era CEFET e Federal de Química, porque minha irmã “cabeçuda” tinha ingressado para o CEFET e eu, a “burrinha” da família, não passei de primeira, nem de segunda. No segundo ano de tentativa, passei para o CEI de Quintino e decidi fazer Enfermagem, pois resolvi enfrentar o medo da Medicina e ficar mais perto da área de saúde, pois tive um problema na minha perna e fui atendida nos Anjos do Rio (um postinho móvel de pronto atendimento, que não existe mais). Uma médica fofa me atendeu, mas lá não havia suporte para resolver meu problema e ela me encaminhou para o Hospital Carlos Chagas, onde uma médica estúpida me atendeu, então decidi seguir o meu antigo sonho de menina e ajudar, com o meu trabalho, esse sistema de saúde brasileiro com tantas deficiências e injustiças. Deus é muito fiel e terrível, pois ele nos prepara coisas que nem esperamos e quando entregamos nossa vida a Ele, Ele faz o melhor. Ingressei no Ensino Médio fazendo o curso técnico em Enfermagem e, no primeiro mês na Escola Técnica Estadual República, descobri que existia graduação em Enfermagem. Amei a profissão e vi que era o que realmente queria, pois essa profissão me permitia ajudar ao próximo cuidando de sua saúde e, de alguma maneira, de sua vida social, é uma profissão perfeita. Foi muito bom estudar nessa escola, pois tive a oportunidade de ter uma visão crítica da sociedade e mudá-la fazendo minha parte como cidadã. Terminei o Ensino Médio e ficou mais forte a vontade de ingressar em uma universidade pública, também porque minha irmã, como sempre cabeçuda, foi aprovada no curso de Engenharia no CEFET, que é federal. Minha mãe queria que eu fizesse um cursinho para tentar ser sargento e ajudar nas despesas de casa, pois não conseguiria pagar meu curso prévestibular, muito menos me manter na universidade pública, já que Enfermagem é um curso integral e não poderia trabalhar. Mas, como Deus é misericordioso, conversei com meu pai e ele me apoiou completamente, apesar de meu pai ser praticamente analfabeto, ele sempre valorizou o estudo e daria um jeito para resolver esses “pequeninos” problemas financeiros. E foi isso que aconteceu, ele arranjou um trabalho e pagou meu pré-vestibular. A misericórdia de Deus, meu pai e meu esforço possibilitaram meu ingresso na UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - UNIRIO, (muito obrigada, pai, eu te amo). Nesse momento, tenho que agradecer também a minha mamãe, que teve sabedoria e compreensão comigo nos meus momentos de nervosismo e sempre orou por mim; minha amiga do coração Júlia, que dividia seus materiais de estudo comigo, e ao meu querido cunhado Anderson, que mesmo em Goiânia me dava força e se tornou um irmão para mim. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 151 Atualmente, estou cursando o quinto período de Enfermagem, passei algumas dificuldades, para pagar passagem e fotocópias, mas Deus me ajudou sempre e nunca deixou faltar nada na minha vida. O Programa Conexões de Saberes foi uma dessas providências, que não só me ajudou financeiramente, mas como pessoa. Os contatos com alunos de outros cursos e as formações me ensinam muito. Agradeço a esse Programa, por ter me possibilitado conhecer as crianças incríveis do Escola Aberta e poder ajudá-las também, dando orientações que competem a minha área. Agradeço toda essa história de vida ao meu Deus, pois, mesmo com lutas, Ele sempre tem me dado a vitória. 152 Caminhadas de universitários de origem popular Metáfora da borboleta Taíssa Pereira dos Santos * Cheguei ao mundo como um carma, minha mãe e meu pai, muito novos, tiveram que casar graças a uma gravidez indesejada. Esse fato seria facilmente contornado se não fôssemos pobres e se eu não tivesse nascido tão doente: adenóide, amidalite, intolerância à lactose e uma série de doenças respiratórias que consumiram toda a grana de uma recente família. Nesse período, meu pai, Márcio, era corretor de imóveis e minha mãe, Raíssa, recém-formada em magistério, trabalhava como professora em Alcobaça, na Bahia, cidade pequena e litorânea, onde eles residem até hoje. O fato é que, às vezes, eu ameaçava morrer, parei de mamar aos dois meses e minha alergia a leite, que me causava diarréia, fazia com que meus pais tivessem que comprar leite de soja em Vitória, no Espírito Santo, já que nessa época não se vendia tal modernidade no interior da Bahia. Por azar ou sorte, sobrevivi às diarréias, passando pela minha primeira operação aos dois anos de idade, pois a minha adenóide não me deixava respirar. Mas, como diz o velho ditado, “depois da tempestade, vem a bonança”. As condições dos meus pais vieram a melhorar com a compra de um supermercado, então, com dinheiro para cuidar da minha saúde, a família prosseguia feliz. Esses tempos realmente foram bons, lembro-me que a minha irmã mais velha, fruto de um namoro da adolescência de papai, veio morar conosco. Enfim, minha doente infância teve uma felicidade! Sempre tive muito orgulho de ter uma irmã mais velha, a Andréa. Não sei quantos anos eu tinha nessa época, mas quase completando cinco anos me recordo que foram várias mudanças. Passamos a morar no centro da cidade, meus pais adotaram uma menina mais velha que eu, a Cristiane, “mainha” descobre que estava grávida, ou seja, eu, uma menina mimada e sozinha, passou a ter três irmãs! Pirei nessa época, maltratava minha irmãzinha caçula, detestava a minha irmã adotiva, Cris, e fazia “calandu” (birra) dentro de casa. E a partir daí, minha infância passou a ser marcada por revolta contra minhas irmãs (excetuando a Andréa) e ciúmes dos meus pais. Quando completei nove anos, o supermercado do meu pai veio a falir e começamos a passar dificuldades em casa. Lembro-me que não tínhamos dinheiro nem para comer. Fui obrigada, então, a me afastar dos amigos de infância mudando para uma escola pública, o Colégio Estadual Lomanto Júnior, não gostava de estudar lá. Lembro-me que achava as pessoas feias e mal-educadas, via coisas que não me agradavam, brincadeiras de mau gosto, flatulências, e eu me sentia diferente daquele novo mundo no qual me inserira. Então me * Graduanda em Biologia pela UNIRIO. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 153 isolei, passei a terceira e quarta séries só. Foi uma mudança muito dolorosa para mim, pois estava sem amigos e acho que o bom desses tempos sofridos foi o respeito que aprendi a ter para com a minha irmã adotiva, Cristiane, e passei também a aceitar melhor a condição financeira da minha família. Quando passei para a quinta série, mudei para a cidade de Itamaraju, também do interior da Bahia, onde fui morar na casa de tia Toinha e tio Jorge. Lá tive uma grande lição de vida, pois tinha muita dificuldade de entrar na rotina da casa. Hoje, compreendo que tudo o que passei serviu de experiência e foi um aprendizado. Nesse ano, convivi com Maiza, minha grande companheira, filha caçula da minha tia. Ela sempre esteve ao meu lado em tudo! Uma pessoa muito boa e religiosa que me fez refletir muito sobre quem eu era, apesar de não concordar com suas idéias sobre religião. No final da quinta série, retornei à casa dos meus pais, pois tinha apenas onze anos e sentia muito a falta deles. Superado os problemas com minha irmã de criação (esse foi sempre um problema interno e é a primeira fez em que falo sobre esse assunto), estava pronta para finalmente ser uma garota da minha idade. Comecei, então, a sexta série no Centro Educacional de Alcobaça, colégio público no qual cursei até a oitava série. Lá, reencontrei Daniele, uma amiga de infância com quem eu brincava no Novelo, bairro pobre de Alcobaça, e com ela descobri minha pré-adolescência, passei a andar também com Vana. Formávamos um trio imbatível, aprontávamos muito no colégio e fora dele também. Fomos chamadas algumas vezes na diretoria, nunca por causa de nota baixa, mas sim porque éramos muito levadas. Falo delas porque foi a partir daí que percebi que algo de errado estava acontecendo, pois eu terminava a oitava série e partia da minha cidade, comecei a falar em vestibular, pensava no futuro e a Dani engravidou... fiquei muito triste! Percebi que a lógica do mundo é torta, pois a queria junto de mim, chegando à faculdade comigo. Tristezas à parte, minha vida prosseguia, sempre fui boa para superações! Voltei para a casa dos meus tios, em Itamaraju, com mais experiência e não passei mais por problemas de convivência. Entrei para a primeira série e, no ano seguinte, a segunda série do Ensino Médio, no colégio particular Doze de Agosto. E nesse tempo, sim, fui muito feliz! Dava-me bem com meus tios, com meus pais (tirando as crises de ciúme do meu pai), fazia muitas amizades, pois era muito comunicativa, curtia muito e compensava a grana que meus pais pagavam no colégio sendo a melhor da sala e uma das melhores do colégio. Ah, sim! Sem esquecer que, no Doze, estudava com bolsa parcial. Enfim, cheguei ao terceiro ano, vestibular por perto, muitas dúvidas e decisões a tomar. Resultado: entrei em uma crise existencial! Um período de autoconhecimento e reflexão familiar e social. Um fato que me fez muito feliz nessa época foi a chegada do meu sobrinho, Caio Júlio, filho da Milena, a filha mais velha do meu tio Jorge, minha “irmãzona” também. O que tenho a dizer desse ano é que minha família deu o verdadeiro significado a minha vida e não me incomoda o fato de que penso neles, antes de tomar qualquer decisão. Terminado o terceiro ano, primeiro vestibular perdido, fui morar em Vitória, Espírito Santo, com o apoio da minha mãe e do meu pai, que não mediram esforços para me colocar no melhor cursinho do Espírito Santo. Consegui bolsa de estudos e fui morar em uma república mista com meus amigos de Itamaraju, que, na verdade, se tornaram meus amigos com a convivência. Nesse ano, nos tornamos politizados, nos revoltamos contra o “mensalão”, discutíamos sobre o futuro do presidente, torcemos pelo PSol, ouvíamos Gonzaguinha, 154 Caminhadas de universitários de origem popular Chico Buarque, Elis Regina, Paulinho Nogueira, tocávamos violão e, para fechar, íamos para a UFES (Universidade Federal do Espírito Santo) nos divertir com os universitários, sem nos esquecer, é claro, de estudar. Foi um ano muito rico cultural e intelectualmente, o resultado veio com a aprovação no vestibular em Biomedicina da UNIRIO, curso com o qual não me identifiquei e, junto com minha amiga, Lígia, resolvemos mudar para Biologia, curso que nos identificamos pelo o que somos e pensamos. Hoje, tenho muitos amigos no Rio de Janeiro e não falei da minha mudança para esta cidade porque sinto como se aqui fosse meu verdadeiro lar. Moro com grandes amigas que me acolheram num momento de muita dificuldade... a gente se aceita por lá! Estou mudando de casa com minhas amigas e o momento é de muita instabilidade e vou carregar comigo uma grande companheira, a Emily, ela foi a grande motivação da minha vinda para o Rio, sempre sonhamos em morar juntas e agora vai rolar. Minha vida continua muito instável, porém, com essas confusões, sempre adquiro muitas experiências, respeito as diferenças, almejo sempre o bem ao próximo. E por isso faço parte do Conexões de Saberes, Programa onde encontrei minha identidade, compartilho minhas experiências com o grupo e visamos viabilizar o acesso e a permanência de alunos da camada popular, como nós, na universidade pública. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 155 O sonho se alcança Valéria Paixão de Vasconcelos Nepomuceno * Não pensava que poderia fazer um curso universitário, principalmente em uma universidade pública, achava fora da realidade de uma pessoa pobre. Então, um curso técnico era a minha salvação e, como gostava muito de criança, tinha que ser algo nessa direção. Um sonho de criança era ter uma escolinha, dar aula e ser muito inteligente, eu tinha até um quadro de giz e apagador com que brincava sempre. “Vou ser professora!” Nasci em uma família humilde. Meu pai, Victor Alves de Vasconcelos, é técnico em máquinas eletrônica, estudou apenas até a 5ª série do Ensino Fundamental, chamado por ele o tempo todo de científico. Minha mãe, Marli Paixão, do lar, também só estudou até aí. Morávamos em Irajá, na cidade do Rio de Janeiro, até então, eu, meu pai e minha mãe. O aluguel era muito caro e nos mudamos para a cidade de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, onde minha irmã Fabiana e meu irmão Júnior nasceram e crescemos. Meus pais se esforçavam para dar aos filhos o essencial, principalmente nas escolas, que foram públicas, mas na época tinham que comprar uniformes e material escolar, caso contrário, não poderíamos freqüentar as aulas. Em relação aos estudos, sempre fui esforçada, porque gostava de aprender. Quando minha tia Josineide, que morava conosco, repetiu a 5ª série por duas vezes, cheguei a alcançá-la e achei o máximo, porque iríamos ficar na mesma turma. Mas logo entristeci, porque ela abandonou os estudos e se casou. Daí, pensei, mesmo que eu ficasse reprovada, nunca deixaria a escola, não fiquei reprovada e me formei professora de 1ª a 4ª série. Não pude nem pensar em faculdade ou qualquer curso preparatório, pois precisava trabalhar para ajudar em casa. Morávamos de aluguel e sempre estávamos nos mudando, mesmo por perto, até que meu pai ficou com a casa de sua mãe, que faleceu. Voltamos, então, para Irajá e lá continuei a lecionar, porém não tentei cargo público. Eu era considerada uma boa professora, pois tudo o que fazia era com dedicação e os alunos me adoravam. Aos 21 anos, me casei, meu marido e companheiro chama-se Alberto Vitorino Nepomuceno. Voltei a morar em Nova Iguaçu, tive minha filha Agatha e, um ano e meio depois, meu filho Vangler. Nessa época, morei na casa de minha sogra e comecei a trabalhar em uma creche-escola onde meus filhos ficavam. Lá participei de um projeto da Fundação para Infância e Adolescência/FIA, onde as crianças que estudavam lá e em outras escolas iam para fazer as atividades escolares e extracurriculares, como teatro, artesanato e esporte. * Graduanda em Pedagogia pela UNIRIO. 156 Caminhadas de universitários de origem popular Mais uma vez, me mudei, só que dessa vez para a tão sonhada casa própria, que construímos bem no interior da cidade de Nova Iguaçu, no bairro Gerard Danon. Longe de tudo, não deu para continuar trabalhando, pois a escola não custeou a passagem. E resolvi melhorar o que aprendi a gostar naquela escola, fazendo cursos de artesanato, boneca e tricô, enquanto meus filhos estavam na escola. Minha irmã sempre pensou em fazer faculdade, falava de seu curso pré-vestibular e ficou me incentivando, falava que meus filhos já estariam com 11 e 13 anos e eu poderia estudar sem preocupação e que nunca é tarde para estudar. Foi então que resolvi tentar Pedagogia, consegui isenção na UNIRIO e na RURAL e fiz as provas, pensei que não tinha passado, porém consegui e fui chamada pela UNIRIO. Minha irmã, também, só que ela tentou outros cursos de acordo com o que cada universidade tinha e passou logo de primeira no que mais queria fazer, Oceanografia na UERJ. Aos 34 anos, eu só pensei na oportunidade de voltar à ativa e não nas conseqüências, como o tempo que levo para chegar à faculdade, que fica na Urca, onde eu só visitava as praias, de vez em quando, além do preço das passagens que são altas. Mas, e agora, iria desistir? Pois, se trabalhar, não dá tempo de estudar! Prossegui e consegui a bolsa do Conexões de Saberes, que está me ajudando, sem falar em como estou me reconhecendo com o programa. Agora, basta perseverar, pois estou apenas começando a minha jornada universitária. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 157 Caminhando com motivação Vanessa Adalgiza Pimenta de Carvalho * Desde de pequena meus pais diziam: “a maior herança que um pai deixa para seus filhos são os estudos e a curiosidade pelo conhecimento”, e acrescentavam “o estudo é algo que ninguém pode lhe roubar”. Devido a esses fatos sempre tive enorme satisfação em estudar e sempre me esforçava para corresponder às expectativas e aos esforços que ambos sempre realizaram para que eu pudesse chegar à Universidade. Fiz o Ensino Fundamental na rede pública e o Ensino Médio também, no Colégio Estadual Heitor Lira, e ao final não me sentia preparada para prestar vestibular pois meu curso era em formação de professores, as matérias como Matemática, Física e Química só eram oferecidas no primeiro período, ficando uma defasagem de dois períodos nessas matérias que são importantes para o processo de entrada na Universidade. Chegar e concluir o 2º grau já foi difícil pelas dificuldades financeiras que encontrávamos pelo meio do caminho, passar para a graduação pública seria mais difícil ainda tendo em vista a nossa realidade, pois meu pai trabalhava por conta própria e sua situação estava cada vez mais instável, minha mãe sendo manicure ganhava para ajudar nas despesas da casa. Voltei a trabalhar, mas com o que ganhava não conseguiria pagar um curso pré-vestibular, então minha mãe ficou sabendo, através de uma amiga, sobre os cursos comunitários e começamos a procurar, até que ela conseguiu encontrar um, e me informou do que precisava para ser entrevistada. Consegui passar na entrevista e estudei durante dois anos na Paróquia São Sebastião de Olaria. Eu estudava de Domingo a Domingo no Pré, sendo que durante a semana o horário era na parte da noite e no final de semana era até às 14h. No começo foi difícil, pois trabalhava durante o dia ficando cansada e muitas das vezes desmotivada, porém a minha vontade era maior e mesmo desanimada continuava. Tentei para todas as Universidades, exceto a Rural por ser muito distante de minha casa. As minhas escolhas no primeiro ano foram: UERJ\Geografia, UFRJ\História, UFF\História e UNIRIO\Museologia. No segundo ano a única mudança foi na UERJ, onde optei por História. No meu segundo ano de cursinho consegui passar para a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, a UNIRIO, curso de Museologia, que apesar de ser um curso pouco conhecido eu tinha me encantado com a grade que é oferecida. Era a realização de um sonho, tanto pra mim como para meus pais, só que quando passou a alegria e a euforia comecei a pensar em como ia me manter, pois meu curso é integral, manhã e tarde. * Graduanda em Museologia pela UNIRIO. 158 Caminhadas de universitários de origem popular Durante os dois primeiros períodos da faculdade eu trabalhei. E então teve um momento em que tive que optar entre trabalhar e estudar, pensei em desistir mas meus pais não permitiram e disseram que nós iríamos nos apertar ainda mais, porém eu não iria deixar de estudar. Nesse tempo na faculdade vi que algumas pessoas faziam doces, salgados dentre outras coisas e deixavam no jardim do Centro de Letras e Artes – CLA com um potinho para deixarem o dinheiro e iam para suas aulas, fiquei surpresa quando vi pela primeira vez, e comecei a fazer brigadeiros para vender e com isso passei a bancar minhas passagens, comida e tirava as cópias mais importantes. Posteriormente, consegui um estágio no Museu Imagens do Inconsciente, passando a ganhar uma bolsa-auxílio e pude também contribuir um pouco com as despesas da casa. Estagiei durante dois anos no MII, limite máximo para estágio, e quando estava prestes a sair fiquei sabendo da possibilidade de entrar no Programa Conexões de Saberes, fiz a entrevista e fiquei muito feliz e tranqüila, quando vi que faria parte desse Programa. A oportunidade de trabalhar em um Programa que visa tornar acessível a entrada de pessoas que, como eu, são de origem popular, auxiliar na formulação de propostas que permitam a sua permanência e poder, através do Escola Aberta, trocar experiências, ser um referencial positivo e incentivar crianças e jovens a chegarem à Universidade, é pra mim muito gratificante. Além de estar aprendendo, o Programa permite que eu conclua meu curso. Todas as dificuldades que vivi foram necessárias, me servindo de aprendizado, onde aprendi que na vida temos que ultrapassar os obstáculos que ela mesma nos impõem e nunca desistir, buscando sempre realizar nossos projetos. Essa é a trajetória de quem sempre teve nos pais a ajuda e a motivação para conseguir atingir os objetivos, acreditando num futuro melhor e desejando que fosse independente. Tudo que conquistei até hoje foi devido aos esforços e aos sacrifícios dessas duas pessoas que tanto amo e que pretendo retribuir, em breve, todo esforço e sacrifício que eles fizeram e que ainda fazem. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 159 Minha caminhada Vanessa Barbosa de Brito * A formação da minha família se deu da seguinte maneira, minha mãe veio, junto com seus pais e mais sete irmãos, da Paraíba para o Rio de Janeiro, em busca de melhores condições de vida. Chegando aqui, foi morar em uma comunidade popular localizada no bairro de Benfica. Nessa época, ela era adolescente e para ajudar a sua família não deu continuidade aos seus estudos, e logo foi trabalhar. Na mesma localidade em que ela morava, residia o rapaz que, após alguns anos, seria meu pai, ele vivia com seus avós. Ao se conhecerem, logo se apaixonaram e, em menos de três anos, se casaram. Após o casamento, foram morar de aluguel, dividiam as despesas com o suor do trabalho dos dois e, aos poucos, a vida foi melhorando. Depois de dois anos de união, decidiram que era já era hora de ter filhos e, assim, nasceu a primogênita da família, minha irmã Vivian. Quatro anos mais tarde, conseguiram realizar o sonho da casa própria, melhor dizendo, do apartamento, pois compraram um da Campanha Estadual de Habitação do Rio de Janeiro - CEHAB. No ano seguinte, devido a um “descuido” ou, se preferir, um “erro de cálculo”, chegou a minha hora de nascer. Nasci no dia sete de abril de 1981. Tive uma infância muito feliz e, apesar de sermos uma família humilde, meus pais sempre batalharam muito para não deixar nada faltar em casa. Desde o meu nascimento, moro em um conjunto habitacional da CEHAB. Quando eu era pequena, o nosso apartamento só tinha um quarto, de modo que eu e minha irmã o dividíamos e meus pais dormiam na sala. Mesmo com todas as dificuldades que enfrentávamos, éramos muitos felizes e unidos. O nosso bairro, Senador Camará, fica situado na zona oeste do Rio de Janeiro e, além de farto comércio, tem transporte para vários lugares. Gosto tanto do bairro que escolhi continuar vivendo nele após me casar. O único problema, ao menos o que mais incomoda, é a presença do tráfico de drogas. Desde a minha infância, percebi que os traficantes influenciavam a vida dos moradores, mas naquela época eles cultivavam uma imagem paternalista ou assistencialista, algo assim, de maneira que ajudavam os moradores comprando gás e alimentos, apaziguando brigas de famílias e respeitavam as pessoas. Ao contrário do que fazem hoje, já que andam armados, expondo seus “produtos” e fazendo questão de cultivar o temor entre as pessoas. Do passado, só me recordo de algumas conversas de adultos sobre a morte de algum bandido e os dias em que a minha mãe não me permitia brincar na rua porque a polícia estava na comunidade. * Graduanda em Pedagogia pela UNIRIO. 160 Caminhadas de universitários de origem popular Minha vida escolar Com três anos de idade, iniciei minha vida escolar em uma escola particular, na qual, através de fotos e algumas recordações, posso afirmar que vivi bons momentos. No entanto, ao ingressar no primário, meus pais não podiam mais me manter na escola particular, por questões financeiras, então fui transferida para uma escola pública municipal. Sendo assim, cursei meu primário na Escola Municipal Dias Martins. Logo na primeira semana de aula, minha mãe foi chamada pela diretora e questionada se gostaria que eu prestasse uma prova para avaliar minha aptidão para cursar a 2ª série, pois a professora achava que eu estava adiantada em relação ao conteúdo e ao desenvolvimento dos demais alunos da 1ª série. Minha mãe ficou muito feliz e me estimulou a aceitar a mudança, mas até hoje me questiono se foi prejudicial ou favorável a mim. A avaliação era em relação ao conteúdo programático, pois fui para a turma da 2ª série e tudo foi um choque para mim. Todas as crianças eram mais velhas do que eu, e já tinham malícia, coisa que eu ainda não tinha, por ter estudado sempre em uma escola particular com crianças calmas, carinhosas e bem educadas. Senti-me perdida no meio daquelas crianças barulhentas e com mau comportamento, que não deixavam nem a professora abrir a boca. Foi difícil a minha adaptação nessa turma. Lembro-me que a toda hora eu pedia para ir ao banheiro, somente para chorar. Meu desabafo era o choro, uma vez que eu não me achava no direito de contar meu sofrimento à minha mãe, pois sabia que ela tinha ficado muito feliz com a minha promoção de série, e não queria contrariá-la. Contudo, meu desempenho escolar não foi mais o mesmo. Sempre fui uma aluna exemplar, mas não conseguia acompanhar o ritmo da turma e prossegui o meu primário inteiro somente com notas regulares. O primeiro ponto decisivo na minha trajetória escolar foi o ingresso no ginásio, quando minha mãe optou por não me matricular em uma escola do nosso bairro. Estudei em uma escola do bairro vizinho, Bangu. Eu marco esse momento como crucial, pois o simples fato de sair da minha comunidade, de precisar utilizar ônibus e me relacionar com outras pessoas mostrou que eu podia sempre ir além e que a minha comunidade não era o meu limite. Quando estava na 8ª série, minha turma foi avisada que a escola federal, CEFET, iria realizar um sorteio para escolher alguns alunos para participarem de sua primeira turma de alunos do curso prepatório PRÉ-TÉCNICO. Fiz minha inscrição e, graças a Deus, fui sorteada. Eu acordava todos os dias às 5:00 da manhã, pegava o ônibus com meu pai, às 5:30, e seguia para o CEFET. Participava do curso até às 11:30 e voltava de trem. Tudo correndo para que chegasse a tempo na outra escola onde eu cursava a 8ª série. Freqüentar o curso preparatório foi muito importante como experiência de vida, já que pude conhecer novas pessoas e ambientes, mas em nível educacional não consegui atingir todos os propósitos. Penso que tal “insucesso” pode ter ocorrido por sermos a primeira turma desse projeto, de modo que ele ainda não estava muito bem estruturado e ainda havia déficit de professores e material didático. Sem contar que, na época do curso, ocorreu uma greve de, aproximadamente, três meses, atrasando todas as matérias. No final desse mesmo ano, prestei o exame, mas, como já esperava, não consegui passar para o CEFET. A escola de Ensino Médio estadual para qual eu fui encaminhada não oferecia um bom ensino. Então, minha mãe me matriculou em uma escola particular que fica ao lado da paróquia que freqüentávamos. Por meio de um pedido de minha mãe ao padre, consegui uma bolsa de estudos, o que foi muito bom, pois o valor da mensalidade estava muito alto. O padre conseguiu um abatimento em que teríamos que pagar somente 60% da mensalidade. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 161 Minha mãe sempre foi uma pessoa muito religiosa, ela participava da pastoral da criança. Essa pastoral desenvolvia várias atividades com as famílias da nossa comunidade e também tinha uma parceria com alguns projetos, entre eles havia um especial que encaminhava adolescentes de 14 a 18 anos para um estágio remunerado, de meio salário mínimo, em algumas empresas municipais do Rio de Janeiro. Ao tomar conhecimento dessa oportunidade, minha mãe me questionou se eu não achava interessante participar. Aceitei porque achava que seria bom como uma primeira experiência profissional, além de que o dinheiro ajudaria no orçamento da minha família. O único problema seria o fato de precisar trocar de turno na escola, pois precisaria estudar à noite, mas isso logo foi resolvido. Sendo assim, aos quatorze anos comecei a trabalhar em uma empresa municipal, situada em Botafogo, executando algumas funções administrativas. Eu gostava muito daquele ambiente, dos funcionários e, principalmente, do grupo de estagiários. Permaneci nesse estágio por um ano e oito meses, saí porque estava atrapalhando meus estudos e por ver que aquele projeto não tinha perspectivas para o futuro. Sentia que se continuasse ali, iria simplesmente terminar o Ensino Médio e ingressar no mercado de trabalho em alguma função subalterna, sem nenhuma promoção. Eu sabia que não podia me contentar com isso, precisava realizar meu sonho acadêmico, ter um diploma. Concluí o Ensino Médio, mas tinha consciência que não teria possibilidade de prestar o vestibular devido ao meu curso ter sido técnico. Meus pais, sabendo do meu desejo de estudar, se esforçaram, mais ainda, cortaram gastos extras e conseguiram pagar um curso pré-vestibular para mim. Freqüentei o curso, corri atrás da isenção da taxa de inscrição de todas as federais e prestei o vestibular para Psicologia. Infelizmente, não consegui passar em nenhuma faculdade. Diante desse fato, fiquei muito decepcionada, mas minha querida mãe me deu muita força e não me deixou desistir. Como prova de que acreditava no meu potencial, ela pagou mais um ano de “cursinho” para mim. Nessa nova tentativa, fui tomando mais consciência da importância do vestibular. De modo que me dediquei aos estudos quase que integralmente. Após muita reflexão e conversas com amigos, resolvi trocar minha opção de curso. Ao invés de tentar Psicologia, decidi concorrer à vaga de Pedagogia. Tomei essa decisão por saber que o horário do curso de Psicologia era integral, o que significaria que eu não poderia trabalhar para manter meus estudos. Também levei em conta o fato de que as oportunidades nessa área eram muito restritas. Novamente, consegui isenção em todas as inscrições das federais, prestei o vestibular e passei para a segunda fase de todas, o que me deixou muito feliz e cansada, pois vivi uma intensa maratona de provas e todos os locais de provas eram muito distantes. Eu precisava acordar de madrugada, pegar ônibus e ir rezando para não pegar nenhum engarrafamento. Quando chegou a época dos resultados, fui conferindo todos: UFRJ, UFF e UERJ. A cada lista, aumentava minha decepção, pois não encontrava meu nome, apesar de ter conseguindo atingir a média para ser classificada. Já estava sem esperança de ser uma estudante universitária. Ao desabafar com uma amiga, ela me convidou para acompanhá-la a um escritório, a fim de tentarmos uma vaga de emprego em uma rede de supermercados, topei na hora, pois eu precisava ajudar nas despesas da minha casa, haja vista os dois anos de tantos gastos. Enquanto estávamos na fila, vi um rapaz lendo um jornal de esportes que, na capa, tinha uma manchete ressaltando a lista de aprovados da UNIRIO. No momento em que eu li aquilo, me dei conta que tinha esquecido de conferir o resultado dessa universidade. 162 Caminhadas de universitários de origem popular Então, mais que depressa, pedi o jornal emprestado ao rapaz e busquei meu nome, ansiosamente. Para meu espanto e alegria, meu nome ali estava, enfim havia conseguindo a tão sonhada vaga em uma universidade federal. Minha família toda ficou muito feliz. Era a realização de um sonho coletivo. Passado a euforia, começamos a pensar nas questões finaceiras e na distância entre a UNIRIO e a minha casa. Sem contar que o curso era noturno, o que agravava mais as preocupações. Mesmo com todos esses “probleminhas”, valia a pena enfrentar o desafio, pois eu e meus familiares tínhamos a consciência de que tudo o que acontece na vida de pessoas humildes é sempre através de muita luta. Enfim, chegou o tão sonhado primeiro dia de aula. Ao entrar naquele espaço, eu me senti muito feliz e perdida. Não possuía conhecimento da rotina universitária, mas logo fiz algumas amizades que ajudaram na minha adaptação naquele ambiente. Um fato interessante é que, a partir do primeiro dia, os alunos já haviam se dividido em grupos de acordo com sua classe social. No grupo em que me enturmei, todas tinham, mais ou menos, o mesmo perfil social. Quando estava cursando o segundo período, fui trabalhar em uma creche comunitária conveniada com a Prefeitura, no meu bairro. Eu adorava o trabalho, mas o problema era o horário. Eu trabalhava no turno da tarde, das 13h às 17h, e estudava à noite, por isso, eu chegava atrasada todos os dias na faculdade, além de muito cansada. Mesmo com essas dificuldades, prossegui com o trabalho e a graduação. No quarto período, precisei trancar o curso devido à violência do movimento do tráfico no meu bairro. As facções estavam em guerra, promovendo uma onda de terror na nossa comunidade e impondo um toque de recolher a partir das 22h. Nos primeiros dias, tentei dormir na casa de uma amiga, mas me sentia muito mal, então, optei pelo trancamento de minha matrícula. No período seguinte, retornei e, assim, prossegui com o curso. Nessa época, fiquei noiva. Após alguns meses de noivado, engravidei. Esse fato causou um alvoroço na minha família, só que, mesmo estando grávida, não desisti. Continuei a estudar e a trabalhar grávida. Em fevereiro de 2003, nasceu minha querida filha, Maria Beatriz. Após o seu nascimento, continuei a estudar. Quando a minha filha completou seu primeiro ano de vida, engravidei novamente. Nesse momento, eu me desesperei. Percebi que o sonho de me formar estava escapando das minhas mãos e tudo por minha culpa. Se já não fosse o bastante ter outro filho, ainda estudando, outro agravante tirava meu sono: eu e meu marido morávamos na casa dos meus pais. De modo que o clima estava muito tenso. Na verdade, eu estava com vergonha dos meus pais, da minha mãe para ser mais exata, já que ela havia me incentivado tanto nos estudos. Sendo assim, eu e meu marido tomamos a decisão de morar de aluguel. Contudo, o valor do aluguel era alto, meu marido não podia pagar sozinho, então tive que trancar mais uma vez o meu curso. Nessa época, perdi totalmente as esperanças de me formar e já tinha tomado a decisão de não retornar à UNIRIO. Depois de alguns meses, conseguimos comprar um apartamento financiado. Após uma gravidez super atribulada, nasceu meu caçulinha Yuri. Graças a Deus, ele veio ao mundo lindo e forte. Com o nascimento do meu segundo filho, veio, também, meu amadurecimento como mãe e mulher. De maneira que percebi o quanto era importante meu retorno aos estudos. Cheguei à conclusão de que minha formatura poderia proporcionar uma vida melhor para os meus filhos. Formando-me, eu teria a certeza de que eles, no futuro, não se sentiriam culpados por eu não ter concluído o curso. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 163 No inicio do ano de 2005, quando tudo parecia favorável ao meu retorno à faculdade, tive que enfrentar outro desafio. Ao descer a escada do meu prédio, sofri um acidente. Para meu desespero e de toda a minha família, eu tinha fraturado a tíbia e a fíbula da perna esquerda, de modo que precisaria ficar internada para aguardar uma cirurgia ortopédica. Foi uma fase muito dolorosa para todos. Dois meses após a cirurgia, iniciei a fisioterapia. No começo, por não poder andar, me locomovia com cadeira de rodas. Depois de alguns meses, passei a andar de muletas e, no final desse mesmo ano, voltei a andar sem apoio. Apesar de toda essa via-crucis, não desisti da universidade. Assim que pude, entrei com o pedido de reingresso, que, graças a Deus, foi aceito. Voltei à UNIRIO! No primeiro semestre de 2006, eu estava de volta à minha universidade, muito feliz e decidida de que, somente com meu canudo na mão, sairia de lá. Meu marido e minha mãe estavam bancando meus gastos com passagens e fotocópias. No final desse semestre, tomei conhecimento do Programa Conexões de Saberes, me inscrevi e fui aceita. A minha entrada no Programa foi mais uma confirmação de que eu estava seguindo o caminho certo. O valor da bolsa me ajuda muito nas despesas de minha permanência na universidade, mais do que isso, ter entrado para o Conexões significou, para mim, ingressar num grupo no qual eu me sinto feliz e estimulada para seguir em frente. 164 Caminhadas de universitários de origem popular Lembranças da Colina Luciana Campos de Golarte * Nasci na colina do Estácio de Sá, verso cantado em prosa pelo meu pai responsável pelo nome que tenho... no dia 28 de julho, à 01:30 da madrugada, nasci no Hospital do Corpo de Bombeiros, como a segunda filha do casal que morava no Morro de São Carlos. Ambos filhos de mães e pais guerreiros, que, através do trabalho, davam conta do sustento e do cuidado com os filhos. Minha avó paterna morava numa casa de estuque, aquela que é feita de madeira, barro e latão, muito comum nas comunidades populares. Tinha o chão onduloso, porque era de barro e iluminada por lampião. Eu adorava chegar lá e beber chá mate bem quentinho com biscoito cream cracker e sentir aquele cheiro de casa limpa e cuidada. Dos becos, eu sabia todos os esconderijos e caminhos que me levavam à vitória do pique-esconde. Meus amigos, quase todos da minha idade, eram meus primos e vizinhos. Cada um tinha hora para tudo. Para brincar e para estudar. Quando a cambada não estava nos becos, era sinal de escola ou de serviços domésticos. Como muitos de nossos pais e mães trabalhavam fora, éramos nós quem também cuidávamos da casa. Meu pai, nos fins de semana, sempre me levava para passear no parquinho do Flamengo (na Zona Sul do Rio), onde brincava descalça, com o cabelo cheio de cachinhos nas casinhas, nos balanços e escorregas. Depois de tanta brincadeira, íamos tomar o famoso caldo-de-cana com pastel de carne nos botecos do Flamengo. Pouco a pouco, fui me afastando dos meus amigos e parentes do morro e fiz novas amizades no parquinho e na escola que ficava na Rua Haddock Lobo, na Tijuca. A cobrança nos estudos era constante. Meu pai e minha mãe todos os dias me mandavam fazer cópia de livros e textos para ter boa caligrafia. Então, apoiava uma fina tábua de madeira em cima das pernas e colocava por cima o livro e caderno para copiar as histórias do Sítio do Pica-Pau Amarelo e as poesias de Cecília Meirelles... De noite, à sombra da cozinha, ficava dançando como bailarina, rodopiando pra cá e pra lá, enquanto meus pais viam ou fingiam que viam TV, porque, alguns dias depois, meu pai me levou para participar de uma seleção de balé clássico, na Escola de Dança Maria Olineiva, que fica na Lapa. No dia do teste, eram tantas, mas tantas meninas que parecia que eu estava ali a passeio, porque não daria tempo para todo mundo fazer o teste. Mas deu tempo, sim. O teste foi feito ao som do piano. Dancei tal como dançava na sombra lá de casa. E, para surpresa * Mestranda em Educação pela UNIRIO. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 165 minha, fui selecionada com uma excelente pontuação. Na entrega do resultado, a pianista perguntou ao meu pai se tínhamos piano em casa, mas se ela soubesse que, lá onde morava, mal cabia uma mesa na sala! Cursei as aulas de dança pouco tempo, porque não tivemos dinheiro para custear as idas e as roupas. Acabei perdendo a bolsa. E saí daquele sonho. Mas fazer o quê? Na escola, nunca dei esquentação de cabeça. Sempre tirei boas notas e contei com elogios da Tia Regina e da Tia Vera. Também, se uma notinha ficasse vermelha, era palmada na certa! Ao terminar a 4ª série, conseguimos uma matrícula no Instituto de Educação do Rio de Janeiro, depois de eu ter sido tomada pelo porteiro da escola como afilhada, em troca de um dinheiro para uma cerveja. Com a vaga garantida, cursei da 5ª série ao 3º ano do Ensino Médio no colégio considerado de excelência por minha família. Aos 18 anos, aproximadamente, tive meu primeiro emprego como auxiliar de caixa de uma grande loja de roupas, onde percebi que aquele trabalho não era meu sonho. Então, enfiei na cabeça, que iria entrar na universidade pública, porque através dela teria um trabalho e uma vida melhor. Matriculei-me, então, anos depois, num pré-vestibular comunitário na 1ª Igreja Batista, no bairro Estácio de Sá. Estudava dia, noite e finais de semana. Levava apostilas para o trabalho e dava umas lidas no ônibus e nas horas vagas. Compartilhava com os amigos do trabalho o desejo de entrar na universidade, chegando a ser, aos olhos de um antigo namorado, obsessiva e chata! Ainda bem! Todo o esforço deu certo. Passei, no ano de 2000, para o curso de Pedagogia da UNIRIO, buscando conciliar o emprego com as aulas do período noturno. Não foi fácil. Cheguei a pedir demissão do trabalho, porque era preciso haver dedicação nos estudos, então, mais uma vez, contei com a força e o apoio de meus pais, que não fizeram questão da minha ajuda nas despesas da casa para o pagamento das contas, principalmente. Nos meados de 2003, conheci uma professora recém-chegada à UNIRIO, a professora doutora Lúcia Mello, quando, em sala em sala, apresentava a temática de sua pesquisa, intitulada: “A imagem corporal do adolescente: pertencimento e exclusão”. Fiquei interessada no assunto e me coloquei à disposição como voluntária. Com o tempo, conseguimos financiamento da FAPERJ, o que ajudou no custeio das despesas com os estudos e nas viagens em seminários ou apresentações de trabalhos. Agora, faço mestrado em Educação e trabalho junto ao Conexões de Saberes, fazendo jus aos ensinamentos dos meus pais, que me diziam: “Conhecimento, filha, é a única coisa que a gente leva, independente de qual origem somos”. É dessa origem que me orgulho e canto: “Nasci na colina do Estácio de Sá Tal qual partideiro aprendi improvisar Nas rodas de samba aprendi declamar poesias Transformando em música popular Saí do berço da Deixa Falar Lá nasci e me criei Aprendi tudo que sei Desse mundo de ilusão Hoje me encontro no asfalto Vou cantar partido alto 166 Caminhadas de universitários de origem popular Para essa miscigenação Vou disfarçar a amargura Repousar na brandura no tom da viola Carregar amor à bandeira da minha escola Viajar ao passado Andar lado a lado Com a inspiração Sentir necessidade de compor uma linda canção Nasci.” Canção de autoria do meu grande mestre e exemplo: Meu pai, Luciano José Golarte (Luciano Primo da Escola de Samba Estácio de Sá). Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 167 Do Ita do Norte para a universidade Monica Borges Monteiro* Peguei um Ita no norte Pra vim pro Rio morar Adeus meu pai, minha mãe Adeus Belém do Pará Ai, ai, ai, ai Adeus Belém do Pará Ai, ai, ai, ai Adeus Belém do Pará Vendi meus troços que eu tinha O resto dei pra “aguardar” Talvez, eu volte pro ano Talvez eu fique por lá. Dorival Caymmi Vim para a metrópole do Rio de Janeiro cheia de sonhos no convés do meu Ita do Norte. Assim como a canção de Dorival Caymmi, deixei meu pai, minha mãe, minha irmã e minha Belém do Pará. Ai, ai, ai, como dói estar tanto tempo longe. Contudo, esse saudosismo não foi sempre assim. No início, tinha vergonha de falar sobre minha terra, porque era um pouco tímida, mas também porque falar de lá era muito cansativo, principalmente se abordasse a descendência materna dos povos marajoaras. Primeiro, esclarecer o que é o Marajó1, que lá não morávamos em ocas, que não usávamos flechas para caçar, que as ruas têm asfalto e as casas têm televisão ligada na Rede Globo. Também tinha que explicar que quem nasce no Pará não é “paraíba”, é paraense e que esse estado pertence à região Norte. * Mestranda em Educação pela UNIRIO. A Ilha de Marajó pode ser considerada um lugar à parte do Brasil. A vida é mais calma, a fauna e a flora são exóticas e as paisagens mudam de tempos em tempos. Localizada bem ao norte do estado do Pará, está é a maior ilha fluviomarinha do mundo. Em toda a Ilha de Marajó, moram cerca de 250 mil pessoas, quatro vezes menos que na capital do Pará, em um espaço equivalente aos estados de Alagoas e Sergipe juntos. Banhada pelo Oceano Atlântico e pelos rios Amazonas e Tocantins, Marajó conta com a maior criação de búfalos do Brasil. O vaqueiro, aliás, é o personagem típico da Ilha. Além dos búfalos fornecerem o couro e a carne, eles também são o meio de transporte. As grandes criações da Ilha estão do lado mais próximo a Belém, por ser predominantemente composto por planícies. Na região, vive a maioria dos habitantes. Soure, que é considerada a capital, tem pouco mais de 20 ruas e todas são conhecidas por números. A 5ª avenida é a principal. 1 168 Caminhadas de universitários de origem popular Isso era muito desgastante, pois, além de proporcionar um sentimento de alienígena em uma cidade como o Rio de Janeiro, que é freqüentada por cidadãos do mundo, pareceme esquizofrênico o fato de pessoas conhecerem a Disney e não conhecerem o Pará. Logo o Pará2, do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, do Pato no Tucupi, da Maniçoba, do Tucunaré. Esse estado tem que ser conhecido por todos os brasileiros e nossos irmãos latinos. Querem saber uma característica do paraense? Ser orgulhoso. Não sabemos muito bem por que, mas sabemos que nossa terra tem tudo de bom que foi criado, esse é um sentimento de caboclo que vive na ribeirinha do rio. Agora mudei. Agora posso falar de minhas origens, detalhe por detalhe, porque aprendi a valorizar minha cultura e sei que minha história tem muitas semelhanças com milhares de outras, que sonham com um mundo melhor. Lá vou eu, lá vou eu, lá vou eu Me levo pelo mar da sedução (sedução) Sou mais um aventureiro Rumo ao Rio de Janeiro, adeus adeus, Adeus Belém do Pará Dimá Chagas, Arizão, Celso Trindade, Bala, Guaracy e Quinho3 Foi em um mar de sedução chamado basquetebol, que me fez passar parte da minha adolescência em uma quadra, não importava em qual bairro ou cidade ou estado ela estava, o que importava era estar lá, sonhando ser jogadora de basquete. Logo eu, mulher, paraense descendente de marajoara e com apenas 1,70cm de altura, achava que um dia poderia fazer parte da seleção brasileira de basquete feminino. Esse sonho começou na Escola Estadual Augusto Montenegro, em Belém, quando descobri que não gostava de Educação Física. Para fugir das aulas, entrei para a equipe de basquete. Nos jogos intercolegiais, um técnico do Clube do Remo4 me chamou para fazer parte da equipe. Como atleta eu poderia frequentar as dependências do clube. Logo eu, estudante de escola pública, filha de pais que concluiram o equivalente ao atual Ensino Médio e moradora da periferia do bairro Telégrafo-sem-fio, em um tradicional clube belenense. Posteriormente, isso me causou grandes transtornos. No inicio era legal, conhecer gente nova, outras culturas, diferentes hábitos, tomar banho na piscina, entre outros prazeres. Depois essa convivência foi ficando rara, isso porque eu não tinha tempo para o lazer, pois estudava, trabalhava e treinava basquete. Essa parte do trabalho foi dura. Minha mãe, já separada do meu pai e tomando conta da prole (eu e minha irmã), havia perdido o emprego. Com a rescisão salarial, comprou uma barraca na 2 O estado do Pará está ligado à Amazônia e é uma terra de incrível beleza e grande riqueza cultural e folclórica. Belém, considerada a capital da Amazônia, foi fundada em 1616. Banhada pela Baía do Guajará e pelo Rio Guamá. Devido à proximidade com a linha do Equador, seu clima é quente e úmido. Suas praças são arborizadas, onde a mangueira é uma espécie predominante, por isso é conhecida como a cidade das mangueiras. Outro destaque do Pará é a culinária exótica, autenticamente brasileira, descendente direta dos povos de origem das florestas. 3 Peguei o Ita no Norte, um samba composto por Demá Chagas, Arizão, Celso Trindade, Bala, Guaracy e Quinho e com o carnavalesco Mário Borriello, com o qual o Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro conquistou, em 1993, seu último título do carnaval carioca. 4 Em Belém, existem dois grandes clubes: o Clube do Remo e o Paissandu, suas torcidas são inimigas desde que estavam na barriga da mãe. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 169 feira para vender farinha d’água. Eu e minha irmã tinhamos que ajudá-la na venda. Nesse período, chegava na feira às quatro da manhã, saía às dez para cozinhar o almoço, às treze horas estava na escola, às dezoito horas estava no treino e às vinte e duas horas estava exausta na cama. Mas o cansaço não era o pior sentimento. O pior era quando um amigo de escola ou do clube chegava na barraca para comprar farinha. Naquele momento, eu morria de vergonha. Não entendia por que precisava trabalhar e eles não, por isso, como toda adolescente, me sentia anormal. O dia mais constrangedor na semana era sábado, o dia mais movimentado da feira. Logo cedo, meus amigos passavam na frente da barraca a caminho da praia ou do clube, eu ficava ali, trabalhando pacas! Foi um período de muita insegurança, fragilidade familiar e poucos sonhos. Um dia, depois da chuva, achamos um “olho de boto”5 perdido na rua. Depois disso um monte de coisas boas aconteceram. Minha mãe conseguiu um novo trabalho e eu fui convocada para a seleção paraense, categoria infanto (até 14 anos). Eram os jogos estudantis brasileiro (JEB’S). Foi quando conheci Brasília, fique encantada e ao mesmo tempo assombrada com as características do local, cheio de viadutos e sem nenhum igarapé6. Na época, eu achava que uma cidade que não tinha igarapé, não era boa. Agora tenho certeza que uma cidade pode ser muito melhor com um igarapé, mas também estou convencida que o mar é um excelente substituto para os igarapés. Sei que isso é um contrasenso ecológico, pois o igarapé é muito menor que o mar, mas paraense pensa invertido. Depois de conquistar o terceiro lugar, vencendo a Paraíba, fortíssimo time, voltamos para Belém e foi a glória. Entrevistas, reportagens e patrocinador para o time, o que significou maior investimento em material esportivo para as atletas, por isso ganhei um tênis de basquete novinho. Com esse tênis, eu tirava a maior onda de atleta na escola, isso me proporcionava status, o que era representado na ajuda dos colegas com as tarefas, na flexibilidade com as faltas nas aulas pelos professores e na tolerância do supervisor pelos atrasos. Eu me transformei em referência para a juventude daquela comunidade, ratificando o jargão de que o esporte afasta o jovem das drogas e reduz a violência. O número de jogos foi aumentando e ficava cada vez mais difícil conciliar os treinos com o estudo. Nesse período, as atletas ganhavam ajuda financeira, o que contribuia muito com as despesas de casa. Aos dezessete anos, recebi um convite para jogar no Clube Botafogo, no Rio de Janeiro. Na minha imaginação, era o grande passaporte para um teste na seleção brasileira, devido à proximidade com São Paulo (principal centro de formação de atletas de basquetebol no Brasil). Estava concluindo o Ensino Médio em escola pública e deveria prestar vestibular, então, não pensei duas vezes, abandonei os estudos e dei adeus a Belém do Pará, em busca do sonho. 5 Tradicionalmente na região Norte o “olho de boto” é um amuleto que dá sorte. Igarapé é o nome de “pequeno curso d’água”, palavra que no Brasil foi adotada do nheengatu, originária do tupi-guarani. O igarapé (igara, que significa embarcação escavada no tronco de uma só árvore, e pé, que significa caminho), em termos científicos, significa cursos de água amazônicos de primeira ou segunda ordem, braços estreitos de rios ou canais existentes em grande número na bacia amazônica, caracterizados por pouca profundidade, e por correrem quase que no interior da mata. A maioria dos igarapés tem águas escuras semelhantes às do Rio Negro, transportando poucos sedimentos. São navegáveis por pequenas embarcações e canoas e desempenham um importante papel como vias de comunicação. 6 170 Caminhadas de universitários de origem popular Sou mais um aventureiro Rumo ao Rio de Janeiro, adeus adeus, Adeus Belém do Pará Um dia volto, meu pai Não chore, pois vou sorrir Felicidade, o velho Ita vai partir Oi no balanço das ondas, eu vou No mar eu jogo a saudade, amor O tempo traz esperança e ansiedade Vou navegando em busca da felicidade Em cada porto que passo Eu vejo e retrato em fantasias Cultura, folclore e hábitos Com isso refaço minha alegria Chego ao Rio de Janeiro Terra do samba, da mulata e futebol Chegar aqui foi duro, além da cidade ter características culturais muito diferentes da minha, eu estava sozinha e morando em alojamento de atletas. Essa temporada foi a mais dificil, pois tinha que me superar em muita coisa, principalmente na maturidade que não tinha. Como atleta, em geral, eu ia bem, o dinheiro que ganhava dava para ajudar a minha mãe e me sustentar. O que faltava era pespectiva para o futuro, pois sabia que a carreira de atleta era efêmera. Dito e feito, após jogar em diversos clubes no eixo Rio–São Paulo, sem nunhum convite à seleção brasileira de basquetebol, percebi que precisava de outros projetos na minha vida. Voltar para Belém era impensável sem ter conseguido entrar para a seleção. Era orgulho mesmo, pois tinha vergonha de ser encarada como fracassada. Com o tempo, os contratos no basquete foram ficando mais escassos e para sobreviver eu precisava de outra fonte de renda. Fui trabalhar no Mc’Donalds. Nesse momento, não era mais adolescente e consegui não ter vergonha dos meus amigos que freqüentavam o restaurante. Fiquei um ano e meio nesse trabalho para descobrir que precisava voltar a estudar. Prestei vestibular para Educação Física na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com a cara e a corragem, pois não tinha dinheiro para pagar cursinho e não tinha conhecimento da existência de cursinhos comunitários. Recordo-me do dia em que saiu o resultado do vestibular, vi que tinha sido aprovada para as duas universidades, comemorei sozinha, bem diferente do Pará, onde uma notícia como essa é motivo para um grande festa. Optei pelo Bacharelado em Educação Física pela afinidade com o esporte (basquetebol) e pela UFRJ, porque oferecia curso noturno, o que me possibilitava continuar trabalhando como “Mc’escrava”. Quando estava no segundo período, comecei a fazer estágio com aulas de natação para crianças. Larguei o trabalho em fast food e entrei na área do fitness. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 171 Meu percurso na graduação foi muito difícil porque tinha que conciliar o estudo e o trabalho. Contudo avaliava que era melhor do que vender farinha na feira. Depois de graduada e com duas especializações na área, estava trabalhando em academia de ginástica e novamente percebi que estava sem sonhos. Foi quando resolvi pedir reingresso na UFRJ, entrei para a licenciatura em Educação Física e no grupo de pesquisa ANIMA7, um marco muito importante em minha vida, pois foi a semente de uma carreira acadêmica. Fazer parte de um grupo de pesquisa foi/é fundamental para melhor compreensão das possibilidades profissionais que essa área de conhecimento pode te proporcionar. Oi no balanço das ondas, eu vou No mar eu jogo a saudade, amor O tempo traz esperança e ansiedade Vou navegando em busca da felicidade Em cada porto que passo Eu vejo e retrato em fantasias Cultura, folclore e hábitos Com isso refaço minha alegria Foi com o sentimento de renovação e comprometimento político de mudar o mundo e a minha vida que ingressei no Programa de Alfabetização da UFRJ para Jovens e Adultos em Espaços Populares (PAJA). Esse programa prevê que graduandos de diferentes áreas possam alfabetizar jovens e adultos. Então, usando o conhecimento acumulado com o ANIMA, fui como educadora popular para a Vila do João, meu primeiro contato com uma comunudade popular no Rio de Janeiro, o que me proporcionou um sentimento de identidade com as características culturais do local. Resultado, abandonei o fitness e me dediquei à educação popular, ganhando uma miséria, mas cheia de utopia. Após dois anos como educadora de comunidade popular, fui selecionada para o Programa de Mestrado em Educação na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, com projeto sobre o PAJA. Durante o mestrado, surgiu a possibilidade de entrar no Programa Conexões de Saberes. Nesse momento, trabalhava em um projeto do SESC que exigia muito tempo de dedicação e atrapalhava muito o andamento do mestrado, por isso achava que não conseguiria concluir o curso. O Conexões de Saberes me possibilitou trabalhar, estudar e fazer pesquisa. Eu ainda não acredito que tenho essa oportunidade. Graças a ele, poderei terminar o mestrado esse ano e sonhar com ingresso no doutorado. Aqui, avalio que retomo minha capacidade de sonhar, de ser vencedora. Agora posso voltar para minha terra e falar que não consegui ser jogadora da seleção brasileira de basquetebol, mas consegui que, 7 O objetivo do “Anima” é estudar/pesquisar o lazer em suas múltiplas dimensões, com denotado interesse para a questão da intervenção pedagógica, concedendo-se a “Animação Cultural” espaço especial de discussão e de construção teórica. A perspectiva dos Estudos Culturais concede o norte teórico que embasa as ações e reflexões do Grupo de Pesquisa “Anima”. Mais informações em http://www.lazer.eefd.ufrj.br 172 Caminhadas de universitários de origem popular através do meu trabalho, esteja em discussão o acesso e a permanência de estudantes de origem popular na universidade. Estudantes que lutam por um espaço no mundo. Agora, volto a sonhar com um mundo melhor. Explode Coração Na maior felicidade Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 173 Parte 2 A UNIVERSIDADE REENCONTRA A ESCOLA PÚBLICA ________________________ Relatos sobre a parceria entre os Programas Conexões de Saberes (MEC/SECAD) e Escola Aberta (MEC/UNESCO) O ingresso da UNIRIO no Programa Conexões de Saberes, em 2006, foi possível a partir de uma parceria com o Programa Escola Aberta (UNESCO/MEC), o que levou a que nossas ações de extensão fossem feitas em escolas públicas da periferia de seis municípios fluminenses: Belfort Roxo; Duque de Caxias; Mesquita; Niterói; Queimados e São João de Meriti. Atuamos em 41 escolas desses municípios, geralmente em localidades distantes, isoladas e extremamente pobres. Em muitos lugares, a escola era a única instituição pública existente. Foi um trabalho difícil, mas muito importante na formação deste grupo e, arriscaríamos dizer, na ruptura com uma separação histórica e equivocada que marca os níveis de ensino no Brasil nas últimas décadas: a distância cada vez maior entre a universidade pública e as escolas públicas. Sabemos que nem sempre foi assim, isto é, quando a escola pública era, em sua maioria, de boa qualidade havia uma interação maior entre esses dois espaços, até porque muitos alunos oriundos da rede pública ingressavam facilmente na universidade pública. O saudosismo em relação à “época de ouro” da escola pública mal disfarça um elitismo equivocado, pois essa escola de qualidade era uma experiência acessível apenas aos setores médios e altos da sociedade. A massificação da escola, a partir da década de 1970, foi acompanhada pela perda de qualidade e pelo progressivo distanciamento entre a escola e a universidade pública. A escola pública virou, desde então, um tema e um problema, geralmente lembrada quando se aborda temas como o fracasso escolar, a falência da estrutura física dos estabelecimentos, a proletarização do quadro docente e discente etc. Atualmente, a idéia de que a escola pública é caracterizada pela precariedade domina a representação sobre os níveis de ensino fundamental e médio no Brasil. Os baixos salários dos professores, a sobrecarga de trabalho, as instalações físicas insuficientes ou destruídas e, mais recentemente, o avanço da violência no cotidiano escolar têm transformado a escola pública em sinônimo de decadência. Esse quadro, que é dramático e real, principalmente nos grandes centros urbanos, não dá conta, porém, do importante papel econômico, social e político que a escola pública continua desempenhando como espaço de socialização da juventude e, também, de ascensão social dos filhos das classes populares. Em um texto importante, Sposito (2005, p.123) define como uma das marcas identitárias fundamentais da juventude brasileira contemporânea o que classificou de um “mergulho na sociedade escolarizada”, isto é, a escola está no centro da vivência cotidiana dos jovens brasileiros. Nesse sentido, a universidade e a escola pública são espaços privilegiados para a ampliação das ações no campo da educação e da cultura, pois tem um forte impacto na criação de alternativas reais para os jovens pobres, criando novas redes sociais no campo da cultura democrática. As instituições públicas de ensino seriam, assim, os nós centrais dentro de uma rede de intervenções republicanas de ampliação dos horizontes educacionais e existenciais da juventude. A dimensão pedagógica das redes socioculturais deriva do fato delas serem espaços fundamentais para a construção das identidades e práticas sociais dos indivíduos. Pensar a cultura como política pública é uma perspectiva que só recentemente começa a se afirmar no Brasil, a despeito da nossa tradição de país produtor de inúmeras e variadas manifestações culturais. Por isso, adotar esta perspectiva no âmbito de instituições públicas, como são as universidades e as escolas públicas, pode vir a ter um impacto positivo sobre setores populares e, conseqüentemente, sobre as condições de acesso ao emprego, renda e afirmação dos valores dos quais são portadores. Essas redes têm o papel central de transformar Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 177 a cultura em espaço de sociabilidade e de afirmação da democracia, dando um sentido mais palpável à idéia de cidadania, o que pode ser feito articulando-se algumas dimensões muito presentes na discussão contemporânea sobre política cultural, tais como a interlocução criativa com o mercado e a afirmação de novos valores e identidades desses grupos populares. Nesse sentido, a escola pública, sobretudo de periferia, é hoje freqüentada prioritariamente por estudantes de origem popular e, portanto, se tornou para nós um espaço privilegiado para a intervenção dentro da perspectiva filosófica do Programa Conexões de Saberes, isto é, integrar o saber erudito e o saber popular na produção do conhecimento. O nosso objetivo passou então a ser o reencontro do jovem universitário de origem popular com a escola pública, buscando criar uma nova compreensão sobre os espaços populares, para além dos estigmas que os caracterizam. Muitos de nós, conexistas, cursamos escolas públicas e reencontramos esse espaço pior, em vários aspectos, do que quando o deixamos há menos de uma década atrás. Foi um reencontro necessário, pois acreditamos que fortalecer a escola pública contribui para se tornar a universidade mais aberta a estudantes de diferentes origens sociais e, portanto, transformá-la em um espaço capaz de produzir um conhecimento mais amplo, plural e socialmente relevante. A vivência nas escolas públicas de periferia é o que narraremos a seguir. A percepção da distância A universidade e os espaços populares criam entre si representações simbólicas que favorecem cada vez mais o distanciamento e a divisão já existente entre eles. Nessa relação, o conhecimento científico e o conhecimento popular também se afastam e cada um vê o outro com estranheza, criando conceitos, que muitas vezes não representam de fato a realidade. O objetivo da nossa intervenção foi favorecer a leitura e discussão sobre direitos humanos, ocupando a escola durante os fins de semana para oferecer essas oficinas à comunidade, partindo da compreensão de que a escola é um espaço público cuja finalidade vai além de sua abertura no período letivo. O grande desafio era atrair as pessoas para essas atividades, torná-las uma atividade interessante e culturalmente relevante e, nesse processo, trocar experiências que, acreditamos, nos enriqueceria mutuamente. A palavra conexão traz em si um sabor de integração, de diálogo, sugere uma ruptura com o paradigma da fragmentação dos conhecimentos, da hiperespecialização. Por isso, o Programa Conexões de Saberes busca valorizar a aptidão para problematizar e ligar os conhecimentos para (re)pensar o modo como aprendemos a entender a própria estrutura da Universidade. Uma estrutura em que habitam conhecimentos importantíssimos, mas pouco difundidos, pois cria departamentos estanques, constrói em volta de si um muro invisível onde continuamente se luta para impedir a penetração de novos saberes que possam estremecer as certezas já tão concretas. Pensar na conexão de saberes, então, é admitir a ruptura com o modo de se fazer Ciência e de se compreender o conhecimento. É ver as condições de possibilidades das ações humanas projetadas no mundo a partir de um espaço/ tempo local, propondo a adesão ao que se estuda, ensinado e aprendendo a viver, traduzindo os conhecimentos em saberes práticos, para usar a idéia central do filósofo Edgar Morin. Nesse sentido, a parceria do Programa Conexões de Saberes com o Programa Escola Aberta buscou contribuir para a construção da cidadania consciente, responsável e participante, favorecendo a inclusão sociocultural, particularmente do jovem e crianças estudantes da educação básica das escolas públicas. A prática metodológica e a postura 178 Caminhadas de universitários de origem popular ética adotada levaram à aproximação gradual com o universo de intervenção (a escola e a comunidade do entorno), respeitando a dinâmica de atividades que já existiam, ouvindo antes de propor, visando, enfim, uma construção coletiva baseada no que cada parceiro tem a oferecer. Para tanto, foi necessário desvelar inicialmente esses territórios desconhecidos mesmo por estudantes de origem popular que, supostamente, teriam afinidades com esse universo da escola pública e das periferias urbanas. O intuito é transformar a escola em um ambiente mais atuante e presente na vida dos jovens e suas comunidades, promovendo maior diálogo, cooperação e participação entre a universidade e a comunidade escolar. Para iniciar essa aproximação, fizemos um Estudo de Viabilidade, ou seja, um diagnóstico ligeiro formulado e proposto pela UNIRIO e aceito pelas demais universidades, que consiste em um instrumento quantitativo e qualitativo de coleta rápida de dados sobre a escola e a comunidade que seriam alvos de intervenção. Esse estudo foi realizado pelos bolsistas em todas as escolas integrantes do Programa e permite uma avaliação, ainda que parcial, do impacto da intervenção dos programas na melhoria das condições originalmente encontradas. Devido à estratégia de divisão das escolas por municípios e os municípios por universidades, as escolas as quais a UNIRIO está atuando são em localidades diferentes das de origem dos bolsistas. Essa organização nos acarretou maior recurso financeiro com o transporte até a escola, embora tenha possibilitado uma maior circulação do grupo por realidades diferentes nos municípios atendidos. Pelos relatos dos percursos até a escola percebemos que muitos bolsistas não conhecem o próprio estado em que residem. Alguns conhecem somente o percurso de suas casas até a universidade. A necessidade de deslocamento para outro município proporcionou experiências de apropriação de novos espaços urbanos, como também, viabilizou reflexões a partir da comparação entre comunidades, ou seja, trocas de conhecimento. Na investigação sobre a escola, perguntamos: “A escola é de fácil acesso? Sob qual meio de transporte?” Esse questionamento iniciou um debate sobre “a precariedade do transporte coletivo” e “as dificuldades de acesso à população da baixada fluminense”. Pelo formulário, 80% das respostas retratam a escola como de difícil acesso e com pouquíssimas linhas de ônibus, situação que se agrava nos fins de semana, quando os horários dos ônibus são mais espaçados. Vejamos algumas observações, optamos por não identificar o bolsista já que acreditamos que cada fala compõe o painel do que o grupo vivenciou nesse período: “... foi preciso pegar 2 ônibus e um metrô”. “... utilizo 3 ônibus e 10 minutos de caminhada”. “... o único meio de transporte é o ônibus, duas empresas cobrem essa linha: a Riod´oro e a Flores, aos sábados esses ônibus não têm hora para passar. Também existe um valão em frente ao Ciep. Quando chove ele transborda e fica inviável chegar”. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 179 A dificuldade de acesso à escola nos possibilitou perceber que a comunidade que reside próximo à escola também tem dificuldade para se deslocar pelas cidades, ou seja, menos oportunidade de circulação e apropriação do ambiente urbano. Se associarmos a dificuldade de locomoção com a existência de equipamentos culturais presentes na comunidade pudemos refletir sobre como a dificuldade de circulação pode comprometer o acesso a trocas culturais e a produção cultural. Pelo estudo, a vizinhança das escolas é composta de: · Comercio: 85% têm comércio variado e 15% somente pequenos bares; · Posto de Saúde: 37% têm projetos em parceria com a escola, 27% com postos que não são parceiros e 36% sem postos de saúde nas proximidades; · Escolas vizinhas: 75% estão em parceria (articuladas pelo programa Escola Aberta), 5% de escolas vizinhas não são parceiras e 20% sem escolas nas proximidades; · Biblioteca: 85% das bibliotecas públicas necessitam de pelo menos um meio de transporte para acesso. · Espaços culturais: 15% possuem espaços culturais diversificados (cinema, teatro, lona cultural, clubes e outros) nas proximidades; 55% com quadra esportiva, praça e igreja como espaços de encontro e 30% somente as atividades promovidas pela escola (entre elas o programa Escola Aberta). Identificamos que a rede social que envolve a escola é fortalecida à medida que outras escolas vizinhas estão articuladas, mas fica bastante fragilizada quando faltam instituições e/ou ações que promovam quantitativamente e qualitativamente possibilidades de trocas entre os membros da comunidade. Algumas observações apontaram que a única instituição presente, sem objetivo religioso, é a escola. Nesse sentido a presença dos programas Conexões de Saberes e Escola Aberta potencializa encontros, promove atividades culturais e a troca de saberes e afetos entre a escola e a comunidade. Assim como articula propostas práticas de melhoria de vida e transforma os conhecimentos produzidos em reflexões e ações críticas e coletivas acerca de interesses comuns. Em suma, propor espaços de trocas de conhecimento fortalece a participação da comunidade. Pelo formulário respondido, 87% das escolas contam com a participação de pais na elaboração e desenvolvimento de propostas pedagógicas, mas o número efetivo de pais envolvidos é pequeno. Outro dado importante é que 88% das escolas não possuem organização estudantil. Os 12% que existem contam com apoio da direção da escola. Buscando dados para perceber a identidade da escola, pesquisamos o espaço físico destinado às oficinas do programa Escola Aberta. Identificamos que todas as escolas disponibilizam as salas de aulas, que 80% dispõem de biblioteca e/ou sala de leitura, 75% de salas de vídeo, 80% de pátio, 60% de quadras esportivas, 12,5% de laboratórios de informática e 2,5% de teatro. Sobre o principal responsável pela realização do Escola Aberta, identificamos que em 20% delas é o(a) diretor(a), em 40% é o professor comunitário, em 35% são os dois e em 5% é o coordenador/supervisor pedagógico. Pudemos traçar uma relação direta com o tempo do Programa Escola Aberta com o número de oficinas atuantes. Sobre o tempo do projeto na escola percebemos que 62,5% têm um ano ou mais de atuação, 10% têm menos de um ano, 20% têm menos de seis meses e 7,5% estão com menos de três meses de atuação. Ou seja, quanto maior o tempo de permanência do projeto na escola, maior as possibilidades de atividades. Em escolas com mais de um ano com o Programa Escola Aberta encontramos uma boa variedade de oficinas. 180 Caminhadas de universitários de origem popular Sobre as oficinas desenvolvidas nas escolas: 52,5% são oficinas de dança; 20% de ginástica; 67% de trabalhos manuais (biscuit, tricô, crochê, tapeçaria e outros); 35% de artes (pintura, teatro, desenho e outros); 40% de lutas (capoeira, karatê); 50% de recreação e jogos; 7,5% de leitura; 50% de desporto; 7,5% de reciclagem; 50% de cursos profissionalizantes; 50% de reforço escolar; 25% de música; 5% CTO e 2,5% o projeto Escola que Protege. Identificar o tipo de oficinas desenvolvidas nas escolas é importantíssimo para a articulação da proposta de atuação do Programa Conexões de Saberes às atividades existentes. Os conexistas aproveitam as temáticas trabalhadas pelos oficineiros para introduzir as propostas de Leituração e Direitos Humanos. Quanto às primeiras impressões sobre a escola e às possibilidades de intervenção, percebemos que 40% relatam que há maior procura pelas oficinas relacionadas à geração de renda, principalmente por parte da escola. Outras percepções importantes foram: a) a boa recepção por parte do responsável pelo projeto na escola; b) precariedade em muitas instalações; c) a falta de segurança; d) a falta de organização da escola para o Escola Aberta; e) a falta de comprometimento de todos os professores da escola; f) o bom público presente; g) a solidariedade dos oficineiros na divulgação das propostas do Conexões; entre outras. “O público maior é de alunos e seus respectivos pais. Essa é a impressão que ficou, pois a escola parece fechar-se para si”. “Constatamos que alguns membros da comunidade não reconhecem a escola como espaço comunitário, o que os levaram a destruir a biblioteca”. “Os coordenadores da escola foram bastante receptivos com a minha entrada na escola, disponibilizando salas de aula para a realização da oficina. A escola responsabilizou-se em fazer a divulgação indo de sala em sala nas aulas da turma do noturno. Mas apesar de toda receptividade e interesse pelo trabalho a escola era muito carente de equipamentos, dificultando um pouco o desenvolvimento das atividades. No início os alunos eram bastante interessados, pois estavam ali para ganhar pontuação na disciplina de história. No fim do ano letivo eles não iam mais à oficina porque já tinham passado em história não havendo necessidade para eles continuar participando, apesar de ter incentivado e estimulado que continuassem. A faixa etária dos alunos era de 15 a 70 anos.” “A comunidade foi tão receptiva quanto os que trabalham na escola. Lá, os pais dos alunos e moradores próximos também participam das oficinas, assim como ex-alunos e alunos de outras escolas. A freqüência nas oficinas era grande, e eram quase Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 181 sempre os mesmos alunos. Como as idades iam de 4 aos 19 anos e os interesses dessas crianças e adolescentes eram diversos, preparávamos oficinas ora para um grupo mais jovem, de crianças, ora para os adolescentes, mas a freqüência de meninas sempre prevalecia sobre a de meninos.” É unânime a compreensão que as possibilidades de atuação são inúmeras e que o estudo de viabilidade facilitará a elaboração do planejamento pedagógico. Realmente, os dados organizados neste formulário contribuem para elaboração das oficinas pela riqueza de suas informações, nos ajuda a organizar as oficinas de acordo com os espaços existentes na escola e a proporcionar contato com os oficineiros, os espaços e os instrumentos que poderemos utilizar. A formação para o Programa Escola Aberta Partimos, nesse sentido, de nossa experiência de professoras buscando descobrir o que esses estudantes já sabiam a fim de que pudéssemos pesquisar e construir a nossa proposta metodológica. Foi preciso que tomássemos contato com textos e obras que tratassem de Direitos Humanos e Alfabetização (de suas concepções teóricas e cotidianas), foi necessário que entrássemos em diálogo não com conhecimentos prontos, mas, sim, com uma postura curiosa diante de saberes que, até então, tínhamos vivido em escolas e projetos sociais como formadoras e educadoras. Nesse sentido, foi preciso que, também, aprendêssemos a trabalhar com alunos da graduação, fazendo com que a frase “professor não é somente aquele ensina, mas, também, aprende” ganhasse sentido. Os nossos encontros voltados para o Programa Escola Aberta foram atravessados por leituras que visavam uma aproximação teórica com conceitos e teorias, bem como com momentos em que olhássemos a prática. Pensamos sempre em formar nossos estudantes/bolsistas não somente para atuarem em oficinas, mas, principalmente, para que fossem capazes de problematizar a respeito da vivência que estavam construindo dentro das escolas, lançando sobre elas um olhar de estranhamento e reflexão sobre o lugar, sobre a escola, sobre e, principalmente, o papel de educadores que passavam a exercer. A preparação para a entrada nas escolas contou com um processo de reuniões, discussões e criação de metodologias. Nesse processo, o diálogo e os possíveis acordos foram realizados com aqueles que estariam ligados à parceria. De um lado, tivemos contato com os representantes nacionais do Programa Conexões de Saberes e, de outro, com os representantes nacionais do Programa Escola Aberta. Além disso, participamos de reuniões com as quatro Instituições Federais do Ensino Superior do Rio de Janeiro (IFES)1, mediadas pela articuladora estadual Elisa Prestes. Nesses encontros, falamos sobre os objetivos que movem a parceria entre os Programas, os limites e os desafios, na medida em que sempre consideramos a diversidade cultural existente dentro do estado do Rio de Janeiro. 1 Universidades: UFF, UFRJ e UFFRJ. 182 Caminhadas de universitários de origem popular Verificou-se, nesse conjunto, a necessidade de entrar nas escolas atendidas pelo Programa Escola Aberta mediante encontros com o comitê metropolitano, que perfaz o conjunto de representantes de alguns municípios do Rio de Janeiro2 onde estaria se dando a parceria. Junto a esse grupo, haveria uma explanação sobre o que é o Programa Conexões, a forma como os estudantes iriam atuar, bem como nossos interesses e objetivos nessa parceria. Na maioria dos encontros, fica clara a necessidade de se respeitar às hierarquias – os chamados trâmites burocráticos – presentes na configuração da parceria. Então, nossa intervenção começaria nas escolas a partir da mediação da ULE3 junto ao comitê metropolitano. Este, depois, realizaria contato com as escolas em seus respectivos municípios através dos diretores ou professores comunitários e, por fim, os oficineiros ficariam sabendo da entrada dos estudantes universitários na escola. Esse cuidado visava, sobretudo, evitar os possíveis descompassos entre as ações realizadas pelas universidades dentro das escolas. Buscava-se certa homogeneidade, tanto com relação aos primeiros contatos, quanto com o trabalho proposto. Por outro lado, realizando uma outra leitura, podemos pensar, também, que esse passo a passo pode demonstrar que a fragmentação está presente, não em forma somente de saberes, mas de poder. A organização por hierarquias dentro da interlocução desses programas nos permite refletir que existe uma necessidade da ordem. Uma ordem que está fundamentada no paradigma da modernidade em que é preciso dividir para melhor controlar e conhecer. Conhecendo as partes, torna-se possível, posteriormente, conhecer o todo. Contudo, essa hierarquia não conseguiu minimizar por completo as possíveis dificuldades. Ora, as escolas eram diferentes, cada município atendido tinha uma particularidade, alguns professores comunitários se comunicavam com a escola e seus oficineiros, outros nem sempre. Além disso, consideramos, também, que cada universidade tinha e tem suas particularidades. A UNIRIO, nesse caso, não está longe disso. Abriu espaço para universitários de diferentes bairros de moradia e de vários cursos, mas, também, encontrou dificuldades com relação ao deslocamento para as escolas que se encontravam em municípios afastados dos locais de moradia, tendo que gastar muito com as passagens. Por outro lado, na UNIRIO, reconhecemos que, ao enfrentar essas dificuldades, nossos estudantes passaram a ter mais consciência das dificuldades que os moradores enfrentam, principalmente, com transporte público não somente nos finais de semana, quando se dá a intervenção do Programa Escola Aberta nas escolas. Nesse sentido, na prática, adotar uma postura inclusiva e dialógica não se faz sem esbarrar em certos limites. Tivemos que romper com a limitação geográfica imposta pela distância e perceber que era possível trabalhar e construir uma ação crítica e comprometida dentro das escolas atendidas na parceria, visando propor saídas coletivas para impasses comuns. A entrada nas escolas Diante da diversidade de escolas e municípios, nos vimos com a necessidade de criar um meio de entrada comum, que nos forneceria dados sobre a escola e, posteriormente, caminhos possíveis para a efetivação das oficinas de Leituração e Direitos Humanos. Então, fizemos um conjunto de perguntas que, a nosso ver, poderiam nos levar a fazer um diagnóstico 2 Os municípios de Duque de Caxias, São João de Meriti, Queimados, Belford Roxo, Mesquita e Niterói. ULE – Unidade Local no Estado - braço da UGP, com a tarefa primordial, a meu ver, de garantir a gestão e estratégias respeitando a diversidade e peculiaridades de cada região. 3 Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 183 preliminar sobre a nossa atuação. Construímos o Estudo de Viabilidade, que corresponde a um formulário com perguntas estruturadas e semi-estruturadas. A primeira parte diz respeito à identificação da escola; a segunda aborda o Programa Escola Aberta; a terceira identifica as redes sociopedagógicas ligadas à escola; e a quarta, as percepções do pesquisador. Com esse instrumento, organizamos o perfil das oficinas respeitando as faixas etárias atendidas pelas escolas, verificamos os recursos na escola que poderiam estar sendo usados pelos bolsistas e, principalmente, pudemos realizar algumas análises teóricas a partir do Estudo de Viabilidade que poderão ser usados para futuros estudos e (re)organização do próprio Programa Escola Aberta. Gostaríamos de começar falando a respeito do público-alvo: os jovens, moradores dos espaços populares, residentes, de acordo com a proposta pedagógica do Escola Aberta, em áreas de risco. Iremos, nesse sentido, nos apropriar de experiências e percepções que tivemos do programa, destacando, sobretudo, a presença de oficinas ligadas a trabalho manuais e refletindo, ao lado disso, sobre as concepções que ajudam a delimitar a presença das mesmas no espaço escolar. Entender a juventude a partir das diferenças permite, então, pensar a respeito do valor subjetivo que o trabalho exerce em suas vidas e, principalmente, refletir em que medida as oficinas do programa Escola Aberta estão se aproximando dos interesses do seu públicoalvo, que não pode ser tratado como homogêneo. Já nas linhas anteriores é possível verificar que a concepção que define o público-alvo desse programa é de um tipo de jovem: morador de periferia e cercado pela violência. Essa imagem, bastante nítida nas linhas do programa, tem potencializado a oferta de oficinas manuais e profissionalizantes na maioria das escolas, uma vez que maior a parte desses estudantes, também, contribui para o sustento familiar ou de si mesmos. A relação entre oficinas de trabalhos manuais e oficinas recreativas e desportivas, sendo marcante a entrada de mulheres nas primeiras e nas segundas, majoritariamente, os jovens do gênero masculino, mostra que mesmo sendo focado no público juvenil, o Programa Escola Aberta não consegue atingir de modo equilibrado pessoas de ambos os gêneros. Esse fato é um dado importante para a oferta e procura de determinados tipos de oficinas e, principalmente, para o desenho do programa, que pensou em atingir os jovens do gênero masculino, sendo estes mais expostos à criminalidade e à violência por talvez possuírem maior mobilidade sociocomunitária no espaço público. Todavia, a entrada maciça de mulheres nas oficinas manuais e profissionalizantes do programa indica que elas estão, também, saindo do espaço doméstico com o intuito de contribuir com o sustento da família, uma vez que sabemos que inúmeras pesquisas apontam que tem ocorrido maior tendência de casamentos entre os grupos com renda familiar baixa, que perfaz a faixa de dois a cinco salários mínimos, e, com isso, o trabalho feminino acaba sendo um meio para contribuir com a família e afastar o desemprego, que é grande entre as mulheres. A presença desse público juvenil nas oficinas também permite que se reflita acerca da passagem da vida familiar para a escola e desta para o ambiente profissional. Verificamos que essa passagem está distante para grande parte da amostra de jovens brasileiros, na medida em que muitos já ingressam no trabalho ainda na infância, sendo partícipes e provedores desde cedo na organização da vida material do seu grupo de referência. Assim, 184 Caminhadas de universitários de origem popular para muitos jovens dos grupos populares, a passagem da juventude para a vida adulta não tem como demarcador a idade biológica, mas, sim, a capacidade de assumir responsabilidades, construir família, ter filhos e trabalhar. O Programa Escola Aberta, através do interesse de atingir esse grupo juvenil, acaba por tocar na fragilidade e insegurança, que também se assemelha à realidade vivida dentro do Programa Conexões de Saberes em que notamos que o trabalho é, sim, uma das preocupações dos jovens, mas que assume diferentes significados quando consideramos o gênero e o estado civil desses sujeitos. Com isso, inferimos que as atividades ligadas ao lúdico e ao jogo acabam sendo as que possuem maior público juvenil nos finais de semana, devido ao fato de não existirem nas comunidades espaços que viabilizariam tais práticas. A busca pelo lazer, pela cultura e por jogos demonstra, também, que precisamos, na nossa formação para o Programa Escola Aberta, pensar sobre oficinas dinâmicas que valorizam a expressividade corporal e o lúdico. Diálogos entre formadoras e conexistas A entrada na escola foi marcante para os bolsistas; em seus relatos, verificamos um misto de surpresa, entusiasmo e frustração. Suas falas estão expressas em um relatório realizado no final da primeira parte de intervenção nas escolas, compondo um documento a ser entregue para a ULE-RJ que passará, posteriormente, para as respectivas unidades escolares. Nesse documento, também, há uma parte de nossas percepções avaliando o acompanhamento que conseguimos realizar ao longo dos sete meses de trabalho. A oportunidade de retornar às escolas públicas das regiões metropolitanas do Rio de Janeiro permitiu que voltássemos para a nossa vida escolar, para o começo de nossa caminhada educacional. Agora, não somos mais alunos, mas assumimos, nesse espaço, o papel de educadores através da promoção de oficinas. Temos um olhar de estranhamento e distanciamento dessa realidade, que consegue enxergar, em um primeiro momento, a precariedade das instalações escolares, que são marcadas pela ausência de equipamentos e de infra-estrutura adequada para permitir a abertura e as realizações de oficinas. Essa realidade é também expressa nas seguintes observações feitas pelos bolsistas: “Um dos motivos de evasão (das oficinas) que percebi é a falta de alimentação para os freqüentadores, nem mesmo o bebedouro funciona e temos que beber água da bica, como fazem os alunos.” “Mas, apesar de toda receptividade e interesse pelo trabalho, a escola era muito carente de equipamentos, dificultando um pouco o desenvolvimento das atividades.” “Os espaços utilizados para as oficinas são o pátio, a quadra e as salas, com isso, a aplicação das minhas oficinas foi, em sua maioria, na sala de aula, que era mal conservada e o descolamento das carteiras dificultava a ampliação de espaço para a realização de algumas atividades.” Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 185 A abertura das escolas públicas durante os finais de semana é também a abertura para tomarmos contato com uma realidade que não está afastada de nossa caminhada educacional. Tivemos, como universitários e oriundos de espaços populares, que driblar essas adversidades estruturais que são deflagradas a partir da má conservação de muitas das escolas da rede pública de ensino e agora verificamos que fazemos parte das tentativas de superação e reconstrução dessas escolas. O começo possível está no desenvolvimento de estratégias que levem ao engajamento da própria comunidade com os problemas que são da sua escola. É preciso criar meios para que pais, alunos e demais moradores possam se sentir partícipes de tudo o que tem a ver com a escola, com seus sucessos ou fracassos. O caminho a percorrer rumo a esse objetivo, para ser tornar prático e efetivo, contudo, não se basta nos finais de semana, nos dias em que ocorrem as oficinas. É preciso que haja a união entre a escola do horário regular e a escola do final de semana, no sentido de que o pertencimento não se dê apenas entre aqueles que são da comunidade de fora da escola, mas também para os de dentro da escola. O que foi possível aos nossos bolsistas foi deflagrar, a partir de suas falas e experiências, essa possibilidade, uma vez que os mesmos, muitas vezes, não eram moradores de tais bairros. Devido à particularidade da UNIRIO, acabamos não conseguindo ir ao encontro do objetivo de permitir que os bolsistas retornassem às suas comunidades de origem. Com isso, inicialmente, o desenvolvimento do trabalho ficou comprometido, sendo mostrado com os seguintes depoimentos: “As condições de acesso são boas, mas a comunidade onde se localiza a escola é longe de nossas residências, sendo um fator de dificuldade já que não sabemos a realidade da comunidade. Podemos perceber a pouca interação das escolas próximas que realizam o projeto, sabendo que, se essas agissem em conjunto, a freqüência e a divulgação seriam melhoradas.” “A escola funciona nos horários da manhã, tarde e noite, durante a semana, e, nos fins de semana, de 9h às 17h. Tenho que pegar dois ônibus para chegar e andar um pouco. Em relação ao acesso, pode não ser tão difícil, mas a distância é grande, em torno de 1:40h de viagem. Não fico insatisfeita, mas, com certeza, preferiria estar atuando na minha comunidade, por estar mais habituada com a realidade onde moro.” “A escola é em outro município, levava muito tempo para chegar. Dispunha de mais tempo no ônibus do que na realização das oficinas.” 186 Caminhadas de universitários de origem popular O encontro do jovem universitário com novas compreensões sobre os espaços populares No Rio de Janeiro, em todos os aspectos heterogêneos em que vivemos quando nos referimos a uma cidade partida (VENTURA, 1994), estamos diante de uma sociedade dividida territorialmente (espaços populares e espaços de elite), na qual uma parcela muito pequena de cidadãos controla e usufrui a maioria das riquezas produzidas pela maior parte da população. Uma dessas riquezas é a universidade pública, que foi criada para formar uma elite aristocrática e se transformou através dos tempos, se adequando às novas condições impostas pela sociedade. Essa adequação está longe de ser satisfatória, mas podemos identificar ações em espaços populares, geradas por grupos de dentro da universidade, que a compreendem como geradora de conhecimento também em prol das classes menos favorecidas. Desse modo, os cidadãos moradores de espaços populares, que constituem a maior parte da população, têm direito a universidades públicas, não somente para freqüentarem seus cursos, mas também para mostrarem sua cultura e seus saberes. A universidade, em contrapartida, tem o dever social de trocar com esses cidadãos seus saberes acadêmicos e seu suporte técnico, para que juntos desenvolvam conhecimento em direção à melhoria na qualidade de vida de ambos. Na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), a Extensão é uma das representatividades dos espaços populares na instituição, que, através de um processo educativo, cultural e científico, procura articular o ensino e a pesquisa de forma indissociável, para viabilizar a e estreitar a relação entre a universidade e os espaços populares. As atividades de Extensão na UNIRIO são desenvolvidas por meio de programas, projetos, cursos, eventos e ações complementares, visando à socialização do conhecimento acadêmico e à interação com a sociedade. No desenvolvimento das ações extensionistas, professores, técnicoadministrativos, alunos e colaboradores têm buscado junto aos espaços populares o atendimento das questões prioritárias, por intermédio de atividades educacionais, nas diferentes áreas do conhecimento, da articulação com movimentos sociais, de programação cultural, da difusão cientifica e tecnológica e da integração com a educação básica. A Extensão da UNIRIO, portanto, é um fenômeno educativo com um conteúdo pedagógico derivado das questões da realidade social. Nesse espírito, o Programa Conexões de Saberes foi englobado pela Extensão, com o objetivo de criar, juntamente com estudantes universitários, ações destinadas a identificar demandas dos espaços populares. Esses estudantes têm a característica de serem ex-alunos de escola pública, oriundos de espaços populares e pertencerem à primeira geração da família a ter acesso à universidade pública. Os estudantes bolsistas tiveram um importante papel no desempenho e desenvolvimento de oficinas de Leituração e Direitos Humanos, nas escolas parceiras. Essa intervenção foi essencial para o alargamento do campo de possibilidades dos alunos de escolas públicas, propiciado por esse convívio com estudantes universitários. Esse é um passo fundamental na ruptura de uma concepção estreita e preconceituosa de um destino sócio-educacional negativo para estudantes de origem popular, ou seja, de rompimento com uma representação simbólica pré-concedida equivocadamente sobre esses jovens. Nessa experiência, observamos que os estudantes que atuaram nas escolas buscaram entender suas próprias trajetórias, articulada aos saberes adquiridos na universidade, ou seja, adiquiriram o saber erudito sem romper as vinculações de suas origens e, por isso mesmo, foram capazes de ser agentes em um processo efetivo de transformação, tanto dos estudantes, quanto das instituições envolvidas. Quando dizemos transformação das Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 187 instituições, nos respaldamos na reconfiguração do projeto e da parceria, a partir das demandas dos atores envolvidos. Para o Conexões de Saberes/UNIRIO, encaminhar demandas significa também ler e dar sentido à trajetória do grupo, bem como eleger um caminho para a ação, dentro de um vasto espectro de concepções sobre a luta política e seus objetivos. Contudo, a relação entre a universidade e os espaços populares é possuidora de uma complexidade que não é muito discutida atualmente, uma vez que parece não haver uma definição concreta acerca do que uma representa para outra. Esse fato é influenciado pela falta de diálogos entre a instituição e os espaços populares, que interfere na construção das definições simbólicas dos papéis que cada um atribui ao outro e a si mesmo. Este trabalho estabelecerá uma correlação entre as representações construídas sobre a universidade e os espaços populares, sendo a escola pública o espaço onde essas construções foram traçadas e, por isso, nesse momento, será considerada como espaço popular. Portanto, neste estudo nos interessa entender como tem se dado o encontro do jovem intelectual com uma nova compreensão dos espaços populares, para além dos estigmas que os caracterizam, através das vivências na escola pública. A analise está dividida em duas partes: primeiramente, a que verifica as estratégias de atuação; em seguida, a construção das representações simbólicas criadas na relação da universidade com o espaço popular. Dialéticas da parceria A parceria entre o Programa Conexões de Saberes com o Programa Escola Aberta viabilizou maior interação entre a comunidade e a escola. Essa parceria foi importante para a UNIRIO na promoção da articulação entre o ensino, a pesquisa e a extensão. A referida parceria leva em consideração a importância de se ampliar o escopo das atividades da escola para promover a melhoria da qualidade da educação no local, de se viabilizar maior diálogo, cooperação e participação entre as comunidades que freqüentam o espaço escolar e a universidade. Ou seja, essa parceria foi planejada no sentido de direcionar ações que privilegiam o fortalecimento da relação entre a universidade e a comunidade escolar4, bem como a ampliação das oportunidades de acesso a espaços de promoção da cidadania. Ao longo do trabalho de formação, pudemos verificar que Leituração e Direitos Humanos, temas a serem desenvolvidos a partir dos pressupostos da parceria, constituíramse em “fios condutores” do trabalho realizado nos finais de semanas nas escolas, na medida em que esses ganharam rico sentido quando relacionados no contexto escolar. Assim, os objetivos da formação foram: formar em/para a cidadania, favorecendo uma consciência prática dos Direitos Humanos na sociedade; estimular a prática da leitura na vida cotidiana do bolsista a fim de formar multiplicadores na prática da leitura e colaborar na formação de sujeitos sociais comprometidos com a construção da democracia em todos os âmbitos da vida social, privilegiando a articulação entre teoria e prática social. 4 A expressão “comunidade escolar” é entendida nessa parceria no sentido atribuído pela literatura educacional, que inclui diretores, coordenadores, professores, assistentes educacionais, pais, alunos e comunidade como parte da escola. No caso do Programa Escola Aberta, embora os profissionais da escola não sejam obrigados a participar das atividades que se desenvolvem durante os finais de semana, é imprescindível para o funcionamento da proposta o envolvimento de todos na aproximação entre o cotidiano da escola e a vida da comunidade, para que o espaço físico da escola seja um local de convivência e aprendizagem para as famílias que habitam o bairro em que a escola se encontra. 188 Caminhadas de universitários de origem popular A metodologia foi desenvolvida privilegiando debates, oficinas, leitura e produção de textos, onde pudemos avaliar, individual e coletivamente, o modo como os bolsistas concebiam e compreendiam a temática Direitos Humanos e Leituração, além de como construíam suas percepções sobre a escola pública. Alternando com as aulas expositivas, realizamos oficinas pedagógicas, objetivando criar espaços onde poderíamos propiciar a construção coletiva de valores e de saberes partindo de questões da realidade social e das experiências vividas pelos bolsistas, que eram chamados a relacioná-las à temática de Direitos Humanos e Leituração. Além disso, o trabalho voltado para oficinas corresponde ao interesse de levar os bolsistas a adquirirem confiança na elaboração e implementação das oficinas, uma vez que estariam colocando em prática, dentro das escolas atendidas pelo Programa Escola Aberta, os temas trabalhados durante as formações. Como estratégia de entrada na escola, após a seleção de 44 bolsistas para atuar em escolas dos municipios de Duque de Caxias, Queimados, Niterói, Belford Roxo, São João de Meriti e Mesquita, iniciamos o processo de formação para elaboração das oficinas. Concomitante à formação, trabalhamos com a articuladora estadual Elisa Prestes e com a coordenadora da ULE Regina Vassimon, no contato com o comitê metropolitano5. Esse contato nos proporcionou maior abertura com os responsáveis nas escolas pelo Programa Escola Aberta. Posteriormente, realizamos reuniões com a Secretária de Educação do município6, os responsáveis pelo Programa Escola Aberta de cada escola e os estudantes bolsistas do Programa Conexões de Saberes. Essas reuniões nos proporcionaram a oportunidade de apresentar as bases conceituais da parceria, bem como o primeiro contato do bolsista com a escola. Contudo, a “entrada” na escola dependeu de um esforço de divulgação e conquista de apoio das equipes constituídas para a formação de um grupo mínimo de beneficiários para realização das atividades, e isso leva um tempo. Esse tempo não estava “previsto” e, naquele momento, não foi construído o “compromisso” do coordenador escolar ou do professor comunitário para formar o “público” das oficinas fomentadas de Direitos Humanos e Leituração. “Certamente essa é uma daquelas experiências que irão marcar não somente minha participação dentro do Projeto Conexões de Saberes, mas também minha trajetória de vida. Nessa hora passa uma espécie de filme na nossa cabeça. A experiência do primeiro dia aplicando a oficina na Escola Municipal Francisco Portugal Neves foi marcada pela a expectativa das crianças em participar. Contudo, em seguida ocorreu o pior, o desinteresse delas, isso foi simplesmente um grande vazio, seguida de uma sensação de 5 Comitê Metropolitano – instância formada pelos coordenadores interlocutores responsável por garantir a unidade das atividades nos diversos municípios parceiros. 6 Secretarias de Educação – parceiras que devem como contrapartida indicar uma equipe formada por coordenador interlocutor (responsável direto pela gestão e interface com as instâncias acima mencionadas) e coordenadores temáticos (cultura, esporte, pedagógico), para a qualificação das ações nas suas unidades escolares e supervisores (recebem ajuda de custo direta do programa) para acompanhamento das atividades nos finais de semana das unidades escolares de sua responsabilidade. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 189 fracasso terrível. Mas não pensem que me dei por vencida, no outro final de semana, lá estava eu, com várias idéias que fervilharam em minha cabeça no decorrer daquela mesma semana. Resolvi trabalhar com todos os oficineiros7, ou quase todos, do Escola Aberta e acredito ter dado certo, pois passei a conhecê-los melhor e a receptividade aconteceu não só por parte deles, como também das crianças. Tive a oportunidade de ouvir relatos incríveis e, sobretudo, aprender e trocar com uma boa parte deles (oficineiros e as crianças). Claro que nem todo sábado era o que se pode chamar de “um sucesso de público e crítica”, contudo pude constatar que quantidade nem sempre representa qualidade e que, às vezes, sem que nós mesmos percebamos, alguma coisa fica.” Pelo depoimento podemos identificar que a formação desse público dependeu do esforço individual de cada estudante bolsista do Conexões de Saberes e que esse esforço foi mais árduo quando o estudante estava alocado em escolas distantes da sua comunidade. Por isso, muitos estudantes bolsistas apresentaram dificuldades na articulação com os atores da escola, principalmente pela falta de entrosamento. Essas dificuldades passaram por alguns aspectos importantes: a) inexperiência do estudante bolsista, que tem pouca ou nenhuma oportunidade de atuar em escola públicas durante sua graduação; b) insegurança dos oficineiros, que temiam perder seu espaço na escola para pessoas que eles julgavam mais qualificadas; c) desconfiança do público, que ao longo do tempo construiu ressalvas a atividades sazonais. “O primeiro impacto que tive quando ingressei no projeto Conexões de Saberes foi saber que iria atuar em uma escola municipal na minha comunidade. Realmente, eu sou referência nela, pois sou uma das poucas pessoas que lá vivem que ingressaram em uma universidade pública. Como só havia entrado em sala de aula na condição de aluna, fiquei meio receosa de início. Ainda mais aplicando oficinas de Direito Humanos e Leituração, pois eu não tinha idéia do que seria isso. Mas, como amo desafios, aceitei. O segundo impacto foi saber que não seria mais na minha comunidade. Como ser referência em uma comunidade que ninguém me conhece? Mas também fui em frente.” Como vimos, a falta de oportunidade de vivências dos estudantes em escolas públicas acarreta um grande distanciamento entre eles. Curioso é que muitos estudantes pretendem fazer concurso público, após a conclusão da graduação, para atuarem justamente nesses espaços. Essa falta de vivência em escolas foi o principal indicador da inexperiência dos estudantes bolsistas. 7 Oficineiro – talento da comunidade responsável por ministrar as atividades nas unidades escolares nos finais de semana. 190 Caminhadas de universitários de origem popular “A Escola Aberta tem sido um presente para mim, e que sei que virá a dar os seus frutos, apesar de ainda não estar suficientemente preparado para fazer tais oficinas. Quando olho para aquelas crianças, vejo que elas têm a minha “cara” quando eu era criança, moram em lugares isolados, com acesso restrito às oportunidades e à informação. Mas, acima de tudo, são gente feliz, com muita vontade e disposição para aprender e para melhorar.” Devido à estratégia de divisão das escolas por municípios e dos municípios por universidade, as escolas em que a UNIRIO atuou foram em localidades diferentes aos de origem dos estudantes bolsistas. Essa organização nos acarretou maior recurso financeiro com o transporte até a escola, mas possibilitou maior circularidade do grupo em ambientes diferentes. Pelos relatos dos percursos até a escola, percebemos que muitos dos bolsistas não conhecem o próprio estado em que residem. Alguns conhecem somente o percurso de suas casas até a universidade. A necessidade de deslocamento para outro município (outra cidade) não apenas proporcionou experiências de apropriação de novos espaços urbanos, como também viabilizou reflexões a partir da comparação entre comunidades, ou seja, trocas de conhecimento. A construção das representações simbólicas criadas na relação da universidade com o espaço popular Pode-se inferir que um estudante bolsista inicialmente poderá ter uma falsa interpretação simbólica8 da realidade dos espaços populares, principalmente se ele não participar do cotidiano do local. Como falamos anteriormente, nesse trabalho, estamos considerando a Escola como espaço popular. Em nossa intervenção, pudemos identificar uma visão estereotipada tanto dos estudantes bolsista perante a escola pública, quanto da escola (contando também com os usuários) sobre a universidade (representada naquele momento pelos estudantes). “Foi realmente uma experiência importante, mas um testemunho que tenho a dar foi numa das escolas, onde o foco era a educação de jovens e adultos, e eu pude ver ali o quanto as pessoas não têm expectativa nenhuma de melhorar, pelo menos à primeira vista; contudo, durante as oficinas, pude identificar outras coisas. No começo, eles não queriam nem passar da oitava série, achando que tudo já tinha acabado, mas, bastaram alguns debates com temas voltados para a continuidade do estudo e a possibilidade de acesso à universidade, que eles já se animaram a buscar algo além do que vivem e já falavam até na possibilidade de estarem na universidade. Espero que não fiquem somente no desejo, mas que alcancem seus objetivos”. 8 Quando falamos em interpretação simbólica, nos referimos no sentido de Ester Lindoso, quando argumenta que “a representação simbólica é uma interpretação da realidade presente em todo ser humano” (LINDOSO, Ester. Identidade Nordestina: de imaginário, estereotipo e humor. Revista Labirinto – Centro de Estudos do Imaginário. Universidade Federal de Rondônia, 2000, p. 34). Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 191 Só podemos conhecer aquilo que está ao nosso alcance, aquilo que faz parte; representamos simbolicamente o que não participamos ativamente. Obviamente que essa representação será influenciada pelo arcabouço cultural do observador, que compreende que a representação dos elementos constitutivos do nosso mundo adquire sentido dentro de cada um de nós, dependendo de como interpretamos essa realidade. Ou seja, se inicialmente tivermos um olhar estereotipado sobre as coisas, elas tomarão uma forma estereotipada de interpretação simbólica. Assim, considerando que essa construção da simbologia é moldada de acordo com o conhecimento de mundo que possuímos, o sentido e o significado das imagens que construímos terão como limite o conhecimento que temos do mundo. Contudo, o significado de uma interpretação simbólica pode não corresponder com o real. Em nossa experiência, pudemos perceber que a universidade atribui aos espaços populares um significado de acordo com seu interesse para atuação, implantando medidas experimentais, de modo a tentar intervir em uma realidade atualmente distante de sua apropriação. Por outro lado, os espaços populares idealizam a universidade como espaço que detém o conhecimento incontestável, que representa a solução para todos os problemas, ou seja, um universo separado e distante, somente acessível aos privilegiados. Quando pensamos nessas representações simbólicas, avaliamos que são muito complexas, principalmente porque há uma grande distância entre as duas, como se a universidade não pertencesse aos espaços populares e os espaços populares não pudessem usufruir dela. Por isso, a parceria do Programa Conexões de Saberes com o Programa Escola Aberta pode mudar essa realidade, proporcionando que a universidade e os espaços populares repensem seu papel na sociedade e considerem uma importância recíproca entre eles, mudando uma representação de carência (espaço popular) e tecnicista/assistencialista (universidade) que impera no imaginário coletivo. Nesse sentido, podemos pensar que o papel da universidade nos espaços populares não é somente promover ação externa, mas criar um espaço de reciprocidade. Ou seja, quanto maior o compromisso e mais adequada for a forma de intervenção adotada, maior será o significado da cooperação espaços populares e universidade. Com esse sentimento, os estudantes bolsistas realizaram as oficinas de Leituração e Direitos Humanos não somente com uma perspectiva de desenvolvimento profissional, mas também para fortalecer o sentimento de pertencimento ao espaço, criando vínculos entre os jovens universitários e suas inserções nos espaços populares. Como fazer para ser respeitada Sem nesta comunidade sequer morar? Belford Roxo aos fins de semana Tornou-se meu segundo lar. E com o tempo veio a resposta Ouvir uma criança me falar: “Tia, semana que vem você volta?” 192 Caminhadas de universitários de origem popular Meus olhos se encheram de lágrimas E meu coração de coragem Pra lutar por mais oportunidade Por essa gente de boa vontade. Trecho do poema: Escola Aberta: sonho que desperta, de Fernanda Guimarães Felix, graduanda de Enfermagem, UNIRIO, 2006 Desenvolver o sentimento de pertencimento do jovem ao espaço popular é um processo de incorporação e exteriorização de atitudes que leva a uma identidade de agente que se materializa na posição que se situa, nesse momento, na escola pública. Esse posicionamento é vital para a estratégia de intervenção planejada. “Integrar o quadro de oficineira da Escola Municipal Professora Julieta Rêgo Nascimento foi uma experiência única que jamais vou esquecer. A Coordenação nos aceitou de braços abertos (como esquecer o abraço do Wamberto e o sorriso da Dulcina?), os outros oficineiros também e a comunidade nos acolheu super bem, não posso esquecer da Vera que sempre levava suas netas para participar da nossa oficina. A princípio, Lívia e eu (Milena) tivemos medo do que íamos encontrar, se eram adolescentes rebeldes ou crianças, e, na realidade, encontramos crianças adoráveis como a Marcele e a Carol, adolescentes sorridentes como a Thais, a Marília, a Carla, a Thamiris e tantos outros que já participaram das oficinas não tão freqüentemente como as meninas citadas. Com relação às oficinas, não tivemos dificuldades para aplicá-las, pois contávamos com todo o apoio da coordenação, dos outros oficineiros e da comunidade. Tivemos acesso sem restrições à televisão, DVD, som, salas de aula, material do próprio colégio que falava sobre sexualidade que foi o tema de uma ou duas das oficinas que fizemos, que foram um sucesso. Falando sobre oficinas, não posso deixar de elogiar as outras oficinas da escola, como a de pintura (a mais freqüentada), a de artesanato com jornal, a de montagem de jarros, a de tricô, as aulas de reforço. Todas essas oficinas são frutos da dedicação de um grupo que acredita no potencial de sua comunidade. Teve uma vez que escutei a oficineira de artesanato com jarros falar que ela faz as oficinas por prazer. Essa frase ficou guardada comigo e é isso mesmo, ir ao Julieta, acordar cedo e encontrar aquelas crianças e adolescentes é uma atividade que dá prazer. Poder direcionar caminhos, entender a realidade. Depois de um tempo já estávamos tão integradas à equipe da escola que participamos de confraternizações, amigo oculto, fomos convidadas para o casamento de nosso coordenador Wamberto, enfim, tivemos uma recepção tão expressiva que, particularmente, me senti parte daquela escola, daquela comunidade. Nossa parceria com a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 193 referida escola foi bem sucedida em todos os aspectos, do nosso ponto de vista. Wamberto, o responsável pelo Escola Aberta nesta escola, Maria Dulcina, a professora comunitária, Vera, os oficineiros (Leandro, Dileusa, entre outros) nos receberam muito bem e se colocaram à disposição para nos ajudar. Temos contato com eles mesmo fora da escola, participamos de amigo oculto, festinha de fim de ano. Tivemos acesso a qualquer espaço da escola, desde o refeitório e quadra até as salas de aula, e a tudo o que pudéssemos precisar: livros, DVD´s, aparelho de som, vídeos, mídias sobre as oficinas que iríamos aplicar etc. A comunidade foi tão receptiva quanto os que trabalham na escola. Lá, os pais dos alunos e moradores próximos também participam das oficinas, assim como ex-alunos e alunos de outras escolas. A freqüência nas oficinas era grande, e eram quase sempre os mesmos alunos. Como as idades iam de quatro aos 19 anos e os interesses dessas crianças e adolescentes eram diversos, preparávamos oficinas ora para um grupo mais jovem, de crianças, ora para os adolescentes, mas a freqüência de meninas sempre prevalecia sobre a de meninos. Quando nossos alunos chegavam à escola no fim de semana, nos procuravam para saber o que faríamos aquele dia. Alguns adolescentes já trabalhavam na escola em grupos especiais que debatiam sobre a questão do negro no país, facilitando nosso trabalho e o entendimento deles sobre o assunto. Quanto aos horários de funcionamento, percebemos que, de manhã, há uma freqüência maior de crianças e, à tarde, a freqüência maior é de adolescentes. Quanto ao acesso: a escola é um pouco longe de nossas casas, mas há um grande número de ônibus que nos leve até lá, e demoramos cerca de 45 minutos a uma hora para chegarmos lá”. Outro relato complementa a idéia: “Desde o início de nossa atuação nessa instituição, foi sempre muito difícil manter um diálogo com a coordenação. No dia em que fizemos o estudo de viabilidade, a coordenadora não deu a atenção necessária de que estávamos precisando, pois a todo o momento se retirava da sala para fazer outras atividades, nos deixando a sua espera, demonstrando, assim, que nossa presença naquele espaço para ela não tinha nenhuma importância. Depois do estudo de viabilidade, foram marcados, com a coordenadora, dois encontros na escola durante a semana. Entretanto, esta não compareceu e resolvi, junto com minha colega de trabalho, deixar cartazes de divulgação das oficinas com uma pessoa da secretaria. O resultado foi de sábados e sábados sem público nas nossas oficinas porque a coordenadora alegava não ter tempo 194 Caminhadas de universitários de origem popular para fazer a divulgação. Um mês depois (novembro) de nossa entrada na escola, conseguimos um público fixo de três pessoas até o mês de dezembro. Em janeiro, conseguimos aplicar somente uma oficina com apenas duas pessoas e, em fevereiro, também não foi possível aplicar oficina porque não havia público. No período de janeiro e fevereiro, a coordenadora nos disse que enquanto muita gente estava querendo ficar em casa, nós estávamos perdendo o tempo indo para a escola, já que nesses meses há uma baixa freqüência. Tentamos fazer contato com outros oficineiros, mas não obtivemos muito êxito. Com relação ao espaço que nos foi cedido, utilizamos uma sala de aula. Já com relação aos materiais utilizados nas oficinas, podemos dizer que não houve a colaboração da escola. O que percebemos é que os pouco freqüentadores do programa naquela escola são de outras escolas e se interessam mais pela oficina de esportes. Sendo o público geral composto por adolescentes de, aproximadamente, 14 anos, nós tentávamos sempre que possível seduzi-los para freqüentarem nossa oficina. Quando chegávamos à escola, às 10:00, pedíamos a coordenadora para assinar o planejamento e ela se recusava, com o argumento de que no final (12:00) seria mais conveniente; no entanto, quando íamos a sua procura, ela já havia saído da escola sem previsão de retorno. Por isso, em muitos planejamentos há a assinatura de um professor comunitário que também relutou em assinar, mas, como insistíamos muito, ele acabava assinando”. Nesses depoimentos, podemos identificar claramente que o posicionamento dos atores envolvidos foi vital para o desenvolvimento da proposta. Há construção do sentimento de pertencimento, que se formou progressivamente, construindo o processo de incorporação e exteriorização de atitudes que as levaram a se considerar parte da escola, ou seja, construíram uma identidade de agente que se materializou na posição de cada interessado no sucesso da proposta. Contudo, entendemos que a construção desse sentimento de pertença é uma tarefa bastante complexa, que se constitui ao longo da intervenção e se materializa na predisposição dos agentes. As disposições dos agentes foram vitais para a baixa freqüência nas oficinas, do desânimo das estudantes bolsistas e da insatisfação da escola. Por outro lado, mesmo com as mudanças ocorridas, na adequação na forma de atuação dessa parceria, muitos dos usuários consideravam os estudantes bolsistas (universidade) como prestadores de serviço. Isso acarretou frustração, insegurança e desconfiança do grupo. “Desde o início, não houve receptividade tanto pelos alunos, quanto pelos oficineiros e coordenação. Os oficineiros temiam que o público “deles” parasse de freqüentar suas oficinas e recusaram-se a colaborar na divulgação do Programa. Tivemos pouco público. As oficinas mais produtivas foram as que conseguimos resgatar as crianças da oficina de reforço escolar, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 195 que ficavam até 14h na escola. A escola fornecia almoço e quase todas as crianças iam apenas fazer a refeição, logo em seguida iam embora. O futebol era a grande atração dos meninos, que pareciam muito violentos e agitados e não se interessavam pelas oficinas de Leituração e Direitos Humanos. Não havia material para ser utilizado, como aparelho de som, TV, DVD ou vídeo, giz, folhas de papel, etc. A escola disponibilizou a sala de leitura para que pudéssemos utilizar livros com as crianças, mas receavam que fossem destruí-los. Foi muito triste não poder realizar o trabalho da forma como eu gostaria nessa escola e creio que a falta de apoio da comunidade foi um fator importante para tal resultado”. Ou ainda: “Houve cordialidade e boa aceitação do coordenador pelo projeto, contudo não houve iniciativa em facilitar a atuação do bolsista, por maior que fosse a cumplicidade existente entre eles. Entre bolsista e oficineiros não houve aproximação. Durante a presença destes na escola, estavam sempre em atividade e eram distantes, de forma que o referido bolsista nem os conhecia, o que se constituía em uma forte barreira para que a relação fosse efetivada. Entre bolsista e comunidade, estabeleceu-se um bom relacionamento, o que foi de suma importância à realização do trabalho. Acerca da estrutura viabilizada pela escola para a implementação das oficinas, foram disponibilizados televisão e aparelho de DVD. A divulgação das oficinas foi feita pelo representante do Escola Aberta do C. E. Vila Bela, verbalmente, durante a semana, de sala em sala. A participação da comunidade foi frustrante. Houve pouca adesão popular aos encontros e o público era de crianças com idade entre cinco e dez anos, com predominância de meninas”. Podemos observar, nesses dois relatos, que a não receptividade por parte dos atores que constituem os espaços populares acarreta fracasso no desenvolvimento da intervenção. Acreditamos que isso acontece pelo descrédito fomentado por instituições, que muitas vezes em atuações pontuais chegam e saem dos espaços populares sem esclarecer adequadamente suas intenções. Esse esclarecimento é causado pela descontinuidade da intervenção, o que fomenta um sentimento de laboratorial ao espaço popular (escola). No caso da universidade, se considerarmos que a representação simbólica dos usuários sobre a universidade passa pela construção de uma instituição detentora do saber científico que desqualifica o saber não-científico, podemos inferir que esse simbolismo é mais um fator agravante ao distanciamento entre a universidade e os espaços populares. Iniciar trabalho é sempre algo que constitui um grande desafio. Iniciar uma parceria que envolve dois Programas distintos, mas com uma importante interface conceitual, é um desafio ainda maior. Em nossa experiência em 2006, podemos avaliar 196 Caminhadas de universitários de origem popular que a parceria do Programa Conexões de Saberes com o Programa Escola Aberta delineou o caráter de Ação Afirmativa, pressuposto que está no cerne do Conexões de Saberes. A Ação Afirmativa no Programa Conexões de Saberes se configura quando delimita como objetivo: a) promover a aproximação entre os saberes produzidos na universidade e os saberes produzidos nas práticas dos espaços populares; b) fortalecer a trajetória acadêmica de jovens oriundos de espaços populares, incidindo sobre a permanência bem sucedida desse setor na universidade. A constituição da parceria pressupõe o desenvolvimento de metodologias que adeqüem e promovam maior aproximação entre os saberes produzidos na universidade e os saberes produzidos pelas práticas dos espaços populares. “Está sendo enriquecedor participar do programa Escola Aberta juntamente com o Conexões, pois estou conhecendo uma realidade diferente, em alguns aspectos, da que vivencio na minha comunidade. Além disso, não estou indo até lá só para ensinar, mas também para aprender com aquelas crianças, através de olhares diferentes de uma mesma realidade”. Como também, nos auxilia na construção da trajetória acadêmica dos jovens oriundos de espaço populares, no que diz respeito a uma nova compreensão dos jovens sobre esses espaços, ou seja, a construção de novos olhares sobre os espaços populares. “Eu sempre ouvi falar que pobre não entra na universidade pública, não tem capacidade de passar no vestibular, porque não teve um estudo preparatório, e na faculdade particular até que entra, só que não tem como pagar. Depois que minha irmã me ajudou a quebrar este tabu achei ótimo estar no projeto com o Escola Aberta, pois é uma oportunidade de mostrar, para as crianças e os adolescentes pobres e de escola pública como eu, que todos nós podemos e devemos buscar uma graduação, não só por ascensão social ou status e sim para descobrir, aprender e mostrar também que somos capazes. Mesmo que todos nos digam que não! Eu sou um exemplo de que podemos”. “O Escola Aberta permitiu que eu mostrasse para crianças que a universidade não é “só para rico” como eles achavam”. Como falamos anteriormente, nosso interesse nesse estudo é também entender como tem se dado o encontro do jovem intelectual com uma nova compreensão dos espaços populares, para além dos estigmas que os caracterizam, através das vivências na escola pública. Em nossa experiência em 2006, dismitificamos mitos que os estudantes bolsistas conheciam sobre a escola pública e que as escolas tinham da universidade. Ou seja, intervimos nas representações simbólicas de ambos. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 197 “Sinto a responsabilidade do Programa Conexões de Saberes, principalmente com a parceria com o Programa Escola Aberta, no qual atuo em duas escolas em Belford Roxo (cidade periférica, próxima à Nova Iguaçu), aos sábados. Tenho aprendido muito com as crianças. Eu levo os conceitos de Direitos Humanos, Trabalho a Leituração, e elas me devolvem carinho e um jeito lindo de encarar a vida, que, desde cedo, é sofrida. No mais, é só o futuro. Que venha!” “Uma boa oportunidade de permanência na universidade é o Programa Conexões de Saberes e ainda a realização de um sonho pessoal, que é colocar em prática o estímulo à leitura. Foi o que me chamou atenção para o Programa, quando li no e-mail, leitura. A prática foi além das expectativas, contar histórias, mostrar a leitura de mundo e aprender junto sobre os direitos humanos. Como cresci com o trabalho no Programa Escola Aberta e na formação do Conexões de Saberes!” Referências Bibliográficas ABRAMO, Helena Wendel e BRANCO, Pedro Paulo Marconi (org.). Retratos da Juventude Brasileira. Análises de uma Pesquisa Nacional. São Paulo: Instituto Cidadania/Editora Fundação Perseu Abramo, 2005 SOUZA E SILVA, Jailson – Por Que Uns e Não Outros? Caminhada de Jovens Pobres para a Universidade. Rio de Janeiro: Editora 7 letras, 2003. ____________________ e BARBOSA, Jorge Luiz. Favela. Alegria e Dor na Cidade. Rio de Janeiro:Senac-Rio/X-Brasil, 2005. SPOSITO, Marília Pontes. Algumas reflexões e muitas indagações sobre as relações entre juventude e escola no Brasil. In: Retratos da Juventude Brasileira. Análises de uma Pesquisa Nacional, Helena Wendel Abramo e Pedro Paulo Marconi Branco (org.). São Paulo: Instituto Cidadania/Editora Fundação Perseu Abramo, 2005. VENTURA, Zuenir. Cidade Partida. São Paulo: Cia das Letras, 1994. 198 Caminhadas de universitários de origem popular Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 199 Parte 3 A FORMAÇÃO DE UM SUJEITO COLETIVO O discurso do sujeito coletivo conexista A Proposta do Discurso do Sujeito Coletivo – DSC Optamos pela abordagem metodológica denominada Discurso do Sujeito Coletivo, para encerrar o livro Caminhadas, pois a proposta de tal abordagem é “resgatar o discurso como signo de conhecimentos dos próprios discursos” (LEFÈVRE e LEFÈVRE, 2000, p. 19), ou seja, através de partes de discursos individuais reconstróem-se discursos-síntese para expressar uma dada “figura” ou um dado pensar. O Discurso do Sujeito Coletivo é obtido a partir da identificação de Idéias Centrais e Expressões-Chave. Analisa-se cada depoimento e retira-se, de cada um, as diferentes Idéias Centrais e suas respectivas Expressões-Chave para em seguida as agregarem, formando-se, assim, o DSC. Idéia Central constitui-se numa ou mais afirmações que vão traduzir o conteúdo essencial do discurso que os sujeitos expressam formalmente em seus depoimentos. Expressões-Chave são transcrições literais de partes dos depoimentos. Essas transcrições vão permitir o resgate das partes essenciais do conteúdo discursivo. Esse resgate torna-se fundamental na medida em que permite ao leitor julgar a pertinência ou não da seleção e/ou tradução dos depoimentos. O ponto de partida são os discursos em “estado bruto” (expressão dos autores), que serão submetidos a um trabalho analítico de decomposição. Esse trabalho analítico consiste em selecionar as principais idéias presentes em cada um dos discursos individuais e em todos eles reunidos. É como se o discurso de todos fosse o discurso de um. O DSC tem alguns pressupostos que também contribuíram para a nossa escolha por essa proposta metodológica. Dentre eles, destacamos: o DSC como coletividade “discursivada” e o DSC como resgate da fala do social. No primeiro, o conteúdo do DSC seria composto por aquilo que um determinado sujeito individual falou e “também por aquilo que poderia ter falado e que seu ‘companheiro de coletividade’ atualizou ‘por ele’” (idem, p. 30). O pressuposto sociológico de base é que o DSC é a expressão simbólica do campo1 a que ambos pertencem e da posição que ocupam dentro desse campo. No segundo, há o resgate da fala do social através de depoimentos que, apesar de individuais, representam um determinado contexto social em que a voz de um é a voz de um grupo coletivizado. Enfim, os indivíduos, mais precisamente os conexistas, por pertencerem a uma coletividade geradora de representações sociais, deixaram de ser indivíduos para se incorporarem em vários discursos coletivos que os expressam. 1 A noção de campo pode ser aqui interpretada no sentido que Bourdieu (1997) lhe dá: “Um campo é um espaço social estruturado, um campo de forças – há dominantes e dominados, há relações constantes, permanentes de desigualdade, que se exercem no interior desse espaço – que é também um campo de lutas para transformar ou conservar esse campo de forças.” (p. 57). Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 203 Os Discursos dos Sujeitos Coletivos 1. Apesar das dificuldades... Idéia Central/Palavras-Chave: Seria muito difícil ingressar em uma universidade pública “Quem cuidou de mim, enquanto minha mãe trabalhava, foi minha irmã, que era apenas quatro anos mais velha que eu. Vejam que tamanha responsabilidade, uma criança de quatro anos cuidando de um bebê... desde muito pequena, gostava da área de saúde. Minha mãe perguntava: “Neném, o que você quer ser quando crescer?” E eu respondia: “Médica”; eu nem sabia o que era saúde, muito menos Enfermagem, pois não é uma profissão que as crianças conheçam. Mas eu sabia que jamais conseguiria ingressar em uma universidade pública para cursar Medicina, muito menos meus pais pagarem uma faculdade particular. Então decidi fazer o curso técnico em qualquer coisa e ganhar dinheiro para ajudar nas despesas de casa. Fiz provas para as escolas técnicas públicas e a minha preferência era CEFET e Federal de Química, porque minha irmã “cabeçuda” tinha ingressado para o CEFET e eu a “burrinha da família”, claro, não passei de primeira, nem de segunda.” “Desde os 10 anos, sempre tive um sonho: fazer Medicina em uma universidade pública... fiz vários planejamentos para meu futuro, mas alguns tiveram que sofrer modificações ao longo da minha trajetória de vida, sendo adequados à minha realidade. Na instituição em que cursei o segundo grau, havia a possibilidade de realizar o Ensino Médio juntamente com um curso profissionalizante. Optei pelo curso técnico de Enfermagem, queria conhecer melhor a área de saúde e ver se era realmente o caminho profissional a ser seguido. Tive a oportunidade de estagiar em vários hospitais e obter a confirmação de que iria prestar vestibular para Medicina, como sempre havia planejado. Após terminar o segundo grau, prestei dois anos de vestibular para o curso de Medicina, porém foram tentativas sem sucesso.” “Terminei o segundo grau sentindo um imenso frio na barriga. Sempre ouvira dizer que a universidade pública é para quem tem dinheiro para estudar nos melhores cursos prévestibulares. O fato é que minha família jamais conseguiria pagar uma faculdade particular e, além disso, passar para uma universidade pública era o mínimo que podia fazer em troca de tanto esforço da minha família. Além de um grande sonho que tinha de crescer profissionalmente, era uma obrigação, uma prestação de contas, e eu queria provar para mim mesma e para aqueles que desistiam que não precisava ser rica para conseguir estudar em uma federal. E estimulava meus colegas de classe a fazerem o mesmo, não desistirem.” “Na esperança de encontrar meu nome, pesquisava todos os dias na Internet as listas de classificados no vestibular. Na verdade, minha família já estava desiludida com a possibilidade do meu ingresso em alguma universidade pública, pois somente meu primo de primeiro grau Raphael havia conseguido ingressar em uma instituição de ensino superior público, porém, não teve condições de concluí-la. Para mim, ingressar em uma instituição federal de ensino, além de ser a oportunidade de ter um dos melhores ensinos e ingressar no mercado de trabalho em pé de igualdade com aqueles que têm melhores condições financeiras do que eu e era realmente o meu maior objetivo naquele momento, pois sabia que seria difícil para meus pais arcarem com a despesa de uma universidade particular e sempre foi meu grande sonho, que eu iria conquistar depois de muita luta.” “A minha aprovação em uma universidade pública foi uma grande realização pessoal dos meus pais, pois, na comunidade em que vivemos, passar para uma instituição pública era só para os que tinham “grana” e os meus pais conseguiram, depois de terem começado suas vidas do zero. Novamente, meus pais têm que “ralar” muito para que nada falte na 204 Caminhadas de universitários de origem popular minha formação e muitas vezes se sacrificam para que eu não sofra como eles na minha vida. Meus pais ficaram muito preocupados quando escolhi uma profissão pelo simples prazer de ajudar alguém, que era melhor do que a grana que iria ganhar, pois eles sabem que hoje no mundo não se pensa assim. Muitas vezes eles tentaram conversar comigo e falar que na vida é preciso ter cuidado, pois tentar mudar muita coisa não dá muito certo. Mas eu sempre falei para eles que, se um dia for mais um na vida, não iria honrar toda história vivida por eles, que estou na universidade para criar idéias, um senso critico sobre a realidade da nossa sociedade e não apenas ser mais um que vai se formar, receber o diploma e entrar no mercado de trabalho, que a cada dia sacrifica cada vez mais a vida das pessoas visando apenas o lucro e uma sociedade calada para que uma pequena elite fique cada vez mais rica.” 2. ...passei no vestibular. Idéia Central/Palavras-Chave: As estratégias e o sonho realizado “E agora o que fazer? Conhecia uns amigos que coordenavam um pré-vestibular comunitário, e como minha cunhada já havia dito, tinha que me virar sozinha, e até então o meu pai não era dos mais presentes. Matriculei-me. Comecei a estudar, ou pelo menos era o que achava. Não levava muito a sério. Era adolescente e, sabe como é! Só queria cursar a faculdade, mas não fazia por onde. Prestei o vestibular, pela primeira vez, só para UERJ, era a única que conhecia e era meu sonho de consumo, lembra? Obviamente, não passei. Fingia que estudava! Prestei o segundo, só que, agora, depois de um ano no pré, já sabia da existência da UFRJ, então prestei para as duas, mais uma vez não passei. Só que agora estava levando mais a sério. Porém, tive que começar a trabalhar, então foi o que atrapalhou o meu rendimento, sem contar que, apesar de ter levado mais a sério, as estratégias que usei ainda estavam erradas. Sim, estratégias! Porque vestibular, além de muito estudo, é necessário traçar estratégias. No meu terceiro vestibular, não passei novamente. Porém foi o vestibular em que cheguei mais perto. Havia traçado a estratégia certa, mas ainda faltou algo mais. No quarto vestibular e último, o resultado não poderia ser outro: passei!” “Quando chegou a época dos resultados, fui conferindo todos: UFRJ, UFF e UERJ. A cada lista, aumentava minha decepção, pois não encontrava meu nome, apesar de ter conseguindo atingir a média para ser classificada. Já estava sem esperança de ser uma estudante universitária. Ao desabafar com uma amiga, esta me convidou para acompanhá-la a um escritório a fim de tentarmos uma vaga de emprego em uma rede de supermercados. Topei na hora, pois eu precisava ajudar nas despesas da minha casa, haja vista os dois anos de tantos gastos. Enquanto estávamos na fila, vi um rapaz lendo um jornal de esportes que na capa tinha uma manchete ressaltando a lista de aprovados da UNIRIO. No momento em que eu li aquilo, me dei conta que tinha esquecido de conferir o resultado dessa universidade. Então, mais que depressa, pedi o jornal emprestado ao rapaz e busquei meu nome, ansiosamente. Para meu espanto e alegria, meu nome ali estava, enfim havia conseguindo a tão sonhada vaga em uma universidade federal.” “Saiu a lista da primeira universidade (UFRJ) logo em janeiro, para Psicologia, não havia passado. Da segunda, saiu logo depois (UERJ), para História, não havia passado. Em fevereiro, da terceira (UNIRIO), não passei para História de novo. Várias reclassificações e nada. Meu mundo havia desabado, ou melhor, eu havia caído do mundo. Tanto esforço e nada. Não sabia o que fazer. Havia conseguido uma bolsa integral pelo ENEM em uma Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 205 universidade particular, mas sonhava estudar em uma universidade pública, não queria sentir que meu esforço tinha sido em vão. Faltava uma universidade, o resultado sairia somente em março, mas o tempo de espera valeu. Eu, finalmente, PASSEI.” “Na minha casa, as pessoas falavam que eu tinha que desistir, que estava perdendo tempo, que deveria procurar um emprego e tentar fazer uma particular mesmo. Mas o meu objetivo eram as públicas. Formei um grupo de estudo com outras alunas do pré. Encontrávamos-nos todos os dias, antes da aula, às 14:00, para estudarmos. Éramos quatro, duas para a área biológica e duas para humanas. Quando chegou a época das provas específicas, nos dividimos e intensificamos ainda mais nossos estudos. Finalmente, em 2005, passei para a UNIRIO e as minhas amigas do pré também, exceto uma, passaram para outras universidades. Depois que fui aprovada, passei de aluna para coordenadora do prévestibular. O mais importante foi que eu pude mostrar para os novos alunos que entrar em uma universidade pública não é difícil, é apenas trabalhoso.” “Entrei na universidade bastante consciente da sua grande importância na vida de um estudante, sabendo que não é a total garantia de um excelente emprego e altos salários, pois depende também da competência e do esforço em mergulhar no mercado de trabalho que é bastante concorrido e injusto. Vou sair da “casa” com um pensar mais sólido e objetivo.” 3. E agora? Como fazer o curso? Idéia Central/Palavras-Chave: Passei no vestibular, mas como conseguir permanecer e fazer a faculdade? “Percebi que, na realidade, o mais difícil não era conseguir uma vaga no ensino superior e sim a permanência e sua vindoura conclusão. Por ser o curso por mim escolhido de horário integral, é extremamente complicado conciliar os estudos com um trabalho. Dessa forma, conto com o auxílio dos meus pais, a fim de me manter na faculdade.” “No primeiro dia, tive aula o dia inteiro, não sabia onde almoçar e não conhecia ninguém do turno da manhã, muito menos da tarde. Foi então que comecei a construir meu círculo de amizades na faculdade, por não saber onde me dirigir para almoçar, onde seriam as aulas no turno da tarde, isto é, eu estava me sentindo sem rumo, quando encontrei a Milena e a Mariana, que se tornaram minhas amigas. Perguntei se elas também iriam fazer a aula da tarde e se eu poderia ficar fazendo companhia a elas. Outras dificuldades foram os gastos com cópias dos textos, só no primeiro dia foram R$ 35,00 mais as passagens. Só de transporte a despesa era de R$ 12,00 por dia. Para diminuir esse gasto, resolvi pegar uma van para ir da minha casa até Botafogo: R$ 4,00 de ida e mais R$ 4,00 de volta. Como o ônibus de Botafogo até a Urca custava R$ 2,00 a ida, mais R$ 2,00 a volta, passei a fazer uma caminhada de Botafogo até a Urca, economizando por dia R$ 4, 00, por mês R$ 80,00!” “Depois disso, foram várias novidades consecutivas: primeiro a distância da minha casa à universidade seguida pelo problema com as refeições nutritivas e o empréstimo de livros com certa dificuldade. Mas quando achei que a tempestade estava prestes a findar, estava apenas começando, porque o desafio era não apenas entrar, mas sim como continuar?” “Isso representava mais um desafio, pois eu teria que passar o dia inteiro na faculdade, e não poderia trabalhar. Isso aumentaria os gastos e eu não poderia ajudar a me manter na universidade. Esse é outro grande desafio que a camada popular enfrenta ao conseguir ingressar na faculdade. Apesar de toda a dificuldade para entrar, ainda acho mais difícil permanecer nela.” 206 Caminhadas de universitários de origem popular “Quando estava cursando o segundo período, fui trabalhar em uma creche comunitária conveniada com a prefeitura, que se situava no meu bairro. Eu adorava o trabalho, mas o problema era o horário. Eu trabalhava no turno da tarde, das 13h às 17h, e estudava à noite. Por isso, todos os dias, eu chegava atrasada e muito cansada na faculdade. Mesmo com essas dificuldades, prossegui com o trabalho e a graduação. No quarto período, precisei trancar o curso devido à violência do movimento do trafico do meu bairro. As facções estavam em guerra promovendo uma onda de terror na nossa comunidade e impondo um toque de recolher a partir das 22h. Nos primeiros dias, tentei dormir na casa de uma amiga, mas me sentia muito mal, então, optei pelo trancamento de minha matrícula.” “Outro fato que me assustou bastante foi a indiferença de professores com relação à realidade de um aluno de comunidade popular. O professor partia do princípio de que todos tinham acesso a computador e Internet e a elaboração de trabalhos que exigiam esses recursos significava um custo bem alto para mim. Atualmente, convivo com essas dificuldades em menor grau, sabe como é, a gente se vira daqui e dali e acaba, se não superando, aprendendo a conviver com elas.” “Mesmo com as despesas de fotocópias, consegui me manter freqüentando todas as disciplinas oferecidas até o terceiro período. Com o desemprego do meu pai, tudo mudou. Resolvi então fazer apenas três disciplinas para diminuir os custos de almoço e fotocópias, além de estar mais em casa para vender sacolés. Mas, mesmo assim, era difícil e tentei como última solução a bolsa de projeto para o CNPq e não consegui, foi a última cartada. E, então, estava quase jogando a toalha, quando fui convocada, por telegrama, para trabalhar na Prefeitura do Rio como servidora temporária, resultado de um concurso feito no início daquele ano para auxiliar de controle de endemias. Tranquei a matrícula às pressas, na esperança de acabar ficando, o que não aconteceu e trabalhei seis meses, o que me possibilitou pagar minhas dívidas. O retorno só foi possível, através de auxílio financeiro de amigos para as passagens, que durou por volta de seis meses até conseguir um estágio indicado por uma conhecida, no Museu do Itamaraty. A bolsa era de R$ 260,00, pouco, mas fundamental para minha permanência na universidade, que quando atrasava nos deixava em situações bem complicadas, como a que fiquei na universidade: era o dia de pagamento, fui para a aula contando com isso e, por vários motivos, não confirmei essa informação e deixei para fazer isso depois. Conclusão: não tinha um centavo para ir ao estágio ou voltar para casa. Tive que vir andado da Urca à Central do Brasil, onde fica o estágio. Cheguei horas depois, suada e muito cansada e me emprestaram dinheiro para chegar em casa. Hoje estou mais próximo de me formar e sem nenhuma reprovação nas disciplinas apesar de tudo o que passei. E retiro esse ensinamento da minha trajetória: que sonhos, para se tornarem realidade, são bem difíceis e precisamos nos agarrar às oportunidades que aparecem, sendo necessário perseverança, dedicação e determinação. Porém, hoje espero poder colaborar e incentivar outros a percorrer esse mesmo caminho, pois a realidade é construída assim: com lutas, perdas e conquistas que nos fazem transformar.” 4. O Programa Conexões de Saberes e o Programa Escola Aberta Idéia Central/Palavras-Chave: A importância do projeto Conexões de Saberes e do Programa Escola Aberta “Fiquei sabendo de um projeto de extensão chamado Conexões de Saberes e me informei. Então, fiz entrevista e levei documentação. Curti minhas férias de julho e aguardei... inesperadamente, fui chamada para integrar essa equipe de “conexistas”, com os quais Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 207 muito aprendi e aproveito para agradecer por me ajudarem a caminhar. Na universidade, foi minha chance de permanecer. Mostrar que o aluno de origem popular tem potencial para aprender e crescer. E hoje sou feliz por essa história poder compartilhar.” “Foi no terceiro período que tomei conhecimento do Programa Conexões de Saberes e isso representou uma nova esperança. Além da ajuda financeira oferecida, me encantei com o projeto de extensão e pesquisa voltado para alunos provenientes de camadas populares, e a possibilidade de contato com os alunos de comunidades pobres, onde eu poderia estimulá-los a ter mais confiança e também aprenderia muito com eles. Foi aqui que conheci outras pessoas que, como eu, encontraram dificuldades em suas trajetórias, mas que persistem para mostrar que, com perseverança e fé, conquistaremos nosso lugar.” “Dentro do programa Conexões de Saberes, encontrei pares, indivíduos com histórias de lutas de altos e baixos como a minha. Nas aulas, aprendi a ver com outro olhar as desigualdades, preconceitos e discriminações existentes na sociedade e a acreditar na necessidade da divulgação maciça dos direitos humanos, temática por mim trabalhada junto ao Escola Aberta na cidade de Queimados, onde realizo oficinas com crianças em fase escolar de origem popular, tendo em vista proporcionar um futuro menos desigual e mais digno.” “O Programa Conexões de Saberes alterou positivamente a minha vida acadêmica e social, visto que, além da ajuda financeira (imprescindível para mim), eu participaria de um projeto de ação afirmativa, junto com pessoas de origem semelhante a minha, engajadas e comprometidas com o seu papel de agentes produtores e transformadores da sociedade na qual estão inseridos.” “Observando minha trajetória, percebo que tudo o que vivi foi necessário para meu aprendizado e engrandecimento como pessoa. O Programa Conexões de Saberes está sendo uma grande oportunidade, pois aprendi, aprendo e pretendo aprender muito mais. Além dos ensinamentos, o Programa é de grande ajuda para minha manutenção e permanência na universidade. Penso que o acesso à educação é direito de todos, então a universidade também deveria ser. No entanto, de acordo com a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, o acesso à universidade é uma questão de mérito, isto é, não é acessível a todos. Por isso, as discrepâncias social e racial permeiam a nossa sociedade.” “No Conexões, estou descobrindo mais um mundo novo, até mesmo uma nova identidade, outras ideologias de vida, me identifico muito com as causa sociais que ele abraça. Quero ajudar a construir um mundo melhor, poder levar oportunidades para o meu povo. Sou muito grata a tudo e a todos que me ajudaram e continuam me ajudando. Sei que ainda haverá muitos obstáculos pela frente e com garra passarei por cima de todos eles, pois, com os obstáculos, aprendemos a dar mais valor àquilo que conquistamos.” “A minha entrada nesse Programa foi mais uma confirmação de que eu estava seguindo o caminho certo. O valor da bolsa me ajuda muito nas despesas de minha permanência na universidade, mais do que isso, ter entrado para o Conexões significou para mim, ingressar num grupo no qual eu me sinto feliz e estimulada para seguir em frente.” “A experiência no Escola Aberta tem sido bastante significativa, pois atende à demanda profissional na qual estou inserida. Em setembro de 2006, apliquei uma oficina em duas escolas pertencentes ao município de Belford Roxo, Escola Municipal Manoel Gomes e Escola Municipal Belford Roxo, na primeira escola, onde o público atendido compreendia jovens de 12 a 15 anos, a atividade contou com o debate sobre o preconceito racial a partir de textos contendo depoimentos 208 Caminhadas de universitários de origem popular de pessoas negras como Netinho, da banda Negritude, o jogador Marcelinho carioca e a atriz Zezé Mota, com uma proposta final de registro gráfico sobre o tema. Na segunda escola, os participantes eram, em sua maioria, crianças e a realização da oficina foi gerada com a leitura de obras infantojuvenis que tinham como protagonistas personagens negros, seguido de uma “conversa” sobre a valorização da identidade negra e o seu registro em desenho, levando-os, assim, à construção de um pensamento crítico.” “Iniciar um trabalho é sempre algo que constitui um grande desafio, e minha entrada no Escola Aberta foi algo que suscitou em mim vários sentimentos, entre eles o medo, sobretudo, de não ser aceita, de cometer mais erros que acertos – hoje sei que cometi alguns equívocos, mas também deixei algumas sementes. Esse início assemelha-se muito ao que estou fazendo nesse momento, ou seja, começar um texto, trabalho que significa quase sempre grande dificuldade, contudo, quando você consegue dar o pontapé inicial, logo toma o “gostinho”. No primeiro momento, iniciei as oficinas no Escola Aberta em dupla com Louise, outra conexista, e me pareceu que rolava perfeita simbiose entre a gente. Posteriormente vi que não foi bem assim, mas, enfim, as conexões nem sempre se dão da maneira que idealizamos, por isso acredito que tropeços e divergências façam parte de todo processo coletivo, só desse modo exercitaremos o princípio da dialética. No momento seguinte, passei a trabalhar sozinha, pois constatamos no decorrer do processo que se tornara inviável atuarmos em duas Escolas no mesmo dia. Foi então que o desafio tomou uma dimensão ainda maior e junto com ele todos os medos. Certamente essa é uma daquelas experiências que irão marcar não somente minha participação dentro do Projeto Conexões de Saberes, como também toda minha trajetória de vida. Nessa hora, passa uma espécie de filme na nossa cabeça, me vem à cabeça, então, a experiência do primeiro dia aplicando a oficina na Escola Municipal Francisco Portugal Neves, a expectativa das crianças e, em seguida, ocorrer o pior: o desinteresse delas foi simplesmente um grande vazio, seguido de uma sensação de fracasso terrível. Mas não pensem que me dei por vencida. No outro final de semana, lá estava eu com várias idéias que fervilhavam em minha cabeça no decorrer daquela mesma semana. Resolvi que iria trabalhar com todos os oficineiros, ou quase todos, do Escola Aberta e acredito ter dado certo, pois a partir dali passei a conhecê-los melhor e a receptividade aconteceu não só por parte deles, como também das crianças. Tive a oportunidade de ouvir relatos incríveis e, sobretudo, aprender e trocar com uma boa parte deles (oficineiros e as crianças). Claro que nem todo sábado era o que se pode chamar de “um sucesso de público e crítica”, contudo pude constatar que quantidade nem sempre representa qualidade e que, às vezes, sem que nós mesmos percebamos, alguma coisa fica. É isso aí gente, estou caminhando, às vezes tropeçando, mas acredito que tudo isso faz parte de um processo e que, um dia, vou olhar para trás e ver que valeu a pena.” Referências Bibliográfica BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Trad. Maria Lúcia Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. LEFÈVRE, Fernando; LEFÈVRE, Ana Maria C. Os Novos Instrumentos no Contexto da Pesquisa Qualitativa. In: LEFÈVRE Fernando; LEFÈVRE Ana Maria C.; TEIXEIRA, Jorge Juarez V. (orgs.). O Discurso do Sujeito Coletivo. Caxias do Sul, Rio Grande do Sul: EDUCS, 2000. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 209 210 Caminhadas de universitários de origem popular Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro 211 212 Caminhadas de universitários de origem popular