CONFIANÇA E TERNURA

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CONFIANÇA E TERNURA
CONFIANÇA E TERNURA
1
FILHAS
DE MARIA
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REVISTA DAS
AUXILIADORA
dma
Revista das Filhas de Maria Auxiliadora
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Mariagrazia Curti
Redação
Giuseppina Teruggi
Anna Rita Cristaino
Colaboradoras
Tonny Aldana • Julia Arciniegas
Patrizia Bertagnini • Mara Borsi
Carla Castellino • Piera Cavaglià
Maria Antonia Chinello
Emilia Di Massimo • Dora Eylenstein
Maria Pia Giudici • Palma Lionetti
Anna Mariani • Adriana Nepi
Maria Perentaler • Loli Ruiz Perez
Debbie Ponsaran
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Tradutoras
francês • Anne Marie Baud
japonês • inspetoria japonesa
inglês • Louise Passero
polonês • Janina Stankiewicz
português • Maria Aparecida Nunes
espanhol • Amparo Contreras Alvarez
alemão • inspetorias austríaca e alemã
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USPI
ASSOCIADA
UNIÃO IMPRENSA PERIÓDICA ITALIANA
Edição em Português
2
SUMÁRIO
Editorial
Dossiê
Eventos especiais para 2014
4
Giuseppina Teruggi
Palavras e gestos
de confiança e ternura
5
Primeiro plano ......................................................................................................................................
Espiritualidade Missionária
“Eis-me, envia-me!”
10
Alma e direito
Um filho a todo custo
11
Cultura ecológica
Fio de Ariadne
A terra, nossa casa comum
In/Gratidão
13
14
Em busca ..................................................................................................................................................
Viver com paixão
18
Pastoralmente
JMJ: etapa de um longo caminho
19
Um olhar sobre o mundo
Unidas por uma sociedade melhor
21
EJS culturas
Comunicar ................................................................................................................................................
Faz-se para dizer
Mulheres no contexto
Conectar
O reflexo da ternura na economia
23
24
Vídeo
A primeira neve
26
Livro
A alma do mundo
28
Música e teatro
Camilla
As atividades teatrais na formação
29
Almas de oração
31
3
LHAS DE MARIA AUXILIADORA
EDITORIAL neste número
Eventos especiais para 2014
Giuseppina Teruggi
Estamos no início de um ano particularmente
significativo: um ano que nos levará à celebração
do Capítulo geral 23º, no próximo mês de
setembro.
Entre os eventos que as participantes do
Capítulo viverão, é relevante o encontro com
Madre Ângela Valese, a pioneira das missões da
América, cujo centenário de morte ocorre este
ano.
A parada em Lu Monferrato (Alessandria), sua
terra natal, no final dos Exercícios espirituais em
Mornese, quer significar uma homenagem à sua
memória e ao enraizamento do carisma salesiano
em terras americanas.
Madre Valese vai nos acompanhar numa nova
Rubrica, para um interessante percurso
missionário.
Nos primeiros meses do ano, os nossos
Confrades Salesianos também viverão o evento
capitular que, já faz algum tempo, os vê
empenhados no aprofundamento do tema:
“Testemunhas da radicalidade evangélica”.
E, assim como para as FMA, o Capítulo se
ocupará da eleição do Superior geral que, com o
seu Conselho geral, é chamado a animar e a
governar a Congregação no próximo sexênio.
O ano de 2014 introduz também o período
culminante de preparação ao Bicentenário do
nascimento de Dom Bosco.
A estreia do Reitor-Mor, Dom Pascual Chávez
Villanueva, coloca-se na perspectiva desse
evento,
e pretende sustentar o compromisso da Família
Salesiana no aprofundamento da experiência
espiritual de Dom Bosco, fonte da santidade
salesiana.
A Igreja abre o novo ano com a primeira
Jornada mundial pela paz celebrada pelo Papa
Francisco, com o tema: “Fraternidade, fundamento
e caminho para a paz”.
Nos meses seguintes, outras Jornadas mundiais
acompanharão os fiéis a eventos que remetem
aos valores fundamentais da vida segundo o
Evangelho.
Estão previstas pelas Nações Unidas, em
âmbito mundial, várias iniciativas que colocam em
evidência o tema do Ano internacional da
agricultura familiar.
No encontro de agosto de 2013 em Cesuna, o
grupo de redação da Revista DMA teve presente
as propostas mundiais, eclesiais e salesianas de
2014, com especial atenção aos temas de fundo
que introduzem no horizonte do CG 23º.
Podemos sintetizá-los na ótica da construção de
relações para a evangelização, com particular
referência às palavras e aos gestos do Papa
Francisco.
Para cada Dossiê, escolheu-se proceder com a
metodologia do Ver, da análise da situação com
suas luzes e suas sombras; Julgar, a partir da
questão “o que diz Deus sobre isto?”; Agir, para
responder à pergunta “o que Deus está nos
pedindo para fazer a fim de colaborar na
construção do seu Reino?”.
[email protected]
dma damihianimas
REVISTA DAS FILHAS DE MARIA AUXILIADORA
ANO LXI ● JANEIRO – FEVEREIRO DE 2014
4
DOSSIÊ DMA
Palavras e gestos
de confiança e ternura
Giuseppina Teruggi
A recente Encíclica “Fidei Donum” e o Sínodo dos
Bispos sobre a Nova Evangelização são eventos que
reforçam na Igreja o empenho de permanecer “no poço
de Sicar, como Jesus” e de sentar-se “ao lado de
homens e mulheres deste tempo para tornar presente o
Senhor em suas vidas, de modo que possam encontrálo”.
Como fma, deixamo-nos iluminar pelo itinerário
eclesial para renovar o nosso ser e o ser relacional
como caminho de Evangelização, conscientes de que é
prioritária a coerência de vida. De fato, a Nova
Evangelização realiza-se unicamente na sincronia de
palavras e gestos, como declara o Papa Francisco.
Com este tema condutor iniciamos as reflexões dos
Dossiês, que nos acompanharão no decorrer do ano.
“Proclamar o evangelho com a palavra”
Muitos sinais e eventos nos convencem de que
estamos vivendo uma época singular na história da
Igreja, guiada pelo Espírito mediante figuras
extraordinárias de Pontífices.
Hoje, em particular, é o Papa Francisco que está
surpreendendo homens e mulheres de todo o mundo.
Desde o início do seu pontificado dirigiu um premente
convite à Igreja: anunciar o Evangelho com a coerência
de vida. «Eu repito aquilo que sempre afirmava São
Francisco de Assis: Cristo nos enviou para anunciar o
Evangelho também com a palavra.
A frase é assim: “Anunciai o Evangelho sempre. E,
se for necessário, com as palavras”. O que quer dizer
isso? Anunciar o Evangelho com a autenticidade de
vida, com a coerência de vida. Mas neste mundo onde
as riquezas fazem tanto mal, é necessário que nós
padres, nós Irmãs, todos nós, sejamos coerentes com
a nossa pobreza! Mas quando se percebe que o
interesse primordial de uma instituição educativa ou de
uma paróquia é o dinheiro, isso não é bom. É uma
incoerência! Devemos ser coerentes, autênticos.
Desta forma, façamos aquilo que diz São Francisco:
preguemos o Evangelho com o exemplo, depois com
as palavras! Mas, antes de tudo é em nossa vida que
os outros devem poder ler o Evangelho! Também aqui
sem medo, com os nossos defeitos que procuramos
corrigir, com os nossos limites que o Senhor conhece,
mas também com a nossa generosidade ao deixar que
Ele aja em nós» (Cf Encontro com os seminaristas, os
noviços e as noviças -– Roma, 6/07/2013).
Palavras e gestos da nova Evangelização
É pelo seu estilo, pelos seus gestos, antes ainda que
pelas palavras, que o Papa Francisco fala ‘urbi et orbi’.
«A nossa vida é uma viagem e quando paramos a
coisa não vai», afirmava na homilia do dia seguinte à
sua eleição. Partindo da palavra de Deus, focalizava o
conceito de movimento: «Caminhar, edificar, confessar.
Caminhar sempre na presença do Senhor, à luz do
Senhor, procurando ser irrepreensível, como Deus
pedira a Abraão em sua promessa».
E ainda: «Eu desejo que todos nós depois desses
dias de graça tivéssemos a coragem, isso mesmo, a
coragem, de caminhar na presença do Senhor, com a
cruz do Senhor, de edificar a Igreja no Sangue do
Senhor derramado na cruz e de confessar a única
glória, Cristo crucificado, e assim a Igreja irá adiante».
Desde o início, o Papa Francisco tencionou fazer a
Igreja caminhar nas vias do Evangelho, assumido e
vivido não “à água de rosas”, mas capaz de impregnar
a vida e de transformá-la.
Ficamos fascinados com a homilia do início do seu
pontificado, no dia 19 de março na Praça São Pedro,
quando deu logo a perceber uma humanidade
calorosa. «Não devemos ter medo da bondade; nem
sequer da ternura! E aqui acrescento, então, outra
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observação: o ato de cuidar, de custodiar pede
bondade, pede para ser vivido com ternura.
Nos Evangelhos, São José aparece como um
homem forte, corajoso, trabalhador, mas emerge de
sua alma uma grande ternura, que não é a virtude do
fraco, antes, ao contrário, denota fortaleza de alma e
capacidade de atenção, de compaixão, de verdadeira
abertura ao outro, de amor. Não devemos ter medo da
bondade, da ternura!».
Confiança e ternura: o quê? Como?
Vivemos em um tempo de fortes oportunidades
humanas e tecnológicas, mas também marcado pelos
limites que, às vezes, impedem de experimentar a
beleza da relação entre as pessoas, o gosto de ficar
juntos, a doçura de sentimentos profundos e arejados.
Tende-se hoje a privilegiar em tudo a rapidez, a
pressa e vai-se acentuando um “racionalismo” que
pretende encontrar em cada coisa, de imediato, uma
explicação. E isso passa por “sabedoria”. Com
frequência as relações são postadas à base da
vantagem, do interesse pessoal, do medo que cria
distâncias.
Em um livro publicado há alguns anos com o título
“Teologia da ternura, um ‘evangelho’ a ser descoberto”
(Ed. Dehoniane, Bologna, 2000), o teólogo Carlo
Rocchetta explica o significado do termo ternura, que
está ligado à atitude da confiança.
De fato, pode haver um mal-entendido sobre o termo
se for confundido com a afetação, com a tendência ao
sentimentalismo, com uma espécie de romantismo
barato.
Corre-se também o risco de fazer a ternura passar
por fraqueza e de se falar dela como sinal de
imaturidade.
A ternura é “força, sinal de maturidade e de vigor
interior, que desabrocha apenas no coração livre,
capaz de oferecer e de receber amor”. É a mesma
acepção dada pelo Papa Francisco na sua primeira
homilia pública.
Podemos então afirmar que a ternura é a força mais
humilde e, ao mesmo tempo, mais poderosa para
introduzir germes de novidade no mundo.
Acontece a alguns, atribuir-lhe uma conotação
prevalentemente feminina e, seja como for,
escassamente viril. Mas, observa o teólogo, «Trata-se
de um preconceito infundado, que deve ser
desmascarado com energia. Seria como dizer que a
sensibilidade e a capacidade de expressar o afeto, a
atenção à vi da, a doçura do amor de Deus ou a
delicadeza
evangélica da caridade, constituem
atitudes barradas no horizonte masculino. Na
realidade, o sentimento de ternura diz respeito, de
modo total e incancelável, tanto ao homem quanto à
mulher, à sua humanidade e à sua vocação ao amor e
à comunhão».
É precisamente a integração harmônica entre o
masculino e o feminino que enfatiza este sentimento.
Além do mais, para os crentes, é Deus a fonte
inexaurível e o vértice de toda a ternura, que se
constrói na confiança recíproca e favorece o
desabrochar de sentimentos profundos, livres,
delicados.
Esta atitude calorosa e humana constitui uma força
positiva para a vida de fé, porque sustenta a formação
de uma personalidade rica de humanidade, configurada
à humanidade do Senhor Jesus.
O cristianismo, sem ternura, corre o risco de
apresentar-se em chave redutiva, aproximando-se do
que é “apenas ritualista e moralista”.
Gestos de beleza da Igreja
O caminho da ternura pode constituir uma dimensão
importante para o futuro da Igreja, um aspecto que
pode fascinar também os que não são crentes, um
caminho para muitas comunidades eclesiais saírem
das águas rasas que hoje estão singrando. Permite
redescobrir o sentido extraordinário de ser cristãos na
magnitude de uma vida realizada na beleza, no amor,
na solidariedade, na atenção gentil, sobretudo aos
pobres, aos pequenos, aos indefesos.
Alguns falam da ternura como o “sonho de Deus
para a humanidade”. O CG 21º (2002) propôs a todas
as fma o empenho de viver a comunhão, “sonho de
Deus para a humanidade”. Eu acredito que possa
existir complementaridade e integração entre ternura e
comunhão, realidades intercambiais. Uma não existe
sem a outra. Por isso, também nós podemos
pressagiar «uma Igreja de ternura que viva o
mandamento novo do amor como sua ‘norma normans’
e faça da ternura a sua alma e o seu sinal distintivo.
Uma Igreja que, assim como o carpinteiro de Nazaré,
se faça pobre, superando a tentação de ser igreja do
domínio e das condenações. Uma Igreja da amizade,
anti-autoritária e anti-centralizadora, onde a lógica do
‘dominium mundi’ é substituída pela lógica do
‘servitium mundi’, a lógica da ternura».
É um caminho a ser tomado para a construção de
uma nova humanidade onde vantagem, egoísmo,
violência, desconfiança não podem prevalecer. A
confiança em Deus, a confiança sempre renovada no
irmão e na irmã, a ternura, o amor são forças que dão
esperança à humanidade. E são caminhos de
evangelização.
Enraizados em bases sólidas
O falar e o agir de Jesus estão impregnados de
gestos de ternura, de misericórdia: os Evangelhos têm
uma abundância de testemunhos do seu “passar entre
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as pessoas fazendo o bem a todas”. O Mestre não
nega sua confiança a ninguém, a não ser que se
encontre diante de corações endurecidos pelo
preconceito, pela rejeição da sua pessoa e da sua
palavra.
Na verdade “a sua ternura expande-se sobre toda
criatura” (Sl. 144).
«Deus não pode não amar», afirmava o Irmão
Roger, prior de Taizé, observando que, para o crente, o
chamado hoje a abrir caminhos de confiança a partir
das noites da humanidade, é insistente. «Há pessoas –
dizia – que, doando-se si mesmas, testemunham que o
ser humano não está fadado ao desespero. Sua
esperança permite olhar o futuro com uma profunda
confiança. Por intermédio do seu testemunho, não
vemos surgir nas situações mais inquietantes do
mundo, sinais de uma inegável esperança?».
Estas pessoas sabem que “nem as desgraças, nem
a injustiça provêm de Deus”, porque Deus é Amor. Ele
olha para cada criatura com infinita ternura e com
profunda compaixão. Nossa confiança em Deus é
reconhecível quando se exprime com o simplicíssimo
dom de nos mesmos aos outros: a fé torna-se então
confiável e se comunica, antes de tudo, quando é
vivida. «Ama e dize-o com a tua vida», escrevia S.
Agostinho três séculos depois de Cristo.
À raiz do carisma salesiano existe uma confiança
ilimitada, sobretudo nos jovens e nas jovens. Eles
literalmente “roubaram o coração” de Dom Bosco! «O
Senhor mandou-me para os jovens», dizia, «por isso é
preciso que eu me poupe nas outras coisas e preserve
a minha saúde para eles». «Minha vida é consagrada
ao bem estar da juventude pobre e jamais vou me
desviar do caminho que o Senhor traçou para mim».
Madre Mazzarello dedicou sua vida às meninas de
Mornese e do mundo todo, enfrentando todas as
dificuldades para poder fazer-lhes o bem.
O estilo escolhido pelos nossos Fundadores para
“estar com os jovens”, é a amorevolezza, síntese
harmônica de confiança e ternura, amor educativo
manifestado e percebido.
De fato, é indispensável «que os jovens não apenas
sejam amados, mas saibam que são amados». E cada
qual, em Valdocco e em Mornese, percebia
efetivamente que era o mais amado, a mais amada! Na
casa salesiana, a educação/evangelização “é coisa do
coração” !
Como guardiões de um carisma educativo
caracterizado pela amorevolezza, percebemos uma
forte sintonia com o estilo que o Papa Francisco está
indicando para a Igreja.
Uma Igreja próxima das pessoas: «Porque a Igreja é
mãe, e não conhecemos uma mãe por
correspondência. A mãe nos abraça, nos toca, nos
beija, nos ama.
Quando a Igreja, empenhada em mil coisas,
negligencia esta aproximação e se comunica apenas
com os documentos, é como uma mãe que fala com
seu filho por escrito» (Cf Entrevista à TV brasileira ‘O
Globo’, 28 de julho de 2013).
Para o Papa, é preciso uma Igreja “mais facilitadora
do que controladora da fé”. Existem, às vezes,
«pastorais ‘distantes’, pastorais disciplinares que
privilegiam os princípios, as condutas, os
procedimentos organizativos, sem aproximação, sem
ternura, sem calor humano. Ignora-se a ‘revolução da
ternura’ que provocou a encarnação do Verbo.
Existem pastorais organizadas com tal dose de
distância que são incapazes de realizar o encontro:
encontro com Jesus Cristo, com os irmãos». «Como
são as nossas homilias? – pergunta o Papa –
Aproximam-nos do exemplo de Nosso Senhor, que
‘falava como quem tem autoridade’ ou são meramente
preceptivas, distantes, abstratas?» (Cf Discurso ao
Comitê de coordenação do Celam, 28 de julho de
2013).
No concreto da vida
A ternura é uma atitude madura, que nos torna
atentos às riquezas do outro e que nos permite
participar, com o calor da nossa sensibilidade, de suas
emoções, de seus sentimentos. Ela se exprime com o
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estilo da cordialidade, da acolhida, da atenção aos
pequenos gestos de afeto que revelam confiança,
alegria, valorização do outro. Ser terno é saber saudar
e responder com um sorriso, evitar levantar a voz nos
momentos difíceis, saber escutar, fazer uma
inesperada demonstração de afeto. É estar
continuamente atento para fazer o outro feliz por meio
de mil gestos ditados pela fantasia do amor. Tanto nas
circunstâncias usuais da vida como nas
extraordinárias.
Há algum tempo, as crônicas falaram muito de
Eleonora, morta na estrada enquanto socorria um
homem gravemente ferido, depois de uma briga com
alguns compatriotas. Eleonora estava passando por
acaso e não hesitou em parar improvisamente o seu
carro quando percebeu que se tratava de uma pessoa
necessitada de socorro.
Enquanto estava inclinada sobre o homem, o seu
agressor jogou o próprio carro com toda velocidade
sobre os dois... «Disseram-me – afirma Mariella, a mãe
de Eleonora – que o homem morto tinha quatro filhos e
não consigo deixar de pensar neles, nas dificuldades
pelas quais eles estão passando. Então pensei: se
Eleonora morreu para ajudar o pai, que amava tanto as
crianças, seguramente quereria que se fizesse alguma
coisa para ajudar os seus filhos, também
economicamente».
E decide com o seu marido que as doações
coletadas no funeral de sua filha sejam transferidas aos
órfãos. «Perguntam-me se sinto ódio – confidencia -,
mas eu não sinto nada. Não sei por que, não sei se é
por Eleonora, que amava a todos, principalmente os
últimos, mas não sinto raiva. Não me sinto nem sequer
de falar em perdão. O que quer dizer perdão? É o Pai
eterno que perdoa. A única coisa que eu posso fazer é
ajudar as quatro crianças órfãs. E não me interessa
encontrá-las ou saber quem são, se são grandes, onde
moram ou o que fazem».
Eleonora, médica ginecologista de 44 anos, é
descrita por todos como uma pessoa «amável,
expansiva, generosa, que queria o bem dos outros,
sempre pronta a ajudar. Uma mulher corajosa e
excessivamente altruísta! Sua enorme sensibilidade a
impelia com naturalidade para os mais humildes. Vivia
intensamente a caridade. Em sua carreira fez nascer
centenas de crianças e assistiu muitas mães,
colocando-se gratuitamente à disposição de quem
estava em dificuldade financeira ou sem os meios
necessários».
O mundo em que vivemos nos habitua à pressa, a
não ter tempo para gestos e palavras de ternura, de
conforto.
Talvez a coisa mais importante a ser feita é
exatamente encher o nosso tempo com estes gestos,
escolhendo o desafio da solidariedade, do dom gratuito
e discreto. Como o de Meghan, jovem atleta americana
empenhada nos 3.200 metros.
No belo mês da competição observa que uma de
suas adversárias encontra-se em dificuldade por causa
de um ataque de cãibra. Decide renunciar à vitória e
acompanhar a jovem até a meta.
Terminarão a competição respectivamente como a
última e a penúltima, mas sua derrota é acolhida com
caloroso aplauso pelo público que reserva a Meghan o
tratamento de vencedora!
São sem número os gestos e as palavras de atenção
aos outros, às vezes desconhecidos, mas não menos
preciosos.
Gestos e palavras de confiança e ternura que
perfumam a vida com o perfume do bem.
[email protected]
● O que são para mim, no concreto da vida,
ternura e confiança?
● Qual e quanto esforço estou disposta a
fazer para sair de mim mesma, para
oferecer a quem vive ao meu lado o perfume
da ternura, para continuamente voltar a
tecer a confiança?
● Estou convencida de que um estilo
impregnado de confiança e de ternura é
caminho de evangelização? Como eu o
exprimo?
dma damihianimas
REVISTA DAS FILHAS DE MARIA AUXILIADORA
ANO LXI ● JANEIRO – FEVEREIRO DE 2014
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MARCA
PÁGINA
O primeiro dia do Papa Francisco
Tudo quanto o Papa sublinha e propõe às/aos
jovens em formação, é um reflexo do seu estilo de vida,
jamais desmentido, e que constitui o fio vermelho de
toda a sua existência. Percebemos isso assim que foi
eleito Sucessor de Pedro, na tarde de 13 de março de
2013.
É interessante a crônica do seu primeiro dia como
Papa. A primeira missa de Jorge Mário Bergoglio eleito
Pontífice é quase uma estreia como Papa, apontando
para um pontificado com um claro estilo. Na Capela
Sistina, assim que foi eleito, não sobe ao trono. No
momento do juramento de obediência dos cardeais ao
Papa, é ele que vai em direção ao Cardeal Ivan Dias,
impedido de movimentar-se pela doença. Apresenta-se
na galeria de São Pedro sem a murça e com a sua
simples cruz de Bispo, ao lado de um mestre de
cerimônias com um rosto um tanto perplexo.
Dirige-se aos fiéis na praça depois da fumaça branca
começando com “Boa tarde...”, em seguida pede que
rezem por ele. Mesmo depois da eleição, toma o carro
junto com os outros cardeais. Quando fazem o brinde,
brinca com os seus eleitores: “Deus vos perdoe pelo
que fizestes”. Deixa o carro oficial, de chapa ‘Scv1’ –
Estado da Cidade do Vaticano 1 – também quando no
início da manhã, vai rezar a Nossa Senhora na Basílica
de Santa Maria Maior, pelo primeiro compromisso
público do Pontificado.
Aos confessores dominicanos que prestam o seu
serviço na Basílica, recomenda a misericórdia. Ao sair
saúda com a mão os estudantes da vizinha escola
secundária que acenam seus braços, das janelas.
Voltando ao Vaticano, faz desviar o carro em direção à
Casa internacional do clero onde pernoitara antes do
Conclave. Desce, vai pegar a valise, agradece o
pessoal. E, para surpresa geral, paga a conta do
quarto. À noite, de novo na capela Sistina para a Missa
com os cardeais, pronuncia a homilia, com um italiano
calmo e mesclado de acento espanhol.
Renuncia a viver permanentemente nas estâncias
pontifícias. Aliás, em Buenos Aires morava em um
apartamento, tomava o metrô e, em Roma, chegava às
congregações gerais dos Cardeais a pé: era um dos
poucos sem o solidéu vermelho, esquivando-se, sem
ser notado, dos jornalistas à caça de papáveis.
dma primeiro plano:
Aprofundamentos bíblicos,
educativos e formativos
9
ESPIRITUALIDADE MISSIONÁRIA
«EIS-ME,
ENVIA-ME!»
Maike Loes
A fma chamada à vocação
missionária ad gentes, compromete-se
a responder sim com a vida
e com a generosidade do «vado io»
(C 32), compromete-se a renovar
a identidade carismática, a viver
com radicalidade a Palavra, a reavivar
o ardor missionário para que
as/os jovens “afastados”
do mundo todo tenham vida.
Toda vocação missionária nasce da Missio Dei.
«Deus amou tanto o mundo que deu o seu Filho
unigênito» (Jo 3, 16). Por isso, cada vocação
missionária tem suas raízes e seu fundamento em
Jesus, Palavra do Pai. Com o desejo de reunir todos os
filhos dispersos (cf. Jo 11, 52), Jesus entrega aos seus
discípulos o mandato missionário, mostrando com as
palavras e as obras que Deus é amor: «Ide ao mundo
todo e pregai o evangelho a toda criatura» (Mc 16, 15).
O empenho de difundir a fé pertence a qualquer
discípulo de Cristo. A vocação missionária é uma
vocação especial. Deus prepara cuidadosamente o
coração de um/a missionário/a para que seja no mundo
expressão visível do Seu amor. O missionário/a é um
homem/mulher de caridade, que anuncia, mais com a
vida do que com as palavras, que toda pessoa é
amada por Deus e que somos feitos por Amor e para o
amor. É dotado/a de um coração universal que
consegue superar as fronteiras e as divisões de
nacionalidade, etnia, cultura, ideologia, religião. Há
espaço para todos: não exclui, não rotula, não divide,
mas abraça, acolhe, faz-se um com e para os outros.
Pertence à «igreja do avental», como a definia Tonino
Bello, vive a dimensão do serviço sempre, em todo
lugar, para todos! Um missionário/a aprende
continuamente, e aprende com humildade, a inserir-se
no mundo sócio-cultural e religioso daqueles aos quais
é enviado/a, assumindo a sua língua, conhecendo as
expressões significativas da cultura local, descobrindo
os valores presentes naquela realidade (cf RM 53). A
vocação missionária, antes ainda de ser ação, é
testemunho e exige uma específica espiritualidade e
comunhão íntima com Cristo. O missionário/a sabe que
sua força interior provém do Espírito, é Ele a fonte da
qual continuamente extrai as próprias energias para
realizar sempre e em qualquer lugar a vontade do Pai.
As nossas Constituições, já no primeiro artigo,
revelam o quanto o nosso Instituto é missionário:
«Dom Bosco fundou o nosso Instituto [...] e imprimiulhe um forte impulso missionário». Por isso, «a
dimensão missionária – elemento essencial da
identidade do Instituto e expressão da sua
universalidade – está presente em nossa história desde
as origens». Procurando manter vivo o impulso
missionário da primeira hora, as fma são chamadas a
trabalhar pelo Reino de Deus que está em toda parte,
nos países cristãos e nos países descristianizados ou
ainda não evangelizados (C 6), «entre as populações
às quais ainda não chegou o anúncio da Palavra, para
que possam encontrar em Jesus Cristo o significado
profundo das suas aspirações e dos seus valores
culturais» (C 75).
Ângela Vallese: um episódio infantil
revela a sua vocação
Ângela Vallese nasceu no dia 8 de janeiro de 1854
em Lu Monferrato, uma aldeia pequena, mas fecunda
por dar muitas vocações à Igreja. Ângela guardará no
seu coração, para sempre, a lembrança desta graça:
ter nascido no ano da proclamação do dogma da
Imaculada Conceição.
A família é pobre materialmente, entrementes não
lhes faltam os valores cristãos e o afeto.
Aos seis anos começa a frequentar a escola, mas
depois de quatro anos deve deixá-la porque a família
precisa de ajuda econômica, então Ângela aprende a
profissão de costureira e desafia a pobreza oferecendo
10
o dom do seu trabalho para dar conforto aos seus
entes queridos. Ângela frequenta a igreja de sua
aldeia, com seus pais, como fazem muitas outras
crianças. Tem cerca de sete anos quando, de longe,
chegam dois missionários para falar ao povo sobre a
Obra da Propagação da Fé e da Santa Infância. Ângela
escuta tudo com muita atenção e fica tocada ao saber
que existem pessoas que ainda não conhecem Jesus e
crianças necessitadas de ajuda.
É a primeira a oferecer-se para fazer a coleta,
imaginando como aquele dinheiro poderá servir para
levar Jesus às crianças pobres e esquecidas,
abandonadas à morte sem a possibilidade de conhecêLo e sem serem batizadas.
Talvez devido ao seu aspecto delicado e angélico,
as pessoas dão a ela mais ofertas do que às suas
companheiras. Uma única e espontânea oração brota
do seu coração: “Conceda-me o Senhor, salvar tantas
almas quantas são as moedas que recolho!” Naquele
momento Ângela intui muito bem o que deseja fazer
quando for grande. Nela faz caminho o desejo íntimo
de fazer Jesus conhecido e de levá-lo a muita gente!
Apesar de ser apenas uma criança, não tem medo
do sacrifício, sabe prestar-se aos trabalhos mais
pesados e se torna também catequista.
O pároco, percebendo o bom pano, confia-lhe o
ensino do catecismo aos seus coetâneos e até para
alguns maiores do que ela.
Com a idade de quinze anos começa a frequentar o
grupo das Filhas de Maria Imaculada. Sabe conjugar a
vida cotidiana com o empenho na virtude, a dedicação
à oração e ao recolhimento, que recomenda com
grande afeto também às suas irmãs menores, das
quais ela cuida.
E chega o dia em que conhece Dom Bosco! Já tem
vinte anos quando descobre que este sacerdote abrira
uma casa para as Irmãs, em Mornese. Ângela não
duvida: “Eis onde me quer o Senhor, eu o sinto!”. No
dia 15 de novembro de 1875 alcança Mornese e
conhece o Instituto fma nascido há apenas três anos.
Madre Mazzarello acolhe com bondade materna esta
filha humilde e simples, que reflete no olhar a inocência
do coração, e entrevê nela um tesouro de virtude e de
sabedoria. Os passos são rápidos: em 24 de maio de
1876 faz a vestição, em 29 de agosto do mesmo ano,
a primeira profissão. Um ano depois, no dia 14 de
novembro de 1877, com apenas 23 anos, parte para a
América, como guia da primeira expedição missionária
fma, cheia de entusiasmo missionário, contagiada pelo
ar que se respirava em Mornese. E aqui “o Senhor lhe
concede salvar tantas almas quantas moedas havia
recolhido” quando criança. Nos seus 36 anos de vida
missionária, Ângela soube traduzir o evangelho na
vida. “Quem comanda seja como aquele que serve”, é
o seu mote de mulher incansável, capaz de enfrentar
viagens, mudanças, distâncias, solidão, desapegos,
pobreza e dificuldades de todo gênero.
[email protected]
ALMA E DIREITO
Um filho
a todo custo!
Rosária Elefante
As mãos sobre a vida.
É possível dar um preço
ao próprio filho?
A resposta hoje não é
óbvia, infelizmente.
O processo de “regularização” habituou-nos há muito
tempo a palavras que parecem sair de um romance de
ficção científica, mas que na verdade cristalizam uma
realidade surreal que acontece já faz anos em muitos
países.
Barriga de aluguel, maternidade substituída, contrato
de mãe a prazo, são paráfrases que compreendem as
hipóteses nas quais uma mulher, “aluga” o próprio
ventre por nove meses como incubadora natural para a
11
operação antinatural de criar um filho ordenado por
outros e a eles destinado por contrato.
Pois bem, além da venda de gametas (óvulos e/ou
espermatozoides) para casais
inférteis
ou
homossexuais, a moda agora é exatamente “alugar”
uma mulher para o período gestacional, usando o seu
corpo como uma “máquina”, a fim de obter uma “coisa”:
o filho que naturalmente nunca chegaria.
Tendo acontecido o parto, em seguida o casal
comprador retira a mercadoria (o filho) desembolsando
de 8 mil a 60 mil dólares (ou mais) dependendo do
poder de resgate exercido sobre a “mãe contratada”.
Estados Unidos, Grã Bretanha, Índia, Ucrânia e
Guatemala: são países onde este comércio é
florescente. Qual é a diferença? Apenas uma questão
de preço. É exatamente a relação de força –
econômica, geográfica, social – entre os genitores
aspirantes (se assim podem ser definidos) e a gestante
real que dita as condições e desloca a escolha da mãe
momentânea no mapa mundi.
Isso se chama comercialização da vida humana não
apenas e sobretudo para o filho, mas também para a
exploração das mulheres, a humilhação de seus
corpos, para a autêntica desfiguração do rosto
feminino, até atingi-lo na magnífica essência imaculada
da procriação: o senso materno, o liame de sangue e
psicológico com um criatura que brota, cresce, movese e vive dentro de uma mãe.
É proibido proibir
A dignidade humana e cristã
da procriação, de fato, não
consiste em um “produto”, mas
em seu liame com o ato
conjugal, expressão do amor
dos cônjuges, da sua união não
apenas biológica, mas também
espiritual. A Instrução Donum
vitae lembra-nos, a este
propósito, que “pela sua íntima
estrutura, o ato conjugal,
enquanto
une
com
profundíssimo vínculo os
esposos, torna-os aptos à
geração de novas vidas,
segundo leis escritas no
Reflitamos por um momento. Um casal paga dinheiro
a uma mulher que o embolsa por uma vida humana
“comissionada”, “produzida” e mesmo “vendida”, talvez
também em base a determinados requisitos
selecionados.
O posto para o parto está aberto. Com o véu das
“nobres intenções” é direito conclamado “proibido
proibir”.
Sim porque agora tudo isso, em cada uma de suas
fases, é um direito: ao filho, à maternidade, à
paternidade, à progênie.
Direito e liberdade. Isso nada mais é do que uma
prática contratual normal. Com menos de 7 mil dólares
a vida de uma jovem indiana “contratada” nos casebres
muda radicalmente, o importante é que tenha saúde e
que, no caso de má formação da “mercadoria” não faça
história e aborte rapidamente sem dizer uma palavra. É
inútil dizê-lo: o filho deve ser saudável.
O silêncio ensurdecedor que paira sobre esta prática
odiosa, é insuportável! É como se estivéssemos
substancialmente aceitando tudo.
Certamente é melhor não falar. Parece ser quase
oportuno não fazê-lo.
Talvez com muita evidência viesse para fora o
nihilismo absoluto.
Como se justifica a distorção entre a dignidade
feminina tão ventilada e reivindicada e a condição
aviltante na qual vivem milhares de mulheres no mundo
para contentar o desejo de um filho por parte de
qualquer um que tenha dinheiro e se sinta justificado
tanto legal como culturalmente, a encomendá-lo?
Um filho não tem preço.
[email protected]
próprio ser do homem e da
mulher” (n. 126). (...) A Igreja
presta muita atenção ao
sofrimento dos casais com
infertilidade, cuida deles e,
precisamente
por
isso,
encoraja a busca médica. A
ciência, todavia, nem sempre é
capaz de responder aos
desejos de tantos casais.
Gostaria então de lembrar aos
esposos que vivem a condição
da infertilidade, que nem por
isso a sua vocação matrimonial
fica frustrada. Os cônjuges,
pela sua vocação batismal e
matrimonial,
são
sempre
chamados a colaborar com
Deus na criação de uma
humanidade nova. Realmente,
a vocação ao amor é vocação
ao dom de si e esta é uma
possibilidade que nenhuma
condição
orgânica
pode
impedir. Então, onde a ciência
não encontra uma resposta, a
resposta que ilumina vem de
Cristo. (Discurso de Bento XVI
aos
participantes
da
Assembleia
da
Pontifícia
Academia para a Vida, fevereiro
de 2012).
12
CULTURA ECOLÓGICA
A terra,
nossa casa comum
Júlia Arciniegas, Martha Seide
A humanidade é parte
de um vasto universo evolutivo.
A terra, nossa casa comum,
é viva com uma comunidade singular
de vida. A proteção da vitalidade,
da diversidade e da beleza
do planeta é um dever sagrado.
(Cf. Carta da Terra)
O grito da terra
É fato indiscutível que a crise ambiental já assumiu
uma dimensão global. A poluição nas suas diversas
formas, a mudança climática, a crise dos recursos
hídricos, a redução irreversível da biodiversidade, a
exaustão de tantos recursos alimentares, petrolíferos,
geológicos reduzem progressivamente a qualidade de
vida.
Diante desta degradação ambiental progressiva
cresce também a consciência e a necessidade de
construir uma cultura ecológica que reforce a aliança
entre o ser humano e o ambiente. Por isso é urgente
recuperar a capacidade de reconhecer na criação um
dom a ser valorizado e respeitado.
«E Deus viu... que tudo era bom»
No livro do Gênesis encontra-se sete vezes a
expressão: «E Deus viu... que tudo era bom»; e isto foi
dito para a luz, para a terra, para os astros do céu, para
os animais e enfim para o ser humano, enquanto
homem e mulher (Cf. cap. 1).
A obra criada é boa porque o Criador a produz por
amor, para uma boa finalidade. O bem verdadeiro é
aquele que flui de um ato livre de amor. Portanto, esta
bondade não diz respeito apenas à dimensão moral,
mas inclui a capacidade das criaturas de refletir a glória
e a perfeição de Deus.
Neste sentido o valor da criação representa um valor
em si, em referência ao Criador. “O mundo sub-
humano alcança o seu pleno significado a partir de sua
referência ao homem. Ao mesmo tempo, o homem
alcança o seu pleno significado em seu relacionamento
com Deus” (Haffner, Para uma teologia do ambiente,
123).
O Novo Testamento apresenta o Senhor
Ressuscitado como o mediador de toda a criação: por
meio d´Ele cada coisa foi criada e n´Ele tudo encontra
sentido e plenitude (Jo 1, 1-3; Col 1,15; Hb 1,3).
De fato, o Verbo que se fez carne em Jesus Cristo
operava, desde o princípio, como sabedoria criadora do
Pai.
A própria Páscoa do Senhor, revela uma dimensão
cósmica: a terra é envolvida na ressurreição, de modo
a ser orientada para a plenitude de vida.
A criação é o primeiro grande dom de Deus, a
primeira expressão radical do seu amor poderoso: um
cosmo ordenado e precioso, capaz de sustentar aquela
realidade misteriosa e frágil que é a vida (Cf CEI,
Jornada para a salvaguarda da criação 2006).
Uma herança a ser custodiada
Um dos desafios do século XXI é construir uma
cultura ecológica centralizada no relacionamento entre
homem e habitat, entre a ecologia humana e a ecologia
ambiental. «Hoje é forte a demanda de converter-nos
de consumidores-exploradores a guardiões da criação.
É de dentro da pessoa que deve partir a inversão da
marcha com grande senso de responsabilidade» (Circ.
934, p. 10).
Custodiar é tomar cuidado, é responsabilizar-se pelo
mundo em que vivemos, favorecer um relacionamento
mais equilibrado do homem com a natureza. Não se
trata apenas de reforçar a conservação dos
ecossistemas e do ambiente natural, mas de rever em
profundidade as modalidades com que as nossas
sociedades geram bem-estar e desenvolvimento
econômico e social.
Muitas já são, hoje, as ações que podem ser
empreendidas para pôr em prática comportamentos
13
concretos voltados à redução do consumo da natureza,
à destruição dos recursos naturais e ao desperdício
dos bens ambientais primários como a água, a terra, o
ar, a biodiversidade, a energia. Ao mesmo tempo, são
numerosas as iniciativas a serem promovidas para
ativar percursos de desenvolvimento capazes de
conferir dignidade e bem-estar a grande parte da
humanidade que hoje está excluída. Além disso,
custodiar a criação em âmbito econômico, político e
social é também orientar com apropriados instrumentos
normativos e sustentar com recursos adequados todas
aquelas medidas que permitem aliviar a pegada
ecológica, isto é o peso de uma comunidade sobre o
ambiente natural, e melhorar a condição e a qualidade
da vida das pessoas (Cf. CEI, 8ª Jornada para a custódia
da criação 2013).
Para custodiar a criação, enfim, ocorre educar e
educar-nos a uma cultura ecológica por um estilo de
vida mais sustentável.
O que podemos fazer?
A nossa vida cotidiana nos apresenta um conjunto
de oportunidades para traduzir em atitudes concretas a
convicção de que a terra é um dom sagrado a ser
administrado para o bem da humanidade. O Ofício
JPIC da Ordem dos Frades Menores nos oferece
sugestões interessantes e operativas. Para realizar
este processo, por ex., no nível da gestão dos
resíduos, são ainda válidos os três R ecológicos:
Reduzir, Reutilizar e Reciclar.
Reduzir: o uso de produtos “usa e descarta”, o
plástico, os tabuleiros feitos de poliéster, o excesso de
embalagens, o material poluente, etc.
Reutilizar: bolsas, caixas, sacos de papel e de plástico
e outros recipientes...; dar prioridade aos produtos com
etiqueta ecológica, escolher produtos fabricados com
material reciclado e produtos com recipientes
reutilizáveis.
Reciclar: cartões, papel, jornais, plástico, garrafas,
recipientes...; vidro e alumínio, lixos domésticos.
Finalmente: é indispensável colocar em prática, a
coleta diferenciada dos lixos.
CONTRA
LUZ
A
Educar-nos e educar
Que produtos “usa e descarta”
utilizamos com mais frequência?
Quais poderemos substituir ou evitar?
Que produtos poderemos reciclar e
reutilizar?
Efetuamos regularmente
diferenciada?
a
coleta
Tomamos decisões concretas a respeito?
FIO DE ARIADNE
In/Gratidão
Maria Rossi
14
Diante de situações de sofrimento geralmente
emergem sentimentos de compaixão junto com o
desejo de socorrer, ajudar e aliviar os obstáculos. Às
vezes é possível intervir apenas com uma sofrida
oração de intercessão. Outras vezes, tendo os meios e
permitindo-o as circunstâncias, a compaixão se
transforma em gestos de acolhida, de defesa, de apoio,
de ternura. São gestos concretos que provêm de um
profundo sentimento humanitário e de compaixão
diante de quem muitas vezes sofre injustamente. São
marcados pelo desejo de aliviar, de possibilitar um
crescimento sereno e, também, pelo entusiasmo de
poder contribuir com uma causa importante. Nascem
com a insígnia da gratuidade, mas não se pode ignorar
que «o desejo de fazer o bem, inconscientemente
contém um pedido de receber em troca ao menos a
gratidão» (PARSI Maria Rita, Ingrati. A síndrome
rancorosa do Beneficiado, Mondatori, Milano 2012).
Um peso insuportável
Uma pessoa que ajuda, acolhe, dá amor e ternura,
expõe-se, torna-se vulnerável e pode encontrar-se em
dificuldades consideráveis. Pode ficar bloqueada e
sucumbir sob o peso dos diversos aspectos da
ingratidão, sobretudo quando começa com o
entusiasmo e a ingenuidade do jovem neófito, com
pouca consciência das próprias dinâmicas
intrapsíquicas e escasso conhecimento das possíveis
respostas de quem é beneficiado.
A experiência da ingratidão manifesta-se cedo na
vida. Não é raro ouvir crianças e principalmente
adolescentes, que confidenciam as suas primeiras
experiências com o sofrimento de uma traição: «O ano
passado ela era minha amiga e eu trazia merenda
também para ela. Este ano vai com outra menina e
conta para todos os meus segredos». «Desde pequena
ela vinha à minha casa, brincávamos e fazíamos as
tarefas juntas. Agora não vem mais, fala mal de mim e
de minha família».
E estas experiências incidem, com muita frequência,
negativamente nos resultados escolares e nas relações
interpessoais. Mas também podem tornar-se ocasião
de crescimento pessoal.
Para os adultos e os idosos, mais ainda que para os
adolescentes e jovens, a ingratidão pode ser um fardo
insuportável.
As pessoas com as quais se abriu o coração e se
compartilhou a vida (o parceiro, um amigo/a, uma
filha/o, uma pessoa querida, uma Instituição de
pertença) e nas quais se investiu muito
emocionalmente, quando respondem com a
deturpação da realidade, com traições, calúnias,
humilhações, rejeições e abandonos (reais ou assim
percebidos), podem infligir danos comparáveis aos
provocados por um tsunami. Podem desorientar,
colocar em discussão a própria identidade, provocar o
o fechamento em si, fazer perder o sentido da vida e do
dom. Frases como estas, o comprovam: «É muito
triste, realmente eu não esperava»; «Não precisa
acreditar nem ajudar ninguém»; «Eis o que você
ganhou: depois de anos de sacrifícios, deixaram-na em
apuros. É melhor pensar em si mesma e deixar que os
outros se arranjem». E coisas piores.
Beneficiados e benfeitores
A ingratidão é definida como um “comportamento
que menospreza ou renega a substância humana e
moral do benefício recebido” (Devoto-Oli). É uma
atitude de vida muito generalizada que, segundo as
ocasiões e as idades, pode emergir não apenas no
beneficiado, mas também no benfeitor.
Segundo a Autora citada, faz parte do nosso estar
no mundo e nasce com o dom da vida: grande dom de
amor, mas não pedido e que comporta a expulsão do
útero materno que mantinha um perfeito bem-estar e
uma incondicional proteção. «Nascemos de um ato de
traição visceral, tanto maior quanto maior foi o amor
que o precedeu. E nascendo, passamos para uma vida
autônoma que não pedimos».
A marca do amor contém o da ambivalência e o
rancor do beneficiado está «em nossas cordas
originariamente: devemos aprender a reconhecê-lo
também em nós mesmos para controlá-lo e evitar que
se volva para dimensões patológicas». O acolhimento
incondicional e os cuidados maternos que seguem o
nascimento ajudam a curar a ferida inicial. O amor dos
pais torna-se «aquela ginástica emotiva que ajuda os
filhos a serem bons beneficiados, isto é, pessoas
capazes de pedir com serenidade, se tiverem
necessidade, e de dizer “obrigado” a quem lhes dá,
capazes de reconhecer o dom recebido porque o amor
fará com que isto lhes seja possível. O desconforto da
ambivalência transforma-se em rancor quando não
sabe transformar-se em gratidão, se lhe faltou o
modelo e o alimento».
Aqueles que, ou por falta de cuidado e de amor ou
por falta de autoconhecimento e reflexão, não
superaram a ambivalência do amor, poderiam: ou ser
incapazes de reconhecer os benefícios recebidos,
porque entendidos como ressarcimento do que lhes foi
irreparavelmente tirado, ou tornar-se benfeitores até as
últimas consequências para mostrar aos outros como
se faz para beneficiar.
Os beneficiados que entendem o dom como um
ressarcimento do que lhes foi tirado, com suas
pretensões e a deturpação da realidade, podem tornarse um pesadelo e também um perigo. Para não se
deixar arrastar, para não permitir que sentimentos de
ódio e de vingança se enraízem na alma e para não se
fechar e parar, é necessário distanciar-se
emocionalmente e, podendo, também fisicamente, e
confiar-se Àquele que conhece até mesmo o dom de
15
um copo de água. Maria Rita Parsi escreve: «O destino
dos ingratos, o que eles merecem, é o esquecimento».
Somos todos beneficiados e benfeitores. E se não é
fácil ser um bom beneficiado, é também difícil ser um
bom benfeitor. Alguns benfeitores (entre estes
podemos estar também nós) tendem a fazer sentir
muito o peso de sua ajuda e a doar para tornar-se
pessoa serviçal ou, de alguma forma, para agradar, e
em seguida receber favores. O interesse,
especialmente se for dissimulado, provoca, em quem
recebe, humilhação, desconforto, embaraço e também
rejeição do benefício. Alguns benfeitores podem
experimentar a inveja e sentir-se empobrecidos pelo
sucesso profissional ou pelo prestígio alcançado pelo
beneficiado; outros ainda, podem fechar-se em um
triste ressentimento e tornar-se incapazes de encontrar
serenidade e gosto no ato de doar. Um dom é, de certa
forma, um peso que nem todos conseguem suportar
serenamente e muito menos agradecer. Cacciaguida,
no décimo sétimo canto do Paraíso na Divina Comédia,
referindo-se à acolhida que experimentará no exílio, diz
a Dante: «Tu experimentarás sim como tem gosto de
sal/ o pão do outro, e como é difícil atalho/ o descer e o
subir pela escada do outro».
Aprender com os ingratos
A experiência da ingratidão pode trazer prejuízos
irreparáveis, mas poderia também tornar-se uma
ocasião importante de crescimento. A Autora citada
escreve: «Devo agradecer a muitas, muitas pessoas
ingratas. Algumas delas o foram de modo realmente
incompreensível, outras, de modo decididamente
indigno. Eu as encontrei e as encontro continuamente
na minha vida. Foram e são meus verdadeiros mestres.
Delas aprendi e aprendo cotidianamente tudo aquilo
que agora conheço... sobre os meus limites, os meus
vazios,
as
minhas
misérias,
indignidades,
incompetências, ineficiências».
A ingratidão pode ajudar a conhecer melhor a
própria humanidade e também a dos outros. O
conhecimento profundo de si mesmo permite manterse aberto, disponível, desinteressado e, ao mesmo
tempo, a acertar as contas com a parte obscura de si
mesmo; permite perceber que o desejo de fazer o bem
contém inconscientemente a petição de receber um
agradecimento em troca e isso pode ser sentido como
um peso excessivo.
Às vezes, constrangido pela necessidade, alguém
pode demonstrar-se grato, mas se este alguém sente
excessivamente o peso do benefício que considera
como ressarcimento da privação, pode ou ignorar o
benfeitor ou voltar-se contra ele e causar-lhe
sofrimento e dor.
Partindo da indignação, do sofrimento e da
desorientação que a falta de gratidão provoca, pode-se
aprender a ser prudentes, realistas e humildes, a não
prodigalizar-se em fazer o bem com bonomia
inconsciente, mas a preparar-se responsavelmente
para qualquer eventualidade. Diz Buñuel, «Não faça o
bem se você não está pronto para suportar o mal que
lhe advirá em troca». Também Dom Bosco aprendeu
com os ingratos. Depois que os jovens alojados foramse embora, levando os cobertores e os lençóis e até
mesmo o colchão de palha, aconselhado por Mamãe
Margarida, decidiu continuar a acolher, mas com maior
prudência.
A experiência da ingratidão traz consigo a tentação
de fechar-se e de desistir. Mas a consciência iluminada
pela fé, da própria humanidade e da humanidade do
outro ajuda a continuar com humildade a acreditar que
o bem que se faz tem um grande valor
independentemente do reconhecimento. «Os ingratos
para mim, escreve a Autora citada, são a lama sem
alma nem luz. Eles são a minha parte sem luz que
devo iluminar e que, graças a eles, poderei transformar
em ouro. O ser humano autêntico é aquele que olha
para as estrelas. Mesmo na lama e a partir da lama da
qual provêm». Um bom benfeitor é uma pessoa
autenticamente humana «que aspira a fazer o bem
porque percebe nele a Beleza. E vibra cada vez que o
bem acontece, experimentando uma realização interior
que, como energia emocionalmente forte e segura,
conecta-se com a sua mente, o seu corpo, o seu
imaginário».
A gratidão tem um grande valor educativo. Dom
Bosco quis mesmo que ela fosse evidenciada com uma
festa. Quem reconhece serenamente o benefício
recebido, reconhece-se a si mesmo e sua própria
condição. E isso lhe confere identidade, liberdade e
capacidade de ser um bom benfeitor, uma pessoa
generosa que não somente doa, mas que também
aceita receber e se mostra agradecida.
[email protected]
dma damihianimas
REVISTA DAS FILHAS DE MARIA AUXILIADORA
ANO LXI ● JANEIRO – FEVEREIRO DE 2014
16
hino à vida
SE O INVERNO DISSESSE:
TENHO NO CORAÇÃO A
PRIMAVERA,
QUEM LHE ACREDITARIA?
KAHLIL GIBRAN
hino à vida
A VIDA, COM QUALQUER
LINGUAGEM USADA, SEMPRE
EXPRIME A VIDA.
MARY HASKELL
hino à vida
DO AMOR
BROTA A VIDA E A VIDA
DESEJA E PEDE AMOR
SEM ASSINATURA?
hino à vida
dma em busca:
Leitura evangélica dos fatos
contemporâneos
17
EJS - CULTURAS
Viver com paixão
Mara Borsi
A espiritualidade salesiana encoraja
os jovens a enfrentarem os desafios
e as demandas da vida cotidiana,
com alegria e sacrifício.
É uma espiritualidade que os encontra
no seu nível e sabe como identificar
o movimento do Espírito
nos seus corações.
Hoje vivemos uma época marcada pelo mito
embriagador da eficiência e da qualidade: se você
estiver no pico do desempenho, vale; se não estiver,
não vale. A vida deve ser bela, perfeita, inteligente, rica
de sucesso, a vida vale se aparece.
A consequência desta visão da existência é a
reprodução de máscaras. Faz-se de tudo para que a
fragilidade, a fraqueza e o limite, não apareçam.
A espiritualidade salesiana educa para amar a vida
na sua inteireza, com suas luzes e sombras, como
também com a sua lentidão: se a negas perdes a cor e
o sabor da vida, daquela vida autêntica, entende-se.
emoção que estão experimentando, em uma palavra, a
estarem presentes naquilo que fazem, no fragmento de
vida que tem lugar. Os que vivem a espiritualidade
salesiana, na escola da Encarnação de um Deus que
habitou o fragmento e morou em nossa pobreza e
fraqueza, acreditam na presença de Deus que cerca
continuamente de amor e de proteção os seus filhos e
reconhecem que não há necessidade de abandonar a
vida ordinária para procurar o seu Rosto. Antes, é
exatamente ali que O encontramos.
Assumir com coerência o aspecto ordinário da
existência; aceitar os desafios, os questionamentos, as
tensões do crescimento; procurar a recomposição dos
fragmentos na unidade realizada pelo Espírito no
Batismo; trabalhar pela superação das ambiguidades
presentes na experiência cotidiana; fermentar com o
amor, cada escolha: é esta a passagem obrigatória
para descobrir e amar o cotidiano como uma realidade
nova na qual Deus age com sua misericórdia e
magnanimidade.
[email protected]
João Bosco e Maria Mazarello, por intermédio de
seus filhos e filhas e de todos aqueles que
compartilham a mesma espiritualidade, também hoje
ensinam numerosas moças e moços a viverem com
paixão, a lerem a página da vida que estão
vivenciando, o rosto de quem estão encontrando, a
dma damihianimas
REVISTA DAS FILHAS DE MARIA AUXILIADORA
ANO LX I ● JANEIRO – FEVEREIRO DE 2014
18
Os desafios e as demandas
da vida cotidiana
Nove horas da manhã, aula de religião com os
alunos do 5º ano do Ensino Fundamental. O professor
vê uma mão levantada e dá a palavra ao jovem
estudante que começa dizendo: «Como se faz para
salvar a alma?».
O professor sentiu um arrepio na espinha. A questão
chega e desmancha o plano da aula. O silêncio penetra
fundo, os olhos dos alunos correm do rosto do
companheiro ao do professor. Estupor à espera de
uma resposta. Na mente do professor muitos
pensamentos se sobrepõem, correm velocíssimos e
brota do coração uma invocação ao Espírito: fechar
rapidamente a questão e ir para a lição programada ou
percorrer o caminho do inesperado.
Começa a contar a história de Laura Vicuña,
jovenzinha que oferece os seus sofrimentos e também
sua vida pela conversão da mãe às exigências do
Evangelho. A certa altura o professor pede aos seus
alunos que abram os olhos e pensem em alguém que
conheçam e que poderia estar tomando uma decisão
errada para a própria vida.
O professor insiste: “como vocês se sentem?, por
que se sentem assim?”. Começa uma partilha que leva
os alunos a expressarem suas preocupações com os
familiares, os amigos, os conhecidos.
Um diálogo vivaz e cada vez mais profundo que
pouco a pouco leva a compreender que a preocupação
está enraizada no amor.
O professor faz entender que é este o amor que
Laura Vicuña tinha pela sua mãe. Para salvar uma
alma, portanto, pode-se ser generosos como ela, e por
meio dessa generosidade pode-se colocar uma
especial intenção pela conversão daqueles que
amamos.
Outra mão levantada e o estudante, para tornar mais
solene aquilo que está para dizer, fica em pé: “Isto
significa que devemos dar a nossa vida para salvar
uma alma?”.
O professor explica que nem todos são chamados a
dar a própria vida como Jesus, Laura e tantas outras
testemunhas do Evangelho, mas pode-se ser
generosos de muitos outros modos, e começa com
uma enxurrada de exemplos, de situações concretas
que a partir da vida cotidiana falam de disponibilidade,
sacrifício, atenção aos outros.
Ajudar os irmãos e as irmãs menores nas tarefas da
escola, oferecer a própria disponibilidade para limpar a
casa dos avós etc., os exemplos parecem não acabar
mais.
E assim acontece que, em um agradável dia de
outono os estudantes do 5º ano de uma pequena
escola elementar católica no Sul dos Estados Unidos,
acolhem o desafio de serem mais generosos, vão além
de uma aula simplesmente desejada e vivida. O
professor toca com a mão a ação do Espírito Santo e
renova a sua oferta de tempo e de talento pela
salvação e educação das novas gerações.
Jeanette Palasota fma, Estados Unidos
PASTORALMENTE
JMJ: etapa
de um longo caminho
Mara Borsi, Palma Lionetti
A mensagem chave da JMJ do Rio,
que foi nova na forma e
na substância, é fazer-se companheiros
de viagem dos jovens que,
como os discípulos de Emaús,
parecem desconfiados de uma Igreja
que é percebida distante.
Fazer-se companheiros
de caminhada falando de Deus
por meio dos gestos de partilha.
19
As palavras e os gestos do Papa Francisco no
decurso da JMJ do Rio de Janeiro revelaram ao mundo
um pouco do roteiro que pretende traçar para o futuro
da Igreja.
Os jovens não constituem uma realidade estanque,
eles são parte integrante da sociedade. O Papa
demonstrou isso personalizando o programa de uma
JMJ herdada de outros. As paragens no centro de
tratamento e reabilitação para os toxicosdependentes,
a visita a uma das 1.100 favelas da cidade, o encontro
com oito detentos, duas moças e seis rapazes,
quiseram dizer que também as novas gerações não
estão isentas de lidar com a dor, o limite, a pobreza, o
pecado, o delito, o sofrimento, o resgate pessoal e
social.
O próprio Papa fazendo o balanço deste grande
evento lembrou a todos que as jornadas mundiais da
juventude não são “fogos de artifício”, momentos de
entusiasmo com um fim em si mesmos, mas são
etapas de um longo caminho. A consciência da
importância de conjugar a pastoral dos eventos, dos
quais a JMJ é o vértice, com a pastoral da vida
cotidiana, isto é, com a proposta de itinerários
educativos que favorecem a interiorização da fé, fez-se
sempre mais clara nestes anos, nos dirigentes da
pastoral juvenil. Todavia, continua-se a experimentar
um hiato entre a experiência forte das grandes
convocações e o cotidiano, pensando na experiência
salesiana, por exemplo, as do Movimento Juvenil
Salesiano, já realizadas em todos os contextos.
Persiste uma certa dificuldade para acompanhar os
jovens na experiência universitária, no mundo do
trabalho, para os poucos que conseguem entrar,
interceptar a realidade juvenil, principalmente, a que
está na periferia dos grandes eventos.
Entrar na noite
O Papa Francisco falando dos jovens aos bispos
brasileiros disse: «Precisamos de uma Igreja que não
tenha medo de entrar na sua noite... Capaz de
encontrá-los no seu caminho... Capaz de inserir-se na
sua conversa». Não se pode ignorar a noite das
mulheres e dos homens de hoje, rumo aos quais a
Igreja é chamada a encaminhar-se sem medo e
preconceitos. Um mandato a ser respeitado e
concretizado pelo fato de que Francisco escolheu a
JMJ do Rio de Janeiro para dizer a todos os crentes
em Jesus que são chamados a serem servidores da
comunhão e da cultura do encontro, sem presunções,
guiados pela humilde e feliz certeza de quem foi
encontrado, alcançado e transformado pela verdade
que é Jesus Cristo e, por isso, não pode deixar de
anunciá-lo.
O Papa ofereceu aos jovens um exemplo pessoal,
uma indicação concreta de como viver como cristãos,
hoje, colocando em primeiro lugar os sofredores, os
excluídos, os esquecidos, os descartados pela
sociedade. A mensagem chegou clara e forte.
O que ficou depois
Martina 18 anos: «Eu esperava muito, mas encontrei
muito mais. Levei para casa uma carga formidável.
Quero, como catequista, comunicar às minhas crianças
aquilo que vivi».
Maria Elena, 20 anos: «Ficou em mim a vontade de
sorrir e de comunicar o amor. Ficaram, porém,
principalmente, os claros objetivos de nunca deixar de
procurar, na fé, e de servir o próximo no cotidiano».
Clara, 19 anos: «Compreendi que o Papa Francisco
acredita em nós, uma geração sufocada que não tem
como, nem espaço para se exprimir. Ele despertou em
nós uma confiança incondicional. A confiança é o
tesouro que ficou em mim».
Gabriel, 22 anos: «A alegria e a consciência de que
‘agora toca a nós’».
Fausto, 25 anos: «Descei das varandas, disse-nos o
Papa. Isso me dá a coragem de não ser o espectador».
Luca, 28 anos, educador: «empenho, trabalho
pastoral, cotidianidade. Consciência de que aquilo que
se faz não é por nada inútil ou muito pequeno, mas
torna melhor um pedaço de mundo. Partilha da vida
nas nossas casas, nos ambientes educativos, nos
momentos ordinários que, às vezes acontecem,
tornam-se excepcionais, porque faze3m brilhar a
simplicidade e o amor. Oásis de sentido nos desertos
da banalidade, sorrisos, abraços, gestos que
demonstram o sinal do amor de Jesus».
Na vida de todos os dias
Para conjugar os grandes eventos com a vida
cotidiana, para projetar de modo sensato a pastoral
juvenil é necessário insistir na centralidade da figura de
Jesus. É a humanidade de Jesus que “ensina a viver” e
educa a nossa humanidade. Ler com os jovens, como
comunidade crente, os Evangelhos, procurando
descobrir qual a humanidade que move Jesus nos seus
encontros com os outros, como fala Jesus, que vida
interior Ele revela. Testemunhar a fé e, portanto,
mostrar a fé como o caminho para dar sentido à vida,
capaz de dar sabor, direção e significado à vida dos
jovens.
Em lugares abandonados, nós construiremos com
tijolos novos. Há mãos e máquinas e barro para novos
tijolos e cal para novas argamassas. Onde os tijolos
caíram construiremos com pedras novas; onde as
vigas estão podres construiremos com madeira nova;
onde palavras não são pronunciadas construiremos
com nova linguagem. Existe um trabalho comum,
uma Igreja para todos e um empenho para cada um,
cada um no seu trabalho.
Thomas Stearns Eliot – Cori da “La rocca”
20
UM OLHAR SOBRE O MUNDO
Unidas
por uma sociedade melhor
Anna Rita Cristaino
“Acredito firmemente que a salvação da Índia
depende da abnegação e da emancipação das
suas mulheres” (M. Gandhi).
Este ano a rubrica “Um olhar sobre o mundo” será
um diário de viagem, com o relato de encontros e a
escuta de histórias que se abrem às diversas culturas
do mundo. A primeira etapa é Bangalore, na Índia.
Visitamos esta cidade e os Estados de Karnataka,
Andhra e Kerala com a intenção de olhar para esta
terra com os olhos das mulheres... Isso nos dá a
possibilidade de entrar nesta grande Nação com uma
perspectiva rica de sugestões e principalmente nos dá
a possibilidade de captar o quanto a contribuição das
mulheres é importante para o crescimento do País.
Bangalore é a capital do estado de Karnataka na
ponta sudoeste da índia. É a terceira cidade mais
populosa da Índia com mais de seis milhões de
habitantes e uma das cidades da Ásia que está se
tornando velozmente cosmopolita pela presença de
numerosas sociedades para ações multinacionais e é
sede de mais de 100 universidades de pesquisa e
técnicas. A indústria da tecnologia das informações,
porém, prospera à custa da população rural. Somente
um percentual de 28% de Bangalore é urbano e a
maior parte da sua população baseia-se em empresas
agrícolas. A diferença econômico-cultural torna-se
sempre maior e o foco nas tecnologias de alto nível
com relação aos princípios da economia agrária deu
dois rostos para a mesma cidade. O primeiro é
vibrante, inovador e extremamente moderno, mostra o
sucesso de uma nação em desenvolvimento. O
segundo mostra a gente que vive marginalizada, pelas
ruas, com serviços públicos inadequados e com
enormes diferenças de renda, com saúde precária e
poucas oportunidades. Particularmente as mulheres e
as crianças estão sofrendo com esta situação. Para as
mulheres trata-se de lutar contra a pobreza, mas
também contra as discriminações dos que gostariam
de relegá-las apenas aos trabalhos domésticos sem
lhes dar voz. Alfabetizar as mulheres, portanto é
absolutamente necessário para conferir-lhes a
consciência das próprias potencialidades.
Encontramo-nos com Ir. Anna Thekkekandathil,
fma da Inspetoria INK, que nos fez um relato: «Vendo
as condições de extrema pobreza das mulheres, dos
jovens e das crianças nos vários estados da índia,
especialmente em Karnataka, Andhra Pradesh e
Keerala, nas favelas e nas aldeias, criamos uma ONG
chamada Centro para o Desenvolvimento e o
Empowerment das Mulheres, (CDEW), a fim de
promover a condição das mulheres por meio de
diversas intervenções e atividades». Como em toda a
Índia, aqui as Filhas de Maria Auxiliadora fizeram a
escolha de diminuir a pobreza e de promover a
alfabetização por meio de uma campanha na qual as
mulheres adquirem as habilidades básicas para
tornarem suas vidas mais sustentáveis. Para as fma as
mulheres são o trunfo para a diminuição da pobreza e
melhoria dos padrões de vida da família em termos de
alimentação, cuidados sanitários e instrução das
crianças. Trabalha-se em favor de sua dignidade e de
seus direitos por meio da promoção da
autoconsciência, a participação social, a instrução, a
formação cultural, a autonomia econômica e a
assistência sanitária. O CDEW é o órgão oficial de
ação social das fma da inspetoria. Nasceu em 2003
como uma organização de voluntariado e planifica o
seu trabalho seguindo 5 estratégias do empowerment:
organização, instrução, autossuficiência econômica,
cuidado da pessoa e capacitação para tomar decisões.
Em nossa viagem encontramos mulheres com rostos
marcados pelo sofrimento e pela dor, mas também pela
determinação de fazer alguma coisa para tornar o seu
futuro e o de seus filhos, melhor. Mulheres cujo olhar é
intenso, que conhecem a preciosidade de cada átimo
da vida, que passaram por momentos difíceis, mas que
souberam levantar-se encontrando em si mesmas a
força para melhorar as próprias condições.
Entre estas está Mahalakshmi: «Sou proveniente da
aldeia Palipalem, em Kottapatnam Mandal. Os meus
pais dispuseram para mim um matrimônio combinado
aqui em Mahendra Nagar, Ongole. Meu marido possuía
um forno para a produção de tijolos. Um dia, durante
uma briga com um vizinho, foi apunhalado e morreu no
local. Tenho quatro filhos: 3 moças e um rapaz.
21
Naquele tempo o caçula tinha apenas 6 meses.
Quando meu marido ainda estava vivo, eu quase não
saía de casa, nem mesmo para ir ao mercado. Alguns
dos meus vizinhos haviam me aconselhado a vender o
forno e a comprar búfalas para ter com que viver. Com
crianças tão pequenas, precisei lutar para sustentar
minha família. Não sabia como. Então, uma das
organizadoras do Centro de Desenvolvimento das
Mulheres “Auxilium Akhila Vikas”, a Senhora Rani, veio
visitar a minha família.
Ela me pediu para fazer parte do seu Grupo de AutoAjuda para poder reservar algum dinheiro e depois
receber um empréstimo do grupo e do banco. Tornada
membro do grupo aprendi muitas coisas: ganhei
confiança em mim mesma e comecei a apreciar o valor
do trabalho árduo. Depois de 6 meses tomei o meu
primeiro empréstimo do grupo e comprei uma outra
búfala. Mandei os meus filhos para a escola, sabendo
que, quanto mais iam adiante no estudo mais se
tornava dispendioso.
Com a ajuda de outro empréstimo do banco pude
comprar outra búfala. Atualmente tenho três búfalas
com as quais posso obter uma renda razoável para
cuidar da minha família. Antes nós morávamos em uma
cabana, mas pouco a pouco consegui construir uma
casa de tijolo. Dois dos meus filhos continuam os seus
estudos, duas filhas se casaram. Fazer parte do grupo
ajudou-me a ter confiança em mim mesma, a crescer
na dignidade e a trabalhar sem precisar depender dos
outros para progredir na vida. No início eu era muito
tímida, mas depois, tomando consciência das minhas
potencialidades, comecei a falar em público, a
expressar o meu pensamento e a contar a minha
história».
Saguna também é uma mulher determinada, que
precisou lutar para se fazer aceita e para demonstrar
que, não obstante a impossibilidade de ter filhos, sua
vida não era inútil. «Agora sou líder do Grupo de AutoAjuda Laxmi. Casei-me com 25 anos. Não tive filhos e
por isso todos os meus vizinhos e minha sogra me
olhavam com desprezo e me maldiziam como mulher
estéril. Meu marido trabalhava em uma loja como
contador e eu era dona de casa. Sentia-me fortemente
desmoralizada e não recebia ajuda de ninguém. Um
dia, uma das Irmãs do Centro de Desenvolvimento das
Mulheres “Auxilium Akhila Vikas”, juntamente com uma
organizadora da comunidade, vieram visitar a minha
família e me aconselharam a fazer parte do Grupo de
Auto-Ajuda Laxmi. Pouco a pouco pude superar a
minha dor e me encorajaram a abrir um pequeno
negócio. Então, fiz um empréstimo e comprei arroz por
atacado para vendê-lo a varejo. Isso me ajudou a
gradualmente esquecer o meu sofrimento.
Depois de haver reembolsado o primeiro empréstimo
os membros do grupo aconselharam-me a fazer outro,
e assim pude ampliar o meu comércio de arroz. Agora,
com um trabalho intenso, tomei consciência da minha
potencialidade interior e construí boas relações com os
meus vizinhos. Encontrei muitos clientes para os quais
pude vender o meu arroz. Embora não seja tão jovem
decidi adotar uma menina, mesmo enfrentando a crítica
do meu marido e de muitos dos meus vizinhos. Eu os
desafiei dizendo que diariamente, com a venda dos
poucos pacotes de arroz poderia criar a menina. Pouco
a pouco meu marido cedeu.
O nome de minha filha é Sri Harsavardhini. Agora,
meu marido sente-se feliz por ter esta filha e lhe quer
muito bem».
Ir. Padma Latha também trabalha nos centros de
desenvolvimento e partilha conosco sua experiência:
«As Mulheres adquiriram poder e consciência. Saíram
de sua escravidão. Agora são independentes e podem
pensar por si mesmas. Adquiriram muitas habilidades e
melhoraram a própria vida.
Podem motivar os seus filhos aos estudos,
percebem suas capacidades e cuidam dos seus
direitos. Por meio dos grupos de SHG, as mulheres
cresceram em todos os níveis e adquiriram segurança,
autoestima e confiança. Têm mais conhecimentos e
esperanças. Hoje as mulheres são mais livres, e posso
dizer que o caminho feito com elas foi um caminho de
libertação».
No decurso dos anos o CDEW realizou com
sucesso diversos projetos e programas: a formação e
o crescimento de cerca de 700 Centros de AutoAjuda que formam uma federação; programas de
geração de Renda, construção de casas, escolas,
programas de promoção da alfabetização para
crianças pobres em três Estados alcançando cerca
de 3000 crianças, programas de prevenção e
informação sobre o HIV/AIDS. A construção de mais
de 500 poços para a coleta da água da chuva para os
mais pobres em Kanakakkunnu e Kattappana,
programas para crianças excluídas da escola. Dez
mil pessoas curadas do alcoolismo com os grupos
dos Alcoólatras Anônimos. O trabalho do CDEW de
Bangalore é relatado no vídeo da Missão Dom Bosco
“Unidos por uma sociedade melhor”.
22
dma comunicar:
informações, notícias e novidades
do mundo da mídia
FAZ-SE PARA DIZER
Conectar
Maria Antonia Chinello
Na comunicação,
assim como na nova evangelização,
é determinante deixar o canal
aberto para que se estabeleça a escuta
recíproca, pressuposto do diálogo.
O dicionário da língua italiana explica que a palavra
“conectar” significa: «Unir duas ou mais coisas; ligar as
ideias, colocá-las em uma sucessão lógica; colocar em
contato uma coisa com a outra; pôr em relação uma
coisa com a outra; conversar; unir-se um ao outro;
estabelecer ligação com alguém». As definições
procedem do ato de colocar em sucessão ou em
relação objetos, ideias para a união entre as pessoas.
No horizonte contemporâneo, empresas privadas,
organizações, entidades públicas privilegiam sempre
mais a abordagem sistêmica no estudo, na
programação e no desenvolvimento de soluções para o
marketing, a gestão, a formação. Em um contexto
marcado pela incerteza e pela complexidade, para
adquirir visão do todo é necessário unir-se, e exprimir
uma visão dinâmica das relações, focalizar a
interdisciplinaridade, o trabalho de equipe a partilha
dos conhecimentos, para superar os limites de um
saber setorial, de uma visão parcial e estática da
realidade, dos problemas, das ideias e do confronto.
Conectar diz ação comunicativa no tempo da Rede:
ligações com ou sem fios que unem dois ou mais
extremos tanto em nível técnico, como no nível pessoal
das ideias, convicções, emoções, ações.
As relações estão no centro do sistema e da troca de
conteúdos, sempre mais ligados a quem os produz ou
os relata. Ocorre entender que conceitos como:
pessoa, autor, relação, coerência, responsabilidade,
amizade, intimidade, outro, próximo... evoluem
precisamente com o advento da rede. A conexão
significa disponibilidade para entrar em contato, para
manter o canal aberto, para estar presente com anéis,
SMA, post e tweet: um-a-um-sempre-disponível”,
“todos-sempre-alcançáveis”.
Se a conexão não engata na realidade, o reverso da
medalha é o fechamento, porquanto: «Se a Rede,
chamada a conectar, na realidade acaba por isolar,
então atraiçoa a si mesma, o seu significado. O nó
problemático consiste no fato de que conexão e
compartilhamento de rede não se identificam com
“encontro”, que é uma experiência muito empenhativa
em nível de relação».
23
A conexão é chamada a ser espaço de comunhão,
abrindo caminho para novos encontros, assegurando
sempre a qualidade do contato humano.
Conexão lugar de comunhão
A existência do homem é “dita” não para o
isolamento e a autossuficiência, mas unicamente para
a vida de relação com o seu Criador, o que constitui o
seu ser mais profundo. Deus mesmo não é solidão,
mas relação porque é “amor” (1 Jo 4, 8).
Relação, amor, significam vida: Deus criou o homem
para torná-lo participante de sua própria vida.
A conexão exprime a Rede como o contexto no qual
a fé é chamada a expressar-se, não por uma simples
vontade de “estar lá”, mas por uma conaturalidade do
cristianismo com a vida dos homens, assim como
Jesus, o Verbo que «cumpriu a sua missão descendo,
baixando em cada uma das nossas obscuridades, com
humildade e com um profundo amor pelos homens, por
todos nós pecadores. Então, a Igreja também não
poderá seguir outro caminho senão o da kènosis para
revelar ao mundo o Servo do Senhor» (Comunicar o
Evangelho em um em mudança, 63).
A Igreja é casa e escola de comunhão, morada
hospitaleira que cria espaço, levando “os pesos uns
dos outros”, abrindo-se ao diálogo e não fechando o
contato, porque «Aquilo que nós ouvimos... nós o
anunciamos também a vós, para que também vós
estejais em união conosco... Estas coisas nós vos
escrevemos, para que a nossa alegria [a nossa e a de
todos vós] seja perfeita» (1 Jo 1, 1-4) É graças à
escuta, à experiência e à contemplação do Verbo, que
nossa vida e nós mesmos somos transformados para
nos tornar capazes de comunicar tudo quanto
recebemos.
WhatApp Messenger
É uma aplicação de mensagens
instantâneas móveis multi-plataforma que
permite trocar mensagens com os próprios
contatos sem precisar pagar os SMS.
WhatApp Messenger está disponível por
iPhone, BlackBerry, Android, Windows Phone
e Nokia. Podem-se trocar mensagens,
compartilhar fotos, vídeos, registros de
áudios e levantamentos da própria posição
geográfica com qualquer pessoa que tenha
um smartphone conectado à Rede.
Porque se serve da mesma taxa Internet
usada para os e-mails e a navegação web,
não há custos adicionais para mandar
mensagens e permanecer em contato com os
próprios amigos. A aplicação é atualizada
periodicamente nas várias plataformas,
melhorando as ofertas e as oportunidades.
Também esta aplicação, que se propaga
entre os jovens (e não jovens), exige
responsabilidade no uso e na produção dos
conteúdos. Não faltam casos noticiosos onde
moças e rapazes difundem, às vezes
inconscientemente, autorretratos, vídeos,
mensagens comprometedoras para si e para
os outros. Quanto se deseja que seja
reservado, termina, em vez, por viajar na
Rede, sem parar. Não é difícil imaginar as
consequências.
[email protected]
MULHERES NO CONTEXTO
O reflexo da ternura na economia
Bernadette Sangma
Escutar os pensamentos e as propostas alternativas
de algumas mulheres no setor da economia mundial
em um momento de forte crise nos faz antegozar a
capacidade de resgate da lógica feminina. Elas
oferecem orientações inéditas para transitar de uma
economia organizada em torno dos interesses
individualistas, competitivos e centrados no lucro, para
aquela economia de cuidados expressa em termos de
24
ternura e de atenção, sob medida, para as pessoas e
não para o mercado do lucro. É a economia do
cuidado, de Rianne Eisler.
A partir da janela das mulheres
Observando a atual crise econômica financeira do
mundo de hoje, muitas mulheres estudiosas e ativistas
fazem a sua análise da situação e concordam que na
raiz de tudo está um sistema individualista centrado em
prioridades enganosas, em poderes opressivos e
anômalos.
Tal sistema ignorou as necessidades humanas
fundamentais causando a marginalização de uma vasta
categoria de pessoas e gerando o aumento da
pobreza, a degradação ambiental, a violação dos
direitos humanos e a desigualdade.
Outras consequências são as seguintes: a escalada
da guerra, do terrorismo e do conflito violento que
vemos pelo mundo todo. Já estamos habituados à
contagem das vítimas. Infelizmente, por detrás
daqueles números, há pessoas inocentes com nomes e
sobrenomes cuja vida foi violada de modo irreversível.
Cito dois exemplos.
Na Síria, uma mulher fugiu com seu filho rumo à
fronteira do Líbano. Está no nono mês de gravidez.
Certo dia seu marido morrera atingido por uma bala,
enquanto voltava para casa. Agora a mulher está
sozinha com o seu segundo filho nascido faz pouco
tempo, felizmente são e salvo porque foi assistido por
um grupo humanitário.
Durante o ataque terrorista do Westgate em Nairobi,
no Quênia, dois jovens noivos estavam fazendo suas
últimas compras para o casamento previsto
exatamente para duas semanas depois. Enquanto
estavam comprando o que precisavam, foram
surpreendidos pelos terroristas. Os dois foram mortos.
O jovem é filho único de uma mãe, que o havia criado
sozinha.
Dois episódios que falam de dor cruciante,
consequência de sistemas que esqueceram o humano
e o substituíram pelo ódio, a injustiça, a vingança e a
violência.
As Crianças: ponto de partida da economia
A economia do cuidado, de Riane Eisler é tão
original quanto humana, tocante e projetada ao futuro.
A autora propõe pensar em uma nova economia
focalizando a atenção não sobre os estoques, o
vínculo, os derivados ou sobre outros instrumentos
financeiros, mas sobre as crianças.
As políticas e as práticas econômicas devem ter
como ponto de partida o bem-estar das crianças e a
sua validade deveria ser medida pelos seguintes
indicadores: a saúde das crianças, o seu acesso à
educação, a qualidade de vida. Continuando o discurso
Riane sustenta que é preciso perguntar-se qual é o tipo
de sistema econômico que ajuda ou bloqueia as
crianças na realização de sua grande potencialidade,
no processo de conscientização, na empatia, no
cuidado e na criatividade, ou seja, na capacidade de se
tornarem plenamente humanas.
Rumo a uma economia feita com carinho
Riane Eisler ensaia alguns passos necessários para
caminhar rumo a uma economia sustentável em
harmonia com a natureza. O modelo que propõe
fundamenta-se no princípio da parceria evidenciando
que ela orienta para a construção de relações de
respeito recíproco e de accountability.
O primeiro passo que Riane sugere é aproveitar o
atual momento de perda e regressão como
oportunidade para reformular a economia.
Riane sugere pensar fora das linhas, fora das
categorias sociais e econômicas como o capitalismo, o
socialismo e os outros “ismos”. De fato diz, citando
Einstein, que não podemos resolver os problemas com
a mesma lógica do sistema que os criou.
O passo importante será colocar os fundamentos
para uma economia do cuidado. Esta se apoia na
convicção de que a verdadeira riqueza das Nações não
se baseia nas finanças. A verdadeira riqueza das
Nações é constituída pelo povo e pela natureza!
Passa depois a sugerir o que poderia ser designado
como o coração do modelo que propõe, isto é, o
desenvolvimento de novas medidas econômicas que
deem visibilidade e valor real ao trabalho de cuidar das
pessoas e da natureza. Citando os Estados Unidos,
Riane diz que lá paga-se por um hidráulico 50 a 100
dólares por hora, enquanto as babás recebem em
média 10 dólares por hora. Diz Riane com muita
25
ênfase que tal diferença não é lógica, mas patológica
porque quando as necessidades humanas
fundamentais são negligenciadas, cresce o desespero
e a destruição ecológica com as derivadas tensões
sociais e os conflitos.
Um dos passos importantes para esta economia do
cuidado é o aumento da capacidade de rendimento das
mulheres. Citando o estudo intitulado “Mulheres,
homens e a qualidade global de vida”, onde são
levadas em consideração as medidas estatísticas de
89 Nações para ressaltar o status das mulheres com
relação ao índice da qualidade de vida, Riane afirma
que o estudo evidenciou que o status da mulher
constitui o seu melhor índice.
Riane Eisler é uma mulher de grande atualidade. Ler
as suas publicações é respirar o frescor de um modo
de pensar fora das linhas.
Os seus livros “Crianças de amanhã. O plano para
uma parceria na educação no vigésimo primeiro
século” e “A verdadeira riqueza das nações” poderiam
oferecer muitas sugestões às comunidades educativas
na realização de uma educação e de uma economia de
transformação radical.
[email protected]
VÍDEO
A PRIMEIRA NEVE
de Andrea Segre – Itália - 2013
Mariolina Parentaler
De regresso do grande sucesso da crítica e pelos
prêmios obtidos com o magnífico ‘Eu sou Li’, o diretor
Andrea Segre (sólido passado como documentarista)
tenta novamente com o cinema de ficção: “A primeira
neve”, filme esplêndido.
Apresentado no festival de Veneza de 2013 na seção
Horizontes, estreia nas salas italianas, ligado ao projeto
‘A primeira escola’.
Ainda uma vez Segre relata um presente onde o enxerto
entre a cultura italiana e a dos imigrantes no nosso país
é passagem necessária para a redescoberta da própria
identidade e a passagem para um futuro novo.
Tendo abandonado o Vêneto, sobe para as montanhas
de um Trentino extraordinariamente fotografado por
Luca Bigazzi e, no esplêndido, não contaminado vale
dos Mocheni, descreve o encontro entre Dani imigrante
do Togo e uma família do local na qual Michele, de 11
anos, é órfão de pai.
É o bosque o lugar central do seu encontro, onde os
dois se procuram, se rejeitam, se conhecem.
Um espaço no qual a natureza se torna ‘teatro’ e Segre
continua eficazmente a sua busca pessoal do
relacionamento entre seres humanos e lugares que
hospedam os eventos. Um espaço, entre luzes e
sombras, onde é possível encontrar uma solidão que se
transforma em encontro, caminho comum.
Um perfil de vida da nossa sociedade
Pais, mães, filhos: é disso que fala “A primeira neve”.
Fala de uma pesada herança no próprio passado, de
uma ‘passagem alpina’ – áspera e simbólica ao mesmo
tempo – que conduz ao futuro. Fala de lutos e vazios
consequentes a serem preenchidos, de diferenças a
serem niveladas, de casas a serem encontradas e
construídas.
O filme fala do hoje, e não há nenhum escândalo no
fato de que o hoje seja constituído pela sobreposição
inevitável e necessária dos aspectos mais tradicionais
da cultura italiana, como os ligados a uma família que
vive em um perdido Vale do Trentino, e os mais
instáveis de um migrante dos nossos dias: um imigrado
que mal sobreviveu ao trauma das barcaças que –
apesar de tudo – ainda não sabe qual será a sua nova
‘casa’, o habitat existencial no qual realizar-se.
«Documentário e ficção são somente dois modos de
relatar alguma coisa no cinema – explica o diretor. Às
vezes a linha fronteiriça é muito sutil.
Neste filme, por exemplo, eu fui ao lugar no qual a
história se passa, para conhecer as pessoas e
26
entender como vivem o seu cotidiano. E muitas vezes
eu percebi que a ficção começava no momento em que
a narrativa deste filme terminava. O filme é construído
exatamente pelo diálogo entre a direção do
documentário e a ficção, entre a relação direta com a
realidade e a escolha de momentos mais íntimos
construídos com atenção aos detalhes da encenação.
Assim acontece também no trabalho com os atores:
pessoas do lugar e profissionais interagem, com o
privilégio de trabalharem neste caso com a energia e a
imprevisibilidade de crianças e jovens».
É assim que Segre reúne os dois protagonistas: no
Vale dos Mocheni que a câmera capta, exaltando a
genuína beleza natural do lugar. Dani deixou o Togo,
mas na aterrissagem perdeu a mulher parturiente.
A grande tristeza impede-lhe ainda de se fazer pai
daquela criança recém-nascida e sonha com outra
meta: Paris. Michele, em vez disso, é um adolescente
do lugar ferido afetivamente pela morte prematura do
pai. Vive com o avô carpinteiro-apicultor e a mãe viúva.
Eles dois são as peças principais de um quebra-cabeça
de personagens que, previsivelmente, sem choques,
com o passo regular e cadenciado do montanhês,
encontrará composição e harmonia, revelando a figura
de uma casa que é a casa do coração e dos afetos.
Duas peças que se encaixam, mas Segre nunca
força este encaixe previsível. Deixa que todas as peças
que espalha sobre a mesa na abertura do filme se
estudem mutuamente enquanto os espectadores as
observam, filtrados por uma regência participativa,
mas não invasiva. Deixa que se aproximem
progressivamente em nome das polaridades opostas e
complementares que se atraem e que caracterizam
todo o filme. Se Dani aprende novamente a ser pai, a
ser homem, graças a um garoto que por sua vez reaprende a ser filho, é porque aprenderam a se
escutarem um ao outro. Cresce-se apenas escutandose, encontrando-se. Olhando o diferente em nome de
um senso comunitário que vai se alargando e se
redefinindo para que todos possam sentir-se em casa.
Dani chegou a uma Itália da qual não conhece as
tradições e não aceita as ofensas de um racismo servil.
Traz dentro de si a marginalização assim como o
pequeno Michele, pela dor que vivem e que parece
impossível elaborar. Ambos têm necessidade de que
aquela primeira neve lhes ofereça uma nova visão do
mundo, exterior e interior.
[email protected]
PARA FAZER PENSAR
SOBRE O TEMA DO FILME
Relatar o relacionamento com o pai, com os
genitores, com os filhos e a dor de perdê-los.
Tanto para quem nasceu na Itália – Vale dos
Mocheni, uma entre as mais isoladas do
Trentino – como para quem pode chegar quem
sabe de onde.
Trata-se de uma situação dramática, duas crises
muito profundas, que encontram, porém uma
reviravolta exatamente no momento em que os dois
protagonistas se encontram nos seus modos de ser
diferentes, mas complementares.
«É um caso que quase chegou ao limite – evidencia
Segre, em Notas de direção – mas por outro lado é
aquilo que fazem a literatura, a narrativa e também o
cinema: procurar em histórias particulares, às vezes,
minoritárias-mínimas, tendências e dinâmicas
profundas, universais, nas relações humanas.
E foi o que também eu tentei fazer no pequeno vale
do Trentino.
“A primeira neve” relata a superação de uma dor
insuperável por meio da partilha, do diálogo, do afeto,
da escuta. Talvez a palavra “partilha” tenha sido a
chave. Caracteriza também o nosso modo de fazer
cinema com um grupo de trabalho em que todos
conhecem a fundo a história, falam dela e discutem
sobre ela.
Clareza, escuta e precisamente a partilha tornaramse as características principais da abordagem
produtiva, do caminho que percorremos e que
queremos indicar».
SOBRE O SONHO DO FILME
Trazer para a tela temas reais e sociais. Inovar,
promover o sistema do cinema e mais em geral
o sistema da produção cultural, que hoje estão
‘em luta’.
«O cinema é um elemento fundamental para a
educação de um país. Mas o cinema é uma coisa e o
espetáculo comercial é outra – assinala Segre ao
apresentar “A primeira neve”. Os filmes do mainstream
comercial, aqueles que não vão aos festivais e não
buscam qualquer tipo de relação com a qualidade,
focalizam exclusivamente o espetáculo. Repetem
também, na sua produção e no seu roteiro, figuras
estereotipadas, gostos homologados, modos abusivos
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de construir uma narrativa, de modo que o espectador
os possa consumir rapidamente.
Cito sempre o exemplo de um garoto de 14 anos que
em uma projeção de “Eu estou, ali” em Udine,
levantou-se no final da projeção do filme e diante de
300 companheiros de escola quis agradecer-me. Dizia
não saber da existência deste tipo de cinema: desde
quando tinha 9 anos era trazido à multissala do centro
comercial para ver aquilo que era proposto devendo
acostumar-se com aquele gosto. Àquele garoto e aos
companheiros que o aplaudiram devemos garantir a
possibilidade de conhecer outro tipo de produção
narrativa, cultural, ética e estética neste país. “A
primeira neve” nasce ‘com e para’ os talentosos
meninos protagonistas no Vale dos Mocheni e, como
para eles, assim também para todos no mundo».
O LIVRO
Alejandro Palomas
A alma do mundo
Adriana Nepi
Romance singularíssimo, fruto de uma fantasia que
poderíamos considerar ousada, onde as situações,
mesmo na sua objetiva inverossimilhança, apresentam
uma plausível lógica interna.
Dois cônjuges anciãos, Otto e Clea, ricos e solitários
(um filho morreu há tempos, uma filha está longe,
separada da vida dos pais idosos) se percebem
desanimados pelo vazio no qual transcorrem os seus
dias e juntos decidem dar uma outra direção à
monótona uniformidade de uma vida que se tornou
sem sentido. Sabem que existe uma vila elegante,
situada em posição agradável, chamada Buenavista,
que não quer ser uma casa de repouso para idosos: a
patroa a organizou de modo a torná-la uma agradável
Casa família. A cada hóspede é dado uma espécie de
zelador que se oferece como uma verdadeira dama de
companhia, e que para este não fácil dever, deve
possuir qualidade e competência.
Os dois velhos cônjuges não se propõem uma
verdadeira separação, mas experimentar, partindo por
assim dizer do zero, tecer uma nova amizade, dando
um sentido àquele seu viver juntos. São muito
diferentes: Otto está bem envelhecido, com oitenta e
seis anos é ainda vivaz e desembaraçado e goza a
vida momento por momento com sorridente otimismo.
Clea, caráter forte e exuberante, sofre em segredo,
regendo com ostentada arrogância, o drama todo
feminino da velhice: junto com a perda da atração
física, percebe com impaciência as inexoráveis
limitações da idade avançada. Foi ela que escolheu a
pequena aventura que estão apenas começando e que
deverá durar apenas poucos meses. No passado,
quando ainda era jovem, renunciou a uma carreira
promissora de valente violoncelista para ficar ao lado
do marido, famoso regente de orquestra, e segui-lo nas
frequentes transferências: uma escolha feita por amor,
mas que deixou nela um forte arrependimento.
Os dois viverão em apartamentos separados e suas
relações se limitarão às da boa vizinhança, com
encontros casuais e esporádicos. Designaram para os
dois temporariamente a mesma assistente, não
havendo no momento entre o pessoal disponível, outra
pessoa capacitada.
De manhã estará à disposição da senhora Clea
Ross, à tarde oferecerá sua companhia ao senhor Otto
Stephens. Exceto a diretora da casa, ninguém saberá
que os dois hóspedes são marido e mulher.
Encontro com Ilona
A esta altura entra também em cena outro
personagem, Ilona, que terá um peso determinante
sobre o êxito da singular experiência empreendida
pelos cônjuges anciãos; a jovem mulher traz nos
ombros um passado de sofrimento: primeiro, os anos
do regime comunista, que a marcaram fortemente,
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tanto no físico como no caráter que se tornou esquivo e
desconfiado, depois a fuga da terra de origem, o duro
esforço de inserção num país diferente na língua e na
cultura, uma história de amor, lá na Espanha, com um
violoncelista de nome Miguel, que terminou em nada
pelo improviso chamado à Hungria para cuidar da mãe
gravemente enferma, a desilusão do abandono súbito
ao retornar para a Espanha, enfim o desembarque em
Buenavista com o seu diploma de enfermeira, a solidão
e a perspectiva de um futuro incerto e angustiante.
Toda quinta-feira, que é o seu dia de tempo livre,
viaja sem dar explicações. Suscita alguma curiosidade
aquele seu pontual e misterioso desaparecimento: para
onde vai? Sabem que ela é uma fugitiva húngara, que
não tem na Espanha nem parentes nem uma família
própria...
Na realidade a pobrezinha persegue a ilusória
esperança de trazer de volta Miguel, o violoncelista que
deveria ter-se casado com ela: do qual espera um filho!
Um dia, porém deve render-se à evidência: no seu
laboratório Miguel não está mais só, percebe-o de
longe, ternamente perto de uma jovem mulher...
Uma vida, a de Ilona, que parece um cruel sucederse de frustrações, que, porém não lhe endureceu a
alma. Ao lado dos dois originais assistidos, Ilona é uma
presença muito discreta, mas longe de ser ausente.
A sensibilidade e a intuição, combinadas com uma
longa experiência de dor, torná-la-ão finalmente
mediadora da renovada amizade entre os dois
senhores idosos.
Ela aprendeu durante a convivência com o
violoncelista, a construir os delicados instrumentos de
corda. Otto se servirá dela para reaproximar-se da
mulher, colaborando na construção de um violoncelo,
com o qual procura reparar o que para ela parece ter
sido um erro: impedir-lhe a vocação musical.
Sem este vistoso estratagema, para desatar o nó da
história bastava talvez a necessidade de dedicação
materna suscitado na velha senhora pela presença de
Ilona, que se tornou querida como uma filha, enquanto
também Otto experimenta para com ela uma ardorosa
simpatia, junto com a esperança de se tornar avô.
Na realidade o cansaço de viver que oprimia a velha
senhora, a incapacidade do cônjuge, que tanto a ama,
para preencher aquela sensação de vazio revelam-se
por aquilo que são: necessitados de ter alguém para
proteger e amar, que restitua sentido e calor à vida.
Passados os três meses que haviam sido
prograrmados para a extravagante experiência, chega
para o senhor Stephens e a senhora Clea Ross o
momento de partir. A diretora de Buenavista comunicao a Ilona, sem nenhuma consideração, preocupada
apenas em não perder um bom elemento do seu
pessoal.
Parece um último e duro golpe para a jovem mulher
que se sentia já ligada a eles quase por um vínculo de
família, mas eis: no cenário de relâmpagos, trovões e
chuva de pedras de um temporal cenográfico,
finalmente conclui-se a o evento com um final feliz.
Finalmente, sob um céu sereno, partem juntos os
velhos senhores e em breve Ilona os alcançará, como
uma filha reencontrada, na grande e elegante casa.
MÚSICA E TEATRO
Atividades teatrais
na formação artística
Sara Cecilia Sierra, Wolf Rüdiger Wilms
Com os artigos desta rubrica
dedicados ao teatro, este ano queremos
incentivar a olhar para o vasto campo das
atividades teatrais e a aceitá-las com a sua
significativa função pedagógica e artística.
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Apostamos no teatro?
Se nós concebemos a pessoa como um ser em
evolução, marcada pela cultura, então vale a seguinte
definição: por cultura entende-se como a pessoa joga,
aprende e trabalha, a ponto destas três formas de
crescimento serem consideradas como atividades
fundamentais. Na sociedade moderna tais formas de
atividade eram concebidas como fases da vida
sistematicamente consecutivas.
Na sociedade pós-moderna pode-se falar, na maioria
dos casos, de atividades dominantes que acompanham
a biografia de uma pessoa nas suas várias etapas. Por
esta razão acreditamos possível o cruzamento destas
atividades em cada fase da vida.
Na tradição de Dom Bosco o teatro é projetado em
primeiro lugar como jogo: apostamos no teatro (como
apostamos no futebol ou no xadrez). Quem atuou no
teatro ou o dirigiu algumas vezes, provavelmente fez a
experiência de como a realização de uma produção
teatral de boa qualidade supõe um trabalho
dispendioso, com o qual as atrizes, os atores e os
diretores em geral também aprendem muito.
Assim, fazer teatro pertence àquelas formas de
atividade nas quais, jogar, estudar e trabalhar
compõem uma unidade, com o predomínio intocável
do jogo.
A mais humana de todas as artes
Há, todavia outro problema fundamental a ser
resolvido: quando a atuação teatral de uma contexto
pedagógico se converte em arte? Neste caso é válida a
seguinte disposição: uma atividade humana alcança a
qualidade de uma atividade artística quando a
exercemos de um modo estético, é como dizer: se
construímos ou modelamos algo de cênico. A
legitimação do teatro pedagógico baseia-se no seu
valor formativo o que, por sua vez, está ligado à
qualidade estética da atualização. Isto oferece ao
sujeito que desempenha o seu papel, um acordo
consigo mesmo por meio da arte. Neste sentido “atuar
no teatro” é uma forma de autoformação.
Na sociedade pós-moderna vivemos uma tendência
à estetização total da realidade. O pensamento e a
ação pedagógica, inclusive, sucumbem sob esta
pressão.
Os pedagogos apresentam as suas estratégias
didáticas para a estética, colocando-as em cena ou
apresentando-as de modo performativo.
Outros transformam a classe em laboratório de
estudo e criam com isto um cenário. Dado que o teatro
– ao menos segundo Bertolt Brecht – é a mais humana
de todas as artes, não é estranho que seja
contemplado como remédio universal que deve dar
nova vida à escola ao lado das outras formas de
ensino, academicamente pomposos, mas muitas vezes
com conteúdos distantes da realidade.
A magia do momento estético
Outro problema de fundo é esclarecer a questão da
relação entre teatro pedagógico e teatro profissional.
No início da expansão do teatro feito por
principiantes, do teatro amador e do teatro pedagógico,
a comparação dos principiantes e dos amadores com
os profissionais provocava juízos que colocavam em
nível inferior aqueles que não eram profissionais aos
olhos dos espectadores. No passado existiram e ainda
existem diretores de teatro pedagógico que se
esforçam, com provas e muito trabalho, para diminuir a
diferença de qualidade nos grupos amadores, os quais,
todavia se saem bem, em casos excepcionais.
Por outro lado os profissionais olham para o teatro
amador e para o teatro pedagógico como uma ameaça
à sua pretensão de monopólio artístico.
Mas, a pedagogia do teatro desligou-se, em grande
parte, da simples imitação do teatro profissional e, ao
menos em parte, desenvolveu uma estética própria
qualitativamente distinguível daquela, motivo pelo qual
formou o seu próprio público que se sente igualmente
atraído.
Antes de um ator profissional entrar no palco no
exercício de sua profissão, adquire um poder artesanal
muito grande. No teatro pedagógico necessariamente
ensinam-se às crianças e aos jovens as atitudes
teatrais fundamentais.
Uma particularidade estética da atividade teatral no
trabalho com jovens, talvez já a partir dos préadolescentes, é a possibilidade de uma perda parcial
da consciência da realidade. Conhecemos este
fenômeno chamado “flow” no qual os jovens atores
podem gerar a magia do momento estético. Perdem-se
nesta situação, estão “totalmente em si” e se deixam
cair em uma sensibilidade e profundidade global, na
qual se sentem ligados ao mundo todo e ao cosmo.
Diretores de teatro especializados podem criar estes
efeitos nas pegadas de uma elevada cultura de
ensaios, porém os jovens, em geral, são muito abertos
para estes momentos, que podem reativar-se
completamente nas apresentações públicas. Abrir-se
e mostrar indefesas as próprias fragilidades emocionais
contribui essencialmente para a criação de um espaço
comum entre atores e espectadores, marcados por
uma emoção intensa.
Esta prova de credibilidade no seu desempenho é
outra coisa na qual não há que temer a comparação
com os profissionais, apesar de, com isto,
naturalmente, não se livrarem da obrigação de seguir
um cuidadoso modelo teatral.
30
CAMILLA
Almas de oração
Caras amigas, também desta vez – ajudada pelo
bom Deus – fomos capazes de colocar o pé no ano
novo, que traz consigo, como sempre, muito desejo de
renovação. Pois bem, até mesmo nas idosas como eu,
a paixão por algo de inédito impele o coração e as
pernas trêmulas a novas metas!
A reflexão que lhes proponho parte da ideia de que
cada meta para a qual tendemos pressupõe um ponto
de partida que não pode ser senão o coração de cada
um dos nossos entusiasmos. Nestes dias de festa
dediquei-me a uma observação cuidadosa da oração
na minha comunidade e preciso confiar a vocês, que
me entendem, algumas considerações.
Deixem que eu gaste uma palavra para o primeiro
encontro da manhã que, agora, parece o encontro das
quatro ou cinco insones da comunidade: sabe-se que à
noite muitas ficam até tarde empenhadas em uma
pastoral cada vez mais noturna e virtual, mas muitas
Irmãs da minha geração ficavam até tarde remendando
roupa, estudando, ajustando e programando e, no dia
seguinte, logo cedo, lá estavam diante de Jesus, como
se nada fosse!
Não julgo: provavelmente hoje organiza-se melhor
e, para meditar com toda calma, consegue-se retalhar
o tempo necessário à margem de jornadas frenéticas
de trabalho.
Gostaria de gastar a segunda palavra falando do
modo com o qual ocupamos o espaço para a oração;
compreendo muito bem que agora muitas das nossas
capelas são grandes para um número exíguo de
pessoas que devem ocupá-las, mas diante do Crucifixo
conseguimos dispor-nos tão cuidadosamente distantes
umas das outras a ponto de despertar, em quem
observa, uma legítima interrogação sobre a
autenticidade daquele “atrairei todos a mim” declarado
pelo Senhor.
Gasto a última palavra para as vozes que elevamos
a Deus quando rezamos juntas; deveriam ser
uníssonas, mas muitas vezes destaca-se entre elas a
de uma Irmã mais zelosa que talvez pense que Deus
tenha dificuldade para ouvir; deveriam estar concordes,
mas frequentemente há um coração (e então também
uma voz) que consegue iniciar sempre meio segundo
antes das outras com a finalidade – eu acredito – de
mostrar a Deus (quando não às Irmãs) que ela existe.
Em suma, talvez a novidade da vida tenha início com
uma oração bem cuidada em cada detalhe, para que o
Pai Eterno não se sinta mal quando custamos para
abrir os lábios diante d´Ele e reencontramos
improvisamente toda a nossa loquacidade, quando
saímos da igreja.
Palavras de C.
No próximo número
DOSSIÊ:
FIO DE ARIADNE:
Palavras e gestos: respeito e misericórdia
Diante do outro
UM OLHAR SOBRE O MUNDO:
Nunca Vidomegon
PASTORALMENTE:
Medo dos jovens?
FAZ-SE PARA DIZER
Explorar
31
CORAGEM, SOU EU,
NÃO TENHAIS
MEDO...
MARCOS 6,50
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