Considerações Acerca do Messianismo Judaico em Portugal

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Considerações Acerca do Messianismo Judaico em Portugal
Considerações Acerca do Messianismo Judaico em Portugal
Saulo Henrique Justiniano Silva (UEM)
O trabalho analisa manifestações do messianismo judaico nas décadas que antecederam
a instauração do tribunal do Santo Ofício em Portugal. O messianismo, especificamente
o judaico, é um fenômeno social de “longa duração”, contudo, assumiu características
distintas ao longo da história. O século XVI viveu um florescimento do sonho
messiânico. Para alguns judeus, pressionados pelas perseguições, confiscos de bens e
conversões forçadas ao cristianismo, às sagradas escrituras e os estudos cabalísticos
afirmavam a possibilidade do próximo advento de um reino messiânico. Nesse texto,
procura-se estabelecer uma relação entre o crescimento do messianismo judaico e a
efetiva instauração do tribunal da inquisição em terras lusitanas.
Palavra-Chave: Judeus. Cristãos-Novos. Inquisição. Messianismo Judaico.
Considerações Acerca do Messianismo Judaico em Portugal
Saulo Henrique Justiniano Silva (UEM)
O presente excerto tem por objetivo compreender a história do messianismo
judaico no reino português entre o fim do século XV e início do século XVI. Desde já,
deixamos claro que mesmo que tenhamos como objetivo considerar todas as esferas que
tratam deste assunto seria impossível alcançar a totalidade do mesmo, visto que se trata
de uma temática tão complexa. Este artigo se definirá da seguinte maneira: em um
primeiro momento nos deteremos em apresentar a situação judaica na península ibérica
em finais o século XV, seguindo para a perseguição aos judeus e chegando as
esperanças messiânicas.
Compreender a história dos Judeus em Portugal é de certa forma compreender a
própria história deste reino, pensamos que tal dissociação seria impossível, já que os
judeus ibéricos, também conhecidos como sefarditas estão presentes ali desde tempos
remotos. A historiadora Maria José ferro Tavares, afirma que existem inscrições
fúnebres judaicas na península ibérica dos séculos II e III. Quando tratamos
especificamente de Portugal, vemos que o próprio mito fundador do reino se confunde
com mitologia judaica, sobre tal assunto Cristóvão Rodrigues Acenheiro, cronista
português nascido no século XV afirma que “os primeiros monarcas do reino eram ditos
Macabeus, por sua valentia” (ACENHEIRO apud LIPINER, 1993, p. 17). A presença
da tradição judaica em Portugal é inegável ao ponto de D. Afonso Henriques se pautar
na dinastia judaica como modelo da intervenção divina, pelo fato de ambos serem
socorridos por anjos nas batalhas contra os inimigos, seja os judeus contra os helenos e
os portugueses na célebre batalha de Ouriques contra os mouros em 1139.
A história dos Judeus na península Ibérica nos é apresentada a partir de uma
relação de “amor e ódio”, por vezes estes são apresentados como a salvação financeira,
já em outras são vistos como aqueles que envenenam os poços e causam as moléstias,
eternamente culpados da morte do Senhor Jesus Cristo. Esta relação dos judeus com os
cristãos na península ibérica passara oscilações até a expulsão dos judeus de Espanha
em 1492 e o batismo forçado em Portugal em 1497.
Para compreendermos o fenômeno do messianismo judaico português, faz-se
necessário primeiramente entendermos a situação da comunidade judaica espanhola. Os
reinos espanhóis medievais são frequentemente lembrados pela tolerância religiosa
principalmente durante o califado islâmico de Córdoba, de onde florescerá nos séculos
XII e XIII as filosofias, judaica de Moisés bem Maimon, conhecido com Maimônides e
muçulmana de Averróis. No entanto, acerca dos judeus, ao mesmo tempo em que
resplandecia a cultura, os mesmos eram acometidos por constantes perseguições, como
no caso da sucessão dinástica no reino de Castela, que colocou de um lado Pedro, o
terrível, herdeiro legítimo do trono, contra Henrique de Transtâmara. Neste contexto os
judeus se colocaram a favor de Pedro, numa guerra que durará mais de uma década
entre 1355 a 1366, com a vitória de Henrique que desde meados da guerra fazia circular
no reino “textos antijudaicos, reinventando estigmas antigos como os dos judeus
bebedores de sangue, abutres, sórdidos” (VAINFAS & HERMANN, 2005, p. 22).
A Idade de Ouro, como é conhecida na história judaica espanhola o período de
desenvolvimento científico e tolerância religiosa, que se inicia em meados do século X,
chega ao seu fim na segunda metade do século XIV, quando em 1390 o alastramento da
Peste Negra, causou epidemias, fome e mortes na população urbana e rural. Neste
contexto os judeus passam a ser acusados de causadores de tais desgraças, iniciando-se
então, uma série de perseguições a população israelita, que se veem forçados, para se
defender à se converterem ao cristianismo.
O início do século XV é marcado por ondas de conversão em massa dos judeus
ao cristianismo, no entanto podemos perceber que estas ações tinham caráter
circunstancial, pois mesmo se convertendo a fé católica, não deixaram de praticar os
ritos da fé de Moisés. Os anos que sucederam às ondas de conversão foram marcados
por uma relativa calmaria, que encontrou se manteve até 1478 quando os reis católicos
Fernando de Aragão e Isabel de Castela instituíram o tribunal inquisitorial em seus
reinos. Os conversos (KAYSERLING, 2009; VAINFAS, 2011), como eram chamados
os judeus convertidos ao cristianismo, tornaram-se os principais alvos de perseguição da
inquisição espanhola, pois eram acusados de praticar a fé judaica em segredo e como
cristãos que eram, foram acusados de heresia.
Em 1492, ano da efetiva unificação de Castela e Aragão que deu origem ao reino
de Espanha, também é promulgado o decreto de expulsão de todos os judeus de seu
território, grande parte destes encontrou refúgio no reino vizinho. “Estima-se que
40.000 judeus entraram em Portugal naquele ano, número imenso para a época”
(VAINFAS, 2010, p. 28).
Em Portugal não houve ao longo do século XIV e XV nenhuma perseguição
como ocorrera em Espanha. Por isso a comunidade Sefardita portuguesa continuava
predominantemente judaica (NOVINSKY, 1997).
Apesar da comunidade judaica portuguesa, sofrer algumas restrições civis e
conviver em bairros chamados judiarias estavam integrados à sociedade cristã.
Desenvolviam tanto trabalhos manuais quanto intelectuais e desempenhavam papéis
importantes no processo de expansão do reino.
A participação judaica na expansão ultramarina portuguesa, não se restringiu
apenas a questões financeiras, como já sabido por muitos, mas também no
desenvolvimento de técnicas náuticas. Essa participação pode ser observada na presença
de Abraão Zacuto, o astrônomo, na corte de Dom João II e Dom Manuel
(KAYSERLING, 2009; VAINFAS, 2010).
A expulsão da Espanha aumentou consideravelmente a população dos judeus em
Portugal e isto provocou certo descontentamento entre os setores tradicionais que
passaram exigir da Coroa medidas como aquelas adotadas pelos reis católicos.
Em 1495, subiu ao trono lusitano Dom Manuel, que diante das pressões e do
interesse que nutria em se casar com a infanta Isabel, filha dos reis espanhóis
promulgou em 1496, um decreto como aquele de 1492 dos monarcas vizinhos, onde
estabelecia o prazo de um ano para que todos os judeus residentes no reino o deixassem
ou se convertessem ao cristianismo.
Em 1497, o prazo para os judeus deixarem o reino se esgotou, entretanto, ao
mesmo tempo em que mantinha a determinação de expulsão, o rei tentava impedir a
saída provavelmente em razão da importância econômica que os Sefarditas tinham para
o reino. Esse impedimento foi favorecido pelas próprias características geográficas de
Portugal. Como não podiam retornar para a Espanha, a única saída era o mar. O
embarque foi restrito ao Porto de Lisboa e D.Manoel ordenou o batismo forçado dos
judeus no porto de partida. Sendo assim, de um dia para o outro Portugal deixou de ter
judeus em seu território e passou a ter cristãos-novos.
A conversão dos judeus ao cristianismo foi ao encontro dos anseios dos reis de
Castela, principalmente Dona Isabel que, segundo KAYSERLING, nutria um ódio
profundo aos judeus:
Ninguém havia jurado maior ódio aos judeus do que esta Isabel de Espanha.
Não só no seu próprio reino queria exterminar completamente a raça
hebreia, mas também procurava como solicitações, lisonjas ou ameaças
conquistar os regentes dos outros Estados para sua política odiosa (2009,
p.164).
Os Cristãos-Novos apesar de não terem, depois do decreto de conversão forçada
(AZEVEDO, 1918; NOVINSKY 2007; KAYSERLING, 2009; LIPINER, 1993;
VAINFAS, 2011) acesso as sinagogas, ou a livros da tradição judaica, gozavam de
certas liberdades no reinado manuelino, que apesar das pressões não cedeu à instauração
do tribunal do Santo Ofício em terras lusitanas.
Poucos foram os cristãos-novos que realmente se voltaram ao cristianismo,
deixando de praticar os rituais da tradição judaica tais como a Brith Milah (circuncisão)
e o Bar Mitzvah, provavelmente a maioria continuou a praticar o judaísmo, pois não
havia nenhuma perseguição institucionalizada no reino. Aqueles que continuavam a
praticar o judaísmo passaram a ser chamados por seus contemporâneos, de uma forma
pejorativa, de “marranos” e por parte da historiografia de criptojudeus.
Em 1521, assume o trono português Dom João III, filho da união de Dom
Manuel com a filha dos reis católicos de Espanha. Diferente do pai, este rei “alimentava
desde criança expulsar os hereges do reino” (KAYSERLING, 2009, p. 210). Seu
governo é tido como o período de maior perseguição aos criptojudeus em Portugal e
pela incansável insistência junto a Santa Sé para a instauração da Inquisição em seus
domínios. Sobre a atuação do rei português contra os judeus, falaremos ao longo desta
exposição.
Apesar da comunidade cristã-nova portuguesa não sofrer nenhuma perseguição
institucionalizada após a determinação de Expulsão de 1497, sofreu com ataques da
população católica que insistia em fazer justiça com suas próprias mãos e combater as
heresias. Em 1506, na capital do país, houve uma manifestação popular contra os
cristãos-novos que acabou com a morte de centenas destes em fogueiras improvisadas
nas praças de Lisboa (GREEN, 2011; KAYSERLING, 2009). Dom Manuel, não se
encontrava na cidade e assim que ficou sabendo mandou prender os cristãos envolvidos
na chacina e os condenou ao enforcamento e a decapitação. Apesar da condenação dos
culpados do massacre de 1506, grande parte dos criptojudeus deixou o país depois desse
acontecimento seguindo rotas para Itália e Flandres.
Segundo Mayer Kayserling (2009) os cristãos-novos eram odiados em Portugal
e temiam a eminente instauração do Tribunal do Santo Ofício que poderia acontecer a
qualquer momento, caso Dom Manuel não resistisse às pressões que só tendiam a
crescer. Neste contexto de opressão, perseguição e humilhação os criptojudeus apoiados
nas profecias bíblicas trouxeram à tona os ideais escatológicos messiânicos, que sempre
estiveram presentes no imaginário judaico da diáspora (WERBLOWSKY, 1972).
Existia um cenário peninsular que, de certa forma, parecia estar por anteceder a
era messiânica, como afirma a historiadora Maria José Ferro Tavares:
Os turcos avançavam rumo ao ocidente, o Islã ameaçava a cristandade, que
por outo lado, se via envolta em corrupção; o rei de França e o imperador –
Carlos V - ousavam invadir Roma e ameaçar o papa; Lutero e Henrique VIII
separavam-se de Roma (TAVARES, 1991, p.142).
Alguns Judeus previram a eminente vinda do Messias, dentre os quais podemos
destacar Abraão Zacuto, astrônomo de D. Manuel e posteriormente Samuel Usque, mas
nenhum foi tão preciso como o filósofo e estadista D. Isaac Abravanel, que chegou à
conclusão através de cálculos cabalísticos, que entre os anos de 1490 a 1570 o Messias
consolador se faria presente, salvaria o povo de Deus e acabaria com as tribulações
vivenciadas por eles.
O caos e a perseguição do povo de Israel são os combustíveis para a
consolidação do projeto messiânico, segundo Tavares:
O aparecimento cíclico de diversos Messias ou o renascer fervoroso desta
crença tem que ver necessariamente com a história dos judeus, marcada ela
também por um percurso cíclico de calamidades, provocadas pelo
afastamento deste povo em relação Deus e consequente castigo, seguido do
perdão divino e uma nova ligação ao Senhor. E uma história de percurso
cíclico aquela que caracterizou a vivência dos judeus, ao longo dos séculos
(TAVARES, 1991, p. 141).
A principal característica da esperança messiânica judaica é o fim da diáspora,
pois o libertador viria e levaria o povo de volta para a terra que o próprio Deus reservou
a Abraão e seus descendentes, conforme a narrativa bíblica de Gênesis 12. O Messias
restauraria a monarquia de Davi e reuniria as tribos perdidas, como se segue os
versículos de Amós:
Naquele dia, levantarei a tenda desmoronada de David repararei as suas
brechas, levantarei as suas ruinas e a reconstruirei como nos dias antigos.
(...) Mudarei o destino de meu povo, Israel; eles reconstruirão as cidades
devastadas e as habitarão, plantarão vinhas e beberão o seu vinho,
cultivarão pomares e comerão os seus frutos. Eu os plantarei em sua terra e
não serão mais arrancadas de sua terra, que eu lhes dei, disse Iahweh teu
Deus (AMÓS 9: 11, 14 e 15).
Importante, lembrarmos que a crença messiânica portuguesa, ganhou força em
um momento onde, tecnicamente não existiam mais judeus no reino, por conta do
batismo forçado de D. Manuel. Neste momento especial de afirmação da identidade
religiosa frente a uma imposição estatal é que aparecem esses devaneios. Pois, como
outrora colocado o ideal messiânico é um característica integrante do pensamento
judaico. Não queremos reduzir a amplitude do ideal messiânico, única e exclusivamente
ao judaísmo. Historiadores respeitados como Norman Cohn, nos apresenta um
panorama de redenção que se estende desde o Egito Antigo, passando por Mesopotâmia
e Pérsia (COHN, 1996), no entanto não é nosso objetivo tratar sobre outros, que não os
judeus, na especificidade de Portugal no século XV e XVI.
Não podemos entender as expectativas messiânicas judaica/cristã-nova em
Portugal sem ao menos citar o panorama mundial, pós Invasão Turca e Reforma
Protestante. Os anos finais do século XV e o inicio do século XVI é infestado de
pensamentos apocalípticos em parte significativa Europa. Jean Delumeau nos orienta
com relação a isso, afirmando que:
Há unanimidade entre os historiadores em considerar que se produziu na
Europa, a partir do século XIV, um reforço e uma difusão mais ampla do
temor dos tempos derradeiros (DELUMEAU, 1996, p. 206).
As esperanças messiânicas se tornam mais palpável entre a comunidade
esperançosa quando por volta de 1526 chegou a Portugal vindo de Roma David
Reubeni. Com uma carta de apresentação do Papa Clemente VII e se declarando
embaixador de um longínquo reino judeu na Arábia governado por seu irmão. Este
homem descrito como “preto, miúdo, esquelético e, no entanto cheio de coragem, de
arrojo e de comportamento decidido” (KAYSERLING, 2009, p. 216) é recebido na
corte de Dom João III onde foi acolhido com muitas honras e em seu pronunciamento
disse-lhe:
Eu sou Hebreu e temo o Senhor, Deus do Universo; meu irmão, rei dos
judeus a Vós me enviou, rei e senhor, a fim de pedir auxílio. Ajude-nos, pois,
para que possamos guerrear contra turco Solimão e arrancar de seu poder a
Terra Santa (apud KAYSERLING, 2009, pp. 216-217).
O rei, interessado no poder que poderia exercer nestas regiões ainda não
exploradas pelo imperialismo português, não recusou o pedido do suposto embaixador,
ao contrário, combinou um plano de como enviar ajuda bélica portuguesa ao reino
israelita na Arábia.
Como já exposto, David Reubeni se apresentava como embaixador, político e
com pretensões de pedir ajuda da cristandade contra um inimigo comum, o também
império expansionista turco. No entanto a notícia da presença de um príncipe judeu em
Lisboa e a honra que este recebera do rei provocou excitação entre os criptojudeus em
Portugal, alguns o consideraram o Messias salvador enviado por Deus, já que a aparição
deste estava de acordo com o tempo estipulado nos estudos proféticos de D. Isaac
Abravanel.
O aparecimento de David Reubeni fascinou na capital portuguesa um jovem
cristão-novo chamado Diogo Pires, que por ter recebido boa educação ocupava o cargo
de escrivão dos ouvidores na Casa de Suplicação. Grande estudioso de Cabala, o jovem
em questão, já tinha conhecimento de hebraico e Aramaico e aos 24 anos já tinha escrito
uma poesia sinagogal esmerada entre seus pares (KAYSERLING, 2009).
O surgimento de Reubeni causou grande fervor místico em Pires, que
atormentado por visões e sonhos de fundo messiânico mudou seu nome de batismo para
o nome judeu Salomão Molcho e buscou aproximação com o dito embaixador para que
este desvendasse e interpretasse seus sonhos, contudo foi recebido friamente e quase
repelido (KAYSERLING, 2009, p. 217).
Sobre a ação adotada por Salomão Molcho diante da não aceitação de Reubeni,
Kayserling (2009) narra:
Pensando que o príncipe e suposto Messias o ignorasse por não trazer ainda
em si o sinal do pacto, sujeitou-se a essa perigosa e dolorida operação, de
que resultou uma hemorragia que o acamou (p. 217).
A notícia que o jovem tinha se circuncidado trouxe grande indignação a
Reubeni, que sabia do perigo que isto traria se o rei soubesse que um cristão-novo se
convertera ao judaísmo através de um ato tão decisivo como aquele, sem dúvida o
acusariam de influenciar o mancebo.
Reubeni se preocupava com sua imagem diante da monarquia portuguesa, mas
durante sua estada no país surgiram diversas lendas sobre seus objetivos ali. Dizia-se
que o embaixador a mando de seu irmão reconduziria a nação judia dispersa para a
Palestina (DELUMEAU, 1997 p. 183) e que ele estava recrutando um exército de
trezentos mil guerreiros para lutar contra os turcos e reconquistar a Terra Santa
(AZEVEDO, 1918).
Diogo Pires, ou o agora Salomão Molcho dizia ter recebido sonhos em que Deus
o ordenava a abandonar Portugal e seguir em direção ao oriente. Ele seguiu os
ordenamentos celestiais e rumou para a atual Turquia. Por onde o jovem passou
conquistou muitos adeptos. Seus sermões contagiantes cujo conteúdo principal era a
eminente vinda do Messias o obrigou, a pedido de muitos, publicar um resumo de seus
sermões em 1529 na cidade de Salônica. Fato é que: a fama de Pires Molcho crescia
principalmente entre os Sefarditas de parte da Europa, inclusive entre seus antigos
companheiros de sofrimento, os cristãos-novos portugueses.
Alguns cristãos-novos espanhóis refugiados na cidade portuguesa de Campo
Maior, inflamados de fervor messiânico, munidos de armas nas mãos seguiram para a
cidade espanhola de Badajoz, lá provocaram algumas desordens e conseguiram arrancar
à força uma mulher do tribunal inquisitorial, tal acontecimento despertou grande fúria
entre os membros do clero católico espanhol:
Selaya o inquisidor de Badajoz ficou extremamente furioso e enviou uma
carta a Dom João III, que baseado em alguns acordos entre Portugal e
Espanha, exigiu a entrega e punição dos envolvidos no incidente
(KAYSERLING, 2009 p. 218).
De fato os meliantes foram entregues e pagaram com a vida tal ousadia.
O acontecimento acima descrito causou queixas da rainha de Espanha e a insistência do
inquisidor Selaya para que o monarca português seguisse o exemplo do país vizinho. A
carta de Selaya, datada de 30 de março de 1528 dizia:
Há três anos havia chegado de longínquo país um judeu profetizando a vinda
do Messias, a libertação da nação judaica e a reconstrução do reino hebreu.
Este Homem – David Reubeni – teria conquistado muitos criptojudeus a sua
causa. Tanto ele como seus adeptos eram hereges na verdadeira acepção da
palavra (...) todo o povo judeu deveria ser destruído, e David Reubeni com
seus seguidores queimados impiedosamente. (AZEVEDO, 1918 p.194;
KAYSERLING, 2009 p. 219).
Neste momento diversos setores da sociedade portuguesa pediam a instauração
da Inquisição, pois temiam por sua segurança, não se sabia o que os cristãos-novos,
cada vez mais incitados, poderiam vir a fazer. Sabia-se que a cada dia que passava
muitos judeus conversos ao cristianismo de forma forçada estavam voltando ao
judaísmo e aderindo a causa messiânica. O bispo de Coimbra fez revelações
surpreendentes ao rei português dizendo que muitos sábios cristãos-velhos estavam,
apesar dos perigos, se voltando à antiga fé de Moises (KASERLING, 2009). De fato
descobriu-se em Évora um desembargador chamado Gil Vaz Bugalho que tinha se
convertido ao judaísmo neste período (LIPINER, 1993).
É bem sabido, que como já citado, havia um desejo de Dom João III de instaurar
em Portugal um tribunal Inquisitorial, este que como sua avó materna nutria ódio pela
raça judaica, não pôs em funcionamento a Inquisição em terras lusitanas logo no início
de seu reinado, pois foi admoestado pelos ministros de seu pai D. Manuel sobre os
problemas econômicos que isso poderia causar ao crescente império. Contudo em 1529
já havia passado mais de oito anos do início de seu reinado, neste contexto o agora
“experiente” monarca podia tomar suas próprias decisões. Começou então a série de
pedidos do rei português à Santa Sé para a liberação da instauração do tribunal
inquisitorial.
Além de Vaz Bugalho tivemos em Portugal diversos núcleos de estudos
messiânicos, que possivelmente fora intimamente influenciado pelas ideias do
embaixador Reubeni, como o caso de Luís Dias, alfaiate em Setúbal que auto se
declarou o messias na década de 1530, ou de Diogo Leão de Constanilha, que se
declarava rabino e previa a vinda do Messias para 1544, ou ainda de Gonçalo Annes de
alcunha Bandarra, que em suas trovas falava de um rei encoberto que faria de Portugal a
cabeça de um vasto império místico. Vale lembrar que Bandarra, apesar de atrair
diversos cristãos-novos com seu discurso, não negara o catolicismo e sob pressão
afirmou que o Rei Encoberto era de D. João III, rei de Portugal na época de suas trovas
(HERMANN, 2005).
De fato os pensamentos messiânicos serão contidos com a instauração do
tribunal do Santo Ofício em Portugal em 1536, quando serão acusadas e sentenciadas as
principais cabeças dos movimentos messiânicos.
Apesar do tribunal do Santo Ofício ter durado cerca de três décadas em Portugal,
o pensamento messiânico não deixou de existir e de assumir características das mais
diversas ao longo da História portuguesa.
REFERÊNCIAS
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1918.
COHN, Norman. Cosmos, Caos e o Mundo que virá. São Paulo: Companhia das Letras,
1996.
DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente - 1300-1800. São Paulo: Companhia
das Letras, 1996.
DELUMEAU, Jean. Mil anos de felicidade: uma história do paraíso. São Paulo: Cia.
das Letras, 1997.
GREEN, Toby. Inquisição, o reinado do medo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011
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