O projecto pessoal e político de Eduardo Mondlane

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O projecto pessoal e político de Eduardo Mondlane
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ATAS DO CONGRESSO INTERNACIONAL SABER TROPICAL EM MOÇAMBIQUE: HISTÓRIA, MEMÓRIA E CIÊNCIA
IICT – JBT/Jardim Botânico Tropical. Lisboa, 24-26 outubro de 2012
O PROJECTO PESSOAL E POLÍTICO DE EDUARDO MONDLANE
PEDRO BORGES GRAÇA
Centro de Estudos Africanos e Brasileiros. Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Universidade Técnica de
Lisboa
[email protected]
Resumo
Eduardo Mondlane foi pastor, "muleque", estudante, catequista, emigrante, operário, professor, funcionário das
Nações Unidas e finalmente guerrilheiro e diplomata, "pai fundador" do projeto nacional moçambicano. A sua biografia
não é contudo suficientemente conhecida. Quem não o confunde com um antropólogo? Ou com um sociólogo? Na
verdade, toda a sua formação académica e investigação se centrou na área da Psicologia Social, em questões de
perceções sociais, conscientemente preocupado com o problema do impacto da modernidade e da mudança cultural
no comportamento dos indivíduos agregados em comunidades. Quem não o toma por um revolucionário marxistaleninista? Na verdade nunca se posicionou claramente como tal e defendia que os africanos tinham de desenvolver os
seus próprios e específicos modelos de sociedade. Eduardo Mondlane foi sem dúvida um grande líder nacionalista
africano, culto, homem de pensamento e de ação, singular, como nos revelam as palavras que deixou escritas e o
virtual projeto político para Moçambique que podemos vislumbrar com atualidade. Essa foi a razão pela qual em
Moçambique, durante o longo período revolucionário após a Independência, a sua figura foi sobretudo exaltada sob a
forma estética e simbólica. Por exemplo, o seu primeiro livro, “Chitlango, Filho de Chefe”, escrito com cerca de 25 anos,
só seria publicado em Moçambique quinze anos após a Independência, pela inoportunidade do seu trajeto heterodoxo
e nada revolucionário, simples e essencialmente humanista, bebendo diretamente das suas profundas raízes africanas
e rurais. Ainda hoje se encontra pois aberto o debate sobre o futuro que Moçambique teria tido com Mondlane.
Inconclusivo para uns, muito claro para outros. Porventura a História não deixará de ver ressurgir recorrentemente o
seu pensamento e ação, o seu exemplo, estudado pelos jovens moçambicanos no afã generoso de darem o seu
contributo para o desenvolvimento do seu país. Ele, Eduardo Mondlane, que queria ser, mais que tudo, “um professor
universitário”, seguramente rejubilaria por ver o seu nome na Universidade, talvez a maior invenção da Humanidade e
com certeza fator estratégico de desenvolvimento económico e social.
Palavras-chave: Eduardo Mondlane, Projeto Nacional Moçambicano
*
Eduardo Mondlane desempenhou um papel-chave na estruturação da FRELIMO e também na orientação das
relações inter-étnicas no seu seio no sentido da integração nacional. No breve período de 7-8 anos em que
agiu como nacionalista africano no caminho da luta armada, foi um modelo para a maioria dos fundadores e
dos restantes militantes da FRELIMO, em particular para os negros. Era consideravelmente mais velho, visto
como o primeiro negro moçambicano a fazer um Doutoramento, era casado com uma mulher branca de
quem tinha filhos, mantinha variados contatos internacionais e em especial conseguia apoios e
financiamentos para continuarem o movimento de libertação nacional. Morreu assassinado em 3 de
Fevereiro de 1969, continuando obscura a explicação completa sobre quem foram os autores e qual a sua
motivação. A revisitação da figura de Mondlane enquanto símbolo da unidade nacional moçambicana é
recorrente, principalmente por parte daqueles que no seio da elite moderna questionam a situação da
moçambicanidade (GRAÇA, 2000). Figura ao mesmo tempo idolatrada e controversa no seio da FRELIMO,
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Eduardo Mondlane continua a despertar ainda hoje uma forte atração em certos jovens moçambicanos,
nomeadamente intelectuais e universitários, que procuram no seu percurso, no seu pensamento e na sua
acção, respostas para os graves problemas estruturais de Moçambique (SAMUEL, 2003). A sua biografia é
pois incontornável em qualquer abordagem ao projecto nacional moçambicano pois constitui um ponto de
referência para qualquer “elaboração” atual que surja no seio da elite moderna.
Para se compreender o projeto nacional de Mondlane é preciso investigar o seu próprio projeto pessoal e
profissional, pois este ocupou cerca de 30 anos da sua vida (a partir dos dez anos de idade) enquanto aquele
não o ocupou mais de 10 anos. Não obstante o progresso verificado, relativamente à escassez de estudos
sobre Mondlane, no contexto do 30.º aniversário da sua morte, em 1999, com a publicação de um conjunto
de trabalhos na Revista Estudos Moçambicanos - e posteriormente de outros como, em 2010, a tese de
doutoramento de José Manuel Duarte de Jesus, publicada pela Almedina com o título Eduardo Mondlane,
Um Homem a Abater - a verdade é que ainda não foi publicada uma biografia razoavelmente completa de
Eduardo Mondlane. Falta, por exemplo, entre outros espólios, aceder à imensa correspondência privada de
Janet Mondlane que será porventura desde logo esclarecedora sobre a sua posição no seio da FRELIMO.
Por outro lado, é revelador do incómodo da sua figura para a cultura frelimista que as suas duas obras mais
emblemáticas, Chitlango, Filho de Chefe e Lutar por Moçambique, só tenham sido publicadas em
Moçambique muitos anos depois da independência, já no contexto da abertura ao pluripartidarismo. Na
realidade entendemos logo porquê quando as lemos, uma vez que efetivamente não se coadunam
integralmente com o projeto monopartidarista, radical e modernista, do grupo marxista-leninista da
FRELIMO liderado por Marcelino dos Santos e assimilado por Samora Machel após a morte de Mondlane.
Este, poucos dias antes de morrer diria numa entrevista ao seu amigo Herbert Shore, posteriormente
Professor Emérito da Universidade da Califórnia:
There is no short cut to transforming the systems of society or in building socialism, no matter how tempting
models may be. What could result is an administrative leadership that is at base unthinking, unsocial and
lacking in compassion, no matter what its original motivation may have been. Even at times self-centered and
irresponsible (1992: 49).
As semelhanças desta preocupação com a situação em Moçambique após a independência são evidentes.
Note-se a propósito na “curiosidade” de no número anteriormente referido da revista Estudos
Moçambicanos, dedicada a Eduardo Mondlane, surgir um artigo de Herbert Shore, mas de 1983 (anterior
portanto a este aqui citado de 1992 e à queda do muro de Berlim), onde não consta este tipo de
preocupação. Tendo presente a realidade da cultura frelimista e o ambiente de autocensura que caracteriza
a elite cultural moçambicana, a opção pelo artigo de 1983 não foi inocente.
Eduardo viveu até aos dez anos (1930) completamente inserido na cultura tradicional e afastado de
qualquer contato com a Cultura Portuguesa, isto é, com a cultura moderna. Em Chitlango, Filho de Chefe
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conta como foi o seu primeiro contacto com um mulungo, um comerciante indiano que visitou a sua aldeia
montado num burro (KHAMBANE, 1990[1946]:38). No seu imaginário os mulungos eram homens diferentes
dos negros, sendo uns amarelos, outros cor-de-rosa e outros brancos. A partir daí começou o seu caminho
de descoberta do mundo dos brancos que a sua mãe lhe descrevia como grandes feiticeiros. O que motivou
Eduardo Mondlane a começar a estudar aos 12 anos, conforme mais tarde recordou, foi precisamente a
vontade de desvendar a “feitiçaria do homem branco”:
O meu interesse real no tipo de educação ocidental foi estimulado pela minha mãe que insistia em que eu fosse
para a escola para compreender a feitiçaria do homem branco, para assim poder lutar contra ele. A minha mãe
disse-me isto tantas vezes que, apesar de ela ter morrido quando eu tinha apenas 13 anos, posso ainda ouvir a
sua voz repercutindo nos meus ouvidos (REIS & MUIUANE, 1975:113).
Esta antiguidade da sua "convicção nacionalista" (“para assim poder lutar contra ele”) parece contudo
encontrar-se de certo modo inflacionada pelo facto de ter produzido o testemunho já no contexto da luta
armada da FRELIMO e não corresponder ao seu percurso político; o mesmo podemos verificar na mesma
altura relativamente à sua alegada participação ativa (que não ocorreu) no grupo nacionalista da Casa dos
Estudantes do Império. (GRAÇA, 2000:273-275)
Na verdade, não encontramos até ao começo dos anos 60, da sua parte, na série de fontes disponíveis,
qualquer tipo de discurso nacionalista. Pelo contrário, encontramos até opiniões positivas relativamente a
Portugal, como pode ser observado no seu artigo intitulado Mozambique publicado em 1955 numa obra
multidisciplinar da Universidade de Chicago, onde colaboraram também figuras de relevo como Lord Hailey,
Georges Balandier, Melville Herskovits e Hans Morgenthau; aí, a propósito da recente “transformação” das
colónias em províncias ultramarinas, afirmava o seguinte:
Portugal, like all other colonial powers, desires to maintain its sovereignty over these territories without having
to answer questions raised by such organizations as the United Nations. By this I do not mean that, when the
new amendment of the constitution was made, its authors deliberately wanted to avoid embarrasing
questions. It is rather that the point is pertinent when viewed against the perspective of world politics. After all,
the French Union or the overseas territories of the United States are conceived in more or less the same spirit
(MONDLANE, 1955: 235).
E embora objetivamente crítico das falhas do sistema de educação relativamente à modernização e
promoção dos “nativos”, o elogio de Mondlane ao sistema de saúde é vigoroso:
The Portuguese government has done everything within its power to eliminate disease in Mozambique. The
health department of our government in Mozambique is one of the most forward-looking and most successful
in Africa. These last ten years have seen a tremendous expansion of the health services to reach most parts of
Mozambique. There are nurses’ training centers in all the important cities in Mozambique. Scattered over the
territory are dispensaries and maternities staffed with well-trained nurses. The Portuguese doctor is one of the
best friends one would like to have by one’s bedside during sickness. The government has made it easy for a
number of privately owned hospitals to take care of the natives, mainly in those areas the government has not
been able to reach. Practically all these hospitals are maintained by missionary bodies, both Roman Catholic
and Protestant (IDEM: 242).
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Eduardo Mondlane continua nesta perspectiva compreensiva da situação colonial em Moçambique até
ao fim do seu artigo, recorrendo mesmo à recordação de que tendo vivido na Europa durante um ano – o
que aconteceu concretamente em Portugal, no ano lectivo de 1950-51, para frequentar a Universidade
de Lisboa – “found no color line” (IDEM: 244); queria assim enfatizar o perigo de que o racismo se
alastrasse em África, e concretamente em Moçambique:
Although the Portuguese government is against discrimination on grounds of race and religion, one often finds
it in hotels, restaurants, theaters, and boarding houses in Mozambique. This phenomenon is aggravated by
contact with the Union of South Africa and the Rhodesias, where discrimination is even legalized (IBIDEM).
Isto levava-o a formular um conjunto de questões que considerava fundamentais para o futuro de
Moçambique: o grau de influência que este tipo de discriminação poderia continuar a exercer e se se
agravaria com o aumento da vinda de colonos por via do desenvolvimento económico; em que medida é
que os imigrantes moçambicanos na África do Sul assimilariam o sentimento de “ódio ao branco” aí
característico ao ponto de deixarem de se identificar com os portugueses enquanto cidadãos do mesmo
país; e se os africanos de um modo geral, pensando em termos continentais, teriam no futuro uma
atitude de apreciação ou de ressentimento relativamente à acção de Portugal quanto ao
desenvolvimento de oportunidades para os africanos sob a sua dependência. Eduardo Mondlane concluía
assim:
The answers to all these questions will depend upon how the high ideals of the Portuguese government are
implemented by the European Portuguese working in harmony with the indigenous peoples in such a way that
Africans will feel that their cultural values are appreciated and that nothing stands in the way of the
advancement of the African peoples (IBIDEM).
Não está presente aqui, nem mesmo implicitamente, qualquer discurso nacionalista. As questões inserem-se
na linha daquelas que eram as principais preocupações de Eduardo Mondlane durante o seu percurso
académico – na verdade o seu principal projeto pessoal desde o ensino secundário - e que tinham a ver,
conforme se encontra abundantemente documentado, com o processo de mudança cultural da matriz
tradicional africana.
Este percurso levá-lo-ia à perspectiva teórica geral da Psicologia Social durante os seus estudos
universitários. Como o próprio escreveu num formulário de candidatura a uma bolsa de estudo para o ano
letivo de 1954-55, o seu interesse estava focado nos “Social–Cultural Aspects of Personality” (GRAÇA,
2000:318). Com efeito, Mondlane tinha já concluído o bacharelato e encontrava-se no processo do
mestrado, o que para ele próprio constituía uma enorme mudança desde que partira de Moçambique há
cerca de cinco anos. Por outro lado, vivia nos Estados Unidos numa época em que a segregação racial era
ainda muito intensa e estava presente no seu quotidiano, não só pelo facto de ser um dos apenas cinco ou
seis negros que frequentavam a Northwestern University mas sobretudo pelos obstáculos que enfrentava,
muito fortes aliás, no namoro com Janet, de 20 anos de idade (14 anos mais nova que ele), oriunda da classe
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média, obstáculos esses que encontrou no âmbito familiar e universitário e, ao que tudo indica para sua
grande surpresa, no seio da Igreja Metodista com o apoio da qual julgava poder contar (GRAÇA, 2000:
passim).
É pois nesse contexto, no ano lectivo de 1955-56, que termina a sua tese de mestrado intitulada
Ethnocentrism and the Social Definition of Race as In-Group Determinants. África não está aí explícita mas a
sua investigação girou em torno do conceito de atitude social e da dinâmica das percepções etnocêntricas
numa situação, diríamos hoje, de relações multiculturais. Se olharmos para o seu percurso desde a
adolescência, vemos que existe uma relação direta com os métodos de dinâmicas de grupo que aprendeu e
passou a ensinar no final da adolescência aos mais jovens na missão Suíça; por outro lado vemos que esta
linha de investigação no campo da Psicologia Social poderia ser extrapolada para a diversidade sociocultural
moçambicana. Podemos por isso considerar que também existe uma relação com o futuro processo de
formação da FRELIMO, mas não podemos afirmar que essa ideia estivesse já formada ou mesmo esboçada
no seu pensamento.
Em 1957, no auge das dificuldades que enfrenta por causa do seu casamento com Janet, Eduardo Mondlane
colabora numa outra obra multidisciplinar, sobre o anticolonialismo, desta vez em Portugal no quadro do
Centro de Estudos Políticos e Sociais dirigido por Adriano Moreira, onde analisa a posição nitidamente
ambígua do anticolonialismo americano. No mesmo ano publica também um pequeno ensaio sobre a
religião tradicional africana, partindo da sua própria experiência, onde é manifesto o seu realismo e
compreensão relativamente aos condicionalismos da cultura tradicional:
I have witnessed many religious ceremonies where spirit-possession was involved. While I realize the
phenomenon involves complex psychological factors, I find it difficult to doubt the sincerity of most witchdoctors whom I have watched closely.
Ainda em 1957, Eduardo Mondlane foi contratado como Assistant Social Research Officer da Trusteeship
Division da ONU, o qual no entanto não o satisfazia inteiramente, como recordaria mais tarde Janet
Mondlane, o que parece explicar o facto de na mesma altura se ter candidatado a um lugar de Professor na
Universidade do Gana, que não conseguiu obter (GRAÇA, 2000:286). Na verdade, a sua grande ambição era,
há já algum tempo, de ser professor universitário. Todavia, o seu trabalho na ONU pô-lo em contacto com a
problemática do nacionalismo africano ao longo dos anos de 1958 e 1959, e conheceu Julius Nyerere que lhe
prometeu apoio, depois da independência da Tanzania, para criar um movimento para a independência de
Moçambique. É pois possível afirmar que a partir dessa altura Mondlane começou a reflectir na possibilidade
de se transformar num nacionalista africano, mas o facto é que não decidiu então de imediato que esse seria
o seu caminho. Para além de ter como principal objectivo ser professor universitário, como aliás mais tarde
reconheceu já depois de formada a FRELIMO, nos Estados Unidos encontrava-se algo distante do resto dos
moçambicanos que se preocupavam com essas questões, como Marcelino dos Santos que vivia na Europa e
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tinha um enquadramento político-ideológico muito diferente do seu, ou como José Craveirinha que vivia em
Moçambique, aonde Mondlane não voltara desde 1950.
A sua tese de doutoramento, concluída em Abril de 1960, não reflectia assim qualquer preocupação
nacionalista concreta ou relativa a Moçambique. Intitulada Role Conflict, Reference Group and Race, era um
trabalho no campo da Sociologia mas com um enfoque particular da Psicologia Social que dava continuidade
e de certo modo reformulava a sua tese de mestrado. Girava mais uma vez em torno do conceito de atitude
social e do problema das percepções etnocêntricas na dinâmica dos grupos, com base numa amostra de 685
estudantes, brancos e negros, inquiridos por correspondência em onze universidades repartidas pelo Norte
e Sul dos Estados Unidos. A situação hipotética era a seguinte: um exame universitário de estudantes negros
e brancos no qual são detectadas irregularidades (vulgo copiar) por um vigilante negro e por um vigilante
branco, tanto no contexto das universidades do Norte como no das do Sul. De facto os problemas africanos
não são aqui minimamente tratados, mas não é possível deixar de relacionar o seu conteúdo com as
dificuldades que encontrou daí a dois anos na criação da FRELIMO e na gestão dos conflitos internos
interétnicos e político-ideológicos nos sete anos seguintes até à sua morte. Por outro lado é revelador
observar que a abordagem geral da investigação de Mondlane se situa também no campo da ambivalência
sociológica definida por Robert Merton, considerando este que “a teoria do grupo de referência tratou da
ambivalência de pessoas que aceitam alguns valores assumidos por grupos dos quais não são membros.”
(MERTON,1979: 26)
Na sua viagem em Fevereiro 1961, após 11 anos de ausência, Eduardo Mondlane não se coibiu de elogiar,
perante o Governador de Gaza, a característica multirracial da Cultura Portuguesa e os progressos que
observava desde que deixara Moçambique (GRAÇA, 2000:343-346). Todavia, logo após essa viagem, e face à
proximidade da independência da Tanzania (Dezembro de 1961), assume-se abertamente como nacionalista
moçambicano, participando no 4.º Congresso da African Studies Association em Outubro 1961 com uma
crítica vigorosa à colonização portuguesa, contrária a tudo o que elogiara anteriormente. No entanto,
Eduardo Mondlane manteve a sua posição não marxista, conforme pode ser observado numa carta que
envia a André Clerc em Novembro de 1961, na qual lhe dava conhecimento do apoio que estava a prestar a
uma série de estudantes universitários que tinham saído de Portugal, mostrando-se preocupado porque
“some of them tend to be too extremely left in their view of the political situation in Portuguese Africa.”
(IDEM:348)
Com efeito, podemos afirmar que na acção de Mondlane a partir da formação da FRELIMO e até à sua
morte, em 3 de Fevereiro de 1969, a ambivalência sociológica e cultural é uma característica presente de
forma marcada. De facto, Mondlane prezava muito a sua origem tradicional. Veja-se por exemplo o perfil
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autobiográfico, originalmente em Shangana, que traçou em 1961 aquando da sua viagem Moçambique, a
pedido de um pastor protestante africano, onde expõe a antiguidade da sua genealogia, indicador de um
elevado estatuto social tradicional:
Sou Chivambo, filho de Nwadjahane – também conhecido por Mussengane – Mussegane filho de Magulane,
Magulane filho de Machecaomu, Machecaomu filho de Mbingwani, Mbingwani filho de Khambani, Khambani
filho de Dzowo (ou Dzovo), Dzovo filho de Kuhlambeni, Kuhlambeni filho de Nkome, Nkome filho de Mondlane,
sendo Mondlane por sua vez da linhagem dos Nwanati (REIS & MUIUANE, 1975:13).
Por outro lado, condenava ao mesmo tempo o “tribalismo” no processo de formação da FRELIMO e da luta
armada, e possuía ideias muito concretas sobre o enquadramento que deveria ser dado aos grupos étnicos
moçambicanos, como pode ser observado num texto seu datado de 1967, onde enuncia os que considera
principais (Nyanja, Makwa, Yao, Makonde, Sena, Shona e Tsonga) minimizando as diferenças, ou melhor,
postulando a semelhança dos “usos e costumes” derivada da origem comum Bantu, partindo do conceito de
povo (IDEM: 74). Na verdade, analisava o caso moçambicano numa perspectiva político-ideológica, a partir
do conceito de personalidade africana então em voga nos países africanos anglófonos, como a Tanzania, e
tal perspectiva não deixou mais de se reforçar no seio da FRELIMO, constituindo assim um dos principais
fundamentos da cultura frelimista. O "mito" da reconstrução nacional estava firmado:
Não nos parece exagerado afirmar que se o colonialismo não tivesse imposto uma separação geográfica
forçada o processo natural de assimilação social e cultural que se operava em toda a África Austral teria
determinado que, depois de alguns séculos, as diferentes etnias se tivessem fundido numa só gente (IDEM:76).
Esta era no entanto a base da principal contradição da FRELIMO relativamente à realidade social tradicional
em que passou a operar, porquanto invocava como referência histórica um conjunto de conflitos entre
portugueses e chefes tribais, dos quais o principal exemplo apontado passou a ser Gungunhana,
precisamente oriundo da área Shangana. Ao mesmo tempo que se condenava as divisões do passado que
tinham impedido a resistência forte e unida do povo contra os portugueses, essa contradição era iludida, tal
como viria a acontecer na política cultural da FRELIMO após a independência, com a valorização do que se
designava como elementos positivos:
Os elementos positivos da nossa vida cultural, tais como as nossas formas de expressão linguística, as nossas
músicas e danças típicas, as peculiaridades regionais de nascer, crescer, amar e morrer, continuarão depois da
independência para florir e embelezar a vida da nossa Nação. Não há antagonismo entre as realidades da
existência de vários grupos étnicos e a Unidade Nacional. Nós lutamos juntos, e juntos reconstruimos e
recriamos o nosso país, produzindo uma nova realidade - um Novo Moçambique, Unido e Livre (IDEM:79).
Numa entrevista concedida uma semana antes do seu assassinato, Eduardo Mondlane desenvolvia assim
mais uma vez uma análise enviesada da realidade social tradicional, agora intensamente embrenhado no seu
projecto político:
A estrutura política tradicional foi de facto destruída pelos portugueses (...) não existe uma estrutura política
tradicional, a não ser o sistema de autoridade que reflecte o sistema administrativo que os portugueses
perpetuaram (...) existia de facto um sistema de autoridade, e algumas pessoas ainda respeitam o dirigente
tribal. Mas estes dirigentes tribais, os que detinham influência real ou espiritual, foram sacrificados pela
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vontade dos portugueses de destruírem a tradição e de criarem uma nova administração portuguesa
(BRAGANÇA & WALLERSTEIN, 1978: II, 199).
Estava assim firmada uma orientação de ruptura (que aliás fora formalmente definida na sessão do Comité
Central de Outubro de 1966) seguida nos 25 anos seguintes, até ao final da guerra civil em 1992, entre a elite
moderna e as elites tradicionais, bem patente na seguinte explicação, produzida na mesma ocasião da
anterior (e reiterada no seu livro Lutar por Moçambique, postumamente publicado):
O que acontece em cada região onde estamos a combater é que qualquer chefe que seja contra a luta de
libertação é afastado antes da acção militar se iniciar. Mas assim que a acção militar começa, ou se passa para
o inimigo, ou é eliminado. Só os chefes que se tornam parte da FRELIMO, o que significa tornarem-se
presidentes ou secretários de células, secções, distritos ou províncias do nosso trabalho, podem manter-se
como tal. E nessa altura são exactamente iguais a qualquer um de nós (IDEM: 198-199).
É imediato o nexo com a situação de ruptura sociocultural descrita e analisada por Christian Geffray nos
anos 80 em A Causa das Armas. A orientação de Eduardo Mondlane, não obstante os seus conhecimentos de
Psicologia Social, e a ambivalência cultural que o caracterizava, passara a ser ambígua e contraditória,
negativa; mas compreensível no quadro do projecto político que agora o movia. Qualquer revisitação do
pensamento e da acção de Eduardo Mondlane confronta-se inevitavelmente com esta ambiguidade, e só se
poderá especular que, caso tivesse vivido, o seu “lado positivo” poderia sobressair após a independência, se
tivesse seguido a linha que manifestou ao seu amigo Herbert Shore poucos dias antes de morrer: “there is
no short cut to transforming the systems of society”.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS NO TEXTO
BRAGANÇA, Aquino & WALLERSTEIN, Immanuel (org). 1978. Quem é o Inimigo? Lisboa. Iniciativas Editoriais
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GRAÇA, Pedro Borges. 2000. “O Projecto de Eduardo Mondlane”. Estratégia. Vol. XII: 259-354.
KHAMBANE, Chitlango & CLERC, André-Daniel. 1990 [1946]. Chitlango, Filho de Chefe. Maputo. Cadernos
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Graduate School in Partial Fulfillment of the Requirements for the degree Doctor of Philosophy, Field
of Sociology). Evanston/Illinois. Northwestern University.
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