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Cadernos de Psicanálise – SPCRJ
SOLIDÃO
1
SPCRJ - Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro
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Cadernos de Psicanálise / Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de janeiro v. 1, n.1 (1982). - Rio de Janeiro: A Sociedade. 1982 v. 23, n. 26, 2007
Anual
O título não foi editado em: 1989, 1993 e 1997
ISSN 0103-4251
1. Psicanálise - Periódicos. I. Sociedade de Psicanálise do Rio de Janeiro
CDD 159.964.2 (05)
Biblioteca: Carmem Moretzsohn Rocha CRB - 7/1008
Indexada nas bases de dados:
* LILACS: Literatura Latino Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (BIREME)
* INDEX Psi Periódicos (BVS-Psi) - www.bvs-psi.org.br
* Psyc INF: American Psychological Association
Avaliação CAPES/ ANPEPP 2004-2005: Nacional A - 88
DISPONÍVEL NAS BIBLIOTECAS DA REDE DE BIBLIOTECAS NA ÁREA DE
PSICOLOGIA - REBAP:
2
Cadernos de Psicanálise – SPCRJ
Sociedade de Pisicanálise da Cidade do Rio de Janeiro
v. 23 n. 26 2007
ISSN 0103-4251
Cad. Psicanál.- SPCRJ
Rio de Janeiro
v. 23
n. 26
2007
3
Comissão Editorial
Carla Pepe Ribeiro de Souza, Eliane Segabinazi Moreira, José Francisco da Gama e Silva,
Maria Cecília Figueiró Silveira, Maria Helena Lara de Vasconcellos,
Norma de Miranda Alonso, Suely Figueiredo Marques
Editora-Responsável
Maria Helena Lara de Vasconcellos
Conselho Consultivo
Alfredo Naffah Neto
Psicanalista; Prof. do Programa de
Estudos Pós-Graduados em Psicologia
Clínica/PUC-SP
Jeferson Machado Pinto
Psicanalista; Prof. do Depto. de Psicologia/
UFMG; Prof. dos Programas de Pós-Grad. em Psicologia e Filosofia/UFMG
Ana Maria Rudge
Psicanalista/SPID; Profa. Graduação e
Pós-Grad. do Depto. de Psicologia/
PUC-Rio;
Pesquisadora CNPq e Membro da Assoc.
Univ. de Pesq. em Psicopatol. Fundamental
Julio Verztman
Psicanalista; Psiquiatra/IPUB-UFRJ; Prof.
Programa de Pós-Grad. em Psiquiatria e
Saúde Mental (PROPSAM-IPUB-UFRJ);
Coord. do Núcleo de Estudos em Psicanal.
Clínica da Contemporaneidade (NEPECC).
Bernardo Tanis
Psicanalista; Doutor em Psicol.
Clínica//PUC-SP;
Membro da SBPSP e dos Deptos.
de Psicanálise e Psicanálise da Criança
do Inst. Sedes Sapientiae; Diretor de
Comunidade e Cultura da FEPAL
Karla Patrícia Holanda Martins
Psicanalista; Doutora em Teoria
Psicanalítica/UFRJ
Prof. Titular /UNIFOR-Ceará
Daniel Kupermann
Psicanalista; Mestre em Psicologia Cínica/
/PUC-Rio; Doutor em Teoria Psicanalítica/
/UFRJ; Prof. do Depto. de Psicologia Clínica/USP
David Epelbaum Zimerman
Médico Psiquiatra; Membro Efetivo e Psicanalista
Didata/SPPA; Psicoterapeuta de grupo.
Ex-presidente da Soc. de Psiquiatria/RS
Esther Perelberg Kullock
Psicanalista; Membro Titular e Supervisora/SPCRJ
4
Maria Silvia G. Fernández Hanna
Psicanalista; Doutora em Teoria
Psicanalítica/UFRJ;
Membro Aderente/EBP-RJ
Neyza Prochet
Psicanalista; Membro Efetivo/CPRJ;
Doutora em Psicologia Clínica/USP-SP.
Rachel Sztajnberg
Psicanalista; Membro Efetivo e Supervisora/
SPCRJ
Regina Helena Landim
Psicanalista; Membro Aderente e
Supervisora/SPCRJ
Conselho Diretor - Gestão 2006-2008
Presidente
Suely Figueiredo Marques
Vice Presidente
Paulo César Nogueira Junqueira
Secretária Administrativa
Cristiane Dib El-Khouri
Secretário de Finanças
Marcia Souza Leal de Meirelles
Secretária de Divulgação
Denise Obraczka
Diretora Técnica
Rachel Sztajnberg
Vice Diretora Técnica
Regina Helena Landim
Coordenadora da Comissão Científica e de Ensino (CCE)
Neda Maria Braga de Matos
Coordenadora da Comissão de Admissão e Acompanhamento
(CAA)
Ana Cristina Moreira de Sousa Pinna
Coordenador da Comissão de Publicação e Biblioteca
Maria Helena Lara de Vasconcellos
Coordenadora da Comissão Ética
Francis Kiperman
Diretora Clínica
Lindinaura Canosa
Vice Diretora Clínica
5
6
SUMÁRIO
Editorial,15
Tema em debate - SOLIDÃO
Caminhos e descaminhos da solidão, 19-34
Núcleo de Piera Aulagnier – SPCRJ
Trate-me como um cachorro, 35-51
Elisa Maria de Ulhôa Cintra
Don Juan e o engano da lista, 53-67
Luiz Alberto Pinheiro de Freitas
Os novos modelos da consciência, 69-90
Ronaldo Lima Lins
Entrevista
Adélia Prado, 91-97
Comissão Editorial
Artigos
Pequeno ensaio metapsicológico sobre a solidão e suas
implicações, 99-118
Alexandre Abranches Jordão
Amarás a teu próximo como a ti esmo: amor ou gozo?, 1197
142
Cristia Rosineiri Gonçalves Lopes Correa
A constituição das fronteiras psíquicas e as fundações do
símbolo, 143-161
Cristiana Regina Ferreira de Aguiar Ponde
Dor e esperança: duas faces da solidão, 163-180
Issa Damous
Em nome da solidão: a capacidade de estar só como forma
de amadurecimento de si, 181-194
Karla Patrícia Holanda Martins e Maria Regina Maciel
Quem conta um conto promove um encontro, 195-214
Neysa Prochet
A solidão na obra de Edward Hopper, 215-231
Renata Mattos de Azevedo
Dominação e crueldade: articulações e distinções, 233-257
Suelena Werneck Pereira
Resenhas
Os circuitos da solidão, 259-268
Bernardo Tanis
Eliane Segabinazi Moreira
Elas não sabem o que dizem. Virginia Woolf, as mulheres
8
e a psicanálise, 269-273
Maud Mannoni
Carla Pepe de Souza
Somos todos desatentos? O TDA/H e a construção de
bioidentidades, 275-279
Rossano Cabral Lima
Maria Helena Lara de Vasconcellos
Normas para o envio de artigos, 281-286
9
10
SUMMARY
Editorial,15
Subject on debate - SOLITUDE
The pleasures and pains of loneliness, 19-34
Núcleo de Piera Aulagnier – SPCRJ
Treat me like a dog. Or as soon as possible, 35-51
Elisa Maria de Ulhôa Cintra
Don Juan and de list misinformation, 53-67
Luiz Alberto Pinheiro de Freitas
New models of consciousness, 69-90
Ronaldo Lima Lins
Interview
Adélia Prado, 91-97
Comissão Editorial
Papers
Short metapsychological essay on loneliness and its
implications, 99-118
Alexandre Abranches Jordão
Thou shalt love thy neighbour as thyself: love or
11
jouissance?, 119-142
Cristia Rosineiri Gonçalves Lopes Correa
The construction of psychic frontiers and the
foundations of the symbol, 143-161
Cristiana Regina Ferreira de Aguiar Ponde
Pain and hope: two faces of lonelyness, 163-180
Issa Damous
In the name of solitude: de capacity of being alone as a
way of growing up, 181-194
Karla Patrícia Holanda Martins e Maria Regina Maciel
Psychoanalisis and storytelling: a shared experience in
search of one’s own history, 195-214
Neysa Prochet
Solitude in the work of Edward Hopper – Considerations on
subjectivity and emptiness in the light of psychoanalysis,
215-231
Renata Mattos de Azevedo
Instinct to master and cruelty: articulations and distinctions,
233-257
Suelena Werneck Pereira
Book reviews
12
The ways of solitude: between clinical treatment and
culture, 259-268
Bernardo Tanis
Eliane Segabinazi Moreira
They do not know what they say. Virginia Woolf, women
and psychoanaysis, 269-273
Maud Mannoni
Carla Pepe de Souza
Are we all unattentive? TDA/H and the constitution of
bioidentities, 275-279
Rossano Cabral Lima
Maria Helena Lara de Vasconcellos
Rules for submission of papers, 281-286
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Editorial
Cadernos de Psicanálise – SPCRJ pretende sempre se
constituir como um chamado, uma convocação amigável para o
Debate, a troca entre os saberes, o compartilhar de reflexões que
nos levem a buscar novos olhares nos caminhos já percorridos.
‘Psicanálise’ com maiúscula mesmo, como uma “entidade”
para além das conjecturas e dos princípios abstratos, que se
personifique no encontro da sessão analítica, como o terceiro que
se cria para mobilizar e dar voz à construção co-narrativa que se
desenvolve na sala de análise: esse entre-lugar entre o imaginário
e a realidade onde se pretende que o paciente-analisando, perante
o olhar ativo e fiador do paciente-analista, caminhe, com relativa
segurança, ao encontro do si-mesmo. O sujeito que somente ele
pode ser.
A escolha temática para o Debate deste volume, de 2007,
embora aponte para o singular do sujeito em seu estado de
Solidão, ao mesmo tempo chama para o aspecto plural da
questão: solidão ou solidões?
Nossos debatedores, entre a psicanálise e a literatura – essa via
magna de narrativizar as relações humanas - abrem caminhos para
este convite à visitação das solidões. A solidão desamparada do bebê
desde o nascimento, em busca da re-unicidade perdida com o outroprotetor; o triunfo maníaco e solitário do Don Juan descartando
onipotentemente em sua propalada lista de mulheres a angústia
do corte narcísico irreparável; a separatividade necessária ao ser
que, sem prescindir da presença constituinte do outro, reivindica
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poder estar como só em companhia para estar consigo mesmo; a
voz solitária do intelectual pós-moderno que, individualizando-se pela
via do pensar, na ausência do ouvinte disponível angustia-se ao risco
iminente de perder-se falando ao vazio.
Portas abertas ao diálogo, percorremos em companhia
de nossos articulistas e dos autores resenhados por algumas das
tantas maneiras de estar só – manifestas ou oclusas, temidas ou
buscadas; angústia para uns, para outros, refúgio; ou mesmo
a condição última do contato com o Ser dentro do indivíduo.
Solidões angustiadas de não se encontrar o si mesmo no desvario
acelerado da contemporaneidade quando a estabilidade dos
contornos sócio-culturais têm uma plasticidade caleidoscópica.
Solidões constituintes como recurso imperativo de preservação
do self invadido quer pelas exigências pulsionais quer pelas
sociais, impondo o ritmo cibernético das economias voláteis e
das identidades digitais.
Outros artigos ou livros resenhados, embora não diretamente
atrelados ao tema da Solidão, nos remetem a questões da atualidade
cujas contribuições certamente poderão subsidiar a discussão e as
tentativas de compreensão das solidões – as de sempre e aquelas
do agora – do analista, e do analisando.
A edição de mais este volume dos Cadernos de Psicanálise
– SPCRJ é produto solidário da SPCRJ, através de sua Comissão
Editorial e acompanhada pelos colaboradores de seu Conselho
Consultivo, para manter e mobilizar o diálogo analítico, em seu
esforço permanente de promover novas trilhas de articulação
entre a teoria, a técnica e a clínica, no intuito de que os sentidos,
revisados, mantenham vivo e atual o exercício da Psicanálise.
Carla Pepe Ribeiro de Souza
Eliane Segabinazi Moreira
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Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 15-16, 2007
Tema em debate – SOLIDÃO
Caminhos e descaminhos da solidão
Núcleo de Piera Aulagnier – SPCRJ
Trate-me como um cachorro
Elisa Maria de Ulhôa Cintra
Don Juan e o engano da lista
Luiz Alberto Pinheiro de Freitas
Os novos modelos da consciência
Ronaldo Lima Lins
Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 17-34, 2007
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Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 17-34, 2007
artigo
Caminhos e descaminhos da solidão
The pleasures and pains of loneliness
Núcleo Piera Aulagnier / SPCRJ
Resumo
Este trabalho aborda a constituição do sujeito perpassada
pela solidão. Tem como referências teóricas Freud, Lacan
e as contribuições de Piera Aulagnier. Pensa a solidão como
um sentimento que acompanha a angústia do nascimento,
levando o sujeito a buscar sempre a unidade perdida. Aponta
para os caminhos e descaminhos que o sujeito pode tomar
para administrá-la. A criatividade, a produção de obras de
arte e a literatura numa relação saudável com o outro, ou em
contrapartida, a droga, a paixão, a loucura e a morte.
Palavras chave: solidão, angústia.
* Maria Pompea Ferreira Carneiro (Coordenadora do Núcleo; Membro Titular e
Supervisora/SPCRJ), Francis Kiperman (Membro Efetivo/SPCRJ), Helena Maria
Roquette Pinto (Psicanalista/SPCRJ), Henriette Sigres (Psicanalista/SPCRJ), Herminia
Couceiro Marins (Membro Efetivo /SPCRJ), Maria da Conceição da Silva Garcia das
Neves (Membro Efetivo/SPCRJ), Maria Dalva da Silva Ramos de Oliveira (Membro
Efetivo/SPCRJ), Maria Regina Miranda Ewald (Membro Efetivo/SPCRJ), Paulete
Frajhof (Psicanalista), Vânia Maria da Costa Jovine (Membro Associado/SPCRJ), Vera
Maria Podcameni (Psicanalista), Vitória Carvalho Magalhães (Psicanalista/ SPCRJ),
Wanda Pinho (Psicóloga Clínica com formação psicanalítica/SPCRJ).
Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 17-34, 2007
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alimento que já não é instantâneo, pelo aconchego de um corpo
que o ampare, por um afeto que lhe garanta a energia necessária
para prosseguir essa luta pela vida que se inicia. O grito inaugural
é um grito de vida e de dor. Dor da castração, dor da solidão.
Seus recursos são parcos: apenas um pequenino corpo desamparado com um equipamento sensorial. Através dele, capta
os estímulos do mundo que o cerca: a luz, o calor, os cheiros, os
sons. Uma voz revestida de afeto que penetre em seus ouvidos
lhe sugere uma ponte. Talvez a ponte para reencontrar a unidade
perdida. Na experiência da primeira mamada, boca unida ao seio
como um prolongamento dos corpos, a ilusão de novamente ser
Um. Mas jamais como antes. O bebê tem que sugar para sorver o
alimento que o seio lhe oferece. Sua vida agora, apesar da extrema dependência, lhe fará exigências para ser mantida. Descobre
nesta atividade um algo que dependerá apenas dele. Nunca mais
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Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 17-34, 2007
Abstract
This work aims at discussing how the subject constitution is
affected by loneliness. The theoretical references come from
the works of Freud and Lacan, as well as contributions from
Piera Aulagnier’s. The discussion refers to loneliness as a
feeling comencing with childbirth, the anguish that impels
the individual to continuously seek for the “lost oneness”
and the pleasures and pains of the individual according to
his maneuvers to manage it. Creativity, art and literature
production can take place upon healthy relationships;
otherwise, drug abuse, passion, insanity or death might be
the outcome.
Keywords: loneliness, anguish.
debate
Caminhos e descaminhos da solidão.
The pleasures and pains of loneliness
Núcleo Piera Aulagnier / SPCRJ
Não importa qual seja o cenário. Uma choupana, um vão de
ponte, ou uma sala com a mais requintada tecnologia.
O momento inaugural da vida de um ser humano é marcado
por uma cratera, de onde emanará um sentimento que o acompanhará por toda a sua existência: o sentimento da solidão.
Expulso do ventre materno que lhe proporcionava as condições de vida sem esforço, encontra-se só, tendo que lutar pela
sobrevivência. Precisa buscar o ar para seus pulmões, clama pelo
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Núcleo Piera Aulagnier
Uma voz penetrando em seus ouvidos aponta para uma via
de acesso ao outro. Via que vai tornando-se cada vez mais preciosa.
Quanto mais avança e penetra no universo da linguagem, mais se
utiliza dela. São as raízes da comunicação pela linguagem. Via repleta de emaranhados e de riscos. Mas é através dela que o sujeito
humano se insere no seu grupo social, sentindo-se integrado nele.
O discurso do porta-voz, atuando no inicio da vida como
uma prótese, interpretando o mundo para ele, e ele para o mundo,
contém para a criança postulados plenos de certezas. Seu processo identificatório é no início amparado neste discurso inaugural.
Sendo falado pelo outro, não possuindo ainda uma fala própria,
nada duvida, nada questiona.
Mas a dura realidade, sempre o colocando à prova, vem
mostrando que assim, nesta dependência absoluta, não alcançará
sua existência. É preciso lutar sempre, e a luta é sem trégua. Assim
nos diz a Canção do Tamoio (Natalícia)1
“Não chores, meu filho;
Não chores que a vida
É luta renhida:
Viver é lutar.
A vida é combate,
Que os fracos abate,
Que os fortes, os bravos,
Só pode exaltar”.
Mas não luta em vão, pois das batalhas ganhas surgem novas
conquistas, ampliando seu universo psíquico.
A emergência de um Eu que já vinha se esboçando traz
consigo um novo recurso: a capacidade de produzir pensamentos.
Já existe algo nele que não vem do outro, e que ele produz
na intimidade de sua solidão. Pode usá-lo como quiser. Com
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Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 17-34, 2007
debate
será como antes.
A esses primeiros encontros de corpos, que quando bem
integrados oferecem uma satisfação quase plena, seguem-se novas
separações, e de novo o bebê estará só. Mas, sentidos em alerta, ele
tudo capta. Tudo capta e tudo registra. É correto em seus registros,
impressos em seu corpo. O teor dos afetos que acompanha o seio
que o envolve, o sentimento contido na voz que o acalanta. Amor,
ódio, inquietação e paz. A voz transmite, o gesto transmite, o olhar
transmite. E o bebê capta e registra. Se em seu registro o saldo é
positivo, se as marcas são mais de prazer do que de dor, percebe
que ao estar só pode evocá-las, inventá-las ou auto engendrá-las.
Tornando seu mundo mais povoado de boas experiências, não se
sente tão só.
Seu pequenino corpo vai se tornando uma imensa biblioteca
arcaica, como os pictogramas impressos em pedra, onde ele, apenas ele, terá acesso a seu tesouro particular. Estas marcas gravadas
podem ser despertas pelas mais sutis sensações, e o conduzirão ao
seu mundo mais profundo. São marcas que darão um significado
à sua linguagem. São também elas que pontilharão o mapa de
seu corpo erógeno. A partir delas, as fantasias que povoam nosso
imaginário se constituem. Elas serão o seu núcleo.
Mais tarde, ouvirá ou lerá de seus semelhantes muitas e
muitas histórias. Mas, de sua própria história, apenas ele será o
narrador ou o escritor autêntico, pois os subsídios que lhe darão
autenticidade serão retirados de sua biblioteca arcaica. Dos outros
ouvirá trechos de sua pré-história e antecipações de seu futuro
forjado no desejo dos pais. Mais tarde, se vencer a luta e se tornar
um sujeito autônomo, fará suas retificações no texto, adquirindo
a própria escrita.
O desejo de restaurar a unidade perdida nunca cessa. Sua
busca contínua vai acompanhá-lo em toda sua trajetória pela vida.
1
DIAS, 1851.
Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 17-34, 2007
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Núcleo Piera Aulagnier
algo perdido e que, em contrapartida, lhe acena para uma porta
libertadora. É a fonte de onde emanará a produção dos objetos
que povoarão seu mundo secreto: o brincar só, o encantamento
da boneca e do carrinho são fontes de prazer que fortificarão sua
caminhada pela autonomia.
Quantas crianças saudáveis costumam fechar a porta do
quarto nestes momentos. Basta saber que existe alguém por perto
e que não estão abandonadas nem desamparadas. Este brincar
sozinho, tão rico em suas produções, é o que aduba o solo em
que mais tarde brotarão os devaneios do adulto, o nosso sonhar
acordado sabendo que é sonho, e aqueles que têm o talento da
arte e da escrita lá encontrarão subsídios para suas obras. Solo
que pode tornar-se a maior fonte de riqueza se bem adubado.
Mas esses são momentos de trégua. A luta pelo viver, pelo
ser, pelo advir, pela autonomia, não é tarefa fácil. Ainda em muito
dependerá do outro, para levar avante a dura tarefa de viver. Mesmo havendo êxito, ainda assim os laços da dependência não se
desfazem por completo. Ao longo da vida, precisamos de afeto, de
reconhecimento e de troca. Nos sentimos sós e buscamos o outro.
A luta travada entre essas forças contraditórias, o necessitar estar só e o buscar a comunhão com o outro se desenrola
nas profundezas da condição humana. Esta dor pode ser fonte
inesgotável das mais ricas criações, e pode também levar o
sujeito aos descaminhos da loucura e da morte, como nos
testemunha Clarice Lispector nas vivências expressas em
suas obras. É preciso ter conquistado o universo das identificações simbólicas da linguagem, enquanto referências, para
descermos a esses subterrâneos sem nos perdermos nele: “A
solidão, a mesma que existe em cada um me faz inventar. E
haverá outro modo de salvar-se? Senão o de criar as próprias
realidades?”·2
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Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 17-34, 2007
debate
suas produções, pode criar seu mundo secreto, suas fantasias,
comunicar, ou não, o que está pensando. Nesta nova atividade
psíquica descobre um prazer que o acenará com uma liberdade
e certa garantia de que a luta por um lugar no mundo, como
um sujeito diferenciado, não será em vão.
Pequenina vitória em sua condição de desamparo e ainda
tão dependente do outro! Ela representa a entrada no universo da
linguagem: único caminho para chegar a vir a ser como indivíduo
autônomo, conquistando sua singularidade.
Se no decorrer da batalha o sujeito é abatido pelo outro, ou
se por algum motivo não é forte o suficiente para lutar, assistimos
a uma catástrofe. Aprisionado num discurso sem autenticidade,
permanecendo capaz apenas de repetir uma fala, nunca atingindo
a plenitude do seu ser. O espaço onde deveria existir o Eu da
linguagem é ocupado por uma sombra falada, que seguirá impedindo-o de ter uma fala própria, expressão de seus pensamentos
autônomos. Buscar um espaço para existir como pessoa singular
exige uma renúncia: a de abrir mão do desejo de se alienar no
outro, embarcando na ilusão de fusão. Permanecer no outro como
igual o levaria a uma anulação e a um esmagamento de si próprio
(Aulagnier, 1978).
É preciso continuar a luta contra suas tendências contraditórias e contra o outro, que o deseja muitas vezes como uma cópia ou
eco de seus pensamentos e de seus desejos. Uma mãe submetida à
castração, à interdição do incesto, direciona seu desejo para além
do filho, visando um terceiro, abrindo mão do filho como objeto
fálico, e permitindo a este vir a se constituir como um ser separado
dela. Isto não anula, entretanto, o inevitável sentimento de solidão,
tão doído, que o inquieta e o impulsiona numa busca constante de
2
LISPECTOR, 1978.
Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 17-34, 2007
25
Núcleo Piera Aulagnier
Angústia do nascimento e angústia de morte ligadas por uma
ponte indissolúvel. Nesta ponte, transcorre nossa vida.
Marcado pela ambivalência, o sujeito se vê condenado, para
continuar vivo, a investir no sentido de refazer os laços para ultrapassar sua solidão, e a libertar-se deles para existir. Nesta emaranhada trilha, em busca do prazer e na fuga da dor, tecemos nossos
laços amorosos. Freud, no Mal Estar da Civilização, atenta para a
ambivalência que habita em nossa busca de felicidade. “Nunca nos
achamos tão indefesos contra o sofrimento como quando amamos,
nunca tão desamparadamente infelizes como quando perdemos o
objeto amado ou o seu amor”.4
Se o Eu não se garante no fio do equilíbrio, pode afundarse no abismo da paixão. Muda a qualidade de seu investimento,
transformando o objeto de prazer em objeto de necessidade, cuja
satisfação se torna vital, impedindo o Eu de qualquer possibilidade
no registro da escolha. O Eu é invadido pela sensação de necessidade. O objeto da paixão é capaz de servir a dois senhores: Eros
e a Tanatos. Aliança arriscada, que muitas vezes pode levar a um
mergulho na morte. Na luta pela individuação, o Eu perde a batalha,
sucumbindo ao Eu do outro, sendo tomado por ele.
Werther, personagem de Goethe, escrevia a um amigo
sobre sua dor diante da paixão impossível por Carlota: “Oh!
Guilherme! O abrigo solitário de uma cela, o cilício e um cinto de tortura seriam para mim a maior das venturas comparados aos tormentos
infernais que me dilaceram a alma. Adeus! Para todas essas misérias só
vejo um termo: a morte”.5
A intensa dor da solidão sentida pela perda do objeto amado,
perda real ou imaginária, traz a vivência da dor do irrecuperável.
Freud, em seu texto “Luto e melancolia”, faz uma diferen3
Ibidem, p.15.
26
Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 17-34, 2007
debate
Raízes semoventes que estão plantadas ou a
raiz de um dente? Pois também eu solto as
minhas amarras: mato o que me perturba e o
bom e o ruim me perturbam, eu vou definitivamente ao encontro de um mundo que está
dentro de mim, eu escrevo para me livrar da
carga difícil de uma pessoa ser ela mesma.3
A solidão de Clarice era povoada de fantasmas. Mergulhando em sua angústia, dissecava-a, transitando nos mais tortuosos
labirintos de seu sofrimento. Procurava em sua escrita uma saída,
algo que povoasse sua imensa cratera, como personagens que lhe
estendessem a mão na difícil travessia. Quando a lemos, sentimos
essa mão estendida nos conduzindo às profundezas. Clarice lidava
com a solidão compartilhando-a com objetos que ela própria criava,
fazendo jorrar uma fonte de angústia transmutada. Em seu conto
“A procura de uma dignidade”, descreve a solidão angustiada de
uma senhora num Maracanã vazio, perdida num emaranhado de
labirintos, em busca de algumas pessoas que não se encontravam
lá. Sozinha, alienada da realidade, não encontrava a saída, pois
não tinha respostas para o porquê de estar lá, nem o porquê de sua
existência. A resposta estaria no mergulho mais profundo e irrevogável da solidão da morte. Uma morte antecipada como única
saída do labirinto. Em busca de sua dignidade, a única porta de
saída que a personagem encontrou foi a morte.
O que Clarice nos deixa como legado é a oferta de uma
companhia que aplaca e enriquece o nosso estar só.
Angústia não se compartilha. A dor da falta é solitária. Cada
qual carrega a sua.
4
5
FREUD, (1929-[1930]), 1981 p. 3029.
GOETHE, J. W., 1993, p. 81.
Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 17-34, 2007
27
Núcleo Piera Aulagnier
em toda relação amorosa, nos faz reviver o horror da castração.
Toda escolha amorosa é narcisíca, como já dizia Freud. O
processo se inicia no nascimento, quanto o infans normalmente vem
ocupar o lugar de falo imaginário da mãe. Narcisismo primário:
“Sua majestade o bebê” (Freud, 1914). No seu desenvolvimento,
deixará de ser o falo para que, na fase edípica, através da castração,
possa a vir a tê-lo - ou não. Mas esta experiência de ser objeto de
desejo do outro ficará marcada para sempre no inconsciente, sendo
revivida ilusoriamente nos encontros amorosos. Acreditamos ser
objeto do desejo do outro, assim como também o outro é objeto
do nosso desejo. O amor demanda e exige reciprocidade. Com ele
tentamos driblar nossa falta e a solidão que nos habita. É através
do outro que o sujeito se vê como amado, o que dará consistência
à sua imagem egóica.
A construção do objeto em torno do vazio pulsional permite um ancoramento na busca incessante do desejo de um objeto
absoluto. A libido investida – pulsão de vida – freia o movimento
da pulsão de morte, a qual visa o gozo mortífero. Ao perder-se o
objeto, perde-se também temporariamente esta proteção contra o
caos pulsional.
O processo de luto nos afronta de forma inexorável com a
nossa solidão; caiu a vestimenta, ficou o vazio, ficou o sofrimento.
É preciso desinvestir cada representação, retirar o excesso de afeto
a ela vinculado (processo árduo e difícil), realocar o afeto entre
as outras representações egóicas, para depois vir a reinvestir em
novos objetos. O amado se torna uma lembrança saudosa como
tantas outras.
Referindo-se à melancolia, Freud reconhece a contribuição
de Abraham nos casos da identificação melancólica, quando
6
NASIO, J.D. 1997, p.58.
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debate
ciação entre o luto normal, o patológico e a melancolia. Um dos
aspectos apontados é que no luto o sujeito sabe quem perdeu, enquanto na melancolia, o sujeito pode saber quem, mas não sabe o
que perdeu, com o desaparecimento do objeto - uma diferenciação
que irá adquirir novos contornos no decorrer de sua obra. Para a
psicanálise não se trata só da pessoa amada mas, principalmente
– se não exclusivamente - da representação psíquica inconsciente
que temos da perda: “Não tem dor sem o eu, mas a dor está no
isso”.6 Ou seja, em todas as perdas amorosas, não sabemos o que
perdemos ao perder o ser amado. A razão da dor está dentro de
nós, e não fora.
A partir de Freud, o que caracteriza a sexualidade humana é
a falta de objeto. Para ele, a pulsão não tem objeto próprio, é indiferente, pode ser qualquer um. O que significa dizer que o objeto
enquanto tal tem que ser continuamente construído, mas não de
forma completa. Portanto, todo encontro é sempre um reencontro
ou um desencontro: a busca de um objeto supostamente perdido e
condenado ao fracasso (Freud, 1905).
A construção do objeto, sua representação psíquica, se dá no
decorrer da infância, através dos discursos parentais que inscrevem
seu filho em uma linhagem familiar, e em seu meio sócio-cultural
(Freud, 1937). Destes discursos, permeados por seus desejos, desejos estes que os próprios pais ignoram, a criança irá privilegiar
traços simbólicos associados a imagens, ou não, que serão seus
substratos identificatórios e, ao mesmo tempo, os alicerces inconscientes de sua construção fantasmática de objeto. Destes traços
fálicos, investidos libidinalmente, o sujeito tece a vestimenta que
recobre o ser amado, recobrimento que sempre deixa comparecer
um pouco o vazio pulsional que ele comporta, sendo através deste
que a diferença e o desejo do próprio amado irão advir. Esta diferença, este desencontro, gera raiva e frustração; e, estando presente
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Núcleo Piera Aulagnier
e mais prolongada a sua absorção, mais ele caminha no risco da
própria destruição física, psíquica e social.
O ataque ao pensamento é o recurso mais eficaz para anestesiar a angústia da separação. É através dele que a dúvida se instala
abalando as certezas que a fala do outro garantiam. A atividade
do pensamento abre um espaço e impulsiona o Eu para uma possibilidade de existência enquanto sujeito singular, diferenciado e
solitário. A diferença que comparece através da linguagem trabalha impedindo o desejo do sujeito na busca da fusão de antanho.
Mas o universo da linguagem não consegue abarcar as vivências
humanas mais submersas na profundidade da cratera. Há sempre
uma parte que a palavra não alcança. E é aí, nesta parte em que a
palavra silencia, que reside nosso ser mais autêntico. Num fundo
desconhecido: parte nossa que nos assombra, nos surpreende, nos
faz sentirmos estranhos a nós mesmos.
Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem
tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto - e o mundo não está à tona, está oculto em
suas raízes submersas em profundidade do mar.
Para escrever tenho que me colocar no vazio.
Neste vazio é que existo intuitivamente. Mas é
um vazio terrivelmente perigoso: dele arranco
sangue. Sou um escritor que tem medo da cilada
das palavras: as palavras que digo. 8
A psicose é a possibilidade de se perder na escuridão da
cratera. Cortados os laços com a realidade, o psicótico produz
seus delírios na tentativa desesperada de sobrevivência psíquica.
Na conquista do pensamento autônomo como fonte libertadora do
7
FREUD, 1981, p.2095.
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debate
este faz a conexão entre o narcisismo e a fase oral canibalística da libido. Ou seja: a escolha que se faz, como toda escolha
amorosa, é narcísica: a pessoa busca fora de si alguém que seja
grandioso, à sua imagem e semelhança (Eu ideal). O melancólico
não pode perder. Há aqui uma regressão da libido ao mecanismo
antropofágico. O eu do melancólico é canibal, põe o inimigo para
dentro recusando a perda, recusando a castração. Sendo sua escolha
narcisíca muito mais ambivalente do que a maioria das escolhas
objetais, em virtude da regressão, perde o amor e se enche de ódio.
O complexo melancólico, se levado ao extremo, leva à tragédia: a
desfusão pulsional. Acarretaria no desligamento de toda e qualquer
representação possível. O objeto é incorporado ao eu, sendo tratado
de forma sádica pela consciência crítica. Freud diz: “A sombra
do objeto recai sobre o eu”7. Assim, o suicídio do melancólico é
pensado como uma morte infligida ao objeto incorporado ao eu.
Encontramos também nos dependentes de drogas, na batalha
entre Eros e Tanatos, a vitória de Tanatos. Durante o tempo de ação
da maioria dos alucinógenos, o impulso sexual permanece em repouso. O Eu experimenta um gozo provocado por um conjunto de
percepções sensoriais, de representações, de produção de imagens,
e vive um estado que Piera Aulagnier denomina sensoriedade
pensada (Aulagnier, 1985): uma realidade pensada e percebida
como totalmente adequada às percepções criadas pelo pensamento.
Estabelece-se um compromisso entre a necessidade de pensar e o
desejo de reduzir ao silêncio a própria atividade do pensamento.
Mas, se através do uso da droga o sujeito pode anestesiar totalmente
a dor da falta, convertendo o pensado, o percebido, o representado, na fonte de um prazer tão intenso quanto exclusivo, o Eu não
consegue, todavia, eliminar a consciência de que, quanto maior
8
LISPECTOR, 1978, p. 13.
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Núcleo Piera Aulagnier
mas o barulho que de tão estridente ensurdece a alma.
O prazer solitário e único de se extasiar diante das obras de
um pintor, é hoje atropelado pelas multidões que se aglomeram nas
galerias, obedecendo às ordens inquestionáveis de um comando que
indica de fora o que é para ser visto e admirado. Não é mais o desejo
que move a busca, mas um objeto fabricado que cria a demanda.
A direção da busca da fusão com o outro, que tem como metáfora
o ventre materno, muda sua direção e parte em busca de um objeto
que o funda com a multidão. Se o objeto não é possuído, sente-se a
angústia que a diferença faz emergir. Corpos iguais, mentes iguais,
gostos iguais. Caminhamos para a massificação, onde o indivíduo
se perde e está cada vez mais só.
A postura ética da sociedade consumista se contrapõe à ética
da psicanálise. A psicanálise não oferece objeto. Quando o analista
consegue ocupar pontualmente o lugar solitário que sua função lhe
impõe, sem interferir com o seu ser, deixando aflorar o não-ser,
permite o surgimento do sujeito no paciente. O paciente fala... e
fala mais... Entregue à sua livre associação, reencontrando através
dos seus novos ditos as próprias raízes. Referências individuais,
solitárias, bebendo da seiva das suas raízes, cria a sua própria ficção, se liberando das fixações que o aprisionavam. Este caminho
solitário percorrido pelo paciente, acompanhado pela solidão do
analista, é a única possibilidade de se lidar com a solidão humana
sem se mergulhar no tormento da impotência. O desprazer da
solidão, do sofrimento, se ameniza na liberdade que nos é trazida
pelo ainda não sabido, pelo possível de ser construído. Construções
em análise.
Maria Pompea Ferreira Carneiro
9
Idem, 1974, p. 18.
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debate
sujeito, a batalha foi perdida. Fica aprisionado no labirinto onde
as portas só dão acesso ao interior. Perde-se a porta de saída. Na
impossibilidade de construir uma fantasia, o vínculo se estabelece
através do delírio, único recurso que lhe resta como uma tentativa
de sua inserção no mundo. Por não ter as bases referenciais que
o sustentem, o psicótico naufraga no não ser, se perdendo nos
labirintos da vida, como a personagem de Clarice.
Enquanto Clarice, pela mediação da palavra, podia falar da
morte sem morrer, falar da angústia sem a ela sucumbir, falar do não
ser a partir do ser, sua personagem no conto, depauperada em seu
ser, sem identificações que a sustentassem, desprovida do recurso
simbólico da palavra como mediadora “interrompe sua vida com
uma mudez estraçalhante”9. A morte se faz presente.
Clarice, em seu ato criativo, recorre a recursos mais profundos
e íntimos de seu ser, à sua fonte-biblioteca arcaica, ao não sabido
que se impõe. Assim como na musica, ela vai, ela vai... se impõe
ao compositor que acompanha a melodia cuja fonte ignora. No
romance, os personagens se desenvolvem por si, eles vão... Eles
vão... à revelia do escritor e o surpreendem; sua fonte é o não saber.
Se o artista não resiste ao seu próprio não sabido e deixa fluir, a
sua obra se converte em arte.
O mesmo não se pode dizer do que acontece, em grande
parte, neste mundo em que hoje vivemos. Vivemos numa sociedade que lida com a solidão criando objetos que visam tamponá-la,
obscurecendo de forma concreta seus anseios autênticos. Como
sons que são produzidos tão acima de nossa capacidade de
processá-los por nossa sensibilidade auditiva, que se espalham
em vibrações por todo nosso corpo. Não mais uma sinfonia que
através dos nossos ouvidos penetra em nossa alma e nos coloca
em comunhão com o universo, na experiência de um prazer etéreo,
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33
Núcleo Piera Aulagnier
Nueva, 1981. p. 3365-3377 (cuarta ed., 3).
GOETHE, J. Werther. tradução de João Teodoro Monteiro, Lisboa:
Guimarães Ed., 1993.
LISPECTOR, C. Um sopro de vida: Pulsações. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1978.
_____. Onde estiveste de noite? Rio de Janeiro: Artenova, 1974.
NASIO, J.D. O livro da dor e do amor. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1997.
debate
Trate-me como um cachorro. Ou assim que for possível.
Treat me like a dog. Or as soon as possible.
Elisa Maria de Ulhôa Cintra*
Resumo
O artigo realiza uma reflexão sobre a capacidade para estar
só enfatizando as condições que favorecem a construção de
tal capacidade. Partindo do paradoxo de que para estar só,
é preciso estar na companhia de alguém, proposto por Winnicott , a autora percorre as idéias de elaboração da posição
depressiva (Klein), resolução do Complexo de Édipo (Freud),
necessidade de fazer o luto dos primeiros amores (Britton)
e o desejo de ter mente própria (Caper).
Palavras chave: solidão, posição depressiva, Klein, Winnicott, Britton, Caper.
34
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R. Marques de São Vicente, 300
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Tramitação:
Recebido em: 14.06.2007.
Aprovado em: 15.08.2007.
[email protected]
Referências
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enunciado. Rio de Janeiro: Imago, 1978.
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COUTINHO JORGE, M. A. Fundamentos da psicanálise - de
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DIAS, G. Canção do Tamoio (Natalícia) - Últimos cantos. Poesias americanas. 1851. Disponível em http://www.ufrgs.br/proin/
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FREUD, S. (1905). Tres ensayos para una teoria sexual. Madrid:
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Nueva, 1981. p. 3017-3067 (cuarta ed., 3).
_____. (1937). Construcciones en psicoanálisis. Madrid: Biblioteca
* Psicanalista, Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC-SP), professora da mesma instituição e co-autora (com Luiz Cláudio
Figueiredo) do livro Melanie Klein: estilo e pensamento (São Paulo: Escuta, 2004).
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pode conhecer. Trata-se de restaurar a capacidade para estar
só na companhia de alguém1, para entrar em contato consigo e
com o outro, sem cair nesta deliciosa tentação de “virar uma só
coisa” com a outra pessoa. Tal aventura pede que se entre em um
estado não instrumental e não focado e receptivo às sensações,
memórias e desejos presentes e passados, mas sem prender-se a
nenhum deles. A meta é atravessar a realidade psíquica sensorial em
direção a este lugar “sem memória e sem desejo” de que nos fala
Bion, lugar muito remoto onde são engendrados os sonhos e a vida
psíquica. No caminho até lá é preciso criar um espaço transicional,
36
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Abstract
The paper is about the ability to be alone in the presence
of someone. It gives emphasis to the above paradox and its
origin in early development, as stated by Winnicott. It points
to the links between a growing sense of separateness and
autonomy as an effect of a successful elaboration of depressive anxieties (Klein), the resolution of the Oedipus Complex
(Freud), the need to work through the depressive position
(Britton) and the desire to have a mind of one´s own (Caper).
Key words: solitude, depressive position, Klein, Winnicott,
Britton, Caper.
debate
Trate-me como um cachorro. Ou assim que for possível.
Treat me like a dog. Or as soon as possible.
Elisa Maria de Ulhôa Cintra
“Afinal, não seria o caso de o paciente vir para a
análise a fim de reconstituir sua solidão por meio
do outro, a solidão que só ele pode conhecer?”.
Adam Phillips, 1993.
Um paciente vem experimentar esta curiosa solidão “a
dois” de uma análise para reconstituir um universo que só ele
1
Winnicott escreveu sobre o tema em “A capacidade para estar só” de 1958.
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ordenado e vital, que adquirimos a capacidade para estar só, na
presença de alguém.2
Talvez a primeira solidão que alguém viva em sua infância
seja a de habitar um corpo e uma história de maneira única e intransferível. Ao mesmo tempo, aprende a falar e a se comunicar com os
outros que parecem entendê-lo, grande parte do tempo. Durante a
vida desenvolve uma relação de maior ou menor intimidade com
o seu corpo e com seus amores, ódios, desconfianças, certezas,
culpas, perdões. Há momentos em que mergulha na sensação da
mais profunda incomunicabilidade e todas as palavras são inúteis;
parecem provocar mais barulho do que entendimento.
Então o encontro analítico convida o paciente a deitar-se
no divã, a abandonar as regras habituais do convívio social e a
entregar-se ao livre fluxo de suas associações. A sua posição –
deitado no divã – olhando na direção deste lugar imprevisível para
onde suas palavras o conduzem em uma espécie de viagem – ou
vertigem- no tempo e no espaço, tudo isto transforma o divã em
um veículo mágico, uma cama voadora como as que aparecem
nos sonhos e nos quadros de Frida Kahlo. O convite assemelha-se
mais a torná-lo um flanneur que vagueia, à deriva, em uma cidade
desconhecida deixando para trás o roteiro habitual que o leva de
casa a algum lugar conhecido, e a experimentar novos caminhos,
novas vias de acesso.
Enquanto isto o analista permanece silencioso e em reserva,
fica sempre um ou dois passos atrás, lembrando que muito daquela
história já ficou para trás, que será preciso deixar para trás o passado, deixá-lo passar. Ele convida ao abandono das certezas, das
grandes verdades. Está sempre um pouco incrédulo, com aquela
cara de paisagem silenciosa que escuta e está sempre indagando:
Em termos kleinianos isto significa uma introjeção segura do bom objeto, que como
veremos adiante é muito diferente da presença, que não se deixa introjetar nem assimilar,
do objeto ideal, que permanece como um enclave insolúvel.
2
38
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debate
um playground onde o brincar mútuo descobrirá nexos e ligações
entre sensações atuais e estímulos passados, entre elementos do
sonho e da vigília, de dentro e de fora, de si e do outro.
Em seu texto “A capacidade para estar só” (1958), Winnicott evoca estes
momentos de contato e silêncio que um
paciente vive durante a análise. Talvez tenha sido a primeira vez
na vida em que conseguiu ficar realmente só, sem sentir-se isolado
ou fechado em si mesmo; a sensação é de uma intimidade prazerosa, uma capacidade de ocupar-se com suas próprias coisas, com
seu mundo de objetos internos, com aquilo que pode absorvê-lo
e apaixoná-lo mais profundamente. Uma criança mergulhada em
seu brincar talvez tenha sido a primeira aparição do fenômeno. Se
hoje perguntássemos a Winnicott “você considera a capacidade
para estar só um critério de fim de análise?”, com certeza teria
respondido “sim”, pois algo aparentemente tão corriqueiro exige
um grau de autonomia e de desenvolvimento do sentimento de
si e do outro que só se atinge depois de uma grande amplidão da
vivência materna primária bem elaborada.
Este foi o percurso de Winnicott: pensar as raízes desta capacidade, suas condições de possibilidade. A capacidade para estar
só enraíza-se, pois, na primeira relação com a mãe, e depara-nos
com o paradoxo de que estar só exige a presença, a companhia
relaxada de alguém, ali ao lado, à nossa disposição.
Quando sabemos que alguém está por perto, ausentemente
disponível, alguém com quem podemos entrar em contato a qualquer momento, seja na realidade exterior, seja na realidade virtual
de nosso mundo interior, e quando este último parece ser formado
por seres bem vivos, vozes do passado e do presente que se encontram em relativa harmonia, formando um espaço de convivência
que se parece mais a um cosmos do que a um caos – é justamente
aí e então –, ou seja a partir deste mundo interno relativamente
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esquecer, e só então, possa tornar-se realidade psíquica. Digamos
que deixar-se negar e interiorizar-se são duas formas diferentes
de falar do mesmo fenômeno. Assim também, apenas a presença
humana capaz de desaparecer sem ausentar-se completamente,
poderá tornar-se voz, nome, figura e memória assimilados pelo
sujeito nascente, sob a forma de cimento e tijolos de uma nova
subjetividade.
Nosso destino é mesmo interiorizar as experiências significativas: “Nossa vida transcorre em metamorfose: sempre decrescendo,
o exterior desaparece” (Rilke, 1922) e o progresso da vida obriga
a reconstruir um mundo de objetos internos vivos, integrados e
humanizados. São principalmente os cuidados maternos de sustentar e acalentar e a função paterna de separar e discriminar que
precisam tornar-se ausentemente disponíveis, para que se possa
viver em paz e tornar-se uma nova pessoa. O simples ato de ir
dormir, de deixar-se adormecer - nos braços de Morfeu, desde a
mitologia grega, lembram-nos - só é possível nos braços de alguém,
nos braços visíveis ou invisíveis que mimetizam o colo aconchegante
dos primeiros tempos. E ainda mais que adormecer, despertar exige
estar nos braços de alguém; senão como encarar esse insuportável
mundo real a cada manhã? Mais uma vez retorna o paradoxo de que
estar só exige a presença real ou interiorizada de alguém capaz de
segurar, cuidar, escutar.
Mas conviver no dia-a-dia exige também a capacidade para estar
só. Alguém me conta sentir grande necessidade de ficar ao lado da
namorada em estado de tranqüila indiferença, e como é muito difícil
que entenda o seu desejo, dirige a ela um apelo extremo e ao mesmo
tempo simples: “trate-me como um cachorro, e voltarei a falar com
você assim que me for possível”. É o pedido de ser deixado de lado,
3
4
Bollas, 1999, p. 12.
Ver o texto de André Green, 1997.
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debate
Será? - implantando pequenos hiatos de dúvida nas crenças mais
certeiras. Ele está imóvel, é verdade, mas sua imobilidade sensóriomotora é o próprio esforço de transformar toda a turbulência de
sua vida psíquica em estado de abertura e escuta. Gosto de pensar
que o analista quer se converter em abertura e enraizamento. Ele
se prende ao que há de mais insólito: o fluxo e o dinamismo do
outro, sem deixar de acompanhar, à distância, o seu próprio ritmo
flutuante.
Além de Winnicott, um outro analista, Christopher Bollas,
afirmou que “cada encontro com um paciente envia-me profundamente a mim mesmo, a uma área de solidão essencial regida por
leis inaudíveis de densa complexidade mental”. 3
Na sessão de análise, o próprio fato de estarmos sós, assim
no plural revela uma comunidade invisível, um estar-só bem acompanhado. Tudo isto começa com a qualidade da presença materna
capaz de criar um ambiente de confiança e segurança que dá a
liberdade de brincar, inventar e expressar-se corporal e verbalmente, mas que se mantém em reserva, não-invasiva, em um silêncio
tranqüilo, criando o que foi chamado de um espaço potencial. Este
é um estado de solidão diferente do desamparo e do isolamento.
Winnicott conta-nos que muitas vezes, ao estar diante de um
problema difícil, recolhia-se a um espaço interior que chamava de
“meu clube”, um lugar de intimidade e interlocução. Para um inglês,
a idéia de pertencer a um clube de peers, ou pares, é a realização
acabada do ideal de convivência pacífica e fecunda que este analista
tanto praticou. Ter instalado dentro de si presenças humanas confiáveis sob a forma de um ambiente ou um “clima” amistoso exige
a negação de presenças plenas, invasivas e barulhentas. A intuição
do negativo4, um elemento presente no pensamento de Winnicott,
e que foi trazido à tona por André Green, afirma a possibilidade
de que a realidade, em sua plenitude sensorial, se deixe negar e
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E faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
Atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
Vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
Somos noivo e noiva.
Na verdade, a capacidade para estar só na presença de
alguém retoma o enigma do relacionamento entre as pessoas e
a história de como cada um constrói o seu caminho de acesso
até o outro, seu “próximo” (seu “nebenmensch” em Freud), tão
familiar e tão estrangeiro... Quanta proximidade e quanta distância
é preciso haver entre eu e outro para que exista amor e intimidade,
reconhecimento e autorização entre as partes, ainda que esteja
sempre rondando o risco de se ficar excessivamente dependente
e dominado pelo outro? Ou ainda, como construir um mundo
interno que torne possível reconhecer os outros sem se sentir por
eles ameaçado, desautorizado, submetido, violentado, invadido
ou ignorado? Como não ceder ao desejo de controlar ou possuir?
Um ambiente humano pacífico e pais que puderam autorizarse um ao outro, favorecem a interiorização de figuras femininas e
masculinas que mantém entre si contato e diferenciação. Cria-se uma
tensão mínima que significa união, e ao mesmo tempo separação
e cada um dos pólos – o masculino e o feminino – pode coexistir
com o outro, sem anulação mútua. Por outro lado, um ambiente de
desprezo, rivalidade, agressão e abandono irá favorecer a interiorização de um mundo caótico onde os personagens se atacam ou
desprezam, e é muito freqüente que o masculino se torne despótico
e autoritário, dirigindo-se contra o feminino desprezado; ou o in5
O poema se chama “Casamento” e está no livro A terra de Santa Cruz (1991).
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debate
brincando sozinho com seus pensamentos, de ter sua presença plena
de certa forma negada, mas sem ausentar-se completamente. Não se
trata, pois, de nenhum apelo masoquista para ser mal tratado, mas
a necessidade de ser deixado em contacto com a sua animalidade
mais pura, mergulhado em uma existência anterior ao universo
verbal. E, além disto, é o convite de que ela venha juntar-se a ele
no mesmo estado de tranqüila indiferença a toda manifestação
explícita de amor ou consideração. É preciso suportar o sentimento
de exclusão de uma parte da vida psíquica do outro, deixá-lo estar
com o seu mundo de objetos internos que são desconhecidos e
devem continuar a sê-lo. E sentir-se livre para excluir o outro, sem
alimentar aquela culpa doentia que exige tudo dividir e participar.
Em um curto poema5, Adélia Prado descreve um casal
que depois de anos de convivência encontra-se neste estado de
comunhão silenciosa, implícita:
Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
Ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
De vez em quando os cotovelos se esbarram,
Ele fala coisas como “este foi difícil”
“prateou no ar dando rabanadas”
Freud descrevia uma fantasia universal na infância, dos pais em uma relação sexual
sadomasoquista (1905).
7
Melanie Klein, por sua vez deu a este tipo de fantasia o nome de “figura dos pais
combinados” que se torna muito ameaçadora e persecutória, pois eles formam uma
espécie de “gangue” contra o filho, que não pode mais contar com a proteção de um dos
pais em momentos de agressividade do outro, ficando à mercê da violência parental
combinada contra ele. A criança sente que estão todos contra ela.
6
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Elisa Maria de Ulhôa Cintra
que se possa estar só na presença de alguém.
Elaborar a posição depressiva é separar-se da simbiose
originária e das demandas de amor mais violentas e thanáticas,
moderando-as e erotizando-as, para que possam preservar a independência do outro amado e o projeto de emergir como um novo
sujeito, pois o risco é sempre cair nos pólos extremos: ou fundir-se
irremediavelmente às pessoas queridas e não nascer psiquicamente ou, para se defender desta espécie de morte psíquica, ignorar
as pessoas e destruir seu valor, de maneira que passam a não ter
mais nenhuma existência significativa - mas aí então, também não
será possível subjetivar-se: ter-se-á destruído os tijolos vivos e a
argamassa que podiam vir a ser alguém.
Muito cedo, Melanie Klein deu-se conta de que era preciso
fazer um luto e uma ressurreição dos primeiros amores, para se
chegar a nascer psiquicamente. Este processo de luto e separação
presente na posição depressiva é semelhante à elaboração do complexo de Édipo, através do complexo de castração, tal como havia
sido descrito por Freud.
Ronald Britton, um neo kleiniano, chega a afirmar que: “resolvemos o complexo de Édipo elaborando a posição depressiva
e resolvemos a posição depressiva elaborando o Complexo de
Édipo, que nenhum dos dois é jamais terminado e que ambos tem
que ser trabalhados em cada nova situação de vida”(Britton, p.53).
Por que cada nova situação de vida e cada porção de seu
próprio self requer, para surgir, tanto luto? É preciso matar os
“deuses” da infância e a criança magnífica que parece perfeita e
absoluta, ao lado dos pais, em uma tríade narcísica. É o abandono
das necessidades mais absolutas de ser amado, e das representações
mais idealizadas ou denegridas de si, e dos outros personagens
edípicos, os pais e os irmãos.
O desejo de ser tudo para alguém, mantendo com ele um
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debate
verso disto. As figuras de homem e mulher se combinam de forma
sadomasoquista6, criando uma figura dos pais combinados7, onde
não há nem diferenciação nem união.
Estas fantasias primitivas surgem em cada nova criança que
vem ao mundo e dão expressão à sua vida sexual e à sua destrutividade; elas vão sendo forjadas em uma combinação única, que reúne
as influências do ambiente e as reações de cada um ao mundo de
acontecimentos significativos de sua história. Tornar-se um novo
sujeito é fazer-se herdeiro de tudo o que o ambiente oferece, inclusive
de aspectos indigestos da vida sexual e da destrutividade parental. Às
vezes, o que “o ambiente oferece” são formas muito idealizadas de
perfeição e de poder que entram na composição do mundo interno
sob a forma de objetos ideais, para o bem e para o mal. A criança
pode sentir-se ou bem excluída e perseguida, “estão todos contra
ela”, ou bem invadida de forma absoluta e mortífera, e o desamparo
e a ameaça tornam-se muito grandes. Ou então ela pode, imaginariamente, formar uma dupla, ou um trio, com um dos pais, ou um dos
irmãos “contra o mundo”. Nesses casos há sempre uma confusão
de identidades, e os aspectos mais grandiosos ou ameaçadores das
pessoas entram em combinação com essas mesmas tendências da
criança, criando objetos internos ideais e violentos. Neste caso, fazerse herdeiro é conseguir ultrapassar estas figuras internas grandiosas
e cheias de arbítrio, dissolvendo-as e modificando-as.
Melanie Klein propunha que o desenvolvimento de uma
nova subjetividade dependia da elaboração da posição depressiva e da introjeção do objeto bom, sobretudo durante os cinco
primeiros anos de vida, embora isto devesse ser retomado ao
longo de toda a vida em um contínuo processo de reconstrução
de si mesmo. Vejamos o que significam estas teorias – elaborar a
posição depressiva e introjetar o objeto bom – pois isto nos levará
a compreender o mundo interno que precisa ser constituído, para
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Elisa Maria de Ulhôa Cintra
precisam ser desembaraçados para que se possa ter uma “mente
própria”. 8
Em contraste com os objetos ideais, o objeto simplesmente
bom nasce de uma experiência diferente da paixão sem medida,
da ilusão de tudo ser que se torna tão absoluta a ponto de negar os
aspectos miúdos e corriqueiros da experiência de amar. O objeto
“suficientemente bom” corresponde à elaboração do Édipo e da
posição depressiva. Ele é tanto a origem, quanto a meta da capacidade para estar só. O objeto bom é o nome de uma experiência de
prazer, acolhimento e segurança. Ele é a presença residual de um
dinamismo relacional, a memória de que no início havia ali duas
pessoas, uma delas tinha necessidade de algo que a ela foi entregue pela outra pessoa, por quem a primeira sente gratidão. Aqui
há uma diferenciação e uma aliança maiores entre o masculino e
o feminino, o parental e o filial.
O objeto bom é um nome, com a propriedade que os nomes
têm de nos transportar de um lugar para outro. Pensando sobre isto
compreendo melhor a insistência de Lacan sobre a metáfora paterna, o “nome do pai”. O significante ser pai é o que nos transporta
para um outro lugar, para a dimensão simbólica, metaforizante.
A experiência imediata é lançada para novos sentidos potenciais.
O nome é algo que nos transporta. Quais são as funções do pai?
Interdição, regulação, mediação. Proteger, dar segurança, prover,
criar e distribuir os bens necessários à vida, como em uma obra
de arquitetura primitiva que transporta água de longe para mais
perto, que inventa instrumentos para canalizar, construir, suprir.9
Não é difícil lembrar dos deslocamentos criativos de um poema, ou
da ficção inspirada, capaz de renomear e ressignificar um mundo
de fatos insignificantes ou paralisantes.
8
Ver Caper, 2002.
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debate
estado de fascinação passional tem que ser deixado para trás para
se aceitar uma relação em que os parceiros têm vidas e prazeres
próprios, independentes um do outro. Será preciso desembaraçar-se
destes nós originários. Digamos que os momentos mais narcísicos,
que precisam ser deixados para trás ,envolvem relações mútuas
de fascinação e dependência, tanto entre duas como entre três
pessoas – são as díades ou tríades narcísicas, tão intensas quanto
aprisionadoras, constituindo o que podemos chamar de um objeto
bom ideal – magnífico e absoluto, mas que rapidamente se torna
ameaçador e persecutório, pois estabelece um padrão muito elevado
de perfeição e exigência.
O chamado “objeto bom ideal” é a construção monstruosa
de um dinamismo que reúne tudo que há de mais passional em
nossa demanda de amor, amalgamado ao que há de mais primitivo e absoluto na demanda de amor do outro: o resultado é uma
fascinação recíproca. As díades acontecem quando vivemos a
fantasia de plenitude a dois e a tríade mais primitiva é aquela que
formamos com o casal parental – mas há nisto sempre uma grande
dose de indiferenciação entre homem e mulher, filhos e pais, sexo
e ternura, ou seja: confusão entre identidades sexuais e gerações.
De um lado, um sexual separado de ternura e do outro lado, uma
ternura dessexualizada, pois o estado narcísico também dá origem
a oposições radicais em que um pólo tem que anular e recusar o
outro. Vêem-se por esta descrição que estes “bons objetos ideais”
são nós indiferenciados de desejos e exigências de perfeição, que
Há um filme “O despertar de uma paixão” que se passa na China em uma localidade
rural onde uma epidemia de cólera mata grande parte da população e quase toda a água
está contaminada, até que um jovem médico inglês que tenta combater a epidemia e
projeta uma obra arquitetônica simples, feita com hastes de bambu para transportar água
não contaminada para o vilarejo.
10
Ver Totem e tabu de Sigmund Freud (1913).
9
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Elisa Maria de Ulhôa Cintra
mente “a seu dispor”, atento a seus mínimos movimentos internos –
sejam medos ou desejos – e pronto a suavizá-los ou atendê-los, sem
descanso e sem demora. Qual é a maior aspiração do narcisismo
patológico? Encontrar aquela alma gêmea completamente transparente que em nada se diferencia de mim, que nada esconde, nada
retém para si. É, portanto, uma exigência de equiparação, de que
não haja nenhuma diferença significativa entre eu e o “outro”. Que
“outro”? A alteridade precisa ser abolida. Ou então, que esta alma
gêmea seja como o gênio da lâmpada de Aladim, que transforma
em ordens todos os meus desejos. É o desejo de empatia absoluta,
cumplicidade, solidariedade total por parte do outro, independente
do que eu tenha feito ou dito. É o movimento que leva um paciente
a apropriar-se daquilo que lhe foi dito pelo analista tornando-o,
imediatamente, algo seu, por um processo de indiferenciação, por
um desejo de ser igual, de ser um com o “outro”.
E além das demandas narcísicas mais absolutas, o que significa
este desejo de ter “mente própria”, de que nos fala Caper? Trata-se do
desejo de separar-se do outro, entrar em contato com a solidão que
só cada um de nós poderá conhecer, de reencontrar a paixão por seus
objetos internos. Envolve re-descobrir o prazer de cuidar de si e de
responsabilizar-se por sua própria felicidade antes de cobrar isto do
mundo; exige, pois, sair de um universo mágico. Leva a perceber o
outro como alguém separado de mim e a manter um relacionamento
diferente da fusão narcísica, embora guardando espaço para a empatia, a possibilidade de comunicação, para os aspectos mais saudáveis
do narcisismo. Os afetos aí suscitados são complexos e há a dor de
perceber que o outro me exclui, que ele tem vida própria, que não se
torna nunca completamente transparente e acessível a mim, mas pensa
por conta própria e move-se independentemente de meu controle e do
meu desejo. Corresponde a um desejo de autonomia e de liberdade
que convive lado a lado com a aspiração narcísica de ser reconhecido,
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debate
O objeto suficientemente bom é um memorial, é um rumor de
distâncias atravessadas. No eco, na distância de ser lembrado, ele
será assimilado, dando a ser uma nova pessoa. Ele ainda vai ser.
Talvez seja esta sua maior virtude: o seu tempo futuro e o seu desejo
de alterar-se, de tornar-se outro, diferenciar-se. Em contraste com
isto, o pai da horda primitiva10 é uma explosão de poder arbitrário
e egoísmo. Imagino o pai cruel da horda primitiva como um grande
bloco de granito ocupando o interior da nova subjetividade, como
um enclave indissolúvel. Ao construir sua nova “casa”, o jovem
arquiteto, incapaz de remover aquela imensa rocha de granito não
tem outra saída senão deixá-la por ali ocupando espaço vital da
sala de visitas, ou do quarto de dormir e, um pouco sufocado, constrói as paredes de si em torno deste grande obstáculo inamovível.
Ao contrário disto, o bom objeto origina as fundações estáveis e
sutis de uma nova subjetividade, mas encontra-se tão dissolvido
no solo do novo sujeito que ninguém mais pode enxergá-lo com
nitidez. O enclave insolúvel do objeto ideal revela que, incorporado, dificilmente pode ser introjetado e integrado ao eu nascente,
e permanece como um modelo a imitar ou a contrariar, uma voz
que julga e condena, tirando toda a luz, como Freud descreveu em
um tom trágico: “a sombra do objeto caiu sobre o eu”.
Em uma análise, o analista torna-se receptivo às projeções e
às demandas infantis do paciente, deixa-se embaraçar nelas para,
mais tarde, desembaraçar-se através de suas interpretações e de sua
paixão por conhecer o funcionamento daquela pessoa, tanto em
suas necessidades mais profundamente narcísicas quanto em seu
desejo de ter “mente própria”. Quais são as primeiras? O narcisismo
saudável é o desejo de pertencer, de união, de ser compreendido,
amado e reconhecido. Torna-se patológico quando se deseja ser
plenamente compreendido e que o outro possa estar ali completa-
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Elisa Maria de Ulhôa Cintra
Tudo isto para combater a tentação maior de um dia querer ser
tudo o que o seu cachorro pensa que você é.
Elisa Maria de Ulhôa Cintra
Rua Alcides Pertiga, 65
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Fone: (11) 3086-4016
e-mail: [email protected]
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50
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debate
de pertencer e igualar-se.
O analista se propõe a conhecer e nomear estes diferentes
desejos e demandas, a construir pontes e nexos entre eles para que,
envolvendo-se no jogo, o paciente acabe por transportar sentidos
das nascentes mais férteis até os lugares mais secos e abandonados.
Ora, toda vez que, na convivência miúda do dia-a-dia, alguém pode se esquecer de si e deixar-se esquecer por parte do outro,
converte-se, ele também, em algo assimilável, nutriente. O mesmo
processo de conjunções e disjunções, de mortes e renascimentos
que descrevemos acima, estará acontecendo ou sendo retomado
quando se pode estar assim: só, na presença de alguém.
É a difícil arte de tratar e ser tratado como um cachorro.
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51
52
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desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
debate
Psicanálise e literatura – Don Juan e o engano da lista
Psychoanalysis and literature – Don Juan and the list
misinformation
Luiz Alberto Pinheiro de Freitas*
*Membro Psicanalista/SPID; Mestre e Doutor em Psicologia Clínica/PUC-Rio;Pósdoutorado em Ciência da Literatura /UFRJ; Magister em Prevención y Asistencia de lãs
Drogadependencias/Universidad del Salvador, B. Aires; Master em Drogadependencia/
Universidad de Deusto-Bilbao; Autor de Freud e Machado de Assis – Uma interseção
entre psicanálise e literatura, Rio de Janeiro: Mauad, 2001; entre outros.
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Como não posso desempenhar o papel de
amante por causa da minha deformidade,
serei o vilão, conspirarei, assassinarei, e farei
tudo o que quiser. Essa motivação frívola só
sufocaria qualquer sentimento de simpatia
54
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Resumo
Este trabalho pretende exemplificar como se pode fazer
psicanálise em extensão, assinalando as possibilidades
de uma interseção entre a psicanálise e a literatura.
Através da análise do personagem Don Juan, poder-se-á
mostrar, utilizando-se os conceitos psicanalíticos, o caráter
universalizante do personagem, na medida em que é um
personagem permanente – repetição inconsciente de uma
forma de ser na cultura.
Palavras chave: psicanálise, literatura, Freud, Dom Juan.
Abstract
This work aims at illustrating how one can make
psychoanalysis in extension, pointing out to the possibilities
of an intersection between psychoanalysis and literature.
Through the analysis of the Dom Juan character, one can
show, in the light of psychoanalytical concepts, the universal
nature of said character, as far as it is a permanent character
– an unconscious repetition of a cultural form of being.
Keywords: psychoanalysis, literature, Freud, Dom Juan.
debate
Psicanálise e literatura - Dom Juan e o engano da lista
Psychoanalisis and literature – Don Juan and the list
misinformation
Luiz Alberto Pinheiro de
Freitas
Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 53-67, 2007
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Luiz Alberto Pinheiro de Freitas
(1916) a respeito de Ricardo III, poderíamos dizer que Dom Juan
é uma ampliação do que encontramos em nós mesmos.
Vital Brazil, em 1992, afirmava que na nossa cultura havia
personagens que seriam representantes, inicialmente, de uma forma
de ser num determinado contexto sócio-histórico, no entanto, com
o decorrer do tempo, eles se mantiveram e passaram a ser não só
representativos daquela cultura, mas ganharam uma dimensão
universal. Esses personagens seriam permanentes, representativos
de certas matrizes da subjetividade, não se situariam mais em um
determinado tempo, - poderiam ser representantes de qualquer tempo.
A obra da qual se retira um personagem permanente inscreveu-se,
ao longo dos anos, no que Bakhtin (1970) chamou de a “grande
temporalidade” (p. 364).
Um texto literário permite que se utilizem os conceitos
da psicanálise para: “interpretar, dar sentido à sempre errante
linguagem do desejo inconsciente, fornecer alguma inteligibilidade
ao que surge como absurdo, como irrepresentável...” (Freitas, 2001,
p. 43). A interpretação de um personagem é sempre uma forma
que tem aquele que se utiliza da psicanálise, de enriquecer a obra
e a cultura em que ela está inserida, ampliando assim o alcance
da mesma ao produzir efeitos de sublimação. Uma interpretação
que será sempre parcial e que não esgota outras possibilidades
interpretativas.
Das centenas de dom juans criados a partir da concepção de
Tirso de Molina, há mais dois que se tornaram significativos: o de
Molière (1977) e o de Lorenzo da Ponte (1787). Dos três textos,
retiramos para exame algo que ganha certa dimensão, na medida
em que funciona como um processo evolutivo que chega a um ápice
– a lista de mulheres seduzidas. No libreto de Lorenzo da Ponte
encontra-se a impressionante cifra de 2.065 encontros amorosos.
A idéia da lista já se descortinava no texto espanhol
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debate
no auditório, se não fosse um pano de fundo
para algo muito mais grave. Do contrário,
a peça seria psicologicamente impossível,
pois o escritor deve saber como nos fornecer
antecedentes secretos que despertem simpatia
pelo seu herói, a fim de que possamos admirar
sua ousadia e desembaraço sem protesto
interior; e essa simpatia só pode basear-se
na compreensão ou no sentimento de uma
possível solidariedade interior em relação
a ele. (...) Ricardo é uma ampliação do que
encontramos em nós mesmos. [Referencia
feita por Freud à obra de Shakespeare,
Ricardo III], (1916, p. 355).
Desde que Tirso de Molina, pseudônimo do Frei espanhol
Gabriel Telez, editou, em Barcelona, no ano de 1630, a peça teatral
El Burlador de Sevilla, o herói Dom Juan corre mundo. É tal o
sucesso, que inúmeros outros escritores aventuraram-se, com o
decorrer dos anos e dos séculos, a promover alterações no texto
original. A impressão causada pela peça só pode ser verdadeiramente
explicada pelo fato das peripécias de Dom Juan produzirem um
prazer que “procede de uma liberação de tensões em nossas mentes”
(Freud, 1908 [1907], p. 158). A atividade dom juanesca consegue,
através da pena do frei mercedário, gerar sentimentos de simpatia
e magnanimidade, ou seja: “A verdadeira ars poética está na
técnica de superar esse nosso sentimento de repulsa” (Freud, 1908
[1907], p. 158) em relação às atuações perversas do herói. Essa
superação só é possível na medida em que o escritor desvia-nos de
qualquer reflexão crítica, e nos leva, de forma inconsciente, a um
apaixonamento pelo herói, produzindo assim, intensos efeitos de
identificação que remontam ao século XVII. Parafraseando Freud
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El tiempo la desterró
a Vejel.
Don Juan
Irá morir.
¿Constanza?
Mota
Es lástima vella
lampiña de frente e ceja.
Llámale el portugués vieja,
y ella imagina que bella.
Don Juan
Sí, que velha en portugués
suena vieja en castellano.
¿Y Teodora?
Mota
Este verano
Se escapó del mal francés
por un río de sudores;
y está tan tierna y reciente,
que anteayer me arrojó un diente
envuelto entre muchas flores.
Don Juan
¿Julia, la del Candilejo?
Mota
Ya con sus afeites lucha.
Don Juan
¿Véndese siempre por trucha?
Mota
Ya se da por abadejo.
Don Juan
El barrio de Cantarranas
¿tiene buena población?
Mota
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debate
Catalinón
Al fin ¿pretendes gozar a Tisbea?
Don Juan
Si burlar
es hábito antiguo mío,
¿qué me preguntas, sabiendo
mi condición? (Molina, p. 164).
Depreende-se que, sendo um hábito antigo, deve haver uma
longa lista de mulheres enganadas. Mais adiante, Tirso apresenta
outra passagem na qual Dom Juan e o Marquês de La Mota
comentam sobre várias mulheres, cortesãs conhecidas de ambos.
Don Juan
¿Qué hay de Sevilla?
Mota
Está ya
toda esta corte mudada.
Don Juan
¿Mujeres?
Mota
Cosa juzgada.
Don Juan
¿Inés?
Mota
A Vejel se va.
Don Juan
Buen lugar para vivir
la que tan dama nació.
Mota
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aventuras tivessem uma impressionante marca, a qual deveria
continuar sendo ampliada.
Leporello
Madamina, il catalogo è questo
delle belle che amó il padron mio:
un catalogo gli è che ho fatt’io
observate, legette con me.
In Italia seicento e quaranta,
in Almagna duecento e trentuna,
cento in Francia in Turchia
novantuna,
ma in Ispagna son già mille e tre
(cena 5, ato I, p. 7).
Utilizamo-nos do recorte da lista para podermos dizer alguma
coisa sobre o que faz com que o herói Dom Juan toque, de forma
intensa, a sensualidade humana ao longo dos séculos, inscrevendose desta forma na “grande temporalidade” bakhtiniana. Dom Juan
é o homem que pretende ser o maior burlador da Espanha, quiçá,
do mundo. Na sua obstinação pela conquista e pelo desprezo do
objeto conquistado ele diz:
Sevilla a voces me llama
El Burlador, y el mayor
gusto que en mí puede haber
es burlar una mujer
y dejarla sin honor (Molina, p. 172).
Há que se perguntar o que faz com que este homem ganhe
tal dimensão, o que será que ele apresenta e que nos toca de forma
tão intensa, a ponto de ser objeto não só de inúmeras refundições,
bem como objeto dos mais intensos estudos literários, sociológicos,
psicológicos etc.?
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debate
Ranas las más dellas son.
¿Y viven las dos hermanas?
Mota
Y la mona de Tolú
de su madre Celestina
que les enseña dotrina.
Don Juan
¡Oh, vieja de Bercebú!
¿Cómo la mayor está?
Mota
Blanca, sin blanca nimguna;
tiene un santo a quien ayuna.
Don Juan
¿Agora en vigilias da?
Mota
Es firme y santa mujer.
Don Juan
¿Y esotra?
Mota
Mejor principio
Tiene; no desecha ripio (p. 170-1).
Ou também na passagem seguinte de Molina:
Catalinón
Guárdense todos de un hombre
que a las mujeres engaña,
y es el burlador de España (p. 175).
Se Tirso de Molina trouxe a questão das várias mulheres
seduzidas – hábito antigo de Don Juan -, Molière modifica o nome
do criado de Don Juan para Leporello e trás a questão da lista:
“Se eu te fizesse a lista de todas com quem casou aqui, ali e acolá,
olha, você ia ter que tomar nota o dia inteiro” (p. 8-9).
Lorenzo da Ponte deu números, fazendo com que as
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é por acaso que não se fala na mãe de Dom Juan. “... nada nos é
dito da mãe de Dom Juan, e é possível supor que o absoluto dessa
beleza que o mantém permanentemente excitado é ela, em última
instância: originária, inacessível, interdita” (p. 235).
Pode-se também lembrar que as passagens em que Molina
apresenta o pai, o é como alguém com muito pouca ascendência
sobre o filho. A mãe, presença ausente, deixa implícita a Medusa
terrorífica que o Dom Juan-Perseu tem que, a todo momento,
decapitar com a sua espada-pênis. Dom Juan é espada!
A lista dom juanesca apresenta um outro aspecto que nos faz
pensar: quando Leporello fala sobre o assunto, seja em Molière
ou na ópera de Mozart é para desestimular uma reivindicação
feminina, no entanto, e a clínica com os homens nos mostra isso:
qualquer listagem de mulheres é para ser apresentada a outros
homens. É para que o dono da lista exiba-se narcisicamente frente
não às mulheres, mas ao universo masculino. Pode-se entrever a
ponta da lista quando um homem sente um “prazer segundo” ao
alardear ao amigo sua última conquista. A série da conquista é
utilizada como uma insígnia narcísica; e tanto maior será a insígnia
quanto mais, no imaginário social, a mulher for desejada; pois a
passagem dom juanesca também pretende despertar admiração e
inveja. E mais inveja ainda pode despertar, se aquele que se exibe
disser que “ela quer, mas eu não, é só sexo”. A mulher, a quem
qualquer um, do nobre ao pobre, foi em algum momento da vida
submisso, pelo menos por tê-lo parido, torna-se uma figura cujo
registro da referência do dar a vida faz com que os homens tentem
“denegar” sua importância. O poder fálico do Dom Juan “estaria
destinado a servir de contrapeso ao poder de uma mãe inominável”
(p. 235).
As listas formais, e na maioria das vezes informais, correm
entre os homens, desde os encontros de adolescentes até os grupos
da senescência. Discutem, normalmente de forma depreciativa,
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debate
Mas o que faz correr Dom Juan? O que procura
ele? E, reciprocamente, para sua infelicidade
e abandono, o que atrai para ele as mulheres?
Por fim, o que reúne em torno de Dom Juan
esses homens que se imaginam, se desejam,
se comportam como se fosse ele? (Kristeva,
1983, p. 226).
A terceira pergunta feita por Julia Kristeva pode nos levar,
através da análise do porquê do catálogo, a uma das pontas do
leque de possibilidades do conflito homem- mulher. O catálogo
de Lorenzo Da Ponte ou a lista de Molière são como as provas,
o registro das seduções. Elas podem ser reduzidas a números, já
que El Burlador de Sevilla nada mais pretende do que a conquista.
É gozar e fugir. Após o intercurso, o herói quer uma outra, uma
nova; é a possibilidade da permanente mudança de objeto o que
atrai, já que o objeto não é para ser mantido – vai ser apenas um
número na lista. A lista, como prova, a lista como burocracia,
como representante da institucionalização das relações afetivas.
As mulheres como membros de uma série (Sartre, 1963). Kristeva
nos fala que: “Por mais malicioso que seja o prazer dessa conta, ele
não capitaliza no limite mais que o sadismo de reduzir a números
as possuídas de uma paixão que, para o Senhor, não é uma conta
mas um jogo” (p. 227).
Todavia, é exatamente a questão de quantas e quantas vezes
esse Senhor dá provas do não querer, do não precisar manter o
objeto. A lista funciona como um atestado do engodo da plenitude,
pois na posição “divina” não há que se considerar um outro
desejante. Não há “o outro” de Deus. E, é essa posição divina do
herói que vai produzir intensos efeitos identificatórios. Ser um Dom
Juan, para um homem, é sentir-se, in extremis, não necessitado da
mulher, poder negar esse histórico da vinculação materna – não
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o reconheça como tal!
...os homens, nas suas disputas pelos objetos sexuais disponíveis,
sempre encontram fórmulas para se pavonearem uns diante dos outros.
Nessa permanente competição fálica, o valor de cada um é dado pelo
número de mulheres a que tem acesso sexual. (...). Nas suas disputas
fálicas, os homens tem um prazer incomensurável, um segundo gozo,
que é o de poder despertar a inveja do outro pelas mulheres que desfruta.
(...). Por vezes é necessário ir mais longe, chegar até a confissão, nomear
a mulher, fazer o outro imaginar a cena e deliciar-se com a inveja
(Freitas, p. 112).
Freud, em 1937, numa nota de pé de página, chamava atenção
para o que Adler denominou “protesto masculino”, ou seja, o medo
que os homens têm de se sentirem submetidos a outro homem.
... tais homens com freqüência demonstram
uma atitude masoquista – um estado que
equivale a servidão – para com as mulheres.
O que eles rejeitam não é a passividade em
geral, mas a passividade para com um homem.
Em outras palavras, o ‘protesto masculino’, de
fato, nada mais é do que ansiedade de castração
( p. 287).
Na nota citada, ele não deixa de fazer referência a uma
possibilidade de servidão para com as mulheres, ou seja, essa
permanente depreciação da mulher transformada em mero elemento
de uma série, nada mais seria do que uma denegação da importância
da mulher, tanto que a lista também assinala quantas mulheres são
necessárias para que o homem possa manter permanentemente
aplacada sua ansiedade de castração.
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debate
sobre as mulheres com as quais fizeram sexo. O dom juanismo é,
prioritariamente, uma demonstração de potência para os outros
homens, não para as mulheres – em princípio, um homem que
teve muitas mulheres é, entre os homens, muito mais valorizado
do que aquele que teve poucas. A lista numerosa é um belo phalus
a ser apresentado. Uma extensa lista é um cartel que o coloca, em
relação ao protesto masculino freudiano, como alguém que não
se submete.
Esse dar provas de independência frente à mulher e,
conseqüentemente, aos homens, faz com que esse homem possa
ser visto como um semideus, como alguém que não precisa de
ninguém; por isso pode se dar ao luxo de gozar indefinidamente – na
posição divina não se sofre por amor, não há luto a ser elaborado. A
dor pela perda do objeto amado é um dos maiores sofrimentos a que
nos condenou a mãe Natureza. “Chama-me Natureza ou Pandora;
sou tua mãe e tua inimiga” disse Machado de Assis (1881) no
delírio de Brás Cubas (p. 422). Tirso de Molina faz a correção, tira
a parte inimiga e produz um homem que não necessita de mulher,
independente da mulher, todavia, o lado sádico do herói aponta
para a denegação da mulher.
O texto correu mundo, foi alterado, aumentado, recriado,
no entanto, continua a atrair, notadamente aos homens, que se
sentem lisongeados com a alcunha de dom juans em virtude da
identificação com este que, só utiliza as mulheres para gozar e
apregoar, aos sete ventos, o quanto lhe agrada ser temido por elas
e admirado pelos homens. Uma tal “independência” é para ser
desejada, e no íntimo de um homem, quem sabe não palpita este
desejo impossível de liberdade. A posição divina, onipotente, só se
consegue através das artes, e a literatura é uma das mais propícias
a este tipo de fantasia - poder dizer, sem rodeios, que o que mais
gosta é enganar uma mulher e deixá-la sem honra, e que o mundo
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O herói nos faz sonhar com um mundo libidinoso, sem censuras,
sem interditos sexuais. É o homem que valoriza um erotismo
amoral, um homem da conquista sem a posse, um homem a
quem, em matéria de mulher, a auto-censura é bastante leniente.
Don Juan inverte a máxima Machadiana de que “O maior pecado,
depois do pecado, é a publicação do pecado” (Machado de Assis,
1891, p. 579). Ao contrário, ele é a favor da maior divulgação
possível do pecado. Ele quer que todos saibam que ele é, entre
todos, o maior sedutor, o maior burlador de mulheres. No tocante
ao aspecto erótico ele não teme nada. Tal poder fez seduzir muitos
leitores, produzindo identificações que o levaram à categoria de
personagem permanente, e ao qual sempre podemos voltar em
busca de referencias as matrizes da subjetividade. Ele ganha uma
posição de personagem permanente, pois pode condensar valores,
denotar o complexo, o diferente e o plural, uma condensação que
visa atribuir algum sentido à história do ser humano. Dom Juan é
um exemplo consistente dos desejos inconfessáveis que perpassam
o homem, e indica uma matriz de origem da própria cultura.
Luiz Alberto Pinheiro de Freitas
Av. Ataulfo de Paiva 135/1313
Leblon – Rio de Janeiro – RJ
fone: (21) 2239-2446
e-mail: [email protected]
Referências
BAKHTIN, M. (1970). Os estudos literários hoje. In: Estética da
criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
FREITAS, L. A. Freud e Machado de Assis: uma interseção entre
psicanálise e literatura. Rio de Janeiro: Mauad, 2001.
FREUD, S. (1908 [1907]). Escritores criativos e devaneio. Rio
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Dom Juan é um personagem que produz o devaneio do
homem “livre” da mulher, livre das tormentas da rejeição, livre do
permanente mal-entendido entre os sexos. Dom Juan é o homem
de apenas um encontro, e nesse encontro ele vive o seu triunfo
narcísico para, no momento seguinte, incrementar a certeza da
possibilidade de viver uma solidão sem sofrimentos. Ele segue só;
a mulher denegada enquanto objeto de amor serve apenas como
alimento dionisíaco. “...as mulheres não são, contudo, objetos:
pré-objetos, elas passam de interdito não à divinização, como já se
disse, mas servem à glória do próprio sedutor” (Kristeva, p. 237).
Dom Juan surge como o cavaleiro solitário, um homem a quem o
investimento afetivo nas mulheres se esvai num átimo.
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Os novos modelos de consciência
New models of consciousness
Ronaldo Lima Lins*
Resumo
Os caminhos da pós-modernidade e a instalação social de
novos modelos de consciência. O estado de dilaceramento
da individualidade e a solidão do intelectual, diante da
impossibilidade de interferir. A liberdade posta numa camisade-força.
Palavras-chave: lógica aristotélica, consciência, liberdade,
novos condicionantes históricos, papel do intelectual.
Abstract
New models of consciousness as a consequence of postmodernity culture. The broke- mind state of individuality
and the writer’s state of solitude facing his impossibility
of interfere in this process. Freedom put into a straitjacket.
Key words: Aristotle’s logic, consciousness, liberty, new
historical paragons, the intellectual role.
* Professor Titular de Teoria da Literatura e Diretor da Faculdade de Letras da UFRJ;
autor de diversas obras publicadas, entre romances e ensaios, sendo A indiferença pósmoderna. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2006, a mais recente.
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Os novos modelos da consciência.
New models of consciousness.
Ronaldo Lima Lins
‘À quel moment avez-vous commencé à écrire?’ demandaiton à un viel homme, assis à sa table de travail.
‘Depuis que le livre s’ouvrit au livre’ , fut sa réponse.
Jabès, Edmond. Le livre du partage.1
A importância da lógica predicativa aristotélica na construção
do pensamento ocidental e no enfrentamento dos desafios que
surgiram do ponto de vista da organização social mostra-se
indiscutível. Só há pouco tempo, em termos históricos, a filosofia
começou a se interrogar se estava, diante dela, frente a uma
verdade absoluta. A indagação já contestava um status quo no qual
a argumentação obedecia a um encadeamento de rigidez suspeita.
Por tal modelo de consciência, não havia como romper com os
elos da opressão. O que sempre acontecera justificava o acontecido
e sua continuação. Ainda que a Revolução francesa, assumindo
o critério da razão como guia das decisões, representasse uma
reviravolta, um basta nos hábitos consagrados pelo antigo regime
(eles considerados retrógrados e injustos), retomou, mais do que
JABÈS, Edmond, Le livre du partage. Paris: Gallimard, 1987, pág. 11. “Em que
momento começou a escrever ?” – perguntava-se a um velho, sentado em sua mesa de
trabalho”. “Desde que o livro se abriu para o livro”, foi a sua resposta. (Versão nossa.)
1
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e por métodos de apropriação, de valores mais humanos, capazes
de oferecer uma defesa real contra os desafios da natureza e suas
violências. A mola do lucro e a obsessão pela idéia do progresso,
por seu turno, voltaram-se contra os manifestos do marxismo,
organizando-se com as armas do poder e da ideologia em defesa
do regime. Nova contradição. Aproveitando os ensinamentos
de Hegel, Marx fizera de sua filosofia o combustível volátil
da inspiração revolucionária com vistas a uma sociedade que
trocasse a divisão de classes pelo comunismo. Agora, não havia
unicamente a lógica predicativa aristotélica para nos orientar. Uma
verdade dominante podia se desfazer em minutos, derrubada pela
contradição e seus efeitos. Sob a opressão, o indivíduo tinha como
imaginar alternativas, em vez de chorar as mágoas do destino
e entregar-se a ele. Hegel pensara na dialética para decifrar os
alicerces do processo. Marx agregara a meta da síntese ao duplo
da tese e da antítese, com ênfase na emancipação dos oprimidos.
Travava-se uma discussão lá onde o poder de abstração
dos homens faz e desfaz. Não se parou para constatar que, ao
nível da individualidade, a lógica aristotélica permanecia válida,
como uma lei intransponível. Quando se atirava no universo dos
sonhos, a pessoa encontrava, então, modos de libertar-se, mas, na
circularidade do cotidiano nada disso se confirmava. Causa e efeito,
os dois gêmeos, continuavam governando os homens em cada um
dos seus movimentos: na hora de ir para o trabalho, de receber
o salário, de enfrentar a fome, a dor, a doença, a competição, os
inimigos etc. Estava-se entre duas esferas: a do encadeamento e
a da contradição, como se nos fosse possível conviver com duas
verdades e submeter-nos a ambas não obstante o absurdo.
Mas o que é a consciência, de que modo a vemos?
“Ele a comia com os olhos”. Esta frase e
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inovou, o que os gregos haviam criado e Aristóteles sistematizara
e explicara. Ao entendimento humano qualquer outra fórmula
chocava-se contra os fatos e devia ser descartada. Para que uma
verdade se firmasse, cumpria que uma corrente de elos articulados
se realizasse, sem que nada, no processo, chegasse a quebrá-la.
Observado esse pressuposto, acreditava-se que não havia motivos
de desconfiança. Mesmo assim, a Revolução e as inaugurações que
ocasionou puseram em curso, tudo virando de cabeça para baixo,
a presença da contradição. Aos que a testemunharam, a impressão
que se ficava era de uma realidade em negativo, algo que enfatizava
e enfeitava a beleza da contradição. Em quase todos os segmentos
da vida comunitária instalara-se um espetáculo de convivências
impossíveis: a nobreza e a burguesia; o rico e o despossuído;
o dinheiro e o desprendimento; o sucesso e o insucesso – tudo
constituindo ingredientes num caldeirão em estado de fervura. O
surgimento de uma novidade não eliminava, por assim dizer, o
antigo e o tradicional. O próprio burguês, antes tão antagônico,
embora exibindo prudência e contra os excessos, começou a
encontrar qualidades positivas na velha e gasta aristocracia e a
sonhar com elas, acalentando o desejo de absorvê-las e incorporálas entre as suas características.
Outras contradições se abriram: o patrão e o operário. Aqui
a convivência se provava implícita aos modos de existência
econômica. A premissa da unidade, consolidada por séculos pela
visão teológica, projeto que pressupunha uma redenção nesta vida
ou depois da morte, caía por terra para só se levantar no interior
das utopias políticas. Marx veio com as suas teses para lutar contra
as injustiças e difundir a proposta de uma retomada de um resíduo
do passado: a hipótese da totalidade integrada e coerente posta
adiante. O devaneio se justificava por intermédio de uma leitura da
história pela qual se sugeria o abandono, pela pressão dos interesses
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pois ela me escapa e me repele e eu não posso
mais nela me perder assim como ela não pode
se diluir em mim: fora dela, fora de mim. Não
está aqui, nesta descrição, o reconhecimento
de suas exigências e pressentimentos?(Idem)
Sartre acrescenta que, de fato, sabíamos de antemão que
a árvore não se achava em nós, que nós não podíamos fazê-la
entrar em nossos estômagos sombrios e que o conhecimento
não podia, sem desonestidade, comparar-se à posse. A liberdade
entrava, enfim, no terreno da consciência, depois de atravessar um
longo percurso que se iniciara nas discussões políticas. Todos os
regimes, uma vez estabelecidos, se esforçaram (e provavelmente
se esforçam) em atingir a esfera do saber e associar-se a ela se
possível com tal perícia que ambos se identifiquem e se misturem.
A modernidade ocidental não escapou do fenômeno. A iniciativa
de Sartre pressupõe uma alternativa – e resulta, com certeza, da
ausência de uma dominação unipolar. A possibilidade de manter
em curso interpretações díspares dos eventos criava aberturas que
chegaram ao centro da filosofia e das idéias que desenvolvera em
torno da noção de consciência.
(...) se, por impossível, alguém entrasse numa
consciência, seria apanhado por um turbilhão e
rejeitado para fora, perto da árvore, na poeira,
porque a consciência não tem “dentro”; ela
é apenas o fora dela mesma e é esta fuga
absoluta, esta recusa em ser substância que
a constituem como consciência. Imagine-se
agora uma sucessão ligada a explosões que
2
SARTRE, Jean-Paul. Situation philosophiques. Paris: Gallimard/Tel, 1998, pág.
9. Esta e todas as demais citações do mesmo livro, aqui presentes, estão em versão
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muitos outros sinais marcam a ilusão comum
do realismo e do idealismo, segundo a qual
conhecer é comer. A filosofia francesa depois
de cem anos de academicismo, ainda se
encontra no mesmo patamar. 2
Sartre realizará um esforço no sentido de desembaraçar essas
categorias (do conhecimento e da consciência) de seus antigos elos.
Ele desejava diagnosticar outros meios que possibilitassem o saber,
entendendo que o papel da consciência sofrera modificações e não
poderia mais funcionar segundo os modelos anteriores. Procura
pistas na fenomenologia de Husserl.
O que é uma mesa, uma rocha, uma casa? Uma
certa reunião de ‘conteúdos de consciência’, uma
ordem de tais conteúdos. Ó filosofia alimentar!
Nada parece, no entanto, mais evidente: a mesa
não é o conteúdo atual da minha percepção, a
minha percepção não é o estado presente da
minha consciência?(Idem)
A simples investigação assinala o estágio em que nos
encontrávamos no decorrer do século XX com relação às formas
de compreensão. Tudo acontecera rapidamente – e a reflexão
filosófica não movera ainda as suas engrenagens com velocidade
para digerir os fatos.
Conhecer é ‘estourar em direção a’, arrancarse à úmida intimidade gástrica para infiltrarse lá, além de si, em direção ao que não é o
si, lá, perto da árvore e, no entanto, fora dela,
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serem adquiridos e usados pelos próprios interessados, ainda que
isso se dê no interior de um aparato cada vez maior de alienação.
Dali por diante, o conceito adquiriu uma fisionomia confusa e
difícil de entender.
Um dos problemas do registro em que nos metemos diz
respeito ao tipo de liberdade à qual nos referimos. Ele serve a
interesses, é claro. Também se presta a erupções, surpreendendo
às vezes, onde não se esperava que irrompessem. É estranho falar
assim porque se toca numa espécie de estado de anomia estrutural
dentro do modo de organização, como se este, controlando tudo,
deixasse qualquer coisa de fora, incapaz de atingi-lo. Ou então,
como se, na ordem, houvesse, por definição, algo como uma
contrapartida, uma contradição de base, transformando o positivo
em negativo. Isso se verifica no esforço de racionalização em cuja
perfeição pipocam impurezas e ervas daninhas. Zygmunt Bauman
assinala como uma fragilidade da razão o desejo de esmagamento
contra o que lhe escapa, impedindo que a natureza se realize
dentro de sua vocação. O lixo doméstico produzido pelos seres
humanos, agora acrescentado ao lixo industrial, escapa ao esforço
de reciclagem, cada vez maior, e aponta para a hipocrisia da
modernidade em sua obsessão por limpeza. Com tudo isso, não se
valorizam, quando se manifestam, as demonstrações de resistência
aos abraços da repressão e aguardamos uma tomada de consciência
da opinião pública a qual agora, para conseguir mudanças, deve
mudar ela própria, ao contrário do passado.
Liberdade, a grande descoberta do século XVIII, permanece
um ideal, senão a buscar, sem dúvida a orientar os movimentos.
A simples menção do conceito, em certas situações, provoca
SARTRE, Jean-Paul. « Une idée fondamentale de la phénoménologie de Husserl :
l’intentionalité ». idem, pág. 10.
3
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debate
nos arrancam de nós próprios, que não deixam
mesmo a um “nós próprios” o lazer de se
formar por trás deles, mas que nos atiram ao
contrário além deles, na poeira seca do mundo,
sobre a terra rude, entre as coisas. 3
É assim que a consciência, na leitura que Sartre realiza do
pensamento de Husserl, vira, como sua condição sine qua non
“consciência de alguma coisa”.
A dedução comporta uma importância capital, dentro da
situação de hoje, exatamente porque, por um lado, supomos que
somos capazes de defender a consciência e, por outro, sentimo-nos
absorvidos por forças que, apoderando-se da nossa vontade, levam
até a idéia de consciência e a engolem. Assim, como num passe
de mágica, a liberdade que prezáramos desaparece. A ideologia
dominante não perde tempo. A teia de relações em torno do conceito
de lucro (visto como bom, ao qual devemos perseguir porque luta
contra a preguiça e a favor do progresso) sacode a sociedade quase
sem deixar áreas intocadas. Da pequena tribo que habita a floresta
às gangues que se movimentam nos meios urbanos das grandes
metrópoles, tudo se encadeia e justifica no roteiro do que passamos
a denominar de neoliberalismo. É difícil, nesse panorama, assegurar
as conquistas daquilo a que um dia chamamos liberdade. O sistema
faz dela um patrimônio seu, desde que não termine por colocá-lo em
risco. E também não se pergunta que liberdade é essa, a sua.
Sente-se que uma violência de base se mistura à época,
por meio de homologias que, com efeito, sem dar a impressão
de revelá-la, tocam nas molas da ideologia. O primeiro passo,
em semelhante direção, consistiu em desvalorizar a categoria de
indivíduo, instância cujo domínio, para que a manipulação da
opinião se consumasse, dependeu do desenvolvimento tecnológico
e da introdução no comércio de mecanismos de autocontrole a
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ou erupções lhe revelam a existência, negada, a cada instância,
pelo discurso oficial ou reduzida a problemas localizados, quando
se somam a um conjunto ou à malha da ordem constituída. Para
romper com o véu que se nos interpõe e olhar de frente, para entender
o fenômeno, parece útil que nos aproximemos de um pensamento
capaz de proceder a uma leitura alternativa dos eventos. O ensaio
da crítica literária, relegado a um segundo plano, dentro do quadro
hegemônico, possui um papel, desde que deixe de se resumir a
um jogo de dândis desocupados para traduzir, ao contrário, a
seriedade dos testemunhos. Saliente-se que a literatura sempre
caminhou com autonomia – ou não caminhou, impondo-se com
a agilidade com a qual se representa. Trata-se de uma autonomia
que ultrapassa a concepção do autor ou suas opiniões. É como o
conservadorismo de Balzac não impediu a denúncia da sociedade
burguesa e suas anomalias. Que o escritor não esteja consciente do
rumo não oferece empecilho para que a narrativa encontre o seu
caminho. Nessas horas é quando a crítica cresce de importância.
Ela pode efetuar um trabalho que a filosofia não efetuou. Sartre é
um bom exemplo, enquanto ficcionista, contista, teatrólogo, com
os subsídios que procurava na composição do tecido filosófico – e
vice-versa, fazendo dela modos de desdobrar reflexões e afinar o
saber em relação ao meio.
Descobrir contradições é um passo, mas não o único para
chegar ao mecanismo da opressão em escala industrial. As próprias
contradições se encaixam num conjunto que, por seu turno, não
se limita a um poder superior. Tem a ver com a liberdade e as
formas como ela se apresenta no interior da sociedade. O próprio
Sartre, preocupado com a noção de consciência e interessado em
desvendar as redes de alienação, assinala como um sinal de alerta
a inexistência de uma liberdade única, como se representasse uma
entidade específica.
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terremotos. Todos falam em nome dela, inclusive os regimes
autoritários. Em nome da liberdade, sustentam-se prisões e
doutrinas irregulares de detenção que agem por sobre os códigos
da justiça. A observação comporta um caráter literário, na medida
em que a forma de expressão transita nos espaços do devaneio e a
eficiência do que contém em termos de crítica liga-se à dificuldade,
aceita pela época, com que nos conduzimos previamente. É uma
particularidade da criação a necessidade de expandir-se com
total desembaraço. No interior de uma opção política favorável à
circulação de mercadorias, a livre circulação das idéias precisava
surgir como uma seqüela. É como se explica a vasta produção
de pensamento e de invenções artísticas ocorridas nos últimos
duzentos anos. Explica-se, além disso, a face contraditória, sempre
repetida, entre aquilo que se afirmava, como discurso oficial, e
aquilo que se vivia e que se traduziu nas artes. Ao otimismo que
se exibia quanto às energias postas em prática no exercício da
condução das coisas, contrapuseram-se as sombras e a exibição
do sofrimento.
A consciência possui um ritmo e demora em se dar conta da
contrariedade contestatária. Pior ainda quando as compensações
se acham ao alcance. Na África do Sul, muitos anos de opressão,
amadurecendo lentamente, como um abscesso, resultaram numa
declaração de independência, não só do país (que já não dependia
de laços coloniais), mas da maioria africana contra a minoria branca
e européia. A liberdade era um patrimônio privativo de alguns, dos
poucos segmentos que seguravam as rédeas do poder. Reclamavase por ela como um clamor internacional contra a violência da
injustiça. Estamos, hoje, numa situação de normalidade aparente,
lá ou no resto do mundo, assentada sobre um vulcão. Os acidentes
4
SARTRE. Jean-Paul. « La liberté cartésienne », idem, pág. 61.
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qual as nossas escolhas recaem justamente sobre graus e áreas de
liberdade e que tenhamos aberto mão de outros. Mesmo os pobres
compram, ao contrário do passado, quando a pobreza implicava
numa vida de contenção e precariedade. O crédito impulsionou
o capitalismo inclusive de nações emergentes. O problema está
na realidade do poder de compra, no que uns possuem e outros
não, na sociedade diversificada e desigual entendida como a única
que fomos capazes de desenvolver.
Em que tem relevância, para as nossas reflexões sobre cultura,
a existência da liberdade fatiada?
Ajuda a compreender o funcionamento da consciência.
Saber que alguém se mostra livre numa esfera e oprimido
em outra, saber que aceitamos um benefício em troca de um
malefício, compõe um quadro dentro do qual precisamos nos situar.
A liberdade que desenvolvemos se liga a ações voluntárias. É da
alçada do indivíduo a escolha dos seus movimentos, dos desejos
que deve satisfazer, dos livros que lhe convém ler, dos candidatos
em quem votar para ocupar cargos públicos. A consciência em
Sartre não pode se mostrar interessada. No relacionamento que
trava com o conhecimento, cumpre que permaneça de fora. Não
há consciência dentro de um processo, exatamente porque a visão
do mundo que se elabora então se mistura inevitavelmente com
a dinâmica dos fatos. É o que explica que os períodos decorrem
primeiro para que somente em seguida possamos avaliá-los e
detectar suas causas.
E como estar de fora? A literatura é um modo de estar dentro
ou fora?
Não espanta que desde o século XIX a narrativa na qual nos
tornamos mestres utiliza um observador que ocupa a posição de
neutralidade. Foi a fórmula encontrada para que não se deixasse
contaminar pelos acontecimentos descritos e que comunicasse ao
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Existem muitas liberdades, umas dentro de outras, umas
fora, independentes, agressivas, ambiciosas. Diz ele: “É uma
coisa, com efeito, experimentar que se é livre no plano da ação,
do empreendimento social ou político, da criação nas artes, e uma
outra coisa experimentar a liberdade no ato de compreender e de
descobrir” 4.
E acrescenta, explicando-se melhor:
Um Richelieu, um Vicente de Paula, um
Corneille teriam tido, se houvessem sido
metafísicos, certas coisas a nos dizer sobre a
liberdade, porque a tomaram por uma ponta,
um momento no qual ela se manifesta por
um acontecimento absoluto, pela aparição do
novo, poema ou instituição, num mundo que
não a demanda nem a recusa (Idem).
Há instantes ou situações nos quais o sentimento de
opressão é tal que nos fica a impressão de uma vigilância sobre
os nossos passos, ações ou movimentos. Em outros, dá-se o
inverso. O fato de nos ser possível entrar numa loja e comprar
(a característica da sociedade de consumo) garante uma idéia de
liberdade que antes não se difundia. O mercado de facilidades
torna irrelevante que, em compensação, as pressões se exerçam
localizadas, pressões que aumentam até em função da aparente
possibilidade de expressar-se, quando, na verdade, o que é
possível e o que não é depende de regras e normas constituídas.
No auge do totalitarismo, houve produção literária e artística,
ainda que semelhante produção se afine e cresça quando se respira
independência e autonomia no plano individual. Não se descarta
a hipótese de que nos encontremos num período histórico no
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Entende-se que uma coisa contamine a outra e que transfiramos o
interesse de uma mercadoria para outra com a mesma velocidade
com que nos chocam as informações de depravação na crônica do
cotidiano da vida urbana.
Uma guerra é uma anomalia, não obstante o caráter peculiar
que guarda, presente em todos os períodos da história entre os
meios de afirmação de um povo sobre os outros. As guerras de hoje
parecem, no entanto, travadas em fronts ao mesmo tempo distantes
e próximos nos quais o inimigo nem sempre é o estrangeiro.
Quando a ameaça mora ao lado, fala a nossa língua, cruza os nossos
passos quase todos os dias ou se deixa observar na sua miséria, o
combate assume uma feição distinta. Por baixo da paz (já que não se
trava um conflito declarado), fervilham rancores permanentemente
à espreita, à procura de uma brecha para emergir. Assaltos,
estupros, crimes sofisticados não alimentam apenas as páginas da
imprensa policial. Povoam a mente como fantasmas e oferecem
matéria para a literatura. Ocupam lugar no sensacionalismo da
mídia, cuja sede de assuntos que apelem ao clamor geral se revela
insaciável. Boa parcela da produção artística em curso (erudita
ou popular) recolhe da violência os seus temas, numa inversão
das funções da narrativa. O hábito de ver as imagens daquilo que,
em outros termos, seria uma tragédia, não denuncia. Insensibiliza.
O espectador se surpreende às vezes com sono diante de corpos
estraçalhados, dormindo quando mais deveria ficar em vigília. O
que representa isso? É manifestação de liberdade? Por qual viés
entra nos escaninhos da normalidade?
Como vivemos num cerco que dá a impressão de se
fechar, sufocando-nos aos poucos, claro que, além da produção
sensacionalista, voltada para os lucros, uma, realmente séria,
não pode deixar de tocar no assunto. O brilhantismo de Kafka,
instalando o absurdo na superfície ingênua do cotidiano sem
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debate
leitor o esforço de isenção. Feito o levantamento, não é impossível
que um diagnóstico de conteúdo moral surja como se, sem ele, não
houvesse como concluir a história. Mas também é verdade que,
forçando-se a ficar de fora, o autor aumente os recursos aos quais
pode recorrer para analisar o material da composição ficcional.
A posição de fora do narrador independente e neutro, que opta
por privilegiar a isenção, criou espaço em nossa compreensão para
o salto seguinte: a desobrigação moral, graças à qual qualquer coisa,
pessoa ou situação, entra no espaço literário, inclusive a perversão.
A perversão representa, aliás, uma das obsessões do nosso tempo.
Adquiriu-se um interesse particular por ela. Protegidos pelo véu
da imaginação, gostamos de acompanhar como age e quais os
estragos que realiza. Aprendemos que, querendo ou não, integra
as características da natureza humana. Por um desvio de atenção,
o aumento de prestígio que sofreu, cada vez mais presente no
cinema ou na literatura, aponta para um traço intrigante, uma
significação em nossa forma de estar no mundo. Como surgiu
na modernidade, com Sade, antes quase inexistindo, ausente dos
fenômenos sociais, pode não ser exagero associar uma coisa e
outra. Há anomalias constituintes do progresso científico, a não
ser que não consideremos perversas as armas de destruição em
massa aperfeiçoadas pelos Estados Unidos no final da II Grande
Guerra e depois partilhadas pelo clube fechado (mas cada vez mais
aberto) do poderio nuclear. Há também, embora nem sempre as
consideremos como tais, anomalias no plano social, às quais nos
habituamos como males temporários ou frutos de crise econômica,
muito mais do que como opções ou especificidades de um regime.
Há anomalias de visão moral. Não nos esqueçamos que, na
sociedade burguesa, pela necessidade de revolucionar os costumes
por influência de pressões econômicas, opiniões e conceitos tiveram
de se adaptar às novidades, até assumi-las como aceitáveis ou boas.
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ou da ausência dele, é que possui um pé na existência material e
outro no mundo do espírito. Extrai a substância de uma e a forma
da segunda. Pode expor e conceituar. Novamente estamos com
Sartre quando diz que “o intelectual é aquele que se mete onde
não é chamado”. Um cientista, na sua bancada, preocupa-se com o
avanço do saber. Enquanto isso, o intelectual, posto em outra esfera,
julga e critica o uso de suas descobertas, o aspecto moral do que
traz para a humanidade. Pode fazê-lo porque se mete onde não é
chamado. Não importa que não possua a vocação de administrar;
na política do governo, freqüentemente mostrou-se um fracasso.
Com a transferência de um status para outro, abriu mão do principal
dos seus poderes, o de ficar de fora. Nada disso invalida a justiça
de suas observações. O autor de A náusea não ocupou cargos, não
se contradisse e levou a militância até o fim, intensificando-a nos
últimos anos de vida, quando já sofria de cegueira e não podia
escrever. Encontrou nela um projeto. Conservou liberdade e a
consciência, de acordo com as suas convicções. Um intelectual que
governa já não é um intelectual. Passou à condição de governante,
de gestor, de administrador.
(...) todo homem é projeto: criador, porque
inventa o que já é, a partir do que ainda
não é, sábio, uma vez que não realiza sem
determinar com certeza as possibilidades que
permitem levar adiante o empreendimento,
pesquisador e contestatário (porque o fim
posto indica esquematicamente os seus meios,
na medida em que ele é ele mesmo abstrato
deve buscar os meios concretos, o que quer
dizer precisar por eles o fim e enriquecê-lo às
vezes desviando-o. Isto significa que coloca
em questão o fim pelos meios e reciprocamente
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debate
sobressaltos, abriu caminho para situações literárias nas quais a
convivência se situa entre o natural e a anormalidade. A noção de
que nos enxergamos num furacão, sem avaliar a extensão do fato,
como se a catástrofe só atingisse os outros, assinala o realismo
(sem neo-realismo) da época.
Muito cedo, Sartre observou o impacto de certos contextos
sobre a linguagem. Estava perto da ocupação da França pelos
alemães para lembrar que a inversão toma conta às vezes da palavra,
de tal maneira que, de repente, paz pode significar beligerância e
vice-versa. É, afirma ele, uma doença que atinge a capacidade da
fala. Liberdade passa a querer dizer opressão, e socialismo regime
de desigualdade social. Por causa disso, não devemos confiar no
que ouvimos sem reservas, porque, de outro modo, entenderemos
trabalhadores como vagabundos; professores como ignorantes
ou preguiçosos; saúde como enfermidade ou doentia obsessão; e
literatura como passa-tempo.
Na obra de John Coetzee, os nomes dados às coisas não se
revestem de camuflagens. Ali se acha a perversão, a paz que é
uma guerra, o amor que é insensibilidade, a sexualidade que não é
prazer. Nada se coloca como figuração ou enfeite. Também não se
insinua uma revolta vazia, sem direção e sem inimigo distinguível.
O inimigo somos nós: nós e nossa história, o mundo legado pelos
nossos antepassados, implicando como coniventes todos os que
fecharam os olhos para as anomalias, ou se beneficiaram com elas,
supondo, quem sabe, que os descendentes conseguiriam corrigilas. Não se trata da possibilidade de substituir uma coisa por
outra, as modificações de superfície eternizam os problemas, sem
atingi-los. A vantagem da posição do escritor, diferente daquela
do ser vivo, de carne e osso, submetido às contingências do poder
5
SARTRE, Jean-Paul. “Les intelectuels”, idem, pág. 221.
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seriedade não se afasta desta posição de meio, nem lá, nem cá,
para conservar a segurança e a lucidez na discussão. É preciso
admitir que se trata de uma opção excepcional, mesmo no
ambiente intelectual. Daí a ocorrência histórica da cooptação,
transformando opositores com nomes respeitáveis em adeptos – e
desmoralizando-os, como aconteceu no nazismo. É, igualmente, a
razão que leva muitos governos a procurar cercar-se de gente com
a qual tenha como incorporar e absorver prestígio, um prestígio,
no caso, tomado por empréstimo. O reinado de Luiz Napoleão
oferece um exemplo da estratégia que, no entanto, não se esgota
nele. Na democracia burguesa também há fenômenos semelhantes.
A ligação de intelectuais com um partido, seu desligamento, ou a
ausência dos mesmos dá a idéia de fortalecer ou enfraquecer os
governantes junto à opinião geral. A rigor, uma legenda com listas
de assinaturas desses nomes, consagrados nas áreas da cultura, faz
imaginar que o público, menos atento para a inteligência das ações,
entenda que acertou ou que errou. As ditaduras não se mostram
imunes a tais fatores. Desanimam quando se anuncia a dissidência
e a discordância de artistas e escritores; registram mais à vontade
o dissabor quando se trata de políticos, porque estes disputam
o poder e não existem para concordar, ainda que possam pesar.
Verificou-se isso quando da existência da União Soviética, país
que conjugou a tomada de poder e o apoio de intelectuais e que aos
poucos se afastou deles, até cair no isolamento de uma estrutura
burocrática, quase apática no fim, quando, sob a administração de
Gorbatchev, desabou como um fruto maduro que já não se sustenta
e não segura no pé.
Segundo Sartre, é preciso uma sociedade dilacerada para
que se conheça o personagem do intelectual. Com efeito, do
século XVIII para cá, a produção cultural cresceu a olhos vistos, se
comparada com épocas anteriores. O balanço que realizou dá conta
86
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debate
até que o fim se torne unidade integrante dos
meios utilizados). 5
Ao alcançar este ponto, acrescenta, cumpre decidir se “vale
a pena”, isto é, se o fim integrante visado do ponto de vista global
da vida, merece a amplitude das transformações energéticas que
a realizarão ou se o ganho justifica o dispêndio de energia.
Na maioria das vezes, é verdade, a consciência não
trabalha com tal lucidez para que a decisão se cumpra. Não há
a dose conveniente de interesse. Preocupados muito mais com a
sobrevivência do que com a qualidade dela, somos levados através
de escolhas que jamais formulamos. Mais tarde, despertamos.
Não nos sentimos responsáveis porque intimamente obedecemos
ao que parecia um chamado natural e não paramos para pensar se
devíamos ou não concordar. Outras vezes, agimos numa direção
sem a energia para discordar ou até discordando, mas passivamente.
Contudo, a sociedade dos homens dispõe de sabedoria
para separar da massa quem aceita fazer o papel do intelectual,
estar dentro da conjuntura e fora dela. Quem assiste a um debate
no parlamento, pesando e acompanhando o que chamam de
“contraditório” pode imaginar que a burguesia institucionalizou a
figura que aqui se desenha. É um engano. Não se deve confundir
retórica com busca da verdade. A política constitui uma tarefa de
negociação. Está, portanto, comprometida até a raiz dos cabelos em
cada frase e em cada argumento adotado. Por isso nos surpreendemos
com freqüência com a incoerência dos representantes em quem
votamos, decidindo a despeito dos seus representados ou contra
eles. A identidade de perfil com os intelectuais, com relação aos
políticos profissionais, não se confirma.
Como só dispomos de uma vida, cabe-nos ter com ela
um cuidado de polidor de lentes. Quem encara a liberdade com
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corações. A história criou condicionantes novos e o pensamento não
digeriu os fatos a ponto de traduzi-los em conceitos. A confusão se
estabelece. A filosofia, este ramo do conhecimento que construiu uma
dinâmica própria, movimenta-se como uma engrenagem não azeitada
ou se instala num quadrilátero de conclusões fáceis absolutamente
não-convincentes. Não significa que a mola da procura haja falido, que
estejamos entregues a um vôo cego, sem radar.
Como situar a questão?
Quando se começou a falar na morte da filosofia, isso
não se verificava porque aquele tipo de aptidão desaparecera
ou sofria de anemia diante dos acontecimentos. Também não
significava que o dilaceramento em pauta houvesse desaparecido
ou que houvéssemos aprendido a costurar os retalhos dos nossos
sentimentos e das nossas insatisfações. Significava, antes, que
o dilaceramento, ao contrário, se acentuara e engolira boa parte
da nossa capacidade de pensar, tontos que nos achávamos ainda
por aquilo que caíra sobre nós. Nem por isso a criatividade
desaparecera. Ela prossegue no seu trabalho de pesquisa, pondo a
vida em forma e nela cavando sulcos profundos que falam sobre o
dilaceramento. É claro que, diferentemente da época de Sartre, o
intelectual dos nossos dias parece falar para si mesmo ou para uma
ausência de ouvintes. O que diz não afeta a estrutura de poder. No
estado de liberdade aparente mais ou menos generalizado há lugar
para tudo, para o sim e para o não. A angústia aumenta em função
disso, mas o debate culto fica relegado aos bolsões de discussão
onde qualquer idéia é válida, até os limites do absurdo.
Um dos grandes perigos que o intelectual deve
evitar, se quer avançar no seu empreendimento,
é de universalizar com excessiva rapidez.
Vi alguns que, apressados em passar para o
universal, condenavam, durante a guerra da
Argélia, os atentados terroristas argelinos no
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debate
de uma posição de antagonismo explicita entre o que se esperava
que acontecesse e o que existia na prática das coisas. Por alguma
razão, continuamos lendo estes autores com prazer e assistimos
aos novos obedecendo à mesma sistemática. A resistência persiste
assim, por uma condição sine qua non do sistema. Pelo fato de ser
dilacerado, produz o intelectual e acirra a tarefa da crítica. Pouco
adianta se gosta ou não de sua presença e do que normalmente
diz. Permanecem ligados por cordões umbilicais. O máximo que
se pode fazer quanto a isso é contratar essas pessoas e dirigir os
seus talentos extraordinários para que funcionem a favor, a reboque
da ideologia dominante. É o que ocorre, por exemplo, com os
publicitários. Alguns, talentosíssimos, acomodam-se com o retorno
financeiro que lhes proporciona a profissão e passam a vida usando
a mentira como ganha-pão, sentando-se, constrangedoramente, na
poltrona apertada da designação de artista. Viraram a vocação de
cabeça para baixo e só lhes resta engordar bebendo chope. Não é
todo mundo, entretanto, que encarna esse papel. Há aqueles que,
ainda que o desejassem, não conseguiriam. Vieram ao mundo com
outra função e se mostram dispostos a assumi-la não importam
as conseqüências. Estes não teriam como existir num contexto
de harmonia e respeito humano. A constatação de Sartre vê o
intelectual como um produto histórico. Nesse sentido, acrescenta,
nenhuma sociedade pode queixar-se de seus intelectuais sem se
acusar a si mesma, pois só dispõe daqueles que fez.
Dizer que o intelectual e a sociedade dilacerada caminham juntos
é o mesmo que dizer que, de certa maneira, ainda que isso não se torne
evidente, os homens, sentindo que necessitam saídas, não abandonam
a busca. Em certos instantes, o cerco é de tal ordem que ficamos com
a impressão de um estado de inércia generalizado, implantado nos
6
SARTRE, Jean-Paul. “ Plaidoyer pour les intellectuels “ , idem, pág. 242.
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mesmo nível da repressão francesa. Era o
protótipo da falsa universalidade burguesa.
Cumpria compreender, ao contrário, que a
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Entrevista
Adélia Prado
Realizada por e-mail pela
Equipe da Comissão Editorial
em julho de 2007.
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entrevista
Entrevista com Adélia Prado
C. E. - O poeta, no ato de criação, poderia ser definido como
alguém que é tomado por uma súbita inspiração, vinda de uma
outra “cena” ou , ao contrário, como um artesão das palavras e das
imagens? Dito de outro modo: um poema ( o seu em especial ) é
resultante de um processo subliminar ou fruto de uma vontade e de
um trabalho conscientes? Fale-nos um pouco sobre o seu processo
criativo. Por exemplo, como se dá a gestação de um poema seu?
Como se relaciona com sua criação artística? De onde ela emana?
A. P. - O verdadeiro poeta é mais que um artesão. Deve
criar e cria, rigorosamente falando, não do fruto de sua vontade,
mas de uma vontade que se manifesta nele como inspiração. Caso
contrário, ele seria um deus. A arte nasce no brejo do inconsciente.
Não sei falar de processo criativo.
C. E. - Para Freud, a obra literária, assim como o devaneio,
é vista como uma continuação, no adulto, do brincar infantil. O
escritor criativo, assim como a criança, cria com sua obra um mundo próprio, povoando-o de personagens e de uma narrativa capaz
de satisfazer seus mais íntimos desejos. Dessa perspectiva, qual a
importância que atribuiria às primeiras experiências da infância
e da adolescência sobre seu trabalho? Suas raízes – a vida em Divinópolis, a religiosidade - teriam uma influência diferencial na
escolha de seus temas e em seu olhar sobre as realidades?
A.P. - A infância, feliz ou não, é a ‘Macondo’ de cada um. É
nela que ganhamos a primeira ótica do mundo. Todo autor registra
na sua obra os sinais de sua experiência. Neste sentido, até ficção
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Adélia Prado
sua arte, ou apenas uma circunstância? Como é possível equacionar
o papel de intelectual, mãe, esposa e dona-de-casa?
A. P. - Mas eu não sou intelectual, por isso não preciso
equacionar.
C. E. - O seu trabalho poético ( em prosa e verso) traz dois
vértices muito fortes: da religiosidade profunda de quem conhece
minuciosamente a doutrina Católica e a pratica com fervor e a da
sensualidade de quem experimenta sua feminilidade. Como se
conciliam em sua obra literária essas dimensões: a mística e a
erótica? A seu ver, existe uma literatura propriamente feminina?
Como esta se distinguiria de uma literatura tout court? E o feminismo? Seria uma dicotomia ou uma face do feminino?
A. P. - Se prestarmos atenção, veremos que a expressão de
toda experiência mística é vazada em linguagem poética. Erótica
e mística não necessitam conciliação. Como braços do mesmo rio,
nascem do mesmo lugar onde nascem corpo e alma. Nada mais
encarnado, erótico que o texto religioso inspirado. A mística é a
carne fremente em contato com Deus. Clarice Lispector falou e
disse: “ E foi tão corpo que foi puro espírito.” Literatura feminina
deve ser horrível. Existem sim textos escritos por mulheres que, às
vezes, como os escritos pelos homens, são literatura de verdade.
C. E. - A experiência poética é um momento de encontro ou
de solidão? É uma invocação ao Pai como prece, busca de conforto, de entendimento, de nomeação dos desconcertos da alma,
ou inspiração - um arrebatamento que toma emprestada a alma do
artista para que o Divino se manifeste?
A. P. - É comunhão, encontro, alegria, gratidão pela gratuidade de perceber e, às vezes, até comunicar a beleza que te é
dada. Pura graça!
C. E. - É sabido que muitos escritores/ poetas atravessam,
por vezes, tempos de estiagem que podem ser bastante prolongados.
Se a arte é uma necessidade de expressão do Eu mais profundo,
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entrevista
científica é autobiográfica. Não se escolhe isto ou aquilo por acaso.
Mas, uma obra é boa ou má, não por seu registro histórico, temas,
assunto, enredo, mas pela qualidade. Arte é forma, beleza pura,
falando do feio, do bonito, do bom, do mau, do amor, da dor, da
vida, da morte, não importa. Não é ‘o quê’, mas ‘o como’.
C. E. - Embora a literatura - especialmente a poesia - se
constitua em patrimônio cultural na humanidade, não é fácil publicar nem atingir o mercado de forma significativa, ou até mesmo lucrativa. Sua obra, no entanto, logo encantou tanto a crítica
especializada quanto o público leigo em todo o Brasil, e também
no exterior. Como é essa experiência de ser admirada, inclusive
por personalidades da literatura nacional do porte de nosso poeta
Carlos Drumond de Andrade? Ser uma Grande entre os Grandes
certamente interfere em sua vida pessoal: que estratégias precisou
desenvolver para articular esses dois mundos - da Adélia Luzia e
da Adélia Prado?
A. P. - Uma estratégia é fazer entrevistas por e-mail. Não
posso fazer como os políticos que dizem: como Adélia Luzia, faço
assim e, como Adélia Prado, faço assado. Faço assim e assado,
sem divisão. Quanto à língua, o que a empobrece é a incúria das
escolas, onde se deveria formar o leitor, o consumidor de livros e
de toda e qualquer arte. Não estimula o pensamento crítico nem
apresenta nossa literatura como um valor em si, mas como matéria
de vestibular. Vivam as exceções. Existem e podemos encontrálas como escolas vivas, muitas no interior do país, protegidas do
falso moderno.
C. E. - Os temas com os quais trabalha revelam muito do
cotidiano e do sensível mais imediato, retratando prazeres simples
como o ato de limpar um peixe ao lado do homem amado... De
que modo esses temas chegam a ganhar vida e ressonância em
sua escrita? O seu cotidiano em particular – a vida numa cidade
interiorana como Divinópolis - é o fundamental em sua criação,
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Adélia Prado
almejam forma e significado. O que motivou Deus a criar o mundo,
sendo Ele onipotente, onisciente, onipresente, absoluto?
A. P. - Merquior falou muito bem. Talvez discutíssemos um
pouco quando ele menciona a razão. Não posso respondê-la, porque
não sei e não se pode saber. Meu caminho é o da fé que carrego
como diz belamente São Paulo “em vaso de barro”. Não quero
pensar Deus, mas experimentá-Lo. Esta sua pergunta me deixou
do tamanho de um grão de arroz, do bem pequeno e quebradinho.
C. E. - O relato bíblico pode ser visto como uma mitologia
cujo objetivo é conferir sentido, significado e história aos mistérios
de nossa existência? Ao absurdo de nossa ambivalência, ao amor
e ao ódio destrutivo?
A. P. - Sim.
C.P. - O nada existe? O caos deriva do nada concedendo possibilidades de forma, de narrativa? O artista, sendo filho de Deus,
feito à sua imagem e semelhança, também cria mundos possíveis
por meio da palavra. Qual o sentimento da Adélia-poeta após a
composição de um poema?
A. P. - A primeira parte não sei responder. A segunda: De
pura alegria, dá vontade de comer, dançar, celebrar com as pessoas.
C. E. - É difícil imaginar a vida desprovida de emoções – inclusive
as tristezas e sofrimentos que fazem parte de nosso cotidiano, às
vezes de modo surpreendente. A capacidade individual de pensar,
elaborar, agir - a seu ver - pode influenciar no rumo e na tonalidade
como essas emoções irão interferir em nossas vidas? Qual o papel
de interferência da poesia – expressão estética da emoção – neste
processo?
Para alguns seus escritos têm sempre um tom de calmaria. Esta é
a forma que encontrou de confortar a própria alma – como quem
se entrega no divã com Deus - e de compartilhar, generosamente,
esses “diálogos” com seus leitores? Seus poemas são preces a Deus
ou conversinhas de confissionário?
A. P. - A poesia conforta, não porque a escrevo, mas porque
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entrevista
como entende esses tempos de silêncio da alma? São tempos de
angústia inominável ou de recolhimento e calmaria?
A. P. - Todos provamos, o poeta também, angústia, deserto,
sensação de finitude, extrema pobreza e impotência. Nós, criaturas
todas passamos pela desolação que o grande místico São João da
Cruz chama “a noite escura da alma”. Não é um sofrimento escolhido, pertence à condição humana. É um tempo de expiação que,
se soubermos aceitar crescemos na consciência. É um tempo que
prepara alvoradas e se pode bendizê-lo.
C. E. - Freud tratou a religião como uma ilusão escapista; um
jeito de invocar a proteção do Pai, (“Quero minha mãe!”) perante
o desamparo humano sob as forças da natureza e do inconsciente, que não oferecem a certeza das garantias. Ao mesmo tempo,
ele reconhecia na arte uma forma genuína de sublimação. Para
quem vive a religiosidade com tanta devoção e a arte com tanta
inspiração, como pensar isto? A produção literária ofereceria uma
forma de resgatar a esperança e o sentido da vida quando esta nos
parece sem sentido?
A. P. - A poesia é a beleza que convoca a beleza maior,
convoca sua fonte. Conforta, dá esperança, consola e oferece o
transcendente onde experimentamos um sentido.
C. E. - José Guilherme Merquior escreveu que poema é o
pulso emocional de uma razão que enfrenta o mundo (interior /
exterior) disposto a extrair dele um significado. Trata-se de uma
emoção pensada, de um feixe de emoções não organizadas que
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ela própria é um oráculo divino, só a letra é minha. O mistério de
Deus elimina a possibilidade de uma domesticação d’Ele, como
sugere a pergunta. A poesia é prece, porque é religiosa, fale ou não
de Deus, falando com Ele ou com as criaturas. Conversinhas de
confessionário? Queimaria todos os meus livros se me convencesse
deste horror.
Artigos
Pequeno ensaio metapsicológico
sobre a solidão e suas implicações
Alexandre Abranches Jordão
Amarás a teu próximo como a ti
esmo: amor ou gozo?
Cristia Rosineiri Gonçalves
Lopes Correa
A constituição das fronteiras psíquicas e as fundações do símbolo
Cristiana Regina Ferreira de
Aguiar Ponde
Dor e esperança: duas faces da
solidão
Issa Damous
In the name of solitude: a capacidade de estar só como forma de
amadurecimento de si
Karla Patrícia Holanda Mar-
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possíveis implicações clínicas e sociais da solidão baseado
nas considerações de Winnicott, Klein e Ferenczi. O artigo
faz um apanhado, a partir dos autores citados, na tentativa
de fazê-los dialogar e formar uma visão panorâmica sobre
o tema da solidão para a psicanálise. Ao final, propõe sua
especial aplicabilidade às chamadas ‘novas subjetividades’
ou ‘sujeitos pós-modernos’.
Palavras-chave: Capacidade de estar só, sentimento de
solidão, desintrincação pulsional, defesa.
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tins e Maria Regina Maciel
Quem conta um conto promove
um
encontro
Neysa Prochet
A solidão na obra de Edward
Hopper
Renata Mattos de Azevedo
Dominação e crueldade:
articulações e distinções
Suelena Werneck Pereira
artigo
Pequeno ensaio metapsicológico sobre a solidão e suas
implicações
Short metapsychological essay on loneliness and its
implications
Alexandre Abranches Jordão*
Resumo
Pequeno ensaio sobre os aspectos metapsicológicos e as
* Membro associado/ SPCRJ;Doutor em Teoria Psicanalítica-UFRJ, Professor/
pesquisador FAPERJ/UFRJ.
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psicanalítica da solidão acontecem no final dos anos 50 do século
passado, na Inglaterra. Dois expoentes maiores da Psicanálise
inglesa, M. Klein e D.W. Winnicott, dedicam ao tema duas importantes palestras, que posteriormente alcançarão sua forma definitiva
em texto. Não falam exatamente da mesma coisa e partem notadamente de pontos de vista diferentes mas que, por isso mesmo,
tornam-se complementares devido não somente às particularidades
de cada autor e de como isso influencia sua exposição – em especial o fato de Winnicott não trabalhar com a noção de pulsão de
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Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 99-118, 2007
Abstract
Short essay on metapsychological aspects of loneliness and
its possible clinical and social implications based on the
contributions of Winnicott, Klein and Ferenczi. The article
gathers different views from the authors above, in an attempt
to make them dialogue among themselves and to form a panoramic view of the loneliness issue for Psychoanalysis. At
last, it outlines the particularity of ist implications to the so
called ‘new subjectivities’ or ‘post-modern subjects’.
Key-words: Capacity to be alone, loneliness feeling, instinctual diffusion, defense.
artigo
Pequeno ensaio metapsicológico sobre a solidão e suas
implicações1
Short metapsychological essay on loneliness and its
implications
Alexandre Abranches Jordão
Duas das mais importantes contribuições a uma abordagem
1
O presente artigo se beneficia de questões e reflexões atinentes à pesquisa “Construção
de conceitos metapsicológicos para as novas subjetividades”, desenvolvida pelo autor no
Instituto de Psicologia da UFRJ com apoio financeiro da FAPERJ e ainda em andamento.
À FAPERJ e ao IP/UFRJ, o reconhecimento e os agradecimentos devidos.
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Alexandre Abranches Jordão
sozinho” – e aqui temos uma questão importante que envolve a
tradução para o português: ao contrário da língua inglesa, em que
um único verbo designa características perenes tanto quanto estados transitórios (o que de resto acontece na grande maioria das
outras línguas vivas européias, com exceção, além do português,
do espanhol), em nossa língua dispomos de dois verbos distintos
e autônomos, ‘ser’ e ‘estar’. É importante ter isso em mente ao se
refletir sobre o tema a partir desses autores, pois há uma dubiedade
interessante que se perde na tradução e que, na verdade, muito mais
que produzir confusão ou imprecisão, colabora para a profundidade
e o alcance de suas reflexões.
Voltemos a Winnicott. Os três momentos da afirmação “eu
sou/estou sozinho” são: 1) o termo ‘eu’, o indivíduo constituído
em unidade; 2) ‘eu sou/estou’, um “estágio no crescimento individual” (id.) em que o indivíduo além de já ter forma e unidade,
tem vida, é capaz de ação e existência (que a própria regência do
verbo indica) - tal estágio ainda não requer da criança que se dê
conta da presença da mãe como uma pessoa total, mas só é possível “porque existe um ambiente que é protetor” (id., p. 33); 3)
finalmente, o terceiro estágio:
[...]‘eu sou/estou sozinho’ é um desenvolvimento do ‘eu sou/estou’, que depende da
percepção do infant da existência continuada
de uma mãe confiável cuja confiabilidade
torna possível ao infant ser/estar sozinho e
desfrutar de ser/estar sozinho por um período
limitado (id.).
2
Grifo do autor.
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artigo
morte –, mas também, e principalmente, em razão dos diferentes
enfoques que cada um dará ao assunto: Winnicott (1958, p. 29)
apresenta uma nova consideração teórica em que aborda “um dos
mais importantes sinais de maturidade no desenvolvimento emocional”, a capacidade de estar só; Melanie Klein (1975, p. 133),
por sua vez, busca “investigar a fonte do sentimento de solidão”.
Ao exame comparativo de ambos os textos, uma constatação se
impõe: mais ainda que simplesmente complementares, trata-se aqui de
duas faces de uma mesma moeda, não sendo excessivo afirmar que as
considerações de um carecem – quase demandam – das formulações
do outro para ganharem seu pleno sentido e alcance. Pois, se a capacidade de estar só denota saúde e desenvolvimento emocional
primitivo adequado (nos termos de Winnicott), ela só é possível
se não for assaltada pelo sentimento de solidão, como dele trata
M. Klein. Além disso, e principalmente, as implicações clínicas e
sociais são imediatas e fundamentais.
Em 24 de julho de 1957, Winnicott faz um pronunciamento
na Sociedade Britânica de Psicanálise com o título “A capacidade
de estar só”. De uma maneira geral, interessa a ele apresentar ao
público uma experiência de solidão que se faz na presença de outra pessoa – com as imediatas analogias com o ambiente clínico.
Esta se ancora, fundamentalmente, na capacidade de lançar mão
da companhia dessa outra pessoa como ego auxiliar, repetindo
uma experiência anterior, dos primórdios da organização psíquica,
quando “a imaturidade do ego é naturalmente compensada por
um apoio egóico por parte da mãe. Com o passar do tempo, o indivíduo introjeta a mãe ego-auxiliar e dessa forma torna-se capaz
de estar só sem uma referência freqüente à mãe ou a um símbolo
materno” (op.cit., p. 32)2.
Essa capacidade passa por três momentos cruciais no seu
estabelecimento, que Winnicott reúne na frase “eu sou/estou
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tanto dos perigos de autodestruição quanto da destruição do objeto.
Acontece que, em Klein, devido mesmo à sua maior ênfase
na dicotomia pulsional de base – que não está presente em Winnicott –, o ego “que existe e atua desde o nascimento”, encontra-se
desde o princípio “dominado pelos mecanismos de divisão”, o
que faz com que, nos seus estágios mais primitivos, “a parte boa
do ego e o objeto bom” sejam protegidos por mecanismos de cisão de ambos em partes boas e más. Os mecanismos de divisão
constituem, portanto, as bases de uma relativa segurança egóica,
num período em que o ego ainda é muito frágil e precário e, assim
sendo, a promoção da integração não deixa de ser ameaçadora e
“difícil de aceitar”. De uma maneira geral, o sentimento de solidão
estará sempre mais presente quanto maior forem as dificuldades
na integração. Ocorre que: “a integração plena e permanente nunca é possível ... o completo entendimento e aceitação de nossas
emoções, fantasias e ansiedades não são possíveis e isto perdura
como fator importante na solidão”(id, p. 137) .
Depois de examinar alguns fatores que ajudariam a mitigar
a solidão – como a internalização estável do seio bom, que diminuiria a severidade do superego; a “diminuição da onipotência que
surge com o progresso da integração” (id., p. 150); ou uma relação
afetiva satisfatória com o primeiro objeto, que torna possível dar a
receber amor e daí extrair prazer – Melanie Klein chega, no final
do artigo, às considerações de maior importância clínica e para as
reflexões desse artigo: a solidão inconsciente. Apesar desses fatores
do desenvolvimento poderem mitigar o sentimento de solidão, não
conseguem eliminá-lo completamente, podendo mesmo ser utilizados como defesas. E aí está a questão: “Quando tais defesas são
muito intensas e se reforçam mutuamente, a solidão amiúde não
chega a ser experimentada conscientemente” (id., p. 152).
Contra essa solidão inconsciente, armam-se defesas as mais
diversas. Klein cita algumas: a extrema dependência de crianças
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artigo
É significativo o fato de que, nessa palestra, como que preparando o caminho para a exposição destes três momentos, Winnicott
lance mão de M. Klein. Após alertar a platéia sobre essa manobra,
afirma ele (em termos reconhecidamente kleinianos): “A capacidade de ser/estar só depende da existência de um objeto bom na
realidade psíquica do indivíduo” (id., p. 31-2).
Uma primeira versão de “O sentimento de solidão”, ainda
abreviada, foi apresentada por M. Klein no 21º Congresso Internacional de Psicanálise de Copenhague, em 1959; só após a morte
da autora é que esta alcançou publicação. Klein (1975) dedica-se
especificamente a algo que é experimentado por todos, mas que
pode ser muito mais intenso em quadros de organização psíquica
mais precária. Para ela, interessa averiguar “o sentimento íntimo
de solidão – o sentimento de estar só independentemente de circunstâncias externas, de sentir-se solitário mesmo quando entre
amigos ou recebendo amor”. Ela busca investigar de onde brota tal
sentimento ou “estado de solidão interna” e é incisiva: “...resulta do
anseio onipresente de um estado perfeito inatingível”(id., p. 133).
Klein encontra as bases para tal solidão interna nas angústias
paranóides e depressivas, presentes em todos nós como resquício
das angústias da primeira infância, e que podem apresentar-se de
forma exacerbada quando os processos de integração não alcançaram um abrandamento consistente dos mecanismos de divisão. A
integração tem por conseqüência a neutralização temporária da insegurança oriunda da própria dualidade pulsional, mas exatamente
por ser temporária, exige do ego que tente entrar em acordo com os
impulsos agressivos, tornando-os menos intensos e ameaçadores.
Assim como em Winnicott encontramos uma tendência à integração, em Klein já há também, “desde o início da vida” (id., p. 134),
um impulso nesse sentido. No entanto, o próprio desenvolvimento
do ego serve como motor da integração por seu efeito mitigador
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é para a existência de uma dimensão da solidão que pode se achar
tão entranhada em extratos primitivos da organização psíquica
que acaba determinando a própria constelação psíquica do sujeito.
Solidão num tal nível que exige que contra ela se erijam defesas
que acabam moldando o ego e definindo sua própria capacidade
de lidar com as demandas das diferentes instâncias, da realidade
externa e da cultura. Além disso, e especialmente, ela deixa claro
que, em algum nível, essa solidão estará sempre presente, pois é a
própria contra-face do processo de integração, jamais plenamente
alcançado.
Isso é de importância crucial em Klein porque significa dizer
que o projeto de integração absoluta é narcisicamente impossível,
que há no próprio ego forças contrárias ao seu estabelecimento,
pois os processos de divisão não deixam jamais de representar uma
forma primitiva de defesa do ego. Ainda que ela derive a cisão da
dualidade pulsional, o que está em jogo fundamentalmente é um
antagonismo narcísico: se por um lado a maior integração do ego
o protege (e ao objeto), por outro o ameaça, pois torna menos eficaz um recurso defensivo primitivo de uso franqueado até então.
Há impulsos destrutivos que se voltam tanto contra o ego quanto
contra o objeto e os mecanismos de divisão funcionam de modo a
diminuir os perigos que aqueles apresentam.
Podemos encontrar em Ferenczi as bases de uma ponte possível entre as concepções de Klein e Winnicott sobre a solidão. Se
representássemos graficamente em termos lineares as concepções
desses dois últimos como os extremos opostos de uma mesma
questão, poderíamos dizer que Ferenczi, quase vinte anos antes,
já havia fornecido um esboço de articulação entre esses extremos,
apontando que – se concordarmos com ele – tais abordagens devem
mesmo ser tomadas como complementares.
Ferenczi não trata da solidão em seus escritos, porém, num
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artigo
pequenas em relação à mãe (a dependência tornando-se um modelo vida afora); o anseio de independência, que também pode ter
esse uso; a idealização do passado nos mais velhos, bem como do
futuro nos mais jovens; a valorização dos outros e do êxito; uma
capacidade exagerada de esperar pelo que se deseja, que pode levar
a um otimismo exacerbado; e finalmente, a negação da solidão.
Essas manifestações não são necessariamente defesas contra a
solidão, mas podem assumir essa função. Tal consideração vale
também para as circunstâncias externas que, certamente, podem
diminuir ou aumentar o sentimento de solidão. Acontece que “ele
nunca pode ser completamente eliminado, porque a tendência para
a integração, assim como o pesar experimentado nesse processo,
brotam de fontes internas que continuam operantes pela vida a
fora” (id., p. 156).
Não é preciso concordar com a teorização kleiniana para
perceber o alcance dessas reflexões. Independentemente de endossarmos ou não seus pressupostos teóricos, o que Klein aponta
Desde o início do relacionamento com Ferenczi, Freud aponta um excessivo desejo
de curar no colega húngaro e tenta estimulá-lo a assumir uma postura mais indiferente.
Como se pode comprovar na correspondência entre os dois, Freud interessava-se muito
mais pelo que o paciente pudesse ensiná-lo em termos de organização e funcionamento
psíquicos do que pela cura ou pela eliminação do sintoma. Além disso, vê na relativa
indiferença do analista um importante ditame técnico adquirido através da experiência
clínica. Diz Freud: “Certamente, a indiferença com relação a meus pacientes é um aspecto
de meu aprendizado” (carta 22 F) ou ainda “Não se deixe abalar pelo insucesso no caso
da paranóia da Sra. Marton. Sucesso não será possível alcançar nesse caso, mas nós
precisamos dessas análises para finalmente chegar à compreensão de todas as neuroses”
(carta 6 F). Essa postura de Freud, que o discípulo acatará inicialmente, provocará em
Ferenczi um profundo desconforto que será finalmente manifestado no “Diário clínico”
(p.ex., a anotação 140 n, de 12 de junho de 1932) que contém os registros e comentários
privados dos seus últimos meses de trabalho. Apesar dos conselhos de Freud, Ferenczi
nunca esmoreceu e jamais abandonou sua preocupação com o aprimoramento do trabalho
do psicanalista.
3
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fruto da desintrincação pulsional que, direcionada ao objeto, dará
caráter de realidade ao mesmo. Ferenczi propõe como que uma
atualização da visão freudiana dos dois princípios do funcionamento
psíquico sob a luz da nova teoria pulsional: “Gostaríamos apenas de
acrescentar que a ambivalência de que acabamos de falar, isto é,
a desintrincação pulsional, é imprescindível para uma percepção
de objeto” (id., p. 285)4. A ambivalência seria, acima de tudo, uma
defesa contra o reconhecimento do mundo objetivo – note-se aqui
uma importante ressonância com Klein. Mas uma nova intrincação
pulsional deve se produzir para que o uso defensivo da ambivalência seja ultrapassado:
[..]a ambivalência testemunha um reconhecimento da existência das coisas, nem por
isso temos acesso ao que se chama visão objetiva. [...] Para chegar à objetividade é preciso
que as pulsões liberadas sejam inibidas, isto
é, que se unam novamente entre si, uma nova
intrincação pulsional deve se produzir uma vez
completado o reconhecimento (id., p. 286).
Caso o ambiente seja excessivamente hostil, a morte pode
concretamente ocorrer e, mesmo quando não ocorre, o sujeito
não escapa ileso: “Queria apenas indicar a probabilidade do fato
de que crianças acolhidas com rudeza e sem gentileza morrem
fácil e voluntariamente ... ou, se escapam, fica-lhes um certo pessimismo e desgosto pela vida” (Ferenczi, 1929, p. 315). Nesses
casos o ego é levado a tentar acertar o jogo de alguma forma, e
uma das ferramentas empregadas nessa tentativa é o que Ferenczi
denomina de “precoce ruminação”, um ensejo de “explicar o ódio
e a impaciência de sua mãe”, o que ele compara a um amadurecimento forçado e traumático do ego (id.).
4
Grifo do autor
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artigo
ensaio extremamente impactante e fundamentalmente clínico,
ele parte da pulsão de morte para propor um novo entendimento
sobre fenômenos observados em certos pacientes, em particular,
os “casos difíceis”. Ferenczi é um autor extremamente criativo
e inovador. Clínico admiravelmente dedicado e particularmente
sensível ao sofrimento de seus pacientes, lançou-se incansavelmente na busca de novas ferramentas clínicas e metapsicológicas
que pudessem auxiliar e potencializar o trabalho terapêutico do
psicanalista – sendo até mesmo repreendido por Freud a esse
respeito3. Pois bem, nesse ensaio de 1929, intitulado “A criança
mal-acolhida e sua pulsão de morte”, ele se dedica a averiguar as
conexões entre determinados fenômenos clínicos e as experiências
mais precoces de seus pacientes para chegar à seguinte conclusão:
bebês que não contam com um acolhimento adequado (amoroso e
terno) no início da vida não são capazes de barrar os efeitos autodestrutivos da pulsão de morte e carregam as conseqüências disso
pelo resto da vida.
O não-acolhimento causaria um trauma tão precoce que
impossibilitaria que as forças reunidas sob o nome de pulsões de
vida conseguissem guiar a destrutividade para fora, sobrepujando
aquelas da pulsão de morte. Sem um ambiente que introduza e
estimule “impulsões de vida positivas” (Ferenczi, 1929, p. 317), o
recém-nascido ficaria abandonado ao livre curso da pulsão de morte,
contando somente com um ego ainda muito precoce e precariamente
estruturado para lhe fazer frente. Ocorreria, assim, uma separação
entre as duas modalidades pulsionais básicas – na segunda teoria
pulsional freudiana – e as pulsões de vida e de morte passariam a
agir de maneira independente uma da outra.
Ferenczi (1926, p. 284) chama esse fenômeno de separação
das pulsões de “desintrincação pulsional”, que não possui um caráter
traumático inerente, muito pelo contrário: é a própria ambivalência,
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Alexandre Abranches Jordão
imediatas, mas também pode servir de referencial teórico auxiliar
na compreensão das chamadas novas subjetividades. Na clínica,
mais importante que os fenômenos corriqueiros de isolamento, resistência ou transferência negativa, os três autores trabalhados neste
artigo apontam para modalidades de aparição da solidão que vêm
de fontes tão primitivas e arcaicas que não são acessíveis ao sujeito
e podem mesmo impedir qualquer trabalho psicanalítico. O fazem
porque impedem, no nível mais elementar e primário, que o sujeito
possa se relacionar com intimidade, confiança e entrega; é essa a
questão fundamental. Na clínica, acontece de nos depararmos com
pacientes em que uma solidão defensiva impossibilita o trabalho
clínico porque impede o próprio estabelecimento da transferência.
Winnicott ressalta a positividade da capacidade de estar só.
Faz isso descrevendo pormenorizadamente os percalços no caminho da sua aquisição e reconhece nessa capacidade um “fenômeno
altamente sofisticado” e difícil de ser conquistado, sinônimo de
maturidade emocional, mas que, diríamos nós, raramente se vê.
Klein traz à tona um “sentimento íntimo de solidão” que pode ser
mesmo inconsciente, que invade todas as experiências afetivas
do sujeito no seu nível mais primário, que leva à produção de um
verdadeiro arsenal defensivo contra algo que, irrecorrivelmente
instaurado em cada um de nós, sempre nos acompanhará, em
maior ou menor grau. Ferenczi tenta pensar a inacessibilidade
desses sujeitos às abordagens terapêuticas em termos de um trauma
excessivamente precoce que termina por impedir, ou pelo menos
atrapalhar consideravelmente, que se façam investimentos objetais
consistentes. Se aqui ele se aproxima de Klein, ao considerar que
tais impedimentos se devem às dificuldades do recém-nascido no
trato com a pulsão de morte, vai também em direção a Winnicott
5
A esse respeito, ver JORDÃO, 2002.
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Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 99-118, 2007
artigo
As conseqüências de um trauma tão precoce ficarão ainda
mais evidentes em textos posteriores de Ferenczi, no que ficará
conhecido como sua Teoria do Trauma. Como conseqüência de
um acolhimento hostil, alguns traços psíquicos e de personalidade
se impõem e podem ser facilmente identificados: “tendências de
autodestruição inconsciente”, “pessimismo moral e filosófico,
ceticismo e desconfiança”, alcoolismo, impotência, “diminuição
do prazer de viver” e finalmente, e de certa maneira sintetizando
as anteriores, “desgosto pela vida” (ibid.). É importante ressaltar
as semelhanças entre a organização psíquica resultante do trauma
na concepção ferencziana e o falso self patológico de Winnicott5.
Mas, no que toca especificamente ao tema aqui desenvolvido, o
mais importante e revelador é que o próprio Winnicott, ao abordar
o tema da solidão, também enfatize a necessidade da intrincação
pulsional. Tomando a cena primária e a relação edípica triádica
como paradigmas para examinar a capacidade de estar só diante
de outra pessoa, afirma ele:
Ter a capacidade de estar só nessas circunstâncias implica a maturidade do desenvolvimento
erótico, uma potência genital ou a aceitação
feminina correspondente; implica fusão dos
impulsos e idéias agressivos, e implica uma
tolerância à ambivalência... (op.cit., p. 31).
O que fica dessas considerações tem aplicações clínicas
Não desenvolveremos o tema das novas subjetividades aqui e também nos escusaremos
de uma atenção maior aos conceitos e noções envolvidos. São vários os autores que têm se
dedicado tanto à exposição e discussão detalhadas das novas características subjetivas da
atualidade quanto aos seus efeitos sociais e psíquicos. Disso trataremos no artigo “Novas
subjetividades: Narcisismo defensivo” in Cadernos de Psicanálise – CPRJ, 2007, no prelo.
6
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Alexandre Abranches Jordão
mos a busca desesperada por novos objetos, seremos assaltados
por uma solidão insuportável, um sentimento equivalente à morte
subjetiva. Isso nos leva a pensar que essa solidão que se revela na
pausa do frenesi consumista pode não estar no final, mas sim no
princípio; pode não ser conseqüência, mas fundamento primitivo
de quem somos nós hoje em dia.
A solidão não seria, pois, o resultado último do ritmo frenético ou da exacerbação do individualismo que caracterizam os
nossos dias, mas sim um elemento primeiro nessa cadeia, que
acaba exigindo e produzindo organizações psíquicas particulares
e fundamentalmente diferentes do modelo histérico, referência
freudiana maior – por isso seus reflexos na clínica são tão presentes,
particularmente identificáveis nas especificidades das transferências com as quais lidamos hoje. Mas, não somente aí. Assim como
o fenômeno transferencial não se restringe ao ambiente analítico,
os efeitos da solidão tomada nesses termos se fazem visíveis cotidianamente, como o atestam o próprio individualismo e o ritmo
acelerado das coisas hoje. Bauman (op.cit.) chama a atenção para
a extrema dificuldade que as pessoas, de uma maneira geral, têm
encontrado para se envolverem em relacionamentos significativos e
duradouros e, por outro lado, da insatisfação e do vazio afetivo que
essa dinâmica amorosa provoca. Sabemos disso nos nossos consultórios e ali também nos deparamos com o quanto os investimentos
mais duradouros podem ser experimentados como aprisionamento e
marasmo angustiantes. Ehrenberg (2000), por sua vez, encontra na
depressão e no sentimento de insuficiência as marcas maiores dos
indivíduos e da sociedade atuais. De certa maneira, ambos apontam
para formas do sentimento de solidão que se manifestam na vida
cotidiana das pessoas dos nossos dias, nós mesmos. É também por
Dufour (2005, p. 14) fala mesmo de um “enfraquecimento e até alteração da função
simbólica”.
7
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artigo
ao entender que tais dificuldades são oriundas de traumas infantis
relacionados a uma inadequação do ambiente às suas necessidades
afetivas. Ao propor que tanto os momentos iniciais da vida quanto
a análise desses pacientes devam passar necessariamente pelas
questões do tato e da ternura, Ferenczi aproxima-se ainda mais do
que Winnicott irá propor posteriormente.
Para finalizar, uma proposta: à aplicabilidade de tais considerações sobre a solidão não se restringem aos fenômenos clínicos
sobre os quais elas lançam luz e onde sem dúvida encontram emprego imediato, mas podem ser usadas numa abordagem atual das
chamadas novas subjetividades6. A título de ilustração desse destino
possível, tomemos o exame realizado por Bauman dos laços afetivos nos dias atuais. Para Bauman (2004, p. 29), o que caracteriza
os envolvimentos afetivos hoje é o padrão de descartabilidade e
virtualidade dos relacionamentos. É preciso descartá-los, defensivamente diríamos, pois “‘estar num relacionamento’ significa muita
dor de cabeça, mas sobretudo uma incerteza permanente”. Para
esse sociólogo, tornamo-nos órfãos e fomos destituídos daquilo
que nos definiu como sujeitos no que chamaremos de modernidade
psicanalítica: o desejo.
Não somos mais sujeitos do desejo, somos consumidores
impulsivos que precisam manter a velocidade das trocas (de objetos, parceiros, imagens etc.) para assim nos sentirmos vivos e
pertencentes a alguma coisa. Para que isso seja possível, é necessária certa redução da capacidade simbólica7 de modo que tudo
possa ser intercambiável, em que cada objeto tenha seu valor
reduzido à abstração matemática na qual se pode sempre trocar
seis por meia dúzia. As cores e a relevância conferidas ao objeto
pelo afeto passam a ter prazo de validade, tornando-se obsoletas
na razão direta da velocidade do aparecimento de novos objetos.
Parece que se pararmos, se diminuirmos o ritmo ou interromper-
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Alexandre Abranches Jordão
se trata, portanto.
Falar de solidão primária ou originária não significa, em absoluto,
afirmar uma anterioridade cronológica em relação ao acolhimento,
ou qualquer coisa do tipo. Não cabe aqui estabelecer anterioridade e
posterioridade entre esses elementos, mas sim constatar sua íntima
conexão e determinismo mútuo. Podemos também abrir mão do
raciocínio causal, velho vício metafísico, pois o que é prioritário
é reconhecer que as vivências precoces fornecem os pilares sobre
os quais o psiquismo e todas as suas operações e mecanismos vão
se alicerçar. A rigor, dentro dos limites da reflexão aqui proposta,
pouco importa se a origem da cadeia é identificada na pulsão ou
no ambiente, desde que pensemos de uma maneira mais ampla e
compreendamos que é o fator narcísico, das fundações do psiquismo, que está em jogo e é de seus primórdios que tratamos aqui.
O sentimento de solidão que se manifesta aparentemente como
efeito das organizações e normas sociais atuais seria, portanto, o
efeito mais palatável dos fracassos das defesas erigidas contra uma
solidão mais primitiva e insuperável.
Finalmente, se foi essa última o motor das defesas que contra ela se
armaram, pode-se pensar que as conformações sociais, econômicas,
políticas, culturais e familiares atuais também encontraram aí um
importante agente para seu estabelecimento – há vários outros,
sem dúvida – em que a própria velocidade das trocas, a fragilidades dos vínculos e a maleabilidade dos investimentos, tomadas
como defesas, implicam inapelavelmente o sujeito na constituição
da sociedade e de si mesmo - se bem que inconscientemente. Os
sujeitos, as novas subjetividades, não são frutos exclusivos das
mudanças sócio-culturais, são também desencadeadores dessas
mudanças. Não cabe, pois, atribuir unicamente às novas regras e
modalidades de organização social, cultural e econômica – esta
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Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 99-118, 2007
artigo
isso que podemos usar a própria solidão, agora tomada em outro
nível e em termos metapsicológicos, para nos aproximarmos dessas
novas subjetividades que habitam o século XXI.
Não são exclusivamente sujeitos das novas gerações, muito
pelo contrário. É preciso nos implicarmos e percebermos que,
de alguma forma, em maior ou menor grau, todos nós – ou a
maioria absoluta de nós – funcionamos segundo os registros que
esses autores, e vários outros não citados aqui, identificam como
característicos das novas subjetividades. Afirmar isso não é dizer
que as organizações psíquicas clássicas não existam mais, pois que
nossa experiência nos informa do contrário, mas sim constatar que,
por mais que ainda possamos encontrá-las, elas se tornam cada vez
mais escassas. É muito raro nos depararmos com casos de histeria
de conversão hoje em dia, assim como se constata amiúde que as
questões relativas ao recalcamento da sexualidade estão cada vez
menos presentes nos consultórios. Outro dado clínico: os pacientes
já não associam com tanta facilidade; o mais comum é mesmo uma
extrema inibição da capacidade associativa, que acaba, mal ou bem,
se desenvolvendo bastante durante a análise. Mas novos elementos
subjetivos e afetivos têm ganhado destaque nessas análises, que
apontam para novas modalidades de organização psíquica.
Falamos então da solidão que estaria na origem e que, tomada
nesses termos, pode se constituir em instrumento privilegiado na
abordagem atual das nossas particularidades subjetivas. Solidão
originária que leva ao acionamento inexorável de mecanismos de
defesa muito primitivos na tentativa infrutífera de produzir sua
anulação ou diminuir sua intensidade, o que acaba por torná-la mais
presente. Há aqui uma importante aproximação possível com outro
paradoxo tão caro à psicanálise, o de Édipo, que ao tentar fugir de
seu destino parricida e incestuoso, lança-se na fuga desenfreada
que o levará ao trágico assassinato do pai e culminará na união
com sua mãe. É da própria incontornável dialética subjetiva que
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117
Alexandre Abranches Jordão
_____. (1929) A criança mal-acolhida e sua pulsão de morte. In:
_____ Escritos Psicanalíticos 1909-1933. Rio de Janeiro: Taurus/
Timbre, s.d. p. 313-317.
_____. (1932) Diário Clínico. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
FREUD, S.; FERENCZI, S.(1908-1911) Correspondência. Rio de
Janeiro: Imago, 1994, vol. 1, tomo I.
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artigo
‘Amarás a teu próximo como a ti mesmo’: amor ou gozo?
‘Thou shalt love thy neighbour as thyself’: love or
jouissance ?
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Cristia Rosineiri Gonçalves Lopes Correa*
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última tem merecido especial atenção atualmente – o papel de
agentes das transformações que se constatam no nível subjetivo. É
preciso também examinar o quanto as novas constelações psíquicas
são determinantes dos novos usos e costumes sociais, ainda que – e
principalmente, no que toca à Psicanálise – a nível inconsciente.
Temos aqui uma ferramenta preciosa para esse fim.
Alexandre Abranches Jordão
Rua Araucária, 114/302
Jardim Botânico – Rio de Janeiro
22461-160
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Tramitação:
Recebido em: 27 de junho de 2007.
Aprovado em: 15de agosto de 2007.
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*Psicanalista; Mestre em Filosofia e Ética da Saúde Mental pela University of Warwick
(UK).
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jouissance ?
Cristia Rosineiri Gonçalves Lopes Correa
Supereu e o seu caráter paradoxal em Freud
Freud (1913), quando introduz o mito do assassinato do pai
da horda primeva pelos filhos, nos diz que com a morte do pai os
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Resumo
O artigo aborda a problemática do caráter paradoxal da noção de supereu, já introduzido por Freud na psicanálise em
relação ao mandamento do amor ao próximo. Argumenta que
esse mandamento visa regular o caráter radicalmente mal do
homem com o próximo e indica nessa direção, o lugar central
conferido ao caráter paradoxal do supereu no exercício desse
mandamento do amor ao próximo que desemboca no gozo
e não no amor.
Palavras-chave: Supereu, lei, próximo, gozo, amor.
Abstract
This article discusses the paradoxical nature of superego
notion already introduced by Freud in psychoanalysis in its
relationship to the commandment to love one’s neighbour as
oneself. The author argues that this commandment constitutes a moral law itself which purpose is to regulate the very
evil character of man and the relationship between men and
their neighbours, as well as it points to the central place given
to superego in the exercise of this commandment in so far
as it is jouissance and not love that comes.
Key words: Superego, law, neighbour, jouissance, love.
Artigo
‘Amarás a teu Próximo como a ti Mesmo’: Amor ou
Gozo?
‘Thou shalt love thy neighbour as thyself’: love or
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na melancolia ocorrem como um caminho indireto pelo qual o
sujeito vinga-se do objeto original abandonado e tortura o ente
amado através de sua doença, não precisando, dessa forma, ser
deliberadamente hostil para com ele.
Assim a sombra do objeto caiu sobre o ego, e
este pôde, daí por diante, ser julgado por um
agente especial, como se fosse um objeto, o
objeto abandonado. Dessa forma, uma perda
objetal se transformou numa perda do ego, e
o conflito entre o ego e a pessoa amada, numa
separação entre a atividade crítica do ego e
o ego enquanto alterado pela identificação.
(FREUD, 1917, p. 254-55).
Então de acordo com Freud, a análise da melancolia clareia
a natureza do suicídio na medida em que mostra, a partir de então,
que o ego só pode se matar se, devido ao retorno da catexia objetal, puder dirigir contra si mesmo a hostilidade relacionada a um
objeto. Se puder tratar a si mesmo como um objeto.
Um grande diferencial no tocante à abordagem freudiana do
supereu é marcado quando, em 1919, Freud se propõe a estudar
a origem das perversões sexuais, tendo como ponto de partida
uma fantasia que insiste na neurose - a saber, presenciar como ‘se
bate numa criança’. Fantasia neurótica fundamental que introduz
um a-mais de prazer sexual. Fantasia que pode ser inconfessável,
e se o sujeito no percurso de análise vier a confessá-la, somente
o fará acompanhada de muita vergonha e culpa. Nesse momento
da elaboração freudiana podemos situar a instância censora operando como instância crítica e cruel que submete o sujeito a um
gozo masoquista que se pode obter da fantasia masoquista de ser
castigado pelo pai.
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artigo
filhos, ao invés de acessarem ao gozo interditado pelo pai, introjetam o pai morto. Com isso, deixa-nos entrever nesse momento de
seu percurso, mesmo sem ainda o articular como tal, a origem do
supereu na medida em que ele nos propõe o sentimento de culpa
como provindo da agressividade recalcada. O sentimento de culpa
remontando à morte do pai primevo e, por conseguinte, ao recalque
do desejo primordial fundado na proibição do incesto e do parricídio,
ao recuo diante do acesso ao gozo.
Em 1914, ainda sem ter formulado tal noção de supereu,
Freud detecta a presença de um agente psíquico especial que realizaria a tarefa de assegurar a satisfação narcisista proveniente
do ideal do eu. E, que a partir disso, caberia então a esse agente
psíquico especial observar constantemente o eu real, medindo-o
por aquele, ideal.
Freud (1915) nos introduz agora à pulsão ressaltando fundamentalmente o vaivém em que esta se estrutura: ver e ser visto,
atormentar e ser atormentado. Com isso, desde o começo, Freud
nos apresenta como assentado que parte alguma desse percurso
pode ser separada de seu vaivém, de sua reversão fundamental,
do caráter circular do percurso da pulsão (Lacan, 1964, p.168).
Na sua 26a conferência Freud (1916-1917) situa a instância
do supereu como “censor” e, por ora, se refere a essa instância
como consciência moral.
Freud (1917) prossegue em sua referência a um agente psíquico especial, propondo que na melancolia a referida instância
julga o eu como se fosse um objeto - a saber, o objeto abandonado. Daí Freud aborda o conflito entre o eu, enquanto alterado
pela identificação com o objeto perdido, e a atividade crítica do
eu, entrando o ódio em ação de tal forma que esse agente especial
abuse, degrade, faça o objeto sofrer e tire satisfação sádica do seu
sofrimento. Portanto, para Freud, a auto-tortura ou a autopunição
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de haver sido uma garantia da imortalidade, transforma-se em um
estranho anunciador da morte (Freud, 1919a, p.252).
A duplicidade da imagem no duplo, é produto
da duplicidade imaginária: de um lado a lei do
Pai que pacifica, do outro, falha dessa mesma
lei, falha que gera violência e desafio e que
acaba se voltando contra o próprio sujeito.
Rota aberta da instância mortífera do masoquismo que, como posição estrutural, marca o
prelúdio do “além do prazer” como conjunção
de masoquismo, pulsão de morte e instância
crítica” (Ambertín, 2003, p.97).
Em 1920, Freud, no que se vê forçado a reconhecer que há um
além do princípio do prazer - o castigo masoquista -, introduzindo
a noção da pulsão de morte, coloca, a partir desse momento de corte, a censura referida com o além do princípio do prazer. Censura
antes já referida ao traumático. A inércia da fantasia masoquista
sustentando a compulsão à repetição, o retorno do traumático, do
intramitável.
Freud (1921) também nos apresenta a bela metáfora tomada
de empréstimo de Schopenhauer dos porcos-espinhos para ilustrar a insuportabilidade de uma relação íntima do sujeito com o
outro. A insuportabilidade dos espinhos vindo como uma resposta
à insuportabilidade do frio vem apontar que o encontro completo
com o outro seria o encontro com o outro insuportável e, por isso,
impossível – demandando, dessa maneira, uma distância moderada da qual fala Freud a partir de Schopenhauer: “Os espinhos
podem ser assimilados à Instância Crítica operando, submetendo
o sujeito aos outros, e também o sitiando de forma masoquista
contra si mesmo” (Ambertín, 2003, p.99).
No entanto, Freud (1923) amplia um pouco o campo de
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A fantasia de espancamento é chave e fundamento para prosseguir com o que começa a se
tornar insistente a partir dos textos de 1915.
O “supereu como herdeiro do complexo de
Édipo” aludirá uma herança que, como se
adverte em ‘Uma criança é espancada”, deve
ser pesquisada em sua tramitação e não em seu
resultado final. Herdeiro de feridas de amor,
ódio e temor. Herdeiro que no eco da voz insta
contra si mesmo como remanescente de um
gozo masoquista (Ambertín, 2003, p.95).
No que Freud desconstrói a fantasia ‘Uma criança é espancada’ em três fases, sendo a primeira “O pai bate numa criança que
eu odeio” e a segunda “Sou espancado pelo pai” e a terceira “Batese numa criança”, Freud aponta, de um lado, o desejo inconsciente
do sujeito causado por esse objeto inerte da fantasia. E de outro
lado, o gozo que é o que está para além do desejo e do princípio
do prazer, que se localiza nas vicissitudes da pulsão.
Freud (1919a), na mesma linha de desenvolvimento, refere-se
a essa instância crítica que tem a função de observar e de criticar o
eu e de exercer uma censura dentro da mente dizendo tratar-se do
fenômeno do duplo na relação do supereu com o eu. Freud conceitua
o estranho como o que retorna espectralmente como anunciador da
morte. Freud diz que o duplo é uma criação que data de um estádio
mental muito primitivo, apontando para o narcisismo primário - a
saber, o Eu ideal rebelde à castração. Um estádio em que o duplo
tinha um aspecto mais amistoso. No entanto, o duplo converte-se
num objeto de terror (Freud, 1919, p.254). Nesse momento, Freud
situa o supereu ainda como instância censora neste “retorno do superado”, mais ligado ao pulsional que ao inconsciente (Ambertín,
2003, p.96). Nesse sentido, Freud diz que aquilo (o duplo) depois
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quanto mais é rigorosamente seguida, mais tortura o sujeito. Pois
o supereu é um comando que se serve da lei moral e empurra o
sujeito para ir além da moral, e marca uma impossibilidade do seu
comando para o sujeito. Eis, portanto, o paradoxo do supereu que
captura o sujeito como presa de um gozo masoquista.
Em 1924, em ‘O problema econômico do masoquismo’ Freud
introduz a noção de masoquismo primário que faz do supereu uma
posição estrutural da subjetividade (Ambertín, 2003). Freud, aqui,
aborda a noção da renúncia pulsional em nome da virtude, formulando que o sujeito, no que renuncia ao gozo de sua satisfações
pulsionais, passa a gozar ou tirar satisfações das suas insatisfações
pulsionais. Segundo Freud, a consciência moral torna-se tanto mais
severa e melindrosa quanto mais o sujeito renunciar a agredir os
outros, na medida em que o sujeito passa a gozar, a se satisfazer
nas queixas, nas interdições e nos sintomas.
Mal-estar na civilização: comando paradoxal do supereu
e o mandamento do amor ao próximo em Freud
Freud (1930) nos propõe que o estabelecimento do supereu
ocorre não somente pelo medo de uma autoridade externa, mas
também quando essa autoridade crítica, proibidora e punitiva antes
externa é internalizada, com isso desaparecendo a distinção entre
fazer algo mau e desejar fazê-lo, já que nem mesmo os pensamentos
podem ser escondidos do supereu. Freud, então entrando no campo
da ética, desvela o paradoxo colocado pelo supereu, na medida em
que, de acordo com ele, sua crueldade e vigilância é diretamente
proporcional à virtude e a moralidade do sujeito.
O supereu como instância proibidora e ao mesmo tempo
representante do gozo proibido é plenamente articulado nesse
momento de sua elaboração. Por um lado, para Freud, a severidade e a agressividade do supereu devem ser entendidas como uma
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ação da psicanálise quando propõe que o mecanismo presente na
melancolia, isto é, a identificação com o objeto perdido, não se
restringe à melancolia, mas é de ocorrência bastante geral; e sugere que essas identificações regressivas são, em grande medida, a
base do que descrevemos como o “caráter” de uma pessoa. Postula
também que as mais antigas dessas identificações regressivas,
a saber, as derivadas da dissolução do complexo de Édipo, vêm
ocupar uma posição especial, e constituem o núcleo do supereu.
Dessa maneira, nesse momento de elaboração, passa a conotar a
instância crítica como sendo imperativa e cruel.
De acordo com Freud nesse momento de sua elaboração,
enquanto que o eu é essencialmente o representante da realidade,
o supereu contrasta-se com ele, como representante do id.
O superego, contudo, não é simplesmente um
resíduo das primitivas escolhas objetais do id;
ele também representa uma formação reativa
enérgica contra essas escolhas. A sua relação
com o ego não se exaure com o preceito: você
deveria ser assim (como seu pai)! Ela também
compreende a proibição: você não pode ser
assim (como seu pai), isto é, você não pode
fazer tudo o que ele faz; certas coisas são prerrogativas dele! (FREUD, 1923, p.47).
Em “O ego e o id “ Freud começa a rascunhar conceitos que
já denunciam “O mal-estar na civilização” no sentido de conceituar
o isso como totalmente amoral, o eu se esforçando em ser moral, o
supereu podendo ser hipermoral, ou seja, empurrando o sujeito para
ir além da moral; e então se tornando tão cruel quanto só ele pode
ser. Do ponto de vista econômico, a moral que atua no supereu,
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nossa própria agressividade para com ele.
(FREUD, 1930, p.133).
No ‘Mal estar na civilização’, Freud introduz como acréscimo em relação a ‘Totem e tabu’, no tocante ao supereu o seguinte:
enquanto que em ‘Totem e tabu’ o sentimento de culpa coincidia
com o remorso, na medida em que constituia a conseqüência de
um ato de agressão que fora executado, a saber, o assassinato do
pai, a instituição da autoridade interna, o supereu, fez com que a
diferença entre uma agressão pretendida e uma agressão de fato
executada perdesse sua força.
Nessa linha de direção Freud nos escreve o ‘O mal estar
na civilização’ para reivindicar que o desenvolvimento da civilização impõe renúncias pulsionais ao sujeito, na medida em que
impõe grandes sacrifícios, não apenas à sexualidade do homem,
mas também à sua agressividade com o seu próximo; e que essas
renúncias pulsionais criam o supereu e esse, por sua vez, cria mais
renúncias pulsionais, resultando na intensificação do sentimento
de culpa. Esse é o preço que pagamos por nosso avanço em termos
de civilização e o mais importante problema no desenvolvimento
da civilização.
Freud nos diz, nesse mesmo trabalho, que para atingir seus
objetivos de cercear as pulsões agressivas do homem e manter
suas manifestações sob controle por formações psíquicas reativas,
a civilização emprega métodos destinados a incitar as pessoas a
identificações e relacionamentos amorosos inibidos em sua finalidade. Daí a restrição à vida sexual e daí, também, o mandamento
ideal de amar ao próximo como a si mesmo. Mandamento que é
realmente justificado pelo fato de nada mais ir tão fortemente contra
a natureza original do homem. (FREUD, 1930, p.117).
Assim Freud parece sugerir que o mandamento do amor ao
próximo constitui-se em um método empregado pela civilização
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continuação da severidade e da agressividade da autoridade externa
à qual sucedeu e que, em parte, substituiu. Originalmente, bastava
renunciar-se às próprias satisfações pulsionais para não perder o
amor de uma autoridade externa e com isso nenhum sentimento de
culpa permaneceria. No entanto, no tocante ao medo do supereu, o
caso é diferente. A renúncia pulsional não basta, havendo exigência, necessidade de punição pela persistência do desejo, que não
pode ser escondido do supereu. O resultado é que, a despeito da
renúncia pulsional efetuada, ocorre um sentimento de culpa. Por
outro lado, Freud sugere a afirmativa paradoxal de que o suepereu
é o resultado da renúncia pulsional na medida em que a renúncia
pulsional cria o supereu e esse, por sua vez, exige mais renúncias
pulsionais.
O que Freud propõe de enlace para esses dois aspectos do
supereu referidos é que a criança, através da identificação, incorpora a si a autoridade que a impede de ter suas primeiras e mais
importantes satisfações. Transforma-a em seu supereu, que entra
na posse de toda a agressividade que a criança gostaria de exercer
contra ele, o eu da criança assume o papel da autoridade a ser atacada. Assim, a severidade original do supereu não representa tanto
a severidade atribuída ao objeto, e sim nossa própria agressividade
para com ele, como já delineado em “Luto e melancolia”.
O relacionamento entre o supereu e o ego
constitui um retorno deformado por um desejo, dos relacionamentos reais existentes entre,
o ego, ainda individido, e um objeto externo.
Isso também é típico. A diferença essencial,
porém, é que a severidade original do supereu
não representa – ou não representa tanto – a
severidade que dele [do objeto] se experimentou ou que se lhe atribui. Representa antes,
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maldade profunda que habita no próximo. Mas daí ela (a maldade)
habita também em mim; e o que me é mais próximo do que esse
âmago em mim mesmo, que é o do meu gozo, do qual não ouso
me aproximar, pois assim que me aproximo surge essa insondável
agressividade diante da qual eu recuo - que retorno contra mim - e
que vem, no lugar mesmo da lei esvanecida (a lei do pai) dar seu
peso ao que me impede de transpor os limites que me separam
do campo da Coisa, do campo do inominável do desejo radical
(LACAN, 1959, p.227-228).
Lacan chama o gozo do próximo como gozo nocivo, gozo
maligno e ele diz que é esse gozo que se propõe como o verdadeiro
problema para o nosso amor (LACAN, 1959, p.229). O que faz
Lacan chamar esse gozo de nocivo e maligno é o paradoxo desse
mandamento supereuóico do amor ao próximo na medida em que
ele desemboca no gozo e não no amor, porque era gozo desde o
início e não se sabia tal. O amor, para se constituir, precisa da
renúncia a esse gozo nocivo e com isso temos a incompatibilidade
entre amor e gozo. Lacan nos diz que só o amor-sublimação permite ao gozo condescender ao desejo (Lacan, 1962-1963, p.199)
e parece apontar com esse aforismo sobre o amor que só a partir
do amor feito causa, é possível negociar com o desejo e o gozo
(Ambertín, 2003, p.331).
Lacan, a partir de Freud e Heidegger, chama esse objeto (o
próximo), aparecendo em sua alteridade de radicalmente estranho,
de a Coisa, de “das Ding’’. Por isso a proximidade maciça desse
objeto aparecendo em sua alteridade absoluta – meu semelhante e
radicalmente outro – pode me dar horror – certa ultrapassagem do
sinal da angústia (FREUD, 1926), (LACAN, 1962a). Na própria
medida em que o outro é precisamente o próximo, o próximo sou
eu mesmo e eu sou irreconhecível.
A economia do supereu que Freud havia delimitado é rea-
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artigo
para estabelecer limites para as pulsões agressivas, para incitar
as renúncias pulsionais requeridas para o desenvolvimento da
civilização. Por conseguinte, o mandamento do amor ao próximo
confere tirania ao supereu na medida em que ele, constituído pela
renúncia pulsional, exige mais e mais renúncias pulsionais.
Contribuições lacanianas quanto ao caráter paradoxal
do mandamento do amor ao próximo conferido pela instância
paradoxal do supereu
No ‘Mal estar na civilização’ Freud se horroriza diante do
mandamento do amor ao próximo. Por conseguinte, Freud ressalta
o lado exorbitante desse mandamento com a seguinte argumentação: em primeiro lugar, o próximo é um ser malvado; em segundo
lugar, o seu amor é algo precioso que ele não vai dá-lo inteiramente
a cada um que se apresente como sendo o que é, só porque ele se
aproximou. A partir disso Freud faz observações sobre o que vale
a pena ser amado. Entretanto, segundo Lacan (1959), o que Freud
elude é que talvez seja justamente ao tomar essa via que percamos
o acesso ao gozo. É da natureza do bem ser altruísta, mas o amor
ao próximo não é isso. Freud faz com que se perceba isso, sem
articulá-lo plenamente.
Assim, Freud diz que esse mandamento é arrogante, já que
nos solicita usar o nosso amor indistintamente e para quem não
merece. Lacan não nega o que está em Freud e diz outra coisa que
não está em Freud, a saber, que neste mandamento está em questão
não só o próximo, mas a si mesmo.
Segundo Lacan, o fundamento do recuo de Freud diante do
mandamento do amor ao próximo se dá porque, a cada vez que
Freud se detém, como que horrorizado diante da conseqüência do
mandamento do amor ao próximo, o que surge é a presença dessa
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mento, apoderar-se de suas posses, humilhálo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo
(FREUD, 1930, p.116).
Acerca do que estamos tratando, é importante nos referirmos
nesse momento ao que significa o ‘prazer’ em Freud. Como bem
observa Lacan (1959), toda a apologia do bem do homem desde a
origem do pensamento moral e ético foi feita em função do índice
do prazer. O moralista tradicional tenta persuadir-nos de que o
prazer é um bem, que a via do bem nos é traçada pelo prazer.
Entretanto, podemos dizer que o termo ‘prazer’ em Freud, o
‘Princípio do prazer’ é concebido de modo radicalmente diferente
do prazer concebido pela moral tradicional. Desde antes das formulações extremas do ‘Mais além do princípio do prazer’ (FREUD,
1920), na sua primeira formulação do princípio do prazer como
princípio de desprazer ou do menos padecer (FREUD, 1895), é
possível ver com clareza já aí essa formulação comportando um
para além. Mas que é feito justamente para nos manter aquém. O
princípio do prazer, nesse momento de sua elaboração, regula a
busca do objeto tratando-se de reencontrá-lo na medida em que ele
é perdido desde sempre, mas impondo-lhe rodeios que conservam
sua distância em relação ao seu fim. Em outras palavras, o sujeito
busca o objeto que lhe falta, mas não deseja encontrá-lo. O encontro
completo com o outro seria o encontro com o outro insuportável, e
logo, impossível. O desejo é um movimento de busca desse objeto
e o amor vem significar esse movimento (Lacan, 1962-1963). “A
originalidade do Entwurf provém da noção dos trilhamentos que
comandam a repartição dos investimentos libidinais de tal maneira
que certo nível não seja ultrapassado, para além do qual a excitação
é insuportável para o sujeito.” (LACAN, 1959, p.271). Assim, o
emprego do bem, por Freud, é no sentido de que ele nos mantém
afastados de nosso gozo. “O que é o gozo? Aqui ele se reduz a
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artigo
firmada em Lacan (1959-1960) na medida em que, quanto mais
sacrifícios se lhe oferecem, mais exigente ele advém.
Ao se referir ao célebre Luto e melancolia Lacan diz que,
dado o que Freud nos afirma acerca do objeto incorporado de que
é um objeto que não se deseja (o pai), mas com o qual tanto nos
importamos em nosso luto, não lhe prestamos unicamente louvores. Talvez as recriminações que lhe fazemos sejam o motivo de o
incorporarmos, para sermos tão malvados conosco mesmos quanto
fomos com ele. (Lacan, 1959-1960, p. 368).
Em Televisão, Lacan (1973) diz que o supereu é estrutural,
que ele não é efeito da civilização, mas, mal-estar (sinto-mal) na
civilização.
Desta forma, seguindo Lacan (1959) Freud nos escreve o ‘Mal
estar na civilização’ para nos dizer que o gozo é um mal porque ele
comporta o mal do próximo. Nesse referido texto, Freud desvela
o mal radical que habita no homem na medida que naturalmente
ele tende à maldade, à agressão, à destruição, e portanto, também
à crueldade.
O elemento de verdade por trás disso tudo,
elemento que as pessoas estão tão dispostas
a repudiar é que os homens não são criaturas
gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas;
pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes
instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado
disso, o seu próximo é, para eles, não apenas
um ajudante potencial ou um objeto sexual,
mas também alguém que os tenta a satisfazer
sobre ele a sua agressividade, a explorar sua
capacidade de trabalho sem compensação,
utilizá-lo sexualmente sem o seu consenti-
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Cristia Rosineiri Gonçalves Lopes Corrêa
Para Kant a vontade é moral quando suas ações são regidas
por imperativos categóricos e não por imperativos hipotéticos,
como a punição da lei. O imperativo categórico pode ser assim
enunciado: “Age de tal modo que o motivo que te levou a agir
possa tornar-se lei universal”. Kant faz em sua crítica uma apologia
da felicidade no bem.
Em contrapartida, um certo Marquês de Sade nos mostra qual
mundo, paradoxalmente, é concebível quando se pretende eliminar
dos critérios da ação moral um elemento sentimental como Kant
o fez, como um mundo sadista é concebível, mesmo que ele seja
o avesso e a caricatura do mundo kantiano.
Sade reinvindica em sua obra - que é um legado sobre a
apologia da ‘felicidade no mal’ - o direito ao gozo, a liberdade de
desejar, contrapondo à noção de bem: algo como uma possibilidade de se ficar bem no mal (LACAN, 1959-1960).
Sade nos propõe, como máxima universal de nossa conduta,
o direito de gozar do outro, a submissão do outro aos caprichos
perversos que regem o direito ao gozo, a liberdade de desejar. A
soberania do desejo perverso, reduzindo o outro, quem quer que
seja, ao lugar de vítima a ser pura e simplesmente instrumento de
nosso prazer.
Sade exalta o ateísmo e preconiza o contrário de todas as leis
do Decálogo. Faz uma apologia eloqüente do adultério, do incesto,
do crime, da desonestidade; de tudo o que a lei moral constituiu
até então como o mínimo vital para uma vida moral, viável e coerente. Justifica eloquentemente ponto por ponto o derrubamento
dos imperativos fundamentais da lei moral, a substituição da
primazia das virtudes pela primazia dos vícios, da obscenidade e
da degeneração.
Através do seu legado, podemos detectar as extremidades
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artigo
ser apenas uma instância negativa. O gozo é aquilo que não serve
para nada. O superego é o imperativo do gozo - Goza!” (Lacan,
1972-1973, p.11).
No entanto, a subversão da noção de prazer não foi inaugurada por Freud e sim por Sade (1795), que antecipa Freud no tocante
ao catálago das perversões, mas, cujo ponto decisivo é Kant (1788)
que é o primeiro a positivar o mal na filosofia – o mal não como
ausência do bem (LACAN, 1962, p.776). Kant chegou a postular
a predisposição para o mal, mas não o mal como constitutivo do
sujeito, das ações humanas, como Freud o faz.
Kant com Sade
Kant propõe um fundamento categórico e universal para a ação
moral. Trabalhando com o peso da lei formulada por ele como razão
prática, como impondo-se para além de todo sentimento, de todo afeto
patológico; ou seja, em termos puros de razão, sem nenhum motivo
pessoal.
O essencial de todo valor moral das ações
consiste em que a lei moral determina imediatamente a vontade. Se a determinação da
vontade se produz em conformidade com a
lei moral, mas somente por intermédio de
um sentimento, seja de que espécie for, que
seja necessário pressupor para que esse sentimento se torne um princípio de determinação
suficiente para a vontade, não ocorrendo por
conseguinte, a ação exclusivamente por amor
à lei, então a ação encerrará, certamente,
um caráter legal, mas não um caráter moral
(KANT, 1788, p. 82).
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Cristia Rosineiri Gonçalves Lopes Corrêa
Segundo Lacan, é a lei moral (que inclui o mandamento do
amor ao próximo), na medida em que é a Lei que vêm para assegurar a distância do sujeito à Coisa, que faz o desejo do sujeito
desejo de morte, na medida em que, em relação a essa lei, a Coisa
adquire um caráter hiperbólico.
A relação entre a Coisa e a Lei não poderia
ser melhor definida do que nesses termos. É
aqui que a retomaremos. A relação dialética do
desejo com a Lei faz nosso desejo não arder
senão numa relação com a Lei, pelo qual ele
se torne desejo de morte. É somente pelo fato
da Lei que o pecado, hamartia, o que em grego
quer dizer falta (manque), e não-participação à
Coisa adquire um caráter desmesurado, hiperbólico (LACAN, 1959-1960, p.106).
Então, com o desejo do pai fazendo a lei, Desejo/ Lei constituise em uma barreira que obstrui o acesso à Coisa e o supereu parece
surgir como resto- objeto a - do que franqueia essa barreira (Ambertín, 2003, p.306), como resíduo da operação de degradação da
lei do pai.
Segundo Lacan (1953-1954), o supereu tem uma relação
com a lei, e ao mesmo tempo, é uma lei insensata, de caráter
cego, de puro imperativo, de simples tirania que chega até a ser o
desconhecimento da lei. Com isso, Lacan parece sugerir que não
há supereu sem a lei da linguagem, mesmo que ele atue como o
próprio avesso da lei. Lacan (1955) se refere ao supereu como uma
figura obscena e feroz cujo imperativo aflora da malha rompida
da cadeia simbólica.
Lacan (1959-1960) distingue supereu de consciência moral,
definindo a segunda apenas como uma exteriorização articulada
do primeiro. Diz que a opressão insensata do supereu permanece
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artigo
aonde chega o homem do prazer – a transposição dos limites para
além dos quais se situa o campo do desejo de morte, do gozo de
destruição, da Coisa inassimilável - pois que o extremo do prazer
força o acesso à Coisa e o sujeito não submete seu desejo à lei do
Outro. É essa a filosofia de Sade: uma apologia da transgressão de
todos os limites humanos - quando se avança na direção desse vazio
central “das Ding”, lugar de acesso ao gozo, o corpo do próximo
se despedaça (LACAN, 1959-1960)..
Contudo Kant, mesmo rejeitando qualquer elemento sentimental dos critérios da ação moral, admite a própria dor do sujeito
como um correlato sentimental da lei moral em sua pureza.
Portanto, podemos constatar a priori que a lei
moral enquanto princípio de determinação da
vontade, deve, por prejudicar todas as inclinações, produzir um sentimento ao qual podemos
chamar dor; e aqui temos agora o primeiro e,
talvez, também o único caso em que podemos
determinar por conceitos a priori a relação de
um conhecimento (neste caso, o conhecimento
de uma razão pura prática) com o sentimento
do prazer ou do desprazer (KANT, 1788, p.83).
Considerações finais
Se a dor é o que essencialmente existe em Sade, no horizonte
da transgressão de todos os limites humanos, atingindo absolutamente das Ding, Kant tem a mesma opinião de Sade e a dor de
outrem e a dor própria do sujeito são, no caso, apenas uma só e a
mesma coisa. Nós não podemos suportar o extremo do prazer, no
que ele consiste em forçar o acesso à Coisa (LACAN, 1959-1960,
p.102).
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Cristia Rosineiri Gonçalves Lopes Corrêa
que a resistência ao mandamento do amor ao próximo e a resistência
que se exerce para entravar seu acesso ao gozo são uma única e
mesma coisa. (LACAN, 1959, p.236-237). Isso porque, de acordo
com o que Freud nos ensinou, no que o sujeito recua diante de seu
gozo, diante dessa insondável agressividade como os filhos no mito
do pai da horda primeira, essa agressividade retorna contra ele, e
vem no lugar da lei esvanecida dar seu peso ao que faz fronteira
no limite da Coisa, ao que o impede de atravessá-lo. Pois a energia
do supereu provém da agressividade que o sujeito volta contra si
mesmo. Logo, amar seu próximo como a si mesmo pode ser a via
mais cruel na medida em que participa de não sei qual crueldade
intolerável. (LACAN, 1959, p.237).
Lacan (1964) definindo o desejo do analista face ao desejo de
morte, como um desejo de obter diferença absoluta, um desejo não
circunscrito na repetição trágica, adverte para o campo do desejo
puro na sua dimensão de economia de sacrifício que reporta a um
uso perverso da castração. Nesse sentido, a lei moral em Kan,t no
que dá no supereu, no que desemboca no sacrifício, é o desejo em
estado puro. O desejo em estado puro, desejo de morte, aponta para
duas vertentes: a vertente do desejo perverso e a vertente tirânica
do supereu.
O sentimento de culpa representa o mal-estar da civilização
porque a exigência cultural é que o sujeito ceda no que tange a seu
desejo. Pode conservar seu sintoma como satisfação substitutiva
desde que se abstenha de agredir os outros, isto é, gozar do semelhante. (Goldenberg, 1994).
O mandamento do amor ao próximo constitui-se em um
mandamento supereuóico, e por conseguinte, traz em sua estrutura
o caráter de uma lei insensata que o comando do supereu evoca,
conduzindo o sujeito até mesmo a desconhecer essa lei, mantendo a
proximidade da Coisa que essa lei moral e religiosa visava afastar.
Por constituir-se em um mandamento supereuóico, esse mandamen138
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artigo
na raíz dos imperativos motivados da consciência moral (Lacan,
1948, p.119) e sugere que no supereu trata-se do dever para além
da obrigação.
Em 1960 encontramos introduzido na teoria lacaniana que
o supereu como Real é a voz, a saber, uma das formas do objeto a
(Ambertín, 2003, p.307).
O mesmo acontece com a lei moral, e pela mesma razão que nos faz caminhar da linguagem
para a fala. E descobrir que o supereu, em seu
imperativo íntimo, é de fato “a voz da consciência”, isto é, antes de mais nada uma voz,
bastante vocal, e sem maior autoridade senão a
de ser uma voz grossa: a voz sobre a qual pelo
menos um texto da bíblia, nos diz que ela se
fez ouvir pelo povo aglomerado em torno do
Sinai, não sem que esse artifício sugira que, em
sua enunciação, ela lhe devolveu seu próprio
rumor, nem por isso sendo menos necessárias
as Tábuas da Lei para conhecer seu enunciado”
(Lacan, 1960, p. 691).
Lacan (1963) diz que através da voz - esse objeto caído do
órgão da fala - o Outro está no lugar onde isso fala...
Apontando para uma subversão da lei moral Lacan propõe
algo que parece um paradoxo, ou seja, que o recuo diante do
‘Amarás a teu próximo como a ti mesmo’ é a mesma coisa que a
barreira diante do gozo, e não seu contrário. Em outras palavras,
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Cristia Rosineiri Gonçalves Lopes Corrêa
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artigo
to mantém-se sob o império da pulsão de morte, que silenciosamente amarra o sujeito em uma posição masoquista, que, é importante
dizer, é estrutural, quando o sujeito recua diante da agressividade
que concerne ao gozar de seu próximo. No que cede de seu desejo,
sob o imperativo do dever moral, o sujeito se apreende como presa
de um gozo masoquista advindo do redirecionamento da pulsão
destrutiva contra si mesmo; redirecionamento que se dá a partir do
caráter circular da pulsão destrutiva, do vaivém em que a pulsão
destrutiva se estrutura, da sua reversão fundamental.
A psicanálise desvela que o gozo como mal constitutivo
do sujeito, das ações humanas – o mal radical em Freud, que o
surgimento do mandamento moral e religioso ‘Amarás a teu próximo como a ti mesmo’ visa manter distância - não é, de maneira
nenhuma afastado, pois o sujeito goza mesmo assim. Goza nas
insatisfações, nas privações e interdições que essa lei moral e religiosa institui. Goza nas queixas que as insatisfações pulsionais
introduzem.
O mandamento moral e religioso do amor ao próximo, que
visa em sua natureza afastar o gozo maligno pela via do amor,
desemboca paradoxalmente no gozo, no sacrifício, no desejo em
estado puro. Por isso a lei moral e religiosa por si só é ineficaz,
paradoxal e desumana. Não opera afastando a crueldade que concerne ao real da relação do homem com o seu próximo. É justamente porque se trata de um mal-estar estrutural, que a psicanálise
pode se inscrever nessa hiância colocada pelo paradoxo dessa lei
moral e religiosa visando constituir uma clínica em que o sujeito
comprometido com o seu desejo, assumindo responsabilidades e
fazendo ato na vida, possa advir lá onde o isso freudiano estava,
posicionando-se melhor diante do outro e de si mesmo. Mas não
sem pagar o preço de certa perda de gozo.
Cristia Rosineiri Gonçalves Lopes Correa
Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 119-142, 2007
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*Membro associado/SPCRJ; Mestre em Psicologia Clínica/PUC-Rio.
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143
precursors are in the early intersubjective experiences that
permit the construction of psychic frontiers, which are the
foundations for the development of the symbolic capacity.
Keywords: Symbolism; object relationships; depressive
position; psychic frontiers.
artigo
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artigo
A constituição das fronteiras psíquicas e as fundações
do símbolo
The construction of psychic frontiers and the foundations of the symbol
Cristiana Regina Ferreira de Aguiar Pondé*
Resumo
A origem do pensar e de todo funcionamento psíquico está
no processo de transformação das experiências sensoriais e
emocionais, que dominam o início da vida, em símbolos. O
símbolo é a unidade elementar que forma o tecido da fantasia
e estabelece a relação com o mundo de significados compartilhados. Seus precursores encontram-se nas experiências intersubjetivas iniciais que permitem a constituição das fronteiras
psíquicas fundamentais para o desenvolvimento da capacidade
de simbolizar.
Palavras-chave: Simbolismo, relações de objeto, posição
depressiva, fronteiras psíquicas.
Abstract
The origins of thinking and of psychic functioning are in
the process of transforming the sensory and emotional experiences that dominate early life, into symbols. The symbol
is the elementary unit that constructs the base of fantasy and
permits the child’s entry into the social/ cultural world. Their
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145
Cristiana Regina Ferreira de Aguiar Pondé
Os símbolos e as equações simbólicas
As descobertas psicanalíticas sobre o simbolismo e sobre a
fantasia inconsciente foram interdependentes e correlacionadas
desde o início. No artigo “A natureza e a função da fantasia”
(1952), Susan Isaacs discute e amplia o conceito de fantasia inconsciente e esta passa a ser entendida como o conteúdo primário
dos processos mentais inconscientes, ou seja, “o corolário mental,
o representante psíquico das pulsões”. As raízes desta concepção
de fantasia inconsciente podem ser identificadas no capítulo 7 da
“Interpretação dos sonhos”, quando Freud descreve o processo
primitivo pelo qual surge o desejo. Ao defrontar-se com as excitações produzidas pelas “necessidades” internas, o bebê busca
descarga no movimento como forma de expressão emocional,
que pode ser exemplificada pelo bebê faminto que grita e dá
pontapés. No entanto, a mudança neste estado só ocorre quando
há a percepção da experiência de satisfação. Freud afirma que:
Em decorrência do vínculo estabelecido, na
próxima vez em que essa necessidade for
despertada, surgirá de imediato uma moção
psíquica que procurará reinvestir a imagem
mnêmica da percepção e reevocar a própria
percepção, isto é, restabelecer a situação da
satisfação original. Uma moção dessa espécie
é o que chamamos de desejo; o reaparecimento
da percepção é a realização do desejo.” (Freud,
1900, p. 595).
Ao descrever o surgimento do desejo, descreve a transformação de uma necessidade exclusivamente somática para sua
inscrição na dimensão psíquica. Freud afirma que “o pensamento
não passa do substituto de um desejo alucinatório” (Ibidem), e
146
Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 143-161, 2007
artigo
A constituição das fronteiras psíquicas e as fundações
do símbolo
The construction of psychic frontiers and the foundations of the symbol
Cristiana Regina Ferreira de Aguiar Pondé
Introdução
No bebê recém nascido não há uma vivência psíquica de
distinção clara entre seu próprio corpo e o de sua mãe. Esta distinção, não apenas entre corpos, mas também entre psique e soma
vai ocorrendo a cada minuto de interação entre mãe e bebê. O tema
da constituição das fronteiras psíquicas, a partir das experiências
sensoriais e emocionais primitivas, remete ao período do narcisismo primário. Em “Sobre o narcisismo” (1914), Freud afirma que:
Uma unidade comparável ao ego não pode
existir no indivíduo desde o começo; o ego tem
de ser desenvolvido. As pulsões auto-eróticas,
contudo, estão ali desde o início, sendo, portanto, necessário que algo seja adicionado ao
auto-erotismo – uma nova ação psíquica – a
fim de provocar o narcisismo (Idem, p.93).
Este trabalho tem como objetivo discutir algumas hipóteses sobre as experiências precoces que geram as ações psíquicas
necessárias para a constituição das fronteiras psíquicas (internas
e externas) que caracterizam o narcisismo primário e permitem
a emergência dos símbolos.
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Cristiana Regina Ferreira de Aguiar Pondé
vinculadas à experiência sensorial.
De acordo com Ernest Jones (1916), o símbolo é infinito e
encontra-se nos gestos, palavras, e em todas as atividades humanas,
mas seu conteúdo é restrito às fantasias primitivas que se originam
na dimensão somática. Baseada em grande parte da teoria de Jones
sobre o simbolismo, Melanie Klein criou uma abordagem nova
sobre o tema. De acordo com Cintra e Figueiredo, no pensamento
kleiniano:
As sensações corporais são muito importantes
na formação do tecido da fantasia: ela é a configuração psíquica das mais arcaicas sensações
e sentimentos, é o lugar no qual se constitui a
mais profunda imagem inconsciente do corpo
(2004, p. 151).
Nesta perspectiva, a fantasia é compreendida como “o vínculo
que existe entre o impulso do id e o mecanismo do ego, o meio pelo
qual um se transforma no outro” (Isaacs, pg. 119). Assim, os primeiros
processos mentais, ou seja, os representantes psíquicos dos impulsos
amorosos e destrutivos constituem os primórdios da fantasia. Se a fantasia é a linguagem das moções pulsionais primárias, pode-se supor que
a fantasia participa do desenvolvimento inicial do ego, não apenas com
relação ao id, mas também, em sua relação com a realidade, apoiando
a comprovação da mesma, assim como o desenvolvimento do conhecimento do mundo externo.
Hanna Segal (1955), em “Notas sobre a formação de símbolos”, a partir dos alicerces teóricos kleinianos, desenvolve uma
teoria sobre a formação de símbolos na qual articula os aspectos
pré-simbólicos e simbólicos às posições esquizo-paranóide e depressiva, respectivamente. Tal como desenvolve S. Langer sobre a
participação de três elementos para o uso de símbolos (2004, p. 70),
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artigo
assim, localizam-se neste momento, os primórdios da fantasia e
da vida mental.
A relação entre as fantasias inconscientes e o simbolismo
evoca o tema da própria constituição do domínio psíquico. Segundo Isaacs, não há impulso, necessidade ou resposta pulsionais
que não sejam vivenciadas como fantasia inconsciente. Isaacs
afirma que no início da vida do bebê, as fantasias são construídas
em conjunção com os investimentos em certas zonas corporais e
estão ativas na mente do bebê muito antes do desenvolvimento da
linguagem. E mesmo na vida adulta, as fantasias continuam operando independentemente das palavras, no entanto, “o pensamento de
realidade não pode operar sem a concorrência e apoio de fantasias
inconscientes” (Isaacs, 1954, p. 124). Esta idéia liga-se à concepção de Ferenczi sobre a identificação primária como precursora do
simbolismo, ou seja, o processo em que o bebê tenta redescobrir
em todos os objetos, os seus próprios órgãos e seu funcionamento.
Em “Ontogênese dos símbolos”, ele afirma que:
Assim se estabelecem às relações profundas,
persistentes a vida inteira, entre o corpo humano e o mundo dos objetos, a que chamamos
relações simbólicas. Nesse estágio, a criança
só vê no mundo reproduções de sua corporalidade e, por outro lado, aprende a figurar
por meio de seu corpo toda a diversidade do
mundo externo. (Ferenczi, 1992, p. 105)
É nesta rede de equivalências que surgirão os primeiros
elos simbólicos que vão formar a primeira trama do “tecido” da
fantasia; e, apenas desta forma, é que o bebê pode deslocar o interesse de seu próprio corpo para o mundo externo. Assim, essas
identificações primárias consistem nas unidades elementares de
todas as fantasias inconscientes que estão sempre arcaicamente
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Cristiana Regina Ferreira de Aguiar Pondé
Quando perguntado sobre o motivo que o levou a parar, respondeu
violentamente: “Você espera que eu me masturbe em público?”.
Um segundo paciente neurótico, atendido no consultório, relatou
ter sonhado que tocava violino em público, o que representava fantasias masturbatórias. No entanto, estas fantasias não interferiam no
ato sublimatório de tocar violino, como ocorria no primeiro caso.
Para o paciente psicótico, o violino é o pênis e tocar em público é
masturbar-se; e para o paciente neurótico o símbolo representa o
objeto, mas não está equacionado a ele.
Segundo Segal, a capacidade de simbolizar e, portanto, de
executar uma reparação simbólica e mental é uma conseqüência
da elaboração da posição depressiva:
Na posição depressiva o ego passa a se preocupar cada vez mais em salvar o objeto de
sua agressão e possessividade. Esta situação é
um estímulo poderoso para a criação de símbolos. O símbolo é necessário para deslocar a
agressividade do objeto original e, desta forma,
diminuir a culpa e o medo da perda. (Segal,
1981, pg. 173).
Considerando que para se formar símbolos devem-se preservar a distinção entre o símbolo e aquilo que é simbolizado, a
diferenciação gradual entre self e objeto torna-se um dos pilares
para a formação de símbolos. Caper afirma que “deve haver, progressivamente, desde o nascimento, um direcionamento para a
realidade, no sentido de um contato com um objeto diferente do
self, e com um self diferente do objeto” (2002, p. 112). A confusão
prolongada entre self e objeto tem efeito tão catastrófico para formação de símbolos quanto a precoce consciência de diferenciação.
Por este motivo, discutiremos algumas hipóteses sobre as expe-
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artigo
Segal afirma que a simbolização consiste em uma relação entre três
termos: a coisa simbolizada, aquilo que funciona como um símbolo
e a pessoa para quem um representa o outro. Ou seja, o simbolismo
seria uma relação entre o ego, o objeto e o símbolo, originando-se
simultaneamente às relações de objeto e transformando-se de acordo
com as alterações nas características e funções das relações entre o
ego e os objetos. “A formação simbólica corresponde a uma atividade do ego tentando lidar com as ansiedades mobilizadas pela sua
relação com o objeto”. (Segal, 1955, pg.170).
Hanna Segal, a partir da teoria kleiniana das posições
esquizo-paranóide e depressiva, procura discriminar a qualidade
dos símbolos que compõem os sintomas, dos símbolos presentes
nos sonhos, pensamento verbal e atividades criativas. Distingue
dois tipos de simbolização: a equação simbólica e a representação
simbólica. Segundo Segal, as primeiras projeções e identificações,
que constituem as primeiras relações de objeto, coincidem com o
início do processo de formação de símbolos. Estes primeiros símbolos são sentidos pelo bebê como sendo o próprio objeto original
correspondendo a “equações simbólicas” e às bases do pensamento
esquizofrênico. Em termos afetivos, a equação simbólica é usada
para negar a ausência do objeto ideal ou para controlar um objeto
sentido como persecutório.
O símbolo propriamente dito, segundo Segal, representa o
objeto ao invés de ser confundido com este. Para isso, é preciso
que a diferenciação entre ego e objeto tenha se efetuado, processo
que se dá através das relações de objeto características da posição
depressiva.
Para ilustrar a diferença entre a formação e o uso de símbolos motivados por ansiedades esquizo-paranóides ou motivados
por ansiedades depressivas, Segal relata dois fragmentos de casos
clínicos. No primeiro exemplo, um paciente psicótico internado,
desde o desencadeamento de uma crise, parou de tocar violino.
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obscurecida pelo uso intenso da identificação projetiva.
Este período de não-diferenciação implica na pressuposição de que a personalidade não existe como um todo no início.
Ou seja, de acordo com Esther Bick, a experiência é vivida pelo
bebê como partes não conectadas entre si e, portanto devem
ser mantidas unidas por algo que exerça esta função. A pele é
sentida como determinando este limite:
Mas esta função interna de conter as partes do
self depende, inicialmente, da introjeção de um
objeto externo, sentido como capaz de cumprir
esta função. Mais tarde, a identificação com
esta função do objeto substitui o estado nãointegrado e dá origem à fantasia de espaços
internos e externos. (Bick, 1967).
Estas experiências, segundo Bick, se dão no contexto da
amamentação, cujo “objeto ótimo é o mamilo na boca, a mãe que
segura a criança, fala com ela e tem um cheiro familiar” (Idem).
O conjunto destas experiências sensoriais facilitará o processo de
introjeção desta função continente, a qual é sentida concretamente
como uma pele que irá conter o ego e o objeto.
Frances Tustin compreendeu os estados primitivos da vida
psíquica, a partir de seu trabalho com adultos e crianças autistas.
Identificou também em adultos neuróticos, áreas da personalidade
denominadas “cápsulas autistas”. Estes pacientes, segundo ela, apesar de manterem certo grau de adaptação, conviviam com um “senso
tênue de existência”, caracterizado por uma sensação de “irrealidade”
Tustin afirma que: “O termo “imagem” para esses estados primitivos é um pouco
inapropriado uma vez que a criança, neste estágio, é incapaz de imaginar. Esses estados
primitivos parecem ser um repertório de sensações relativamente descoordenadas que
são mais sentidas que imaginadas” (Tustin, 1990).
1
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artigo
riências sensoriais primitivas que contribuem para a constituição
das fronteiras psíquicas e, consequentemente, para a formação de
símbolos.
As experiências sensoriais iniciais
Esther Bick e Frances Tustin contribuíram para a compreensão do processo de constituição das fronteiras psíquicas, a partir
das experiências sensoriais que ocorrem nas relações de objeto
primordiais. A noção das sensações corporais como constitutivas do ego em seu início estava presente desde os primórdios da
psicanálise, segundo Freud:
O ego é primeiro e a cima de tudo, um ego
corporal, ou seja, o ego deriva das sensações
corporais, principalmente, das que se originam da superfície do corpo. Ele pode ser encarado
como uma projeção mental da superfície do
corpo, além de representar as superfícies do
aparelho mental (Freud, 1923, p. 39).
O trabalho de Esther Bick aponta para uma fase ainda mais
primitiva no desenvolvimento que a posição esquizo-paranóide,
desenvolvida por Klein, na qual poderíamos identificar as origens da concepção de espaço interno e externo. A autora propõe
a existência de experiências de não-diferenciação entre o ego
incipiente e o objeto, que antecederiam as experiências de cisão
primária da posição esquizo-paranóide. Afirma que apenas a
partir destas experiências podem-se imaginar as operações de
cisão descritas por Melanie Klein, já que estas pressupõem uma
precária diferenciação entre ego e objeto predominantemente
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riais primitivas desenvolvidos por Esther Bick e Frances Tustin
repercutiram para a concepção de Thomas Ogden de uma “posição autística-contígua”. Ogden afirma que o conceito de “posição
autística-contígua” (1989), consiste em uma organização psicológica
mais primitiva do que a posição esquizo-paranóide e depressiva
elaboradas por Melanie Klein e têm em comum com estas, o fato
de se referirem a “posições” mais do que a etapas no desenvolvimento. Tal como as organizações psicológicas esquizo-paranóide e
depressiva, a posição autística-contígua define-se por determinados
tipos de ansiedade, formas de defesa e tipos específicos de relações
de objeto. Todas possuem uma relação dialética entre si, ou seja,
nenhuma delas ocorre isoladamente, mas, criam-se, preservam-se
e negam-se umas às outras. No entanto, há momentos no desenvolvimento normal em que uma delas torna-se preponderante sobre as
outras. Assim, a posição autistíca-contígua também se faz presente
de forma dialética, como mais uma dimensão da experiência, e assim:
O modo autístico-contíguo é um modo présimbólico de gerar experiência, preponderantemente sensorial, que provê um bom grau de
vinculação da experiência humana e o início
do sentimento de lugar onde se produz essa
experiência (Ogden, 1989, pg. 341).
Segundo Ogden, a palavra “autística” foi escolhida, pois
ele identificou nas formas patológicas de autismo uma “versão
hipertrofiada dos tipos de defesa, formas de atribuir sentido à
experiência e modos de relações objetais característicos da organização autística-contígua normal” (1989, p.343). Afirma que
esta escolha não se refere a um sistema psicológico patológico
fechado, como pode subentender-se do termo autismo. Por este
motivo acrescentou o termo “contíguo”, pois, significa a antítese desta idéia de isolamento e desconexão e, aponta, sim, para
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e de que “a vida seria apenas um sonho” (Tustin, 1990). Ao discutir
sobre os estágios primitivos do desenvolvimento, Tustin afirma que
a primeira “imagem”1 corporal proprioceptiva define-se por ser
de natureza fluida, e que o papel que estas primeiras sensações
desempenham para o estabelecimento de um senso de existência
é fundamental para um senso de “eu”. Sendo assim, a princípio,
antes mesmo da experiência de sentir-se contido pela pele, o “eu
sentido” é experimentado em termos de líquidos e gases. Esta
hipótese foi construída a partir do relato de pacientes adultos que
utilizaram imagens de suas experiências posteriores de fala para
comunicar sensações e estados corporais primordiais não verbais.
Segundo a autora, “não é surpreendente já que os bebês recémnascidos emergem de um meio líquido e sua primeira alimentação
e excreção estão associadas com gases e líquidos” (Tustin, 1990).
Citando Spitz, salienta que é como se o recém-nascido
tivesse que fazer uma adaptação de ser uma criatura da água para
ser um habitante da terra seca. No entanto, em seus estados fluidos, são dominados por terrores fantasísticos e inomináveis que
podem ser equacionados ao temor de explodir ou vazar através
de buracos. Nestes momentos de terror, os “objetos-sensação”
assumem a função defensiva de bloquear os buracos através
dos quais o “eu sentido” pode vazar ou irromper. No entanto,
tal como na experiência de constituição da “função continente
da pele” descrita por Esther Bick, as identificações com situações externas reguladoras (ou seja, os cuidados fisiológicos
e afetivos) permitem a constituição da representação de um
“sistema de canos”. Os cuidados maternos criariam o sentido
de ser capaz de controlar o fluxo de fluidos corporais e, assim,
tornam-se um dos precursores de uma consciência transitória
de “eu” e “não-eu”.
Todos estes desenvolvimentos sobre as experiências senso-
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“elementos beta”, “elementos alfa” e a “função alfa”. Estes correspondem a conceitos chave para uma articulação psicanalítica sobre
a constituição intersubjetiva da capacidade simbólica.
Pode-se inferir, desde a inauguração da psicanálise com
Freud, o quanto as interações precoces são fundamentais para
a constituição do sujeito. Apesar de Freud tratar muitas vezes
de processos que dão à impressão de ocorrerem numa dimensão
intrapsíquica, em outros aspectos percebe-se o quanto para ele,
o outro já ocupava lugar fundamental na constituição subjetiva. No tema das identificações primárias, Freud (1923, p. 42)
admite que na fase oral primitiva, o investimento objetal e a
identificação são indistinguíveis. Afirma que o processo em que
um investimento objetal tem que ser abandonado, e assim se
transforma em investimento narcísico - pois o objeto perdido
aloja-se então dentro do ego - é um processo muito freqüente
nas fases primitivas do desenvolvimento. Ou seja, o caráter do
ego é constituído por este precipitado de investimentos objetais
abandonados.
Bion investigou os processos elementares de formação dos
pensamentos e de um “aparelho para pensá-los”, a partir dos mecanismos de” identificação projetiva” que se dá na relação mãebebê. O conceito de “identificação projetiva” foi desenvolvido
por Melanie Klein e nomeado desta forma pela primeira vez em
“Notas sobre alguns mecanismos esquizóides” (1946):
Consiste na fantasia primitiva de expulsão
de substâncias perigosas do self para dentro
da mãe. Junto com os excrementos nocivos,
expelidos com ódio, partes excindidas do ego
são também projetadas na mãe ou, para dentro
da mãe (M. Klein, 1946, p. 27).
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a idéia de superfícies que se tocam. Desta forma, este conceito
de posição autística-contígua implica a idéia de algum tipo de
relacionalidade desde o início. São estas experiências sensoriais
de contiguidade da superfície da pele, por exemplo, da face do
bebê ao tocar o seio da mãe, que produzem os rudimentos da
experiência do self.
Apesar de o autismo patológico ser considerado um reino assimbólico, o modo autísticocontíguo normal é “pré-simbólico”, já que
as unidades fundamentalmente sensoriais
da experiência que estão sendo organizadas
são preparatórias para a criação de símbolos
mediados pela experiência do fenômeno transicional (Ogden, 1989, p. 348).
A organização e significação destas “unidades fundamentalmente sensoriais da experiência” ocorre através da função
materna composta pelos cuidados fisiológicos e engajamento
afetivo. W. R. Bion conceituou como capacidade de rêverie
esta função que permite a transformação das experiências sensoriais e emocionais, em experiências que possam ser significadas
e, portanto, contidas psiquicamente.
O processo de transformação das experiências sensoriais
em símbolos: a função alfa
Após a discussão sobre a constituição das fronteiras psíquicas no contexto das relações de objeto iniciais, o campo para a
discussão sobre a emergência dos símbolos se faz presente. Dicutiremos, assim, alguns dos conceitos que compõem a “teoria do
pensar” desenvolvida por W. R. Bion: a capacidade de rêverie, os
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isto é, de modo a fazer com que o bebê
sinta estar recebendo de volta a sua própria
personalidade amedrontada, mas de uma
forma tolerável – os temores passam a ser
manejáveis pela personalidade do bebê.
(Bion, 1994, p. 132).
A capacidade de simbolização, de pensamentos oníricos,
de estar consciente ou inconsciente, e de memória são fatores da
função alfa. Assim, o conjunto dos traços mnêmicos é transformado, pelo sistema simbólico da mãe, em linguagem, e a gênese
de toda a abstração consiste, também, em um fator da função alfa.
Bion delineou a idéia de uma “tela alfa” na qual os elementos alfa
podem combinar-se uns com os outros em um composto de elementos alfa interligados. Uma espécie de barreira de contato que
separa o consciente do inconsciente, enquanto, ao mesmo tempo,
permite algum tipo de contato entre os dois. Caper sugere uma
semelhança entre esta barreira de contato e a idéia de Hanna Segal
sobre a capacidade de formar símbolos: “Se a função simbólica
estiver intacta, pode-se fazer um contato simbólico consciente com
o próprio inconsciente, enquanto o inconsciente em si permanece
inconsciente.” (Caper, 2002).
As impressões sensoriais não-transformadas que, comumente são
evacuadas através da identificação projetiva para a mente do analista,
no contexto da clínica, são nomeadas por Bion de elementos beta.
Caracterizam-se por sua condição concreta e, assim, mantém as impressões sensoriais, da relação com as experiências emocionais, análogas
às impressões sensoriais advindas da relação com os objetos concretos.
Caper (2002) sugere duas diferenças principais entre elementos alfa e
elementos beta:
A primeira é que os elementos alfa são capazes de conduzir e de transmitir significado,
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Este mecanismo foi concebido como característico da posição esquizo-paranóide. Refere-se tanto a uma defesa frente à
percepção prematura da diferenciação entre o eu e o outro e frente
à impossibilidade de reconhecer partes do próprio self, quanto a um
processo normal de estabelecer uma comunicação com o objeto,
mesmo que ainda numa dimensão de relação de objeto parcial.
A teoria bioniana sobre as origens do pensar articula o
processo que se dá nas relações precoces entre a mãe e o bebê e
que, através da identificação projetiva, transforma as experiências sensoriais e emocionais gradativamente em elementos alfa,
ou seja, possibilitando assim que estas se tornem mentalizadas.
Bion postulou o conceito de função-alfa como uma função da
personalidade que opera sobre as impressões sensoriais e as experiências emocionais, transformando-as em elementos alfa. No
início da vida, esta função é exercida pela “capacidade da mãe de
estar aberta às projeções-necessidades do bebê” (Grinberg e cols,
1973, p. 78), a capacidade de rêverie. Através desta, ela nomeia e
dá forma as vivências do bebê por meio da sua interpretação dos
estados internos deste.
A consciência depende da função alfa, pois é esta que torna o
self capaz de estar consciente de si a partir da experiência de si. Para
que ocorra o desenvolvimento de uma função alfa, Bion propõe ser
necessário que se estabeleça entre mãe e bebê, um relacionamento
no qual seja possível a identificação projetiva normal:
Isto significa que o bebê possa despertar na
mãe sentimentos dos quais deseja se livrar,
tais como o temor de morte, por exemplo.
Se o bebê sente que está morrendo, ele pode
despertar na mãe o medo de que ele esteja
morrendo. A mãe equilibrada consegue
aceitar esse temor e agir terapeuticamente,
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enquanto os elementos beta, não. A segunda
é que, enquanto os elementos alfa podem ser
coesos ou se ligar uns aos outros, os elementos
beta não podem ligar-se uns aos outros, nem a
qualquer outra coisa” (p. 190)
Em sua clínica, Bion percebe como muitas vezes, alguns pacientes necessitam que o analista suporte determinados estados emocionais,
alocando nestes, partes não reconhecidas de seu próprio self. Neste
momento, a função do analista se assemelha a função materna
que ele nomeou como função de “rêverie”. Ou seja, o analista irá
conter e transformar as partes cindidas e projetadas pelo paciente
para dentro dele (analista), tal como a mãe que pode conter as
crises e excitações de seu bebê, metabolizá-las e transformá-las
em experiências suportáveis. No momento apropriado, o analista
oferecerá estes elementos, transformados em imagens ou palavras
para a compreensão emocional do paciente.
Conclusão
O funcionamento psíquico que emerge das experiências
corporais e de um mundo de sensações foi foco de estudo de alguns autores pós-freudianos. Alguns fatores serão motores para a
constituição deste psiquismo, tal como as frustrações fisiológicas e
a ansiedade, que impulsionam o bebê no sentido de uma busca de
substitutos para o objeto original e de uma exploração do mundo
a sua volta. O simbolismo se constitui a partir das identificações
primárias que a criança faz entre os órgãos de seu corpo e seu
funcionamento com os objetos à sua volta e, assim, com base no
erotismo corporal há um investimento libidinal em direção ao
mundo e seus objetos.
No decorrer deste processo, distinções entre realidade externa e
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realidade interna, e entre self e objeto deve ter ocorrido, permitindo
a estruturação de fronteiras psíquicas. Este é um processo que se
dá no contexto intersubjetivo no qual o afeto possui papel fundamental. Apenas na presença de um interlocutor atento, interessado
e sintonizado emocionalmente, o bebê pode estabelecer um vínculo
baseado no afeto, que servirá como ponte para a emergência de
um senso de eu e de outro e para a construção de um mundo de
significados compartilhados.
Uma relação inicial, de engajamento afetivo, onde o bebê
possa alocar suas angústias no cuidador que seja capaz de tolerálas, metabolizá-las e devolvê-las transformadas e significadas,
consiste no processo que permite a constituição das fundações do
aparelho psíquico. O funcionamento psíquico, neste referencial, é
definido como a capacidade de transformar experiências sensoriais
e emocionais em símbolos. A simbolização torna-se, então, a capacidade fundamental que permite ao sujeito usar a experiência para
aprender sobre si e sobre o mundo, e compartilhá-las com outros.
Tramitação:
Cristiana Regina Ferreira de Aguiar Ponde
Av. Rodrigo Otávio, 165/203
Gávea – Rio de Janeiro – RJ
22450-060
fone: (21) 2294-7960
e-mail: [email protected]
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Recebido em: 30.06.2007
Aprovado em: 15.08.2007
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das dificuldades de separação do objeto primário e da conseqüente incapacidade para estar só. A segunda ressalta a
esperança que resulta da experiência paradoxal de estar só
na presença do objeto. Green e Winnicott são os autores que
balizam esta discussão.
Palavras-chave: capacidade para estar só; relações precoces;
depressão; casos-limite.
Abstract
Pain and hope are presented in this paper as two possible
outcomes of loneliness, according to the early experiences
with the primary object. The analysis of pain begins from
164
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artigo
Dor e esperança: duas faces da solidão a partir da
experiência precoce com o objeto primário
Pain and hope: two sides of loneliness as a result of
the early experiences with the primary object
Issa Damous*
Resumo
Este artigo propõe a dor e a esperança como duas possibilidades para a solidão, conforme as experiências precoces com
o objeto primário. A primeira ressalta um aspecto patológico
a partir de uma certa tendência atual a psicopatologizar a
solidão, sobretudo como depressão. Discute-se esse aspecto
principalmente na problemática dos casos-limite em função
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Issa Damous
nos casos-limite com referência, sobretudo, às conseqüências
dolorosas que decorrem das dificuldades de separação do objeto
primário, do objeto que não é esquecido como absolutamente necessário (Green, 1975, 1977, 1986,1988). O segundo caminho de
discussão diz respeito à esperança e assume um aspecto positivo
à medida que faz referência à experiência paradoxal de estar só na
presença do objeto, possibilitando naturalmente uma vida genuína
e espontânea (Winnicott, 1958).
Introdução
Verifica-se atualmente uma grande facilidade com que a
solidão é nomeada como depressão pelas pessoas que buscam tratamento na área psi. Normalmente psiquiatrizando as suas queixas e
atestando uma expectativa por uma conduta medicalizante para as
suas dores psíquicas, e até para as suas dores físicas, como nos casos
de fibromialgia, os deprimidos vêm sendo a tônica do momento.
A escuta clínica dos pacientes no cenário contemporâneo vem
testemunhando queixas bastante sofridas a respeito de si mesmos ou
das crianças e adolescentes pelos quais são responsáveis. Em geral,
eles pedem ajuda para um “nervoso” e “agitação”, referindo-se ao que
se passa com eles fazendo menção a uma série de sintomatologias.
Entre os exemplos mais comuns dos sintomas enunciados está a insônia, o choro freqüente e aparentemente sem motivo, a impaciência
e irritabilidade, o medo de estar com um número maior de pessoas,
o desânimo, “cismas” com perseguição, e alguns outros. Além disso, é comum verificar que os pacientes chegam com uma queixa já
psiquiatrizada, ou seja, uma queixa que já vêm circunscrita por um
diagnóstico: hiperatividade, síndrome do pânico, fobia, depressão,
esquizofrenia, etc.
Não obstante as diferentes categorizações nosográficas, a
depressão é o diagnóstico mais utilizado pelos pacientes para fa166
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artigo
the nowadays tendency to a pathological behavior towards
loneliness, especially as depression. This discussion outlines
pr particularly borderline patients because of their difficulty
in separating from the primary object and their consequent
incapacity to be alone. Hope, the other possible outcome
studied, is linked to the paradoxical experience of being alone
in the presence of the primary object. Green and Winnicott
are the main authors referred to in this paper.
Keywords: capacity to be alone; early experiences; depression; borderline patients.
artigo
Dor e esperança: duas faces da solidão a partir da
experiência precoce com o objeto primário
Pain and hope: two sides of loneliness as a result of the
early experiences with the primary object
Issa Damous
Tomemos inicialmente a palavra ‘solidão’ no dicionário Aurélio (1993). Lá encontramos o seguinte significado: “Estado de quem
se acha ou vive só” (Ibid, p. 511). Daí percebermos uma série de
derivações que podem ser desdobradas no campo da psicanálise.
Por hora, no entanto, nossa proposta será formular dois caminhos
de discussão. A partir de uma inquietação com certa psicopatologização da solidão na contemporaneidade, principalmente como
depressão, o primeiro caminho proposto diz respeito à uma face
patológica da solidão. A depressão, nesse viés, é problematizada
Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 163-180, 2007
167
Issa Damous
que consagra o prazer e que, da maneira mais imperiosa, busca
suprimir a dor, sem deixar tempo nem espaço para interrogar-se
acerca dos meios e dos custos das ações que se realizam na busca
dessas metas” (Ibid, p.96).
Garcia e Coutinho (2004), ocupando-se dos rumos do individualismo e do desamparo do sujeito contemporâneo, sinalizam
como a sociedade de consumo cultua a liberdade individual, e
estimula o prazer constante e irrestrito, o que, é claro, não se
dá sem conseqüências para o psiquismo. Ehrenberg (1998) vai
justamente sinalizar que, paradoxalmente, a experiência psíquica
frente a isso será de insuficiência e fracasso. O que acontece hoje,
tanto na clínica quanto na cultura de modo mais amplo, parece ser
exatamente uma exigência para tão logo diagnosticar a dor e, de
preferência, medicalizá-la, aplacando rapidamente o que faz sofrer,
e proporcionando felicidade e bem-estar, como se algo diferente
disso fosse estar fadado ao fracasso e, portanto, fora da ordem
social contemporânea.
Nesse contexto, estar só ou viver só na atualidade, ou seja,
estar atravessado pela experiência subjetiva de solidão, é estar
deprimido. Longe de qualquer possibilidade de uma conotação
positiva, a solidão assume a face de um mal dolorido que beira o
desespero.
Depressão na discussão dos casos-limite: uma face da
solidão na contemporaneidade
Como o diagnóstico da moda, a depressão vem sendo referida com expressiva facilidade. É de modo muito natural que
as pessoas se dizem deprimidas, e que também os profissionais
de saúde diagnosticam seus pacientes como deprimidos, além
de, na maioria das vezes, lhes recomendarem medicamentos
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artigo
zer referência aos seus problemas. Chegando para uma primeira
consulta com uma subjetivação nula ou praticamente inexistente
acerca do que os faz sofrer, eles anunciam que “sentem” depressão,
que “estão” deprimidos, ou que “são” deprimidos, e que precisam
de um remédio para “conseguir continuar a vida”, na maioria das
vezes não se dando o trabalho de questionar, minimamente, o que
os deixa assim. Desse modo, além da sintomatologia, seja ela qual
for, e do respectivo diagnóstico, freqüentemente a depressão, os
pacientes anunciam também uma terapêutica: a medicalização.
A solicitação dos pacientes por uma medicalização, em
muitos casos, já vem sendo mantida há alguns anos, sem que
ocorra da parte deles uma problematização da necessidade de
sua continuação, ou de que uma determinada prescrição medicamentosa possa ser reavaliada, reduzida, alterada e quiçá retirada.
É claro que há diferenças a serem consideradas segundo o adoecimento psíquico em questão, mas de modo geral, prevalece a
expectativa dos pacientes por uma conduta medicalizante para
as suas queixas proferidas, isto é, uma resposta rápida ao sofrimento, o que muito parece preso a um binômio queixa-conduta.
Ampliando-se o campo dessa discussão para a cultura contemporânea, verifica-se que a lógica do binômio queixa-conduta
também parece desenhar a forma básica de comportamento das
pessoas, o que não se refere necessariamente a uma expectativa
por prescrições de psicofármacos, mas a uma necessidade de respostas rápidas para o que os incomoda. É nessa perspectiva que
Mayer (2001), psicanalista entre muitos outros, que se ocupa do
que é próprio ao contemporâneo, circunscreve a sociedade atual
como uma sociedade de consumo, sinalizando como as significações e os valores predominantes da cultura privilegiam os objetos
às palavras, as ações aos pensamentos, e a satisfação imediata à
espera. O autor indica a cultura contemporânea como “uma cultura
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Issa Damous
adiante, a expectativa é por uma conduta medicalizante.
Trazendo para o campo da psicanálise a intolerância da cultura atual a uma dor de cabeça ou à perda de alguém, e até mesmo
à paralisia por não saber que caminho seguir, em que se verifica
tão logo um diagnóstico, a medicalização do sofrimento - e assim
uma desimplicação de qualquer possibilidade de subjetivação -,
encontra-se um indivíduo bastante “preocupado em retirar de si a
essência de todo conflito” (Roudinesco, 2000: 19). Em vez de um
sujeito do inconsciente, atormentado pelo desejo e pela proibição,
o indivíduo contemporâneo deprimido parece buscar na droga, na
religião, no culto ao corpo perfeito, na medicalização de sua dor,
não tanto uma formação de compromisso e mais uma felicidade
da qual está, na verdade, sempre aquém. O que é ainda pior, é que
ele dificilmente associa essa busca a uma causalidade psíquica
oriunda do inconsciente, dificultando sobremaneira um tratamento
psicanalítico. De fato, muitos desses pacientes parecem até mesmo
arredios à relação analítica, à interpretação e ao próprio método da
associação livre, tornando inclusive questionável se a concepção
freudiana de um conflito como núcleo normativo da formação
subjetiva seria uma perspectiva adequada para a compreensão de
todos os casos de depressão.
De modo geral, a problemática neurótica freudiana privilegia
a concepção de conflitos intrapsíquicos atrelados à angústia de
castração, tendo o processo de recalcamento como o mecanismo
psíquico defensivo. Todavia, segundo Pinheiro (2001), há casos de
depressão que parecem sinalizar certa distância desta problemática
e uma propensão muito maior às subjetividades melancólicas. Para
a autora, a construção fantasmática melancólica não tem movimento, “é uma imagem parada e os personagens são anônimos” (Ibid,
77), pois na melancolia, a sombra do objeto recai sobre o ego e ele
deixa de ser um precipitado de identificações para se tornar uma
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artigo
antidepressivos (Rêgo Barros, in Coser, 2003). Trata-se de algo
que se estende tanto para uma população sócio-economica menos
favorecida, quanto para uma população mais bem favorecida,
e que atravessa tanto os consultórios da rede pública de saúde
quanto os consultórios privados. Em ambas as esferas, é possível
encontrar pessoas envolvidas com algum tipo de tratamento psíquico por depressão. Isso leva Roudinesco (2000) a situá-la como
“a epidemia psíquica das sociedades democráticas” (Ibid, p. 17).
É verdade que atualmente muitas informações sobre a depressão circulam na mídia, certamente aumentando o campo de
conhecimento das pessoas quanto aos sinais de riscos desse tipo
de adoecimento psíquico, e facilitando para elas a realização de
um autodiagnóstico. No entanto, à medida que isso produz uma
popularização do saber, produz também uma necessidade de nomear, a partir desse saber, o que poderiam ser sofrimentos da vida
cotidiana. Desse modo, as pessoas não ficam mais tristes porque
se sentem sozinhas e abandonadas, porque perderam um emprego,
ou porque um ente querido faleceu, ou porque se separaram de
seus companheiros, ou porque estão envelhecendo. Ou até ficam,
mas nomeiam esse sentimento como depressão, e fazem questão
de que seja assim. E a depressão desse modo diagnosticada, seja
pelas próprias pessoas ou pelos profissionais de saúde de diferentes
especialidades que as acompanham, é o passaporte para o ingresso
na saúde mental, e, muito provavelmente, para a medicalização do
sofrimento psíquico.
A questão se agrava ainda mais quando o que se apresenta
é o quadro de pane psíquica que se descreveria pela paralisação
de qualquer componente afetivo, dor ou sofrimento, mecanismo
de descatexia radical, melhor identificado, segundo Green (1975,
1977), como depressão primária, na verdade, bastante peculiar
aos casos-limite. Também nesse caso, que será destrinchado mais
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Issa Damous
sérios problemas de vinculação e desvinculação, forte sensação
de irrealidade e repetidas atuações autodestrutivas, aliadas a uma
sensação de tédio, vazio e solidão, o que naturalmente é passível
de ser nomeado como depressão.
Sobre as dificuldades de separação nos casos-limite: a
impossibilidade de estar só
Green, autor bastante dedicado ao estudo dos casos-limite,
aborda, entre outros recortes, as dificuldades ocasionadas pela difícil
experiência de separação do objeto primário que esses pacientes
enfrentaram em períodos muito precoces de sua existência. Para o
autor, esta questão gira em torno do tempo e de uma distância insuficiente eu-objeto no contexto mais precoce da experiência psíquica.
Retomando Winnicott, Green (1986) indica a necessidade de
um tempo exato para que seja atendida pelo ambiente a demanda
de satisfação do bebê: “Quando esse tempo é reduzido a nada pela
mãe que atende imediatamente às necessidades do bebê (ou as antecipa), ela o priva da habilidade de elaborar. Se, ao contrário, sua
resposta ultrapassa certo limite, isso engendra reações catastróficas
no bebê” (Ibid, p. 21), e insere o seu psiquismo ainda primitivo
no campo das experiências de desintegração. Assim, o tempo de
responder ao bebê deve ser cuidadosa e suficientemente manejado
para que se configure no psiquismo, quer a possibilidade de condescender à ação do processo psíquico secundário em oposição à
tendência à descarga do processo psíquico primário (Freud), quer
a possibilidade de tolerar a ausência da mãe (Winnicott), isto é,
atividades psíquicas muito mais complexas.
As falhas ou inadequações nesse tempo de resposta são
experimentadas pelo bebê como intrusão e/ou abandono, perturbações a que ele terá que reagir, interrompendo a sua experiência
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artigo
cópia do objeto (Freud, 1917[1915]). O que se verifica na sociedade
de consumo de hoje, segundo ela, é que em vez de ser como um
modelo objetal, e assim estar mais propenso ao modelo neurótico
de funcionamento psíquico, a necessidade maior é de ter objetos
para ser uma imagem, o que acaba produzindo uma propensão
maior ao modelo melancólico. Pinheiro acredita que isso ocorre
em função, principalmente, o fato de a sociedade de consumo
proporcionar poucas alternativas para ancoragem das fantasias e
para construção de ideais menos opressores do que aqueles que
são ditados pelo consumo de objetos.
Logo, se ter o objeto é ser, tal como sugere Pinheiro, então
a lógica que passa a orientar as pessoas na cultura contemporânea
é o aprisionamento ao objeto, sem que possa haver uma separação
dele. Isto implica, é claro, na impossibilidade de elaborar um luto
por um objeto que, na verdade, não é perdido. Trata-se por isso
de um modelo melancólico colocado na base das organizações
psíquicas depressivas. Ora, não seria possível também dizer que
seria essa justamente a problemática no cerne dos casos-limite?
Nela, o objeto primário está presente o tempo todo, seja por sua
intrusão, ou sua inacessibilidade e indiferença, ou mesmo por uma
alternância entre estes extremos, o que sinaliza uma experiência
ruim de separação desse objeto além de uma série de prejuízos
subseqüentes na constituição subjetiva (Damous, 2006).
A experiência limítrofe é atravessada pelo que se poderia
chamar de um luto primário nunca elaborado, estando por isso
atrelada, sobretudo, às angústias de intrusão e/ou abandono. Não
obstante, essa experiência ocasiona ainda prejuízos na constituição
do vazio psíquico necessário para o favorecimento dos processos
de simbolização, e estruturação adequada das fronteiras psíquicas e das fronteiras entre si mesmo e os objetos (Green, 1977).
Conseqüentemente, a problemática dos casos-limite, leva os pacientes aí submersos a vivenciarem intensa instabilidade mental,
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A inexistência de um espaço de ausência na psique, em função
de um objeto intrusivo ou inacessível, produz então conseqüências
desastrosas para o desenvolvimento psíquico como um todo. Green
verifica prejuízos até mesmo na atividade do pensar, pois sobrevém
o sentimento de um buraco na atividade mental, uma espécie de oco
psíquico, caracterizado por uma incapacidade de se concentrar e de
recordar, induzindo a uma espécie de pensamento compulsivo ou
ruminação de pensamentos.
Em geral, dois extremos marcam os mecanismos de defesa
adotados pelos casos-limite (Green, 1975). Um deles é a normalidade
social e o outro é a regressão fusional (ou dependência objetal).
Para situar o primeiro extremo, Green inspira-se na descrição de
Joyce McDougall (1978) sobre o antianalisando na qual o início
do processo analítico fracassa mesmo numa situação analítica
assumida. Os objetos deste tipo de paciente estão mumificados,
paralisados em sua atividade e sem conseguir sequer atrair a sua
curiosidade, ou seja, o investimento objetal não encontra uma reciprocidade do sujeito. No segundo pólo, o da regressão fusional,
verifica-se a exigência da capacidade afetiva e empática do objeto,
assim como a dependência das próprias funções mentais do objeto.
Dentro destes dois extremos transitam pelo menos quatro
categorias fundamentais de defesa. Especialmente duas delas são
“mecanismos de curto-circuito psíquico” (Green, 1975, p.45). Trata-se da exclusão somática, em que o conflito sai da esfera psíquica
e é atuado dentro ou no próprio corpo através de somatizações,
e da expulsão pela via da ação, em que o conflito também sai da
esfera psíquica para ser atuado fora (em contrapartida à atuação
dentro que ocorre nas somatizações). O efeito destes mecanismos
é de uma “cegueira psíquica”, em que, tal como afirma Green
(Ibid): “O paciente se eclipsa diante de sua realidade psíquica,
quer das fontes somáticas de seu impulso, quer de seu ponto de
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artigo
de continuidade do ser. No entanto, a pior dificuldade para a
psique é que os excessos do objeto comprometem enormemente
a constituição de uma ausência na psique, ou do que se poderia
chamar de espaço psíquico pessoal, e principalmente os processos
de simbolização que daí derivam.
Vejamos melhor do que se trata.
De acordo com Green (1988), ao longo do processo de
constituição psíquica, o objeto primário deve paradoxalmente
estimular o movimento pulsional do bebê e dar contorno às pulsões, contendo-as. Nesse percurso, é extremamente importante
que o objeto possa deixar-se esquecer como objeto constituinte da
estrutura psíquica, isto é, que seja uma presença ausente. Trata-se
na verdade do que o autor considera um dos aspectos estruturantes do trabalho do negativo que se opera na psique. Quando essa
experiência não ocorre, o objeto perverte a sua função paradoxal
provocando o que se chama de angústia de separação, pois ele fica
presente o tempo todo, por excesso de presença ou de ausência, o
que no fundo é a mesma coisa.
À medida então que o objeto não é esquecido, o que é experimentado é ausência de ausência, ou excesso de presença, e o
que se sucede é “uma espécie de coalescência entre o objeto e a
pulsão; e o objeto, em vez de tornar a pulsão mais tolerável, é o que
a torna mais intolerável - sem solução, sem compromisso” (Ibid,
p. 387). Desse modo, o objeto inadequado não gera representação,
prejudica os processos simbólicos de forma geral e favorece todas
as formas de desenlace extra-representativos: actings out, condutas
perversas, toxicomanias, depressões, psicossomatoses. Adentramos
consequentemente no âmbito da dialética expulsiva, no contexto
da analidade primária, em que o objeto não pode ser engolido
ou cuspido, ficando, portanto entalado, obstipado (Figueiredo e
Cintra, 2004), sem possibilidade de separação.
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pela pulsão de morte.
Daí podemos depreender como os casos-limite estão amalgamados na sua possibilidade de estar no mundo às inadequações
das experiências psíquicas mais precoces com o objeto primário
insuficientemente bom – aquele que, por sua presença intrusiva ou
inacessível, não permitiu-se apagar pelo trabalho do negativo. As
dificuldades de separação do objeto primário não permitem, portanto, colorir positivamente a experiência de solidão. Esta se traduz
para os casos-limite como uma dor silenciosa, aproximando-os de
uma normalidade social, ou como uma dor turbulenta, aproximando-os da regressão fusional. De todo modo, o que vigora nesses
casos é a dor da impossibilidade de constituir-se como um eu mais
ou menos delimitado e diferenciado no mundo, de ser si-mesmo,
e, em última instância, na dor da impossibilidade de estar só.
Em contrapartida, como poderíamos pensar numa experiência de solidão efetivamente positiva?
Esperança: uma outra face para a solidão
Winnicott nos afirma que é preciso ter capacidade para ficar só
e que esse “é um dos sinais mais importantes do amadurecimento
do desenvolvimento emocional” (Winnicott, 1958, p. 31). Ficar
só, segundo ele, é uma habilidade que precisa ser desenvolvida
e que se refere fundamentalmente a uma sofisticação cuja base é
a experiência precoce de estar só na presença de alguém. Estar,
portanto, confinado solitariamente não implica necessariamente,
em ser capaz de estar só.
Pode-se ler em Winnicott pelo menos dois momentos da
solidão em seu aspecto positivo: aquela mais sofisticada que
acontece num nível maturacional já desenvolvido, cujas relações
se estabelecem já numa triangulação, e aquela menos sofisticada,
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artigo
entrada na realidade externa, evitando os processos intermediários
de elaboração”.
A cegueira psíquica diz respeito à localização das causas de
um sofrimento psíquico fora da vida anímica, seja no corpo ou no
mundo externo, sem que exista um sujeito capaz de se responsabilizar por estas causas ou se engajar em suas conseqüências. Por
isso mesmo alguns autores chegam a denominar estes casos sob o
termo patologia do ato, sendo as compulsões a forma mais nítida
como aparecem na atualidade (Gondar, 2001). Sendo assim, não
é possível um contato autêntico com a realidade psíquica desse
sujeito eclipsado, pois tanto as suas somatizações quanto as necessidades de atuações ficam supercatexizadas. Green (1977) esclarece que mesmo as fantasias, sonhos e palavras podem assumir
a função da ação, pois o que não é tolerado em última instância
é a suspensão da experiência. Esta não pode ser interrompida em
razão destes pacientes acreditarem que “nenhuma criação, nenhum
conhecimento pode emergir sem a experiência. A suspensão é
equiparada à inércia” (Ibid,p. 82), o que terminantemente não é
tolerado por eles.
Os outros dois mecanismos de defesa apontados por Green
“são mecanismos psíquicos básicos” (Green, 1975, p. 45) que
incluem a clivagem, responsável pela divisão psíquica que torna
inacessível uma parte da realidade psíquica (uma condição para
a formação de um duplo na psique), e a descatexia radical ou
depressão primária, uma tendência de fato radical para o estado
zero, à indiferença, isto é, uma tendência que não está nem mesmo
à serviço de um egoísmo, mas de uma falta de empatia pelo objeto e
de um interesse do próprio ego nele mesmo, podendo restar apenas
“um anseio por desaparecer: ser atraído para a morte e para o Nada”
(Green, 1986, p.13). O resultado é um espaço pessoal encapsulado,
um self silencioso, aspirando a não-ser, atrelado ao domínio de um
narcisismo negativo, ferido, doído, catexizado fundamentalmente
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que a compreensão de si mesmo como eu estou só decorre já de um
sentimento estabelecido de eu, ou seja, um eu sou. O sentimento
de ser é um nível de crescimento emocional em que a integração
do indivíduo como uma unidade que contém um mundo interno
diferenciado do mundo externo já é um fato. Nos primórdios do
eu sou, diz Winnicott, “o indivíduo é, por assim dizer, cru, não
defendido, vulnerável, potencialmente paranóide” (Ibid, p.35) e por
isso precisa do ambiente protetor, disponível e consistente, em toda
sua suficiência, adaptado às suas necessidades, o que naturalmente
também implica em falhas. Onde podemos dizer que, além do ponto
de vista do bebê em que estar só na presença da mãe implica em
não perceber a mãe que está presente, do ponto de vista da mãe,
é necessário que ela permita ao bebê não ser percebida, ou seja,
que ela suporte não ser percebida. É essa perspectiva da experiência, no decorrer do processo maturacional, que proporciona o
estabelecimento de um meio interno, de um sentimento de eu, no
qual a presença real do objeto pode ser então dispensada. O objeto
primário absolutamente necessário num primeiro momento pode
ser finalmente esquecido.
Para Winnicott, o fato de que um bebê conseguiu estar só na
presença do objeto nos momentos mais arcaicos da sua existência,
e por um grande número de vezes, significa que está dada “a base
para uma vida que tem realidade em vez de futulidade” (Ibid, p.
36), pois, ademais, o indivíduo estará constantemente capacitado
para redescobrir o que ele chama de impulso pessoal. Estar só na
presença de alguém, portanto, como uma primeira experiência
paradoxal é absolutamente benéfico para a constituição subjetiva
saudável. Marca especificamente a esperança de uma vida genuína
em toda a sua potencialidade.
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mais primitiva, mas nem por isso menos importante, e, muito pelo
contrário, é essencial para o que virá depois. Estar só nesse nível
mais primitivo do desenvolvimento emocional implica em estar
só, como lactente, na presença de alguém. Trata-se de uma experiência de ausência em presença que evoca a experiência paradoxal
fundante da constituição subjetiva.
A discussão de Winnicott sobre esta questão gira no âmbito
das relações de objeto anaclíticas, em termos do ele chama de ego
relatedness, ou seja, no âmbito da pulsão de auto-conservação,
cuja relação se dá com base no cuidado parental, no apoio que
esse cuidado oferece. Esse é um tipo muito especial de relação e
bastante valorizado dentro do escopo teórico-clínico winnicottiano.
Implica numa provisão ambiental que oferece um holding confiante
e consistente, suficientemente bom e capaz, por isso mesmo, de
operar como facilitador do longo percurso do desenvolvimento e
amadurecimento emocional do bebê.
No contexto ego relatedness de relação, a presença do objeto
é importante para o bebê pois supõe-se que esteja suficientemente
adaptado às suas necessidades, disponível consistentemente inclusive para os impulsos do id e proporcionando assim a experiência
de continuidade do ser. O oposto disto seria o bebê precisar reagir
às contingências externas e tensionar, desfavorecendo, portanto, a
expressão do gesto espontâneo, isto é, prejudicando uma verdadeira
experiência pessoal. Para Winnicott, a descoberta de uma vida pessoal própria ocorre justamente na presença do objeto. É desse modo
que a criança poderá relaxar, estar não integrada e até devanear.
Há que se ressaltar ainda o aspecto precioso para Winnicott de
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Tramitação:
Recebido em: 30.06.2007
Aprovado em: 15. 08.2007
R. Visconde de Pirajá, 04/ sl. 507.
Ipanema – Rio de Janeiro – RJ
22410-001
fone (1) 2267-3058
e-mail: [email protected]
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Em nome da solidão: a capacidade de estar só como
expressão do amadurecimento de si
In the name of solitude: the capacity of being alone as
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artigo
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Karla Patricia Holanda Martins e Maria Regina Maciel
Em nome da solidão: a capacidade de estar só como
expressão do amadurecimento de si
In the name of solitude: the capacity of being alone as
a way of growing-up
Karla Patricia Holanda Martins
Maria Regina Maciel
Discutiremos o tema da solidão associando-a ao amadurecimento de si que resguarda um espaço privado na presença do
outro. Esta vertente pode ser sustentada a partir do conceito de
Winnicott – “capacidade de estar só” – em que o self, elemento
dinâmico da cultura, pode estar com o outro sem ser invadido,
numa comunicação sensível.
O autor pressupõe condições fundamentais para o amadurecimento, entre as quais a experiência de continuidade vivida pelo
bebê no momento de dependência absoluta, momento em que as
fronteiras entre o eu e o não-eu estão diluídas. Ou seja, inicialmente o bebê é com o outro e processualmente ele vai conquistando a
capacidade de estar só.
Winnicott enfatiza uma onipotência narcísica que é fundamental
para a experiência de ilusão presente, por exemplo, na brincadeira. O
brincar está ligado a uma experiência ilusória que vai da onipotência
ao jogo compartilhado. Vale lembrar que sua teoria prioriza tanto
uma concepção de desenvolvimento ou integração do self quanto
uma concepção de fusão originária, na qual não existe ainda um
eu e um não-eu.
Não estamos, portanto, aqui nos referindo a uma concepção
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artigo
a way of growing-up
Karla Patrícia Holanda Martins*
Maria Regina Maciel**
Resumo
O presente artigo se fundamenta na concepção da capacidade de estar só winnicotiana. Propõe discutir a solidão, fruto
do que poderíamos denominar, ainda nesta perspectiva, de
“amadurecimento de si”. Pensar a presença da solidão no
setting analítico e alguns dos possíveis manejos transferenciais, assim como discutir a solidão no contexto da cultura,
são pontos centrais deste artigo.
Palavras-chaves: solidão, “amadurecimento de si”, transferência, brincar, cultura
Abstract
The present work is based on the idea of solitude developed
by Winnicott. Its aim is to discuss the idea of solitude as a
result of what could be called “growing up”. To think the
presence of solitude in the analytic setting and some possible
ways of dealing with transference, as well as to discuss the
solitude in context of culture, are the main aspects of the
current article.
Key-words: solitude, growing up, transference, playing,
culture
artigo
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Karla Patricia Holanda Martins e Maria Regina Maciel
psicanalítica, tentar resgatar uma comunicação sensível que remete à não-integração inicial relativa a este primeiro momento em
que a relação eu/não-eu confunde limites e linhas de demarcação.
Isto traz repercussões clínicas que, de certa forma já estavam
indicadas nos textos de Freud.
Referências à clínica: solidão e medo do colapso
Freud, nos seus artigos sobre a técnica, propõe uma virada no
trabalho com a resistência do paciente. A transferência é colocada
no centro do trabalho de manejo do analista e da produção de novos
sentidos do analisante. Recomendações explícitas: as regras não
antecedem ao jogo, cada um decidirá, a cada jogada, o próximo
lance. Assim, a transferência pode ser pensada como um espaço
intermediário de circulação dos objetos criados pelo paciente na
relação com o analista, espaço da brincadeira, o playgroud (Freud,
1914, p.201).
Aqui aprendemos que o brincar está na raiz da temporalidade
em jogo no processo de subjetivação: a transferência poderia se
apresentar numa aliança com as experiências do sentir e da criação, mas poderia também resvalar para os domínios da morte e
do vazio. O manejo do analista seria fundamental na escolha do
destino do “circuito pulsional”. Em “Recordar, repetir e elaborar”
(1914), um texto sobre a compreensão do tempo para comunicar
algo ao analisante, Freud nos alerta que a condição número um para
uma experiência não-intrusiva na análise é o respeito ao tempo de
elaboração (ducharbeiten) do paciente.
Com Winnicott aprendemos a radicalidade do respeito à
não-comunicação, sob pena de violar o ser com seus segredos e
silêncios. Freud (1912b) recomenda que o analista seja “opaco
aos pacientes e, como um espelho, não mostre nada além do que
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artigo
tradicional de jogo que supõe regras e convenções; regras que
apontam para um terceiro ou uma ordem simbólica pré-existente
intermediando a relação entre os sujeitos. Na perspectiva winnicotiana, o self pode brincar sem ser invadido por regras. Pode haver
aí uma comunicação anterior à comunicação por símbolos. Sua
concepção de brincadeira supõe uma comunicação que remete à
natureza do corpo, da sensibilidade e da poesia. Entendemos que o
self na teoria de Winnicott (1958) nos leva a pensar que o indivíduo
pode ser com o outro, e, neste aspecto, podemos pensar a solidão
com um olhar mais “positivo” do que quando associada a um
isolamento - fruto do medo de uma possível desintegração de ego.
O essencial da teoria winnicotiana é apontar para o fato de
que, se o bebê tiver a experiência de continuidade do sentimento
de ser, pode experimentar a não-integração inicial – no qual não
se tem fronteiras delimitadas entre eu e não-eu – num movimento
criativo. Por outro lado, se não tiver essa experiência, devido à
ameaça de invasão ou ao abandono, poderá ocorrer, por defesa,
uma experiência de fechamento sobre si mesmo. No caso da primeira possibilidade, podemos estar frente ao outro em silêncio,
sem negá-lo. O self pode reconhecer a dependência sem negar sua
autonomia, “já que a dependência é um fato da vida” (Winnicott,
1994, p.71). O self é incomunicável e, como já afirmado, elemento
dinâmico da cultura.
Referimo-nos a uma possibilidade de brincadeira que antecede a instauração do espaço interno-espaço externo, brincadeira na
qual as fronteiras são tênues. Isto porque o que há neste momento
é um vislumbre de alteridade. Esta brincadeira pode enriquecer o
self que, por seu turno, pode vivenciar experiências criativas. Nesta
concepção, a alteridade pode ir se instalando processualmente, sem
uma demarcação rígida.
Acreditamos, desta forma, que cabe, por exemplo, à clínica
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Karla Patricia Holanda Martins e Maria Regina Maciel
morte, no medo da loucura e do vazio. Ao longo do trabalho com esses pacientes, caberia ao analista permitir, por exemplo, que o vazio
– neste texto considerado por Winnicott como sinônimo de “nada
acontecendo quando algo poderia proveitosamente ter acontecido”
(1994[1963b], p.75) – seja vivenciado como possibilidade de se
transformar em algo positivo, criativo. Afinal, o vazio, segundo o
autor, pode ser tomado também enquanto “um pré-requisito para
o desejo de receber algo dentro de si” (idem, ibidem).
De forma a ilustrar que a experiência da não-integração nem
sempre é utilizada adequadamente no setting analítico, Winnicott
descreve o caso de uma jovem paciente que “deitava-se inutilmente
no divã e tudo que podia fazer era dizer: ‘Nada está acontecendo
nesta análise’” (p.75). Em alguns momentos da clínica nos deparamos com a recusa de determinados pacientes de utilizarem o divã,
sob a alegação do medo da solidão ali experimentado. Como dito
anteriormente, é necessário que o analista compreenda o tempo de
cada paciente. Levando-se em consideração esta variável, pode-se
indagar sobre o papel do rosto do analista na elaboração criativa
deste momento de encontro com o temor do colapso.
Winnicott nos diz que quando a criança olha o rosto da mãe,
o que normalmente o bebê vê é ele mesmo. É estabelecida assim
uma continuidade entre a apercepção criativa – registro de uma
troca sensível com a mãe – e a percepção, como se o bebê assim
dissesse: “Quando olho, sou visto; logo, existo. Posso agora me
permitir olhar e ver. Olho agora criativamente e sofro a minha
apercepção e também percebo. Na verdade, protejo-me de não
ver o que ali não está para ser visto (a menos que esteja cansado)”
(1975[1967a], p.157). Mas pode também acontecer que a mãe
reflita apenas seu próprio humor ou, pior ainda, a rigidez de suas
próprias defesas. Assim muitos bebês têm uma longa experiência
de não receber de volta o que estão dando; experiência que se
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artigo
lhe é mostrado” (p.157). No texto “O papel de espelho da mãe e
da família no desenvolvimento infantil”, Winnicott nos propõe o
rosto como metáfora da presença de uma alteridade criativa. Neste
ponto podemos indicar que com sua obra fica definitivamente claro
que o analista terá um papel ativo na criação dos novos sentidos.
Guardadas as diferenças de ambas as proposições, insistiremos
nestas duas metáforas para pensar no papel de rosto do analista no
percurso de uma análise, sem nos esquecermos que “a significação
do espelho real está principalmente em seu sentido figurativo”
(Winnicott, 1975 [1967a], p.162).
No texto “O medo do colapso” (Breakdown) (1963b), Winnicott apresenta algumas variantes na clínica das agonias primitivas
de determinados pacientes, entre elas: a perda da capacidade de
relacionar-se com os objetos, do senso do real, do conluio psicossomático, do retorno a um estado não-integrado e da queda. Neste
texto nos adverte que não são todos os pacientes que sentem o
medo do colapso. O colapso se acha relacionado às experiências
passadas do indivíduo e aos caprichos do ambiente. Os pacientes
não se queixam deste medo desde o início do tratamento até que se
estabeleça a dependência. É nesta área que os fracassos do analista
desencadeiam o medo, posto que o ego pode se organizar contra
a sua própria precariedade, mas não consegue se organizar contra
o fracasso ambiental.
Deste modo o medo clínico do colapso é um medo que já
foi experienciado. Mesmo considerando que em alguns momentos
precisa se dizer isto ao paciente, a experiência original da agonia
primitiva só pode cair no passado (ser integrada) com a condição de
que o ego possa reuni-la dentro de sua própria e atual experiência
temporal, fato que dependerá do bom desempenho do analista. Em
outras palavras, o analista pode levar o paciente a experimentar a
não-integração sem que isto desencadeie o medo da desintegração.
O medo do colapso encontra correspondentes no medo da
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contexto da regressão em que o divã é o analista (grifos do autor,
2000 [1954], p.385). O trânsito criativo entre a representação e o
ser, implicados também no uso deste, depende das possibilidades
do paciente de estar só; do contrário, a solidão ali experimentada
remeterá o sujeito ao medo do colapso, ao isolamento, ao medo
de se perder. Em outras palavras, quando a capacidade de estar só
ainda não foi construída, a insistência do analista em ‘ausentarse’ pode violar a necessidade do paciente de reservar uma área de
segredo e, deste modo, “subitamente nos tornamos não-eu para o
paciente, e então sabemos demasiado, e ficamos perigosos porque
estamos demasiado próximos na comunicação com o núcleo central
quieto e silencioso” (1983 [1963a], p.172).
Também em 1963, Winnicott faz uma descrição clínica da
experiência de uma paciente sua que, na infância, teria tido o seu
caderno secreto violado por sua mãe. Toma este exemplo como
ilustração de um tempo de amadurecimento desta paciente quando
ocorre um sofisticado jogo de esconder: “é uma alegria estar escondido mas um desastre não ser achado” (op. cit., p.169, grifos
do autor). Em outras palavras, há um self que remete à solidão
essencial do sujeito que, se por um lado, necessita permanecer
incomunicável, por outro, precisa ser reconhecido.
Na rica manutenção dos seus paradoxos, encontramos na
obra winnicottiana a proposição de que na mesma área em que são
vividos os equívocos e as falhas do analista o paciente é apresentado às qualidades do objeto. Se o analista sobrevive, pode obter
êxito mesmo quando falha. Progressivamente, a dependência pode
se tornar um fato de vida. O modelo clínico de Winnicott segue
o processo de amadurecimento por ele proposto: da dependência
absoluta à independência, evoluindo do manejo para a apresentação
de objeto. Deste modo, afirma:
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artigo
traduz em vazio enquanto um dos possíveis nomes da solidão.
Winnicott conclui: “Eles olham e não vêem a si mesmos” (op.
cit., p. 154). Embora os bebês procurem outras maneiras de obter
de volta algo de si mesmos, a ausência da troca significativa atrofia
a capacidade criativa do bebê e ele se acostuma com a idéia de que
o que é visto é o rosto da mãe, não é um espelho. Assim, a percepção toma o lugar da apercepção – toma o lugar do que poderia ser
uma comunicação sensível e silenciosa entre ambos; neste caso,
ao invés de usufruir da experiência de sentir-se real, tornando-se
espontâneo, o bebê se preocupará em conhecer o objeto e pensar
acerca das suas ações. Assim, alguns destes sujeitos constroem estratégias intermediárias; por exemplo, não abandonam a esperança
e passam a estudar o objeto na tentativa de predizê-lo (estudam os
seus movimentos, humores, etc.), fazem tudo o que é possível para
torná-lo significativo, o que não ocorreria se este apenas pudesse ser
sentido; “(...) estudam as variáveis feições maternas, numa tentativa
de predizer o humor da mãe, exatamente como todos estudamos
o tempo” (op. cit., p.155). Deste modo, o bebê aprende a fazer
uma previsão, afastando-se do contato com suas necessidades e
da espontaneidade; uma previsibilidade que é precária e que força
o bebê aos limites da sua capacidade de permitir acontecimentos.
Assim elegendo uma defesa ao caos, organizará uma retirada e não
mais olhará, “exceto para perceber como defesa” (idem, ibdem).
Poder-se-ia, neste ponto, indagar se nestes momentos a insistência do uso do divã funcionaria apenas como signo da rigidez
do rosto-analista – caprichos do ambiente - ao invés de funcionar
como espelho, condição da instauração de processos criativos.
No texto “Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão no
contexto analítico” (1954), Winnicott faz uma importante referência ao uso do divã em dois diferentes contextos: em situações
em que o divã pode, nos sonhos e nos pensamentos do paciente,
representar o analista, seu corpo, seus braços, mãos, etc.; e no
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Karla Patricia Holanda Martins e Maria Regina Maciel
mitaria uma estrutura psíquica, afirmação esta de conseqüências
significativas para o manejo analítico e para a concepção de cultura.
A solidão e a cultura
As reflexões acerca da possibilidade de experimentar a solidão
sem isolamento têm fortes implicações tanto para a clínica psicanalítica quanto para a compreensão das relações entre os modos de
subjetivação e a cultura. Terminaremos este artigo explorando as
relações entre a solidão do ser e a contenção advinda do ambiente
suficientemente bom.
A contenção é apresentada progressivamente e estabelece
relação com o ser. Em outras palavras, é suposto aqui um outro que
não vem em oposição assimétrica, mas que dá forma ao ímpeto da
criança. Afinal, como já afirmamos no início deste texto, o self é
dinâmico e potencialmente criativo. Assim, necessita resguardar
um espaço em que não seja “invadido” pela cultura.
No texto “A localização da experiência cultural” encontramos
a afirmação de que a cultura não é só aquilo a que nos subordinamos.
Afinal, também não criamos sem ela. Em suas palavras: “A integração entre a originalidade e a aceitação da tradição como base da
inventividade parece-me apenas mais um exemplo, e um exemplo
emocionante, da ação recíproca entre separação e união” (Winnicott,
1975 [1967b], p. 138).
Phillips desenvolve a noção de cultura em Winnicott, ao dizer
que:
Nos escritos de Winnicott, a cultura pode
facilitar o crescimento, como a mãe; [...]
o homem só pode encontrar-se na relação
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artigo
Psicoterapia não é fazer interpretações argutas
e apropriadas; em geral, trata-se de devolver ao
paciente, a longo prazo, aquilo que o paciente
traz. É um derivado do complexo de rosto que
reflete o que há para ser visto. Essa é a forma
pela qual me apraz pensar no meu trabalho,
tendo em mente que, se o fizer suficientemente
bem, o paciente descobrirá o seu próprio eu
(self) e será capaz de existir e sentir-se real.
Sentir-se real é mais do que existir; é descobrir
um modo de existir como si mesmo, relacionar-se aos objetos como si mesmo e ter um eu
(self) para o qual retirar-se para relaxamento
(1975 [1967a], p.161).
Seus textos nos alertam para trabalhar, além da narratividade,
a sensibilidade. Uma sensibilidade criativa. O silêncio - do paciente
ou do analista - por exemplo, pode dizer respeito a uma relação
que é condição de possibilidade da existência de um self criativo.
Esta valorização de um estado fusional, próprio da onipotência
narcísica, junto com um limite necessário, mas que se dê aos poucos,
estão inteiramente associados às noções de “experiências de desilusionamento” e de “processo de integração do ser”. Entendemos que a
idéia de integração propõe que a mente humana organiza-se aos poucos.
Podemos dizer que integração se refere ao processo de integrar certas
experiências à personalização – experiências temporais, de limites
corporais, enfim, experiências que o bebê vai tendo ao ser cuidado pela
mãe e outros. A integração vem de uma não-integração primária. Por
seu turno, a personalização existe quando uma psique habita o soma,
o que significa que “o bebê passa a sentir que seu corpo constituise nele mesmo (o bebê) e/ou que seu sentimento de self centra-se
no interior de seu próprio corpo” (Abram, 2000, p. 138). Há aqui
uma noção de processo e não de momento diante do qual se deliCad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 181-194, 2007
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Karla Patricia Holanda Martins e Maria Regina Maciel
quando esta experiência pode fazer aliança com a espontaneidade
experimentada numa relação criativa. Se, por um lado, há uma
espécie de solidão inerente ao self que não se comunica, por outro,
a solidão fruto de um amadurecimento de si, depende que o agir humano, construído nas relações de reciprocidade do eu com o outro,
seja reconhecido na cultura no qual se insere. Em outros termos, a
solidão conforme compreendida neste trabalho não compartilha de
um sentimento de isolamento, muitas vezes avassalador. A solidão
aqui é uma expressão do amadurecimento de si. É uma conquista.
Karla Patrícia Holanda Matins
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194
Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 181-194, 2007
com os outros e na independência ganha
mediante o reconhecimento da dependência. [...] para Winnicott o homem seria um
animal dependente, para o qual o desenvolvimento – a única ‘coisa dada’ de sua
existência – era a tentativa de tornar-se
‘isolado sem ser insulado’ (Phillips, 1988,
p. 7).
Podemos dizer que o sentimento importante do sujeito para
com a cultura e para com o outro que o impede de sucumbir à desintegração é o de responsabilidade, que vai se tecendo com a contínua
“sobrevivência” da mãe aos impulsos da criança. Quais conseqüências trazem essas afirmações? Primeiro: a relação com a cultura não
depende de nada transcendente ao próprio homem, e sim é fruto de
interações concretas entre ambos. Segundo: não depende tampouco
de um único momento estruturante, posto ser uma relação que se dá
num processo. Por fim, não há um movimento em si contrário do
indivíduo para a cultura e vice-versa.
Ter atingido o status de um self unitário não significa que
o processo de integração chegou ao fim. Este fim do fluxo só se
dá na morte. Afinal, o crescimento emocional ocorre através de
idas e vindas incessantes. Qualquer estágio do desenvolvimento é
alcançado e perdido inúmeras vezes; idas e vindas testemunhadas
na clínica.
Da mesma forma, é importante ressaltar que a independência almejada, nunca é absoluta. O indivíduo sadio nunca passa da
dependência absoluta para o isolamento. Ele se relaciona de tal
modo com o ambiente que ambos se tornam interdependentes.
No texto foram ressaltadas as possibilidades da solidão,
* Psicanalista; Membro Efetivo/CPRJ; Professora: Doutora em Psicologia Clínica/USP-SP.
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195
Ipanema – Rio de Janeiro – RJ
22410-001
fone (21) 22878155
e-mail: [email protected]
Tramitação:
Recebido em: 30.06.2007
196
Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 195-214, 2007
Aprovado em: 15.08.2007
Referências:
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e expressões utilizadas por Donald W. Winnicott. Rio de Janeiro:
Revinter, 2000.
FREUD, Sigmund (1912a). A dinâmica da transferência. Rio de
Janeiro: Imago, 1984. p. 131-143 (Edição standard brasileira das
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_____. (1912b). Recomendações aos médicos que exercem psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1984. p. 147-159 (ESB, 14).
_____. Recordar, repetir e elaborar. Rio de Janeiro: Imago, 1984.
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PHILLIPS, A. Winnicott. Cambridge, MA: Harvard University
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WINNICOTT, D. W. (1954). Aspectos clínicos e metapsicológicos
da regressão no contexto analítico. In: Da pediatria à psicanálise:
obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago, 2000.
_____. (1958). A capacidade para estar só. In: O ambiente e os
processos de maturação. Porto Alegre: Artmed, 1983, p. 31-37.
_____. (1963a) Comunicação e falta de comunicação levando ao
estudo de certos opostos. In: O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artmed, 1983, p. 163-174.
_____. (1967a). O papel de espelho da mãe e a da família no desenvolvimento infantil In: O brincar e a realidade. Rio de Janeiro:
Imago, 1975, p. 153-162.
_____. (1967b) A localização da experiência cultural. In: O brincar
e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975, p. 133-152.
_____. (1963b). O medo do colapso (breakdown). In: Explorações
psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
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197
Neysa Prochet
artigo
Quem Conta um Conto Promove um Encontro.
Psychoanalysis and storytelling: a shared experience
in search of one’s own history
Neysa Prochet*
Resumo
Enfatizamos a importância dos trânsitos emocionais decorrentes das narrativas apresentadas no setting, tanto pessoais
como da cultura, e também sua capacidade de evocar imagens
mentais no narrador e no ouvinte, no curso da relação analítica. As histórias e imagens a elas relacionadas permitem o
acolhimento de uma integralidade sensorial da experiência
relatada e oferecem uma moldura cognitiva e afetiva para
que uma experiência sem palavras possa ser nomeada e
compartilhada.
Palavras-chave: clínica psicanalítica, , literatura, narrativa,
espaço potencial, Winnicott.
Abstract
We emphasize the importance of the current emotional
traffics derived from the narratives (not only personal ones
but also cultural narratives) created into the clinical setting,
its effects in the analytic relationship and also its capacity
of evoking mental images in both analyst and patient. The
198
Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 195-214, 2007
artigo
stories and its images permit a sensorial integrality of the
related experience and they offer a cognitive and affective
frame that allows to name and share a wordless experience.
Key-words: Psychoanalytical clinic,literature, narrative;
potential space, Winnicott.
artigo
Quem Conta um Conto Promove um Encontro.
Psychoanalysis and storytelling: a shared experience
in search of one’s own history
Neysa Prochet
Há histórias de todas as espécies. Algumas
nascem ao serem contadas; sua substância é a
linguagem e, antes que alguém as ponha em
palavras, são apenas uma emoção, um capricho
da mente, uma imagem ou uma reminiscência
intangível. Outras chegam completas, como
maçãs, e podem repetir-se até o infinito sem
risco de ter seu sentido alterado. [...] E há
histórias secretas que permanecem ocultas
nas sombras da memória. [...] Por vezes, para
exorcizar os demônios de uma recordação, é
necessário contá-la como um conto. (Allende,
1991, p.189).
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199
Neysa Prochet
Prólogo
Tadeu e os elefantes
Tadeu nunca achou estranho morar com um elefante. Estranhos eram seu pai e sua mãe. Cada um de um jeito, mas definitivamente estranhos. A mãe era clara e quente, sufocante mesmo. Tadeu
a via se afligir com qualquer coisinha, lendo livros, procurando
médicos, comparando opiniões, cheia de cuidados, cerceando-o
com recomendações. Aquilo o incomodava tanto quanto a pata
do elefante que cismava em pousar no seu peito, quase sempre.
O elefante, um intrometido, adorava os medos da mãe. Bastava ela começar a falar, que o elefante vinha ouvir, aboletado nele.
Tadeu ficava imaginando que morrer de todas as doenças inventadas
pela mãe ao menos o livrariam daquele elefante gordão sentado
sobre ele. Noutro dia, há poucas semanas, a mãe o mandara, por
nada, dormir de dia. Precisava repousar, dissera, parecia doente.
Doente nada. Cansado do paquiderme e das doenças assombradas
respondera na hora:
- “Quem está cansado, não estou cansado. Se está cansada,
descansa você, mãe”.
Ficara por dois dias sem ver desenho na TV, de castigo no
quarto. Ele e o chato do elefante. A lista de “nãos” da mãe parecia
encher o mundo: “Não brinque na chuva, não tire a camisa, não
ande descalço, não coma chiclete; onde já se viu, menino, não fale
nome feio! É por isso que não gosto de ver você brincando com
esses meninos na rua. E não amole seu pai- está cansado. Jurandir,
olha o menino, dê um pouco de atenção, o menino precisa”.
Pensar no pai fazia o elefante vir, célere, aboletar-se sobre
os ombros do menino, esmagando-o. Não amolar o pai? Como,
se tudo o que fazia parecia incomodá-lo? Um gesto descuidado
era motivo para ser repreendido, mandado embora para dormir ou
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artigo
brincar no quarto. Se a mãe era clara, quase demais, sujeitando-o a
uma afeição abrasadora, Jurandir pertencia à frialdade das sombras
e ao escuro do quase inexistente.
O elefante se espalhava, amassando-o por inteiro. Tadeu
afugentava o paquiderme, correndo, pulando, mexendo em tudo,
subindo nos móveis, qualquer coisa que tirasse o bicho de cima.
Quanto mais corria, mais ouvia:
- “Vai para o quarto, Tadeu”.
O elefante pulava de novo sobre Tadeu. Tadeu ia, os pés
arrastando no chão, a bagunça da sala escorrendo para dentro, o
elefante cinzento e gigantesco sobre ele.
Essa criança está com um problema, afligia-se Dona Marta. Será de cabeça, pensava alto, será herança dos pais, pensava,
baixinho a mãe de Tadeu. Ela é a mãe, sim, mãe não é a que cria
e que cuida? E se a mãe que gerou - sabe tão pouco, morreu de
parto - tinha algum problema genético, ou foi no parto, e eu não
sei? E o pai, quem foi - sei tão pouco - bebia, usava droga, tinha
doença no sangue? E se pedirem exames? E se eu precisar contar?
Marta estivera casada por anos, sem engravidar; quase
quarenta. Tentara tudo, queria um bebê, seu bebê; queria vê-lo
crescer, receber os beijos e carinhos que sonhara, escassos desde
muito. Jurandir era bom marido, não podia se queixar: respeitoso, atencioso nos deveres de chefe da casa. Mas era distante,
cada vez mais fechado. Marta queria desejo; respeito era pouco
- tanto amor desperdiçado...
Um dia, foi a Providência Divina, Marta tinha certeza; a
cunhada comentara a morte de uma vizinha da mãe – eclampsia.
Moça nova, coitadinha; o bebê sem pai, a família humilde, o que
será da criança? Ela não pensara duas vezes. É minha, a criança.
Foi lá, e buscou o bebê que São Judas lhe dera, pelas novenas re1
http://pt.wikipedia.org/wiki/Literatura
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Neysa Prochet
zadas. Foi no impulso, acreditando trazer alegria para os dois, um
elo a remendar a aliança frágil, um filho para herdar o nome do pai.
A reação do marido, pálido e imóvel diante do drama contado,
foi um choque para ela. Não tinha ele bom coração? Não aceitara,
já, a idéia da adoção? Não via que o santo lhes dera o milagre pedido, sem filas, demoras e burocracia? Jurandir parecera a ponto
de explodir, negar, expulsar os dois de casa, mulher e bebê.
Meu São Judas, rezara, fazei com que ele permita, não me
tire a graça concedida.
O protetor das causas impossíveis fizera mais um milagre.
Jurandir calara o quase dito, apenas dissera faça o que achar melhor. Ela fez. Registrou e batizou o milagre com o nome do santo.
Criou e cuidou com amor feroz, indiferente à indiferença do marido. Nunca vira nele um gesto de carinho que não fosse obrigado
e contrafeito. Ela falava, pedia, amor de pai faz falta.
Nada.
Ela amaria por dois, jurara. Pegava-o olhando o menino, por
vezes, imerso em si, num jeito estranho. Devia gostar, não queria é
dar o braço a torcer, deve ser isso. Não sei o que se passa na cabeça
desse homem, mas meu filho fica, murmurava, rebelde. Marta nem
notava o gesto inconsciente, quase costumeiro, de esfregar o peito
com a mão como a tentar aliviar um peso dele.
Jurandir percebia, é claro, o olhar intrigado da mulher, seu
incômodo. Reconhecia a aflição de Tadeu. Identificava os sinais de
sua própria angústia, o suor frio que lhe arrepiava a nuca acompanhado de uma onda gigantesca de náusea. Será que ela desconfia,
perguntava-se. Depois de tantos anos, tem horas que acho que vou
explodir, confessar.
De todas as coincidências possíveis, o impossível. Cristina, moça nova, brejeira, trabalhando na expedição, indo e vindo
com aquelas pernas morenas, as trancinhas no cabelo, ele num
casamento sólido, sem ardor e sem desejo, exaurido das técnicas
202
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artigo
e tentativas de fertilização, o termômetro, o coito programado,
monitorado, o choro depois da decepção mensal, reprodutor ou
homem, indagara-se tantas vezes. As pernas de Cris e a monotonia.
A gravidez - ironia máxima.
A angústia dos meses passando, a barriga crescendo, o medo
aumentando, o que fazer, meu Deus? A morte no parto trouxera
horror, culpa e o alívio. Ninguém o conhecia, pareciam não saber
o nome do pai. Cris esperara que a situação se resolvesse com o
nascimento da criança. Jurandir esperara, como ela. A moça morrera
e a situação se resolvera, parecia-lhe. Tinha pensado, no pânico e
na confusão imediatos, mandar um dinheiro bom para a família
dela, pagar as contas, arranjar um jeito de prover sem aparecer.
No meio de tudo, a mão do acaso: a mulher do cunhado, a
ousadia da própria mulher na ânsia de filhos. Calara. O segredo
o paralisara, impedindo-o de qualquer gesto de amor, sufocando
qualquer emoção que o denunciasse. O peito doía-lhe quase o
tempo todo.
Ignorando-se uns aos outros, elefantes passeiam pela casa
de Tadeu.
Capítulo 1
Entre a Psicanálise e a Literatura, a busca.
... nós inventamos nossas lembranças, o que
é o mesmo que dizer que inventamos a nós
mesmos, porque nossa identidade reside na
memória, no relato de nossa biografia. Portanto, poderíamos deduzir que os seres humanos
são, acima de tudo, romancistas, autores de
um romance único cuja escrita dura toda a
existência e no qual assumimos o lugar de
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Neysa Prochet
protagonistas. (Montero, 2004, p.8)
Que diferenças existiriam entre um texto literário e um texto
psicanalítico?
No site Wikipedia1 , uma das fontes de pesquisa mais utilizadas na internet, a descrição do verbete ‘literatura’ enfatiza
predominantemente a ligação entre literatura e estética, discriminando o texto literário de outras produções através da qualidade
da repercussão subjetiva, de seu valor enquanto produtor de uma
experiência emocional no receptor. O próprio texto assinala tratarse de um parâmetro altamente instável, que pouco nos auxilia a
estabelecer discriminações significativas, e um segundo parâmetro
é, então, oferecido: no texto literário haveria o predomínio de uma
linguagem conotativa ou metafórica, singularizada, enquanto que o
texto científico implicaria numa preocupação maior com o sentido
denotativo dos termos, ancorados numa conceituação previamente
estabelecida e com relativa independência do contexto específico
onde este foi utilizado. O texto científico seria, então, por estes
princípios, um texto que fosse capaz de ser mais amplo que o singular e também que pudesse abranger uma idéia e/ou experiência
independente da qualidade emocional despertada pela mesma.
Mas, e a Psicanálise? Como escrever um texto científico
psicanalítico que possa abranger uma experiência independente
da qualidade emocional que tal experiência possa despertar?
Como proceder se, ao nos debruçarmos sobre o psiquismo de
uma pessoa usamos o nosso próprio psiquismo como porta de
acesso ao reconhecimento deste outro? Se este é nosso instru2
É imperioso enfatizar que amoroso, neste caso, não é atender ou responder à demanda
propriamente dita ou ao desejo do paciente, nem se trata de ser sedução ou complacência.
Ser amoroso é reconhecer estas demandas como legítimas.
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artigo
mento de trabalho, o que é totalmente externo daquilo é que
apreendido a partir de nossa subjetividade?
Embora a Ciência seja um esforço criado pelo homem para
evitar a arbitrariedade dos desejos de cada um, ela não está acima
daqueles a criaram e é impossível alienar a produção de conhecimento da subjetividade do sujeito que a produz. Mannoni (1988)
assinala que “em toda compreensão do outro, de fato, é também
um vestígio de nós mesmos que encontramos” (p.8) Assim, quando
falamos do psiquismo de uma pessoa nós o fazemos através de
nosso próprio psiquismo, psiquismo que é, ao mesmo tempo, nosso
objeto de estudo e é, igualmente, o objeto que viabiliza este estudo.
Tadeu e os elefantes não é um trabalho científico e não é um
relato de caso. No entanto, acredito que também pode ser. Não o
é no sentido de uma descrição isenta e literal dos acontecimentos,
independente de sua qualidade emocional, mas, pode sê-lo justamente por ser descritivo da experiência emocional vivida numa
relação transferencial analítica. As lembranças geradoras do conto
não foram baseadas em nomes, numa anamnese cuidadosa, nos
sintomas descritos ou na hipótese diagnóstica formulada. Elas
vieram das impressões afetivas registradas na escuta analítica, na
apreensão de uma imobilidade no viver, de um ambiente de opressão, da profunda angústia e segredo que tornavam quase nulas as
perspectivas de um devir.
A Psicanálise, mais, talvez, do que qualquer outro campo,
aponta criticamente para um dos pilares do pensamento moderno
ocidental – a dicotomização, um modo de pensar onde o paradoxo
não encontra lugar. Contrapomos cultura e natureza, consciente e
inconsciente, interno e externo, arte e ciência, alma e corpo, mente
e cérebro, razão e loucura, sonho e realidade. As raízes da clínica
psicanalítica e da literatura são as mesmas – o viver, suas vicissitudes, seus enigmas, a busca de uma transcendência, de superação
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Neysa Prochet
e conservação de um sentido no existir. Talvez não seja necessária
uma escolha entre um campo e outro, mas acolher na Psicanálise e,
em especial na clínica psicanalítica, o enriquecimento inestimável
que as contribuições da Literatura possam nos oferecer. Reconhecer que as diferenças maiores não residem em seu objeto, mas no
modo como este pode ser descrito.
Os elefantes surgiram quando a analista buscava oferecer
uma interpretação que fosse capaz de abarcar e relacionar não só
as sensações físicas de Tadeu como as qualidades emocionais do
ambiente em que este vivia. Ela disse ao menino que sentia um
peso enorme nele, como se uma pata de elefante estivesse pousada
em seu peito, não lhe deixando respirar e que, talvez, ele corresse
tanto e nunca ficasse quieto para tentar se livrar do danado do elefante e de seu peso sobre seu coração. Tadeu acolheu de pronto a
imagem proposta, aliviado por ter reconhecida sua angústia, enfim
representada, e só então passível de ser enfrentada. Tadeu buscava
um olhar amoroso2 , que pudesse identificar algo, um afeto que o
vinculasse a si mesmo, a seu próprio corpo e ao meio no qual ele
estivesse. Era uma necessidade à qual ele precisava ter atendida
para, só então, poder (re) estabelecer uma relação de confiabilidade na experiência. Os elefantes saíram do peito de Tadeu para as
páginas de um conto.
Capítulo 2
As Narrativas Clínicas
Entendemos que a Psicanálise pode ser descrita como uma
maneira de contar histórias, a história da vida de uma pessoa. Costumamos perguntar a nossos pacientes: - O que pode me contar
sobre você? Contamos histórias sobre a vida que vivemos, sobre
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artigo
as pessoas a quem amamos, perdemos ou nos fizeram sofrer. Contamos sobre os lugares onde que fomos e sobre aqueles onde que
desejamos ir; sobre os saberes que aprendemos e sobre o que não
sabemos; e contamos também sobre o que nos foi contado por um
outro. Somos quem somos pelos que lembramos de nós e pelo que
podemos contar. Contamos, acima de tudo, para procurar e criar
sentidos - não um sentido de verdade propriamente dito - mas um
sentido pessoal acerca do que foi vivido. Contar é uma experiência
de criação e transformação.
Na clínica, denomino como “contar” o que Ferro (2000)
define como narração:
Falo daquela maneira de o analista estar na
sessão quando ele participa com o paciente
da construção de um significado de forma
altamente dialógica, sem grandes censuras
interpretativas. Como se analista e paciente
construíssem juntos uma pièce teatral e,
no interior dela os enredos crescem e, se
articulam e se desenvolvem às vezes de
forma imprevisíveis e impensáveis para os
dois co-narradores, sem que exista entre
eles um depositário forte de uma verdade
pré-constituída. Nesta forma de proceder,
a transformação co-narrativa, ou mesmo a
co-narração transformativa, toma o lugar
da interpretação (p.17-18).
Na escuta clínica, apreendemos diversos níveis de narrativa
naquilo que nos é contado: De modo geral, reconhecemos um ní-
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vel linear e aparente e um outro nível, relacionado ao que chamo
de histórias secretas, expressão bem descrita por Isabel Allende
(1981) na epígrafe deste trabalho. Histórias que foram vividas,
mas nunca puderam ser contadas porque, de alguma forma, não
foi possível sua inscrição no psiquismo da pessoa. Para contá-las,
recorremos a sonhos, personagens míticos ou da cultura ou, ainda,
àqueles criados na própria relação terapêutica. Buscamos auxílio
nos contos de fadas, em todas as histórias já contadas no universo
da Literatura, tudo aquilo que puder ser utilizado como recurso
de intermediação para o resgate de histórias expressas através
dos sintomas, da dor e dos pesadelos. Todas têm a ver com acontecimentos extraordinários que ocorrem além da “realidade real”
e que, quando desveladas podem conduzir a uma experiencia de
transformação no protagonista. Nelas, ao serem contadas, encontramos um sabor de descoberta, de insubordinação a uma ordem
ou forma estabelecida, onde algo novo, surpreendente, irrompe,
alterando relações e conduzindo a novas interações.
O trabalho clínico com crianças tem me ensinado a não
desconsiderar imagens mentais que porventura possam surgir ao
longo das sessões, por mais inusitadas que sejam. Quando, na
sessão analítica, há a evocação de uma imagem mental no analista
relativa a um conto de fadas ou mesmo a criação de um personagem, esta não poderia ser oriunda de uma comunicação além da
linguagem, resultante das impressões visuais produzidas na psique
do interlocutor? Não seria uma oportunidade ímpar poder fazer uso
de objetos da cultura que possam ser transicionalmente continentes
de obscuridades presentes na narrativa clínica?
Cada gesto humano é uma comunicação que aumenta,
A origem etimológica de história nos indica ser a palavra derivada do grego “historía”
que significa aprendizagem ou saber por meio da pergunta, do registro e da narrativa.
3
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artigo
amplia, esconde ou reduz aquilo que é contado. As histórias que
ouvimos de nossos pacientes, de nossos amigos, a nossa própria
história, falam de outras histórias que precisam ser contadas. A
experiência analítica parece-me, às vezes, com a reconstrução de
um romance, cujas páginas desfolharam, ficando perdidas, embaralhadas, parcialmente manchadas e difíceis de decifrar. Buscamos
reunir os relatos, a partir dos últimos parágrafos escritos, a fim de
escrever e reescrever uma história pessoal. É um processo que
precisa de um tempo e um lugar para acontecer, artigos de luxo em
nossos dias de instantaneidades, localizações e tempos reduzidos,
mas sem o qual a construção de um eu real se torna impossível.
Assim como o objeto transicional, um conto ou um personagem pode ser criado para que seja possível uma passagem de um
estado para outro, um instrumento de mediação para que as mudanças inerentes ao processo de desenvolvimento possam ocorrer de
forma menos traumática. A figurabilidade, oferecida pelas imagens
suscitadas tanto na mente do analista quanto do paciente, permite
a sugestão de uma forma, uma sustentação psíquica que não passa
pela via da elaboração simbólica, o que é extremamente útil na
clínica contemporânea tão carente de uma rede de simbolizações
sustentadoras. Se tomadas como elementos transicionais - ampliadoras do espaço potencial – e, se não forem tratadas de forma literal
nem impostas ao paciente, estas historias podem funcionar como
mediadoras de um encontro no campo transferencial.
Ferro (2000) debruça-se sobre a Psicanálise compreendendo-a
como literatura a partir das narrativas realizadas nela, e como terapia, a partir da técnica e dos recursos utilizados para compreender e
minorar o sofrimento humano. Na introdução da obra citada, escrita
por Franco Borgogno(2000), este enfatiza os “trânsitos emocio4
N.A. - Eu diria qualquer obra criativa.
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nais e ideativos da dupla envolvida” (p.13) no processo analítico,
citando, a seguir, Ferenczi (Ferro, 2000) que, numa carta a Freud,
em 14 de outubro de 1909 diz que “os próprios pensamentos conscientes e inconscientes produzem impressões visuais na psique de
outra pessoa.” (p.13). Reforço, pois, a idéia de que, assim como
no sonho e no brincar, as histórias também pertencem ao campo
da transicionalidade. São reais, mas não são a realidade. São suficientemente próximas da segunda, mas protegidas pelos mesmos
mecanismos que regem o sonho: condensações, deslocamentos e
o uso abundante de simbolismo e/ou analogias.
Freud (1900) aponta que, em todos os sonhos, há a busca
da realização de um desejo. Na criação de um conto, abre-se um
campo possível de realização de um desejo e na comunicação de
uma necessidade. Se Freud enfatiza a busca da realização de um
desejo que é expresso simbolicamente pelo conteúdo do material,
Hanna Segal (1993) assinala que
Se há na arte satisfação de desejo – e deve
haver, já que há satisfação de desejo em todas
as atividades humanas – não se trata de uma
simples satisfação onipotente de um desejo
libidinal ou agressivo. Trata-se de uma satisfação do desejo de elaborar um problema de
um modo particular, e não do que se entende
por satisfação de desejo, ou seja, onipotência.
( p.90)
A autora descreve brilhantemente o que desejo enfatizar neste
trabalho e que ocorre tanto nos processos oníricos como, de forma
análoga, na criação narrativa: sem negar o caráter de satisfação
pulsional enfatizado por Freud, aponta-nos a necessidade humana
de expressar e comunicar sua própria história3 .
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artigo
No artigo sobre Dostoievisk, Freud (1928) assinala que o escritor buscou, tanto em seu sintoma como em sua obra, a realização
de seus desejos parricidas. Não tenho como objetivo analisar as
interpretações dadas por Freud ao enredo ou aos personagens, mas
meramente enfatizar o valor comunicacional de um sofrimento,
seja ele pela via do sonho, sintoma ou obra literária. Igualmente,
num dos casos mais famosos de Freud, o Homem dos Lobos,
Freud (1913) demonstra o uso de Serguei da estrutura do conto de
fadas dos sete cabritinhos como base para a construção onírica das
angústias ligadas às fantasias sexuais associadas ao coito parental.
Segal (1993), ao analisar Freud e a arte, sugere leituras
diferentes das indicadas usualmente num trabalho sobre arte ou
literatura e apresenta uma perspectiva original sobre o trabalho
criativo. Para ela, o artista, em verdade, não se afasta nunca da
realidade, contrariando a posição freudiana em O escritor criativo e seus devaneios (1908). Segundo a autora, o criador não
busca soluções fáceis ou de satisfação onipotente do desejo pela
negação externa das realidades externa e psíquica. Ela enfatiza
que a busca de um artista ou de um criador é a verdade psíquica.
Para fundamentar suas idéias, Segal nos traz o texto freudiano O
Moisés de Michelangelo (1914). Farei uma citação mais longa de
trechos deste trabalho, por considerá-lo essencial para a discussão
do tema apresentado:
[...] as obras de arte exercem sobre mim um
poderoso efeito, especialmente a literatura e
a escultura e, com menos freqüência, a pintura. Isto já me levou a passar longo tempo
contemplando-as, tentando apreende-las à
minha própria maneira, isto é, explicar a
mim mesmo a que se deve seu efeito. [...]
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Uma inclinação mental em mim, racionalista
ou talvez analítica, revolta-se contra o fato
de comover-me com uma coisa sem saber
por que sou assim afetado e o que é que me
afeta (p.253).
[...] na verdade, alguém que escreva sobre estética já descobriu ser esse estado de perplexidade intelectual condição necessária para que
uma obra de arte4 atinja seus maiores efeitos. A
meu ver, o que nos prende tão poderosamente
só pode ser a intenção do artista, até onde ele
conseguiu expressá-la em sua obra e fazer-nos
compreendê-la. Entendo que isso não pode ser
simplesmente uma questão de compreensão
intelectual; o que ele visa é despertar em nós
a mesma atitude emocional, a mesma constelação mental que nele produziu o ímpeto de
criar (p.254).
Ao buscar apreender a constelação mental mencionada por
Freud, considero ser mais profícuo abdicar do uso de uma linguagem simbólica e recorrer à perspectiva analógica para a leitura das
histórias e personagens presentes nas narrativas clínicas. A linguagem analógica é caracteristicamente ambígua e imprecisa e, neste
tipo de compreensão, abrimos mão do caráter determinista e preciso
do símbolo para ir ao encontro de uma relação de significação que
será estabelecida no momento em que a história for contada.
Ao tomarmos os relatos dentro do campo da transicionalidade (Winnicott, 1978), o que interessa não é o relato em si ou sua
interpretação simbólica como as descritas por Bettelheim(1980)
e outros, mas o uso que a pessoa pode fazer deste relato, algo que
pertence à realidade externa e que se torna, pelo próprio uso, um
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artigo
mediador para a conquista de um sentido pessoal. Muitas vezes, os
fatos rememorados não conseguem adquirir um sentido que seja
acessível como algo ocorrido na própria história, se miscigenados
com outras histórias, sem palavras e representações, aspectos “secretos” para si mesmos. Buscamos, então, propiciar ao paciente
condições de maior flexibilidade e liberdade de comunicação
entre os diversos aspectos de si mesmo e tentamos apresentar uma
pluralidade de perspectivas, para que ele possa criar aquela que
lhe permita uma maior integração. Busatto (2003) enfatiza que o
mais significativo nesta situação não é o trabalho interpretativo,
mas “possibilitar ao ouvinte criar sua própria história” (p.52).
Acredito que, mais do que pensamentos, as imagens produzidas pelos contos e histórias relacionam-se a “estados de ser”, expressão usada por Bollas (1992) para designar fragmentos psíquicos
não representados que irrompem em qualquer momento de vida,
não necessariamente naturais da infância primitiva. Desta forma,
se a fala de um paciente nos conduz fortemente a uma imagem
ou uma história, é possível que esta nos tenha sido comunicada
através de evocações afetivas e culturais compartilhadas por ambos – um encontro psíquico que irá permitir uma comunicação
mais profunda. O mesmo se passa quando um paciente nos traz
um conto ou uma história. E, seguindo esta hipótese, talvez seja
possível apresentá-la a ele, como um brinquedo ou como a espátula
oferecida por Winnicott (1941), algo que pode vir a ser encontrado
ou não, usado ou não, tornado pessoal e singular ou simplesmente
ignorado.
Nas histórias criadas, nas histórias emprestadas da cultura,
nas histórias recriadas na situação analítica, buscamos estabelecer
ligações entre as diversas experiências vividas ao longo do tempo. Há experiências, de ordem tal, que necessitam serem vividas
externamente, antes de serem incorporadas como pertencentes ao
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Neyza Prochet
Eu. Borgogno ( Ferro, 2000) usa a expressão “espaço inicial de
hospitalidade psíquica” (p.14) ao referir-se à qualidade curativa
oferecida pelas histórias, um espaço no qual haverá sustentação e
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mobilidades suficientes para que os processos de amadurecimento
e integração possam ocorrer.
A possibilidade de fazer uso da herança cultural, vivendo-a
no pleno sentido da palavra, utilizando-se de seus referentes para a
construção de um sentimento de ser integrado, permite uma aproximação frutífera entre a vida cotidiana e a experiência analítica.
Com freqüência encontro, na narrativa de meus pacientes, outras
narrativas oriundas do mundo externo – relatos de filmes, capítulos
de novelas, personagens em quadrinhos, obras literárias, seriados
de TV. Se usadas a serviço da sustentação de um senso de continuidade, oferecem um tipo de intervenção que amplia significações
e a construção de uma história pessoal.
Epílogo
Uma história será sempre nova, dependendo de quem a contou e de quem a ouve, resgatando a possibilidade de uma releitura
do que foi contado. Um conto se torna cada vez mais rico e vivo
se pudermos nele atualizar gestos, paralisados na estereotipia da
repetição não reflexiva. É apenas assim que faz sentido o mundo da
cultura, quando o vivemos de forma tal, que seja possível decantar
uma experiência dele, expressar um gesto que, ao mesmo tempo
em que o supera, o acolhe, para então, da massa de sensações,
fragmentos de discurso, intensidades de sentimentos, encontrar e
construir uma história pessoal.
Somos todos contadores de histórias. Não há um contador de
histórias sem história ou uma história sem seu contador. E não há
nem um nem outro se não houver uma platéia a quem esta história
* Psicóloga Clínica/UFF; Especialista em Psicanálise e Laço Social/UFF; Mestre em
Cognição e Linguagem /UENF; Doutoranda em Pesquisa e Clínica em Psicanálise /UERJ.
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completas de Sigmund Freud, 4).
_____. (1908) O Escritor Criativo e Seus Devaneios. Rio de Janeiro: Imago, 1976. (ESB, 9).
_____. (1913) A ocorrência, em sonhos, de material oriundo de
contos de fadas. Rio de Janeiro: Imago, 1976. (ESB, 12).
_____. (1914) O Moisés de Michelangelo. Rio de Janeiro: Imago,
1976. (ESB, 13).
_____. (1928) Dostoievisk e o parricídio. Rio de Janeiro: Imago,
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for dirigida. Como é comum entre os contadores e sua audiência,
contamos um conto que, mesmo tendo sido contado inúmeras vezes, pelo próprio ato de contar, é recriado, a cada vez, em um novo
conto. Contamos contos para contar-nos quem somos.
Neysa Prochet
Rua Dona Mariana, 22, apto 304
Botafogo – Rio de Janeiro - RJ
22280-020
fone: (21) 2286-3999
e-mail: [email protected]
Tramitação:
Recebido em: 30.06.2007
Aprovado em: 15.08.2007
Referências
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do Brasil, 1991.
BETTELHEIM, B. Psicanálise dos Contos de Fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
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Não-Pensado. Rio de Janeiro: Imago, 1992.
BORGOGNO, F. Introdução. In: FERRO, A. A Psicanálise como
Literatura e Terapia. Rio de Janeiro, Imago, 2000.
BUSATTO, C. Contar e Encantar: Pequenos Segredos da Narrativa. Petrópolis, RJ, Vozes 2003.
FERRO, A. A Psicanálise como Literatura e Terapia. Rio de
Janeiro: Imago, 2000.
FREUD, S. (1900). A Interpretação dos Sonhos. Rio de Janeiro:
Imago, 1976. (Edição standard brasileira das obras psicológicas
Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 215-231, 2007
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Renata Mattos de Azevedo
maneira pela qual ele compõe os elementos dos quadros e
trabalha com a luz. Seus quadros nos dariam a ver nosso
próprio vazio constitutivo.
Palavras-chave: Solidão, psicanálise, obra de arte, pintura,
Edward Hopper.
Abstract
This paper calls for a reflection on solitude based on the work
of the north-american painter Edward Hopper, studying the
relation of the subject with the other as an equal and the
Other as a radical difference. There are some qualities in
his paintings that reveal loneliness in his figures, scenarios
and scenes as well as in the way the artist composes the elements of his works and deals with light. His paintings would
transmit us the emptiness of our own constitution.
Keywords: Solitude, psychoanalysis, work of art, Edward
Hopper.
artigo
A solidão na obra de Edward Hopper – Reflexões sobre
o sujeito e o vazio segundo a psicanálise
Solitude in the work of Edward Hopper – Reflections
on the subject and the emptiness in the light of psychoanalysis
Renata Mattos de Azevedo
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artigo
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MONTERO, R. A louca da casa. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
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_____. Objetos Transicionais e Fenômenos Transicionais.
In:_____. O Brincar e a realidade. Rio de Janeiro, Imago, 1975.
artigo
A solidão na obra de Edward Hopper – Reflexões sobre
o sujeito e o vazio segundo a psicanálise
Solitude in the work of Edward Hopper – Reflections on
the subject and the emptiness in the light of psychoanalysis
Renata Mattos de Azevedo*
Resumo
Este trabalho pretende refletir sobre a solidão, pelo viés
da relação do sujeito com o outro semelhante e com o
Outro enquanto alteridade radical, a partir da obra do
pintor norte-americano Edward Hopper. Na pintura deste artista, destacam-se características que revelam uma
solidão tanto em suas personagens e cenários quanto na
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Renata Mattos de Azevedo
se com poucas ou nenhuma. Críticos e biógrafos do pintor são
unânimes em destacar tal característica de sua obra, e, segundo
Lloyd Goodrich (1993, p. 105), Hopper admitia a presença da
solidão em sua obra, negando, todavia, que fosse intencional,
chegando a se aborrecer com a ênfase dada a este ponto.
Diante disso, me pergunto: O que na obra de Hopper nos dá
condições de destacar a solidão como central? E o que seus quadros podem nos ajudar a pensar a solidão no humano a partir da
perspectiva psicanalítica, em especial a freudiana e a lacaniana?
Com estes pontos em mente, procurarei desenvolver este trabalho.
A pintura de Edward Hopper e a arte pela perspectiva
psicanalítica
Nascido em Nova York em 1882, vindo a falecer em 1967,
Hopper é considerado um pintor realista, sem passar, contudo, por
uma imitação da realidade. A aproximação com o realismo vem do
modo de retratar personagens e cenários com grande proximidade
a como eles se apresentam a nós no cotidiano, não tendo o autor
se afiliado a tendências da arte moderna que visavam distorcer o
que é visto e apresentar novas configurações formais.
A arte de Hopper, de acordo com Goodrich (Ibid.: 97), deve
ser entendida como um “novo realismo”, apresentando-se quase
como oposta às principais correntes do modernismo, já que há nela:
“no lugar de subjetividade, um novo tipo de objetividade; no lugar
de abstração, uma arte puramente representacional; no lugar de
influências internacionais, uma arte baseada na vida americana”.
O que este autor destacou como uma nova objetividade foi
denominado por outro estudioso de Hopper, Wieland Schmied
(1995 p. 45), baseando-se na expressão cunhada pelo pintor alemão
Max Beckmann, de “objetividade transcendental”. Isto na medida
1
Em especial na aula de 16 de novembro de 1966 do seminário inédito A lógica da
220
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artigo
Introdução
Há pouco mais de um ano, fiz uma viagem de ônibus, com
trajeto conhecido e rotineiro, procedimentos sem grandes surpresas,
e, dentre os demais passageiros, um casal me chamou fortemente a
atenção, chegando a causar certo estranhamento. A princípio, não
soube dizer sequer se eram um casal, visto que estavam sentados
em assentos distantes; somente quando mudaram de lugar, sem
pronunciar uma palavra, trocando escassos olhares e se dirigindo
para um mesmo ponto, pude confirmar que estavam juntos, o que
as alianças também atestavam. O que de mais peculiar havia neles era que pareciam uma pintura de Edward Hopper, dividindo
um mesmo espaço, e mesmo uma vida, porém, estando ambos
solitários, silenciosos; ao mesmo tempo distantes e próximos,
compartilhando solidões.
A atmosfera da cena era similar ao quadro Cape Cod Evening,
de 1939, no qual vemos um casal em silêncio e um cachorro em
estado de alerta, os três em uma paisagem que mescla um bosque
que se estende quase como para além dos limites da tela e uma
casa de dois andares iluminada pelo sol e pela grama amarelada
que a rodeia. Apesar de estarem silenciosos, parece haver entre
eles um forte laço que os une. O que também encontramos em
pinturas como Room in New York (1932), Second story sunlight
(1966), Sunlight on Brownstones (1956), e Sea watchers (1952).
Na obra de Hopper é visível e recorrente a incidência da
solidão, não apenas em quadros nos quais há figuras humanas,
sozinhas ou em pequenos grupos (ainda que aparentando estar só
neles), surgindo mesmo quando o artista pinta cenários naturais,
urbanos, ou o interior vazio de quartos, residências e lugares
destinados à reunião de pessoas e que, no entanto, encontramEsta é um espaço topológico obtido através da junção das extremidades de uma fita,
após se ter feito nela uma torção de meia volta, fazendo com que, ao percorrermos por
sua superfície, não haja mais frente e verso, exterior ou interior.
2
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Renata Mattos de Azevedo
com grande freqüência em relação ao enquadramento de cenas,
inteiras ou em parte, em janelas. Estas surgem marcando ou um
limite entre interior e exterior ou emoldurando uma cena da qual
participamos como expectadores.
Devido a isto, Hopper chegou a ser denominado por Schmied
(Op. cit: 68) como voyer, com o quê discordo. A pintura de Hopper
nos oferece momentos do cotidiano a partir de um ponto de vista
distanciado, o que faz com que possamos ocupar este lugar de
alguém que observa uma determinada cena e nos identificar com
ela pela familiaridade a qual nos remete.
Em artigo que aborda a questão da travessia da fantasia associada à arte, Marco Antonio Coutinho Jorge (2006, p. 74; grifos
do autor) analisa a pintura de Hopper, destacando a insistência da
“solidão do sujeito situado na margem, no umbral, no limiar em
relação ao real”. Dentre os pontos que o autor destaca nas obras
deste pintor, estão as janelas, e a respeito delas Jorge (Ibid., p.
75) nos lembra que Lacan as utilizou para metaforizar a fantasia
como janela para o real. Para Lacan1, a fantasia é tomada como
uma montagem entre o simbólico e o imaginário que constituiria
a realidade psíquica do sujeito e que teria a função de mediar o
encontro deste com o real.
Podemos, com isso, pensar que as janelas na obra de Hopper,
além de nos direcionar o olhar para um ponto que o pintor, por
limitá-lo, nos conduz, indica-nos ainda esta tensão entre o sujeito
e o real, à qual a fantasia vem fazer frente de modo a oferecer ao
sujeito condições de lidar com ele.
É interessante destacar que o próprio Hopper (apud Goodrich,
op. cit., p. 105), ao falar sobre esta temática, diz sobre a possibilidade que as janelas abrem para experimentarmos a sensação simultânea de interior e exterior de uma construção. Ao que, acrescento,
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artigo
em que, apesar de uma aparente objetividade, encontramos em suas
telas algo que evoca sentimentos e sensações que não nos são óbvios em um primeiro olhar. Ou seja, pela estética, somos levados a
algo que não se encontra aparentemente em primeiro plano na obra.
Com Lacan (1959-1960/1997, p. 121), aprendemos que a
obra de arte tem como uma de suas funções contornar a ausência
de das Ding, a Coisa, apontando para a sua incidência. Este é o
objeto real destacado por Freud (1950[1985]/1990, p. 451) como
excluído do juízo quando da constituição do sujeito. Ou seja, das
Ding é perdido desde sempre, e, por sua perda, organiza a linguagem, o simbólico e o inconsciente, possibilitando o advento do
sujeito enquanto tal. O movimento do desejo do sujeito é instaurado
na busca deste objeto, todavia, sua apreensão é impossível. Ainda
assim, a arte oferece a possibilidade de se contornar pulsionalmente
este vazio estrutural de nossa constituição, oferecendo aos sujeitos
um novo objeto que nele atuará como causa de desejo. A Coisa
aparecerá na arte de forma velada (Lacan, op. cit., p. 148), porém,
revelando sua incidência por seus efeitos.
Se essa função é comum a toda obra de arte, entendo que é assim a maneira como Hopper transmite isto em suas telas passa pelas
temáticas com as quais trabalha, nas quais se destaca um forte vazio,
e também pelos recursos estéticos e técnicos por ele escolhidos nestas
composições. Sobre este último aspecto ocorre, de um modo geral,
uma predominância de retas e figuras geométricas, preferencialmente
retângulos em sentido horizontal ou grandes blocos colocados verticalmente, em destaque pela incidência de luz ou por cores que as
diferenciam. O uso de curvas e objetos circulares é pequeno e pontual,
e, quando aparecem, em pouco suaviza a quase aspereza das formas
restantes.
Estas características, de acordo com Goodrich (Op. cit.: 141),
produzem uma limitação espacial em suas obras, o que, em algumas, chega a ter uma função mais específica, conforme vemos
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Renata Mattos de Azevedo
de alguma forma, travadas. Ou seja, não se trata, portanto, de uma
mudez, e sim de uma imobilidade, que, contudo não se confunde
com paralisia. Trata-se de personagens unidas por uma ligação
distante, ou, se preferirmos, uma proximidade afastada, como se
estivessem voltadas, cada uma, para experiências singulares de
confronto com o real, ou ainda sob efeitos destas, e “sabendo”
(sem saber) que isto diz respeito a todos nós.
Para Jorge (Op. cit.. p. 74), “Hopper pinta o mundo com uma
acentuada frieza e seus personagens parecem estar absortos por uma
espécie de falta de sentido”. A hipótese deste psicanalista (Ibid., p.
75) passa pelo entendimento de que eles estão “possuídos por uma
certa solenidade que contrasta com a cena cotidiana: eles parecem
viver num momento de epifania, de revelação. E esta revelação
parece ser a mesma com a qual o sujeito se depara na travessia da
fantasia: não há relação sexual (grifos do autor)”.
Desta maneira, a obra de Hopper nos apresentaria um momento muito específico e fugaz no qual o sujeito poderia vislumbrar
que há em si e naquilo que está ao seu redor uma falta fundamental
que diz da impossibilidade de completude e de uma satisfação
plena. Estas personagens pintadas por Hopper teriam tido a revelação de que todo encontro no mundo humano é sempre faltoso,
ou, como nos diz Lacan (1964/1998, p. 57), é sempre da ordem
de tiquê, encontro com o real traumático e inassimilável.
É para um encontro como este, com nossa divisão estrutural, que a arte de Hopper nos leva. A diferença consiste, no
entanto, em que ela nos é apresentada revestida pela linguagem
e pelos elementos pictóricos, ou seja, por recursos simbólicos
que fazem com que possamos, após o impacto que estas obras
nos causam, lhes dar sentidos.
Segundo Sherry Marker (1990, p. 65), grande parte dos
quadros de Hopper apresenta duas espécies de momentos: “o mo-
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artigo
esta fala pode ser remetida ao modo como a psicanálise entende
o sujeito e seu exterior, em uma continuidade específica, similar à
fita de Moëbius2. Lacan (1962-1963/2005, p. 109) trabalhou com
a figura da fita de Moëbius para abordar a relação do sujeito com o
objeto a, objeto causa de desejo (Ibid.: 115), que cai como resto da
operação de constituição do sujeito no campo do Outro, entendido
como campo da linguagem. Será este objeto que estará presente
na fórmula lacaniana da fantasia, escrevendo através de uma frase,
como nos ensina Freud (1919/1990ª\, p. 225), a articulação entre o
sujeito e este objeto que poderia satisfazer a pulsão, e construindo
uma cena que se coloca frente ao real. Ou seja, diante do impossível de se simbolizar e do não-sentido, tem-se a linguagem e sua
gramática junto a uma encenação imaginaria; em outras palavras, a
fantasia, a “outra cena” (Lacan, 1964/1998, p. 58) do inconsciente.
Ainda pensando em como Hopper nos transmite este real em
suas telas, volto-me agora para aquilo que ele retrata. As cenas pintadas por Hopper têm sua tônica no cotidiano da vida urbana, nos
afazeres com os quais lidamos em nossas vidas, o que as torna, em
um primeiro momento, bastante familiares. Entretanto, há nelas algo
que passa por um estranhamento, evidenciando algo que escapa e que
nos toca, algo que, nos diria Freud (1919/1990b, p. 306) pôde vir à
tona do inconsciente.
Estas situações, comuns a todos nós, se mostram enigmáticas
por destacar certa imobilidade em suas personagens, quando elas
estão presentes, ou mesmo nas paisagens. Podemos dizer que há
nestas cenas pintadas em cores tão densas, por vezes cortadas por
fortes feixes de luz, um silêncio que nos inunda, silêncio real e
impactante. Não é que a fala nunca esteja ali presente ou indicada.
Quadros como Chop Suey (1929), Hotel Lobby (1943), Conference at night (1949), Four lane road (1956), e Summer evening
(1947) nos apresentam situações nas quais conversas estão sendo,
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a ter para o sujeito função de causa de desejo.
Hopper, solidão e psicanálise
Há nas obras de Hopper, como anteriormente destacado, um
vazio marcante, seja pelo silêncio em suas personagens, seja pelas
paisagens amplas e com poucos elementos, ou pelas construções
arquitetônicas apresentadas sozinhas em meio de elementos da natureza. Por estas características, ao nos deparamos com sua pintura,
é usual sermos tocados pela solidão que este pintor consegue nos
transmitir.
O que estudiosos de Hopper destacam em seus quadros como
representações da “solidão da situação humana na modernidade”
(Schmied, op. cit., p. 15) - como “formas da isolação e impersonalidade humana que acompanhou o [...] invencível progresso
e expansão” (Marker, op. cit., p. 6), ou como “retratos de uma
civilização moderna cujos efeitos são a solidão e a incomunicabilidade” - à luz da psicanálise é possível propor que se trata de
uma condição própria do humano.
De certa forma, esta ligação entre a obra de Hopper e a
nossa condição enquanto sujeitos é realçada também pelos autores
não-psicanalistas a quem recorremos neste estudo. Lyons (Op. cit.:
XIV) considera que “a habilidade de Hopper em nos assegurar
que nós não estamos sozinhos em nossa solidão, e que talvez possamos encontrar ainda redenção na luz do sol, pode ser capaz de
explicar o tremendo, tantas vezes indefinível, apelo que sua arte
ainda nos reserva”.
A chave para o entendimento da solidão pela perspectiva
psicanalítica encontra-se na base da constituição do sujeito. Entre
o bebê e o outro será estabelecida uma relação através da qual,
pelos cuidados da mãe ou daquele que ocupará esse lugar para o
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artigo
mento em que algo desconhecido está prestes a acontecer, como
em Room in New York, e o momento que parece congelado, como
em Nighthawks”. Podemos caminhar mais nesta idéia e dizer que
Hopper captura aquilo que, em nosso cotidiano, nos surpreende,
que destoa e escapa ao sentido. Na experiência aparentemente
mais corriqueira, ele consegue capturar o real, nos chamando a
nos colocarmos ali como sujeitos, em nossas posições singulares.
Há, assim, um não saber que se demonstra nestas cenas
aparentemente comuns, criando um fino limiar entre o familiar e o
estranho, tal qual Freud (1919/1990b, p. 306) destacou. Com isto,
somos colocados exatamente neste limite ao contemplarmos o que
sua obra nos oferece, velando e revelando a estrutura de nosso desejo
e de nós mesmos.
Laurence Debecque-Michel (1992, p. 7) também ressalta
esta peculiaridade da obra de Hopper, definindo-a como um paradoxo que, nas palavras do autor, consiste em passar “da extrema
banalidade do sujeito à inquietante estranheza que se liberta,
impressão que não resulta de uma clínica fria e distanciada sobre
a solidão existencial de uma civilização, mas de uma maneira
de tratar o espaço”. Mais do que uma representação da solidão,
Hopper, por seu estilo e maneira peculiar de pintar e lidar com o
espaço e com os elementos que compõem suas obras, nos passa
uma tensão que nos faz perceber o furo que há em toda imagem,
em toda cena, e que remete ao vazio de onde emergimos.
O ordinário, em suas telas, se torna extraordinário, como nos
aponta Debrah Lyons (1995: XI) ao dizer que nelas encontramos
as “experiências ordinárias de nossas vidas individuais elevadas
a algo épico e atemporal”. Diante desta afirmativa, não podemos
deixar de lembrar que Lacan (1962-1963/1997, p. 140-141) afirma
que na arte, pela sublimação, o objeto é elevado “à dignidade de
Coisa”, deixando de ser tomado pelo plano imaginário, e passando
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O primeiro, o outro com a minúsculo, é o outro
imaginário, a alteridade em espelho, que nos
faz depender da forma de nosso semelhante.
O segundo, o Outro absoluto, é aquele ao qual
nós nos dirigimos para além desse semelhante,
aquele que somos forçados a admitir para além
da relação da miragem, aquele que aceita ou
que se recusa na nossa presença, aquele que na
ocasião nos engana, aquele ao qual sempre nos
endereçamos (1955-1956/2002, p. 286-287).
Esta temática, em Lacan (1949/1998, p. 97), ganhará destaque pelo estudo do Estágio do Espelho. O autor sustenta que a
identificação com uma imagem unificada do corpo, antes sentido
como fragmentado, se dará neste processo quando do encontro do
bebê, entre os 6 e 18 meses de vida, com um espelho, contando
com a confirmação do olhar e da fala do adulto cuidador. Ocorrerá
a constituição do eu, e do não-eu, sobrando um resto, o objeto a,
que fará com que a imagem nunca seja completa ou totalizante
e que o bebê possa, assim, se constituir como sujeito falante e
desejante, que será marcado pelo movimento de reencontrar este
objeto que lhe falta.
Com o outro, o sujeito estabelecerá um laço que passará
pelo imaginário e pela função do eu, e haverá em ambos um mesmo
vazio constitutivo, tendo em vista que se encontram no mesmo
campo. Já entre sujeito e Outro o laço será de outra ordem, apontando para o ponto de furo real que organiza estes dois campos
distintos. O sujeito se endereçará e dirigirá ao Outro visando nele
encontrar aquilo que supostamente o completaria, o objeto desde
sempre perdido, porém, por também haver um vazio no Outro e pela
impossibilidade de se obter tal objeto, o que o sujeito encontrará
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infans, este poderá passar a sujeito do inconsciente, sendo também
estabelecida a função do eu.
Na obra freudiana, apesar de não encontrarmos considerações
especificamente tratando do tema da solidão, temos importantes
pistas para refletirmos sobre ele. Ao estudar a relação entre mãe e
bebê, a partir da delimitação do Complexo de Nebenmensch (próximo ou semelhante), Freud (1950[1895]/1990, p. 447) aborda
a instauração do psiquismo através do contato deste com o outro
e seu desejo. Diante do desamparo estrutural do bebê, o próximo
assegurador, a mãe ou algum outro adulto que poderá ocupar esta
função, interpretará seus movimentos como apelo e demanda, lhe
oferecendo algo, por uma ação específica, para sua satisfação.
É o que Freud (Ibid.: 433) denominou de experiência alucinatória de satisfação. Neste ato, ocorrerá a inscrição de traços
e marcas (sonoras, visuais, perceptivas) através da incidência das
representações de desejo (Wunschvortellungen) do outro cuidador,
sustentados pela fala e pelo olhar deste e pela ação do bebê de
estabelecer e manter este laço.
Haverá, ainda, a constituição da realidade psíquica pela
introjeção do que é prazeroso e familiar e pela expulsão do que é
estranho e hostil, ou seja, das Ding, o objeto absoluto. Simultaneamente, tem-se a delimitação de sujeito, objeto, outro, e, podemos
dizer com Lacan, (1964/1998, p. 99), Outro, como alteridade
radical. Na psicanálise lacaniana, Outro e sujeito são pensados
de forma moebiana, em uma circularidade (Ibid., p. 196) que,
entretanto, é assimétrica.
Há, portanto, já em Freud e mais explicitamente em Lacan, a
distinção entre o semelhante e o campo a partir do qual tanto este
quando o sujeito se constituem. Lacan os denominará de outro e
Outro, uma vez que:
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sujeito através da reprodução, pela linguagem, da situação vivida.
Ao mesmo tempo, ele nos oferece uma forma de entender
que, ao introjetar a falta, a ausência que o corte da separação
marca, o sujeito poderá alternar esta ausência com a presença
do outro e, assim, não congelar em sua solidão e sua condição
de sujeito dividido. Mais que isso, essa falta, por ser o vazio de
das Ding, perdido para que um sujeito pudesse advir, poderá ser
contornada pulsionalmente como no caso da sublimação, fazendo
com que o sujeito possa se endereçar ao Outro.
Cabe destacar que a sublimação em Lacan não é apenas
um destino pulsional que explica as criações artísticas, ela é uma
condição fundamental para todos os sujeitos. Isto uma vez que a
sublimação, “ao produzir-se no lugar da Coisa, que também é o da
pulsão de morte, [...] manifesta a própria estrutura do desejo, que é
movimento enquanto tal, em que o desejo é sempre desejo de ‘outra
coisa’”, como nos diz a psicanalista Doris Rinaldi (1996: 123).
Se pensarmos, portanto, a solidão com estas coordenadas,
perceberemos que ela é uma condição estrutural de nós humanos,
associada ao desamparo e mal-estar sobre os quais Freud nos fala,
e que Lacan nos aponta ao dizer de um vazio na constituição do
sujeito. É por este vazio que fazemos laço com nossos semelhantes
e nos dirigimos ao Outro. Diante dele, podemos dar diferentes
respostas, o que diferenciaria, por exemplo, uma solidão marcada
por uma angústia e pelo sofrimento de perda, como nos casos de
depressão, ou uma solidão que não passa por estes eixos de tristeza
e desolamento, como em grande parte da obra de Hopper.
Proponho que, na pintura de Hopper, o que se evidencia é
uma solidão esvaziada de sentidos, uma solidão que passa por uma
experiência singular e solitária do sujeito diante do real que, entretanto, não o impossibilita de investir libidinalmente em objetos e
fazer vínculos com os demais sujeitos. Hopper oferece ao nosso
olhar o vazio característico de nossa condição humana, e, ao nos
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artigo
será a sua própria divisão.
Freud (1950[1985]/1990, p. 431) nos fala de um desamparo
estrutural e de um mal-estar constitutivo que marca a condição do
sujeito (Freud, 1930[1929]/1990: 160), efeitos tanto do recalque
originário quanto do processo de castração. É preciso, com isso,
estabelecer um corte entre o bebê e a mãe para que o sujeito possa
surgir, o que é traumático para este.
Ao separar-se do Outro, o sujeito encontrar-se-á em um
estado de solidão radical, precisando estabelecer uma forma de
elaborar esta falta, ainda que não de modo completo e definitivo,
para poder fazer laços com os outros sujeitos. Ao trazer considerações sobre a repetição da experiência traumática da separação
na brincadeira do fort-da de seu pequeno neto de 18 meses de
idade, Freud (1920/2006, p. 141-142) apresenta um modelo para
pensarmos como ocorre a elaboração de algo doloroso para um
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encontramos com suas telas, a solidão de suas cenas e personagens
nos aponta para este vazio de uma maneira peculiar, nos chamando
a surgir como sujeitos, tocados por habitar em nós uma solidão. E
se digo “uma” e não “a” solidão é devido ao fato de que, a partir
deste ponto estrutural em nós, cada um dará sentidos e tecerá histórias próprias, a partir de nossas posições singulares.
A solidão que encontramos na obra de Hopper é, de fato a
nossa própria, como também afirma Debecque-Michel:
Hopper não procura fazer esquecer que a pintura
é, igual ao teatro, um artifício, uma reconstrução, um mise en scène de elementos sobretudo
subjetivos. O sentimento de solidão que atribuímos existir em seus personagens é na maior
parte do tempo apenas o nosso, nós que somos
espectadores de uma peça aparentemente
simples e familiar, mas que não demora em
se mostrar estranha e impenetrável. O espaço
sutilmente distorcido ou contraditório que
temos sob os olhos pode apenas nos deixar a
meio caminho, em uma apreensão perturbada
do tempo e do espaço, e em uma tensão que
se aproxima à do desejo(Op. cit., p. 41-42)
Certa vez, Hopper foi perguntado pelo escritor Brian
O’Doherty sobre o que ele estaria procurando em seus quadros,
mais especificamente naqueles fortemente marcados por um vazio,
como em Sun in an empty room, de 1963. Em resposta, Hopper
(apud Goddrich, op. cit.: 151) disse: “I’m looking after me” (Estou me procurando). Podemos, com esta frase, pensar, assim, que,
diante da pintura de Hopper, nos é possível ter a experiência de
* Psicanalista; Doutora em Teoria Psicanalítica/UFRJ.
Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 233-257, 2007
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234
Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 233-257, 2007
encontrar mais do que esperávamos, e surgir, ainda que pontualmente, como sujeito do inconsciente, com tudo o que isso implica;
ou seja, como nossa divisão, nosso desejo, nosso vazio, e, também,
nossa solidão.
Tramitação:
Recebido em: 26.06.2007
Aprovado em: 15.08.2007
Renata Mattos de Azevedo
Rua Tamoios, 200.
São Francisco – Niterói – RJ
24360-380
fone (21) 2710-0804
e-mail: [email protected]
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235
Suelena Werneck Pereira
Dominação e crueldade: articulações e distinções
Instinct to master and cruelty: articulations and distinctions
Suelena Werneck Pereira*
Resumo:
O objetivo desse ensaio é o de trabalhar as articulações,
aproximações e diferenças entre os campos da pulsão de
dominação e da qualidade humana da crueldade e seu estado
afetivo. Tomando a pulsão de morte como fio condutor e o
texto freudiano como o território a ser percorrido, procuramos entender de que forma os dois registros teóricos se
apresentam e se de fato podemos articulá-los.
Palavras-chave: Pulsão de dominação, pulsão de morte,
intricação das pulsões, crueldade.
Abstract:
The purpose of this essay is to explore the articulations,
approximations and differences that may exist between the
register of the instinct to master and the human quality
of cruelty and its affective state. Considering the death
instinct as a guiding line and the Freudian text as the
territory to be examined, we tried to understand in which
way the two theoretical fields are presented and if one can
effectively articulate them.
Key-words: Instinct to master, death instinct, fusion of he
instincts, cruelty.
artigo
236
Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 233-257, 2007
artigo
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1997. 397 p.
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237
Suelena Werneck Pereira
O termo usado por Freud evoca sempre alguma violência e refere-se
a tomar um objeto externo para si à força. Die macht, em alemão,
raiz do termo adotado, denota o poder, o império, implicando a
idéia de apropriação pela força. A diferença semântica entre dominação e domínio fica mais patente em alemão: domínio está
ligado ao verbo bewältigen, usado para designar o controle que o
sujeito tem sobre as próprias capacidades ou tendências internas.
Bewältigung, traduzido por maîtrise, em francês, designa o fato de
alguém se tornar senhor de uma excitação, seja ela pulsional, seja
de fonte externa. Podemos então dizer que se dominação dirige-se
sempre a um objeto externo ao sujeito, domínio serve para falar
do si-mesmo-próprio.
A questão da tradução também se fez notar em relação à dominação; em francês, Bemächtigungstrieb é geralmente traduzida
por emprise, relacionada a entreprendre, que significa, originariamente, pegar com a mão, agarrar. Da mesma forma que o vocábulo
em português, tem também o sentido de autoridade, de império,
influência, ascendência. Há três dimensões semânticas do termo
emprise; uma delas, e a que diz respeito mais diretamente àquilo
que pretendemos trabalhar, e também a mais antiga, evoca a idéia
de captura, de presa ou ainda de arresto. Em linguagem jurídica,
designava a ação de tomar terrenos por expropriação, resultando de
um atentado contra a propriedade privada. No nível interpessoal,
tratar-se-ia de uma ação de apropriação por ‘des-possessão’ do
outro. Um confisco, uma violência infligida e suportada, que traz
prejuízo ao outro, que assim vê reduzida sua liberdade.
O Vocabulário de Psicanálise, de 1967, traz a primeira
reflexão moderna sobre o termo, marcando seu reaparecimento
Idem, 1915, p. 115.
Idem, 1920, p. 31.
5
DERRIDA, 2000, p. 48.
6
Ibid, p. 16.
3
4
238
Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 233-257, 2007
artigo
Dominação e crueldade: articulações e distinções
Instinct to matter and cruelty: articulations and distinctions
Suelena Werneck Pereira
Curioso o destino que o conceito de pulsão de dominação
teve no corpo da teoria psicanalítica. A crueldade, como expressão
de um estado afetivo do homem, como uma sua característica e
capacidade, ou mesmo condição, aparece entrelaçada com o campo
da dominação e do domínio; crueldade e pulsão de dominação estão
sempre muito próximas no registro da metapsicologia.
Sabemos que tanto domínio quanto dominação derivam do
verbo dominar, que significa ter autoridade ou poder sobre, assim
como conter, reprimir. Dominar, por sua vez, se relaciona com a
idéia de senhor, de dono. Em português, ‘dominação’ e ‘domínio’
são praticamente sinônimos e apontam para o exercício do poder
sobre indivíduos e grupos. Dominar também aceita o sentido
figurado de apossar-se moral e psicologicamente de alguém, no
contexto de se apoderar de um outro.
O termo que Freud usou para designar aquilo que em
português convencionou-se chamar de pulsão de dominação,
Bemächtigungstrieb, talvez fosse mais bem traduzido por pulsão
de apoderamento, já que o verbo [sich] bemächtigen, reflexivo,
significa apoderar-se de. A idéia de poder está implícita no verbo
dominar e acaba-se por adotar o termo cujo uso é o mais freqüente.
DOREY, 1981, p. 113.
DENIS, 1997, p. 26.
9
BERGERET, 2000, p. 25.
7
8
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239
Suelena Werneck Pereira
sobretudo como um meio que recebeu o encargo de dominar excitações que, em caso contrário, provocariam sensações penosas ou
afetos patogênicos” 2 . Constatamos que o verbo bewältigen é uma
palavra do mesmo grupo semântico de Gewalt, violência, força.
Uma situação fora de controle, uma vez dominada {bewältigt},
pode sempre retornar ao estado anterior, o domínio não implica um
controle total e completo. Em Pulsões e destinos de pulsão, Freud
escreve que podemos atribuir “ao sistema nervoso o encargo (dito
em termos gerais) de dominar os estímulos {Reizbewältigen}” 3.
Dentro do mesmo enfoque, Freud escreve, em Além do princípio
de prazer, que os sonhos da neurose traumática “tentam recuperar
o domínio sobre o estímulo por meio de um desenvolvimento de
angústia”. 4 Até esse momento, prossegue, o aparato anímico teria
a tarefa prévia de dominar ou ligar a excitação, confirmando a idéia
de que dominar os estímulos é ligá-los.
Segundo Derrida, existe, indissociável do conceito de Bewältigung, que ele traduz como exercício do poder, da dominação
ou da posse, movimento de apropriação, o conceito de pulsão de
poder, isto é, da habilitação, aquilo que está por trás do ‘eu posso’.
Essa pulsão de poder anunciaria, sem dúvida, um dos lugares de
articulação do discurso psicanalítico freudiano com as questões
jurídicas e políticas em geral 5.
Apesar de os dois termos em questão serem praticamente
sinônimos na língua portuguesa, consideramos que existe uma
analogia e uma diferença entre dominação do objeto – à qual diz
respeito especificamente a pulsão de dominação – e domínio da
excitação. No mesmo texto acima citado, o Além do princípio de
prazer, Freud, para explicar a repetição da brincadeira infantil do
fort-da, assim como os sonhos da neurose traumática, sugere que
podemos atribuir “esse afã a uma pulsão de dominação, que atuaria com independência de a lembrança em si mesma ser prazerosa
240
Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 233-257, 2007
artigo
na metapsicologia psicanalítica. Mas é somente em 1981, com o
número 24 da Nouvelle Revue de Psychanalyse, que o interesse em
torno do conceito é definitivamente relançado. Por que será que
a pulsão de dominação caiu no esquecimento, em um verdadeiro
ostracismo teórico?
Alguns autores consideram que o conceito é ambíguo e
encontra-se em um impasse no plano conceitual: essas características seriam devidas ao fato de Freud ter apresentado a pulsão
de dominação em três tempos e em três registros teóricos: no primeiro, a dominação seria a finalidade de uma pulsão específica,
não-sexual; no segundo, vincula-a ao sadomasoquismo; no terceiro, a dominação seria uma expressão da pulsão de morte. Antes
do advento da pulsão de morte no campo conceitual, as pulsões
sádicas se alinhavam confortavelmente entre as pulsões do eu, se
aproximando das pulsões de dominação sem propósito libidinal.
O fato de alguém se assenhorear da excitação corresponde
ao fato de ligá-la psiquicamente. Essa função de dominar o afluxo
de energia que chega ao aparelho psíquico, ligando a energia até
então em estado livre, é uma tarefa primordial do aparelho e está
em um além do princípio do prazer. Constitui uma atividade do
aparelho que, mesmo sem ser contraditória com o princípio de
prazer, é anterior e independente dele. Essa função opera como
um ato preparatório ao exercício do princípio de prazer.
Verificamos que o termo Bewältigung aparece tão cedo
quanto em um texto de 1895, sob sua forma verbal, referindo-se
à prática do coitus reservatus, fato que “influencia perturbando a
prontidão para a relação sexual, pois introduz outra tarefa psíquica,
uma tarefa que distrai, junto com a de dominar {bewältigen} o afeto
sexual” 1. No artigo sobre o narcisismo, encontramos a mesma idéia
no trecho em que se lê que “entendemos nosso aparato anímico
10
FREUD, 1905, p. 175.
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Suelena Werneck Pereira
prazer. Até 1920, a noção apontava para uma pulsão autônoma,
não-sexual, apenas secundariamente ligada à sexualidade, sempre
dirigida para o exterior, relacionada com a agressividade e que
constituiria o único elemento presente na crueldade originária
infantil. Seu objetivo é o de apoderar-se dos objetos. Freud considerava que com o desenvolvimento infantil, a pulsão de dominação
se misturava com as pulsões sexuais, dando a estas certa parcela
de agressividade. Ao examinar as origens do sadismo, aponta para
a dominação como um componente agressivo da pulsão sexual.
Este componente não é sádico em si mesmo: acontece que, para
assegurar um domínio – Überwältigung - do objeto, um simples
pedido não é suficiente. Não basta a demanda, não são bastantes
o recrutamento, o aliciamento: é preciso certa força para agarrar
o objeto, mantê-lo preso, para que ele possa servir à satisfação.
Satisfação de quê? Nesse momento da teoria, à satisfação da função vital. É um despotismo no qual Freud vê uma necessidade
biológica. Desse modo, o conceito apresentaria uma posição que
podemos considerar como instável, entre pulsão sexual e pulsão de
autoconservação. É como se a dominação, sendo uma qualidade do
sexual, visasse impor as soluções da autoconservação à turbulência
do sexual. Freud sublinha uma característica: a dominação é um
ato sem má intenção. A própria crueldade, que ele vincula estreitamente com a dominação, não é, inicialmente, uma disposição
má, ela não busca o sofrimento do outro. Isso só tem início com
o sadismo, onde finalmente se inaugura o prazer com a maldade,
com o fazer sofrer o objeto.
Em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, onde a pulsão de dominação é pela primeira vez mencionada, a gênese da
crueldade infantil é reconduzida a uma pulsão de dominação, sem
11
Ibid, p. 144.
242
Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 233-257, 2007
artigo
ou não” 6. A dominação do objeto, no caso, seria correspondente
à ligação entre a recordação traumática e a energia que a investe,
no sentido de domínio que acabamos de mencionar.
Trabalhamos com a idéia de ser a pulsão de dominação um
dos derivados das pulsões de morte; o termo designa uma modalidade e uma proporcionalidade de mescla pulsional específicas. Visa
sempre um objeto e sua meta é ditada pela presença inequívoca
das pulsões de morte, o que lhe dá seu colorido característico.
Apresenta-se sob diversas formas, entre elas a necessidade de
controle, as condutas tirânicas, a vontade de poder. Há grandes
dificuldades em circunscrever o conceito e os enfoques variam
grandemente. Alguns autores consideram o maior problema a
tendência a aproximar a pulsão de dominação à ação da pulsão
de morte, o que tornaria o conceito dificilmente utilizável7; outros
chegam a propor que, para fugir das ambigüidades e escapar, ao
mesmo tempo de um enfoque puramente fenomenológico da questão, devemos dissociar inteiramente a pulsão de dominação de sua
referência à pulsão de morte8. Temos ainda outra posição, a que
apresenta a pulsão de dominação como uma pulsão completamente
à parte, tanto da sexualidade como da pulsão de morte, como uma
das pulsões fundamentais9.
Como toda pulsão, a de dominação fala de uma atividade,
de um pôr em movimento uma tendência do aparelho, de caráter
propriamente pulsional e esforçante. Freud efetivamente liga, de
forma estreita, dominação e agressividade. Não deu a esse conceito
o desenvolvimento que mereceria uma noção central de sua teoria;
tampouco seus discípulos mais próximos o elaboraram suficientemente. Poderia parecer que o destino da noção de pulsão de dominação estaria definitivamente selado: ficaria em estado de esboço.
A noção de dominação tem, em Freud, basicamente duas
concepções, uma antes e outra depois de Além do princípio de
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243
Suelena Werneck Pereira
época anterior à genitalidade.
Compreende que a pulsão de dominação, em sua essência
pulsional, é irrefreável, não conhece inibição por parte de uma
capacidade de sentir pena ou comiseração, sendo violenta e até
destrutiva, mesmo não tendo a destruição como meta primeira. A
pulsão se apresentaria, então, em sua totalidade. Só depois, por
identificação com o sofrimento do outro – tese semelhante à apresentada como explicação à aparentemente absurda meta pulsional
de obter prazer infligindo sadicamente dor ao objeto -, o sujeito
poderia colocar limites à sua crueldade. Nesse ponto de sua formulação teórica, postulava que as moções cruéis fluíam de fontes na
realidade independentes da sexualidade, mas que ambas poderiam
entrar em conexão precocemente devido à proximidade de suas
origens. “Que a crueldade e a pulsão sexual estão intimamente
correlacionadas é-nos ensinado, acima de qualquer dúvida, pela história da civilização humana” 11. Afirma, entretanto, que a agressão
mesclada à pulsão sexual seria um resto de desejos canibalísticos,
com uma co-participação do aparelho de dominação que atenderia
à satisfação de outra grande necessidade, ontogeneticamente mais
antiga, ou seja, de uma função vital.
Ainda nos Três ensaios, a musculatura é indicada como
suporte da pulsão de dominação. O apoderar-se do objeto pode
ocorrer tomando-se o objeto com as mãos ou mesmo incorporandoo. Esta mão, parte do corpo encarregada da dominação, já encerra,
nas atividades masturbatórias da infância, um objeto que é sexual,
o órgão erógeno. Mesmo que originariamente a dominação tenha
se destacado da meta sexual, com ela se envolve rapidamente. A
ação da mão faz prever a tomada do objeto sexual. Já podemos
observar o vínculo entre a pulsão de dominação e a polaridade
masculino-feminino e, sobretudo, ao seu antecedente pré-genital:
a questão da atividade e da passividade. As diferenças de conduta
se anexam às diferenças sexuais. Nesta postulação da polaridade
atividade/passividade para a segunda fase pré-genital, a sádico244
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artigo
a finalidade de infligir dor ao objeto. Na verdade, o sofrimento do
outro não era simplesmente levado em conta. Já que este não é
visado, podemos deduzir que a dominação é uma atitude anterior
tanto ao surgimento da piedade quanto do sadismo propriamente
dito, sendo, nessa acepção, independente da sexualidade.
A dor do outro, entretanto, nada impede. Apesar de o sujeito
ignorar o mal, seus atos são sem piedade – sentimento que ele
desconhece – e sem pudor. Aquilo que chamamos crueldade é,
na verdade, aos olhos do outro, o efeito de uma indiferença da
pulsão de dominação à visão do sofrimento do objeto. A crueldade
se nomeia pelo olhar alheio: ela nada mais é que a constatação
objetiva dos efeitos da pulsão de dominação sobre o objeto mas
não é, ainda, um modo de gozo sexual. Desse modo, a pulsão de
dominação não pode ser distinguida das pulsões de autoconservação: no mínimo, poderá se alinhar entre elas. Ela assegura, ao
dominar e manter o objeto, para dele dispor, o desempenho de
uma função vital; esta é uma função que não possui uma ligação
intrínseca com a sexualidade, podendo, entretanto, ser colocada
a serviço desta. A crueldade decorre do fato de a pulsão de dominação não parar diante da visão da dor causada ao objeto; é
um momento sem piedade por pura ignorância da idéia de ‘mal’.
Poderíamos sugerir a seguinte progressão: dominação sem gozo
mas também sem limites – crueldade como efeito, uma constatação objetiva dos fatos, mas ainda sem prazer sexual – sadismo,
onde o prazer é obtido aliado à maldade e ao sofrimento infligido
ao objeto. Na parte 4 do segundo dos Três ensaios, Freud escreve
que se desenvolvem, na criança, independentemente das outras
práticas sexuais ligadas às zonas erógenas, os componentes cruéis
da pulsão sexual. A capacidade de se compadecer se desenvolve
mais tarde e a crueldade é perfeitamente natural no caráter infantil10.
Entretanto, supõe que a moção cruel surja na vida sexual em uma
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ao serviço da função sexual. Desse modo, não só a crueldade
aparece sexualizada como também a pulsão de dominação, em um
segundo tempo de sua teorização. Entretanto, o aspecto não-sexual
da dominação volta a ser apontado em Totem e tabu, também de
1913, onde se lê que o tabu, o toque físico proibido, não deve ser
entendido num sentido exclusivamente sexual, mas sim no sentido
mais geral de atacar, de obter o controle, de auto-afirmar-se.
Desde 1910, no trabalho sobre Leonardo da Vinci, Freud em
uma discussão acerca da sublimação, toma como ponto de partida a questão da investigação sexual infantil e a pulsão de saber,
vista como correspondendo, já ali, por um lado a uma maneira
sublimada da pulsão de dominação, e por outro, trabalhando com
a energia da pulsão de ver. Tomando a teoria ali exposta, vemos
que a pulsão de saber está indexada à investigação sexual infantil.
Esta, conduzida pela pulsão de investigar, tivera seus afetos domesticados, submetidos, a paixão se transformara em esforço de
saber. Entretanto, pulsão de saber não é o mesmo que pulsão de
investigar: é antes de onde deriva o próprio investigar. Como já
mencionamos, a pulsão de saber não é um componente pulsional
subordinado exclusivamente à sexualidade: implica um modo sublimado da dominação, por sua vez originariamente não-sexual,
e que trabalharia reforçada pela energia do desejo de ver, este já
definitivamente sexual. Lembramos que o que tínhamos na época
como não-sexual era o campo da autoconservação. Essas pulsões,
logo chamadas de pulsões do eu, possuíam, conforme a teoria, uma
energia própria não-sexual, o interesse: emanavam do eu e atendiam
às necessidades de manutenção do indivíduo. Freud também postulava que o ódio, sentimento humano inequívoco, mas de gênese
enigmática, teria origem na luta que o eu travava para escapar das
ameaças do mundo externo, hostil, prodigador de estímulos: essa
luta era operada, inicialmente pela musculatura. Dessa luta deriva-
246
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artigo
anal, a atividade coincidiria com o sadismo e a passividade com o
erotismo anal. Atribui a cada uma das pulsões parciais correspondentes uma fonte distinta: a pulsão de dominação na musculatura
e o erotismo na mucosa anal. Assim constatamos que a relação
entre dominação e analidade desde cedo se encontra presente nas
elaborações de Freud.
Assim como a dominação é considerada como um componente da pulsão sexual que trabalha com relativa independência das
zonas erógenas e se volta para um objeto estranho ao eu, o mesmo
vale para outras pulsões parciais que, imediatamente, buscam um
objeto fora do próprio sujeito não sendo, desde o início, auto-eróticas: trata-se da pulsão de ver e de se exibir e da crueldade. Freud é
obrigado a admitir que, desde cedo, há, na criança, uma escolha de
objeto, com afetos poderosos. Este objeto é ‘produzido’ por essas
pulsões parciais, contingente que é, e estas não prescindem dele e
são objetais por ‘natureza’. Mesmo que inicialmente desprovidas
de uma meta sexual em si, são elas que apontam à sexualidade seus
objetos. Mais uma vez, e até esse momento, esse grupo de pulsões
se aproxima teoricamente das pulsões de autoconservação. Num
conjunto de textos contemporâneos aos primeiros acréscimos aos
Três ensaios, conhecidos como Contribuições à psicologia do
amor, Freud também atribui às pulsões de autoconservação a tarefa
de apontar os objetos às pulsões sexuais. Numa modificação aos
Três ensaios, de 1915, Freud, que antes afirmara que essas pulsões
– de ver, de se exibir e a crueldade – estavam fora da sexualidade,
agora as coloca fora apenas da genitalidade. A idéia do suporte
muscular para a pulsão de dominação é mantida e se reapresenta
diversas vezes.
Em um texto de 1913, A predisposição à neurose obsessiva,
Freud aproxima a pulsão de dominação, que ele denomina ‘comum’, da noção de sadismo, sobretudo quando ela é encontrada
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obtenção de prazer, na última a meta é a de apoderar-se do objeto,
mantê-lo para dele fazer uso, sem o objetivo de fazê-lo sofrer nem
extrair dessa atividade necessariamente um gozo. São as pulsões
de autoconservação as que apontam o objeto, o designando para as
pulsões sexuais, função atribuída, depois do advento da segunda
teoria pulsional, às pulsões derivadas das pulsões de morte. Para
sermos mais precisos, seria exatamente o sadismo aquele que abre
o caminho dos investimentos objetais, lançando em direção dos
objetos o primeiro amálgama das pulsões de morte e Eros, na tentativa de possibilitar a vida do eu. Nesse segundo tempo da teoria da
pulsão de dominação, esta, antes não-sexual, quando ao serviço da
sexualidade passaria a constituir o sadismo. Nessa acepção, a pulsão
de dominação se aproxima do conceito que virá a ser produzido, o
de pulsão de morte. As zonas erógenas são lugares designados como
passagens pelas funções vitais. O funcionamento vital, das pulsões
de autoconservação, é transposto, do interior, pela sexualidade que
insiste incansavelmente, senhor inexorável. A função vital exige
que o objeto seja capturado, que seja mantido nessa condição, e é
a pulsão de dominação a que desempenha essa tarefa, agarrando
o objeto para que seja consumido, sem fim sexual. Esse mesmo
objeto se tornará, pela subversão imposta pela sexualidade, por
esse transbordamento da sexualidade entendido como a noção de
apoio, o objeto sexual. Essa comunidade de tarefa é uma solução
da autoconservação imposta à turbulência do sexual. Dominar o
objeto com a finalidade de fazer cessar a fonte de estímulo é propriamente o papel primeiro da pulsão de dominação.
Depois de 1920, a questão de uma pulsão de dominação específica coloca-se, para Freud, de forma bem diferente: ele agora
a vincula à pulsão de morte, que lhe dá suporte e origem. A pulsão
de dominação acaba por perder sua característica inicial de autonomia e passa a ser considerada como um derivado das pulsões
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artigo
ria a pulsão de dominação, própria do eu. Já que a pulsão de saber
é aqui considerada como um derivado sublimado, intelectualizado
da pulsão de dominação, nos atrevemos a estender ao campo da
teoria a expressão popular que afirma que saber é poder.
Nesse momento teórico, o sadismo é compreendido como
derivando da pulsão não-sexual de estender a dominação sobre o
objeto, sem busca de prazer. Entre essa dominação, autoconservadora, de adaptação ao mundo externo, e o sadomasoquismo,
sexual, há uma relação de apoio e é desse sadomasoquismo sublimado que deriva a pulsão de saber, tendo percorrido o mesmo
caminho em direção oposta. A pulsão sexual de ver e ser visto se
apóia na atividade não-sexual de ver, uma das pulsões parciais
desde o início objetais. A atividade de ver comporta dois aspectos: um não-sexual, autoconservador, que serve à orientação do
sujeito no mundo, fora de qualquer questão de prazer sexual:
deriva do tocar, é uma extensão do tatear, explicação que se
liga à teoria freudiana da percepção, que fala de uma espécie
de emissão de tentáculos perceptivos que fazem uma coleta
de amostras no mundo externo, para melhor nele se situar. O
outro aspecto é sexual, num movimento de apoio no primeiro,
e, através da emergência de uma simbolização sexual, se torna
representativo, se torna a interiorização de uma cena. Podemos
então dizer que a pulsão de saber comporta dominação e energia da visão, uma e outra se reencontrando na interiorização.
Interiorizar é igualmente dominar, é ligar a uma representação.
Freud considera que, com respeito à pulsão de saber, podemos
dizer que ela pode substituir diretamente o sadismo no mecanismo
da neurose obsessiva já que ela é uma ramificação sublimada da
pulsão de dominação, presente de forma inconteste nesta afecção.
Entretanto, como sabemos, sadismo e pulsão de dominação diferem quanto às suas metas: se no primeiro o alvo primordial é a
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si-mesmo e assim desaparecer. O objeto perde seu estatuto e
passa a fazer parte do sujeito; o intuito é o de fazer desaparecer
o objeto, cujo surgimento foi motivo de angústia para o sujeito.
A dominação pressupõe um desenvolvimento, um progresso na
organização tanto libidinal quanto egóica. Mesmo na versão mais
atenuada protagonizada pela dominação, haverá o uso da força
e da violência, sinal inequívoco do predomínio das pulsões de
morte nessa mistura pulsional. Se a pulsão de dominação surge, no
texto, aliada à crueldade e ao sadismo, se desenvolve no sentido
do uso da força para a subjugação do objeto. O prazer está nisso,
com a conseqüente manutenção do objeto como tal, e não em sua
simples destruição. Testa-se a potência de conquistar, o poder
de submeter e para que isso se dê é preciso preservar o objeto.
Houve certo amansamento, certa domesticação das pulsões de
morte pela ação de Eros e aquelas passam a se satisfazer com
resultados menos brutais e imediatos.
A fase anal-sádica da evolução libidinal se caracteriza por
uma organização da libido sob o primado da zona erógena anal; a
relação de objeto está vinculada à função da defecação, com seu
duplo movimento expulsão/retenção. Aqui se afirma o sadomasoquismo em relação com o desenvolvimento do domínio muscular e
aqui se define a dominação do objeto, do exercício de poder sobre
ele, seu controle. O controle se apresenta, na vida, sob a forma
da avareza, da meticulosidade, da tentativa de tudo submeter, até
mesmo os sentimentos do objeto. O fator mais pregnante passa
a ser a retenção: se na oralidade todo prazer é contingente – a
atividade introjetiva, típica, só está limitada pelas possibilidades
de investimento libidinal, constituindo um universo aberto e sem
limites – e passivo, na analidade se constroem as bases das faculdades de controle, cujo protótipo seria a retenção das fezes visando
um prazer maior ao expulsá-las.
250
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artigo
de morte, uma atividade destas ao serviço da função sexual. A
gênese do sadismo é descrita como uma derivação, para o objeto,
da pulsão de morte que visa, num primeiro momento, destruir o
si-mesmo: a pulsão sádica passa a ser vista, inicialmente, como a
pulsão de morte repelida do eu, expulsa, para que o eu possa sobreviver. Assim, a meta do sadismo se apresenta mais vinculada
à destruição do que à dominação, permitindo uma distinção entre
esses derivados. Entretanto, lingüisticamente, o conceito mantémse no campo semântico da violência, de um ato violento, o de
apoderar-se pela força.
Na fase da organização oral da libido, a dominação no amor
coincide com a destruição do objeto, com seu aniquilamento, de
acordo com a idéia de que possuir, dominar o objeto é o mesmo
que incorporá-lo. Mais tarde, a pulsão sádica se separa e quando
se chega ao primado da genitalidade, assume a função de dominar
o objeto sexual, na medida em que o exige a realização do ato
sexual. Vista sob esse prisma, parece-nos que de fato a pulsão de
dominação aceita mais que uma definição, assumindo os revestimentos psíquicos da fase à qual está vinculada, assim perdendo
sua especificidade metapsicológica.
Entretanto, dominar o objeto não implica sempre destruí-lo;
na fase oral canibalística, não havia outra maneira de possuir o
objeto a não ser incorporando-o e isso significa sua destruição.
Mas não estamos propriamente no terreno da dominação que só
se apresentará mais tarde, mediante a habilidade de preensão, do
uso da musculatura, principalmente a das mãos, e da capacidade
de reter, antes ausente. O sentido próprio de dominar o objeto
está ausente na modalidade incorporativa; não se trata disso e
sim simplesmente de, devorando o objeto, fazê-lo penetrar no
12
DERRIDA, Op. cit., p. 14.
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Suelena Werneck Pereira
mais do aspecto propriamente sexual do sadismo. Sua sedução
assume o valor de uma fascinação, toda sua estratégia consiste
em hastear o desejo erótico que o caracteriza, ao mesmo tempo
em que tenta produzir no outro um desejo equivalente. O perverso
procura obter de seu parceiro a aquiescência à sua exigência, a
completa adesão às suas propostas, a resposta mais adequada à sua
demanda que faça emergir, no outro, um desejo complementar ao
seu. O outro, assim sugado, subtraído de seu desejo próprio, se vê
negado na própria singularidade de seu desejo, em sua alteridade.
O universo do obsessivo é totalitário: ele recorre à força,
à tirania, à subjugação. A pulsão de dominação se expressa nele
também como uma vontade de poder, o que faz dele um tirano. Esse
poder, o obsessivo o exerce através de um controle permanente e
repetidas intrusões no território do outro. Sob a dominância das
pulsões de morte, presentes de forma maciça na sua dominação,
o obsessivo pretende fixar, petrificar o que é vivo. No campo da
idealidade, pretende criar um mundo perfeito, sem falhas, que muito
se assemelha à quietude da morte. O domínio sobre o outro aparece
sempre que existe uma relação de autoridade. Ele precisa imperiosamente exercer uma dominação absoluta sobre o outro; esta
é uma questão de vida ou morte. Seu poder é, por isso, um poder
mortífero; o obsessivo vampiriza seu interlocutor no afã de tornar
quieta a turbulência da vida, capaz de imprevistos. Quando o outro
resiste, o obsessivo usa sua destrutividade, pura e simplesmente,
destrutividade essa que, mitigada, pretendia satisfazer-se na e com
a dominação. Há sempre uma ameaça de ‘nadificação’ do outro.
O essencial nesse movimento é a idéia de apropriação do
outro, com a conseqüente expropriação de seu desejo, uma ação
de embargo, de confisco da alteridade, bem no sentido arcaico
13
Ibid, p. 10.
252
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artigo
A fase oral se caracteriza por uma impotência: o sujeito está
privado não apenas de um prazer que possua uma qualidade específica como é afetado em sua integridade narcísica. No momento
do fortalecimento de seu aparelho motor e do controle, cada vez
mais apurado, de seus esfíncteres, a criança poderá obter prazer
com seu corpo, prazer que ela mesma proporciona, através do
movimento de retenção e de expulsão. O prazer anal tira suas
características precisamente do fato de que esta é uma área fechada e seria obtido de acordo a uma modalidade autônoma, em si
mesmo, e sem o auxílio de um outro. Isso põe fim à dependência
obrigatória, ao desvalimento completo. O controle do objeto vale
para o sujeito o restabelecimento da integridade narcísica que lhe
fora negada no estágio oral. O anal se coloca diante de seu objeto,
conquistando, assim, sua unicidade e também sua autonomia em
relação a este. Introduz, desse modo, entre ele mesmo e seu objeto, uma instância até então completamente desconsiderada pela
oralidade: a realidade. Ele não só se separa de seu objeto, que ele
tenta controlar, como se opõe a ele. Esse objeto já é simbólico,
precisa ser acompanhado da palavra. A pulsão de dominação já
está implicada na produção do simbólico ao se distinguir sujeito
de objeto, ao mantê-lo como tal e a sofrer com a possibilidade de
perdê-lo. À diferença da oralidade, que tenta fazer desaparecer o
objeto e assim apagar o desconforto da diferença e da separação,
a analidade lida com a falta e a ausência. Manter o objeto, e perto
de si, significa já poder considerar a distância e a falta.
A afecção típica dessa analidade retentiva é a neurose
obsessiva; a dominação é um de seus traços distintivos. A dominação do obsessivo se dá no registro do poder e na ordem do
dever, diferentemente da dominação do perverso, esta no registro
do erótico e usando como principal instrumento a sedução. A
dominação do perverso, por essa ênfase no erótico, se aproxima
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nidade, ruindade, maldade violenta. Etimologicamente, deriva do
latim crudos, palavra que designa o que contém sangue, sangrento, ensangüentado, cru; contempla também o sentido de algo que
não sofreu atenuação civilizatória, bárbaro, primitivo. Podemos
também definir cruel como aquele a quem apraz derramar sangue,
causar dor, aquele que gosta de fazer o mal, atormentar, maltratar.
A presença do prazer é uma constante nas definições de crueldade, aproximando-a do sentido do sadismo. Em alemão, a palavra
comumente usada é Grausamkeit e seu adjetivo, grausam.
Podemos vincular crueldade a sua ascendência latina, ou
seja, a uma história do sangue derramado, do crime de sangue;
ou fazê-la derivar de outras etimologias, em que o derramamento
de sangue não está implicado, como na palavra alemã, mas sim
o sentido do desejo de fazer ou de se fazer sofrer por sofrer, para
obter um prazer psíquico com o mal pelo mal, ou seja, para usufruir o mal radical. Em ambos os casos, a crueldade seria difícil
de se determinar ou delimitar, como nos ensina Derrida13. Podese cessar a crueldade sangrenta mas uma crueldade psíquica será
sempre suprida pela invenção de novos recursos: seria um estado
da alma. Ao recorrer à palavra Grausamkeit, Freud a reinscreve
numa lógica psicanalítica de pulsões de destruição, por sua vez
indissociáveis da pulsão de morte. A crueldade seria inerente ao
ethos, seu aparecimento é contíguo ao convívio com o outro, no
duro processo de domesticação das pulsões.
Em 1905, em seu texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud começa a circunscrever teoricamente o terreno da
crueldade, vinculando-a à pulsão de dominação. Além disso, destaca-se o fato de existir prazer na dor, na humilhação e na sujeição
infligidas ao outro. A crueldade, essa ‘pulsão’, assim como outras
14
15
NIETZSCHE, 1881/2, p. 354.
DERRIDA, 1981, p. 47.
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artigo
da palavra emprise, conforme mencionamos. O obsessivo não
suporta no outro qualquer singularidade ou qualquer manifestação
incontida de desejo erótico que o tome, por sua vez, como objeto:
isso significaria perder o controle, ficar inteiramente à mercê de
um desejo alheio. Diferentemente do sadomasoquismo, marcado pelo traço sexual, na obsessividade é como se não houvesse
uma satisfação de natureza libidinal marcando o movimento. O
ganho de prazer apresenta-se secundário, o prazer é subsidiário
da finalidade primeira, a de dominar. Podemos até considerar que
Eros participa, claramente, mas não sob a forma de uma ligação
libidinal das pulsões de morte; é como se fosse uma ação à parte,
desintricada, as duas tendências fundamentais agindo como que
separadamente. A dominação do obsessivo é de e para a morte,
uma morte destilada e invasiva. A ambivalência foi considerada
como um exemplo privilegiado da desintricação pulsional, até
mesmo de uma intricação que não se deu: na neurose obsessiva,
há forças contraditórias claramente em ação, o que aponta para sua
ambivalência essencial, sua dificuldade básica de integrar as moções amorosas com as destrutivas, estas de exagerada intensidade
e configuração ditada pela violenta regressão.
Derrida se pergunta sobre a existência de uma crueldade
inerente à pulsão de poder ou de dominação soberana, tradução
que propõe para a Bemächtigungstrieb, para além ou para aquém
dos princípios, de prazer e de realidade. Poderíamos pensar num
para além da própria pulsão de morte ou de dominação soberana,
um para além de uma crueldade, um para além que não teria nada
a ver nem com as pulsões nem com os princípios?12
A crueldade está associada, na língua corrente, a desuma-
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nação. Afirma Derrida que, assim como a polaridade conservação/
destruição cruel, a que opera entre amor e ódio não deve ser julgada eticamente, não deve ser avaliada em termos de ‘o bem ou
o mal’. Não temos por que avaliar a crueldade ou a soberania do
ponto de vista da ética e Freud não o faz. Seria incongruente se o
fizesse: tendo estabelecido que não existe vida sem a concorrência
das duas forças pulsionais antagonistas, a psicanálise não pode
nem deve condená-las. Temos que permanecer na neutralidade do
indecidível. Freud sempre afirmou que não pode existir qualquer
sentido em se pretender erradicar as pulsões de destruição, sem as
quais cessaria a própria vida.
Logo a seguir, nos anos de 1916 e 1917, a crueldade volta a ser
entendida como um transbordamento da pulsão de dominação. Depois
do surgimento da nova teoria pulsional e da nova tópica, passamos a
encontrar inúmeras vezes a palavra cruel aposta ao conceito de supereu,
como uma qualidade intrínseca a ele, explicável pelas condições de sua
gênese.
Talvez o aspecto mais brutal da crueldade seja o fato de
ela desumanizar suas vítimas antes de finalmente destruí-las. A
crueldade pode não levar à destruição do objeto mas está, indubitavelmente vinculada ao desejo de aniquilamento e ao ódio,
colocando-se, assim, entre as mais ruidosas expressões afetivas
das pulsões de morte.
Sabemos que Freud sempre insistiu em dizer que não leu
Nietzsche, pelo menos não o suficiente para por ele ser influenciado; entretanto, impossível não pensarmos no que o filósofo escreveu acerca da crueldade e encontrar analogias com o pensamento
freudiano. Nietzsche aponta para a convergência dos aspectos ditos
‘negativos’ do homem e da força {die Macht}, presente na raiz de
dominação. Considera que amor e crueldade não são contraditórios
e se encontram sempre coabitando nas melhores e mais firmes na-
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artigo
pulsões parciais, não prescinde nunca de um objeto. Inicialmente
independentes, crueldade e sexualidade rapidamente se articulam e
passam a atuar na vida sexual infantil. Conforme já mencionamos,
apesar de a dominação não ter como meta a dor e o sofrimento do
outro, a ausência da piedade na alma infantil faz com que a crueldade se exerça sem barreiras, de forma incontrolável. Portanto,
a crueldade infantil não está ligada, até esse momento da teoria,
nem à compaixão nem propriamente à obtenção de prazer; ela é
aquilo que é notado pelo outro no trajeto da satisfação da pulsão
de dominação. A crueldade é ajuizada por um outro, geralmente
um adulto, que percebe a atividade pulsional ligada à dominação
sob esse viés.
A livre expressão das moções cruéis vai sofrer impedimentos pela cultura, lê-se em Totem e tabu, de 1913. Entretanto, toda
vez que um grupo social suprime toda e qualquer crítica às ações
cruéis, recrudescem os atos de crueldade, de perfídia e de rudeza.
Há uma grande diferença entre os preceitos dos povos primitivos
e o cancelamento das amarras dos povos ditos civilizados: na segunda hipótese, vêm à tona sentimentos e ações que nem entre as
práticas dos primitivos são encontrados. Surge aqui o paradoxo
entre guerra e civilização, lei e violência. O ano é o de 1915 e em
um artigo sobre a guerra e a morte Freud assevera que um Estado
beligerante pratica o desrespeito, a crueldade, a destrutividade, a
mentira e a fraude. A violência e a crueldade, próprias do homem
e mantidas minimamente sob o controle em situações normais, se
vêm completamente liberadas pela situação da guerra, onde são
vistas como ações necessárias para manter a soberania de uma
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258
turezas14. A crueldade não tem nem admite contrário ou oposição,
não postula conflito nem antítese, não carecendo, portanto, de
nenhuma tentativa de superação.
Posição semelhante assume Derrida. Freud nos fez ver que o
mal existe na essência do homem sendo, portanto, diante da inelutabilidade de sua existência, irrealístico querer negá-lo ou suprimi-lo. Uma
pulsão de morte irredutível a qualquer outra força parece inseparável
daquilo que é, obscuramente, chamado de crueldade. Afirma que o
único discurso capaz de enfrentá-la, dimensioná-la e entendê-la é justamente o discurso psicanalítico. A psicanálise seria a disciplina que
poderia se voltar para o que a crueldade psíquica teria de mais próprio:
é o campo em que a psicanálise se desdobra. Salienta a ocorrência
da palavra crueldade sobretudo em certos textos políticos de Freud e
considera que também temos que situar, ao mesmo tempo que o tema
psicanalítico da soberania ou do domínio, o tema de uma pulsão de
dominação, de poder ou de posse. Derrida já havia mostrado como o
conceito de Bemächtigungstrieb tem um papel decisivo no texto
de 1920, “para além ou para aquém dos princípios, como princípio
dos princípios, sobretudo presente na ambivalência amor/ódio e no
desencadeamento da crueldade que leva à hipótese de um sadismo
originário”15. Convida-nos a pensar sobre esse horizonte, que lhe
parece próprio à psicanálise, o da crueldade psíquica, exangue
ou não necessariamente sangrenta, e sobre o prazer agudo tirado
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do mal na alma. A pulsão de morte é uma das forças que regem
o destino do homem; a pulsão de dominação é uma sua derivada,
uma das formas de Thanatos, e está infiltrada em suas organizações
e instituições sociais, como o Estado, e se exerce como crueldade
e soberania.
Freud aponta, em um texto sobre a guerra, de 1932, que não existe
direito sem poder, como atesta o primeiro título desse texto, antes do
definitivo Warum Krieg?: Recht und Gewalt, direito e violência.
Estabelece, assim, a diferença entre a força necessária para a criação
e a imposição da lei, e a crueldade, que pertence a outro domínio.
Como exercer de forma adequada o poder sem ceder à tentação da
crueldade? Compreendemos que violência e poder são duas faces
de uma mesma moeda, como duas instâncias que se articulam, em
constante dialética. A crueldade, entretanto, pertenceria a outro
campo, àquele que escapa a qualquer tentativa de regulação, de
contenção. A crueldade seria o lugar de uma radicalidade sem igual
e sem possibilidade de transformação, à diferença da violência, do
poder que dá lugar à lei.
Freud acredita na impossibilidade de se desenraizar o ódio
e as pulsões de destruição e Derrida reafirma ser uma ilusão acreditar numa erradicação possível das moções cruéis, das pulsões de
dominação ou da vontade de soberania. Postula a crença de Freud
no fato de a crueldade não possuir contrário: ela é ligada à essência
da vida e da vontade de poder. Sendo uma crueldade irredutível,
qualquer contrário apenas poderia se compor com ela. Eros é o
termo que pode se opor mesmo que a crueldade não tenha fim,
operando um desvio em seu destino. Freud justifica, pela vida, o
amor à vida.
* Mestre em Psicologia/UFRJ; Psicanalista, Membro Efetivo/SPCRJ; Professor
Adjunto/UGF;
Coordenadora e Docente da Especialização em Teoria e Clínica Psicanalítica/UGF.
1 Tanis, op.cit, p.28-28.
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Eliane Segabinazi Moreira
Suelena Werneck Pereira
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Tramitação:
Recebido em: 26.06.2007
Aprovado em: 15.08.2007
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Resenhas
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Eliane Segabinazi Moreira
de São Paulo, nos contempla com a riqueza e sensibilidade de sua Tese
de Doutoramento em Psicologia Clínica na PUC-SP - “Circuitos da
Solidão” – cuja publicação ainda inclui duas excelentes apresentações
de Renato Mezan, seu orientador, e Luís Cláudio Figueiredo. A força
motivadora para a pesquisa ampla e profunda da solidão originou-se
de sua vivência clínica com pacientes aludindo às mais diversas
expressões do sentimento de solidão e isolamento. O uso transferencial da solidão, o impacto contratransferencial no analista,
vão dimensionando a importância de se adentrar no estudo deste
tema, que parece apontar para o binômio subjetividade-solidão,
ainda carente de maior investigação psicanalítica. Tanis reconhece
a necessidade de um “espírito desconstrutivo e crítico” (p.27) nos
primeiros tempos deste trabalho, na medida em que analistas e
psicólogos muitas vezes, “reificavam seus conceitos ou universalizavam suas teorias indiscriminadamente” ( loc.cit.). Mas o autor
também advoga a necessidade, imperativa, de se estabelecer um
“diálogo fecundo”1 entre conceitos e modelos epistemológicos e a
prática clínica, em busca de se forjar identidades, especialmente
para a Psicanálise, que possam transcender o aspecto cosmético
usual das referências ao que se nomeia contemporaneidade. Nesta
obra, pois, propõe-nos a com ele sermos “visitador (es) de solidões”; a também caminharmos por diferentes contextos históricoculturais e aproveitarmos, no percurso, da riqueza da Literatura
– a seu ver, muito mais íntima com o campo da alma humana
- como guia a nos apresentar os circuitos visitados e a contribuir
com a Psicanálise.
Mesmo admitindo que temos, como analistas, muito ainda
a explorar metapsicologicamente a temática da solidão, Tanis
proporá transitarmos por alguns de seus circuitos – “circuitos da
solidão”- recuperando à lembrança alguns autores e conceitos
psicanalíticos. Ao longo desta obra passearemos por Freud, Klein,
264
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resenhas
Os circuitos da solidão
Bernardo Tanis
Eliane Segabinazi Moreira
Elas não sabem o que dizem. Virginia Woolf,
as mulheres e a psicanálise.
Maud Mannoni
Carla Pepe de Souza
Somos todos desatentos? O TDA/H e a
construção de bioidentidades
Rossano Cabral Lima
Maria Helena Lara de Vasconcellos
resenhas
Circuitos da Solidão: entre a clínica e a cultura
The ways of solitude: between clinical treatment and
culture
Bernardo Tanis. São Paulo: Casa do Psicólogo: FAPESP, 2003.
Eliane Segabinazi Moreira *
Bernardo Tanis, membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise
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Eliane Segabinazi Moreira
uma falta de ser, pois é pelo amor que os humanos se relacionam
uns com os outros” (Katz apud Tanis, p.34). Em contrapartida,
os eremitas propunham o afastamento da vida mundana. Outros
ainda, como os monges em suas abadias, tentariam conciliar o
isolamento que purifica e possibilita a meditação, com a oração em
conjunto. Gradativamente, observa Tanis, a Igreja apercebeu-se
da importância no controle do grau de afastamento, no sentido de
evitar diferentes riscos, inclusive as heresias. Não menos ambivalente foi o pensamento medieval acerca da solidão, que tanto podia
ser objeto de suspeita como de admiração. Um ganho inicial desta
viagem, certamente, é termos a solidão podendo ser contemplada
com distintos olhares, não aprisionada a uma única idéia de algo
ruim e aterrador. No abissal da solidão, era o eu encontrando o seu
refúgio – encontrando-se. Era o eu em sua intimidade. Este seria
o grande legado deixado à Modernidade: mergulhar na “solidão
[... no seu] papel germinativo, produtor de subjetivação”(p.37).
No começo da era da Modernidade vimos a ênfase no cultivo do
eu em detrimento dos laços vinculares, bem como a progressiva
separatividade entre as vidas pública e privada. Era o indivíduo
descobrindo o valor da liberdade e a possibilidade de expressála em quaisquer setores de sua vida; sua maneira pessoal de
relacionar-se com o Sagrado e de interpretar as palavras de Deus;
sua relação com o poder político tendo a Revolução Francesa e a
Independência Americana como dois grandes exemplos vão nos
confirmando a transformação evidente na sociedade. A sociedade
holística de até então, na qual o valor se centralizava no social, vai
sendo substituída por uma “[sociedade] na qual o indivíduo como
valor refunda o social” (p.19) – é o individualismo exacerbado,
liberal, que, explorado pelo capitalismo levará a Modernidade à sua
crise. Era a idéia de, pela ênfase no indivíduo e em sua liberdade,
2
3
“Jura Secreta”, de Sueli Costa e Abel Silva.
Birman, 2000, p. 119, apud Tanis, 164.
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resenhas
Winnicott, Dolto, em aspectos de suas teorias vinculados à solidão; seja com a noção de desamparo ou de separação, ausência,
narcisismo, identificação, dependência, capacidade de simbolização. O link que estabelece entre a teoria psicanalítica, os contos
literários do século XIX tão bem escolhidos e ilustrativos ( Edgar
Allan Poe, Machado de Assis, Guy de Maupassant, Henry James
e Franz Kafka) e a prática clínica enfatizará, mais ainda, a necessidade da abrangência de vários saberes e compreensões a fim
de tentarmos, guiados por sua pena, capturar o mais possível da
vastidão polissêmica da solidão.
Todas essas visitas vão se tornando muito interessantes,
porque o convite do autor nos é feito numa clareza de linguagem,
num roteiro tão bem planejado e exposto, que não há como recusálo. Também, em outros momentos, Tanis é pungente, como quando
afirma que “[a] solidão revisitada na perspectiva deste trabalho
recupera a história social encriptada no sujeito individual”(p. 10;
grifos meus), dando a cada um de nós um intenso sentimento de
pertencimento à humanidade, às suas criações e sofrimentos. É a
solidão acompanhada de “muitos caminhantes solitários; personagens literários, autores e pacientes”(p.21). A Antiguidade é o porto
do qual partimos com Tanis nesta aventura. Naquele momento
histórico a solidão era ainda atrelada à dimensão espacial: estar,
ou não, próximo à comunidade, à família. A ambivalência também
estava presente no estado de solidão que, para alguns, como os
gregos que viviam o exílio, o afastamento da polis era experimentado como punição; para outros, entretanto, como os hebreus, o
deserto era, ao contrário, o lugar bíblico da revelação divina. No
Cristianismo também não houve uma concepção homogênea da
solidão. Santo Agostinho a recusou: “a solidão é um negativo,
4
5
Winnicott, 1958.
Klein, 1940.
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vazio interior aparece como vivências alucinatórias, alteração de
consciência, perturbações têmporo-espaciais. “O Horla”, de Guy
de Maupassant já nos traz a experiência de um personagem frente
à emergência de algo sinistro a espreitá-lo: o perigo iminente e
inquietante que interrompe sua felicidade, e que nada mais é do
que o outro de si mesmo. Nessa temática do duplo – o estranho de
nós que nos habita e pode, a qualquer tempo, nos surpreender - o
eu é invadido por angústias psicóticas que vagam, transbordam e
desembocam no Horla, uma assombração que surge do interior do
eu. Tanis aqui aborda o eixo solidão-narcisismo. Na solidão abissal,
sem a mediação do outro, fechamo-nos e, em nossa potência narcísica, muitas vezes a maneira de encontrar alívio perante nossos
Horlas será pela via da morte como única saída de libertação desse
outro em nós que exerce sua saga assassina. À luz deste conto,
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garantir a igualdade de direitos a todos os Homens. Se a igualdade
traria o sentimento identitário, em contrapartida redundaria em crise
de solidão. Neste contexto cultural viria o Romantismo fazer suas
denúncias à Modernidade e mostrar que “a unicidade nos deixa
irremediavelmente sós”(p.54). É a solidão em sua pungência, mostrada “na nostalgia de uma comunhão verdadeiramente autêntica
com o outro”(loc.cit).
E assim, guiados por Tanis, vamos nos aproximando, como
herdeiros de tantas tensões históricas, do clima mais próximo àquele
em que hoje vivemos. É o homem alienado, isolado nas grandes
cidades que surgiram e ganharam novos projetos urbanísticos no
século XIX. Nosso homem é mais um na “multidão solitária”(p.49).
Neste momento Tanis se utiliza da Literatura para nos aproximar de
alguns eixos de solidões com os quais nós – analistas – convivemos
no dia-a-dia de nossos consultórios. “O homem na multidão”, de
Edgar Allan Poe, revela a “companhia ilusória do outro”(p.73) que
buscamos ao nos embrenharmos na massa humana. “O espelho”,
de Machado de Assis, nos coloca em contato com Jacobina, o
personagem ignorado até por seus familiares enquanto não ascende profissionalmente, mas, por outro lado, “[a nova condição de]
alferes elimin[a] o homem”(p.76)... Quando sozinho e sem o olhar
do outro para lhe confirmar a existência, procura-se no espelho.
Precisa ser olhado e ver-se olhado, mas em lugar de sua imagem
depara-se com o nada. Veste então a farda de alferes e somente
assim consegue encontrar o seu reflexo. Tanis utiliza-se da falta de
identidade de Jacobina para nos remeter à vivência adolescente
da carência identitária em sua necessidade de buscar-se em marcas concretas de pertencimento a grupos sociais. É o que nomeia
como sendo o eixo solidão-identificação, no qual uma organização
precária do eu, sem a confirmação do outro, se desmantela e o
*Membro Associado/SPCRJ; Especialista em Teoria e Clínica Psicanalítica/UGF.
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Carla Pepe Ribeiro de Souza
ao encontro do pensamento de Birman, quando este postula que “o
Modernismo é a consciência crítica da Modernidade. Até mesmo
sua autoconsciência” 3. O eu foi atravessado pelo estranho-de-simesmo, pelo pulsional que irrompe, por um contexto cultural de
intensa massificação onde cada um de nós se torna só mais um –
um anônimo na multidão. A solidão, desta forma, aparecendo com
toda a sua força negativa: o homem em seu casulo e esvaziado de
si. Fenômeno mais agravado ainda na Contemporaneidade, com a
crise da família, do desenraizamento das tradições, com a cultura
do narcisismo à custa, às vezes, até mesmo da violência e hostilidade extremas no alheamento ao outro, no consumo crescente
de drogas, na sexualidade maníaca e maquínica.
Sob a égide da Modernidade, muitos de nós, não dispondo
da capacidade necessária para realizar a gestão de conflitos, entre
o pulsional e o cultural, defendida por Freud em “O Mal-estar na
civilização” (1930), vivem entregues à agonia da solidão-desamparo. Outros, entretanto, serão capazes de desenvolver processos
sublimatórios, como a criação científica ou artística, e, assim, o
estranho-de-si pode ganhar alguma configuração familiar e menos
fantasmagórica na produção de teorias ou filmografia, ou literatura... Ou seja, a condição individual de trabalhar plasticamente com
a pulsão pelas mais distintas vias sublimatórias em lugar de, na
escassez desta condição, simplesmente buscar objetos que possam
obturar a falta (Dolto). Capazes de mergulhar densamente em suas
solidões, estes podem sentir-se então acompanhados por dentro,
pela riqueza de seus mundos internos povoados de objetos inteiros,
restaurados... vivos! Eis a solidão positiva, plena de simbolização,
na qual se pode “estar a sós em companhia do outro” 4; solidão
possível a partir da elaboração da posição depressiva5 na qual o
reconhecimento da existência do outro e de suas qualidades podem
transformar o sentimento de abandono, perseguição, ressentimento,
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Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 269-273, 2007
resenhas
Tanis ilustra e conjuga a riqueza dos textos de Freud ( O Estranho),
Klein ( seus estudos aprofundados sobre o mecanismo da cisão e as
angústias psicóticas) e Winnicott (suas teorias sobre a integração
da personalidade). Continuando a visitação pelas solidões, Tanis
nos conduz ao eixo da solidão-a-dois através do conto de Henry
James, “A fera na selva”, quando May aguardará até a morte pela
declaração de amor de Marcher, cuja neurose o impedirá de viver o
momento de pronunciar seus sentimentos pela amada. Marcher passa a vida a esperar o “momento especial para apoderar-se daquilo
que [ na verdade, já] está à disposição” (p. 96). Escapa-lhe o tempo;
a vida de May chega a seu fim, e só então Marcher “descobre o
que [já] possuía” (loc.cit). Um amor não vivido, não enunciado,
e que me faz recordar, do cancioneiro popular brasileiro, o verso
duro e poético: “só uma palavra me devora: é aquela que o meu
coração não diz...”2. Adiante nos encontramos, seguindo o roteiro
traçado por Tanis, com outra solidão, em Franz Kafka e sua obra
“A construção”. Trata-se de um personagem aprisionado na ilusão
de estar conseguindo, por meio de uma construção, defender-se
de todos os perigos externos. Aliena-se, solitariamente, crédulo de
seu êxito, sem dar-se conta do quanto vai ficando cada vez mais
à mercê de sua terrível construção fantasmática. A construção
funde-se com o eu que pretendia habitá-la, como bem observa Tanis,
semelhantemente a situações clínicas, quando alguns analisandos
assumem por identidade justamente a doença, desenvolvida à guisa
de método defensivo: é quando se dá a alienação da subjetividade
na racionalidade exagerada do obsessivo, no órgão doloroso do
hipocondríaco, no delírio do paranóico, nas inibições da histérica...
Através da preciosa seleção ilustrativa dos contos literários
Tanis constrói o desmascaramento das verdades defendidas na
Modernidade: o domínio de um discurso baseado na razão e na ciência e a centralidade no eu e na consciência. Seus argumentos vão
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Carla Pepe Ribeiro de Souza
Referências
KLEIN, M. (1940) O luto e suas relações com os estados maníacodepressivos. In. ____. Amor, ódio e reparação e outros trabalhos
(1921-1945) Rio de Janeiro: Imago, 1996 ( Obras completas de
Melanie Klein, 2).
WINNICOTT, D.W. (1958) A capacidade de estar só. In. O ambiente
e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
resenhas
Elas não sabem o que dizem. Virginia Woolf, as mulheres e a psicanálise.
They do not know what they say. Virgninia Woolf, women and psychoanalysis.
Maud Mannoni; tradução, Lucy Magalhães – Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 1999, 126 p.
Carla Pepe Ribeiro de Souza*
Freud dizia que “os poetas e romancistas detêm o conhecimento da alma, são nossos mestres, pois beberam em fontes que
nós, homens comuns, ainda não tornamos acessíveis à ciência”
(Mannoni, p.9).
Nesta obra M. Mannoni nos permite fazer uma viagem à
história de Virginia Woolf e toda a sua luta pela presença da
mulher na sociedade.
Foi o amor pela escrita que uniu estas duas guerreiras Mannoni e Virginia. É pelo texto de Mannoni se pode percorrer as
trilhas do desamparo de Virginia perante de uma história marcada
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Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 269-273, 2007
resenhas
em gratidão e desejo de cuidar, criar, transformar e transformar-se.
Como apontou Freud - fazendo alusão aos movimentos de rotação
e translação do Planeta Terra - um homem com eixo próprio, em
torno do qual possa ser capaz de conciliar seus movimentos: de
perceber a si e também ao outro, podendo Ser – simultaneamente
, solitário e solidário.
O percurso investigativo pelos circuitos da solidão é
denso e rico, sensível e precioso, fazendo de Bernardo Tanis
um bom guia. As solidões assim re-visitadas, em diversos
eixos de tensões, podem descortinar, também, diferentes possibilidades de sentido. Podemos, pois, agradecer a Tanis as
luzes de sua criação e a boa companhia neste passeio.
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por perdas. Marcas que nos possibilitam um mergulho na solidão
de uma era vitoriana quando Virginia lança mão da escrita para
ordenar suas angústias e aflições. Cada capítulo um texto, um livro,
um tema desenvolvido: é a casa que desmorona com a morte da
mãe; é o corpo invadido pelo abuso; é o encontro amoroso que a
faz caminhar em sua “letra”.
Manonni cita Winnicott para falar do desamparo de Virginia
na relação com a sua mãe, sempre ligada ao marido e às coisas
da casa. Este tema, recorrente em seus livros, nos mostra como
sua capacidade criativa foi fundamental para conter o medo de
desabamento que a acompanhava sem a sustentação amorosa da
maternagem. Pois seria exatamente neste movimento de criação – e
de recriação de si-mesmo - que o sujeito precisaria estar envolvido
para poder dar continuidade a seu existir.
O texto de Mannoni através dos escritos de Virginia nos
possibilita um passeio pelo tempo acompanhado pela psicanálise,
marcando os confrontos desta com pensadores importantes e a
desqualificação da mulher na época. Fala-nos, assim, ainda dos
encontros e desencontros entre Virginia, Freud, Klein e Lacan.
Em um “Teto todo seu” Virginia coloca claramente a
questão da barreira erguida entre os sexos e é nesse momento
que ela questiona Freud em relação à inferioridade da mulher ou
sua própria superioridade. As primeiras conjecturas de Freud
(1925-1932) acerca da questão da mulher - “O que pode levar as
mulheres a desejarem homens, fazendo-as abandonar assim o seu
primeiro objeto de amor? - conduzem a outra indagação: “Qual
é o obstáculo que pode constituir uma transferência paterna que,
tal como o refúgio edipiano arduamente conquistado, mascara a
força das primeiras aspirações?” (Mannoni, p.50).
* Psicanalista; membro efetivo/SPCRJ; Mestre em Psicologia Social/UGF; Docente da
Especialização em Teoria e Clínica Psicanalítica da UGF.
Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 275-279, 2007
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Maria Helena Lara de Vasconcellos
Virginia leva ao leitor feminino a possibilidade de questionamentos. Faz com que pensem que lugar ocupa esta mulher no
imaginário masculino (santa e prostituta), que lugar ocupa para
além da reprodutora e sobre seus direitos em relação à fecundação
intelectual. Deixa clara a idéia da histeria como doença da época,
ou seja, a mulher teria o direito de dispor de seu corpo como bem
quiser.
No livro, “Entre os Atos” Virginia aponta para a ambivalência
em relação ao pai, através da fixação infantil da criança pela a mãe,
chegando à fixação do pai à filha. Fixação esta que redundará na possibilidade de a menina de vir a ser mulher. Justo porque o pai interfere
na relação mãe-filha é que esta tem a possibilidade de usufruir de sua
( dela própria ou do pai?) capacidade intelectual. O pai precisa ser
nomeado pela mãe para que este processo ocorra: para que a figura
da mãe torne-se pano de fundo e a figura do pai possa, por um tempo,
emergir em primeiro plano.
No capítulo cinco, Mannoni retrata, na peça teatral “O
Desaparecimento da Mãe” ( quando), o mundo das aparências,
da vaidade, da guerra, do fascismo e do corpo da mulher como
geradora de futuros soldados, fazendo uma interlocução com
os textos de Freud, “Moisés e o monoteísmo” (1939) e “Totem
e Tabu” (1912-1913), onde se funda o assassinato do pai que
gera a mobilização das mulheres e a culpa nos filhos que tomam o poder do pai: “É, pois sobre a restrição das pulsões que
a sociedade se funda e a civilização começa. Freud descobre
no Édipo, o começo, ao mesmo tempo da religião, da moral, da
sociedade e da arte... e o núcleo de todas as neuroses”. (p.64)
O autor trama com clareza e simplicidade os fios de pensamento de diversos autores
para tecer suas próprias considerações: Bauman, Weber, Senett, Lach, Sfez, Rabinow,
Ortega, Castel, Lyotard, Little, Tredgold, Strausss, Clements, Werner, Dupré, Bradley,
Goldman, Lowe e Winnicott – apenas para citar alguns.
1
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resenhas
A peça nos faz pensar a família, a esposa amorosa, o marido
que dita as regras de boa conduta, com direito a infidelidade, evidenciando assim uma relação de amor e ódio. A mulher deve ao
marido sua existência de esposa, mas nunca recebe a reverência por
ser a mãe de seus filhos: “Essa anulação da mulher, condenada a
não ser, sem outra razão de viver senão continuar sendo um puro
objeto, “propriedade” do homem. (p.72)
Prisioneira de uma época em que só o homem podia escrever, Virginia não se permitia produzir como mulher. Ela teme ser
criticada pelos homens, sobretudo pelo pai.
“E é verdade que a [mulher] vitoriana, caso se
autorizasse a escrever, devia fazê-lo sob um
pseudônimo masculino para que tivesse sua obra
considerada. Ora V. Wolf, engajada no serviço
da “causa” das mulheres, tem, entretanto, algum
escrúpulo em indicar o lugar de onde fala. Mas é
realmente a diferença que ela reivindica. Por que,
na verdade, se diria da mulher bem-sucedida que
sua ação ou sua obra são dignas de um homem?
Dilacerada entre repressão e desvelamento de uma
verdade do estar-no-mundo da mulher, “mulher
em escrita”, nas palavras de Defromont, se sentiu
no direito de existir?”
Freud nos diz que o homem encontra a mulher apenas por três
vezes: na figura da mãe, da amante e da morte. “Mas é em vão que
o homem maduro procura recuperar o amor da mulher, tal como
ele o recebeu primeiro da mãe: somente a terceira das mulheres do
destino, a silenciosa deusa da morte, o tomará nos braços.”(p.79)
Ritalina é o nome comercial do medicamento, ministrado, quase invariavelmente,
aos pacientes diagnosticados em qualquer nível de gravidade. Outras drogas também
são prescritas, inclusive anti-psicóticos.
2
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Maria Helena Lara de Vasconcellos
não estaríamos aqui. O que importa para a criança é que sua mãe
tenha um desejo fora dela, criança; é que sua mãe tenha uma razão
de viver fora do lar. Essa conquista do feminismo não tem preço,
tanto para o bem-estar do filho (que amará ainda mais a sua mãe,
por ela não viver a sua vida através dele), quanto para o equilíbrio
da mãe, cujo universo não deveria ser limitado unicamente à família
nuclear.” (p.104).
Cada um de nós vive na solidão. E é através da internalização das figuras parentais que teremos esta possibilidade.
Virginia tenta sua travessia através da escrita, ela revisita sua
relação com os pais, com as invasões, com a possibilidade de
produção. Faz uma tentativa de elaboração de suas perdas; mas
a força destrutiva do obscuro, do intraduzível, a faz concluir
seu mergulho para sempre em suas lembranças.
resenha
Somos todos desatentos? O TDA/H e a construção
de bioidentidades
Rossano Cabral Lima. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2005, 161 p.
Maria Helena Lara de Vasconcellos*
A questão-título do livro de Rossano Cabral Lima surge a
propósito de uma necessidade de entendimento deste fenômeno distúrbio de atenção com hiperatividade – que parece grassar, de
forma surpreendente, em nossos dias. É crescente o número de pais de
crianças atendidas em nossa clínica que nos chegam – entre surpresos
e aliviados – com uma pergunta ou já um diagnóstico desta ordem
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Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 275-279, 2007
resenhas
A mãe tem como função transmitir ao filho o laço da morte com
a vida. A companheira amante “vem substituir a imagem ideal da
mãe da primeira infância, ela tem a obrigação de ser dócil” para
não se tornar uma ameaça. “Essa ameaça pode tomar a forma,
entre outras, de um obstáculo à carreira deste, quando o amor vem
contrariar ou até impedir a sublimação” (p.79).
Quanto à aceitação da mulher em posições de destaque, destaca sempre a postura de que elas não sabem o que dizem e aí são
ditas histéricas e afastadas de qualquer função. Quando fogem ao
padrão masculino e fogem às regras do jogo - “segurar a língua estão fora. Quando se considerar a conquista da mulher como uma
forma de liberdade de pensamento e conquista de direitos, ai sim,
serão consideradas como indivíduos e não como histéricas ou loucas. As mulheres até hoje não conquistaram seu espaço na religião.
Mesmo diante de tudo isso, Mannoni finaliza dando a devida
importância à mãe - mãe- -”mulher” - nem que seja para acusá-la
como não sendo suficientemente boa (Winnicott), não oferecendo
o seio bom (Klein), o pai presente na fala da mãe (Lacan). Se não
fosse a mulher-mãe nosso primeiro objeto de amor, com certeza
Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 275-279, 2007
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280
acerca de seus filhos. “Diagnósticos”, em grande parte dos casos,
proferidos por educadores e coordenadores pedagógicos, ou mesmo
pelos próprios pais, auto-orientados pelas informações adquiridas em
palestras de neurologistas, neuropsicólogos e psiquiatras em campanha
nas instituições de ensino de primeiro e segundo graus. Além desta
peregrinação de profissionais nas escolas, nas livrarias, bancas de
jornais e mesmo sites na internet proliferam livros, revistas, artigos
voltados a divulgar os critérios sintomáticos do TDA/H – únicos
indicadores referenciais para diagnósticos, pois, tratando-se de um
transtorno funcional, não há marcadores biológicos específicos.
Naturalmente que ter filhos enquadrados na materialidade
categórica de um transtorno biológico acarreta ansiedade e preocupação aos pais, mas sempre mais tolerável e socialmente admissível
do que as angústias suscitadas por problemas psicológicos - ainda
tão impalpáveis, cercados de mistério e de preconceitos. Também
para as crianças e adolescentes uma justificativa de aparência mais
quantificável pode significar um abrandamento nas exigências
por resultados e produtividade, e maior tolerância a desajustes e
dificuldades no atendimento às expectativas familiares, escolares
e sociais.
Desajustes às expectativas e aos padrões sociais não são privilégio da atualidade. Mas o olhar contemporâneo de Cabral Lima,
à luz de uma interessante interdisciplinaridade1 entre a psiquiatria,
a neurologia, a farmacologia, a filosofia, a história, a psicologia,
a psicanálise aponta para uma compreensão do TDA/H pelo viés
de um deslocamento do sentido de “uma série de condutas, afetos
e mal-estares humanos” (p.13), calcadas na convergência progressiva de concepções fisicalistas, direcionadas ao reducionismo
biológico.
Hoje, explicações psicológicas, sociológicas, pedagógicas ou oriundas da moral leiga são dispensadas
Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 281-286, 2007
281
como equivocadas e “anticientíficas”, sendo substituídas, especialmente, por outras que localizam
no corpo as razões dos dissabores experimentados
na vida” (Idem).
A obra do autor resulta de sua preciosa investigação para
titulação de mestre pelo Instituto de Medicina Social da UERJ
sob orientação de Jurandir Freire Costa, que lhe atribui, com propriedade, as características do bom trabalho acadêmico: “rigor
teórico, relevância cultural e escrita acessível”. É, pois com muita
habilidade, que a escrita enxuta, simples e fluida de Cabral Lima
nos conduz por uma retrospectiva histórica do mundo moderno e
dos ideais capitalistas e de liberdade competitiva de mercado, e de
como as relações do sujeito consigo mesmo e com o social vieram
se re-configurando e alterando as formas de relacionamento e de
inserção econômico-cultural, transformando os costumes e modos
de ser e de sentir.
Guiados por sua hipótese de que o TDA/H “consiste num
tópico especial da tendência contemporânea para redescrever
as experiências humanas tendo como referências os parâmetros
corporais” (p.16) retraçamos com ele o percurso - através dos
autores selecionados - em busca de configurar as matrizes culturais deste fenômeno categorizado pela psiquiatria (DSM-IV)
que nasceu nos EUA, e que, desde o início dos anos 90, vem
sendo apontado como a principal causa de encaminhamento
de crianças a serviços especializados. Evidência deste avanço
epidemiológico em proporções globalizantes é o crescimento da
produção (somente no mercado americano) do metilfenidato2 - a
principal droga prescrita para regular os efeitos dos TDA/H - em
“700% entre 1990 e 1998, quando quase cinco milhões de pessoas
– a maioria crianças – usavam o fármaco. No Brasil [...] em 2003
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foram vendidas cerca de 500 mil caixas de Ritalina. A previsão era
que esse número em 2004, chegasse a 1 milhão de caixas” (p. 15).
Cabral Lima problematiza esta explosão epidêmica do transtorno,
a condição médica que, na atualidade, se aplica aos desvios sociais
e escolares outrora nomeados como condutas infantis, mau comportamento, desinteresse, indisciplina, comportamento anti-social.
Retoma, pois, as trilhas que desembocaram nesta classificação diagnóstica desde os primórdios do século 20, quando o pioneirismo do
pediatra inglês George F. Still se detém em observar e descrever
um grupo de crianças (meninos e meninas, na proporção de três
para um) desafiadoras, impulsivas, agressivas e indisciplináveis,
às quais atribuiu um defeito [genético] no controle moral (p.61),
herdado de seus familiares acometidos de depressão e alcoolismo.
A partir de então, o olhar sobre o mau comportamento e suas variantes veio deslizando, gradativamente, lesão cerebral mínima e
a disfunção cerebral mínima, a reação hipercinética da infância
e a síndrome da hiperatividade, as dificuldades de atenção e o
distúrbio de déficit de atenção (DDA), apenas para citar algumas
nas tentativas de compreensão e classificação daquilo que hoje, de
forma combinada, vem a se constituir no TDA/H (Transtorno de
Déficit de Atenção/Hiperatividade).
Os meios produtivos clamando por resultados a baixo custo
e curto prazo e os tecnológicos propiciando a desterritorialização
dos limites da informação e dos bens de consumo estariam à
serviço de propiciar à questão uma visibilidade que, extrapolando
o ambiente médico, alcançariam uma popularidade excessiva e
duvidosa? Numa sociedade de referências em trânsito - onde, cada
vez mais, se substitui a historicidade tradicional pelo imediatismo
digital do aqui-e-agora - marcada, crescentemente, por relações e
vínculos ( se assim se pode chamar) de caráter “... errático, com leis
que mudam no decorrer do jogo e valores que se esvaziam pouco
depois de se afirmarem”(p.24), o enquadramento e o controle de
Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 281-286, 2007
283
Cadernos de Psicanálise –SPCRJ
O artigo, inédito, deverá ser enviado, dentro do prazo estabelecido, em envelope lacrado, endereçado a:
SPCRJ/Coordenação da CPB – Cadernos de Psicanálise da SPCRJ.
Rua Saturnino de Brito, 79 - Jardim Botânico - Rio de Janeiro/
RJ - CEP 22470-030
O envelope deverá conter
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• um Resumo conforme descrição abaixo;
• três cópias impressas do artigo com título apenas na
primeira folha e sem qualquer identificação do autor,
inclusive nas páginas internas (notas de rodapé ou de fim,
ou referências dentro do texto);
• um CD (regravável) com três arquivos separados nomeados: Folha de Rosto:... ( nome do artigo e os dados
descritos abaixo), Resumo:...(nome do artigo e os dados
descritos abaixo) e Artigo: ...(nome do artigo e o artigo
propriamente dito).
Orientações gerais
•
284
Os trabalhos devem ter no máximo 14 e no mínimo 8
laudas, formatadas em:
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condutas indesejáveis em pílulas pareceriam ter um apelo mercadológico promissor para além das afecções efetivamente biológicas?
Além do mais, argumenta o autor, nossa interioridade
subjetiva, mediante a perda em escala crescente da autoridade
paterna e dos objetos identitários, estaria vivendo um processo de
refiliação à comunidade do corpo e ao mito da saúde perfeita: a
externalização da constituição do ser na superfície concreta e rasa
do parecer: “... a superfície corporal como panacéia para a crise
de identidade”(p.54). Na medida em que a tecnologia e a biologia
avançam pelos mistérios da genética “... o organismo não guarda
mais segredos; seus encantos anatômicos tornam-se públicos” (loc.
cit), e “... nenhuma psicologia consegue fazer frente ao oferecimento do corpo como início e fim da identidade pessoal” (p.55).
É o que Cabral Lima vai apontar como o processo inevitável de
esvaziamento do ser e da somatização da subjetividade, na medida
em que os fenômenos sociais e psíquicos passam a ser reduzidos
e referenciados numa linguagem estritamente fisicalista, em prol
da constituição de bioidentidades.
Sem desconsiderar a importância dos avanços benéficos da
psicofarmacologia no tratamento de disfunções neuro-psiquiátricas,
o autor, em sua investigação, procura a certa medida entre o que
seria da ordem das exigências de um suporte medicamentoso em
busca do equilíbrio e da funcionalidade psíquica, e o que seria da
ordem do excesso promovido pelas campanhas bio-mercadológicas. Num enfoque sóbrio de pesquisador atento aos princípios da
ética e da política, as reflexões bem consubstanciadas de Rossano
Cabral Lima vêm ao encontro de uma temática atual e essencial
para a compreensão e a intervenção clínica de psicanalistas e
profissionais de outras áreas da saúde e da educação.
Normas para o envio de artigo para publicação
Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 281-286, 2007
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entre as linhas, e 1,5 cm, para a separação das referências entre si.
Exemplos:
• Um autor (sobrenome em maiúsculas e prenomes, abreviados ou não, e o título grafado em itálico; o subtítulo,
não. Somente a primeira letra do título em caixa alta).
McDOUGALL, Joyce. As múltiplas faces de Eros. São Paulo:
Martins Fontes, 1997.
• Dois e/ou três autores (nome e sobrenomes – abreviados
ou não - dos autores, separados por ponto e vírgula):
BOTELHO, J. E.; CARNEIRO, M. P. F. O estranho passageiro.
In: JORNADA DE PSICANÁLISE, 5., 2002, Rio de Janeiro. O
primitivo e o psiquismo. Rio de Janeiro: SPCRJ, 2002. p. 19-25.
DAVIS, M.; WALLBRIDGE, D. Limite e espaço. Rio de Janeiro:
Imago, 1982.
286
Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 281-286, 2007
•
•
•
•
•
•
papel A4, letra Times New Roman 12, espaço entre
linhas 1,5 cm;
margem esquerda com 3,0 cm e direita com 1,5 cm;
margens superior e inferior com 2,5 cm;
títulos e subtítulos em negrito, com maiúscula apenas
na primeira letra ( título em inglês em negrito e itálico).
A Folha de Rosto deve conter o nome do autor e sua qualificação, endereço completo, com CEP e telefone (e-mail
quando houver).
O Resumo deve conter apenas o título do trabalho (em
português e, logo abaixo, em inglês), resumo (cerca de 5
linhas) , palavras-chave, abstract e keywords, e ainda, a
data do envio do artigo.
As folhas internas devem estar numeradas e sem qualquer
informação que possibilite a identificação do autor;
apenas a primeira folha deve conter o título do artigo.
Palavras estrangeiras e tudo que se quiser destacar devem
estar em itálico; nenhuma outra forma de destaque deve
ser usada no corpo do texto.
Devem ser utilizadas notas de rodapé, com algarismos em
arábico.
Citações literais, diretas, com menos de 3 linhas devem
estar entre aspas, dentro do texto, e aquelas com mais de
3 linhas devem estar em outro parágrafo, com recuo de
4 cm da margem esquerda, fonte tamanho 11 e espaço
simples entre linhas.
Orientações quanto à forma de redação de ‘REFERÊNCIAS’
De acordo com as normas da ABNT, 2005, devem constar no final
do texto, em ordem alfabética de sobrenome, com espaço simples
Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 287-289, 2007
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• Artigo em periódico científico:
PARSONS, Michael. Le contre-transfert de l’nalyste sur le processus psychanalytique. Revue Française de Psychanalyse. Paris:
Société Psychanalytique de Paris, n. 2, p. 385-404, avr. 2006.
TOSTES, Vera Maria da C. S. A dor como um possível recurso
da existência. Cadernos de Psicanálise-SPCRJ. Rio de Janeiro:
SPCRJ, v. 21, n. 24, p. 233-251, 2005.
NOTA: Nos artigos de Freud, Klein, Winnicott e de outros
autores psicanalistas com obra extensa, seguimos um padrão
especial de referência. O ano em que foi primeiramente publicado o artigo vem em seguida ao nome do autor, entre parênteses:
FREUD, Sigmund (1920). Feminilidade. In: _____. Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise e outros trabalhos Rio de
Janeiro: Imago, 1976.p 139-165. (Edição standard brasileira das
obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 18).
______. (1892-1899). Extratos dos documentos dirigidos a Fliess.
In: ______. Publicações pré-psicanalíticas e esboços inéditos. Rio
de Janeiro: Imago, 1976. p. 243-377. (ESB, 1).
Obs. Quando houver referências diversas de um mesmo autor,
a coleção citada deve ser redigida por extenso apenas na primeira referência, constando, nas subseqüentes, em sua forma
abreviada ( ver ex. imediatamente acima).
FERENCZI, S. (1928). Elasticidade da técnica psicanalítica. In:
______. Psicanálise IV. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 2536. (Obras completas, 4).
288
Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 287-289, 2007
• Mais de três autores (nome apenas do primeiro autor e
a expressão et al., em itálico):
GREEN, André et al. A pulsão de morte. São Paulo: Escuta 1988. • Capítulo e/ou artigo de livro:
BIRMAN, Joel. Uma dívida impagável. In: ARAÚJO, M. C. de;
MAYA, M. C. B. B. (Org.). Neurose obsessiva. Rio de Janeiro:
Letter, 1992. p. 49-106.
Cad. Psicanál.- SPCRJ, Rio de Janeiro, v. 23, n. 26, p. 287-289, 2007
289
Revisão de Texto (Português e Inglês)
Maria Helena Lara de Vasconcellos
Capa
Nailson Santana
Diagramação e arte-final
Nailson Santana
Editora Lidador
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