A restauração da identidade germânica no I Simpósio sobre
Transcrição
A restauração da identidade germânica no I Simpósio sobre
A restauração da identidade germânica no I Simpósio sobre Imigração Alemã no Litoral Norte/RS Sandra Cristina Donner* Resumo Este artigo analisa o prefácio, a apresentação e o primeiro capítulo do livro Terra de Areia: marcas do tempo (2000), coletânea das palestras do I Simpósio sobre Imigração Alemã no Litoral Norte/RS (1999). Esta área recebeu imigrantes alemães no final do século XIX, mas, diferentemente de outros núcleos de colonização sul-rio-grandenses, estes imigrantes integraram-se culturalmente com os grupos luso-brasileiros já estabelecidos. Segundo os autores, era preciso um resgate desta História e das práticas ligadas à identidade germânica, como língua, culinária e festas típicas, voltando-se a raízes abandonadas pela população. Percebe-se o uso político da História pela administração municipal, que tenta restaurar a etnicidade perdida e, assim, marcar seu nome na memória do Município. Palavras-chave: Identidade. Germanidade. Historiografia. Existe no Rio Grande do Sul um grande número de pesquisas sobre imigração. Muitos desses trabalhos exploram como as diversas comunidades de migrantes elaboraram sua identidade e construíram sua memória. Em algumas cidades, a exaltação da origem étnica tem relação com os interesses turísticos, em outras, a valorização destes elementos surgiu de forma “natural”. Este artigo debate o fenômeno da reativação étnica nas comunidades descendentes de alemães no Litoral Norte do Rio Grande do Sul, especialmente o caso da cidade de Terra de Areia, através da coletânea das palestras do I Simpósio sobre Imigração Alemã no Litoral Norte, publicadas no livro Terra de Areia: marcas do tempo. Para isso, utilizaremos leituras sobre os conceitos de etnicidade e etnogênese e analisaremos as seguintes seções da obra: “Prefácio”, “Apresentação”, “Importância do Evento” e o primeiro capítulo, “A necessidade do resgate histórico-cultural das comunidades da colônia alemã de Torres”. Sobre esta seleção do livro, buscaremos identificar os argumentos levantados pela municipalidade e pelos organizadores para promoverem um simpósio sobre imigração alemã na região, as relações com a história e com a ideia de germanidade. Doutoranda em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora da educação básica: Rede Municipal de Porto Alegre, Governo do Estado do Rio Grande do Sul. (E-mail: [email protected]). Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 67-80, jul./dez. 2011 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 67 No Litoral Norte, as questões relativas à germanidade ou à origem étnica não são evidentes, embora tenham existido núcleos de imigração alemã em Torres e no distrito de Três Forquilhas. Dentro deste contexto, a partir de um movimento idealizado por uma historiadora amadora chamada Nilza Huyer Ely, foi organizado um seminário chamado “Marcas do Tempo – I Simpósio sobre Imigração Alemã no Litoral Norte/RS”. Esse evento foi realizado na cidade de Terra de Areia, no ano de 1999, e foi seguido por outros, nos anos seguintes, nas cidades de Torres, Três Cachoeiras e Arroio do Sal. O livro produzido pelo Simpósio é uma coletânea das palestras. Neste evento, tanto historiadores acadêmicos quanto historiadores amadores apresentaram seus estudos sobre o assunto: a origem de Terra de Areia e as raízes da imigração alemã na região. As falas foram recolhidas e transformadas em artigos que compuseram o livro, juntamente com os textos introdutórios produzidos pela municipalidade e pelos organizadores. 1 Construção da germanidade no Sul do Brasil Entre 1824 e as primeiras décadas do século XX, o Brasil recebeu um grande fluxo de imigrantes europeus. Sua vinda foi promovida pelo Estado, tanto com iniciativas governamentais quanto particulares. O objetivo dessa colonização era promover o povoamento da Região Sul, estratégica por ser fronteira, e criar um fluxo de abastecimento para as cidades. No caso do Rio Grande do Sul, foi criado um “cinturão verde”, onde colonos alemães e italianos, entre outras nacionalidades, foram assentados inicialmente no entorno de rios e, posteriormente, no Planalto Norte e Litoral. Os imigrantes alemães começaram a chegar ao Estado em 1824, e as terras designadas para estas pessoas eram terras públicas, devolutas e fora da área dos grandes latifúndios do sul. Segundo Seyferth (1993): A venda de terras públicas constituiu o fundamento do sistema de colonização, mesmo nas colônias administradas por companhias particulares que obtinham grandes concessões para depois repassá-las aos colonos, atomizadas em lotes padronizados de 25/30 hectares. Sendo assim, as colônias alemãs, mesmo quando situadas geograficamente próximas das capitais provinciais, ficaram um longo tempo social e espacialmente distantes da sociedade brasileira – isolamento relativo, que contribuiu para o fortalecimento de uma consciência étnica coletiva estruturada pelo próprio processo histórico de colonização. 68 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 67-80, jul./dez. 2011 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/in6ex.php/arquivos> Estes imigrantes foram distribuídos em “linhas”,1 onde recebiam lotes de terras que configuravam uma pequena propriedade de produção familiar. Sua distribuição, na maioria das vezes, seguiu o critério da origem nacional, o que, segundo Seyferth (2000), foi um dos facilitadores para a organização da sociedade em termos étnicos. Esta configuração permitiu a manutenção da língua e das sociabilidades através das atividades de lazer nas sociedades de canto, de tiro, sociedades ginásticas e de auxílio mútuo, entre outras. Além disso, ocupando um papel fundamental na manutenção da cultura e da identidade, foram criadas escolas elementares que atendiam os filhos destes colonos. Estas instituições ocuparam o espaço deixado em aberto pelo Estado, que acabou suprido pela Igreja, mantenedora das escolas e onde, muitas vezes, o pastor ou o padre eram os principais professores. Dentro desse contexto, os imigrantes alemães acabaram por desenvolver a germanidade, uma identidade étnica que funcionava com um fator de coesão do grupo: a etnicidade como forma de interação social. Frederik Barth desenvolveu estudos sobre essa questão e, segundo ele, os grupos étnicos não são grupos concretos, mas, sim, baseados na autoatribuição. O autor pressupõe o contato cultural e a mobilidade de pessoas, então, a etnicidade asseguraria a unidade efetiva do grupo que é constituído através de operações e processos generativos e culturais (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 1993, p. 113). Um autor que apresenta a aplicação do conceito de etnicidade proposto por Barth é Oliveira. Ele entende a noção de identidade com duas dimensões, uma pessoal e uma social; os antropólogos pretendem mostrar que as duas faces estão conectadas. A etnicidade pode corresponder à identificação social, utilizando Barth: Segundo essa definição, um grupo étnico designa uma população que: a) ‘se perpetua principalmente por meios biológicos’; b) ‘compartilha de valores culturais fundamentais, postos em prática em formas culturais num todo explícito’; c) ‘compõe um campo de comunicação e interação’; d) ‘tem um grupo de membros que se identifica e é identificado por outros como constituinte de uma categoria distinguível de outras categorias da mesma ordem’ (BARTH apud OLIVEIRA, 1976, p. 2). 1 Cf. Giralda Seyferth (1999, p. 63): “A demarcação dos lotes se deu a partir de picadas abertas seguindo os cursos d’água, chamadas ‘linhas coloniais’. Suas dimensões variavam entre 100 e 200 metros de largura por 600 a 1000 metros de comprimento, raramente ultrapassando 25/30 hectares. O formato alongado, tecnicamente, dava acesso à via de comunicação e ao curso d’água para todos: e sendo a topografia acidentada, supostamente garantia uma área de várzea para cada proprietário – fato possível nos traçados que acompanhavam os rios principais, mas não os ribeirões.” Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 67-80, jul./dez. 2011 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 69 Esse conceito apresenta o protagonismo do grupo, tanto quanto o exime do maniqueísmo, mas, principalmente, põe em foco o papel do grupo étnico em um contexto mais amplo, ao ressaltar que suas definições se forjam no contato com o outro. Oliveira acrescenta que as noções de pertença étnica podem ser parte constituinte da identidade social, pois elas também possuem esse caráter contrastivo, que implica na afirmação do nós, em oposição aos outros. A peculiaridade da colonização alemã determinou a elaboração dos conceitos de “nação” e “pátria” compatíveis com sua situação de brasileiros/estrangeiros. A sua pátria agora era a colônia, o seu chão, e sua cidadania passou a ser a brasileira, mas ao denominar-se, o seu povo (Volk) era o alemão. Esse fenômeno é explicado por Seyferth (1993): A ligação com a Alemanha, portanto, baseia-se na comunidade de sangue e língua, naturalizada através de um modo de vida alemão preservado nas colônias – numa reapropriação da ideologia nacionalista anterior à unificação alemã, que podia falar de uma nação sem Estado. De certa forma, isso explica por que associações culturais, de tiro e ginástica, juntamente com a família, a preservação do idioma, a endogamia e até mesmo a nova sociedade (imaginada como produto da capacidade herdada de trabalho, portanto, associada à raça), são concebidos como fronteira étnica a preservar. Estes elementos são os componentes da germanidade. Se o grupo étnico se forma, segundo Barth, pelo contato, no Brasil, os imigrantes alemães desenvolveram critérios de pertença étnica baseados na língua, usos e costumes, instituições e cultura alemãs e que encontra o seu lócus na colônia. Seyferth (1999, p. 75) detalha esse processo: Desse modo, define-se o pertencimento à etnia/nação alemã pelo jus sanguinis, instituindo uma germanidade materializada por intermédio da “colônia alemã”. Ao mesmo tempo, cria-se uma categoria de identificação com hífen (teuto-brasileiro), para traduzir uma germanidade brasileira (Deutschbrasilianertum) — modo de afirmação da cidadania mediante a integração econômica, política e patriótica, ancorada no pressuposto de que não existe, propriamente, uma nação brasileira. A definição da categoria teuto-brasileiro (Deutschbrasilianer) combina jus sanguinis e jus soli: origem alemã e cidadania brasileira, pertencimento à nação alemã e ao Estado brasileiro visualizado como multirracial ou multiétnico. As narrativas de sucesso e conquistas, baseadas no pioneirismo, nas dificuldades em “desbravar” a floresta nesta nova terra, construíram uma identidade comum entre as diversas comunidades constituídas pelos imigrantes e representaram um elo com as gerações futuras, pois: 70 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 67-80, jul./dez. 2011 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/in6ex.php/arquivos> Nas concepções sobre a comunidade étnica, a partir das noções de colônia, pioneirismo e origem nacional – que apareceram de forma bem elaborada nos discursos das lideranças e nas publicações comuns até a década de 1930, mas igualmente presentes na externalização da “memória” passada para os descendentes – a ideia de nação não está associada à de Estado, e a etnia dá conta de uma dimensão bem precisa e compatível com a cidadania: cada indivíduo é alemão, italiano ou polonês no Brasil. A palavra origem denota ascendência e remete a um passado comum como parte de uma coletividade nacional. Os discursos sobre a germanidade acentuaram de forma mais intensa a ideia de pertinência racial – o Volk alemão classificado como unidade de raça ou de sangue a ser preservada na nova pátria (SEYFERTH, 2000, p. 162). A construção dos discursos de germanidade e das peculiaridades da identidade étnica tornou-se mais elaborada na medida em que o contato com o outro, no caso, os nacionais, os brasileiros, passou a ser cotidiano. Neste processo, a imprensa teve um papel importante de reforço e afirmação do ser alemão. As publicações comemorativas, os jornais, os almanaques, as biografias dos pioneiros, as genealogias de família e os livros de História escritos pelos intelectuais locais colaboraram na criação de uma memória coletiva remetendo às dificuldades e vitórias de todos. Além dos impressos, as festas, como a de 1924, comemorando o centenário da imigração alemã, em São Leopoldo, promoveram laços de pertencimento. As festas da comunidade étnica germânica estão associadas à ideia de uma nova Heimat,2 uma nova pátria. Segundo Weber (2004, p. 238): O calendário festivo, mesmo com seu caráter estereotipado, requer a participação efetiva dos habitantes, o que traz o fortalecimento da memória a partir do vínculo identitário, sendo que, ao mesmo tempo em que se autoatribui identidade, ela é também afirmada ‘para fora’. Mas esta germanidade, forjada ao longo do século XIX e início do XX, passou por um período de sanções profundas. No final dos anos 30, com a política de nacionalização posta em prática pelo Estado Novo, a fidelidade dos colonos a sua nova pátria foi questionada. Foram adotadas duras medidas para coibir as práticas culturais ligadas à germanidade: as escolas religiosas e comunitárias já haviam encerrado o ensino em língua alemã, os locais de sociabilidade e a imprensa em alemão tiveram suas atividades suspensas. Com isso, houve um momento de reelaboração: Ao longo do tempo, a etnicidade teuto-brasileira foi reconstruindo seus símbolos, à medida que as ‘colônias alemãs’ se tornavam mais brasileiras, permanecendo quase inalterada a ideia étnica da origem ou descendência comum (que supõe um modo de vida e um comportamento social diferenciados) (SEYFERTH, 1993). 2 A tradução da palavra é “pátria” e era utilizada para se referir tanto à terra, em sentido territorializado, quanto à casa paterna. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 67-80, jul./dez. 2011 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 71 2 Etnogênese e reavivamento da germanidade A ideia de grupo étnico e de germanidade são conceitos dinâmicos, pois dizem respeito a estruturas sociais. Partindo disto, utilizaremos o conceito de grupo étnico indicado por Oliveira, a partir de seus estudos sobre Barth: Significa isso que a identidade étnica seja valor? Sabemos que ela não se funda em uma percepção cinestésica do ser, mas de uma autoapreensão de si em situação. Tomando por referência um modelo existencial de pessoa, diríamos que o que transforma o indivíduo em pessoa é a situação, num sentido fenomenológico e, portanto, como fato de consciência. Mas a peculiaridade da situação que engendra a identidade étnica é a situação de contato interétnico, sobretudo – mas não exclusivamente – quando está em lugar como fricção interétnica. A conscientização dessa situação pelos indivíduos inseridos na conjunção interétnica seria o alvo preliminar do analista (OLIVEIRA, 1976, p. 6). A interação levaria a uma conscientização étnica, e esse sentido de etnicidade está ligada à memória. As relações das comunidades com o seu passado, ou melhor, com a “escolha” de seu passado, e sua memória coletiva levam a fenômenos de reavivamento étnico. E esse processo de busca de passado e de identidade, étnica ou não, está ligado ao mundo contemporâneo, segundo Nora (1993, p. 7): A curiosidade pelos lugares onde a memória se cristaliza e se refugia está ligada a este momento particular da nossa história. Momento de articulação, onde a consciência da ruptura com o passado se confunde com o sentimento de uma memória esfacelada, mas onde o esfacelamento desperta ainda memória suficiente para que se possa colocar o problema de sua encarnação. O sentimento de continuidade torna-se residual aos locais. Há locais de memória porque não há mais meios de memória. No Rio Grande do Sul, a partir dos anos 90, está ocorrendo um processo de valorização étnica que pode ser notado pela proliferação de festas celebrando as origens dos primeiros povoadores das cidades, pelas rotas turísticas ligadas a elementos culturais italianos, poloneses, pomeranos, entre outros, e a programas na mídia local, a título de exemplo. Com o conceito de etnogênese, busca-se compreender esse processo de valorização da etnia. Segundo Bartolomé (2006, p. 39), o termo etnogênese tem sido usado para designar diferentes processos sociais protagonizados pelos grupos étnicos. De modo geral, a antropologia recorreu ao conceito para descrever o desenvolvimento, ao longo da história, das 72 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 67-80, jul./dez. 2011 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/in6ex.php/arquivos> coletividades humanas que nomeamos grupos étnicos, na medida em que se percebem e são percebidas como formações distintas de outros agrupamentos por possuírem um patrimônio linguístico, social ou cultural que consideram ou é considerado exclusivo, ou seja, o conceito foi cunhado para dar conta do processo histórico de configuração de coletividades étnicas como resultado de migrações, invasões, conquistas, fissões ou fusões. Esse movimento de retomada do passado e valorização de uma etnicidade se dá, muitas vezes, em lugares onde a presença étnica não estava oculta, mas ausente dos discursos acadêmicos ou políticos. Esta busca de identidade pode ocorrer em diversas situações: quando a obrigatoriedade de renúncia étnica deixa de existir pelo Estado; quando não mais ocorre estigma sobre a filiação nativa; quando por força de legislação ou por vantagens econômicas diversas (como turismo, por exemplo) sua etnicidade pode, agora, trazer benefícios (BARTOLOMÉ, 2006, p. 45). Nestes casos, os grupos, alicerçados em sua memória, iniciam um processo de reafirmação de sua identidade, segundo Bartolomé (2006, p. 43): “Nesse sentido, a etnogênese apresenta-se como processo de construção de uma identificação compartilhada, com base em uma tradição cultural preexistente ou construída que possa sustentar a ação coletiva”. Embora alguns dos elementos citados acima tenham uma aplicação material e econômica na vida destas comunidades, o principal motor discursivo da etnogênese é o fortalecimento das relações comunitárias e a nova dignidade atribuída a sua história e a sua filiação. Ele encontra-se no processo de construção de sentido pelos diversos grupos sociais, mas também envolve uma capacidade de simbolização compartilhada, por meio da qual antigos símbolos se ressignificam e adquirem o papel de emblemas, capazes de serem assumidos como tais por uma coletividade que encontra neles a possibilidade de construir novos sentidos para a existência individual e coletiva. Se esses símbolos produzem efeitos dinamizadores, se encontram uma caixa social de ressonância, é porque têm certo nível de presença em alguns dos portadores da memória coletiva local e que os legitimam ante seus círculos mais próximos. (BARTOLOMÉ, 2006, p. 58) Os agentes que mobilizam a comunidade nesta produção de etnicidade variam de caso a caso, muitas vezes são anciãos, intelectuais ou cronistas que retomam essa memória “esquecida” e a reatualizam em rituais e práticas cotidianas. Os livros de história municipal, escritos por “historiadores” locais, são uma destas fontes. Além disso, relatos, histórias de vida e mesmo artigos e pesquisas acadêmicas podem contribuir para esse processo. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 67-80, jul./dez. 2011 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 73 Essas produções, segundo Bartolomé, nem sempre correspondem a uma “verdade” historiográfica, uma vez que o mais importante é a reconstrução da narrativa étnica, que pode dar um novo sentido à vida social daquele grupo. Para isso, muitas vezes os textos consultados e resignificados são obras de antropólogos ou historiadores, produzidos para serem consumidos na Academia e que acabam formando as bases de uma “ideologia étnica” (2006, p. 58-59). 3 Marcas do Tempo: o Simpósio sobre Imigração Alemã no Litoral Norte Em 18 de abril de 1999, teve início, no município de Terra de Areia, o primeiro Simpósio sobre imigração alemã no Litoral Norte/RS. O evento ocorreu no Ginásio Municipal, e contou com trinta comunicações, ao longo de três dias. Além das palestras, ocorreram apresentações de grupos de dança folclórica alemã, de Centros de Tradições Gaúchas e de grupos de canto coral. Foram também distribuídas homenagens a figuras ilustres da região, sendo um dos pontos altos do evento a inauguração de um busto, do Coronel Niederauer,3 que contou com a presença de dois batalhões do exército vindos de Santa Maria. O simpósio era aberto ao público e teve a participação compulsória dos alunos, professores e funcionários da rede pública municipal (ELY, 2000, p. 12). A organização das diversas palestras sobre a história da cidade gerou o livro Terra de Areia: marcas do tempo, organizado por Nilza Huyer Ely e publicado pela editora EST em 2000. Este material insere-se no que Beatriz Sarlo (2007) identifica como uma história para consumo de massa em geral, utilizando-se de um princípio organizador em que se reduzia o número de hipóteses e simplificavam-se as discussões históricas. Em contrapartida, a história acadêmica, por manter a complexidade, alcança menos penetração junto à sociedade (SARLO, 2007, p. 17). Essas obras também são o que a historiadora Mary Del Priore (2010) chamou de “história de divulgação”. Um evento cultural deste porte demanda recursos econômicos e de pessoal que somente uma instituição acadêmica ou o poder público poderia suprir. Embora alguns dos palestrantes fossem professores de universidades da região, ou graduandos e mestrandos, não existiu nenhum suporte formal de alguma universidade. O projeto foi patrocinado pela Câmara de Vereadores e Prefeitura Municipal, especialmente com a verba da Secretaria Municipal de Educação. 3 74 Colono alemão do distrito de Três Forquilhas que se alistou no exército, serviu durante a Revolução Farroupilha e morreu em combate durante a Guerra do Paraguai. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 67-80, jul./dez. 2011 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/in6ex.php/arquivos> A prefeitura, com seus esforços econômicos e de pessoal, foi lembrada pela organizadora do evento: Ao apresentarmos Terra de Areia – Marcas do Tempo: Simpósio sobre imigração alemã no Litoral Norte/RS e Raízes de Terra de Areia II, devemos registrar que esta obra só se tornou realidade graças à visão da administração pública municipal de Terra de Areia na pessoa de seu prefeito Dr. Generi Maximo Lipert que, com perseverança e através da cultura, persegue um futuro promissor para sua comunidade (ELY, 2000, p. 11). A idealizadora do projeto é uma historiadora sem formação acadêmica. Em sua apresentação, ela destaca que, somente agora, através do movimento do I Simpósio, a história da imigração alemã no Litoral Norte passou a ser pesquisada e registrada. Em seu texto de abertura, podemos perceber que as questões pessoais e étnicas estão presentes e se misturam na memória. Um exemplo disso é quando ela cita que, durante seu período de estudante em São Leopoldo, descobriu que os colegas “alemães” não sabiam onde ficava a colônia Três Forquilhas: “Foi, certamente, naquela época que eu comecei a sentir o quanto nós, do Litoral Norte, enquanto colonização alemã, éramos desconhecidos.” (ELY, 2000, p. 16). Embora não tenham sido realizadas entrevistas, observando apenas o texto, podemos identificar que as questões de pertença étnica dentro da sociedade do Vale dos Sinos eram importantes para a afirmação de identidade. Sentir-se germânica, ligada por laços de sangue a essa comunidade e não ter um eco em reconhecimento por parte da mesma era um problema tão significativo que permaneceu na memória e foi, segundo a organizadora, um “motor” para a promoção do Simpósio de Imigração Alemã. Não existem muitos estudos sobre esse grupo de imigrantes alemães que acabou traçando caminhos diferentes de outras colônias no período. No capítulo escrito por Marcos Witt, este historiador identifica que as colônias alemãs do Litoral Norte do RS fogem à regra e são palco de acontecimentos que não permitem que sejam enquadradas no estereótipo que a historiografia tradicional nos apresenta. Um local geograficamente isolado, onde qualquer intruso era aceito na expectativa de que pudesse trazer algum conhecimento proveitoso para os colonos, não é comparável àquele modelo de comunidade teuto-brasileira, na qual não havia espaço para outros componentes étnicos. São Pedro de Alcântara e Três Forquilhas, neste sentido, são exceções (2000, p. 69).4 4 O capítulo intitula-se “A dinâmica das colônias alemãs do Litoral Norte do Rio Grande do Sul – São Pedro de Alcântara e Três Forquilhas (1845-1888)”. As regiões citadas fazem parte da área estudada pelo congresso, que não se restringiu somente ao município de Terra de Areia e, sim, sobre o Litoral Norte de modo amplo. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 67-80, jul./dez. 2011 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 75 O historiador aponta que essa região viveu um processo histórico específico. Ocorreu um isolamento em relação a outras colônias e, por outro lado, um contato constante com uma população luso-brasileira já estabelecida em Torres e com tropeiros que usavam a região como rota de passagem ao norte do país. Com isso, as marcas mais evidentes da germanidade acabaram diluídas. O contato com os outros era frequente e mesmo com uma escola junto à comunidade luterana ministrando aulas em alemão, ocorreram perdas culturais. Mesmo com esse contexto, muitas famílias ainda mantinham algumas tradições como as festas de kerb, ainda assim, os autores do projeto do Simpósio julgavam que era urgente recuperar a memória e as tradições germânicas: Se não conseguirmos recuperar ou restabelecer os valores olvidados, pelo menos devemos pesquisá-los e registrá-los, para que não caiam no esquecimento e desapareçam. É de nossa responsabilidade, enquanto historiadores, registrar o que as pesquisas em documentos nos revelam e o que nos chega através da tradição oral que mais facilmente se perde, para que não sejamos uma cultura em extinção (ELY, 2000, p. 18). Segundo Halbwachs, a memória coletiva é construída enquanto estamos em contato com os grupos sociais nos quais estamos inseridos. Sendo assim, nossa memória “concorda” com a dos outros, desde que haja pontos de contato entre as lembranças, e estas possam ser construídas sobre um fundamento comum: Não é suficiente reconstruir peça por peça a imagem de um acontecimento do passado para se obter uma lembrança. É necessário que essa reconstrução se opere a partir de dados ou de noções comuns que se encontram tanto no nosso espírito como no dos outros, porque elas passam incessantemente desses para aquele e reciprocamente, o que só é possível se fizeram e continuam a fazer parte da mesma comunidade (HALBWACHS , 1990, p. 35). Esses contatos podem ser promovidos pela valorização desta ou daquela memória do grupo. Para Pomian (2007), a memória coletiva costuma ser preservada por um grupo de indivíduos especializado em memória e em quem o “povo” confia, mas ela se realiza e se projeta em ritos e festividades onde participam todos. O “concordar” das memórias coletivas pode ocorrer nestas festas de família ou nos aniversários de fundação da cidade, ou, em nosso caso, no Simpósio sobre Imigração Alemã do Litoral Norte, onde se traz a narrativa dos parentes mais antigos, dos primeiros moradores. Um dos fatores de coesão da germanidade, assim como da italianidade, entre outros, é esta narrativa dos pioneiros. Sua função, recontando a trajetória vivida, é unir os teutos das diversas colônias nesse passado comum. A proposta do I Simpósio era, através da retomada destas narrativas, reavivar o sentimento de pertença étnica na região, ou de etnogênese: 76 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 67-80, jul./dez. 2011 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/in6ex.php/arquivos> Certamente já encontramos motivos de sobejo além da visão cultural da administração pública municipal de Terra de Areia que nos animou e respaldou, para realizarmos este sonho e darmos o passo inicial desta caminhada, dentro dos objetivos propostos de: – desenvolver estudo sobre a formação étnica do Litoral Norte/RS a partir da Colônia Alemã de Torres; – intensificar a busca da consciência sociocultural da população do Litoral Norte e sua contribuição no contexto do Estado; – resgatar a identidade histórica e os valores culturais dos habitantes da Colônia Alemã de Torres; – estimular o estudo dos hábitos e costumes dos imigrantes alemães, bem como da língua alemã como forma de expressão cultural; – perseverar na busca do entendimento comportamental dos descendentes dos imigrantes alemães do Litoral Norte/RS; – incentivar a pesquisa genealógica das famílias que formam o universo populacional do Litoral Norte/RS; – preservar a memória e registrar o cotidiano das comunidades teuto-brasileiras em nível regional (ELY, 2000, p. 19). Quanto às palestras que foram publicadas, a temática dos artigos remete à fundação e colonização das cidades (às narrativas dos pioneiros, já citadas), muito pouco é mencionado sobre o passado recente. Nos textos, a questão da identidade calcada em uma trajetória comum aparece ou de forma subliminar ou conclamando os leitores a partilharem dela. Esta situação, em que as pessoas são chamadas a participar desta identidade, parte de uma memória comum, construída ou não. Esse processo pode ser explicado por Diehl (2002, p. 114): “Tempo como força de corrosão, espaço como lócus da experiência da rememorização e o movimento como estrutura simbólica da cultura são os elementos constituidores da(s) memória(s) e da(s) identidades(s)”. Um outro elemento que pode ser percebido por esta valorização e rememoração de um passado distante é que, no atual contexto, tornou-se mais confortável pensar no passado do que no futuro. O prefeito anunciou que, “no momento em que Terra de Areia comemora 12 anos de sua emancipação política, e o Brasil comemora 500 anos de seu Descobrimento, é importante registrar que a nossa comunidade vem trabalhando contínua e incessantemente no resgate de suas raízes históricas.” (apud ELY, 2000, p. 9). Se a valorização da História está em foco pelo poder público, somar a ela as questões da etnogênese, com a retomada desta germanidade perdida, traz ainda mais legitimidade ao projeto materializado no Simpósio. Segundo Bartolomé (2006, p. 58), “o processo de construção ou reconstrução identitária supõe assim um nível de reflexividade coletiva orientada para a valorização da história e da cultura compartilhada, em alguns casos, mediada pela escrita”. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 67-80, jul./dez. 2011 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 77 É necessário descobrir se a demanda por memória, apresentada com tanta ênfase no discurso do prefeito, da organizadora e da secretária de Educação era também uma reivindicação dos cidadãos de Terra de Areia. Na leitura de um livro, podemos mapear as estratégias, as memórias, as escolhas e a visão de História, mas perdemos quais desdobramentos este evento e este livro trouxeram para a população. Além disso, patrocinar o livro e promover o evento sobre a história da região colocou tanto o prefeito como os vereadores (que aprovaram o projeto) como “guardiões” dessa memória que estava por ser perdida. Afinal, transformar um trabalho promovido por uma administração pública em um livro é, literalmente, deixar seu nome gravado na História, nas palavras de Deli Medeiros, secretária de Educação e Cultura: Dois eventos marcantes [o Simpósio e a inauguração do busto do Coronel Niederauer] que ficarão na memória do nosso povo, e servirão de modelo às administrações que nos sucederem, pois as crianças que serão nossos futuros governantes jamais esquecerão (apud ELY, 2000, p. 12). Devemos lembrar que, embora tenha sido organizado um evento e editado um livro pretendendo resgatar a germanidade do Litoral Norte, nem sempre os discursos atingem seus objetivos. O Simpósio foi um sucesso, segundo a narrativa registra no prefácio, mas, o discurso de reativação étnica atingiu seus objetivos? A forma como a população de Terra de Areia se definia em termos étnicos mudou? São questões em aberto pela pesquisa e que ainda serão desenvolvidas. Ocorreram outros Simpósios sobre Imigração Alemã no Litoral Norte. Sempre com este caráter de buscar e reativar a germanidade nas diversas cidades da região. O modelo utilizando falas de historiadores acadêmicos e diletantes, apresentações de escolas, participação de moradores e inaugurações, jantares e homenagens, persistiu. As demais edições ocorreram em Torres, Três Cachoeiras, Arroio do Sal e Dom Pedro de Alcântara. Essa vitalidade nos mostra que a busca por uma identidade, neste caso pela “germanidade perdida”, encontra espaço nas administrações municipais e no público que participa dando depoimentos e prestigiando estes eventos. Recebido em outubro de 2011. Aprovado em novembro de 2011. 78 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 67-80, jul./dez. 2011 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/in6ex.php/arquivos> The Restoration of German Identity in the First Symposium on German Immigration in the North Coast/ RS Abstract: This article examines the preface, presentation, and the first chapter of the book titled Marcas do Tempo: Terra de Areia (2000), a collection of lectures of the First Symposium on German Immigration in the North Coast / RS (1999). This area received German immigrants in the late nineteenth century but, unlike other centers of colonization Southern Rio Grande, these immigrants became culturally integrated with the Luso-Brazilian groups already established. According to the authors, it was necessary to recover the history and the practices related to the Germanic identity, including language, cuisine and traditional festivities, in order to return to the population’s abandoned roots. It is possible to observe the political use of history by the municipal administration, trying to restore the lost ethnicity, and marking its name in the memory of the city. Keywords: Identity. Germanic. Historiography. Referências BARTOLOMÉ, Miguel Alberto. As Etnogêneses: velhos atores e novos papéis no cenário cultural e político. Mana, 12(1), p. 39-68, 2006. DEL PRIORE, Mary. [Sem título]. Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 5, n. 55, p. 50-55, abr. 2010. Entrevista concedida a esta Revista. DIEHL, Astor Antônio. Cultura Historiográfica, Memória, Identidade e Representação. Bauru: Edusc, 2002. ELY, Nilza Huyer (Org.). Terra de Areia: marcas do tempo. I Simpósio sobre Imigração Alemã no Litoral Norte/RS. Porto Alegre: EST Editora, 2000. HALBWACHS. Maurice. Memória Coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. NORA, Pierre. Entre Memória e História. A problemática dos lugares. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História. São Paulo, n. 10, p. 7-28, dez. 1993. OLIVEIRA, Roberto Cardoso. Os (des)caminhos da identidade. Revista Brasileira de Ciências sociais, v. 15, n. 42, fev. 2000. ______. Identidade, Etnia e Estrutura Social. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1976. POMIAN, Krzystof. Sobre la História. Madrid: Cátedra, 2007. POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade. São Paulo: UNESP, 1998. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 67-80, jul./dez. 2011 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 79 SARLO, Beatriz. Tempo Passado. Cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Cia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007. SEYFERTH, Giralda. Identidade étnica, assimilação e cidadania. A imigração alemã e o Estado brasileiro. Anais do XVII Encontro Anual da ANPOCS. Caxambu/MG, 22-25 out. 1993. Disponível em: <http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/ rbcs_00_26/rbcs26_08.htm> ______. As identidades dos imigrantes e o melting pot nacional. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 6, n. 14, p. 143-176, nov. 2000. ______. Etnicidade política e anscenção social: um exemplo teuto-brasileiro. Mana, n. 5, p. 61-88, 1999. WEBER, Roswithia. As comemorações da imigração alemã no Rio Grande do Sul: o ‘25 de julho’ em São Leopoldo, 1924/1949. Novo Hamburgo: FEEVALE, 2004. WITT, Marcos. A dinâmica das colônias alemãs do Litoral Norte do Rio Grande do Sul – São Pedro de Alcântara e Três Forquilhas (1845-1888). In: ELY, Nilza Huyer (Org.). Terra de Areia: marcas do tempo. I Simpósio sobre Imigração Alemã no Litoral Norte/RS. Porto Alegre: EST Editora, 2000. 80 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 50, p. 67-80, jul./dez. 2011 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/in6ex.php/arquivos>