1 Rizoma: uma introdução aos Mil Platôs de Deleuze e Guattari

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1 Rizoma: uma introdução aos Mil Platôs de Deleuze e Guattari
Rizoma: uma introdução aos Mil Platôs de Deleuze e Guattari
Cléber Cabral e Diogo Borges
Resumo:
Nosso objetivo é fazer uma apresentação à proposta de pensamento expresso
na obra Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, de Gilles Deleuze e Félix
Guattari. Este texto busca, inicialmente, apresentar uma proposição sintética do
conceito "rizoma", tal como proposto pelos autores referidos acima. Após a
exposição do conceito, apresentaremos algumas perspectivas de análise da
situação contemporânea a partir desse conceito e da rede conceitual deleuzeguattariana.
Palavras-Chave: rizoma, sistemas centrados e a-centrados, cartografia,
inconsciente.
Introdução
Em Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia a dupla formada pelo filósofo Gilles
Deleuze e pelo psicanalista Félix Guattari busca fazer uma crítica ao mesmo
tempo histórica e ontológica da psicanálise, passando pelo pensamento de
Marx e Nietzsche. Tal como aludem os autores no prefácio à edição italiana do
volume da obra Mil Platôs "O Anti-Édipo tinha uma ambição kantiana: era
preciso tentar uma espécie de crítica da razão pura no nível do inconsciente."
(DELEUZE e GUATARRI, 2004: 06). Para melhor compreendermos a propostatrajeto iniciada em Anti-Édipo, faz-se conveniente relembrarmos seus três
temas fundamentais, que seriam:
1- Substituição da idéia do inconsciente enquanto teatro pela idéia de
inconsciente como usina (questão de produção de inconsciente e não de
representação de conteúdos do inconsciente).
2- O delírio é histórico-mundial, não familiar: deliram-se raças, tribos, culturas,
organizações, posições sociais, etc.
3- Existe uma história universal, que não é a da necessidade, e sim da
contingência (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 07).
Já na seqüência de Anti-Édipo, os Mil Platôs, a preocupação apresentada
pelos autores é de outra ordem: A construção de conceitos capazes de pensar
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a contemporaneidade importa mais que fazer uma crítica da mesma. "O projeto
é construtivista" (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 08), dizem os autores.
O Anti-Édipo foi um livro escrito no calor dos eventos do Maio de 68, e escrito
para aqueles que estavam fartos da psicanálise: "Sonhávamos em acabar com
Édipo" (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 07), mas as reações ao Maio de 68 e o
desenrolar da história mostraram o quanto Édipo era forte e ainda dominava e, como um olhar mais cuidadoso pode observar, ainda domina certa parcela
considerável do pensamento psicanalítico contemporâneo. Era preciso tentar
algo novo, e o que se propõe com os "platôs" é justamente esta tentativa, a de
constituir um pensamento que se efetue através do "múltiplo" - e não a partir de
uma lógica binária, dualista, do tipo "um-dois", "sujeito-objeto", que se efetue
por dicotomia, tal como vemos na psicanálise, na lingüística e na informática -,
de modo a construir uma teoria das multiplicidades que fosse imanente, que
colocasse propostas concretas de pensamento ao invés de simplesmente se
limitar à crítica da psicanálise.
O primeiro conceito criado para propor esta teoria das multiplicidades é o
conceito de "rizoma". Veremos ao longo dos platôs como o conceito de rizoma
funciona perfeitamente como o ponto de partida para se pensar as
multiplicidades por elas mesmas, visto que o fundamento do rizoma é a própria
multiplicidade. Vejamos a definição dada pela botânica:
"Em botânica, chama-se rizoma a um tipo de caule que algumas plantas verdes
possuem, que cresce horizontalmente, muitas vezes subterrâneo, mas
podendo também ter porções aéreas. O caule do lírio e da bananeira são
totalmente subterrâneos, mas certos fetos desenvolvem rizomas parcialmente
aéreos. Certos rizomas, como em várias de capim (gramíneas), servem como
órgãos de reprodução vegetativa ou assexuada, desenvolvendo raízes e caules
aéreos nos seus nós. Noutros casos, o rizoma pode servir como órgão de
reserva de energia, na forma de , tornando-se tuberoso, mas com uma
estrutura diferente de um tubérculo ."
O conceito desenvolvido por D&G amplia muito esta definição, justamente pelo
fato de que o conceito na botânica não comporta a multiplicidade, se limitando
a definir um tipo específico de caule. Para D&G, este tipo de caule em conjunto
com a terra, o ar, animais, a idéia humana de solo, a árvore, e etc formariam o
rizoma, não se limitando apenas à pura materialidade, mas também à
imaterialidade de uma máquina abstrata que o arrasta, sendo, portanto, um
conceito ao mesmo tempo ontológico e pragmático de análise.
Rizoma
"Um platô está sempre no meio, nem início nem fim. Um rizoma é feito de
platôs." (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 33)
Um rizoma é uma segunda espécie de conjunto de linhas. Um primeiro
conjunto de linhas é aquele no qual uma linha é subordinada ao ponto, à
verticalidade e horizontalidade, que estria o espaço, faz um contorno, submete
multiplicidades variáveis ao Uno, ao Todo de uma dimensão suplementar ou
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suplementária. As linhas deste tipo são as linhas molares, e formam sistemas
binários, arborescentes, circulares e segmentários.
Um rizoma é totalmente diferente deste primeiro tipo de linhas, o rizoma não é
exato, mas um conjunto de elementos vagos, nômades, de maltas e não de
classes: "Do ponto de vista do pathos, é a psicose e sobretudo a esquizofrenia
que exprimem estas multiplicidades." (DELEUZE e GUATARRI, 1997: 221) É
oportuno enumerar agora algumas características aproximativas do rizoma,
para, posteriormente pensarmos esse conceito numa perspectiva mais ampla.
1º e 2º - Princípios de conexão e heterogeneidade
Qualquer ponto de rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo.
Descentramento do sujeito, negação da genealogia, afirmação de uma
heterogênese em oposição à ordem filiativa do modelo de árvore e raiz. O
rizoma é distinto disso tudo, pois não fixa pontos nem ordens - há apenas
linhas e trajetos de diversas semióticas, estados e coisas, e nada remete
necessariamente a outra coisa. Para demonstrar estes princípios, D&G
recorrem à ontologia da linguagem, e conseqüentemente à lingüística: "A
árvore lingüística à maneira de Chomsky começa ainda num ponto S e procede
por dicotomia" (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 15), sendo assim "um marcador
de poder antes de ser marcador sintático". (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 15)
Tais modelos não dão conta nem da abstração nem da materialidade da língua,
"por não atingir a máquina abstrata que opera a conexão de uma língua com os
conteúdos semânticos e pragmáticos de enunciados, com agenciamentos
coletivos de enunciação, com todo uma micropolítica do campo social."
(DELEUZE e GUATARRI, 2004: 15)
É preciso levar sempre em conta as formas de organizações de poder, pois
"não há universalidade da linguagem, mas sim um concurso de dialetos, de
patoás, de gírias, de línguas especiais. (...) A língua é, segundo uma fórmula
de Weinreich, "uma realidade essencialmente heterogênea". Portanto, é
impossível pensar em "uma língua-mãe", mas somente em uma "tomada de
poder por uma língua dominante dentro de uma multiplicidade política"
(DELEUZE e GUATARRI, 2004: 16).
De modo que "a unidade de uma língua é sempre inseparável da construção
de uma unidade política". (GUATARRI, 1988: 25) A língua se forma e se
estabiliza em torno de uma comunidade, de uma coletividade, espalhando-se
como uma mancha de óleo, "evolui ao longo das linhas de uma estrada de
ferro". (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 16) Uma prática analítica do tipo rizoma
procura analisar a linguagem efetuando um descentramento sobre outras
dimensões e outros registros, pois a análise lingüística que se fecha sobre a
própria linguagem só o faz "em uma função de impotência". (DELEUZE e
GUATARRI, 2004: 16) Isto equivale a dizer que estaríamos, neste caso,
subordinando linguagem à linguagem apenas, definindo-a ao mesmo tempo
como ponto central e elemento local. Uma analítica rizomática, ao contrário,
procurar "estabelecer conexões transversais entre os estratos e os níveis, sem
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centrá-los ou cercá-lo, mas atravessando-os, conectando-os". (GUATARRI e
ROLNIK, 1986: 322)
3º - Princípio de multiplicidade
Pensar o múltiplo efetivamente como substantivo, pois é aí que ele não tem
mais nenhuma relação com o uno como sujeito ou objeto, como realidade
natural e espiritual, como imagem e mundo, pois a multiplicidade não constitui
sujeito e muito menos objeto, mas apenas determinações, grandezas e
dimensões, "que não podem crescer sem que se mude de natureza".
(DELEUZE e GUATARRI, 2004: 16) As multiplicidades se definem pelo fora,
pelas linhas que compõe um rizoma, linha abstrata e linha de fuga. O plano de
consistência (ou plano de imanência) é o fora de todas as multiplicidades, e
nele a linha de fuga marca ao mesmo tempo "um número de dimensões finitas
que a multiplicidade preenche", assim como "a impossibilidade de toda
dimensão suplementar" e também a "possibilidade e a necessidade de achatar
todas estas multiplicidades sobre um mesmo plano de consistência ou
exterioridade". (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 17)
Uma boa maneira de compreender esta idéia de multiplicidade é olhando uma
marionete, os fios e o manipulador: os fios de uma marionete constituem a
multiplicidade, nem o que controla, nem o boneco controlado com as cordas,
mas as próprias cordas, que comunicam uma parte à outra. São as linhas de
um ponto ao outro que importam, não os pontos em si. Um outro exemplo de
multiplicidade evocado por D&G é a escrita de Kleist, um "encadeamento
quebradiço de afetos e velocidades variáveis", onde numa mesma página se
expõe toda a exterioridade: "Acontecimentos vividos, determinações históricas,
conceitos pensados, indivíduos, grupos e formações sociais". D&G opõem esta
escrita rizomática, composta em platôs "(...)que se desenvolve evitando toda
orientação sobre um ponto de culminância ou em direção a uma finalidade
exterior" (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 33) ao livro clássico, romântico,
sendo este definido e constituído pela interioridade de um sujeito ou
substância. O livro-máquina de guerra contra o livro-aparelho de Estado: Kleist
versus Goethe, Nietzsche versus Kant, multiplicidade versus unidade.
4º - Princípio de ruptura a-signficante:
Um rizoma pode ser rompido e quebrado em algum lugar qualquer, mas
também retoma segundo uma de suas linhas ou segundo outras linhas.
"Todo rizoma compreende linhas de segmentariedade segundo as quais ele é
estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído, etc; mas
também compreende linhas de desterritorialização pelas quais ele foge sem
para". (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 18)
Cada vez que há ruptura no rizoma as linhas segmentares explodem numa
linha de fuga, mas estas linhas de fuga são parte do rizoma: as linhas não
param de remeter umas às outras. Traça-se uma linha de fuga quando se faz
uma ruptura, mas nela podem encontrar-se com elementos que reordenam o
conjunto e reconstituem o sujeito. "Como é possível que os movimentos de
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desterritorialização e os processos de reterritorialização não fossem relativos,
não estivessem em perpétua ramificação, presos uns aos outros?" (DELEUZE
e GUATARRI, 2004: 18)
A orquídea se desterritorializa, forma uma imagem, um decalque da vespa, e a
vespa se reterritorializa sobre esta imagem, o que, no entanto, é uma
desterritorialização, pois ao se tornar parte do aparelho de reprodução da
orquídea ela também reterritorializa a orquídea ao transpor o pólen. As duas
juntas formam um rizoma. No nível dos estratos: paralelismo, entre dois
estados determinados, cuja organização de um imitou a do outro. Mas trata-se
de algo completamente diferente: Não mais imitação, mas captura, mais valia
de código, devir-vespa da orquídea e devir-orquídea da vespa, cada um
assegurando ao outro os movimentos de desterritorialização e
reterritorialização de uma das partes - "dois devires se encadeando e
revezando segundo uma circulação intensidades que empurra a
desterritorialização cada vez mais longe". (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 19)
Se introduzirmos mais uma parte no rizoma vespa-orquídea, levaríamos a
outros pontos e processos tal relação: quando um homem entra neste sistema
e introduz, por exemplo, um agrotóxico, ou desmata uma região. Toda uma
reorganização das relações no rizoma. Não havendo mais orquídeas, as
vespas terão de procurar outras flores.
"Os esquemas de evolução não se fariam mais segundo modelos de
descendência arborescente (...) mas segundo um rizoma que opera
imediatamente no heterogêneo e salta de uma linha já diferenciada à outra."
(DELEUZE e GUATARRI, 2004: 19)
Nossa evolução e morte se deu mais por gripes, vírus e bactérias polimórficas
e rizomáticas do que por doenças hereditárias.
5º e 6º - Princípio de cartografia e de decalcomania:
"Um rizoma não pode ser justificado por nenhum modelo estrutural ou
gerativo". Toda a lógica dos sistemas arborescentes é uma lógica do decalque
e da reprodução, tanto na lingüística quanto na psicanálise, faz-se um decalque
de algo que já está dado, a partir de "uma estrutura que sobrecodifica ou de um
eixo que suporta". (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 21)
Faz-se um decalque do inconsciente, ou da linguagem, colocando-o segundo
uma ordem de complexos codificados, que cabem ao psicanalista ou lingüista
interpretarem seguindo uma certa lógica que também já está dada: a árvore
articula e hierarquiza os decalques, fazendo destes as folhas da árvores. O
rizoma é mapa, e não decalque. "A orquídea não reproduz o decalque da
vespa, ela compõe um mapa com a vespa no seio de um rizoma". (DELEUZE e
GUATARRI, 2004: 22) O mapa é aberto e desmontável, pode ser conectado
em qualquer uma de suas partes ou dimensões, é reversível e suscetível de
receber montagens de qualquer natureza, ser (re)construído por um indivíduo
ou por uma formação social, como obra de arte ou ação política, como uma
meditação. Ele tem entradas múltiplas, "(...)contrariamente ao decalque, que
volta sempre ao mesmo". (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 22)
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É preciso, no entanto, não opor os dois sistemas, restaurando assim um
dualismo binário: "É preciso sempre projetar o decalque sobre o mapa".
(DELEUZE e GUATARRI, 2004: 23) O decalque pode estruturar um rizoma,
codificá-lo, "neutralizando assim as multiplicidades segundos eixos de
significância e de subjetivação" (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 23), mas o que
o decalque reproduz do rizoma são apenas os impasses, os bloqueios, seus
pontos de estruturação. (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 23)
A psicanálise e a lingüística apenas tiraram fotos ou decalques do inconsciente
e da linguagem. É importante tentar uma outra operação, religando os
decalques ao mapa, relacionando árvores e raízes ao rizoma. Estudar o
inconsciente seria mostrar como ele tenta constituir um rizoma, com a casa da
família, mas também com a linha de fuga da rua, mostrar como tais linhas são
obstruídas, enraizadas na família, decalcado sobre o pai e a cama materna.
(DELEUZE e GUATARRI, 2004: 24) Podemos entrar no rizoma até mesmo
pelos decalques e árvores-raízes. Há agenciamentos muito diferentes neste
ponto, como mapas-raízes, rizomas-decalques, uma dimensão de raiz pode
brotar no rizoma e inversamente, um rizoma pode surgir na árvore. "Um
acontecimento microscópico estremece o equilíbrio do poder local" (DELEUZE
e GUATARRI, 2004: 25): Onze de setembro. A história está repleta de tais
acontecimentos.
O próprio pensamento é descentralizado, mesmo tendo um órgão que age
como centralizador. "O pensamento não é arborescente e o cérebro não é uma
matéria enraizada nem ramificada. (...) É mais uma erva que uma árvore".
(DELEUZE e GUATARRI, 2004: 25) É um sistema nervoso, probabilístico e
incerto que compõe o pensamento, não apenas o cérebro: "uncertain nervous
system". (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 25)
Neurólogos e psicofisiólogos distinguem uma memória longa e uma curta, da
ordem de um minuto, e sua diferença não é somente quantitativa. A memória
curta é do tipo rizoma, diagramática, enquanto que a longa é árvore centralizada. A memória curta pode ir e voltar em questão de momentos ou
minutos, é descontínua, faz rupturas e opera por descontinuidade. As
memórias não se tipos temporais diferentes de apreensão da mesma coisa,
não são as mesmas idéias que apreendem nem a mesma recordação. "A
memória curta compreende o esquecimento como processo", e não se
confunde com o instante, mas sim com o rizoma temporal, coletivo e nervoso.
A memória longa é a família, raça, sociedade, civilização, opera por decalque e
tradução, mas os dados que ela traduz continuam "a agir nela, à distância, a
contratempo, intempestivamente, não instantaneamente". (DELEUZE e
GUATARRI, 2004: 26).
A psicanálise do "pequeno Hans”: O que a psicanálise faz é quebrar seu
rizoma, manchar seu mapa, colocando-o em um lugar de onde a saída é
bloqueada, "até que ele deseje sua própria vergonha e culpa, fobia. (...)
Deixarão que vocês vivam e falem, com a condição de impedir qualquer saída".
(id. pg. 23) Existem sempre estruturas de árvores e raízes no rizoma, mas das
árvores também brotam os rizomas. A psicanálise coloca o 'paciente' dentro do
sistema centrado na significância a partir do inconsciente, mas o 'psicanalizado'
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não se cansa de colocar novamente os rizomas, quebrando a ordem
psicanalítica com linhas de fugas. "A melhor posição para se ouvir o
inconsciente não consiste necessariamente em ficar sentado atrás de um
divã.". (GUATARRI, 1988:189) O psicanalista vira o ditador, fundando seu
poder a partir do estabelecimento de uma ordem ditatorial do inconsciente
concebido como árvore. Poderíamos mostrar as linhas, como fez Guattari na
cartografia (mapa) do caso Hans:
Figura 1:
As linhas que constituem o diagrama do "pequeno Hans" seriam:
A - território familiar;
B - território do leito conjugal dos pais;
C - aparência da mãe;
D - objeto do poder fálico;
E - territorialidade maquínica do fantasma inconsciente.
Observa-se nesse diagrama do inconsciente do "pequeno Hans" como sua
libido foi levada a investir na produção de micropolíticas de existência a partir
da análise do conjunto de suas produções semióticas - tais como o território
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familiar, a aparência da mãe. O que a psicanálise de Freud faz é conceber
esse inconsciente enquanto estádio genético estrutural, como estádio-árvore,
em suma, procede a uma paradigmatização sistemática de todos os conteúdos
e estratégias enunciativas a partir de referências abstratas ou estruturais
centradas sobre materiais verbais e interpretações semióticas dos afetos e dos
comportamentos. "Você está acuado, você está acuado. Confessa!"
(DELEUZE, 1996:12) A esquizoanálise, enquanto pragmática do inconsciente
maquínico, propõe a construção de uma carta de inconsciente de acordo com
cada caso ou situação, de modo a determinar quais são as principais linhas
micropolíticas dos agenciamentos de enunciação e das formações de poder em
seus níveis mais abstratos.
"É curioso como a árvore dominou a realidade ocidental e todo o pensamento
ocidental, da botânica à biologia, a anatomia, mas também gnoseologia, a
teologia, a ontologia, toda a filosofia". (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 28-29)
Enquanto o ocidente é a floresta e o campo, o oriente apresenta outra figura,
as relações com a estepe, jardim, deserto e oásis. "Ocidente, agricultura de
uma linhagem escolhida com muitos indivíduos variáveis; Oriente, horticultura
de um pequeno número de indivíduos remetendo a uma grande gama de
clones". (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 29) A América inverteu as direções
tradicionais do ocidente, colocando seu oriente ao oeste, "como se a terra
tivesse se tornado redonda precisamente na América". (DELEUZE e
GUATARRI, 2004: 30) Bem sabemos que foi ela que conectou uma parte do
mundo à outra, e ela é "(...) ao mesmo tempo árvore e rizoma". (DELEUZE e
GUATARRI, 2004: 31) A história da América é aquela em o europeu, branco,
macho, dominante, perdeu sua civilidade na barbárie da conquista do Eldorado,
mas também foi onde deixou para os "novos corpos" ali formados alguns
elementos próprios de sua idéia de civilidade, estado, etc. Desterritorialização,
territorialização e reterritorialização. Vejamos um exemplo dado por Guattari de
uma cartografia para um processo histórico, neste caso, a formação histórica
do stalinismo, como apresentada na Figura 1:
Figura 2:
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Na figura acima percebemos com mais clareza a combinação das diversas
linhas que compõem o rizoma, que, nesse caso, (as linhas) assumem um
caráter molar, de segmentariedade dura - no caso, um processo de dominação
política ditatorial. Elementos moleculares, como a ruptura leninista e a máquina
de seu partido, atuaram primeiramente em um movimento de dissolução da
antiga molaridade aristocrata da Rússia do início do século passado, para,
posteriormente, serem capturados nos bloqueios efetuados por outras linhas desencadeadas pela morte de Lênin e pela crise econômica e social. Neste
ponto, uma molecularidade capturada é anulada por segmentariedades que
efetivam o impasse e a levam ao nível molar, instaurando o regime
centralizador de Stalin
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Bem sabemos que o capitalismo agiu no fim dos anos 80 como um vetor de
desterritorialização - linha de fuga que explode o rizoma que configurou o
comunismo soviético -, desencadeando toda uma reterritorialização dos
agenciamentos, uma reorganização das linhas. Em Anti-Édipo fica clara este
caráter desterritorializante-reterritorializante do capital, sempre disposto a ir
assimilando elementos novos que podiam fazer parte até mesmo de sua crítica,
como por exemplo, nos anos 60, onde:
"O capitalismo "endogeneizou" as reivindicações por autonomia e por
responsabilidade até então consideradas como subversivas, e conseguiu
substituir o controle pelo autocontrole, tornando o trabalho mais atraente para
uma mão de obra jovem e com mais escolaridade que nas décadas anteriores".
(PELBART, 2003: 106)
Como mencionamos ao início, o rizoma é uma segunda espécie de conjunto de
linhas de linha. Somos atravessados e constituídos por estas linhas. O rizoma
é o contrário da estrutura, pois enquanto esta se apresenta constituída como
um "(...) conjunto de pontos e posições que opera por correlações binárias
entre os pontos e relações biunívocas entre as posições" (DELEUZE e
GUATARRI, 2004: 32), o rizoma procede por variação, conquista, captura, é
heterogêneo, um mapa "(...) sempre desmontável, conectável, reversível".
(DELEUZE e GUATARRI, 2004: 33) É uma produção de inconsciente
(individual, dual, coletivo, social), e não uma representação de conteúdos
desprovidos de significância e de subjetivação. Fazer um rizoma é traçar estas
linhas. A esquizoanálise se apresenta como uma tentativa de uma pragmática
das linhas, de produção de rizoma, de seus bloqueios nas raízes, suas rupturas
em linhas de fuga, a transformação das árvores em rizomas subterrâneos - ou
aéreos, a aliança entre o homem e a máquina para constituir outras máquinas
que já não são nem um nem outro, mas elementos constitutivos de uma
ontologia maquínica no qual tudo é coextensivo a tudo.
Conclusão
O conceito rizoma funciona como a porta de entrada ao pensamento deleuzeguattariano, porta cujo local de aparição é variável, indeterminado, vagamente
dado, uma porta pela qual entramos e caminhamos a qualquer lugar destes
platôs: qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e
deve sê-lo. O rizoma "(...) é feito de direções móveis, sem início nem fim, mas
apenas um meio, por onde ele cresce e transborda, sem remeter a uma
unidade ou dela derivar". (PELBART, 2003: 216) O rizoma não é um sistema
hierárquico, é "(...)uma rede maquínica de autômatos finitos a-centrados"
(DELEUZE e GUATARRI, 2004: 28), não-significante e heterogêneo. Não há
uma força coordenadora dos movimentos, o rizoma é uma circulação de
estados, uma combinação anômala cujos resultados não podemos prever ou
organizar, pois ele está sempre em um meio. Um conjunto de devires e sempre
um intermezzo - tais seriam as proposições constitutivas de um rizoma,
lembrando que o rizoma trata-se de produção de inconsciente e de novos
enunciados e de outros desejos.
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No trajeto esboçado ao longo dos cinco volumes de Mil Platôs, podemos
compreender como os conceitos possuem uma conectividade - variável e
indeterminada - sem que haja uma unidade ou um conceito determinante para
o funcionamento de tal rede de conexões conceituais. O rizoma funciona como
um princípio cosmológico, caixa de ferramentas, um sistema aberto. O rizoma
talvez seja o mais deleuziano dos conceitos de "Mil Platôs". É possível
perceber ressonâncias da idéia de diferença tal como Deleuze a coloca:
diferença como pura imanência, não remetendo a nada senão a ela mesma,
numa superfície onde tudo se esvai - plano de consistência ou máquina
abstrata. Deleuze desenvolve uma concepção inteiramente diferente das idéias
e conceitos, introduzindo a noção de multiplicidade: "As Idéias são
multiplicidades; cada idéia é uma multiplicidade, uma variedade" e considera
que:
"A multiplicidade não deve designar uma combinação de múltiplo e uno, mas,
pelo contrário, uma organização própria do múltiplo como tal, que de modo
nenhum tem necessidade da unidade para formar um sistema." (DELEUZE,
1988: 303)
Deleuze opõe a um universo extensivo, constituído por coisas e
representações, por identidades e diferenças referidas a uma unidade, um
universo intensivo, constituído por singularidades pré-individuais, espaço de
diferenças puras onde a noção de repetição se liberta da idéia de mesmo, para
sempre constituir a pura diferença. Isto que será ampliado em Mil Platôs,
desembocando na idéia do rizoma. É clara a presença do conceito nietzschiano
de vontade de potência, força criativa e intempestiva - imanência do desejo e
da diferença, irrupção da multiplicidade. Apenas sob esta concepção
cosmológica de vontade de potência subordinada à intempestividade que a
diferença pode afirmar-se sem as negatividades de uma outra identidade,
conseqüentemente, é apenas sobre ela que o rizoma pode ser caracterizado. O
rizoma funciona apenas quando desistimos das oposições binárias, e funciona
como a grande cosmologia que atravessa todos os Platôs - no rizoma
entraímos e saímos em qualquer lugar. É importante colocar agora as
questões: "É possível uma analítica rizomática?". E conseqüentemente: "Como
e onde podemos fazê-la?" Esperamos que nosso texto tenha apontado
algumas diretrizes gerais para a investigação em vários níveis e áreas do
conhecimento, seja ele histórico, sociológico, psicológico, político, etc. O
rizoma pode perfeitamente funcionar como um princípio geral para o
norteamento de análises em grupos, indivíduos, sociedades e culturas.
Podemos pensá-lo como uma metodologia, um questionamento que pode atuar
tanto em níveis materiais como os imateriais (pensando-se os enunciados
enquanto "materialidades do imaterial"), pois é um conceito ontológico e
pragmático: De que linhas isto é feito? Como são elas? Onde formam sistemas
arborescentes, centrados, mas, onde estão suas fugas, impasses, bloqueios,
explosões e rupturas? Vários estudos podem expandir essas questões,
colocando outras igualmente. Várias cartografias são possíveis, mas não as
"montaremos" agora. Nosso objetivo com o presente texto é de apenas
apresentar uma proposição-introdução sintética ao pensamento deleuzeguattariano, através do conceito de rizoma. Pode-se ver bons resultados da
aplicação dos conceitos deleuze-guattarianos nos trabalhos do italiano Antonio
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Negri, do brasileiro Peter Pál-Pelbart, do americano Michael Hardt, não
esquecendo do impacto (e diálogo) que a filosofia deleuziana teve na obra e no
pensamento de Michel Foucault e de vários outros pelo mundo. Para lembrar
Nietzsche, em seu prólogo para "Além do bem de do mal": O arco ficou tenso e
as flechas foram lançadas, cabe a nós agarrá-las e atirá-las para novos rumo,
para alvos ainda mais distantes. (NIETZSCHE, 1992: 06) O presente trabalho
se constitui como um esforço para propiciar novas tentativas de se pensar
velhos temas, como a condição humana, a economia, a subjetividade, a
política, e a sociedade. Temas velhos, mas sempre atuais - talvez até mesmo
inatuais e extemporâneos - e passíveis de constantes reconstruções,
revezamentos e modificações - tal como o rizoma.
Estudante de graduação do curso de Letras (bacharelado em Português) da
UFMG. Estudante de graduação do curso de História (bacharelado/licenciatura)
da PUC-MG. 1 - Doravante, iremos nos referir aos autores utilizando-nos da
abreviatura D&G (Deleuze & Guattari).
2-O "Édipo" ao qual nos referimos e ao qual aludem os autores é apresentado
como um construto, um dispositivo histórico que estabelece um certo número
de relações de poder entre a sociedade e os indivíduos.
3-Enciclopédia
On-line
Wikipédia
Disponível
<http://www.wikipedia.org/rizoma>. Acessado em Março, 2005.
em
4-DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia.
Vol. 5. São Paulo, Ed. 34. 1997. pg. 220.
5-DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia.
Vol. 1. Pg.15.
6-A heterogênese seria algo como a produção do inusitado em nossas vidas,
algo como desfazermo-nos de um território existencial e criar outros
simultaneamente. A heterogênese é um processo similar à noção de linhas de
fuga (outra noção proposta por D&G). Para maiores esclarecimentos ver
DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia.
Vols. 1 e 5. Ed. 34. 2004.
7-"S" aqui se refere à sentença como axioma central de um diagrama em forma
arborescente que procede sua analítica pela hierarquização sucessiva de
elementos locais que remontam a tal axioma. Tal descrição é espelhada na
proposta apresentada pela gramática gerativa de Noam Chomsky de análise
dos elementos sintáticos constituintes de uma competência lingüística
supostamente comum a todos os seres humanos.
8-A propósito da desterritorialização e suas relações com o território, ver
também "Conclusão: Regras concretas e Máquinas Abstratas", In: Mil Platôs capitalismo e esquizofrenia, vol. 5.
9-A "psicanálise do pequeno Hans" trata-se da monografia-príncipe de Freud
sobre psicanálise da criança encontrada na obra Cinco psicanálises.
12
10 GUATTARI, Félix. Notas para uma esquizoanálise. In: O inconsciente
maquínico: ensaios de esquizoanálise. Ed. Papirus, 1988. Pg. 169.
11-GUATTARI, Félix. Notas para uma esquizoanálise. In: O inconsciente
maquínico: ensaios de esquizoanálise. Ed. Papirus, 1988. Pg. 172.
12-Em oposição a ontologia naturalista que opõe homem x máquina, Deleuze e
Guatarri propõem uma simbiose, uma aliança, uma sinergia entre o homem e a
natureza, a natureza e a indústria. Tal ontologia maquínica é concebida por
eles como sendo uma "geo-ontologia" na qual a terra, como a grande máquina,
a "máquina de todas as máquinas", hibridiza natureza e artifício em
mecanosfera.
13-Para maiores esclarecimentos acerca das noções de "máquina abstrata" e
de plano de consistência, ver DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil platôs:
Capitalismo e esquizofrenia. Vol. I. Pgs. 87 e 88. Ver também GUATTARI,
Félix. ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Pgs. 320 e 321.
14-A respeito do conceito de nietzschiano de vontade de potência e sua
utilização por Deleuze, ver o texto "Mistério de Ariadne segundo Nietzsche", in
DELEUZE, Gilles, Crítica e Clínica. Ed. 34. Para uma concepção cosmológica
de vontade de potência, ver o trabalho de Scarlet Marton: Nietzsche: Das
forças cósmicas aos valores humanos. Belo Horizonte: Ed. Ufmg, 2000.
Referências bibliográficas:
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
_______________. Conversações. Tradução: Peter Pál Pelbart. - Rio de
Janeiro: Ed. 34, 1996.
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil
esquizofrenia. Vol. I. São Paulo, Ed. 34. 2004.
platôs:
Capitalismo
e
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil
esquizofrenia. Vol. V. São Paulo, Ed. 34. 1997.
platôs:
Capitalismo
e
GUATTARI, Félix. O inconsciente maquínico: Ensaios de esquizo-análise.
Campinas, Papirus. 1988
GUATTARI, Félix. ROLNIK, Suely. Micropolítica: Cartografias do desejo.
Petrópolis, Ed. Vozes. 1986.
PELBART, Peter Pál. Vida capital: Ensaios de biopolítica. São Paulo,
Iluminuras. 2003.
Diogo Borges e Cleber Cabral Integram um grupo de pesquisas
interdisciplinares sob a orientação da Professora Doutora Ester Eliane Jeunon
(PUC - MG), estudando temas diversificados, como a formação histórica dos
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saberes/poderes contemporâneos; articulações entre capitalismo, ética e
subjetividade; entre outros temas.
© Critério, 2006. Todos os direitos reservados.
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