O Movimento de Luta Contra o Desemprego
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O Movimento de Luta Contra o Desemprego
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO INSTITUTO DE PSICOLOGIA CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA MOVIMENTOS SOCIAIS EM UMA PERSPECTIVA PSICOLÓGICOSOCIAL: O MOVIMENTO DE LUTA CONTRA O DESEMPREGO Almir Del Prette Tese apresentada ao Instituto de Psicologia, Universidade de são Paulo, como parte dos requisitos para obtenção do grau de Doutor em Ciências (Psicologia) – área de concentração PSICOLOGIA EXPERIMENTAL. Comissão Julgadora Dra. Maria Alice Vanzolini da Silva Leme Dr. Salvador Antonio Sandoval Dra. Sylvia Leser de Mello Dr. Peter Kevin Spink Dr. Lúcio Félix Frederico Kowarick Defesa – 1990 INDICE RESUMO........................................................................................................................... vi ABSTRACT ..................................................................................................................... vii RESUMÉ ......................................................................................................................... viii UM REFERENCIAL TEÓRICO SOBRE MOVIMENTOS SOCIAIS ....................... 1 1. Movimentos Sociais e Comportamento Coletivo ................................................ 4 2. Movimentos Sociais: estudos sociológicos ....................................................... 14 3. A teoria da identidade social ............................................................................. 28 O comportamento interpessoal e intergrupal .............................................. 30 Identidade, categorização e comparação social........................................... 39 Estrutura de crença e mobilidade social...................................................... 42 Estudos de campo........................................................................................ 45 Proposições básicas ..................................................................................... 48 4. O problema de pesquisa..................................................................................... 50 MÉTODO ......................................................................................................................... 53 1. Procedimento de coleta de dados e fonte........................................................... 55 2. Procedimentos de análise................................................................................... 58 A AÇÃO COLETIVA, CONFLITO E ESTRUTURA................................................. 61 A. A história do Movimento de Luta Contra o Desemprego................................. 62 1. O contexto social ..................................................................................... 62 2. Os primeiros conflitos ............................................................................. 66 a. A região de Santo Amaro. ................................................................... 66 b. Uma ação coletiva de protesto. ........................................................... 67 3. A emergência do Movimento de Luta Contra o Desemprego................. 76 4. A trajetória do movimento ...................................................................... 77 a. Conflitos emergentes. .......................................................................... 79 b. O acampamento do Ibirapuera ............................................................ 83 c. O movimento após o acampamento..................................................... 92 d. A invasão do SINE .............................................................................. 95 e. O movimento após a invasão............................................................. 104 f. A caravana ao Palácio dos Bandeirantes. .......................................... 107 g. A última reunião da Plenária ............................................................. 110 B. O impacto causado pelo MLCD...................................................................... 112 1. Reações do Estado................................................................................. 112 2. A resposta parlamentar.......................................................................... 116 3. O apoio da Igreja ................................................................................... 118 4. A posição da imprensa .......................................................................... 121 5. O efeito sobre outros movimentos......................................................... 125 C – Entidades na dinâmica do movimento .......................................................... 127 1. A Associação Paulista de Solidariedade no Desemprego ..................... 128 A história da Associação. ...................................................................... 128 A estrutura da Associação. .................................................................... 133 2. A Associação de Apoio às Iniciativas Populares. ................................. 137 3. Associação para o Desenvolvimento da Intercomunicação .................. 141 4. O Centro Social de São Francisco de Assis. ......................................... 146 iii 5. O Comitê de Luta Contra o Desemprego de Ermelino Matarazzo........ 149 OS ELEMENTOS DA AÇÃO COLETIVA................................................................ 156 A. Os Comitês de Luta Contra o Desemprego .................................................... 156 B. Os Grupos de Solidariedade............................................................................ 159 1. Estrutura burocrático-formal ................................................................. 160 2. Estrutura histórico-formal ..................................................................... 161 a. Denominação. .................................................................................... 161 b. Composição. ...................................................................................... 163 c. Religiosidade. .................................................................................... 164 d. Condição sócio-econômica................................................................ 166 e. Atividades dos Grupos de Solidariedade........................................... 168 C. Os agentes sociais ........................................................................................... 172 1. História filiativa..................................................................................... 172 2. Caracterização inicial dos agentes......................................................... 178 3. Determinantes do Desemprego. ............................................................ 182 4. Situação de desemprego. ....................................................................... 184 a. Tentativas de obter emprego. ............................................................ 184 b. Conseqüência do desemprego ........................................................... 185 c. Estratégias de sobrevivência.............................................................. 186 5. Recrutamento......................................................................................... 191 6. Motivos da Filiação ............................................................................... 193 7. Atividades de Militância ....................................................................... 194 8. Crenças e aspirações.............................................................................. 197 a. O desemprego como injustiça............................................................ 197 b. O sistema como passível de mudança ............................................... 199 c. A ação coletiva como instrumento de mudança. ............................... 200 DISCUSSÃO .................................................................................................................. 204 A. Ação Coletiva e Identidade Social.................................................................. 204 1. A emergência do processo coletivo....................................................... 204 a. A identidade de espoliado na ação coletiva....................................... 205 b. A identidade dos sem-trabalho. ......................................................... 212 O percurso do Movimento de Luta Contra o Desemprego ....................... 216 a. As manifestações do MLCD.............................................................. 217 b. As respostas obtidas .......................................................................... 222 3. A dispersão do MLCD .......................................................................... 226 B. A diversidade de identidades nas unidades componentes do Movimento de Luta Contra o Desemprego. ................................................................................................. 230 1. Similaridade e diferenciação. ................................................................ 231 2. Identidade de grupo e identidade de movimento. ................................. 236 C. Aspectos psicológico-sociais da participação................................................. 242 1. O vínculo com a questão do desemprego.............................................. 242 a. Experiência distinta compartilhada. .................................................. 243 b. Crença na mudança social. ................................................................ 246 2. Determinantes da filiação...................................................................... 248 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................ 253 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 256 INDICE DE QUADROS E DE FIGURAS .................................................................. 263 iv Agradeço, À Maria Alice V. S. Leme, pela orientação deste trabalho. A Ana Maria Doimo, Sonia Holler, Marcos Estevan Del Prette e Maria Stella de Alcântara Gil, pelas leituras críticas, sugestões e apoio. Ao Mestrado de Psicologia da Universidade Federal da Paraíba, em especial, aos professores Cleonice P. dos Santos Camino, Leôncio Camino, Bartholomeu Tróccoli e Maria Tereza de Melo B. Campello. Ao Departamento de Psicologia da Universidade Federal da Paraíba pela redução de minha carga horária de trabalho didático durante o 1º. semestre letivo de 1987. À Associação Paulista de Solidariedade no Desemprego, Associação de Apoio às Iniciativas Populares, Comitê de Luta Contra o Desemprego de Ermelino Matarazzo, Igreja de São Francisco de Assis pela colaboração desinteressada. Aos agentes, cuja luta na busca do direito ao trabalho se constitui, para mim, um exemplo marcante. Aos meus filhos, Giovana e Lucas, que colaboraram na conferência dos originais digitados. À Zilda Del Prette, de forma muito especial, a quem devo, em grande parte, a realização deste trabalho. v Del Prette, A. Movimentos sociais em uma perspectiva psicológico-social: o Movimento de Luta contra o Desemprego. Tese de Doutoramento. Instituto de Psicologia. Universidade de São Paulo, 1990. RESUMO O presente trabalho analisa um processo coletivo que ocorreu na cidade de São Paulo, nos anos de 1983 a 1985 e que foi denominado de Movimento de Luta Contra o Desemprego. Neste estudo adota-se uma metodologia de descrição minuciosa com base na observação participante, na entrevista estruturada através de um roteiro prévio e na pesquisa de fonte documental. Esse método foi empregado sob uma perspectiva psicológico-social, objetivando apreender o fenômeno em sua gênese, trajetória e dispersão enquanto sujeito coletivo e, ao mesmo tempo analisá-lo em suas unidades componentes. O referencial teórico que é utilizado como suporte para a perspectiva psicológico-social é a teoria da Identidade Social de Tajfel e Turner. A análise do processo coletivo permite considerá-lo como um fenômeno heterogêneo, explicitando-se a sua composição em subunidades, caracterizando-se a diferenciação e a relação entre elas e as suas ligações com grupos e entidades externas ao movimento. Em um nível “mais molecular” são explicitados os processos psicológico-sociais envolvidos na participação e no comportamento filiativo dos agentes que compunham as subunidades e as associações que participavam da dinâmica gerada pelo processo coletivo. Esses processos psicológico-sociais são tomados como base para a compreensão da relação entre as condições de vida dos desempregados e a emergência da ação coletiva e apontam para questões adicionais de pesquisas nessa área. vi Del Prette, A. Social movements from a Social psychological perspective: The Movement Against Unemployment. Tese de Doutoramento. Instituto de Psicologia. Universidade de São Paulo, 1990. ABSTRACT This study tries to analyze the collective processes and mechanisms present in a series of social protest known as “The Movement Against Unemployment”– that occurred in the city of São Paulo, from 1983 to 1985. Based on the theoretical framework provided by Tajfel and Turner’s Social Identify Theory, a detailed description of the movement was obtained. Observant participation, formal interviews and archive data analysis were employed in order to capture the essence of the movement considering its beginning, development and finish dispersion, as well as its components, directions and collective character. Two levels of description are presented. First, at the molar level, the movement is seen as a heterogeneous social phenomenon composed of highly differentiated subsets of individuals with multiple ties and working relationships with outside groups and other movements. Second, at a molecular level, sociopsychological processes are described as related to participation and affiliative behavior of the individuals who belonged to the subsets created by dynamics of the movement. These sociopsychological processes were then considered as the basis for the understanding of relationship between the life conditions of the unemployed workers and the emergence of a collective action. Additional questions for further research are presented. vii Del Prette, A. Mouvements sociaux dans une perspective de psychologie sociale: le Mouvement de Lutte Contre le Chômage. Tese de Doutoramento. Instituto de Psicologia. Universidade de São Paulo, 1990. RESUMÉ Ce travail analyse um mode d’action collectif qui s’est passé dans la ville de São Paulo, entre les annés 1983 et 1985, appelé le Mouvement de Lutte Contre le Chômage. Dans cette étude on a adopté une démarche minutieuse de description s’appuyant sur l’observation participative, l’interview strucutrée à partir d’un canevas pré-établi la recherche documentaire à la source. Cette méthode a été utilisée suivante ues unités composantes. Le référentiel theorique utilisé comme suport à la perspective psychosociologique est la théorie de l’Identité Sociale de Tjfel et Turner. L’analyse du mode d’action collectif comme phenomène hétérogene a permis d’expliciter sa composition en sous-unités, en caractérisant leurs différences et leurs inter-relations ainsi que leurs liaisons avec des groupes et entités extra-mouvement. A un niveou “plus moléculaire”ente été expliqués les modes d’action psychosociologiques impliqués dans la participation et le comportement comme affilié et les associations qui participant de la dynamique gérée par le mode d’action collectif. Ces modes d’action psychosociaux sont a la base de la compréhension de la relation entre les conditions de vie des chômeurs et l’emergence de l’action collective et metten an ten évidence d’autre sujets de recherche. viii UM REFERENCIAL TEÓRICO SOBRE MOVIMENTOS SOCIAIS O crescente fenômeno de urbanização tem tornado mais salientes antigos problemas não equacionados pelo avanço das ciências e da tecnologia, como por exemplo, a pobreza, a violência e o desemprego. Reagindo a essa situação, pessoas se organizam em grupos, buscam melhores condições de vida e afirmam os seus direitos de participar nas decisões da sociedade. A partir da década de 70 ocorreu, nas grandes cidades do país, uma notável multiplicação de um tipo de ação coletiva que se convencionou denominar de Movimentos Sociais Urbanos ou de Novos Movimentos Sociais. Tais movimentos se constituíram em objeto de interesse renovado de pesquisa sob a ótica de diferentes disciplinas acadêmicas. Por volta de 1981, a economia nacional entrava em crise que se aprofundaria ainda mais nos anos de 1983 e 1984. O desaquecimento da economia ou, mais precisamente, a recessão, resultaria no “desemprego em massa” que pode ser caracterizado pela exclusão, do mercado de trabalho, de um contingente de trabalhadores, em um período de tempo relativamente pequeno. No final de 1982 e durante todo o ano de 1983 e 1984 o desemprego ganhou um amplo espaço no noticiário dos jornais e televisão. No início do ano de 1983, a sociedade tomou contato mais direto com o problema através dos primeiros ensaios de organização dos desempregados que culminaram com atos públicos, passeatas, saques empreendidos contra estabelecimentos comerciais e depredações. Essas ações foram posteriormente atribuídas a um grupo de protesto denominado de Movimento de Luta Contra o Desemprego (MLCD) de que trata a presente pesquisa. Algumas das manchetes dos jornais refletiam a situação: “Uma multidão de desempregados caminhava pela avenida”. (Folha de São Paulo: 5.4.83) “Saques e quebra-quebra chegam ao Centro da cidade”. (Folha de São Paulo: 6.4.83) “As pessoas iam chegando em frente ao Supermercado. Ia começar mais um saque”. (Jornal da Tarde: 6.4.83) “Na Sé, mais cinco horas de distúrbio”. (Estado de São Paulo: 7.4.83) Uma rápida reflexão sobre esses acontecimentos permitia considerar a existência de uma certa organização incipiente, deduzindo-se que muitas estratégias eram ainda planejadas e decididas nas ruas e praças, controladas pelos ânimos e participação momentâneos. Mesmo observando-se a presença de políticos e militantes de partidos políticos, a direção das ações parecia permanecer à margem de tais lideranças. Em um período de tempo relativamente pequeno (de abril a setembro), as ações coletivas se tornaram mais organizadas, culminando, em setembro, com um acampamento em um parque da cidade (Ibirapuera) com uma duração superior a um mês. Essa ação coletiva contra o desemprego, iniciada no largo 13 de Maio, Zona Sul da cidade de São Paulo, a partir das negociações com as autoridades, passou a ser reconhecida como uma ação deliberada de uma parcela da população que vivenciava uma situação de não-trabalho involuntário, derivada da política econômica sob a responsabilidade principal dos Ministérios do Planejamento e da Economia. A aparente tendência de continuidade das manifestações bem como suas articulações e implicações com a conjuntura sociopolítica, permitiam supor, não obstante sua complexidade, a possibilidade de tomá-la enquanto objeto de estudo. 2 A preocupação do autor com a compreensão das manifestações, em parte derivada de trabalho anterior com jovens desempregados relacionado ao exercício de direito ao trabalho (Del Prette, 1982), suscitava questões sobre a organização dos desempregados, suas estratégias, influências que podiam obter, a difusão de idéias e, principalmente, sobre as explicações que a Psicologia dispunha para esse tipo de fenômeno. A busca de estudos sob a rubrica do desemprego, na literatura psicológica, permitiu verificar que esta categoria é quase que exclusivamente tratada pelos autores em termos de processos psicológicos derivados da situação em que se encontra o desempregado, como por exemplo, a apatia e a depressão. Isso se evidencia nos estudos empreendidos por Sears, Braucht e Miskimmins (1974), Feath e Davenport (1981), Jahoda (1981), Eisenberg e Lazarsfeld (1983), Feath e Barber (1983). Além disso, a extensa revisão da literatura conduzida por O’ Brien (1985) confirma essa tendência na pesquisa. Algumas exceções podem ser consideradas, como por exemplo, os estudos desenvolvidos por Kelvin (1980, 1984) que utilizou o método de análise de documentos históricos propondo a investigação de campo sobre a divisão de trabalho, formas de lazer etc., como instrumentos para uma melhor compreensão do trabalho. Embora a tradição clínica represente uma importante contribuição no estudo das relações entre não-trabalho involuntário, sentimentos sobre si e capacidade de reação à situação, o referencial em discussão não oferecia nenhuma base para a compreensão dos acontecimentos observados ou um possível direcionamento de pesquisa. 3 Considerou-se que o fenômeno poderia, dada sua característica de “ação coletiva”, ser mais bem configurado na categoria de Movimentos Sociais, o que direcionou a busca de literatura pertinente a esse tema. 1. Movimentos Sociais e Comportamento Coletivo Em revisão de literatura sobre Movimentos Sociais, Tajfel (1978), tomando como base, a edição de 1969 do The Handbook of Social Psychology (Lindzey e Aronson), localizou, nas 3940 páginas, apenas um capítulo a respeito desse tema sob o título Collective behavior crowds and social movements, assinado por Milgran e Toch (1969). Na busca das referências desse estudo, Tajfel praticamente nada encontrou proveniente da área de Psicologia. Para resumir suas observações, apenas duas das citações relacionam-se com a Psicologia Social dos Movimentos Sociais. Uma delas refere-se a um livro do próprio Toch (um dos autores do artigo), e a outra a um trabalho não publicado que analisa o comportamento de pessoas envolvidas em um tumulto. O tema Movimentos Sociais é, no entanto, recorrente na Psicologia e as denominações comportamento coletivo e Movimentos Sociais não raramente referem-se a eventos que, dependendo da perspectiva de análise, podem-se incluir em uma ou outra classe. Conforme apontam vários autores (Couch, 1975; Kando, 1977; Hiebsch e Vorwerg, 1980; Reicher, 1984), as explicações e teorias psicológicas sobre o comportamento coletivo foram, durante muitos anos, influenciados por Gustave Le Bon e Gabriel Tarde. Le Bon (1975, 1980) obteve uma maior aceitação e sua teoria parte do pressuposto de que o indivíduo na multidão “perde” a sua individualidade 4 comportando-se de forma irracional, primitiva e perigosa, ao passo que Tarde (1903) explicava o comportamento coletivo com base na imitação e na propaganda. As teorias que se seguiram às de Le Bon e Tarde mantiveram um acentuado reducionismo psicológico na tentativa de explicar a emergência do fenômeno coletivo. Entre outras, podem ser citadas as teorias da sugestão (McDougall, 1939), da identificação ao líder (Freud, 1945), da frustração e agressão (Dollard e outros, 1939), da convergência (Cantrill, 1969) e da norma emergente (Turner e Killian, 1972). Por outro lado, a partir da teoria da convergência, os teóricos abandonaram o paradigma da irracionalidade, iniciado por Le Bon, aceitando uma base de racionalidade na ação coletiva. Pode-se citar como exemplos, a teoria estrutural-funcionalista de Smelser (1963) e a abordagem psicológica do comportamento coletivo de Toch (1966). O primeiro, com base na Sociologia funcionalista coloca uma forte ênfase nas crenças como suporte da emergência da ação coletiva. Smelser analisa um conjunto de fatores no sistema social que seriam indutores de tensão. A combinação desses fatores facilitaria o aparecimento do comportamento coletivo e mesmo a forma com que ele se expressaria. Os Movimentos Sociais seriam, portanto, efeitos ou “sintomas” de disfunção social, que devem ser superados para o bom funcionamento do sistema. A abordagem de Toch está mais interessada em explicar o processo de engajamento do que o surgimento do comportamento coletivo. Entre os autores citados, Toch, da mesma maneira que Smelser dedica bastante atenção às condições sociais, vividas pelos participantes dos Movimentos Sociais. Para Toch, aqueles que participam de um Movimento Social desejam resolver um problema e para tal priorizam a ação coletiva em detrimento da ação individual. A partir dessa suposição, esse autor (p.5) define Movimentos Sociais como “um esforço 5 realizado por um grande número de pessoas para resolução de um problema comum”. Velhice, doença, desemprego, são exemplos de problemas que, no entanto, somente podem ser considerados enquanto tais, pelo impacto que exercem sobre a pessoa. Um impacto forte desenvolveria o que Toch chama de suscetibilidade, que representa uma espécie de prontidão para o engajamento em ações coletivas. Apesar disso, a suscetibilidade não é condição suficiente para que a participação ocorra e o autor propõe, então, o conceito de “apelo”. Um apelo pode ser entendido como característica(s) própria(s) de um movimento desde que exerça(m) alguma atração sobre o indivíduo. Nesse caso, uma pessoa “suscetível” tenderia a responder a certos tipos de proposta de solução em momentos e situações específicos. Na medida em que a suscetibilidade tem origem em um problema vivenciado por certo número de pessoas, o apelo, ao oferecer alternativas de solução, representa o elo de “ligação” entre elas. A maior parte das teorias psicológicas sobre o comportamento coletivo tem como base as noções e teorias sobre a personalidade e extrapolam seus conceitos sobre questões complexas da ação coletiva a partir dos processos “psicológicos do indivíduo”. Poder-se-ia mesmo falar em reducionismo psicológico da ação coletiva e é justamente nesse ponto em que se encontram as maiores dificuldades explicativas. Não se pode ignorar que os Movimentos Sociais expressam uma reação a um estado de coisas. Dito de outra forma, representam tentativas de, ou resistência a, mudança de uma ordem social ou parte dela. Nesse sentido os Movimentos Sociais têm uma relação intrínseca com os aspectos micro e macrossociais, que não podem ser desconsiderados pela análise. Privilegiar apenas um dos aspectos do comportamento coletivo pode, ao invés de fortalecer um nível de análise, trazer-lhe certas dificuldades. 6 À exceção da teoria estrutural-funcionalista de Smelser, as demais aparecem apenas esporadicamente, na literatura sobre os Movimentos Sociais. A teoria da frustração-agressão, por exemplo, foi utilizada por Hovland e Sears (1940) em pesquisa correlacional entre a queda de preços de algodão (frustração) e o aumento de ocorrências de linchamento (agressão) de negros no Sul dos Estados Unidos entre 1880 e 1930. A teoria da frustação-agressão não sustenta uma análise dos Movimentos Sociais, uma vez que, configura os acontecimentos coletivos de revolta e violência meramente como reações coincidentemente simultâneas de um conjunto de pessoas a certas frustrações. Levando-se em consideração a especificidade dos Movimentos Sociais como uma subclasse do comportamento coletivo, pode-se afirmar, a respeito do quadro teórico da psicologia sobre esse fenômeno, que este foi constuído quase que independentemente de um contexto cumulativo de pesquisa empírica que pudesse gerar revisões conceituais, articulação e complementaridade entre teorias e hipóteses testáveis (Del Prette, s.d). Assim, o quadro teórico, no âmbito da Psicologia, se constitui de um conjunto de teorias “acabadas” e dissociadas entre si, dificultando a elaboração de sistemas teóricos mais amplos. Não obstante a existência de um grande número de teorias, não se pode fugir à evidência de que os Movimentos Sociais não têm recebido da literatura psicológica, conforme apontou Tajfel, a atenção que o seu significado justificaria. Mesmo o conceito de privação relativa (com origem na Psicologia), tem sido utilizado com maior freqüência por outras disciplinas como uma categoria analítica sobre o surgimento das ações coletivas (Tajfel, 1981) e, muito raramente (Guimond e Dubé-Simard, 1983), em estudo estritamente psicológico. 7 Como explicar esse aparente desinteresse? Poder-se-ia supor que isto se relaciona à alta concentração de estudos de Psicologia Social com ênfase no comportamento entre indivíduos. Essa visão é predominante e parte do pressuposto de que o comportamento social é produzido pelos indivíduos o que, justifica, portanto, uma análise centrada no indíviduo, ignorando-se processos de grupo e da sociedade como um todo. Tal posição tem sido denominada de individualismo e possui uma tradição na Psicologia Social derivada de Allport (1924) que considerava o grupo ou a sociedade como uma falácia ou uma mera ficção. Assim, supõe-se que o comportamento social pode ser adequadamente explicado pelos mecanismos do indivíduo, uma vez que os processos psicológicos não se alteram com as mudanças dos contextos não sociais para os sociais. Nesse sentido, os contextos sociais são considerados apenas como uma outra classe de estímulos, aos quais as pessoas respondem através dos “processos psicológicos” independentemente de “mediação social”. A Psicologia Social caberia a tarefa da aplicação dos princípios do comportamento individual às condições ambientais complexas. Essa visão tem sido alvo de críticas tanto da Psicologia Social européia (por exemplo, Moscovici, 1972, 1984; Tajfel, 1972, 1974; Billig, 1976) quanto da americana (por exemplo, Steiner, 1974; Taylor e Johnson, 1986). Pode-se relembrar, de passagem, que as críticas e refutações ao individualismo na Psicologia Social são de longo tempo, podendo ser verificadas, por exemplo, em Asch (1952) e Sherif (1967). Outros autores conforme Leme (s.d.) abordam a questão do ponto de vista histórico, encontrando, desde os primórdios da Psicologia, elementos que indicam uma preocupação com a dimensão social das relações humanas. 8 A suposição básica de que a compreensão do social é redutível à compreensão aos processos psicológicos dos indivíduos, contrapõe-se uma perspectiva dialética da relação indivíduo e sociedade. A contraposição entre essas suas visões tem sido referida em termos de individualismo versus determinismo social (Asch, 1952); enfoque individual versus social (Tajfel, 1979, Taylor e Brown, 1979; Semin, 1986) e individualismo versus interacionismo (Turner e Oakes, 1986). Os autores que defendem a perspectiva social partem de pressupostos comuns que podem ser resumidos como seguem: a) há uma interação contínua e interdependente entre os processos psicológicos dos indivíduos e os processos da sociedade envolvidos nas suas atividades e relações. b) o indivíduo é parte de um processo histórico que determina o conteúdo de sua criação pessoal; c) os processos sociais (político, cultural e econômico), conquanto se apresentem como realidades próprias, não redutíveis aos indivíduos, neles produzem percepções, atitudes e comportamentos e são dessa forma por estes recriados. Nos últimos anos tem havido, conforme Semin (1986), um interesse crescente com a visão socializante da Psicologia, buscando-se introduzir a contextualização do social nos estudos. Os debates entre as posições individualística e social, mais propriamente de interesse para o presente trabalho, são aqueles que abordam os comportamentos interindividual e intergrupal. A crítica que tem sido feita à excessiva ênfase sobre o indivíduo e o interindividual na Psicologia Social possibilita algumas reflexões. Não se trata, de acordo com Tajfel (1981), de se opor aos estudos sobre processos interpessoais, mas de se reconhecer as limitações inerentes às teorias, elaboradas no contexto das relações entre indivíduos, na explicação de fenômenos sociais mais amplos quando estas 9 desconsideram fatores subjacentes, como estruturas políticas, econômicas e culturais. Tajfel (1981) reconhece que o estudo dos processos individuais e interindividuais é uma tarefa importante na Psicologia, tendo, nessa área, alcançado um considerável avanço nos últimos trinta anos. No entanto, na medida em que o interesse é quase que exclusivamente sobre as relações entre indivíduos e sobre os processos psicológicos decorrentes, a visão sobre questões importantes, como as relações entre membros de categorias sociais amplas como nações, raças, classes, religiões etc. permanece marginalizada. Em uma análise detalhada, Tajfel (1984) verifica que, mesmo as teorias de justiça social e equidade, não fazem diferenciação entre comportamento intergrupal e interpessoal. Para Taylor e Brown (1979), muitas críticas feitas à ênfase interpessoal procedem apenas em parte. As respostas desses autores podem ser resumidas em: (a) pode-se concordar com a afirmação de que a maior parte dos estudos em Psicologia Social negligencia o contexto social mais amplo onde ocorrem os processos interindividuais; (b) que em decorrência disso “muitas extrapolações ingênuas do individual para o grupal têm sido feitas” (p.178); (c) as teorias psicológicas devem continuar lidando com processos psicológicos e levar em conta, variáveis contextuais à medida que influenciam tais processos e assim, continuarem como teorias psicológicas; (d) mesmo as teorias como a do comportamento intergrupal e a das minorias ativas, em última análise, permanecem centradas no indivíduo e nisso reside os seus maiores méritos. Em resposta aos argumentos desses autores, Moscovici (1979b), pioneiro na formulação da teoria das minorias ativas (Moscovici, 1979a, 1980), reafirma a dificuldade de se estudas fenômenos como o fascismo, grupos étnicos remanescentes, 10 desvios, movimentos sociais etc. sem considerá-los em seu nível coletivo e rejeita a rígida demarcação entre o social (Sociologia) e o psicológico (Psicologia). Tajfel (1979), em réplica ao mesmo artigo, enfatiza um aspecto fundamental da realidade social, não considerada por Taylor e Brown, de que esta é composta por conjuntos diferenciados de pessoas. Tais diferenças podem ocorrer em vários aspectos, como por exemplo, linguagem, trabalho, escolha de lazer, status, poder etc. A apreensão da realidade social é obtida pela capacidade que o indivíduo tem de estruturar para si essas diferenças. Tajfel igualmente rejeita o argumento de Taylor e Brown de que a teoria do comportamento intergrupal esteja apenas lidando com o indivíduo, embora considerando variáveis sociais amplas, asseverando que tal afirmativa é de certa forma trivial, pois o fim último da Psicologia necessariamente é o indivíduo. Conforme Tajfel, a realidade social pode ser analisada em termos de estrutura sócio-econômica, histórica ou política e, embora essa análise não seja de competência do psicólogo, deve, porém, ser levada em consideração, pois a sua apreensão, pelos indivíduos, gera um sistema de crenças que afeta o seu comportamento. A teoria da identidade social, segundo alguns de seus teóricos (Tajfel, 1978; Brown & Turner, 1981; Turner & Giles, 1981), não invalida nem pretende substituir outras teorias psicológicas, mas objetiva demonstrar a distinção psicológica entre o comportamento interpessoal e intergrupal e assim permitir uma melhor compreensão sobre certas similaridades do comportamento social, relações entre grupos, descriminação entre grupos e pessoas, formação de grupo, cooperação intra e entre grupos, conflitos relacionados à filiação etc. A análise de Tajfel sobre Movimentos Sociais tem como base alguns pressupostos derivados da teoria da Identidade Social que podem ser apresentados 11 resumidamente como seguem: (a) a sociedade é composta por diferentes categorias sociais (conjunto de pessoas) que mantêm, entre si, relações hierarquizadas em termos de status e poder os quais buscam preservar; (b) as pessoas avaliam o “seu pertencimento” a cada categoria em várias dimensões; (c) as avaliações positivas das diferenças entre a própria categoria e as demais são decorrentes da necessidade que cada indivíduo tem de criar para si uma imagem satisfatória; (d) a auto-imagem desenvolvida pela filiação do indivíduo a diversos grupos sociais contribui para a formação de sua identidade social; (e) a interação social entre dois ou mais indivíduos em um dado momento pode ser determinada dentre outros fatores pelas características dos interagentes em termos da identidade pessoal ou pelas características da filiação categórica em termos da identidade social. Partindo da definição de Movimentos Sociais de Toch, Tajfel (1978, p.46) caracteriza-os como “esforços realizados por um grande número de pessoas que se definem e são freqüentemente definidas como um grupo, para resolver coletivamente problemas que sentem ter em comum, percebidos como emergindo de suas relações com outros grupos”. Sobre o comportamento coletivo, Tajfel (1984, p.712) afirma que “em algumas circunstâncias muitas pessoas agem e sentem da mesma maneira em relação a uma situação, um evento ou sobre outras pessoas”. As características que distinguiriam os Movimentos Sociais de outras ações coletivas são para Tajfel: (a) duração do evento coletivo; (b) número significativo de pessoas de um ou mais grupos sociais e (c) um sistema de crenças compartilhado. Embora as duas primeiras sejam explicitamente quantitativas, o autor admite que não faz sentido buscar uma amplitude mínima ou máxima em termos de tempo ou contingente participativo. Tajfel defende que seria mais útil listar exemplos negativos de fenômenos sociais que não podem ser 12 considerados Movimentos Sociais como uma baderna isolada, uma organização de restaurantes vegetarianos, uma conspiração palaciana etc. Tal listagem iria permitir a avaliação da existência dos critérios mais relevantes: ausência/presença do sistema de crenças significativamente compartilhado; caráter de efemeridade/durabilidade da ação coletiva; presença/ausência significativa de pessoas de um ou mais grupos sociais. Uma vez que os Movimentos Sociais possuem uma natureza psicológica e social, parece ser plausível supor que a visão mais social da Psicologia conte com um arcabouço conceitual mais adequado para a análise do fenômeno do que uma perspectiva individualística. A partir do exposto e admitindo-se que os Movimentos Sociais se evidenciam enquanto um fenômeno de grupo pode-se supor que uma análise que priorize sua formação, características e relações deveria seguir uma via diferente da tradicional visão do comportamento entre indivíduos do grupo, para uma perspectiva grupal do comportamento entre indivíduos. Isso implicaria, no âmbito da Psicologia em tomar, como base, um referencial teórico que mesmo não centrado exclusivamente sobre o fenômeno dos Movimentos Sociais, pudesse oferecer condições para análise psicológica e social deste. Uma perspectiva teórica, entendida neste trabalho como particularmente promissora deriva-se da teoria da identidade social, que será retomada adiante. Buscando-se uma revisão dos estudos sobre Movimentos Sociais no país, observa-se que, ao lado da escassez de estudos psicológicos, tem havido um interesse crescente da Sociologia sobre esse fenômeno. Considerando-se de um lado, que os estudos sociólogos têm levantado a importância de intercâmbio entre as disciplinas e de outro, que a perspectiva social das teorias da identidade social amplia a possibilidade 13 desse intercâmbio, segue-se uma breve incursão na literatura sociológica corrente sobre o tema no país, que precede a apresentação das teorias psicológicas. 2. Movimentos Sociais: estudos sociológicos Grande parte dos estudos sobre os chamados Movimentos Sociais Urbanos no Brasil tem como base, as formulações de Castells (1974) e Lojkine (1981), conforme atestam diversos autores, tais como Santos (1981), Cardoso (1983), Doimo (1984), Jacobi (1986), Jacobi e Nunes (1984), Kjowarick (1987). Para aqueles autores, os Movimentos Sociais Urbanos podem ser vistos como um desdobramento da luta de classe, evidenciados ou gerados a partir das contradições urbanas e das contradições sociais gerais (Jacobi e Nunes, 1984). Essa análise, de base marxista-ortodoxa, que privilegia o político, creditando aos movimentos um determinismo histórico, serviu de inspiração, tanto na condução explicativa mais global, quanto no uso das categorias de análise, para a maioria dos estudos empreendidos até recentemente no país. Pode-se observar, no entanto, certa tendência a uma reflexão na busca de uma melhor adequação no uso de algumas categorias, como por exemplo, urbano, morador, Estado, contradições urbanas em relação aos dados emergentes. Embora não se pretenda analisar aqui, as principais abordagens e todo o conjunto de questionamentos, considerou-se importante relacionar à guisa de um quadro geral, algumas das explicações e categorias que são objeto de discussão ou que permeiam as discussões mais gerais. Assim, Estado, contradições sociais, autonomia, identidade, movimentos sociais, urbano, são categorias analíticas consideradas nessa revisão que aparecem, sem grande rigor seqüencial, dada a preocupação de manter a contextualização em termos dos estudos de onde foram utilizadas. 14 Tomando-se inicialmente a categoria Estado fica evidente que grande parte dos estudos (Brant, 1983; Evers, 1983, 1984b; Singer, 1983; Evers e outros, 1985; Gohn, 1985) realiza uma análise a partir de uma visão do Estado como inimigo sobre o qual se dirige a ação dos movimentos. Cardoso (1983, 1987) critica a imagem apriorística do Estado em termos unicamente de inimigo autoritário, pois tal posição dificultaria a análise das possíveis diversidades que emergem das relações entre este e os Movimentos Sociais Urbanos. Cardoso exemplifica referindo-se à pesquisa de Santos (1981) que descreve as diferentes composições consubstanciadas nos diferentes momentos de conflito entre Estado e seus órgãos e o movimento e seus aliados. A análise de Jacobi e Nunes (1984) leva em consideração as forças que se opõem, ou seja, a dos movimentos e a do Estado. Esses autores enfatizam as transformações ocorridas no seio do aparelho estatal nos últimos anos, quando, aproximadamente a partir de 1970, o Estado passa a responder às reivindicações das comunidades com políticas sociais globais que vão gerar expectativas de demanda. Assim, algumas vezes o Estado desenvolve uma “política comunitária” que possibilita o aparecimento do movimento sob sua tutela; outras vezes, pode se utilizar do movimento para produzir reformas administrativas, como por exemplo, a criação dos conselhos populares de saúde na Zona Leste da cidade de São Paulo. Boschi e Valladares (1983) salientam a inoperância do Estado no fortalecimento dos serviços coletivos e na garantia de direitos mínimos de cidadania, como elemento propulsor da emergência dos Movimentos Sociais. A ação dos Movimentos Sociais, especialmente quando partindo da população periférica, é detectada e sentida pelo Estado e pela sociedade, que a ela reagem de várias formas. Um tipo de reação empreendida pelo Estado é o atendimento das 15 reivindicações que reforce o poder das instituições (Fischer 1985). Uma outra reação, que se dá no âmbito do Estado e da sociedade é o chamado fenômeno de cooptação. Para Evers (1984a) a sociedade exerce “uma pressão permanente sobre sua franja contestadora a fim de adaptá-la às realidades do poder existente” (p.17). Evidencia-se também o fenômeno psicologizante, quando se rotulam os problemas das classes populares como marginais ao conjunto da sociedade “ao mesmo tempo em que se estigmatizam estas classes perante a opinião pública” (Fischer 1985, p.18). Kowarick (1983), por outro lado, aponta, além da cooptação, o controle exercido pelo Estado através da repressão, da persuasão ideológica e do atendimento parcial e fragmentado. Em termos do uso da categoria contradições urbanas à que, conforme Nunes, (1986) são associados, por consenso entre os pesquisadores os MSUs (Movimentos Sociais Urbanos), coloca-se em relevo, de forma explícita ou não, a contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção. O desenvolvimento da produção que, uma última análise, seria o próprio desenvolvimento da sociedade, segura e constantemente geraria novas necessidades relacionadas à esfera da reprodução da força do trabalho, como por exemplo, instrução, transporte, saneamento básico, lazer, serviços gerais de saúde etc. Dessa maneira, na origem dos MSUs encontram-se as carências, se não como determinantes, pelo menos como condição necessária mas não suficiente. Doimo e outros (1986) embora admitindo certa confluência entre contradições e MSUs, afirma que se trata de dois processos que seguem lógicas distintas requerendo, portanto, tratamentos teóricos distintos. Por outro lado, Nunes (1986, p.51) enfatiza que “não é ausência do equipamento de consumo coletivo que move o sentimento de carência, mas é a possibilidade que o Estado acena no sentido de difundir este equipamento”. Para 16 exemplificar, Nunes refere-se ao crescimento de movimentos reivindicativos sobre a extensão de rede de água no período em que tal demanda era prioritária no governo do Estado de São Paulo. Nessa mesma perspectiva, Durham (1984) afirma que não seria a pobreza em si mesma, mas a consciência da pobreza que estaria na base motivacional para ações reivindicativas. Kowarick (1984, p.81) questiona, igualmente, as explicações com base nas determinações macroestruturais, enfatizando a ausência de ligação linear entre a “precariedade das condições de existência e os embates levados adiante pelos continentes por ela afetados”. Com base na premissa da inserção dos Movimentos Sociais Urbanos na perspectiva de luta de classes, Castells (1976) considera tais movimentos distintos dos Movimentos Sociais, que se revelariam politicamente mais qualificados: “os Movimentos Urbanos tornam-se Movimentos Sociais, na medida em que chegarem a ser componentes de um movimento político que põe em causa a ordem social, como por exemplo, a luta operária” (p.12). Na mesma linha de raciocínio, Gohn (1985) diferencia ação coletiva de Movimentos Sociais afirmando que Movimentos Sociais possuem uma organização, uma trajetória e emergem “a partir de problemática que expressam contradições sociais” (p.48). A autora sugere três requisitos que identificariam a passagem de uma ação coletiva para um Movimento Social: (a) expressar uma necessidade; (b) ter “certa” profundidade; (c) alcançar uma extensão na sociedade. Tais critérios de qualificação do tipo inclusão/exclusão parecem de difícil manejo, os obstáculos na definição de parâmetros adequados que se ajustem à “fluidez” das ações sociais em diferentes contextos. A visão por etapas, que considera os MSUs (Movimentos Sociais Urbanos) como forma de mobilização precária que tenderiam a progredir para estágios mais 17 avançados de atuação política (Gohn, 1985) foi criticada por Cardoso (1987) que vê nessa perspectiva uma tendência à homogeneização, dificultando o aparecimento das diferenças e diversidades existentes intra e entre movimentos, como por exemplo, o processo de negociação, os mecanismos internos de formação de opinião etc. Durham (1984) e Cardoso (1987) criticam o pressuposto “evolucionista” da ação coletiva, defendendo a idéia de que os MSUs se constituem em tipo particular de mobilização que ocupam um espaço diferente daquele preenchido pelos sindicatos e partidos políticos. Assim, na análise dos estudos pertencentes a esta revisão (não exaustiva) fica evidente a dificuldade de se definir Movimentos Sociais, ou de se classificar as chamadas ações populares. Cardoso (1987, p.34) chama a atenção para a inclusão, sob o mesmo rótulo, de diferentes tipos de ações coletivas, afirmando que “há uma grande imprecisão na definição do que é, e do que não é Movimento Social: classifica-se mais pelas regras internas de funcionamento que pelo tipo de organização”. Gohn (1935), analisando a literatura corrente sobre o tema estabeleceu um quadro geral sobre Movimentos Sociais, classificando-os com base em sua “origem social”. A premissa básica de sua classificação está no “reconhecimento de que os Movimentos Sociais têm sempre um caráter de classe” (p.47). Observando o seu quadro classificatório (p.50, 51) onde aparecem, por exemplo, movimentos denominados de Categorias Específicas (Feminista, Homossexuais, Negros, Estudantes e Professores), os de Lutas Gerais (Ecológico, Anistia, Carestia, Desempregados) e os Movimentos Sociais do Campo (Proprietários e Trabalhadores Rurais), parece difícil reconhecer por excelência, a base classista unitária e definidora do sistema classificatório. 18 O que se observa, pela análise dos estudos pertencentes à presente revisão, é que as denominações, Movimentos Sociais, Movimentos Sociais Urbanos, Movimentos Populares Urbanos, Movimentos Urbanos, Lutas Populares Urbanas, Mobilizações Populares, Manifestações Populares, têm sido utilizados indiferenciadamente, em estudos sobre reivindicações populares por moradia, ônibus, asfalto, transporte, água, congelamento de preços, postos de saúde, creches etc. (Moisés-Martinez-Alier, 1977; Gonh 1982; Lima, 1982; Boschi e Valladares, 1983; Brant, 1983; Jacobi, 1983; Singer, 1983; Doimo, 1984; Evers, 1984b, 1985; Moisés, 1985). Embora alguns autores diferenciem Movimentos Sociais de outras “ações populares” (Gohn, 1985), Movimentos Sociais Urbanos de outras “reivindicações urbanas” (Doimo, 1984) e justifiquem a denominação utilizada em sua pesquisa (Boschi e Valladares, 1983), pode-se afirmar que as denominações usuais quase que exclusivamente (Cardoso, 1987) qualificam como objeto de pesquisa grupos reivindicativos, podendo-se, portanto, inferir que aquelas denominações referem-se a uma categoria que identifica qualquer grupo de pessoas organizado no sentido de e para objetivar reivindicações de caráter específico e/ou gerais que alcance alguma visibilidade social. Dentre as denominações mais utilizadas, dois termos designativos aparecem como traços comuns, popular e urbano. O primeiro parece significar uma tipificação que se refere às camadas da população que não compartilham, senão escassamente, dos bens sociais e o segundo indica uma localização, ou seja, faz referência a uma área específica da cidade, definida em termos dicotômicos, em relação ao rural. Nesse sentido, alguns estudos identificam, nos Movimentos Sociais Urbanos, a busca dos traços de uma cultura rural. O sentido comunitário, atribuído à cultura rural, com seus 19 elementos forjadores das relações sociais, como por exemplo, os laços primários de solidariedade, os interesses comuns, a vizinhança etc., tem recebido razoável destaque da literatura (Singer, 1983; Boschi e Valladares, 1983; Evers, 1984a). Por sua vez, o conceito de urbano é associado com as questões das contradições sociais. No caso brasileiro, enquanto lócus de produção e consumo, esse conceito refere-se igualmente à desproporcionalidade da distribuição de riqueza. Tal desproporção pode ser de fato, observada, de um lado, pelo inchamento dos bairros periféricos (compreendidos aqui em termos de áreas deficiente de serviços públicos e de baixo valor imobiliário, conforme Moisés, 1985) e, de outro, pela existência de áreas residenciais sobre valorizadas ou áreas comerciais e financeiras repletas de agências públicas e privadas destinadas ao atendimento a alguns setores da população. Os Movimentos Sociais Urbanos ganhariam visibilidade ao se deslocarem das áreas empobrecidas para as áreas na qual a acumulação verdadeiramente se destaca e onde, igualmente, está concentrado o lócus do poder. Nesse sentido, para dar conta da característica dos movimentos, de um lado, e do conteúdo das reações do Estado, da sociedade e de grupos sociais, de outro, utiliza-se, frequentemente, uma categoria denominada autonomia e seus conseqüentes desdobramentos. A questão da autonomia também tem sido objeto de muita discussão na produção sobre Movimentos Sociais. Ao mesmo tempo em que faz parte do referencial de análise utilizado nos estudos, ela integra o discurso dos próprios MSUs. O discurso da autonomia, de acordo com Jacobi e Nunes (1984), tem sido largamente difundido pelas CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), juntamente com um ideário que privilegia a igualdade, a participação, a solidariedade etc. Para Nunes e Jacobi (1985) a 20 autonomia se constitui um traço vital para os movimentos cujas organizações se esvaziam quando cooptadas pelo Estado. A categoria autonomia diz respeito ao tipo de interação entre os MSUs e pessoas ou grupos externos em termos de manipulação, influência e cooperação, ou, dito de outra forma, à autodeterminação dos movimentos. Com relação ao intercâmbio dos movimentos com agentes externos, Boschi e Valladares (1983) analisam como incorreta a atribuição, aos partidos políticos, de papel exclusivo ou preponderante na mobilização popular. Tal ponto de vista é partilhado também por Brant (1983, p.25) que reafirma “a notável autonomia desses movimentos, tanto em relação aos partidos políticos tradicionais como em relação aos grupos clandestinos de esquerda”. Por outro lado, a autonomia em relação a outros agentes, que não partidos políticos, parece difícil de ser sustentada. Bochi e Valladares (1982) enfatizam, em seus estudos sobre Movimentos Sociais, realizado em seis capitais brasileiras, o papel ativo desempenhado por agentes externos na mobilização popular. Para esses pesquisadores, o agente externo pode “tanto potencializar uma situação existente de forma latente, quanto, na sua inexistência, abrir frentes para a manifestação comum” (p.138). Doimo (1984) estudando o movimento de transporte coletivo em Vilha Velha (Grande Vitória), o caracterizou como iniciado e organizado por agentes pastorais da CEB, e Evers (1985), em sua análise sobre o movimento contra a carestia, iniciada na Zona Sul de São Paulo, também faz menção à participação de agentes externos como, por exemplo, sindicato, partido e Comunidade Eclesial de Base. A presença da Igreja junto aos Movimentos Sociais Urbanos tem sido destacada por vários autores, tais como Lima (1982), Camargo e outros (1983), Singer (1983), Wanderley 21 (1985), Barreira (1986), Doimo (1986), Mainwaring (1986), Telles (1987), Jacobi (1987). Assim, fica evidenciada a contradição sobre a qual Doimo (1984) chama a atenção, ou seja, entre o discurso da autonomia e a participação de agentes externos. Provavelmente com o interesse de evitar dificuldade na análise, Jacobi e Nunes (1984, p.73) definem autonomia em termos de “como os movimentos e organizações subalternas se expressam, mais do que se sofrem ou não influências externas”, enquanto que, para Boschi e Valladares (1983, p.139), a autonomia é compreendida como “a capacidade de evitar ingerência ou controle direto por agentes externos”. A categoria autonomia tem sido também referida em termos de espontaneísmo qualificando-se a emergência da ação coletiva em contraposição com as características de intencionalidade, planejamento e organização dessa emergência por pessoas ou grupos externos a ela. Cardoso (1987, p.35) chama a atenção para o fato de que pessoas, grupos e entidades “não aparecem nas descrições das mobilizações quando se enfatiza a autonomia popular”, mas que são sempre responsabilizadas no caso do refluxo do movimento. Para Cardoso, os estudos deveriam incluir, igualmente, análises dos grupos de apoio, formados ou não, na esteira dos movimentos. Dito de outra forma, os movimentos desenvolvem uma dinâmica onde se movem grupos que se relacionam entre si de maneira sem sempre não-conflitantes, que deveriam igualmente se constituir de objeto de investigação. Em resumo, portanto, a questão da autonomia dos Movimentos Sociais Urbanos tem sido discutida em termos de: (a) autonomia e espontaneísmo; (b) autonomia em relação aos partidos políticos; (c) ausência de autonomia (ingerência e 22 controle externo); (d) autonomia relativizada pelo intercâmbio entre pessoas e entre grupos. A autonomia parece indicar, igualmente, a necessidade da noção de grupos, na medida em que coloca em cena a questão da relação e intercâmbio entre o movimento e outros conjuntos de pessoas. As noções decorrentes da questão grupal, com base na Psicologia Social, não têm sido largamente utilizadas nos estudos analisados, excetuando os apontamentos de Doimo (1986b), que faz alusão à utilidade do uso dos conceitos de grupos de interesse e de referência, salientando que a vida de um movimento guarda estreita relação com o crescimento, em seu seio, dos grupos de referência. Ao que parece, as pesquisas têm evidenciado alguns pontos comuns aos Movimentos Sociais. Diversos autores têm apontado como traço comum dos Movimentos Sociais, os laços primários de solidariedade (Brant, 1983; Singer, 1983; Evers, 1984a). Embora concordando com esse traço especificado acima, Boschi e Valladares (1983) apresentam outras características que podem ser resumidas: (a) processo de formação de identidade coletiva voltada para a dimensão do cotidiano; (b) ciclo de vida dos movimentos em dependência da sua capacidade de redefinição de objetivos; (c) presença de agentes externos como elemento de mobilização, mesmo que a iniciativa seja da população local. Ainda considerando as características comuns aos Movimentos Sociais Urbanos, Evers (1984a) identifica alguns aspectos: (a) número relativamente baixo de participantes; (b) estruturas não burocráticas; (c) formas coletivas de tomada de decisão; (d) distanciamento relativamente pequeno entre lideranças e demais participantes; (e) modos pouco teóricos e imediatos de perceber e colocar os objetivos do movimento. Essas novas formas de relacionamento transformar- 23 se-iam em elementos de mudanças, muito mais forte do que as “mudanças abruptas na cúpula do poder” (p. 15). Na descrição da trajetória dos Movimentos Sociais Urbanos, conforme Santos (1981), Boschi e Valladares (1983) e Doimo (1984), três fases mais gerais têm sido identificadas: (a) gênese; (b) desenvolvimento; (c) dispersão. O item a foi objeto de discussão precedente (categoria contradições urbanas). O desenvolvimento refere-se ao período de ascensão do movimento, quando este obtém uma maior visibilidade e produz um maior impacto. Nessa fase são intensificadas as relações do movimento com os grupos de apoio, o Estado e seus órgãos, e outros movimentos. A dispersão refere-se ao período de descenso da agregação coletiva e tem sido denominada também de desmobilização. Esses momentos caracterizam o ciclo vital do movimento e são explicados em termos de fatores sociais, como por exemplo, carências, ou culturais, laços de vizinhança, como motivação para a participação. A identidade, como resultado da participação nos movimentos sociais urbanos, tem sido, também, frequentemente enfatizada. Doimo (1986a, b) fala sobre a identidade sócio-cultural; Evers (1984a) conceitua identidade, em oposição à alienação, como traço característico dos movimentos, e Boschi e Valladares (1983) e Jacobi (1987) referem-se à identidade coletiva, sem conceituá-la. Para Evers (1984a), os movimentos se voltam exclusivamente contra o sentido alienante das relações dos homens entre si, com o trabalho e a natureza. A noção de identidade, para o autor torna-se, então, adequada para a apreensão desses momentos, ao nível individual e coletivo, pois se contrapõe à alienação. Sua noção de identidade refere-se a algo que deve ser construído pela base, através de contínua autodeterminação, onde indivíduos e grupos reassumiriam uma identidade como 24 sujeitos desse processo. Tal categoria seria mais apropriada na análise do que a visão marxista dos sujeitos sociais com existência objetiva à priori, sob a forma de classes sociais. Convém, no entanto, destacar, que o uso de categorias definidas pela inserção de sua oponente, como por exemplo, identidade-alienação, espontâneo-planejado, não permite um grande avanço teórico-metodológico uma vez que, como enfatiza Cardoso (1987, p.24), “a apresentação pelo oponente não define, apenas classifica dois campos distintos e opostos”. A produção atual sobre MSUs reveste-se de nova dimensões à medida em que vão sendo incorporadas as críticas teóricas e metodológicas ao acervo existente. Kowarick (1987) em uma extensa revisão aponta que a temática dos Movimentos Sociais ultrapassou os círculos de estudos circunscritos à região Rio de Janeiro-São Paulo, observando-se não muito recentemente, certo acúmulo de pesquisas em outras regiões, especialmente no Nordeste do país. Dessa forma, muitas das pesquisas e estudos posteriores à década de 70 apresentam uma reflexão sobre algumas categorias analíticas ou contrapõem modelos. Nesse sentido pode ser vista a pesquisa de Santos (1981) sobre as lutas populares das favelas Brás de Pina e Morro Azul e o bairro Catumbi, todos no Rio de Janeiro. Santos se contrapõe às noções de Castells (1974, 1976) e de Borja (1975) especialmente acerca das categorias urbano, morador e Estado, e ao modelo teórico de base marxistaortodoxa mais geral. Esse autor desenvolve um modelo que considera os Movimentos Sociais Urbanos como ocorrências de um drama social que se compõe de fases distintas denominadas rompimento, crise, ação compensatória e reintegração. Em outras palavras, em um dado momento, diante de certa pressão externa, como ameaça de 25 remoção, um conjunto de pessoas desenvolve uma organização, por exemplo, na estrutura interna, pela dinamização ou criação de uma associação, e a nível externo através de busca de apoios, alianças. A partir de várias mobilizações e negociações, quando estas se esgotam, seja pelo êxito das reivindicações ou pelo seu fracasso, ocorre um esvaziamento do movimento e os seus protagonistas se reintegram ao sistema social. O modelo proposto por Santos, criticado como excessivamente simplificador por Doimo (1984), prioriza o detalhamento das relações entre o movimento e os diversos grupos, inclusive o Estado, mostrando a diversidade de papéis, que vão se alterando conforme as mudanças ocorridas ao longo do tempo, motivados por interesses diversos. A análise de Santos refere-se a uma vertente de base antropológica e tem o objetivo de se contrapor à abordagem da sociologia marxista de Castells (1974 e 1976). Por sua vez, Nunes (1986, p.51) defende, na perspectiva sociológica, o “diálogo com a pluralidade de contribuições - especialmente as de inspiração antropológica”– e Durham (1984) propõe uma integração dessas áreas enfatizando que as duas vertentes separadas são insuficientes para uma análise que avance para além das categorias mais usuais. Muitas críticas têm sido feitas aos modelos explicativos e pesquisas sobre os Movimentos Sociais Urbanos. Para Cardoso (1987), a perspectiva culturalista abandona a ênfase na ação reivindicativa dos Movimentos Populares para dedicar-se ao processo de formação grupal, mas não aprofunda a “análise das diferenças e conflitos que aí se manifestam” (p.26). Jacobi e Nunes (1984) chamam a atenção para a insuficiência dos modelos explicativos para dar conta dos fenômenos sociais. Além das questões teóricas já citadas, Cardoso (1983) aponta para problemas de ordem metodológica, questionando o uso, mais ou menos generalizado, da função política das manifestações populares, a 26 partir de sua descrição como fenômeno urbano presente. Para a autora, a visão dos Movimentos Populares, em termos de espontaneidade e de sentido de justiça, levaria a qualificá-los como instrumentos políticos novos. Tais traços, no entanto, não teriam sido confirmados a nível empírico, e a inclusão do Estado, como inimigo comum dos movimentos, expressaria apenas parte da realidade. Touraine (1976) afirma que a explicação do fenômeno dos movimentos sociais tem levado, algumas vezes, a se considerar separadamente a dimensão da ordem das estruturas (Sociologia) e da ordem dos comportamentos (Psicologia). Sua posição é que tal análise representa uma negação da Sociologia, uma vez que, para ele, sociedade e ator devem ser compreendidos como faces de uma mesma moeda. Melucci (1980) enfatiza que seria obtido um avanço nos estudos sobre Movimentos Sociais se se considerasse categorias e métodos de disciplinas como Sociologia, Antropologia, Psicologia e Psicanálise. A ligação conceitual poderia ocorrer também entre a Sociologia e a Antropologia, objetivando, como explicitamente colocado por Durham (1984) e Nunes (1986), convergir, em termos de análise, elementos até então dissociados. Os estudos de campo empreendidos sobre Movimentos Sociais Urbanos em nosso país, na Sociologia, podem ser caracterizados como analítico-descritivos. A revisão dessa literatura permite salientar alguns aspectos importantes: (a) a utilização de um conjunto relativamente semelhante de categorias na caracterização dos Movimentos Sociais; (b) o uso preponderante de metodologia de estudo de caso e observação participante; (c) a crítica ao referencial teórico em termos de suas limitações em relação ao fenômeno; (d) ênfase quase unânime sobre a necessidade de articulações conceituais entre disciplinas. Pode-se afirmar que as críticas apontam para a necessidade de estudos 27 adicionais em que diferentes categorias de análise obtenham validação empírica possibilitando revisões do quadro teórico geral e, eventualmente a exclusão de categorias que não sejam mais pertinentes aos novos dados. Em resumo, a presente revisão aponta alguns aspectos dos estudos sociológicos que podem ampliar a compreensão da análise psicológica do fenômeno, e, outros que sugerem a necessidade de estudos psicológicos que poderiam complementar a perspectiva da sociologia. É possível indicar, pelo menos, cinco aspectos mais significativos para a compreensão do fenômeno coletivo, os quais são arrolados a seguir: 1. Identificação de elementos caracterizadores da ação coletiva. A gênese e desenvolvimento, tipo de organização, estratégias de ação e a dinâmica interna. 2. A identificação de carências coletivas como condição presente na agregação grupal. 3. A questão da autonomia: o intercâmbio e relação entre o movimento e outros grupos. A caracterização dos grupos que atuam junto ao movimento. 4. O movimento e sua relação com o Estado. As reivindicações e as negociações. 5. As noções de identidade. Os grupos no interior do movimento: o formal e o espontâneo. A subcultura, relações internas dos grupos e a identidade social. 3. A teoria da identidade social A teoria da identidade social supõe que as uniformidades compartilhadas do comportamento social são derivadas das relações das pessoas enquanto membros de categorias distintas e não enquanto processos entre indivíduos. Em analogia à 28 formulação conhecida de que o comportamento é função da interação entre um indivíduo e uma situação particular, Turner e Oakes (1986, p.244) propõem que “pessoas idênticas ou similares em situações idênticas ou similares tenderiam a apresentar o mesmo comportamento”. Entende-se por pessoas idênticas aquelas que são alvo de uma mesma categorização externa e/ou autocategorização com base em um ou vários traços comuns como, por exemplo, cor da pele, pobreza etc. Em uma mesma situação haveria uma alta probabilidade de que tais pessoas se comportassem de uma maneira uniforme, provendo entre elas um consenso avaliativo da realidade imediata em que vivem. Na perspectiva social ou interacionista dessa teoria os processos psicológicos estariam relacionados às representações cognitivas e avaliativas da estrutura social e do sistema ideológico de crenças. Em outras palavras, o sistema de crenças que cada indivíduo desenvolve relaciona-se com suas representações e avaliações sobre a estrutura social. A cognição como “atributo individual” é socialmente mediado, o que facilita a percepção de um mundo com realidades compartilhadas. A teoria da identidade social relaciona-se historicamente aos trabalhos de Asch (1952) e Sherif (1967). Tajfel (1978) utiliza o mesmo conceito de comportamento intergrupal e interindividual de Sherif, mas reinterpreta muitos de seus achados empíricos. Poder-se-ia dizer, a partir de uma análise desses autores, que o marco distinguível da teoria da identidade social relaciona-se à série de experimentos conduzidos por Tajfel (1972) sobre os efeitos da categorização social, que serão detalhados adiante. A suposição básica (Tajfel, 1978) derivada dos estudos experimentais é a de que a interação entre duas ou mais pessoas pode ser determinada tanto pelas 29 características individuais de cada interlocutor, quanto pelas suas respectivas filiações a vários grupos ou categorias sociais. O conceito de identidade social deriva-se da noção do comportamento intergrupal e foi desenvolvido por Tajfel (1972, 1978, 1981), Turner (1981) e Tajfel e Turner (1985). A hipótese básica subjacente à teoria da identidade social é a de que as pessoas procuram uma identidade positiva comparando seu grupo com outros. O comportamento interpessoal e intergrupal Durante muito tempo a Psicologia Social dedicou muita atenção ao fenômeno de grupo. Muitos estudos foram desenvolvidos sobre atração, coesão, liderança etc. (Cartwright e Zander, 1975), como uma tentativa de especificar “as leis do funcionamento grupal”. A teoria funcional de grupos de Sherif e Sherif (1969) representa uma tentativa bastante produtiva nesse campo específico. Ela postula a formação de grupo com base em interesses e necessidades objetivas, interdependentes das pessoas. Como substratos da formação grupal poderiam ser desenvolvidos relações de cooperação e/ou competição intragrupo e intergrupo. A interdependência resultaria em interações cooperativas ou competitivas que, por seu lado, tenderiam em maior coesão grupal (solidariedade, amizade etc.) ou em antagonismo latente ou manifesto (hostilidade, negativismo etc.). Dessa forma, deriva-se, da premissa da interdependência, que conflitos de interesse levam a conflitos de grupo e que objetivos interdependentes (não conflitantes) produzem relações de harmonia relativamente estáveis. O comportamento competitivo entre os grupos tornaria mais saliente a divisão ingroup-outgroup enquanto que a colaboração, por outro lado, deixaria as fronteiras mais permeáveis entre os mesmos. 30 As proposições de Sherif e Sherif possibilitaram uma linha de pesquisa envolvendo um considerável número de estudos que, de acordo com Turner (1981) alcançou o desenvolvimento de uma teoria específica do comportamento intergrupal. As pesquisas que se seguiram examinaram variáveis relevantes, como por exemplo, coesão grupal, atração interpessoal, altruísmo, conformismo, formação de normas grupais etc., as quais corroboraram, ainda que em parte, as conclusões iniciais de Sherif e Sherif (1969). No entanto, conforme Turner (1981), as pesquisas mais recentes (a partir dos anos60 e princípios de 70) apresentam explicações e resultados alternativos àqueles da teoria funcional. Pode-se dizer que a teoria funcional estaria particularmente correta a respeito dos efeitos da interação cooperativa e competitiva na diminuição ou aumento do conflito entre grupos, mas que vários aspectos relacionados a esses pontos podem ser questionados, especialmente em relação à formação grupal. Para a teoria funcional uma estrutura de grupo tende a emergir quando certo número de indivíduos interage de maneira cooperativa e razoavelmente estável. A formação da estrutura grupal relaciona-se ao desenvolvimento de papéis, normas e valores compartilhados e atividades coordenadas por objetivos relacionados. A atração interpessoal é vista, pela teoria funcional, como a base para a formação grupal. No entanto, as pesquisas (Tajfel e colaboradores 1971, Oakes e Turner 1986) parecem indicar que a categorização social, mesmo que em uma base puramente randômica, é suficiente para o comportamento de grupo. Nessas circunstâncias, os sujeitos exibem reações semelhantes ou coletivas, consistentemente relacionadas à sua própria filiação e de outros. A emergência do grupo pode ocorrer na ausência de amizade entre pessoas ou qualquer outra variável que possa predizer ou indicar atração 31 interpessoal. A atração que se verifica intragrupo seria o produto da categorização, pois mesmo quando as pessoas desconhecem seus companheiros de grupo “elas parecem gostar das pessoas porque são membros do grupo e não devido a características pessoais” (Turner, 1981, p.89). Para Turner (1984), o pertencer psicológico a um grupo possui características empíricas tidas como consensuais na Psicologia Social: a primeira é a perceptual ou de identidade, significando que algumas pessoas se definem e são por outras definidas como um grupo, compartilhando então, uma percepção de si próprias como uma entidade com uma identidade socialmente distinta, o nós opondo-se a eles; segunda é a de interdependência, indicando que os membros do grupo provêem, entre si, a satisfação de suas necessidades; a terceira característica refere-se à estrutura social, significando que as interações entre os indivíduos são organizadas e reguladas por um sistema de regras, normas, valores e status diferenciados e compartilhados. Dentre essas características a única que satisfaz às mais diferentes condições, como por exemplo, grupo pequeno ou amplo e, além disso, tem passado por testes empíricos (Tajfel e outros, 1972; Turner e Giles, 1981; Turner, 1984) parece ser a da percepção. No sentido colocado por esses autores e com base no exemplo de Turner e Giles (1981), qualquer nação pode se reconsiderada como um grupo amplo. Esta (seja qual for) não é um grupo emergente que se desenvolveu a partir de relações interpessoais, mas sim como ocorrência de uma realidade histórico-cultural. Tal categoria é imposta mesmo que não satisfaça às necessidades do indivíduo e que seus membros não atuem cooperativamente. Apesar dessas considerações, pessoas de uma determinada nacionalidade formam um grupo social não apenas no sentido geográfico, econômico e político, mas também por motivos psicológico-sociais e em muitos casos, 32 sob certas circunstâncias, compartilham emoções comuns e agem de forma relativamente semelhante. A definição de grupo de Tajfel (1978) refere-se a um conjunto de pessoas que se designam, e são por outros designados como um grupo. Tal conceito se aplica igualmente à categoria nação como exemplificado acima. Conforme Tajfel (1978, p. 28): “... essa descrição pode incluir entre um e três componentes: (a) um componente cognitivo no sentido do conhecimento que se pertence a um grupo; (b) um avaliativo, no sentido de que a noção de grupo e/ou a filiação a ele, pode ter uma conotação de valor positivo ou negativo que o indivíduo atribui a sua filiação; (c) e um emocional no sentido de que os aspectos cognitivos e avaliativos do grupo e da própria filiação podem ser acompanhados de emoção como amor ou ódio dirigido ao próprio grupo ou a outros que estão em certas relações com ele”. O componente cognitivo se configura como o mais importante na formação grupal e sua existência, como fenômeno da vida social, como enfatizado por Turner (1984), pode ser evidenciado no experimento conduzido por Tajfel e ouros (1971). Nesse experimento vários sujeitos foram divididos, com base em um critério ad hoc, recebendo a denominação de grupo X e grupo Y. Tais grupos eram totalmente anônimos, pois não possuíam história prévia de interação e nem quaisquer objetivos. Os sujeitos eram identificados por um número código, mantendo-se, portanto, o anonimato. Esse controle, além de impedir qualquer tentativa de interação, impossibilitava o desenvolvimento de alguma simpatia com base na associação do nome com características pessoais presumidas. O procedimento referia-se a uma tarefa de tomada de decisão entre recompensar (monetariamente) um membro do próprio grupo, um de outro grupo, responder aleatoriamente, ou responder no sentido de maximizar o lucro conjunto (onde cada sujeito receberia a média obtida pelos dois grupos). A hipótese era 33 a de que o indivíduo favoreceria membros de seu próprio grupo, ao invés de atuar tendo por base algum critério de justiça, como por exemplo, distribuição igualitária entre os dois grupos, ou de aumentar o ganho favorecendo uma maior partilha final, ou ainda, uma estratégia de resposta randômica. Os resultados mostram que os sujeitos favoreceram ostensivamente os membros do próprio grupo. Os autores tomam o dado como evidência de que os sujeitos estruturaram a situação como envolvendo relações entre grupos e se comportaram de forma idêntica a situações reais desse tipo. Explicações alternativas são refutadas e consideradas insustentáveis por Tajfel (1978). Por exemplo, o autor rejeita a possibilidade de “escolha forçada de resposta” uma vez que os sujeitos poderiam ter adotado outras estratégias (um número pouco significativo chegou inclusive a adotar a resposta randômica), sem nenhum custo adicional. A explicação em termos de característica de demanda, ou seja, as respostas dos sujeitos correspondendo à expectativa dos experimentadores, percebida de alguma forma durante a situação experimental poderia ser considerada plausível, conforme Tajfel, se se pudesse admitir tal expectativa inferida como “suficiente para determinar poderosa e consistentemente uma forma particular de comportamento intergrupal” ( p.35) como a observada. Vários experimentos, de acordo com Turner (1984), foram conduzidos com o objetivo de verificar se as respostas dos sujeitos poderiam ser consideradas em termos de característica de demanda, sendo que os resultados foram similares aos obtidos por Tajfel e outros (1971). Turner (1984), refletindo sobre esse experimento pioneiro, e reaplicações que a ele se seguiram utilizando o mesmo paradigma (Tajfel e outros, 1971; Tajfel e Billig, 1974) com alterações no critério randômico de separação grupal, com resultados 34 semelhantes, argumenta que as respostas dos sujeitos podem ser caracterizadas como um comportamento de grupo, representando reações coletivas compartilhadas. Afirma, ainda, que as condições do experimento refletem uma ausência de estrutura social e de interdependência e atração entre os membros do grupo, considerando, portanto, que as respostas foram determinadas apenas pela filiação categórica do tipo nós e eles. A ameaça compartilhada pode facilitar atitudes favoráveis entre pessoas de um grupo, mesmo supondo a existência de preconceitos raciais no grupo. As pessoas podem se tornar um grupo porque elas se percebem como compartilhando alguma situação peculiar. Dito de outra maneira, um destino comum pode induzir à percepção de homogeneidade entre os membros do grupo, facilitando a identidade social. Além disso, à medida que o destino comum se torne mais evidente como uma situação de fato que alcança o conjunto de pessoas como um todo o coesão grupal tende a aumentar. Quanto à cooperação intragrupo, esta pode produzir efeitos semelhantes aos da competição intergrupo, ou seja, evidenciar as fronteiras entre os grupos. Por outro lado, a competição dentro do grupo e a cooperação entre grupos tenderiam a tornar tênue ou até mesmo desmanchar as demarcações dos grupos. Com relação ao conflito intergrupo, Worchel, apontado na revisão de Turner (1981), defende que tais conflitos poderiam ser reduzidos pela remoção das diferenças salientes entre os grupos pelo aumento de interações cooperativas entre eles. Entretanto, apesar da existência de encontros cooperativos entre grupos, o autor admite que alguns fatores podem manter as fronteiras grupais, como por exemplo, diferenças físicas visíveis entre os membros do ingroup e outgroup, disparidade de poder e status, 35 intensidade de conflito prévio, fracasso cooperativo e limites de duração de encontros cooperativos. O processo de identificação social, segundo Turner (1981) estaria na base da formação de grupo e três variáveis poderiam ser agrupadas: (a) variáveis sociais ou físicas que induzem os indivíduos a se perceberem como definidos por atributos e experiências distintas comuns; (b) a ação social com base em tais atributos produzindo resultados negativos ou positivos; (c) outros processos de influência direta objetivando persuadir a pessoa para mudanças de atitudes na busca de uma autodefinição em alguma categoria social. Assim, em muitos casos, a cooperação pode ser considerada como um efeito da formação grupal, onde os indivíduos tenderiam a perceber seus motivos, necessidade e objetivos como relacionados à sua filiação de grupo. Pode-se dizer que haveria uma tendência à percepção de atributos, de acordo com os próprios interesses, de características estereotipadas ao grupo como um todo. Além disso, tais membros de grupo perceberiam a si mesmos como possuindo objetivos idênticos, ou pelo menos similares, aos do próprio grupo, e diferenciados e mesmo opostos, aos dos membros de outros grupos. Essa percepção poderia prover certa base para a cooperação intragrupo e competição entre grupos. O grupo pode ser compreendido (Turner e Giles, 1981) tanto como um processo psicológico quanto como produto social. E um processo psicológico na medida em que se supõe que os indivíduos, no ambiente social, são perceptualmente representados por categorias sociais. Estas categorias são definidas como um todo com base nas características de seus membros. As categorias são internalizadas como estruturas cognitivas e funcionam processando os estímulos. Além disso, as categorias 36 formadas vão influenciar a autopercepção produzindo mudanças no conteúdo do autoconceito. O grupo, a partir de sua distintividade, passa a ser reconhecido como um conjunto relativamente homogêneo, onde seus membros compartilham objetivos, valores, normas etc., associados à filiação categórica. O que se supõe (Turner e Giles, 1981) é que essa percepção de homogeneidade produziria uma influência direta nas características das relações no grupo, como por exemplo, coesão e cooperação. O grupo é igualmente uma realidade quando se refere às pessoas engajadas em atividades sociais como uma função das relações e objetivos sociais. Turner e Giles (1981, p.27) afirmam que “o grupo psicológico se torna uma realidade social à medida que um número de indivíduos compartilha e, em circunstâncias relevantes, atua, em termos de uma mesma identidade social”. Toda e qualquer relação social, conforme Tajfel (1978) pode ser vista em termos de um contínuo onde, em um polo se localizam as relações puramente intergrupais. O interpessoal (ou interindividual) pode ser definido como o encontro entre pessoas cuja interação é exclusivamente determinada pelas relações pessoais entre os indivíduos e pelas respectivas características individuais. O intergrupal refere-se ao encontro entre pessoas onde a interação é exclusivamente determinada pela filiação a diferentes grupos ou categorias sociais. Para Tajfel (1978), a relação puramente interpessoal seria impossível de ocorrer, pois mesmo as interações marcadamente determinadas por atributos pessoais, estariam sendo influenciadas por alguma filiação grupal. Poder-se-ia dizer que a amplitude e a complexidade de toda interação social se movimenta de um extremo ao outro do contínuo, onde, quanto mais próxima for uma relação social do extremo interpessoal, maior a tendência à variabilidade 37 comportamental em relação aos membros de outros grupos e, quanto maior a proximidade ao extremo intergrupal maior a tendência à uniformidade comportamental. No segundo caso, o tratamento aos membros do grupo externo dar-se-ia independentemente de suas características individuais, ocorrendo uma consciência da dicotomia ingroup-outgroup com uma valoração saliente das características grupais. O conceito que o indivíduo tem de si mesmo, para Turner (1981), pode ser entendido como uma estrutura cognitiva que tem a função de regular o comportamento em condições relevantes. Essa estrutura é composta por dois subsistemas: identidade pessoa, que se refere a uma autodescrição em termos de atributos pessoais ou idiossincráticos como personalidade e traços intelectuais ou físicos, e identidade social, que compreende uma autodefinição em termos de filiação categórica social, como raça, classe, nacionalidade etc. As identificações específicas resultam na identidade social total do indivíduo. Esse conceito pode explicar as variações ao longo do contínuo intergrupal-interpessoal, onde as diferentes situações vão tornar salientes autoconcepções que podem ser usadas para interpretar os estímulos e regular o comportamento de uma maneira adaptativa. Assim, a transição, no autoconceito, da identidade pessoal para a identidade social, é responsável pela mudança do comportamento interpessoal para o intergrupal. O comportamento intergrupal é controlado pela percepção que a pessoa tem de si mesma e de outros em termos de sua filiação categórica social. Uma Psicologia Social voltada para o comportamento intergrupal deve, necessariamente, levar em consideração a heterogeneidade do ambiente social, onde pessoas se diferenciam ao se filiarem a diferentes grupos sociais. Os grupos desenvolvem uma cultura própria, possuem o seu status na sociedade e contribuem 38 diferentemente para a identidade social do indivíduo, por meio de processos de comparação e categorização social. Identidade, categorização e comparação social A sociedade é formada por diferentes grupos sociais, onde cada filiação a um grupo específico contribui, positiva ou negativamente, para a formação da auto-imagem do indivíduo. A organização do ambiente pelo indivíduo corresponde à formulação de um esquema classificatório, ou seja, à separação de objetos ou pessoas com base em uma ou mais características comuns. A diferença segundo Tajfel (1978), entre os julgamentos no ato de classificar objetos ou pessoas é que, no segundo caso, as categorizações estão relacionadas a diferenciais de valor. Tais diferenciais, socialmente derivados em suas interações com os mecanismos cognitivos da categorização, são importantes para toda divisão entre nós e eles. A organização do ambiente, pelo processo de separar, realça um exercício de efetuar julgamento, incluindo o próprio indivíduo que categoriza. Dessa forma, ele adquire a consciência de pertencer a um grupo. A filiação grupal (Tajfel, 1981; Deschamps, 1984; Van Knippenberg, 1984) apresenta como resultante um processo cognitivo e emocional. O processo cognitivo implica no reconhecimento, feito pelo indivíduo, de que ele é parte de um conjunto de pessoas que se diferencia de outros conjuntos. Dessa consciência de filiação decorre o julgamento sobre seu grupo e os dois processos envolvem certa demanda emocional. Esse investimento emocional evidentemente varia em termos de indivíduos e em relação a cada filiação específica. 39 A aquisição de identidade social que vai definir a posição que o indivíduo ocupa na sociedade é resultante da filiação a diferentes grupos sociais. Identidade social, para Tajfel (1981), compreende “aquela parte do autoconceito do indivíduo que se deriva do reconhecimento de filiação a um (ou vários) grupo social juntamente com o significado emocional e de valor ligado àquela filiação” (p.63). Tajfel (1978) argumenta que a noção de autoconceito já havia aparecido na teoria de comparação social de Festinger (1954), mas este autor estava basicamente interessado nas comparações feitas entre indivíduos em um grupo. Deschamps (1984) reafirma a posição assumida por Tajfel e enfatiza que a comparação social, na teoria de Festinger, estava baseada na idéia de um confronto entre indivíduos em um grupo o que resultaria em uma pressão para a uniformidade e conformidade. Turner (1981) apresenta um conceito de identidade social relativamente diferente do de Tajfel. Esse autor se refere a essa categoria como “a soma total das identificações sociais da pessoa onde as últimas representam categorizações sociais específicas internalizadas tornando-se um componente cognitivo de autoconceito” (p.24). Não se pode dizer que esses conceitos se contradigam, mas o segundo parece mais abrangente fornece elementos para a explicação do comportamento intergrupal como foi visto anteriormente. Tajfel (1978, 1981) enfatiza algumas conseqüências do reconhecimento de pertencer a um grupo que podem ser resumidas como segue: (a) o indivíduo busca um novo grupo se este contribuir para melhorar os aspectos positivos de sua identidade social; (b) o indivíduo deixa o grupo que não contribui positivamente para a sua identidade, a menos que isso seja impossível; (c) na impossibilidade de abandonar o grupo, o indivíduo pode reinterpretar os atributos deste tornando-os mais aceitáveis ou esforçar-se para melhorar a posição que o grupo ocupa na sociedade. O esforço para 40 melhorar a posição do grupo, ou reinterpretar os seus atributos, adquire significado na comparação com outros grupos. Com relação à avaliação categórica, Van Knippenberg (1984) afirma que o indivíduo pode inferir características que lhe são atribuídas e como o seu comportamento é interpretado, e compreender as reações dos demais em relação à sua pessoa. Segundo Brown (1984), à medida que o indivíduo avalia o seu grupo comparando-o com outros, ocorre uma tendência geral de maximização das diferenças positivas em várias dimensões. Também Doise e outros (1978), consideram que o processo de categorização leva à discriminação intergrupo. Os indivíduos tenderiam a perceber a se mesmos e aos outros em termos de sua filiação de grupo, ou seja, vêem a si como semelhantes aos membros do ingroup (ou estes como semelhantes a si próprios) e como diferentes dos membros do outgroup. Para Tajfel (1978, 1981) e Turner (1981) a categorização social per se estimula um processo de comparação social auto-avaliativo. Esse processo produziria uma influência sobre a auto-estima, que guarda relação com a distintividade positiva do ingroup quando comparando dom o outgroup. As comparações do tipo auto-avaliativas tendem a se refletir em processos competitivos que motivam atitudes e ações discriminatórias em relação aos grupos extensos. É possível pensar que os processos de comparação e categorização sejam complementares onde a comparação aparece como condição necessária e a categorização como a condição suficiente para a diferenciação intergrupal competitiva. 41 Estrutura de crença e mobilidade social Na análise da estrutura de crenças que funciona como um fator de influência das variedades comportamentais interpessoal e intergrupal, poder-se-ia dizer que, de um lado, o interpessoal, em sua forma extrema, emerge quando se desenvolve a crença de que as fronteiras entre os grupos são flexíveis e mutáveis e, consequentemente, a passagem de um grupo a outro pode ocorrer sem grandes dificuldades. Por outro lado, o intergrupal, em sua forma externa, resulta da crença de que as fronteiras entre os grupos são rígidas e imutáveis havendo uma impossibilidade, ou, ao menos, uma grande dificuldade para a passagem de um grupo ao outro (Tajfel, 1978, 1981). A estratificação social pode-se processar com base em diferentes critérios, como por exemplo, socioeconômica, étnica, religiosa etc. A característica comum a todas elas, consiste na dificuldade ou impossibilidade de mobilidade de um grupo para outro. Em termos de status, os grupos se modificam dentro de alguma amplitude, porém a sociedade desenvolve certas estratégias no sentido de proteger os grupos de status elevado, impedindo ou dificultando a filiação de membros provenientes de grupos com pouco prestígio ou desfavorecidos. De acordo com Tajfel, tais estratégias ocorrem através de leis, normas, regras e sanções. Além disso, dependendo de como tais estratégias são utilizadas, elas inculcam ou confirmam a crença na estratificação. A forma como a estratificação é percebida pelos vários grupos sociais e o grau de consenso entre eles sobre os referidos atributos, são analisados por Tajfel em termos de seu papel na gênese dos movimentos sociais e nas relações sociais intergrupais. O autor parte do consenso entre os grupos sobre a legitimidade e estabilidade que reflete o máximo de estratificação possível e supõe que qualquer mudança nessa situação, 42 teoricamente, seria iniciada por alterações no consenso, onde um ou mais grupos, passariam a questionar essa legitimidade e/ou estabilidade. Tais alterações no consenso podem caracterizar três combinações possíveis de atributos de estratificação, como ilustrado no Quadro 1. Amplitude do que é julgado Consenso total Tipo de julgamento legítimo ilegítimo X estável X X Consenso parcial instável X X X X X Quadro 1. Combinações de atributos de estratificação social em função da amplitude pela qual são compartilhados. Para Tajfel, a terceira e a quarta combinações de atributos podem interagir, pois a percepção de ilegitimidade pode resultar em tentativas de produzir mudanças na situação e a percepção de instabilidade na situação, resultante de uma consciência de modelos alternativos no sistema social, pode, em decorrência, produzir mudanças na percepção de legitimidade. Além disso, o autor reconhece que uma combinação da ilegitimidade e instabilidade são elementos virtualmente eliciadores de tentativas de mudanças no status quo do grupo ou de resistência a mudanças pelos grupos que se sentem ameaçados. As mudanças no consenso resultam em conflito social potencial e podem influenciar o desenvolvimento de Movimentos Sociais. A estrutura de crenças sobre a flexibilidade ou rigidez da estratificação social parece determinar, conforme Tajfel, a natureza das relações entre os membros de 43 diferentes grupos, se a partir de uma base interpessoal ou a partir de uma base intergrupal que também podem ser colocadas em um contínuo, como ilustra o Quadro 2. CRENÇA NA POSSIBILIDADE DE MUDANÇA DE UMA POSIÇÃO PARA OUTRA ATRAVÉS DA AÇÃO INDIVIDUAL CRENÇA NA POSSIBILIDADE DE MUDANÇA DE UMA POSIÇÃO PARA OUTRA ATRAVÉS DA AÇÃO COLETIVA MOBILIDADE SOCIAL MUDANÇA SOCIAL COMPORTAMENTO INTERINDIVIDUAL COMPORTAMENTO INTERGBRUPAL Quadro 2. Estrutura de crença representada como um contínuo influenciando comportamento interindividual e comportamento intergrupal A crença na mobilidade social refere-se à percepção que o indivíduo tem de que ele pode melhorar a sua posição através da ação individual, que tem como base a idéia difundida de que o sistema social é flexível e permeável. A crença na estratificação social indica a percepção na impossibilidade de mudança na posição ocupada na sociedade. Nesse caso pode desenvolver a idéia da ação coletiva como a única maneira de obter mudanças desejáveis. Para Tajfel (1978, 1981), a posição de um indivíduo, no contínuo da estrutura de crença mobilidade social-mudança social, é um determinante poderoso tanto para a base interpessoal quanto para a intergrupal do comportamento social. O sistema de crenças funciona, por um lado, determinando os padrões comportamentais interindividuais e intergrupais, e por outro, ele é fortalecido pelos resultados obtidos pelos padrões adotados. Nesse sentido, a estrutura de crenças 44 mantém relação com a identidade social, contribuindo, em termos de crença grupal compartilhada, à sua atribuição de valores positivos ou negativos. Essa valorização relaciona-se, comparativamente, com a posição que o grupo ocupa no contexto da sociedade. Estudos de campo. Embora a teoria da identidade social possa contribuir para a compreensão de fenômenos como conflitos sociais, mudança social, ação coletiva etc., é preciso reconhecer que a pesquisa empírica, de maneira geral, permanece, em grande parte, restrita à situação de laboratório. Apesar dissso, a aplicação dessas categorias em estudos de campo parece se revelar bastante promissora, como pode ser evidenciado, por exemplo, no trabalho de Williams e Giles (1978) que analisam a mudança de status da mulher na sociedade com base na idéia da percepção que esta desenvolve, enquanto categoria socialmente discriminada, e na pesquisa conduzida por Reicher (1984), que descreve a rebelião de St. Pauls ocorrida em Bristol (Inglaterra), analisando-a com base no modelo de identidade social. Dado que a rebelião de St. Pauls, como descrita por Reicher, apresenta alguma similaridade com uma fase específica do Movimento de Luta Contra o Desemprego (objeto de análise desta pesquisa), esta será considerada mais detalhadamente. Na análise da ação coletiva de Reicher duas questões são consideradas fundamentais: (a) quem toma parte e quem se exclui da ação; (b) quais são as ações que ocorrem e quais não ocorrem. Essas duas questões referem-se, segundo o autor, aos 45 limites da participação e aos limites do conteúdo das ações, respectivamente. Tais limites se relacionam à identidade social dos participantes da ação coletiva. Para Reicher, portanto, o conceito de identificação é central na construção de um modelo explicativo do comportamento coletivo e tem como base o conceito de identidade social de Tajfel e Turner. Dessa maneira, uma multidão é vista como um conjunto de indivíduos que se percebem como membros de uma categoria social comum e adotam uma identificação compartilhada. A identificação representaria como processo, uma condição necessária e suficiente parra um tipo particular de influência social que é denominado por Turner (1981) de “Referent Informational Influence”: “Um processo onde os membros buscam normas estereotípicas que definem a filiação categórica e adaptam seus comportamentos a elas” (Reicher: p.4). Com o objetivo de esclarecer esse processo o autor caracteriza a multidão como um grupo, e utiliza três critérios nessa caracterização: (a) relação face-aface entre os membros do grupo; (b) ambigüidade e novidade da situação em que o grupo se movimenta; (c) bloqueio dos meios formais que provêem o consenso do grupo. Os critérios e normas prevalecentes são inferidos das ações dos outros membros. Tal inferência estaria sob o controle de dois fatores: (a) da percepção dos outros como membros do grupo; (b) das ações destes em termos dos atributos de definição de sua identidade social. Por outro lado, as normas podem ser avaliadas na medida em que novos comportamentos são vistos como mais apropriados, o que explicaria a rápida mudança na natureza da ação coletiva. O processo de influência entre os membros de uma multidão dependeria da identificação social. Aqueles que se identificam com a categoria relevante então sujeitos ao processo de influência. Nesse caso, os limites da participação relacionam-se com os 46 limites da identificação, enquanto que, com referência aos comportamentos (limites do conteúdo das ações), estes guardam relação com os atributos que definem a categoria social percebida. Embora Reicher advirta que a pesquisa em si não comprova o modelo, ele enfatiza que este vai além das teorias individualistícas e, reafirma, a impossibilidade de se explicar certos tipos de comportamentos, desconsiderando-se os aspectos da estrutura social. A pesquisa em referência identificou limites de conteúdo das ações. Tais ações, as quais se generalizam, são as normativas. Uma investigação sobre ações generalizáveis e não generalizáveis provê recursos para se definir os contornos da identificação grupal. Além dos limites das ações identificou-se os limites geográficos, que, no caso, se relacionavam à percepção de comunidade dos membros rebelados de St. Pauls. O autor entende que um modelo deve ser capaz de explicar certas questões relacionadas ao comportamento coletivo, como por exemplo: (a) gênese da ação; (b) a relação ente as ações (limites) e (c) ideologia social. A conclusão final do estudo endereça a alguns aspectos sumamente importantes, como por exemplo, o de que o comportamento coletivo pode ser modelado pela identidade social e que inversamente, aquele pode modelar a identidade social. Nesse sentido, o comportamento coletivo teria um papel importante no desenvolvimento da natureza das ideologias sociais. Finalmente, o autor enfatiza que “a ação coletiva não reproduz simplesmente as identidades sociais estáticas, mas representa uma interpretação criativa dessas identidades em uma nova situação” (p.19). 47 A pesquisa de Reicher, com um cuidadoso procedimento de coleta de dados, representa, portanto, uma tentativa bem sucedida de aplicação, ao estudo de campo, de categorias derivadas da teoria da identidade social, originando na construção de um modelo de análise que permite novas aplicações. Proposições básicas A revisão da literatura sobre a teoria da identidade social, permitiu o reconhecimento de sua história como uma contraposição às teorias centradas no comportamento de base interpessoal. Tais teorias, de base interpessoal, “pecam” pela ênfase excessiva em processos psicológicos desvinculados da realidade social imediata e histórica. O mérito inicial da teoria da identidade social é justamente, o de considerar as ligações entre o contexto social e o indivíduo e o comportamento deste com base em sua filiação categórica. Nesse sentido a teoria se mantém em aberto para contribuições de análises sócio-políticas, particularmente evidenciando uma área de conexão com a Sociologia (ver Doise, 1984). Em resumo, a teoria da identidade social representa uma tentativa de resgatar, na análise psicológica, o contexto social. Os seus principais componentes ideativos podem ser apresentados, como seguem: • O comportamento social é frequentemente determinado pela filiação categórica do indivíduo. • A filiação a um ou mais grupos é elemento natural de vida social, sendo que esse pertencer psicológico está relacionado à percepção compartilhada de uma identidade social distinta. 48 • O grupo, portanto, pode ser definido como um conjunto de pessoas que se percebem como pertencentes a uma categoria social distinta e que são, igualmente, por outros assim percebidos. • A filiação a um ou mais grupos contribui para a formação da identidade social do indivíduo. Quando essa identidade não satisfaz, o indivíduo procura deixar o grupo e, modifica o seu julgamento sobre o mesmo ou esforça-se para alterar a posição de seu grupo no contexto social. • As relações entre grupos não podem ser explicadas apenas em termos das relações de base interpessoal. • A emergência de um grupo está relacionada ao processo de identificação social que é facilitado por três fatores: (a) aspectos sociais ou físicos, que fazem com que um conjunto de pessoas se perceba como definido por atributos e experiências distintas compartilhadas; (b) uma ação social com base em tais atributos; (c) busca de influência direta com objetivo de mudança de atitude em direção a uma autodefinição para alguma categoria social. A partir da emergência do grupo inicia-se o processo de comparação social. O indivíduo compara o seu grupo a outros, tendendo a perceber os membros do ingroup como semelhantes a si e os membros do outgroup como diferentes. A comparação fortalece as fronteiras dos grupos e influencia a discriminação entre grupos. A percepção de objetos similares no ingroup e diferentes e opostos em relação aos membros do outgroup provê uma base para a cooperação intragrupal e competição entre grupos. 49 Relações sociais interpessoais ou intergrupais são resultados de uma estrutura de crenças na flexibilidade ou na rigidez das fronteiras grupais. Mudanças no consenso sobre o julgamento dos atributos da estratificação social (ilegitimidade e estabilidade) podem resultar em conflito entre os grupos, influenciando o aparecimento de Movimentos Sociais que visam alterar a estrutura das relações entre grupos. O comportamento coletivo resulta do processo de identificação que representa a condição necessária e suficiente para um tipo particular de influência social. Assim, uma multidão pode igualmente ser caracterizada como um grupo, na medida em que seus participantes se percebem como membros de uma categoria social comum e adotam uma identificação compartilhada. 4. O problema de pesquisa A análise efetuada nas secções precedentes e as dificuldades inerentes à compreensão dos Movimentos Sociais sob enfoques alternativos da Sociologia ou da Psicologia, evidenciam a natureza social e psicológica do fenômeno e sugerem a necessidade de uma abordagem psicossocial para o encaminhamento de estudos nessa área. Essa abordagem deverá implicar, de um lado, em superar a ênfase no psicologismo, presentes nos estudos iniciais sobre Movimentos Sociais, mas também em evitar os riscos de tomá-lo na perspectiva homogeneizante do sujeito coletivo, descartando-se as variáveis psicológicas relacionadas às características dos agentes e à diferenciação e dinâmica interna dos grupos que o compõe. A possibilidade de uma abordagem psicossocial implica, portanto, em uma tarefa e um desafio de integrar a análise da estrutura e dinâmica internas do movimento 50 à análise de suas relações, enquanto sujeito coletivo, com o contexto social do qual ele pode ser, dialeticamente agente e objeto. A característica do quadro teórico da Psicologia sobre Movimentos Sociais mostra, de um lado, a falta de referencial amplo e integrado, dada a sua fragmentação em teorias dissociadas entre si e, de outro, a carência de suporte empírico, pelo menos em termos de estudos de campo, que ampliem as perspectivas de explicação do fenômeno. As categorias analíticas derivadas da teoria da identidade social, conforme discussão anterior parecem representar um referencial útil e potencialmente heurístico na compreensão de aspectos psicológicos relevantes do fenômeno da ação coletiva, particularmente porque elas são concebidas na perspectiva interacionista, o que possibilita, ou ao menos facilita, a análise psicossocial que está sendo proposta. Em resumo, a preocupação com uma descrição minuciosa dos aspectos empíricos do fenômeno da ação coletiva e com uma análise psicológica que leve em conta a contextualização dos fatores da estrutura social, orientam o encaminhamento do objetivo geral da pesquisa que pode ser apresentada como uma análise dos aspectos psicossociais relacionados ao aparecimento, trajetória e dispersão do Movimento de Luta Contra o Desemprego, das características psicológicas dos agentes e da dinâmica dos subgrupos por eles formados. Em termos mais específicos, essa análise foi direcionada para as seguintes questões: 51 1. Quais as características da trajetória do movimento em relação a: (a) visibilidade social (principais manifestações, negociações e apoios obtidos); (b) dinâmica interna em diferentes momentos; (c) relações externas com outros grupos e categorias. 2. Quais os ganhos e a possível extensão da influência do Movimento de Luta Contra o Desemprego? 3. Quais as características dos grupos do movimento e das associações que o apoiavam? 4. Como se estruturavam as associações que atuavam junto ao Movimento de Luta Contra o Desemprego? 5. Quais as características dos agentes filiados ao movimento e/ou associações? 6. Quais os fatores psicossociais identificados na emergência, trajetória e dispersão do Movimento de Luta Contra o Desemprego e na participação do agente nesse processo? 52 MÉTODO As características organizativas do Movimento de Luta Contra o Desemprego (MLCD) e os objetivos deste trabalho determinaram as estratégias de coleta de dados, em termos da participação do pesquisador nas associações, nos grupos e subgrupos constitutivos do movimento e do contato direto com os seus integrantes. Os primeiros contatos com o MLCD permitiram identificar uma dinâmica complexa, onde se movimentavam associações ou entidades como a APSD (Associação para o Desenvolvimento da Intercomunicação), que prestavam apoio às organizações dos desempregados como os GS (Grupos de Solidariedade). Tomavam parte nessa dinâmica, embora sem receber apoio direto dessas entidades, os CLCD (Comitês de Luta Contra o Desemprego), que aparentemente constituíam núcleos do próprio movimento. Posteriormente apareceram novas entidades como a BASENOVA ou BN (Associação de Apoio às Iniciativas Populares), o CLCD-EM (Comitê de Luta Contra o Desemprego de Ermelino Matarazzo) e o Centro Social São Francisco de Assis de Ermelino Matarazzo. A participação do pesquisador se iniciou em agosto de 1983, intensificando-se a partir de outubro do mesmo ano, e durante todo o ano de 1984 até setembro de 1985. Após esse período, as visitas aos grupos tornaram-se gradativamente mais esporádicas, encerrando-se completamente em maio de 1986. A partir do comparecimento às reuniões das associações, grupos e comitês, nos encontros entre estes e em manifestações do MLCD, verificou-se que, não obstante terem existência em separado, os comitês e muitos grupos de solidariedade 53 participavam do movimento. Observou-se também, que algumas associações aparentemente se estruturavam em função do movimento. Considerou-se, portanto, necessária a obtenção de informações sobre os grupos, os comitês e outras categorias (Igreja, órgãos governamentais etc.) que, de alguma maneira, respondiam à atuação do movimento. Tal decisão implicou em tomar, como informantes, pessoas (agentes) com presença razoavelmente contínua no movimento e nas associações e também em buscar, de fontes documentais (atas, estatutos, manifestos, jornais etc.) elementos que complementassem as informações dos agentes e as observações efetuadas. A primeira fase de contato ocorreu junto a uma entidade que atuava mediando a distribuição de verbas aos desempregados, denominado de Associação Paulista de Solidariedade no Desemprego. Por meio dela, manteve-se contatos com outras associações, grupos de solidariedade e comitês, obtendo-se informações sobre calendário de reuniões, localização de grupos, comitês etc. Além disso, granjeou-se certa familiaridade com pessoas que participavam desses grupos o que facilitou o trânsito do pesquisador junto ao MLCD e sua dinâmica. Os objetivos da pesquisa foram comunicados às associações e ao movimento, quando dos primeiros contatos, e reafirmados em outras ocasiões. No âmbito do MLCD e mesmo de algumas entidades e grupos, tais objetivos eram, em geral, ignorados e os seus integrantes faziam solicitações ao pesquisador, tomando-o como um colaborador. Uma vez que os comitês e grupos de solidariedade se espalhavam por diferentes pontos da cidade decidiu-se acompanhar mais rotineiramente os de uma região, optando-se por Ermelino Matarazzo. Essa escolha foi feita com base, de um lado, na avaliação corrente dos participantes sobre a importância daquela região para o conjunto do movimento e, de outro, por meio de indicadores que evidenciavam uma 54 maior participação e organização dos grupos ali situados (freqüência dos grupos de solidariedade e comitês nos encontros, formação de uma entidade civil, denominado de Comitê de Luta Contra o Desemprego de Ermelino Matarazzo, por alguns Grupos de Solidariedade etc.). Não obstante se acompanhar mais de perto essa região, visitou-se outros grupos localizados em diferentes pontos da cidade. 1. Procedimento de coleta de dados e fonte As fontes dos dados obtidos na pesquisa e os procedimentos adotados aparecem no quadro que segue. COLETA DE DADOS Procedimentos Fontes Observação participante Eventos Entrevistas Agentes Consulta em arquivos Material impresso Quadro 3. Procedimentos de coleta de dados e respectiva fontes. Observações de eventos. Os eventos observados foram: reuniões e assembléias (grupos, associações, comitês e movimento), encontros (Grupos de Solidariedade e Comitês) e manifestações (movimento). Os registros de observação efetuados foram cursivos e frequentemente complementados após a ocorrência do evento. A observação foi seletiva, buscando-se registrar os aspectos característicos do evento como, por exemplo, organização, 55 participante, estratégias, desempenhos específicos de grupos ou pessoas em um encontro ou manifestação, relações entre grupos, presença de colaboradores externos aos grupos e/ou ao movimento, procedimentos de divisão de tarefas etc. Entrevistas e agentes. Foram realizadas 35 entrevistas, estruturadas, gravadas, que ocorreram em diversas situações como, por exemplo, no salão de uma igreja, na residência de agentes, na sede de entidades etc. Dos 29 participantes da pesquisa, 6 foram entrevistados pela segunda vez, aproximadamente 12 meses após a primeira entrevista. Os agentes se dividiam em 17 do sexo masculino de 12 do feminino. Quanto ao estado civil, 21 eram casados e os demais solteiros. A maioria vivia em bairros periféricos na região de Ermelino Matarazzo, sete residiam em bairros mais próximos ao Centro (Pinheiros, Vila Madalena, Sumaré e Moema), dois eram moradores da Vila Carrão (Zona Leste) e um morava no município de Embú. Foi elaborado um roteiro de entrevista com dois conjuntos de itens. O primeiro, com referência ao movimento, associações, grupos e comitês: estrutura, organização, projeto político, atividades, objetivos e relações estabelecidas. O segundo com relação aos agentes: profissão, escolaridade, experiência de participação grupal, religiosidade, tema desemprego, análise da situação social, crenças e expectativas. Os itens foram abordados seletivamente com os entrevistados, com base na filiação, nas tarefas e funções e na vivência da situação de desemprego. Todas as entrevistas foram transcritas, o mais imediatamente possível após a sua realização e algumas delas tiveram ítens discutidos com os entrevistados com o objetivo de dirimir dúvidas ou complementar as informações. Os entrevistados participaram da pesquisa na qualidade de informantes e de sujeitos. No primeiro caso, relatando os acontecimentos que experienciaram direta ou 56 indiretamente em relação ao MLCD e ao(s) grupo(s) ou associação a que se filiaram; no segundo, pela descrição da própria história de vida, de julgamentos e sentimentos. Consulta em arquivos e material impresso. O material impresso se dividiu em dois conjuntos distintos: os produzidos pelo movimento, grupos, comitês e associações como, por exemplo, convocatória, estatuto, panfleto, jornal Intercarta etc.e os produzidos pela imprensa, por exemplo, reportagens, editoriais, depoimentos e artigos. As associações APSD, BN E CLCD-EM, alguns Grupos de Solidariedade e Comitês franquearam seus arquivos de documentos ao pesquisador que compilou e extraiu, fazendo cópia manuscrita ou fotocópia (quando possível), as informações de interesse da pesquisa. Os jornais e revistas foram obtidos do banco de dados do Centro Pastoral Vergueiro constituindo-se de cinco dossiês denominados A revolta da fome, O acampamento do Ibirapuera, A ocupação do SINE, Desemprego, qual o caminho e Desemprego. Ao todo, esses dossiês compreendiam 403 páginas de publicações jornalísticas sobre as manifestações, reações provocadas pelo MLCD e a questão do desemprego. Selecionou-se também, depoimentos do livro Painel Sobre o Desemprego publicado pelo Congresso Nacional. 57 2. Procedimentos de análise Dados de entrevista. As entrevistas foram transcritas em papel ofício, deixando-se, nas margens, espaço para anotações (protocolo de entrevista-PE). No cabeçalho do PE foi anotado o nome do agente, grupo ou entidade a que pertencia, local, data de entrevista e o código com qual ele passou a ser referido no presente trabalho (A1, A2 etc.). As primeiras leituras permitiram grifar segmentos da fala dos agentes considerados relevantes para os objetivos da pesquisa e fazer anotações às margens, indicativas do conteúdo da fala. Observou-se, nessa tarefa, que a maioria das informações era pertinente e que algumas poucas referências dos agentes expressavam manifestações próprias da interação social ou se referiam aos acontecimentos alheios aos interesses da pesquisa. Essas referências foram, então, excluídas como não concernentes. As leituras subseqüentes possibilitaram separar segmentos da fala dos agentes que se distinguiam entre si por apresentarem conteúdos ou relatarem acontecimentos ou experiências distintos. Cada segmento recebeu então uma denominação anotada em uma folha à margem esquerda reproduzindo-se o segmento como uma ilustração à sua direita. Segmentos com o mesmo conteúdo ou relativos ao mesmo acontecimento foram agrupados sob a mesma denominação. Ao final de cada ilustração anotava-se o código do agente e a página do PE a que este pertencia. Para eliminar qualquer ambiguidade introduziu-se, entre colchetes, palavras ou frases subentendidas da conversação. Dados do material impresso. As publicações internas tais como panfletos, convocatórias, estatutos etc. foram classificados pelos assuntos que se referiam, informações que veiculavam, alvo e origem. Por exemplo, convocatória: 1. Reunião, 58 manifestação etc.; 2. Data, local etc.; 3. Membros do grupo, colaboradores, população em geral etc.; 4. Mensagem provinda do MLCD, BN, GS etc. Essa classificação foi colocada em uma folha de papel ofício, organizando-se uma relação com base nas entidades a que pertencia. Já as matérias veiculadas pela Intercarta foram agrupadas em três conjuntos: o primeiro compunha-se de comunicações das entidades APSD e BN; o segundo reunia as comunicações assinadas por diversos (órgãos públicos, pessoas, igrejas etc.) e o terceiro conjunto tratava de matérias assinadas pelos Grupos de Solidariedade. As comunicações assinadas pela APSD, BN e por diversos foram agrupadas cronologicamente. As matérias assinadas pelos grupos de solidariedade compreendiam 80 por centto de toda a publicação do jornal e dos 235 grupos cadastrados pela APSD, 70 por cento assinou no mínimo uma matéria durante o período de circulação do jornal. As matérias faziam referência ao próprio grupo, relatando sua formação e atividades desenvovidas. Uma mesma matéria às vezes relatava mais de uma atividade. Anotou-se então, no próprio jornal, uma denominação para cada atividade. Posteriormente anotou-se em uma folha (protocolo Intercarta-PI) a denominação dada e as atividades correspondentes como por exemplo, “Abastecimento: formar horta comunitária, coletar sobras de verduras na CEASA etc.”. Encerrada essa fase, iniciou-se o processo de definir as denominações e verificar se os exemplos eram pertinentes. O resultado dessa tarefa constou de um rol de classificação das atividades relatadas pelos grupos de solidariedade. As publicações dos jornais relativas aos dossiês foram coligida em uma folha (protocolo de jornais-PJ), anotando-se em cada um a denominação do dossiê a que se 59 relacionava. Nesse protocolo, registrou-se: (a) resumo da matéria (reportagens ou editoriais); (b) transcrição de descrições de eventos e de depoimentos (reportagens, entrevistas e editoriais) sobre o MLCD e/ou Grupo de Solidariedade e Comitês; (c) observações do pesquisador indicando fontes complementares (documentos ou relatos dos agentes) e discrepância entre as fontes. Com o objetivo de superar possíveis discrepâncias entre as fontes adotou-se os critérios: (a) aceitação da informação quando duas ou mais fontes concordavam entre si; (b) aceitação da matéria produzida pelo movimento ou associação, por exemplo, itens de reivindicação do panfleto em detrimento dos indicados pelos jornais na descrição do evento. Sobre o livro Painel Sobre o Desemprego apenas anotou-se os assuntos abordados nos depoimentos e as páginas correspondentes. Dados de observações. Os registros de observações realizados ao longo da participação do pesquisador nos grupos, associações e movimento foram relacionados pelos tipos de evento e pelos assuntos a que se referiam. A utilização desses registros facilitou a descrição das manifestações promovidas pelo MLCD durante o período de participação do pesquisador. Além disso, os registros auxiliaram na tomada de decisão sobre a escolha de entrevistados, grupos a serem visitados etc. 60 A AÇÃO COLETIVA, CONFLITO E ESTRUTURA Os resultados da presente pesquisa se dividem em duas partes mais abrangentes, que receberam as denominações: A ação coletiva, conflito e estrutura e Elementos da ação coletiva. A primeira parte está subdividida em três secções. Na primeira será abordada a história do Movimento de Luta Contra o Desemprego (MLCD), considerando-se o contexto social em que emergiu e as características das primeiras ações coletivas e os conflitos resultantes, a emergência propriamente dita e a sua trajetória – que inclui, como momentos de visibilidade, o acampamento do Ibirapuera, a invasão do SINE, e a caravana ao Palácio dos Bandeirantes. A secção seguinte trata do impacto que o MLCD obteve em termos das reações do Estado (governo e parlamento), do apoio da Igreja e dos efeitos sobre outros movimentos. A terceira secção descreve e analisa as entidades que participaram da dinâmica engendrada pelo Movimento de Luta Contra o Desemprego. A segunda parte consiste de uma análise dos Comitês de Luta Contra o Desemprego (CLCD) e dos Grupos de Solidariedade (GS) e, de forma mais molecular, dos agentes sociais que participaram do MLCD e/ou das principais entidades envolvidas. 61 A. A história do Movimento de Luta Contra o Desemprego. 1. O contexto social A crise social que se estendeu sobre o país a partir de 1981, agravada pela estagnação da economia, tinha seus contornos claramente evidenciados a partir de 1975/1976. O aceleramento da captação de empréstimos financeiros do exterior conduzia ao endividamento acentuado. Além disso, havia a crise do petróleo, o centralismo do planejamento econômico, a dificuldade da administração da dívida pública interna e a aceleração inflacionária, indicadores de uma crise que se avizinhava. Em 1976, e nos anos seguintes, observou-se uma acentuada inflexão dos investimentos privados na produção. Um outro aspecto merecedor de atenção foi o crescente fenômeno de automação na agricultura em estados como São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul, derivando grandes contingentes populacionais em busca de subsistência nas cidades de maior porte, principalmente São Paulo, considerada, ainda, na época, o “eldorado do emprego”. Esses fatores acima descritos vieram produzir, de um lado, o crescimento de oferta de mão de obra e, de outro, o decréscimo da demanda de vagas e ocupações no quadro da indústria, e de serviços. A partir de 1979 até 1985, impôs-se uma política recessiva, decorrendo uma diminuição dos investimentos públicos e uma elevação da taxa de juros para tomada de recursos nas organizações financeiras. O processo de desemprego em massa se acelerou rapidamente em 1981 e 1982, sendo que em 1981, o percentual de desempregados na região metropolitana de São Paulo era de 15,9 por cento da população economicamente ativa (PEA). Essa taxa 62 corresponderia a 936.996 pessoas sem trabalho regular e permanente (Boletim do DIEESE – Julho de 1984). A recessão não era um evento ”natural” ou fortuito, de curta duração, mas uma opção de política econômica do país com reflexos que seriam sentidos por muito tempo. Os riscos inerentes a essa estratégia, como, por exemplo, o desemprego, eram conscientemente assumidos pelo governo da República, como pode ser inferido da fala do Ministro da Indústria e Comércio: “… o desemprego será o preço que o Brasil pagará para diminuir a inflação e equilibrar as suas contas externas” (Folha de São Paulo: 14.2.83). No aspecto político, predominavam, a nível partidário, duas vertentes mais gerais: O PDS (Partido Democrático Social) que dava sustentação política ao governo militar e o PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), que se apresentava como uma frente com diferentes tendências de oposição. O pensamento expressado pelo PDS buscava reproduzir o ideário dos teóricos da revolução de 64, que se refletia no princípio da segurança com desenvolvimento. Dada a pressão da sociedade no sentido da democratização, a idéia que se buscava imprimir, era a de que o retorno à democracia, para ser seguro, deveria ocorrer de forma lenta e gradual. O discurso da transição podia ser interpretado como um longo período híbrido de “democracia relativa” de “autoritarismo necessário”, ou seja, onde as mudanças seriam mais conjunturais: a liberdade (por exemplo, de imprensa) poderia ser dilatada, dentro de certos limites e onde, finalmente, os mecanismos de defesa do sistema (lei de segurança nacional) deveriam ser mantidos ou substituídos por equivalentes quanto ao efeito. Tal projeto, evidentemente excluía a participação das massas trabalhadoras do processo de tomada de decisão. 63 A outra linha de pensamento, a do PMDB, tinha como base a descentralização do poder, o fortalecimento das instituições democráticas e a promessa de participação das várias categorias sociais no aprimoramento do Estado. Em São Paulo, tais ideologias confrontavam-se principalmente na disputa eleitoral para o cargo de governo do Estado, participando ainda, do mesmo pleito, o PT (Partido dos Trabalhadores), que representava uma proposta mais radical do que a do PMDB. Os demais partidos que compunham o quadro partidário do país, não possuíam expressão eleitoral em São Paulo. As eleições gerais para governadores dos Estados em 1982 representaram de fato, uma abertura política, que refletiu o avanço das forças progressivas. A vitória do candidato do PMDB a governador e o número de deputados eleitos sob essa sigla, geraram uma grande expectativa de mudança, especialmente das condições de vida das massas assalariadas. O quadro sócio-econômico do país era o da recessão (a maior da nossa história), iniciada, aproximadamente em 1980. A política econômica seguia o modelo preconizado pelo FMI (Fundo Monetário Internacional), e, no plano externo, era tida como bem sucedida, pois os constantes superávits da balança comercial permitiam saldar os compromissos com a comunidade financeira internacional. No plano interno, o modelo econômico se desdobrava no empobrecimento de amplas parcelas da população. O desemprego em massa e o subemprego cresciam rapidamente. As referências, quase que diárias, sobre as demissões em massa, na televisão e nos jornais, colocavam a questão do desemprego como uma ameaça real à sociedade toda, em termos de seus desdobramentos como a miséria, a doença, a violência e a criminalidade. Estimava-se, de acordo com levantamento feito, mais de mil demissões 64 por dia em São Paulo (Gazeta Mercantil: 27.1.83). Como o interesse sobre o desemprego crescia progressivamente, as empresas buscando minimizar as repercussões e evitar confronto com os trabalhadores, passaram a adotar critérios planejados para a dispensa. Tais critérios variavam em: (a) demissões gradativas em dias de semana indiscriminados; (b) sigilo absoluto de informações envolvendo dispensa; (c) priorização de demissões após gozo de férias. Além destes, utilizavam outros critérios (denominados de humanos) do tipo, escolha para dispensa de trabalhadores solteiros, ou de trabalhadores com menor número de filhos entre os casados. Algumas empresas adotavam a política de incentivar a demissão voluntária, acenando com a “vantagem” de pagamento de até oito salários mínimos, dependendo do tempo de trabalho exercido pelo operário. (Gazeta Mercantil: 2.9.83). O quadro recessivo levou os sindicatos a iniciarem um amplo trabalho junto aos operários. A panfletagem na porta das fábricas, as assembléias, os atos públicos se tornaram, a partir de 1981, atividades regulares. As convocatórias para assembléias de trabalhadores desempregados apareciam nos mais diferentes pontos da capital e cidades da Região Metropolitana. A explosão do conflito em Santo Amaro mostra como os ânimos dos moradores da região estavam exasperados, o que pode ser reconhecido pelos acontecimentos pregressos, como por exemplo, o protesto popular contra as péssimas condições de transporte em Grajaú (bairro desse distrito), que derivou na queima de dois ônibus e na depredação de outros da linha que atendia a região. 65 2. Os primeiros conflitos a. A região de Santo Amaro. Santo Amaro é um subdistrito do município de São Paulo, com 543 quilômetros de extensão. Segundo os dados do recenseamento de 1980 conduzido pelo FIBGE, a evolução de sua população tem sido bastante acelerada: 109.110 em 1960; 377.168 em 1970 e 765.743 em 1980. A população estimada para 1983 era superior a 900.000 habitantes. O operariado da região, composto de mão de obra qualificada, semiqualificada e sem qualificação, se distribui em bairros de classe média, com saneamento básico e serviços de água, luz e transporte coletivo, em vilas com saneamento sofrível e em favelas e cortiços, com esgotos a céu aberto. A pobreza acentuada é evidenciada pelo grande número de favelas e cortiços, onde viviam, em 1980, 193.230 pessoas, correspondendo, segundo o FIBGE a 20,7 por cento da população. Além disso, os dados indicavam que 43,6 por cento dos habitantes de Santo Amaro recebiam, nesse ano do recenseamento, de meio a dois salários mínimos. Uma característica de Santo Amaro é a de possuir uma tradição em movimentos populares como, por exemplo, o Movimento Contra a Carestia (MCC), que se espalhou por todo o país. Por outro lado, Santo Amaro tem sido o reduto de organizações esquerdistas, de tendências trotskistas e leninistas; tem sido também, abrigo oposicionista do PMDB, (eleitores comprometidos com deputados mais à esquerda desse partido) e, igualmente, um razoável reduto eleitoral do Partido dos Trabalhadores. Apesar da região que compõe o subdistrito de Santo Amaro ser bastante extensa, a proximidade entre bairros fabris e dormitórios e a existência de um espaço de 66 convergência, como o largo 13 de Maio, permitem que os trabalhadores se encontrem mais frequentemente, facilitando a sua organização, como de fato ocorreu em 1978 e 1979, com a formação de comitês de apoio às greves na maioria dos bairros e vilas. O ponto de referência de Santo Amaro é o largo 13 de Maio, local relativamente pequeno (500 metros quadrados, aproximadamente), com uma Igreja Matriz, que leva o nome do bairro. Esse espaço se transformou em ponto de encontro de migrantes que fixaram residência nessa região da cidade. É para ali que as pessoas se dirigem para receber notícias de parentes, amigos, “dicas” de emprego ou de barraco desocupado para alugar. O largo é frequentemente utilizado para início ou término de passeatas, atos públicos e comícios, o que o transforma em espaço político natural de toda vasta região. Não fossem os desdobramentos que se sucederam o ato público contra o desemprego, marcado para o dia 4 de abril de 1983, seria considerado dentro da rotina do largo. b. Uma ação coletiva de protesto. A imprensa paulistana (Folha de São Paulo e Estado de São Paulo: 5.4.83) noticiou que o ato público contra o desemprego ocorrido no dia 4 de abril de 1983 no largo de 13 de Maio foi convocado pelo Movimento Contra a Carestia e o Desemprego1. Para esse evento foram convidados o deputado Aurélio Perez do PMDB (parlamentar ligado ao PC do B com bases na região), a deputada Irma Passoni do PT (com vinculação nos Movimentos Populares de Santo Amaro), lideranças sindicais e dos 1 No período que antecedeu ao surgimento do Movimento de Luta Contra o Desemprego, várias convocatórias para atos públicos apareceram, com nome de movimentos desconhecidos ou iniciantes, que não chegaram a germinar. Possivelmente se constituíam de ensaios do que veio a se chamar de MLCD. 67 movimentos populares. Os acontecimentos que se sucederam ao ato serão relatados cronologicamente. Dia 4 de abril. O ato público marcado para as 09h00min horas, foi “engrossado por operários que realizavam uma passeata que se dirigia àquela praça” (A26)2, o que tornou mais numerosa e tensa a manifestação. Os temas dos discursos invariavelmente eram os mesmos: “… a política econômica do governo federal, o arrocho salarial, o desemprego (…). Os oradores falavam da miséria do povo, mostravam as carteiras para comprovar o quanto ganhavam; falavam que o Ministro, o Delfin, manipulava os dados sobre a inflação, que o governo era de ditadura… enquanto isso o pessoal vaiava e xingava…” (A25). O ato público tornou-se acentuadamente tenso e em um dado momento “não se sabe como, nem quem começou” (A9), uma porção de pessoas saltou para um caminhão da COBAL, carregado de laranjas e passaram a utilizá-las para quebras luminárias da praça, luminosos e vitrines das casas comerciais adjacentes. A ação foi seguida por outros participantes e “em pouco tempo o caminhão foi esvaziado” (Folha de São Paulo: 5.4.83). A confusão que se seguiu foi razoavelmente grande. O ato público parecia ter chagado ao fim, quando a multidão foi convocada para uma passeata até a Assembléia Legislativa, por militantes ligados ao Comitê do deputado Aurélio Perez (Folha de São Paulo; 5.4.83; Isto é; 13.4.83). Durante o trajeto decidiu-se por uma passeata até a Administração Regional de Santo Amaro onde, porém, não foram recebidos pelo titular do órgão. Defronte a 68 Administração Regional a polícia tentou dispersar os manifestantes, sendo recebida sem recuo pela população, que gritava: “Não adianta vocês nos espancarem, vocês também são explorados” (Isto é: 13.4.83). No regresso da multidão até o largo 13 de Maio, ocorreu o primeiro saque a um supermercado. “Pelos corredores, entre as duas portas de aço arrombadas, um correcorre de gente desesperada, para levar o que conseguisse”. (Estado de São Paulo: 5.4.83). Nas ruas transversais, ao longo da Avenida Adolfo Pinheiro novas depredações e saques tiveram lugar. A Polícia Militar se mantinha vigilante, mas estava indecisa diante de vários ataques contra o comércio vizinho. A multidão gritava: “Um dois, três, cinco, mil, ou pára o desemprego ou paramos o Brasil” (Estado de São Paulo: 5.4.83). Durante todo o restante do dia vários tumultos ocorreram no largo 13 de Maio e em vários bairros de Santo Amaro. Foram registradas invasões, saques, depredações e conflitos com a polícia em diversos pontos da região. Dia 5 de abril. Desde as primeiras horas da manhã a polícia manteve um forte esquema de segurança no largo 13 de Maio. O patrulhamento era ostensivo, e a ordem era impedir aglomerações. Apesar desse esquema, vários saques ocorreram em locais mais distantes, fazendo com que as viaturas se deslocassem de um lado para o outro. No largo 13 de Maio, cerca de 200 pessoas ocuparam as escadarias da Igreja. “As pessoas 2 Código designativo do agente entrevistado (ver método p.58). 69 exigiam do Governador o cumprimento de alguma medida contra o desemprego” (Folha de São Paulo: 6.4.83). Os manifestantes resolveram seguir em passeata até o Palácio do Governo, a qual foi recebendo novas adesões durante o percurso. As “lideranças” tentaram organizar a multidão para evitar confronto com a polícia e novos saques, mas no trajeto para o Palácio, ainda na avenida Adolfo Pinheiro, sucederam-se depredações e saques. A polícia tentava, por seu lado, dispersar a multidão. Nas proximidades da sede do governo, uma placa de rua com o nome do pai do presidente da República foi derrubada, algumas mansões tiveram suas janelas apedrejadas e os lixos foram revirados nas ruas. “Era difícil conseguir que o povo seguisse ao Palácio sem parar para saquear e quebrar” (Folha de São Paulo: 6.4.83). Ao portão da sede do governo, após algum tempo, o Secretário do Trabalho tentou impor a formação de uma comissão, que deveria ser composta por dez pessoas, como uma condição para se iniciar o diálogo, mas “uma idéia aprovada por todos foi a de não enviar qualquer comissão e de se exigir a presença do Governador” (Folha de São Paulo: 6/4/83). A idéia da comissão foi inicialmente rejeitada. Após muita insistência por parte do Secretário do Trabalho formou-se um grupo que adentrou o Palácio para conversar com o Governador. Após uma hora veio um comunicado para a multidão esperar na praça (defronte ao Palácio), que o Governador iria utilizar um sistema de som para poder falar e ser ouvido por todos. Apesar do aviso muitos permaneceram nas proximidades gritando: “a casa é nossa, a casa é nossa” (Estado de São Paulo: 6.4.83). A demora para instalar o sistema de som parece ter contribuído, ainda mais, para exasperar a multidão. Após as 13 horas, novamente as pessoas começaram a se 70 aproximar e aos gritos, derrubaram as grades em cerca de 100 metros. Com as grades parcialmente derrubadas, um grupo adentrou os jardins do Palácio. A “invasão” durou menos de meia hora. “Bastaram de fato quatro bombas de gás e um cerrar de fileiras da tropa de choque, que ameaçou descer em direção aos invasores para que estes se retirassem”. (Isto é: 13.4.83). Após o conflito com a tropa de choque foi solicitado para a multidão permanecer do lado de fora da sede do governo, com a promessa de que o Governador iria pessoalmente falar com a comissão. O diálogo travado entre as partes foi rápido. O Governador prometeu a “criação de milhares de empregos imediatamente” (Folha de São Paulo: 6.4.83). Prometeu ainda apurar as responsabilidades sobre a violência policial e distribuir cestas de alimentos para os desempregados. A comissão, por sua vez, apresentou as reivindicações dos desempregados, escritas em um panfleto, já distribuídos à população: “reivindicamos jornada de 40 horas semanais, sem redução de salário, estabilidade no emprego e, imediatamente passe (Condução), direito a assistência médico-sociais e direitos sindicais por um ano”. O Governador solicitou que os desempregados não aceitassem provocações, “pois o que desejam é desestabilizar o governo democrático eleito pelo povo” (Folha de São Paulo: 6.4.83). Quando o diálogo foi encerrado era aproximadamente 14h00min horas, ficando decidido que o Secretário do Trabalho continuaria dialogando com os desempregados em dias subseqüentes. Em seguida providenciou-se ônibus especiais da CMTC que transportaram os manifestantes de volta aos seus bairros. 71 Apesar dessa primeira tentativa de se criar um canal de comunicação entre os desempregados e autoridade, no Centro da cidade a ação coletiva se expandia com saques, depredações e conflitos entre grupos de manifestantes e policiais. “Os saques e quebra-quebras, circunscritos segunda-feira à região de Santo Amaro, chegaram ontem ao Centro” (Folha de São Paulo: 6.4.83). O nervosismo tomou conta do Centro de São Paulo desde as primeiras horas do início das atividades comerciais. A qualquer correria que se sucedesse, ou barulho da sirene da viatura policial, os comerciantes cerravam as portas das lojas. Os transeuntes procuravam se proteger da melhor maneira possível, recusando-se a deixar os estabelecimentos comerciais, buscando rapidamente condução para retornar às suas casas. Os choques entre a polícia e populares eram freqüentes. “O policiamento não conseguiu controlar uma série de quebra-quebras realizadas na praça da Sé, Pátio do Colégio e ruas próximas que conturbaram a região”. (Estado de São Paulo: 6.4.83). Uma parcela daqueles que participaram das manifestações no Palácio dos Bandeirantes, ao retornar a Santo Amaro, procurou informar aos interessados os resultados da discussão com as autoridades. Foi então escolhido um local como assembléia, a Praça Floriano Peixoto, quase sem policiamento, porém, logo em seguida a multidão se deslocou ameaçando continuar os saques. “Os oradores não tiveram como continuar os discurso. A multidão que se dispersou ameaçando saquear supermercados desceu em direção à avenida marginal do rio Pinheiros. Ultrapassada a área liberada pelo policiamento, a repressão foi forte”. (Folha de São Paulo: 6.4.83). Os órgãos de comunicação (jornais, rádios, tvs), apresentaram as ocorrências com detalhes. Traziam na íntegra o pronunciamento do Governador do Estado e uma 72 nota conjunta dos Governadores de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, exortando a população a se manter em calma, evitando os distúrbios, “que só interessavam aos inimigos da democracia”. Uma outra notícia veiculada era a de que o 2º Exército já amanhecera de prontidão, falando-se na possibilidade de intervenção do Governo Federal em São Paulo. Em termos de resposta do Governo de São Paulo em relação ao desemprego, anunciava-se a criação de um grupo de trabalho denominado “Ação e Emergência de Combate ao Desemprego” e prometia-se distribuir cestas de alimento aos desempregados. A estratégia de distribuição de cestas de alimento envolveu vários órgãos e entidades como Secretária de Promoção Social e do Trabalho, Sindicato e Polícia Militar. Dia 6 de abril. O contingente policial, que ocupava o largo 13 de Maio desde as primeiras horas da manhã, era bem mais reforçado do que nos dias anteriores. Cerca de 300 policiais, armados com cassetetes, bastões de madeira, pedaços de mangueira de borracha e fuzis, permaneciam vigilantes na praça e imediações. Todas as pessoas que adentravam o largo 13 de Maio eram, em sua maioria, abordadas e revistadas. A ordem era para evitar aglomerações. Duas pessoas, identificadas como membros da “comissão dos desempregados”, ao distribuírem panfletos convocando uma assembléia foram detidas pela polícia. “Apesar da polícia ter proibido concentrações, a chamada Comissão dos desempregados pretendia realizar duas assembléias ontem, às 7 e 17 horas no largo 13 de Maio (…) Mesmo depois de frustrada a realização da assembléia programada para a manhã, devido ao intenso policiamento, os dirigentes do movimento insistiam em confirmar a concentração da tarde”. (Folha de São Paulo: 7.4.83). 73 No Centro da cidade a maioria das lojas e bancos permaneceu fechada. Algumas lojas mantinham suas portas entreabertas, com funcionários atentos a qualquer movimentação estranha que ocorresse nas imediações. No período da manhã a situação foi de calma, mas, a partir das 14 horas, devido aos boatos sobre saques e depredações, o ambiente ficou tenso. O policiamento foi reforçado em vários locais como a praça da Sé, praça Ramos, Avenida São João e parque D. Pedro. O confronto entre os manifestantes e a polícia começou a ocorrer a partir das 15 horas, inicialmente sem grandes conseqüências, tornando-se pouco-a-pouco mais violento. A polícia encontrava dificuldade em afastar os manifestantes da praça da Sé, que corriam das investidas policiais para as ruas próximas e retornavam à medida em que a tropa se afastava. “As bombas de gás lacrimogêneo lançadas em grande quantidade, e as dezenas de prisões não conseguiram trazer tranqüilidade à praça da Sé” (Estado de São Paulo: 7.4.83). Várias tentativas de saque nas lojas foram frustradas pela ação policial, mas as depredações eram freqüentes: quebra de vitrines, portas, barracas de rua e telefones públicos (orelhões). O conflito entre os manifestantes e a polícia prosseguiu até o final da tarde. “Os manifestantes gritavam: ‘Abaixo Figueiredo, queremos emprego’ e xingavam os PMs. As 16 horas, começou o confronto mais sério. Os policiais, atingidos por pedras e pedaços de pau, reagiram com bombas”. (Folha de São Paulo: 7.4.83). Ao final da tarde, após as 17 horas, a situação se tornou mais calma. Com o objetivo de diminuir a permanência das pessoas nas estações do metrô e adjacências, as catracas foram franqueadas. A considerável diminuição de carros particulares 74 trafegando pelas ruas centrais contribuiu para que os ônibus trafegassem mais rapidamente, o que permitiu uma maior vazão do afluxo dos usuários aos terminais. “As pessoas que saiam do trabalho circulavam rapidamente, enquanto viaturas da Polícia Militar e da Rota vigiavam para que não ocorressem novas concentrações ou tumulto”. (Estado de São Paulo: 7.4.83). Os órgãos de comunicação mantinham a população informada sobre os acontecimentos. O Secretário da Segurança Pública do Estado baixou portaria proibindo qualquer reunião sem autorização prévia da polícia. Após o terceiro dia de conflito, a ação coletiva decresceu até praticamente se extinguir. Nos dias que se seguiram aos conflitos mais intensos, em Santo Amaro, o policiamento ainda era ostensivo, envolvendo principalmente o largo 13 de Maio e as ruas próximas. No centro, o policiamento mais forte se restringia às praças, da Sé, Ramos e República. O balanço final dos acontecimentos mostrava um resultado preocupante: cerca de 130 manifestantes ou transeuntes foram atendidos em hospitais com algum tipo de ferimento, incluindo três policiais; uma pessoa morreu baleada; um jovem teve alguns dedos decepados ao devolver uma bomba atirada pela polícia; 600 pessoas foram detidas pela ação policial; calculou-se em uma centena os estabelecimentos saqueados; quarenta telefones públicos foram completamente destruídos, trinta ônibus tiveram seus vidros quebrados e as latarias amassadas; barracas de frutas e revistas foram quebradas ou derrubadas; vinte vitrines quebradas e cerca de quarenta quilômetros de ruas e avenidas, percorridas pelos manifestantes marcadas pela violência dos três dias de conflito. 75 3. A emergência do Movimento de Luta Contra o Desemprego. Com a diminuição dos conflitos de rua, entre aqueles manifestantes que exibiam ação direta por meio de saques e depredações, o Movimento de Luta Contra o Desemprego começou a emergir. O ponto de recorte considerado como o nascimento do MLCD foi a aglutinação ocorrida no distrito de Santo Amaro no dia 4 de abril de 1983, pois, embora não se ignore a existência de tentativas de mobilização anterior, pode-se divisar, nas manifestações de abril, uma continuidade no tempo que justifica tal delimitação temporal. Os saques passaram a ter ocorrência esporádica e desvinculados de manifestações contra o desemprego, durante o restante do mês de abril. As tentativas iniciais de organização de assembléias não obtiveram êxito. O governo parecia reconhecer tacitamente o movimento, mas mantinha a proibição do uso de espaço público como o largo 13 de Maio. Os sindicalistas do ABC e São Paulo criticavam a ação governamental e se recusavam o papel de intermediários na distribuição das cestas de alimento. O movimento, neste seu início, experienciava tensões internas originadas de divisões político-partidárias e encontrava muita dificuldade em se organizar. As divisões internas eram tão acentuadas que seria possível falar em movimentos ao invés de movimento. Duas tendências mais evidentes polarizavam o MLCD. O chamado Grupo 14, ligado à Pró-Cut e Partido dos Trabalhadores e o Comitê, ligado ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e militantes do PC do B que se abrigavam no PMDB. Esses dois grupos posteriormente se denominaram de Comando de Mobilização Contra o Desemprego e Comitê de Luta Contra o Desemprego, respectivamente. Em maio, um 76 mês após os saques, ocorreram manifestações, ora convocadas por um grupo, ora pelo outro. A partir do mês de junho, o movimento obteve uma maior unidade. A partir de um melhor entrosamento dos grupos no interior do movimento, incentivou-se a criação de comissão de desempregados nos bairros (que receberiam, a partir do acampamento no Ibirapuera, a denominação de Comitê de Luta Contra o Desemprego). Posteriormente, a existência de vários Comitês daria origem à Plenária Estadual Contra o Desemprego, que se constitui na instância representativa do movimento. 4. A trajetória do movimento Várias assembléias foram realizadas ainda no mês de abril, na sede do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema. O largo 13 de Maio se manteve interditado aos trabalhadores durante todo o mês. Segundo alguns entrevistados, (A24, A26), as assembléias ocorriam também em outros locais, algumas convocadas por grupos desconhecidos ou mesmo anônimas. A que segue exemplifica uma convocatória sem subscrição. DESEMPREGADOS UNIDOS PARA MUDARA A SITUAÇÃO - Você está sem emprego? - Tem conhecidos na mesma situação? PARTICIPE DA ASSEMBLÉIA DOS DESEMPREGADOS DOMINGO, DIA 9 DE OUTUBRO AS 14,00 HORAS LOCAL: CAPELA SÃO JOÃO BATISTA (Mercadinho) AV. CORIFEU DE AZEVEDO MARQUES, ALTURA DO Nº 2290 ( Perto da Fiat Milano) - OBJETIVO 1. Ouvir os desempregados 2. Verificar as necessidades básicas de todos 3. Organizar-se para mudar a situação TRABALHO E SALÁRIO JUSTO PARA TODOS 77 Algumas representações sindicais desenvolveram várias tentativas de organizar o movimento. A Comissão Pró-Cut apresentou em assembléia uma proposta de organização que tinha como base “a criação de Comitês de Luta Contra o Desemprego em diversos bairros da capital e cidades do interior” (Folha de São Paulo: 13.4.83). Outra assembléia, realizada na sede do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema ocorreu no dia 29 de abril e foi noticiada pela imprensa. Nessa assembléia, a diretoria desse sindicato propôs a organização de um acampamento dos desempregados no paço municipal de São Bernardo. Tal proposta deveria ser debatida em outras assembléias entre desempregados. No dia 13 de maio a imprensa noticiou que representantes de cinco sindicatos e membros da Comissão Pró-Cut, entregaram ao Secretário da Segurança Pública, ofício solicitando autorização para realização de uma manifestação pública no largo 13 de Maio, no dia 16. Segundo um dos integrantes da Comissão Pró-Cut, os sindicatos desejavam discutir com os desempregados, formas de conduzir o movimento “e criar um sistema de periodicidade de manifestações do gênero” (Folha de São Paulo: 13.5.83). A solicitação da liberação do largo 13 de Maio para a manifestação foi negada pela Secretaria de Segurança Pública. A igreja ofereceu, então aos desempregados, as dependências da matriz de Santo Amaro, no próprio largo 13 de Maio para a realização da Assembléia. O Cardeal-Arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, assim se expressou: “mais uma vez a Igreja se vê no dever de abrir as suas portas, oferecendo espaço para aqueles que querem mudar o capitalismo selvagem” (O Globo: 15.5.83). 78 a. Conflitos emergentes. Dois dias antes da manifestação do largo 13 de Maio, o Comitê dos desempregados de Santo Amaro, ligado ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e ao PMDB, convocou uma passeata de desempregados, que teve início na rua Tabatinguera e percorreu várias avenidas e ruas, gritando palavras de ordem contra o desemprego e a política econômica do governo federal. No dia 16 de maio, o outro segmento do movimento se reuniu em assembléia na Igreja de Santo Amaro. Estavam presentes nessa manifestação mais de 500 desempregados segundo informou a imprensa. Além da participação de membros da Comissão Pró-Cut, do Sindicato dos Químicos, das Pastorais Operárias, participaram alguns integrantes do Comitê de Luta Contra o Desemprego de Santo Amaro. Não obstante a presença da polícia e a proibição do uso do espaço externo à Igreja, ao final da assembléia, os desempregados ocuparam o largo 13 de Maio. “O Largo 13 de Maio acabou virando mesmo local de uma grande manifestação e até de uma nova assembléia. Gritando palavras de ordem como, ‘arroz, feijão, abaixo a repressão’; ‘a praça é do povo’ (…) os manifestantes ficaram ali até que resolveram ir, em caravana, até a Assembléia Legislativa” (Folha de São Paulo: 17.5.83). A caravana até a Assembléia Legislativa teve como objetivo obter uma mediação dos deputados para um encontro com o Governador. A resposta telefônica do Palácio dos Bandeirantes frustrou os integrantes da caravana: “o Governador mandava avisar que em se tratando de manifestações, os desempregados deveriam se dirigir à Secretaria de Segurança Pública, e com relação ao desemprego, aos próprios Sindicatos” (Em tempo: 19.5.83). Novas assembléias foram realizadas durante o mês de maio e junho. Ao final de junho, uma das reivindicações dos desempregados foi parcialmente atendida. O 79 Governador do Estado anunciou que “o trabalhador desempregado que consumir até 60 quilowats de energia elétrica (entre Cr$ 500 e 600 cruzeiros) e até 15 metros cúbicos de água por mês (até $ 1.794,90 incluída a taxa de esgoto), não terá durante cinco meses, o fornecimento interrompido caso deixe de pagar as contas” (Folha de São Paulo: 28.6.83). Durante o mês de junho foram formados vários comitês nos bairros. A estratégia utilizada para a formação dos comitês foi a de se cadastrar pessoas desempregadas para recebimento das cestas de alimento obtidas da Secretaria do Trabalho. Com relação às cestas, existiam duas correntes de opinião entre as lideranças. Uma ligada ao Comitê de Embú, se posicionava contra, considerando a medida paliativa e como parte de uma estratégia para dispersar os desempregados, a outra, embora concordando com as críticas, entendia que as cestas poderiam ser aproveitadas para facilitar a organização do movimento. O depoimento prestado por liderança do movimento, integrante do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, ao Painel Sobre o Desemprego promovido pelo Congresso nacional, representa essa segunda opinião, que se tornou majoritária. “A gente tentou organizar os desempregados nos bairros, na nossa cidade. E começamos a formar os comitês nos bairros, para depois cadastrar esse pessoal para receber cestas (…) E uma medida apenas paliativa, mas é um paliativo necessário…” Havia ainda a suposição de que o próprio governo tinha se apercebido do uso das cestas como estratégia de organização pelos desempregados. “Quanto mais bônus chegava mais gente aparecia. Até que chegou um momento em que o Montoro perceber (isso durou 2 meses) que essa cesta estava servindo para organizar os desempregados (…) Então, quando ele cortou as cestas, os Comitês começaram a se encontrar e a discutir formas de organização. Por exemplo, durante o período da distribuição das cestas nós tiramos uma comissão de eletricistas e 80 encanadores que se encarregou de religar a água ou a luz, quando os caras da Sabesp e Eletropaulo cortavam”. (A9). A medida em quer os representantes dos Comitês começaram a se reunir, o movimento começou a ganhar certa unidade. Alguns Comitês mais combativos trabalhavam no sentido de trazer uma maior unidade ao movimento. Os Comitês empreendiam também manifestações isoladas, nos próprios bairros. Algumas das reivindicações eram de caráter local, afeta ao poder do município ou da administração regional dos bairros como, por exemplo, a solicitação de isenção de impostos sobre comercialização nas feiras-livres ou praças (atividades bastante procuradas pelos desempregados), ou isenção de imposto predial. Dessa forma, ocorriam manifestações que se restringiam, em termos de visibilidade, aos bairros. Por exemplo: o Comitê de São Mateus conduziu uma passeata de protesto contra a interrupção do fornecimento de cestas de alimento aos desempregados do bairro. Cerca de 200 pessoas saíram da Igreja de São Mateus, percorreram 10 quilômetros até a Administração Regional, situada em Itaquera, reivindicando “a liberação de bônus e abertura de frentes de trabalho na região” (Folha de São Paulo: 30.6.83). Ao final da conversação, o Administrador liberou bônus para 300 cestas, com 8 quilos de alimento cada uma. Em abril de 1985, o Comitê de Embú ocupou o gabinete da Coordenadoria da Promoção social da Prefeitura Municipal de Embú, em protesto contra a interrupção da distribuição semanal de verduras aos desempregados. Após as negociações o Comitê obteve emprego para 16 pessoas, cota de passes de ônibus e o retorno da distribuição semanal de verduras, que havia sido suspensa. Durante os meses de julho e agosto ocorreram várias reuniões dos Comitês. Embora se admitisse diferenças ideológicas no movimento, as divisões já haviam sido 81 parcialmente superadas. Os Comitês eram conduzidos por lideranças oriundas dos desempregados, sendo que a presença mais ativa de sindicalistas e membros das pastorais se restringia às assembléias gerais. Em agosto existiam 12 Comitês organizados, que discutiam uma estratégia mais geral de luta contra o desemprego. “Aí o governo deu mais bônus para retirar cestas de alimento, mas foi que foi e acabou. Então eu falei: - vocês vão para casa e ficar de braços cruzados? Eles falaram: - Não! Agora nós vamos bolar outra coisa. Nós temos que ir lá à prefeitura, nem que a gente durma lá. Então a gente pensou: … eles estão querendo ficar, por que não acampar de uma vez? Aí a gente foi tirando as idéias assim”. (A13). A idéia de organizar um acampamento de desempregados como uma forma de pressão sobre as autoridades e forçá-las a negociar os principais itens de reivindicações como, por exemplo, a abertura de frentes de trabalho e seguro desemprego, foi tomando corpo entre os Comitês. A escolha do local do acampamento deveria se caracterizar como um desafio aos poderes constituídos, como relatou um dos agentes entrevistados. “Foi discutido uma série de locais e se chegou à conclusão de que o parque do Ibirapuera era o mais adequado. Ficava em um bairro de classe média alta, onde se localiza a Prefeitura Municipal, a Assembléia Legislativa e o 2º Exército”. (A9). Igualmente para um membro do Comitê de São Mateus, o acampamento, como uma manifestação de desempregados deveria se constituir em um desafio à falta de sensibilidade das autoridades em relação ao problema do desemprego e, ao mesmo tempo, uma exposição aos setores mais privilegiados da sociedade, da existência de segmentos cuja miserabilidade não podia ser ignorada. “Vamos ficar em frente à Prefeitura Municipal e a Assembléia Legislativa para eles perceberem o contraste de vida que nós vivemos… que nós não temos nada, nem casa e eles têm um palácio só para trabalhar”. (A13). 82 O acampamento do Ibirapuera iniciou-se na manhã do dia 5 de setembro e foi completamente desativado no dia 15 do mês de novembro. A idéia foi debatida entre os membros dos Comitês, sendo formada uma coordenação geral. Essa coordenação definiu a data, comunicada aos participantes dos Comitês por uma convocatória. b. O acampamento do Ibirapuera Na trajetória do movimento dos desempregados, o acampamento do parque do Ibirapuera se constitui na manifestação de maior visibilidade e a que encontrou maior repercussão em todos os setores da sociedade. Durante aproximadamente 70 dias, uma média de 300 pessoas conviveram bem próximas umas das outras. A maioria dessas pessoas nunca havia se encontrado, uma porção delas se via ocasionalmente nas reuniões dos Comitês. Essas pessoas não somente conduziram uma manifestação solidariamente, mas também viveram juntas durante algum tempo, formando uma estranha comunidade: a comunidade dos desvalidos. A importância do acampamento para os manifestantes foi muito grande. Mesmo após vários meses, já estando vivendo outros momentos, conduzindo outras manifestações, muitos dos entrevistados faziam referências ao acampamento e se dispunham a contar a sua experiência pessoal naquela manifestação. O acampamento se distribuiu em um terreno do parque em ligeiro declive em direção ao lago. Na parte central ficou instalada uma barraca de lona preta onde se localizavam a cozinha e a despensa. Ao redor da cozinha ficavam as barracasdormitório e na parte mais baixa, próxima ao lago, ficava uma barraca grande, que foi denominada de “Circo”, onde se reuniam as diversas comissões do acampamento. 83 A organização do acampamento. Pouco depois das 08h00min horas do dia 5 de setembro, os desempregados, representantes de diversos Comitês, começaram a montar, em pequenos grupos, suas barracas de lona no parque do Ibirapuera, na parte que compreende a rua Manoel da Nóbrega e avenida Pedro Álvares Cabral, situando-se quase defronte ao prédio da Assembléia Legislativa. A imprensa divergia com relação ao número inicial de pessoas e barracas. Para A9, havia no primeiro dia de acampamento, 50 pessoas. “A intenção era fazer um acampamento para 100 pessoas, mas na hora apareceram apenas 50, no segundo dia em diante começou a aumentar, cada dia mais”. (A9). Após as primeiras providências, como assentamento das barracas, fixação de faixas e cartazes e distribuição de um manifesto à população, as lideranças marcaram uma assembléia para o período da tarde. A vida no acampamento precisava ser organizada. Chovia, as crianças tinham fome, as mulheres solicitavam leite para as mamadeiras, era urgente manter contato com entidades que garantissem apoio para a permanência do acampamento. Na assembléia foram formadas várias comissões, que deveriam se responsabilizar pela manutenção do acampamento. As comissões, que se mantiveram praticamente até o final do acampamento, com revezamento de seus membros, foram assim denominadas: Comissão de Cadastramento. Essa comissão formalizava a entrada do desempregado no acampamento, fornecendo-lhe um crachá que continha nome, qualificação profissional e bairro de origem. A comissão fazia uma breve entrevista com o desempregado e o encaminhava, quando se tratava de um novo acampado, ao grupo que representava a sua região de origem. 84 Comissão de alimentação. Essa comissão era constituída por uma equipe de cozinheiros e ajudantes, incumbidos do preparo de quatro refeições diárias: café da manhã, almoço, lanche da tarde para as crianças e jantar. Incumbia-se ainda da limpeza e arrumação da despensa e fornecimento de garrafa térmica de café com pão para a vigilância noturna. Comissão de segurança. Essa comissão se responsabilizava pela disciplina e segurança do acampamento. Com relação à disciplina, os integrantes da comissão separavam pessoas que brigavam, controlavam o uso de bebidas alcoólicas e permaneciam atentos com relação à entrada de possíveis provocadores no acampamento. Comissão de animação e cultura. O objetivo dessa comissão era o de manter o moral elevado no acampamento. Esse grupo planejava e realizava atividades recreativas, culturais e políticas no acampamento e se incumbia, ainda, de confeccionar o jornal mural e de organizar assembléias e atos públicos. Comissão de enfermagem. Essa comissão ficou responsável pela organização de uma pequena farmácia, formada por medicamentos doados, que foi instalada em uma pequena barraca. Esse grupo atuava junto com pessoas voluntárias (médicos e enfermeiros), atendendo os casos mais simples e encaminhando os casos mais graves aos hospitais e serviços ambulatoriais. Comissão de organização ou coordenação geral. Essa comissão se compunha obrigatoriamente por dois representantes de cada um dos Comitês que integravam o acampamento. “Essa coordenação ampliada escolheu uma coordenação central que ficou com a tarefa de responder por todas as questões dentro do acampamento, inclusive as negociações”. (A26). O número de pessoas que se dirigiu ao acampamento cresceu rapidamente. No dia 10 de setembro, seis dias após o seu início já havia 38 barracas e 238 pessoas acampadas (Folha de São Paulo: 11.9); no dia 13, 47 barracas e 400 pessoas (Diário do 85 Grande ABC: 14.9); no dia 20, 54 barracas e 511 pessoas (Folha de São Paulo: 22.9). A Prefeitura Municipal, possivelmente procurando evitar que esse número continuasse a crescer, determinou que toda a área do acampamento fosse cercada com arame farpado, impondo um limite à sua expansão. Por outro lado, a infra-estrutura do acampamento, já bastante precária, não permitia que houvesse um crescimento demasiado. Assim, foi decidido em assembléia (Folha de São Paulo: 21.9), que a população do acampamento não deveria ultrapassar o número de 500 pessoas. Os acampados mantinham contato com companheiros de diversas regiões que atuavam recolhendo, junto à população, alimentos e agasalhos destinados à manutenção do acampamento. Essas campanhas pareciam importantes em dois aspectos: serviam para ajudar na manutenção do acampamento e intensificavam o contato do movimento com a população. Um folheto, utilizado na campanha, segue parcialmente reproduzido. COMPANHEIROS (AS) Centenas de trabalhadores desempregados, acompanhados de suas mulheres e seus filhos, estão desde o dia 5 de setembro, acampados no parque Ibirapuera, em São Paulo, em frente à Assembléia Legislativa do Estado. (…) Colabore com o acampamento dos desempregados, doando alimentos e agasalhos. Providencie essas doações pois estaremos aqui amanhã recolhendo todos os donativos. NÃO ESQUEÇA: Somente com a União de nossas lutas conseguiremos derrotar a política econômica desse governo antitrabalhador e antipatriota. Comissão dos desempregados de São Bernardo do Campo e Diadema. Setembro de 1983 86 Ao que parece, como evidenciavam alguns depoimentos nos jornais, muitos procuravam o acampamento motivados, principalmente, pela necessidade imediata de sobrevivência. “Nos últimos dias tenho pensado em suicídio. Aqui no acampamento dá para comer alguma coisa, mas lá em casa não tem nada, mas nada mesmo”. (Folha de São Paulo: 11.9.83). Duas medidas consideradas importantes na manutenção do acampamento, tomadas ainda no mês de setembro, foram a reivindicação e uso dos sanitários e banheiros do parque e a organização de uma “creche” interna, que atuou em conexão com a farmácia, o que permitiu um mínimo de bem-estar necessário às crianças. O rumo das negociações. Não obstante o aspecto inusitado da manifestação e de todo apoio que recebeu de amplos setores da sociedade, como Igreja, OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), FNT (Frente Nacional do Trabalho), e partidos políticos, as negociações conduzidas entre desempregados e governo foram demoradas, cheias de avanços e recuos, muitas vezes marcadas por tensões. Logo após as tentativas de se abrir um canal de comunicação, foi criado um grupo encarregado de conduzir as negociações. As reivindicações haviam sido divulgadas em um manifesto dirigido às autoridades e à população em geral: “… Nossas reivindicações: imediata abertura de frentes de trabalho, auxílio-alimentação, passe-desemprego, não pagamento de água e luz, liberdade de manifestação e organização para lutar contra este regime que oprime o trabalhador a nível federal; congelamento dos preços de gêneros de primeira necessidade e reforma agrária; salário-desemprego, estabilidade, redução da jornada de trabalho de 48 para 40 horas, sem redução dos salários, e derrubada da política de arrocho salarial; contra a fome, contra o arrocho e contra o desemprego. Plenária dos Comitês dos Desempregados. No dia 6 de setembro, uma comissão de coordenação do acampamento se dirigiu à Secretaria do Trabalho, onde entregou as suas reivindicações. No dia 14 (Folha de São Paulo: 15.9.83), a coordenação manteve contato com o Secretário do Trabalho, 87 procurando verificar o encaminhamento das reivindicações. Nesse contato, os desempregados receberam do Secretário a proposta da criação de um grupo extraordinário sobre o desemprego, que deveria ter como plataforma básica de trabalho, a lista de reivindicações divulgada no manifesto. Esse grupo deveria ser constituído por quatro representantes do executivo, dois do legislativo, dois da Igreja, dois dos Comitês dos Desempregados, dois de empresários da indústria e do comércio, três representantes de associações profissionais como Associações dos profissionais da imprensa (ABI), da medicina (APM), da advocacia (OAB) e etc. e dois de sindicatos. Esse projeto havia sido exposto, pelo Secretário, na Câmara dos Deputados, no dia anterior: “…temos em andamento a constituição de um Grupo Extraordinário para enfrentar o problema dos desemprego, que será constituído por pessoas de vários setores da sociedade (…) Nada disso, evidentemente, significa pretensão de resolver o problema do desemprego, mas são providências adotadas na linha da atenuação dos efeitos da crise do desemprego que nos causam enormes problemas e preocupações em São Paulo”. (Painel Sobre o Desemprego, 1984). A referida proposta foi igualmente entregue a um deputado estadual, integrante do Comitê de Apoio ao acampamento, formado por representantes de diversas entidades. O Secretário do Trabalho apontou dificuldades na solução do problema afirmando que a sua presença na elaboração do texto “não implica em dizer que a Secretaria do Trabalho e o Governo do Estado têm possibilidades de solução” (O Trabalho: 15 a 22.9). O Grupo Extraordinário de Combate ao Desemprego reuniu-se pela primeira vez, na Secretaria do Trabalho, no dia 15 de agosto. Nesse encontro nada de concreto foi estabelecido, apenas elaborou-se um calendário, que estabelecia reunião todas as quintas-feiras, às 9 horas, no auditório da Secretaria. 88 A segunda reunião do Grupo Extraordinário ocorreu no dia 22 de setembro. O Grupo se organizou de duas formas: uma plenária com poder de decisão, e grupostarefa, encarregados do encaminhamento das questões decididas. Os grupos-tarefa ficaram assim constituídos: Desemprego, Passes para transportes, Isenção para água e luz, Auxílio alimentação (Diário do Grande ABC: 20.9). Nessa reunião, o representante do SINE informou que aquele órgão deveria atuar no sentido de obter colocações para os desempregados acampados. Essas reuniões, segundo a imprensa, eram, às vezes, cheias de tensões. Queixas e críticas ocorriam de ambos os lados: “É inadmissível, senhor Secretário, que se faça um Grupo como este e de concreto não se conclua nada”. (Paulo Giannini – O São Paulo: 23 a 29.9.83) “Almir Pazzianoto reclamou da pouca colaboração que tem recebido da Fiesp, cujo representante observou que o ‘Estado também é patrão e deve pensar em gerar empregos’”. (Diário do Grande ABC: 20.9.83). “O representante da prefeitura nas negociações, Nelson Fabiano, retirou-se das negociações: ‘A Prefeitura regei ta em todos os seus itens a proposta dos acampados (…) Recebemos uma proposta irrealista, de confronto”. (Folha de São Paulo: 6.10.83). “A reunião de ontem terminou com um impasse: enquanto o SINE promete conseguir 30 empregos até amanhã, os coordenadores do acampamento exigem 200”. (Estado de São Paulo: 6.10.83). Em uma das reuniões foi criado o grupo-tarefa de desativação do acampamento, com a sugestão de que as reuniões dos grupos-tarefa fossem suspensas até que os acampados mostrassem algum gesto concreto em relação a desativação do acampamento (Folha de São Paulo: 2.10.83). A partir da criação desse grupo, aumentou a pressão para a desativação do acampamento. Em reunião do dia 3 de outubro, foi proposto que o acampamento deveria ser desativado quando a metade dos que estivessem acampados obtivesse empregos através do SINE. (Estado de São Paulo: 4.10.83). Por outro lado, após assembléia, os desempregados encaminharam uma 89 contraproposta: o acampamento seria desativado quando setenta por cento dos desempregados cadastrados pelo SINE tivessem obtido emprego (Folha de São Paulo: 5.10.83). A coordenação do acampamento procurava levar, para as reuniões do Grupo Extraordinário de Combate ao Desemprego, a impressão de que os desempregados poderiam manter o acampamento por muito tempo. Assim, para comemorar um mês de acampamento, os desempregados prepararam uma festa convidando sindicalistas, artistas e políticos. Na reunião do dia 6 de outubro, os desempregados concordaram em iniciar o desmonte do acampamento, porém condicionaram tal providência à manutenção da barraca maior (Circo), que deveria permanecer mais algumas semanas, alojando aqueles que ainda não tivessem sido colocados pelo SINE. Para o Secretário do Trabalho, a decisão foi satisfatória. “Felizmente, parece-me que chegamos a um acordo e estamos caminhando para o final altamente satisfatório. Ou a gente trabalha dentro da realidade ou mantinha o acampamento, com as suas condições precárias por tempo indeterminado” (Folha de São Paulo: 7.10.83). A coordenação do acampamento parecia ter avaliado que o movimento poderia entrar em período de maior desgaste político e que protelar as negociações, ou buscar ganhos maiores era um risco que não poderia ser assumido. O Grupo Extraordinário Sobre o Desemprego publicou nota, referindo-se ao desemprego como uma ameaça que “atinge a todos”, historiando a formação do grupo como resultante da pressão do acampamento, e os pontos de acordo que marcaram a desativação do mesmo: a) continuidade do Grupo Extraordinário e de seus grupostarefa; b) ida à Brasília apresentar as reivindicações a nível federal; c) apresentação do 90 projeto para implantação do seguro-desemprego; d) apresentação de fórmula para assegurar a continuidade de água e luz aos desempregados; e) criação da Associação Paulista de Solidariedade no Desemprego; f) sugestões para um plano de política de geração de empregos no Estado; g) plano emergencial de distribuição de cestas. A nota terminava conclamando a cooperação de todos: “Convocamos a todos, neste momento a se reunirem em torno deste esforço nascido da consciência de que ninguém pode permanecer acomodado diante do desafio que a sociedade brasileira está hoje enfrentando”. (O São Paulo: 14 a 20.10.83). Ao final da desativação do acampamento alguns membros do Comitê de Luta Contra o Desemprego de Santo Amaro criticaram as negociações e seus resultados para os acampados, ameaçando manter as suas barracas no parque. A dissensão arrastou membros de outro Comitê, embora a decisão de desativar o acampamento tenha sido tomada em assembléia pelo voto favorável de 15 dos 16 Comitês representados. O voto contra foi dado pelo Comitê de Santo Amaro. A barraca grande (Circo) permaneceu ainda por mais três semanas sendo desativada ao completar 70 dias do início do acampamento. Considerou-se o desmonte dessa barraca como a desativação final do acampamento, e, na ocasião foi realizado um ato público em que “os manifestantes deram as mãos e caminharam formando uma imensa roda ao redor da lona, cantando a música de Geraldo Vandré, “Caminhando”, e em intervalos, gritando, que a luta continua”. (Folha de São Paulo: 16.11.83). A avaliação que as lideranças do movimento fizeram das conquistas do acampamento podem ser resumidas em: 180 colocações de desempregados acampados; 411 cestas de alimentos com 49 quilos cada uma; 19.000 passes de ônibus; prorrogação por mais 90 dias da isenção do pagamento de taxas de água (consumo até 15 mil litros 91 cúbicos) e de luz (consumo até 60 kilowatts). A avaliação se estendeu também para outros tipos de ganhos: aprendizagem organizacional, política e conscientização dos participantes como pode ser ilustrado pela declaração que segue. “Nós aprendemos muito no acampamento. A gente tinha muitos problemas… nós aprendemos a resolver as coisas coletivamente, a viver a democracia, a negociar e até a pensar politicamente”. (A26). Após esse período, o MLCD procurou uma maior organicidade, utilizando a formação de comissão representativa dos comitês por região, que foi denominada de Plenária Regional. c. O movimento após o acampamento Logo após o acampamento do Ibirapuera, segundo algumas lideranças, o MLCD se fortaleceu bastante. No início do acampamento, o movimento contava com 13 comitês e na sua desativação existiam 16 comitês. Com o surgimento da Associação Paulista de Solidariedade no Desemprego (APSD), foram sendo formados grupos de desempregados, denominados de Grupos de Solidariedade (GS). A APSD foi formada, a partir de um grupo de pessoas ligadas à Cúria Diocesana que estavam preocupadas com a situação da crise social vivida pelo país. A sua proposta de atuação, embora tendo como o objetivo o seguro-desemprego, não se relacionava diretamente à questão do desemprego. Os Grupos de Solidariedade filiados à APSD possuíam uma constituição jurídica e funcionavam como departamentos de uma associação que os avalizava perante APSD. Cada Grupo de Solidariedade recebia da APSD uma ajuda em dinheiro. Essa ajuda se constituía em fator de maior atratividade para os GS, quando comparados aos Comitês. 92 O crescimento acelerado de grupos de solidariedade criou um fato novo e complexo para o movimento: alguns desempregados participavam dos Comitês e dos GS; outros somente dos Comitês adotando uma postura crítica em relação aos Grupos, e em particular à APSD, e outros, ainda, deixaram por completo os Comitês para participar apenas dos Grupos. Em maio de 1984 existiam 71 Grupos. O número exato de comitês era desconhecido, supondo-se, no entanto, que existissem cerca de 40 Comitês. Com relação à organização de GS e Comitês, as lideranças mantinham posição divergente. Para alguns, os Comitês haviam cumprido a sua finalidade e, progressivamente, seriam substituídos pelos GS; para outros, os GS representavam um retrocesso, pois salientavam o aspecto paternalístico da APSD. Além da Associação Paulista de Solidariedade no Desemprego, outras entidades surgiram ou se fizeram presentes a partir do conflito gerado pelo MLCD. Dentre essas, a Basenova e a Associação para o Desenvolvimento da Intercomunicação, que mantinha o jornal Intercarta, se identificavam com a APSD. Essas entidades, bem como o Centro Social de São Francisco de Assis, mantidas pela Igreja de São Francisco de Assis e o Comitê de Luta Contra o Desemprego, ambas de Ermelino Matarazzo, tiveram um papel ativo junto ao Movimento de Luta Contra o Desemprego, e serão descritas e analisadas em outra parte deste trabalho. No início de 1984, foi organizada a Plenária Estadual Contra o Desemprego, conforme deliberado ainda no acampamento. Essa Plenária tinha o caráter de instância decisória e se compunha de uma espécie de colegiado, cujos membros eram indicados pelos Comitês e Grupos de Solidariedade. O objetivo da Plenária Estadual era de unificar o movimento. 93 Pouco tempo depois de criada a Plenária, dadas as dificuldades de comunicação, entre esta e os Comitês e GS, buscou-se uma descentralização, por meio da organização de instâncias intermediárias. “A partir do acampamento do Ibirapuera foi possível constituir uma Plenária Estadual de Luta Contra o Desemprego, onde participavam representantes dos Comitês e Grupos (…) Na Zona Leste a gente criou a Plenária da Zona Leste. Uma Plenária Regional, como havia sido proposto na Plenária Estadual. Na Regional a gente discutia as propostas enquanto região (…) No começo participavam da Plenária os comitês e grupos de solidariedade. Atualmente são apenas os grupos”. (A9). Teoricamente, a estrutura do movimento graficamente, da seguinte forma: 94 poderia ser representada, Os GS (Grupos de Solidariedade) e CLCD (Comitê de Luta Contra o Desemprego) formariam a PR (Plenária Regional), e as várias PRs formariam a PE (Plenária Estadual). Localidades com apenas um Comitê teriam a sua participação assegurada diretamente na Plenária Estadual. Essa estrutura, tal como representada, funcionou apenas na Zona Leste que foi a única região que teve uma Plenária Regional. O período compreendido entre a desativação do acampamento até o mês de abril de 1984 marcou um refluxo do movimento enquanto ação coletiva visível, mas os Comitês se reuniam constantemente e na plenária eram discutidas algumas propostas para dinamizar o movimento. Em abril de 1984, no dia 15, foi realizado o “Primeiro Encontro Estadual de Luta Contra o Desemprego”, conduzido pela Plenária Estadual, an cidade de Santo André. Esse evento teve como objetivo trazer ao movimento uma unidade estadual, pois funcionavam, na época, os Comitês das cidades de Osasco, Santos, Cubatão, São Bernardo do Campo, São Caetano e Embú. Nesse encontro, conforme noticiado pelo Diário do Grande ABC (16.4.84), foi formada uma coordenação estadual com a tarefa de criar uma estrutura financeira que desse respaldo às necessidades do movimento. A partir desse período até agosto do mesmo ano, a Plenária Estadual realizou várias assembléias, objetivando uma ação coletiva de maior envergadura. d. A invasão do SINE No dia 20 do mês de agosto, um grupo relativamente grande de desempregados invadiu a SINE (Sistema Nacional de Emprego). “Cerca de mil pessoas (homens, mulheres e crianças) organizadas por setenta comitês de desempregados que formam a Plenária Estadual de 95 Luta Contra o Desemprego invadiram e ocuparam, ontem pela manhã a sede do SINE”. (Estado de São Paulo: 21.8.84). O SINE pode ser considerado um órgão híbrido, pois é resultante de convênio estabelecido entre o Ministério do Trabalho e os Governos Estaduais. Ao governo estadual cabe prover a infra-estrutura básica, fornecendo material e pessoal. Ao governo federal cabe a indicação do posto de coordenação do órgão. A organização da invasão. A invasão do SINE foi planejada, com antecedência de cerca de três meses, em decorrência do “Primeiro Encontro Estadual de Luta Contra o Desemprego”. Após a decisão e os preparativos junto aos comitês, formou-se uma coordenação geral da invasão, composta por um representante da baixada santista, do comitê de Osasco e do comitê de São Caetano. Foi formado também um grupo com representantes dos comitês de Embú, Santo Amaro e São Mateus e dos GS do Jardim Nordeste e Vila Robertina, que permaneceram na retaguarda, fornecendo apoio e estabelecendo contato com diversas entidades que poderiam apoiar o movimento. A discussão sobre a proposta da invasão daquele órgão público foi realizada na Plenária dos comitês e dos grupos de solidariedade, avaliando-se os possíveis resultados. “… nós discutimos, aprofundamos na Plenária se valia a pena ou não, participar da invasão. Só que tinha gente que achava que deveria ir para o SINE com ‘miguelito’, ‘coktail molotov’, ‘estilingue’. Esse tipo de coisa de guerrilha urbana. Aí chegamos à conclusão que não, que em caso de invasão por parte da polícia, a única resistência seria a de abandonar o local em bloco. Então foi planejado que os grupos de pessoas se encontrariam em lugares diferentes (…) Depois se misturariam na população para entrar no prédio sem chamar a atenção”. (A9). As reivindicações dos desempregados, distribuídas em um panfleto eram: emprego com estabilidade mínima de um ano; salário-desemprego; cestas de alimentos com 75 quilos, distribuídas mensalmente aos desempregados, durante seis meses; passe 96 gratuito de ônibus, trem e metrô; isenção da taxa de água e luz; atendimento médico pelo INAMPS. O panfleto, denominado “Movimento dos desempregados ocupam o SINE”, além das reivindicações faziam críticas aos governos Estadual e Federal: “… Faz um ano que fizemos a luta que foi o acampamento dos desempregados no Ibirapuera. De lá para cá sofremos com as promessas não cumpridas. O governo federal está sempre contra o povo. O governo estadual é omisso e medroso. Não toma atitudes. Não tem iniciativas. A ocupação do SINE (Sistema Nacional de Emprego) é um protesto contra tanta insensibilidade diante do desespero do povo: QUEREMOS NEGOCIAÇÃO – JÁ!”. O aspecto considerado fundamental para o sucesso da invasão foi o controle dos portões de acesso, que imediatamente foram bloqueados pelos manifestantes. O fluxo de jornalistas foi controlado com a identificação e adoção de uso de crachás. Além disso, foi formado um grupo, que se encarregou de falar e dar entrevistas à imprensa. As comissões eram: Coordenação Geral, Alimentação, Segurança e Cultura. A comissão de Cultura era responsável pelo planejamento e execução de atividades culturais e recreativas. No primeiro dia da invasão foram exibidos três curtas-metragens: “Santos Jesus, metalúrgico”, sobre a vida e morte do operário Santo Dias; “Cut, pela base”, sobre a Central única dos Trabalhadores e “A origem e riqueza dos homens”, que explica a acumulação capitalista. As demais comissões se ocupavam de tarefas semelhantes àquelas já descritas no episódio do acampamento. As providências necessárias à execução da invasão foram planejadas com antecedência e se desdobraram durante a manifestação em várias comissões. “À comissão de segurança cabia isolar tudo que houvesse de valor, para ninguém mexer, e isolar os portões com correntes e cadeados. O prédio foi mapeado e foi encontrada uma saída de emergência. Tinha polícia infiltrado. De repente a gente identificava o policial e em grupo botava 97 ele para fora, a gente pegava o neguinho agitando, falando em botar fogo no prédio e isolava ele”. (A11). As negociações. Logo após a invasão, os desempregados tentaram estabelecer um canal de negociação com as autoridades. O diretor do SINE em São Paulo, encontrava-se ausente, somente regressando a São Paulo algumas horas depois da invasão, e o seu substituto não conseguiu marcar reunião com as autoridades, conforme solicitação dos desempregados. Inicialmente a comissão de negociação tentou marcar reunião com o Secretário das Relações de Trabalho, Secretário da Promoção Social, Governador do Estado ou seu assessor, diretores da Eletropaulo e Sabesp, representantes da Fiesp e do Ministério da Previdência Social. Dessa forma, a primeira reunião somente ocorreu muitas horas após a invasão, envolvendo a Comissão de negociação dos desempregados e membros do segundo escalão da Secretaria do Trabalho. Dessa primeira reunião nada de concreto foi obtido pelo movimento. Apesar dessas dificuldades iniciais, as principais lideranças procuraram demonstrar disposição de luta, como pode ser inferido das declarações, como a exemplificada abaixo: “A gente sabe que nem Breda3 nem Montoro4 vão resolver, mas só vamos sair daqui com coisas concretas. Se for o caso, ficamos aqui até o ano 2000”. (Folha de São Paulo: 21.8.84). No dia 22, a comissão de negociação conseguiu manter contato com o diretor do SINE, ficando então acertado que este tentaria promover, no mesmo dia, uma nova reunião, desta vez com a presença dos representantes do governo. O que se observava era que o Governo de São Paulo se mantinha em compasso de espera para negociar. 3 Diretor do SINE na ocasião. 4 Governador do Estado. 98 Atribuía a demora das negociações ao fato da invasão ter ocorrido em um órgão controlado pelo poder federal. Ainda no mesmo dia, o Governo do Estado, pelo Secretário do Trabalho, declarou que os desempregados deveriam desocupar o prédio como condição para a negociação. No dia seguinte se caracterizava o impasse, pois os desempregados recusavamse a deixar a sede do SINE. Uma outra dificuldade que os desempregados enfrentavam era a tentativa, feita por pessoas igualmente desempregadas e vindas dos mais diversos pontos da cidade, que insistiam em entrar no prédio. Um grupo designado pela coordenação, permaneceu no portão, tentando explicar aos que procuravam entrar “que aquele era um movimento organizado há algum tempo, usando as Plenárias, e que somente os que dela participavam podiam entrar no prédio” (Estado de São Paulo: 24.8.84). Atendendo a uma ordem do Governador, por volta das 16:00 horas, a polícia cercou o prédio, evitando a entrada de qualquer pessoas nas dependências do SINE. O policiamento informou que todos os que desejassem sair poderiam fazê-lo. Em uma rápida assembléia, os desempregados decidiram permanecer no prédio. “Eles arrebentaram o cadeado e começaram a chamar o pessoal para sair. Aí foi barra. O pessoal combinou: botaram as crianças na frente, as mulheres e se sentaram no meio do pátio e começaram a cantar o hino nacional. Dali a gente não saía. A polícia se sentiu desmoralizada e fechou o portão” (A9). Passado algum tempo do cerco, a polícia decidiu cortar o fornecimento de água do prédio e bloquear a entrada de alimentos e remédios. “O fato, no entanto, é que os manifestantes da Plenária Estadual de Luta Contra o Desemprego foram sitiados. Ninguém, nem mesmo os 99 parlamentares podiam entrar e os alimentos enviados por entidades de apoio inclusive a Cut não puderam ser entregues”. (Folha de São Paulo: 24.8.84). A situação se tornou tensa. Vereadores e deputados tentaram interceder, junto ao policiamento, pela entrada de alguns médicos voluntários para atender pessoas doentes, especialmente crianças, mas nada conseguiram. Um grupo de deputados e membros da Comissão de Justiça e Paz tentou localizar o Governador, mas também não foi bem sucedido. O cerco policial manteve-se no dia seguinte, quando “a alimentação existente no SINE permitia uma, ou no máximo duas refeições” (Estado de São Paulo: 24.8.84). a privação alimentar aumentou a dramaticidade da situação e foi mostrada pela televisão: a cena exibiu mulheres e crianças gritando e chorando e as marmitas de alimento (cerca de 500), doadas pela Cut, sendo jogadas no caminhão de lixo. “Rostos tristes e desanimados, vencidos pelo cansaço e pela fome, mulheres e crianças por entre as grades do portão principal do SINE, imploravam um copo de água e um prato de comida. Só se revoltaram quando cerca de 500 marmitas, oferecidas pela CUT (…) foram jogadas dentro de um caminhão da Administração Regional da Sé. Os desempregados gritavam: ‘Leva pro Montoro’, ‘O tempo de Fleury voltou’, ‘Isto é tortura em praça pública’”. (Estado de São Paulo: 25.8.84). No dia 25, os desempregados redigiram um manifesto (parcialmente reproduzido abaixo), dirigido especificamente “aos Sindicatos, Partidos Políticos, Movimento Estudantil, OAB, ABI, Entidades de Bases Comunitárias e demais organizações do movimento operário e popular” em que explicitavam a situação de desemprego, apontavam a combatividade do movimento e criticavam a ação governamental. 100 “Após uma longa caminhada de união e organização, decidimos ocupar o SINE (…) com o objetivo de conquistarmos EMPREGO, SALÁRIODESEMPREGO, PASSE-DESEMPREGO, SALÁRIO-ALIMENTO, ASSISTÊNCIA MÉDICA, NÃO PAGAMENTO DE ÁGUA E LUZ.” “A ocupação não tem somente um caráter reivindicativo, mas também de denúncia contra o discurso demagógico dos governantes que afirmam que o desemprego está diminuindo (…). O aparato repressivo do governo Montoro transformou o SINE em uma cidadela, onde não entra ninguém, nem água, nem comida (…). O governo continua tentando esvaziar nossa luta pela pressão policial, divulgando mentiras e calúnias nos órgãos da grande imprensa, onde conta com o apoio de jornais conservadores a serviço das elites sociais como o ESTADÃO”. Apesar da repressão policial, foi efetuado mais uma reunião de negociação. O Secretário do Trabalho trouxe uma proposta do Governo aos desempregados: 400 cestas de alimentos com 45 quilos cada uma e 2 mil passes de ônibus. A proposta ficou de ser encaminhada para a assembléia no dia seguinte. Além do Secretário do Trabalho, do Diretor do SINE e dos coordenadores do movimento, participaram da reunião, dois vereadores do PMDB, um deputado do PT e um membro da Comissão de Justiça e Paz. Os membros da comissão dos desempregados, segundo o relato da imprensa, sentiramse frustrados pelos rumos das negociações. “Queríamos uma cesta no ato com 75 quilos, e mais uma por mês para cada família, durante 6 meses. Nem o reconhecimento oficial da coordenação do movimento foi alcançado”. (Folha de São Paulo: 25.8.84). O Secretário do Trabalho também avaliou as negociações realizadas até o momento: “Essas são as cestas padrão oferecidas pelo governo. A reivindicação deles foge ao que é conhecido normalmente. Além disso, não podemos oficializar uma comissão que pode ser transitória” (Folha de São Paulo: 25.8.84). 101 Os desempregados solicitavam por parte das autoridades o reconhecimento de suas organizações e não, conforme se noticiou o reconhecimento da comissão de negociação. Essa comissão possuía uma pauta de orientação para a negociação que, conforme A10 havia sido estabelecida com alguma antecedência à invasão. A pauta era composta de oito itens. O sétimo pertinente à solicitação acima referida, expressava: “RECONHECIMENTO por parte do governo estadual, das instâncias de organização do movimento; dos Comitês de Luta Contra o Desemprego (base); das plenárias regionais dos Comitês; da Plenária Estadual dos Comitês; do Encontro Estadual dos Comitês. Esta medida visa fortalecer, enquanto canal de contato na esfera estadual, as próprias instâncias do movimento. Para que outros órgãos, alheios a este movimento, não passem a tutelá-los ou falarem em nome deste, no encaminhamento das reivindicações dos trabalhadores desempregados organizados”. O bloqueio do prédio do SINE chegou ao seu terceiro dia. A polícia cercou também as ruas Genebra e Santo Amaro impedindo a passagem de pedestres. Após tentar contato – sem sucesso – com o Governador do Estado, o Cardeal D. Paulo Evaristo Arns, Arcebispo de São Paulo, quebrou pessoalmente o isolamento a que estavam submetidos os invasores do SINE. A situação se tornava, a cada momento, mais crítica: os desempregados, entre os quais aproximadamente 200 crianças, estavam sem alimento e água há várias horas. “O Governador lembrou que a invasão de um prédio público é um ato criminoso e a polícia, nesse caso, tem o direito e dever de atuar. Por sua vez alertado por membros da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, o Cardeal chegou à agência do SINE às 14 horas, surpreendendo aos policiais (cerca de 60) e começou imediatamente a passar sacos de leite por cima do portão aos desempregados” (Jornal do Brasil: 26.8.84). 102 A ocupação do prédio ainda demorou mais vinte e quatro horas, encerrando-se no dia 26 aproximadamente, às 23h00min horas. Nesse dia houve uma nova reunião, quando a comissão de negociação tentou obter alguns avanços na proposta formulada pelo Secretário do Trabalho. Foi acrescentado um único ponto à proposta original, a distribuição do estoque de alimento existente no Fundo de Solidariedade do Palácio do Governo. O Secretário mostrou que o governo estava irredutível e fez um apelo aos desempregados: “Eu suplico que vocês aceitem o que foi oferecido; a partir de agora, não posso mais me responsabilizar pela conduta do governo do Estado”. (Folha de São Paulo: 27.8.84). Enquanto, na mesa das negociações, o governo mantinha a proposta feita, a polícia apresentava uma espécie de ultimato aos desempregados: “O comandante chegou no portão e falou: ‘Olha, vocês tem 45 minutos para se retirar ou a gente vai invadir sob o comando da Polícia Federal, não tem alternativa’. Consultamos o pessoal de fora e vimos que não tinha jeito mesmo”. (A13). A ameaça da ação policial iminente levou os desempregados, em rápida assembléia, a decidir aceitar a proposta do Secretário do Trabalho e desocupar as instalações do SINE. As 23h35min horas os manifestantes deixaram o prédio, em bloco e gritando palavras de ordem. 103 e. O movimento após a invasão Nos dias subseqüentes à invasão do SINE, a Plenária Estadual fez várias tentativas de realização de assembléias avaliativas daquela manifestação sem, contudo, chegar a um resultado satisfatório. Segundo algumas lideranças, o comparecimento a essas assembléias foi decepcionante. “As assembléias estavam esvaziadas. Muitos Comitês nem mandaram representantes. As pessoas que estavam na coordenação pareciam meio desorientadas” (A9). Ao que parece, alguns Comitês sentiam dificuldades para mobilizar seus participantes. O comitê de Embu, segundo A26, estava, após a invasão do SINE, “sem motivação, sem perspectiva de luta”. Outros comitês partiram para ações isoladas do conjunto do movimento, como as referidas abaixo. No dia 5 de setembro, o Comitê de Luta Contra o Desempregado de São Bernardo do Campo realizou uma passeata na Avenida Marechal Deodoro (região centro), terminado com uma invasão do prédio da Prefeitura Municipal por algumas horas. Dois dias após essa manifestação, o mesmo Comitê, associado a membros do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema cercaram o portão principal da indústria Saab-Scania do Brasil, impedindo que cerca de 300 operários entrassem, logo de manhã, para o cumprimento de horas-extras. Esses dois eventos foram noticiados pela imprensa local e da cidade de São Paulo (Estado de São Paulo: 6.9.84; Folha de São Paulo: 8.9; Diário de Grande ABC: 9.9). 104 No dia 11 de outubro, os Comitês da Região Centro (São Paulo) e de Santo Amaro conduziram um ato público na praça da Sé. O evento foi noticiado pelos jornais Folha de São Paulo e Estado de São Paulo de 12.10.84. Esses Comitês divergiam entre si em termos de orientação política. Os Comitês de São Bernardo, Embú e São Mateus estavam mais próximos do PT, enquanto que o de Santo Amaro tinha uma maior influência do PC do B. Além disso, alguns deles se opunham à APSD e criticavam os GS; estes por sua vez frequentemente competiam entre si. “O nosso grupo ficou na luta até o fim, não foi como o do Boturussu que chegou a hora do almoço, largou tudo e foi comer”. (A19). Apesar das dificuldades de mobilização, a Plenária Estadual organizou, com a participação do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, um encontro de desempregados no mês de outubro, na cidade de Santo André. Esse evento foi denominado “1º Seminário de Desempregados do Grande ABCDM” com a presença de cerca de 180 participantes, representado Comitês e Grupos de Solidariedade. Segundo A26, a participação de integrantes dos Grupos de Solidariedade nos eventos dessa natureza era bastante reduzida. A discussão, no seminário, girou em trono da “dinamização do movimento, especialmente no nível de suas bases”. Em novembro, os Comitês do ABC se envolveram em uma controvérsia a respeito do uso das cestas de alimentos doados pelo governo. O presidente do diretório de PMDB acusou os militantes do PT de controlar os Comitês utilizando as cestas de alimento com objetivo de proselitismo político. A acusação foi feita junto á Secretaria de Promoção Social que entrou com uma representação na Secretaria da Segurança Pública para apuração da veracidade da denúncia. (Estado de São Paulo: 30.10.84). 105 O comitê de Luta Contra o Desemprego de São Caetano do Sul divulgou nota á imprensa rebatendo as acusações. “Ao acusar os Comitês de desempregados da região de praticar assistencialismo com objetivos político-partidários na oferta de cestas, a Secretaria de Estado da Promoção Social utilizou-se de um argumento falso para retirar dos Comitês a tarefa da distribuição e transferi-la para o governo com claros objetivos políticos” (Diário do Grande ABC: 1.11.84). Como resultado da denúncia, a Secretaria de Estado da Promoção Social retirou dos Comitês a atribuição da distribuição das cestas de alimento diminuindo, com isso, a sua atratividade. Na cidade de São Paulo, as cestas eram distribuídas pela Secretaria do Trabalho, com a participação das Administrações Regionais e Polícia Militar. O ano de 1985 marcou um descenso acentuado do número e expressão organizativa dos Comitês na Plenária Estadual, enquanto que o número de Grupos de Solidariedade, filiados à APSD, aumentou significativamente. Muitas lideranças do movimento, com atuação de destaque na Plenária Estadual, se posicionavam contrárias à política da Associação Paulista de Solidariedade no Desemprego e, mesmo com o esvaziamento progressivo dos Comitês, se recusavam a participar dos Grupos de Solidariedade, abandonando o movimento. “Nas negociações, no Ibirapuera, quando foi apresentada a proposta da APSD, desde o começo, ela (a APSD) gerou um racha dentro do comitê e dentro do movimento” (A26). Nesse período, que vai de janeiro de 1985 até junho do mesmo ano, os Comitês foram desaparecendo por completo. Um dos últimos Comitês a desaparecer foi o de Embú que, segundo A26, se desligou completamente do movimento e passou a atuar no 106 próprio município, onde realizou algumas ações isoladas como, por exemplo, a invasão da Prefeitura Municipal em março desse ano. Com o desaparecimento dos Comitês, a Plenária Estadual de Luta Contra o Desemprego passou a ser formada por representantes dos GS, especialmente os da Zona Leste, que se mostravam mais combativos. Apesar da participação desses Grupos mais combativos, a Plenária também estava se esvaziando. “Depois da invasão do SINE na realidade o movimento acabou ficando um pouco sem perspectivas. Até o SINE a gente tinha alguma esperança. Praticamente o movimento saiu derrotado do SINE. Não saiu com aquele pique do Ibirapuera” (A10). Na tentativa da dinamização do movimento, alguns membros da Plenária Estadual participaram, em fevereiro, do “1º Encontro Interestadual dos Movimentos de Luta Contra o Desemprego”, na cidade de Curitiba. Estiveram presentes nesse encontro, representantes de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. O “Boletim informativo do Movimento de Luta Contra o Desemprego” trouxe um resumo das principais lutas dos movimentos nesses estados. Esse boletim circulou apenas nessa edição. E a tentativa de articulação do MLCD com outros movimentos de luta contra o desemprego não encontrou ressonância nas suas bases em São Paulo. f. A caravana ao Palácio dos Bandeirantes. Na manhã do dia 9 de julho, o MLCD organizou uma caravana até o Palácio dos Bandeirantes. Essa manifestação foi preparada com cerca de dois meses de antecedência e tinha o objetivo de pressionar o governo a renovar o convênio com a APSD. Nessa época da caravana o movimento se compunha dos GS, uma vez que os antigos Comitês já não mais existiam. Na Zona Leste da cidade, os GS se organizavam na Plenária Regional. 107 “A idéia da caravana pintou na Zona Leste, aonde a gente tem a regional que reúne os grupos. A gente estava sentindo que deveria ter alguma outra pressão sobre o governo. Aí a gente levou a idéia para a Plenária e passou. Aí começou o trabalho de organizar as comissões, dividir as tarefas: comissão de segurança, imprensa, negociação”. (A10). Os membros dos GS rumaram para o Palácio dos Bandeirantes usando ônibus fretados. Cada grupo ficou incumbido de preparar faixas e cartazes alusivos ao desemprego e dispor o “seu pessoal” defronte ao portão lateral do Palácio. Os ônibus estacionaram nas imediações da sede do governo entre 9 e 10 hora. A partir daí, os empregados se dirigiram para o portão de entrada. A organização da caravana. Durante a fase preparativa para a realização da manifestação, duas comissões atuaram mais intensivamente: a) Comissão de Segurança que estava incumbida de zelar pela segurança das pessoas, principalmente orientando-as com relação aos perigos do tráfego de veículos. Essa comissão interrompeu o trânsito na rua Gina de Martino que passa ao lado dos portões de entrada do Palácio do Governo e que possui um considerável afluxo de veículos. b) Comissão de divulgação que ficou responsável pelas entrevistas e animação dos manifestantes. Essa comissão transportou um serviço de som acoplado a uma carrocinha de mão e durante a manifestação comandou os participantes, chamando pessoas para discursar, puxando palavras de ordem e cantorias (semelhantes às realizadas nas CEBs). As negociações. Aproximadamente às 11 horas, um funcionário do governo trouxe a informação de que seria atendida uma comissão de negociação. Esta foi composta por representantes do CLCD/EM do DS Santa Luzia, da APSD e um deputado do Partido dos Trabalhadores indicado pelos manifestantes. 108 As reivindicações dos manifestantes incluíam: abertura de frentes de trabalho, liberação de recursos para os projetos elaborados pelos GS, passe-desemprego, permissão para utilização de terrenos ociosos, da Prefeitura Municipal e do Estado, pelos desempregados, para formação de hortas comunitárias e leite gratuito para os filhos dos desempregados até 10 anos de idade. Após a composição da comissão, as negociações foram iniciadas. As informações sobre as negociações foram transmitidas por alto-falante, solicitando-se que todos permanecessem nas proximidades, evitando dispersão. O serviço de som começou, então, a dar uma maior animação ao evento, puxando palavras de ordem. Não muito depois, a animação conduzida pelo sistema de som foi diminuindo. Por volta das 13 horas, os grupos que trouxeram lanche improvisaram o próprio almoço, estendendo panos na rua e calçada. Aqueles que não trouxeram lanche começaram a se dispersar e, às 16 horas, a maioria dos grupos já havia se retirado e o tráfego fluía normalmente. As negociações prosseguiram ainda durante o mês em curso, encerrando-se definitivamente no início de agosto, com um ganho relativamente pequeno para o movimento. “… Aí fica conversando e marca uma nova reunião e assim foi. Acabou dando em nada (…) Uma coisa que se conseguiu foi a liberação dos equipamentos que estavam retidos na Secretaria de Promoção Social desde janeiro”. (A10). “… A princípio você tinha audiência protocolada com o Governador, no fim você fala com o assessor do assessor (…) Foi aí que eles não quiseram marcar outra reunião e o Chico, (Francisco Whitaker) interviu para continuar conversando. Em seguida teve mais uma reunião e eles resolveram continuar ajudando a APSD até o fim do ano” (A25). 109 A avaliação da caravana nos GS, segundo alguns dos entrevistados, evidenciou poucos ganhos para o movimento. Com exceção da promessa de manutenção do repasse de verbas para a APSD, os integrantes dos Grupos de Solidariedade não divisaram nenhum resultado favorável ao movimento. g. A última reunião da Plenária A caravana até o Palácio dos Bandeirantes marcou o declínio do MLCD em temos de sua visibilidade e confronto com o poder. Após essa manifestação, a Plenária perdeu por completo a sua representatividade e se esvaziou. “A gente não está pensando em nenhuma manifestação porque quem decide é a Plenária Estadual e por enquanto a Plenária está até um pouco desativada. Eu não sei se vai ser feito alguma coisa como formal de luta pois a última plenária tinha pouca gente, aí foi marcada outra reunião para o dia 15 de outubro no Sindicato dos Químicos” (A12). A reunião da Plenária Estadual Contra o Desemprego no dia 15 de outubro contou com a presença de cerca de 20 pessoas. A reunião propriamente dita acabou não se realizando, pois nenhum membro da coordenação compareceu. Durante o tempo em que permaneceram na sala, os representantes dos GS conversavam sobre os problemas de seus grupos, parecendo alheios ao destino da Plenária e do próprio MLCD. Pouco antes de o pessoal abandonar o local, o coordenador do Comitê de Luta Contra o Desemprego (CCLD-EM) de Ermelino Matarazzo fez uso da palavra para avisar aos presentes que seria feita nova tentativa de mobilização para reunião e que o dia e hora seriam afixados em um aviso na porta da sede da APSD. Mesmo com os esforços realizados por algumas lideranças a Plenária Estadual de Luta Contra o Desemprego se esvaneceu por completo. As convocatórias para novas reuniões feitas por lideranças isoladas não surtiram o efeito pretendido. 110 “Agora a Plenária não coordena o movimento. Ela é uma tentativa de ser o movimento. O problema da Plenária é mais político e pessoal (…) As vezes, o pessoal fica em uma discussão que está claro que para o movimento aquilo não adianta, mas ali estão duas, três pessoas disputando espaço político”. (A24). No início do ano de 1986 foi interrompida a dotação de verbas do governo para a APSD. A partir daí, rapidamente a maioria dos GS desapareceu, permanecendo alguns poucos grupos que haviam se organizado em atividades produtivas. Esses grupos, em grande parte, respondiam aos objetivos da APSD, mas atuavam apenas esporadicamente no movimento. Não havia uma avaliação segura quanto às possíveis causas para o abandono do movimento pelos seus participantes. Supunha-se que muitos deixavam o movimento porque estavam “cansados”, embora continuassem desempregados. Era voz corrente, que o reaquecimento da economia ao final de 1985 não se constitui de “uma chamada geral ao trabalho” e que o número de desempregados era ainda bastante elevado. Outras argumentações apontavam para a falta de perspectiva do MLCD e para a necessidade de um redefinição dos Grupos de Solidariedade, uma vez que estes estavam “acostumando as pessoas a não trabalhar e a viver de ajuda” (A26). As análises enfatizavam também como causas do refluxo do movimento, o personalismo de alguns, a falta de recursos para a organização das bases, a pouca ajuda dada pelos Sindicatos e a intransigência das autoridades nas negociações. As tentativas frustradas para ativar a Plenária Estadual e o desaparecimento dos Grupos de Solidariedade marcam a desarticulação do Movimento de Luta Contra o Desemprego. 111 B. O impacto causado pelo MLCD O impacto causado pelo Movimento de Luta Contra o Desemprego será analisado em relação ao Estado (neste momento considerado como governos federal e estadual), aos parlamentares, à Igreja, à imprensa (Jornais e Folha de São Paulo e o Estado de São Paulo) e a outros movimentos. As reações dessas instituições e grupos ao MLCD não eram unidirecionais e partiam de relações que se cruzavam e se influenciavam reciprocamente. Além disso, é possível dizer que outros fatores, subjacentes ou inerentes ao fenômeno de visibilidade do MLCD, como por exemplo, a luta pela democratização do país e a situação de desemprego em massa, contribuíram na formação do conteúdo dessas reações. Pode-se acrescentar, no entanto, que tais reações não ocorreriam sem a presença do movimento e que todo o apoio que este obteve ao longo de sua trajetória, embora importante, não substituiu o árduo trabalho de organização e unificação, empreendido pelos agentes. 1. Reações do Estado. Desde a emergência do MLCD, a posição do Estado foi marcada por certa ambigüidade. O movimento nasceu no bojo do embate político entre o modelo econômico recessivo, conduzido pelo Governo Federal, cuja conseqüência era o desemprego em massa e as conquistas eleitorais oposicionistas, cuja promessa em São Paulo se traduzia pelo slogan: “democracia e participação”. Em outras palavras, estava claro que a manifestação se fazia contra o modelo econômico, mas, paradoxalmente, quem devia administrar a situação conflitante era um Governo que representava, na ocasião, as conquistas populares. A ineficiência na solução dos problemas, o desmentido de promessas pré-eleitorais e o uso de métodos repressivos tradicionais 112 deixavam à descoberto algumas das contradições entre o discurso e a prática governamental. No início das manifestações contra o desemprego, parecia que as autoridades esforçavam-se em legitimar o movimento, procurando separar o contingente de manifestantes desempregados dos demais, que pertenciam, principalmente, ao que se pode denominar de mão de obra sobrante5. Com o objetivo de administrar o conflito, as autoridades utilizaram duas estratégias: a repressão e as promessas de negociação. A primeira funcionou em curto prazo, de certa forma inibindo as manifestações e servindo de advertência àqueles que ainda não haviam aderido, mas estavam prontos a fazê-lo. A outra estratégia teve um resultado que poderia se dilatar no tempo possibilitando a criação de “saídas” emergenciais. A repressão pela força policial esteve presente em todos os momentos de visibilidade do MLCD, excetuando a caravana ao Palácio dos Bandeirantes. A repressão por meio de ameaças e proibição de reuniões públicas, sem autorização prévia da Secretaria da Segurança Pública (Folha de São Paulo: 6.4.83). A repressão mais violenta empregada pelo Governo do Estado ocorreu durante a invasão do SINE pelo MLCD. Nesse episódio, a polícia cercou o prédio onde se encontravam os manifestantes, bloqueou a entrada de pessoas, inclusive médicos que prestavam assistência a crianças e mulheres doentes, interrompeu o fornecimento de água e impediu a entrada de alimentos e remédios. Essa ação policial somente foi 5 A mão de obra sobrante se distingue do chamado “exército industrial de reserva”, pois este pode ser incorporado ao processo produtivo na medida em que o sistema necessite, enquanto que a mão de obra sobrante, segundo FAUSTO, B (1983: 26) se encontra “estruturalmente confinada a ocupações de mínima produtividade” 113 abrandada após vinte e quatro horas, pela intervenção direta do Cardeal-Arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns. As promessas de negociação nem sempre se concretizavam, e, quando se realizaram, foram demoradas, cheias de obstáculos para os manifestantes. Apesar dessas dificuldades, o MLCD alcançou o atendimento de algumas de suas reivindicações, entre essas, a distribuição de cestas de alimento, isenção parcial do pagamento do pagamento de taxas de água e luz, passes de ônibus, emprego para os acampados do Ibirapuera, criação de grupos especiais de estudo do desemprego etc., o que implicou no reconhecimento do movimento pelo Estado. Com relação à distribuição de cestas de alimentos, a primeira tentativa das autoridades governamentais foi a de distribuí-las através dos Sindicatos que, no entanto, se recusaram a assumir tal tarefa, alegando que essa era uma atribuição do Estado e que o montante de cestas era insuficiente para atender a todos os trabalhadores desempregados. Decidiu-se então, que as cestas seriam distribuídas pela Secretaria do Trabalho, com a participação das Administrações Regionais e da Polícia Militar. “O desempregado comprovava a sua situação mediante a apresentação da Carteira de Trabalho e retirava um bônus que lhe dava direito a umas cesta” (Gazeta Mercantil: 30.6.83). O expediente da comprovação de rompimento de contrato de trabalho recente, assinalado na carteira profissional, permitia ao Estado, em sua ação paternalística, separar os trabalhadores entre os que possuíam trabalho regular e aqueles que pertenciam ao quadro da economia invisível. Estes, os integrantes da mão de obra sobrante, continuaram sem assistência, contribuindo no chamado setor degradado de serviços. 114 Um outro resultado das negociações foi a criação, por parte do Governo do Estado, de grupos de trabalho que tinham a atribuição de fazer um diagnóstico da situação e sugerir medidas para minimizar a crise e seus efeitos. Tais grupos funcionavam durante algum tempo e logo se extinguiam. Durante todo o período de crise e de manifestações promovidas pelo MLCD, não se tomou conhecimento de medidas administrativas de combate ao desemprego com base nos relatórios providos por esses grupos. Dentre eles, o Grupo Extraordinário Contra o Desemprego foi o que contou com um maior número de representantes de associações, órgãos públicos e secretarias. Esse grupo foi criado durante o acampamento do Ibirapuera e se reuniu regularmente durante cerca de três meses, esvaziando-se pouco tempo depois. “…cessada porém a pressão do acampamento parece que o Grupo Extraordinário encerrou suas funções, apesar de ter apenas começado a abrir pistas novas. O trabalho feito corre o risco de ter sido útil somente àqueles que queriam se ver livres de um problema, e algumas pistas abertas podem se fechar de novo” (Francisco Whitaker Ferreira – Folha de São Paulo: 26.1.84). “… ah, o Grupo Extraordinário Sobre o Desemprego em pouco tempo praticamente acabou. Os projetos que haviam sido feitos foram engavetados”. (A26). Não obstante a falta de continuidade nas respostas do Estado observou-se uma articulação em vários níveis dos grupos do Estado e do Município no trato das questões do MLCD. Algumas secretarias como da “Promoção Social”, e do “Trabalho”, pelo governo do Estado, e da “Família e do Bem-Estar Social”, pela prefeitura municipal, participaram ativamente em várias negociações. Durante o trajeto do movimento outros órgãos e mesmo empresas estatais estiveram envolvidas como, por exemplo, Administração Regional, Polícia Militar, Eletropaulo, Sabesp etc. A articulação do governo do Estado com o governo da República praticamente não existiu. A presidência da República evitou tratar da questão, enquanto seus 115 ministros minimizavam o problema configurando-o como da alçada dos Estados. As manifestações de rua, principalmente as que resultaram em saques e depredações foram tidas como obras de agitadores ligados ao PC do B e ao PT. Assim, a reivindicação do seguro desemprego pelo MLCD encontrou uma obstinada oposição a nível ministerial. Apesar dessa posição, o Conselho nacional de Política e Emprego, órgão de consultoria ligado ao Ministério do Trabalho, defendeu um elenco de medidas, do qual fazia parte o seguro-desemprego, como uma forma de minimizar os efeitos do desemprego em massa. As principais medidas sugeridas por esse órgão, foram: a) dilatação do aviso prévio para 60 dias; b) alteração na legislação para facilitar a redução da jornada de trabalho e disciplinar as demissões coletivas; c) revigoramento do auxílio-desemprego. (Gazeta Mercantil: 5.5.83). Tais propostas foram rejeitadas no Ministério do Trabalho e do Planejamento. A partir do desaparecimento, no MLCD, dos Comitês, e do aumento dos Grupos de Solidariedade, as relações entre o movimento e governo tomaram outro rumo. Nessa fase, as relações se deram diretamente entre os órgãos públicos e os GS isoladamente, como por exemplo, a negociação entre a Eletropaulo e os Grupos, com relação ao aproveitamento de terrenos sob os fios elétricos de alta tensão, para implantação de hortas comunitárias, ou o atendimento, pela Secretaria de Trabalho elaborados pelos grupos. 2. A resposta parlamentar A nível parlamentar, não apenas em São Paulo, mas também na Câmara dos Deputados, em Brasília, o Movimento de Luta Contra o Desemprego alcançou uma certa ressonância. Em São Paulo, o Partido dos Trabalhadores, por várias vezes, emitiu 116 nota apoiando o movimento. O presidente e o secretário desse partido visitaram os acampados no Ibirapuera e, durante as principais manifestações do movimento, parlamentares do PT compuseram, a pedido dos manifestantes, o grupo de negociação. Também apoiaram o movimento, parlamentares do PMDB e do PDT, mas esse apoio não foi “oficializado” pela direção desses partidos. Em Brasília, o Congresso Nacional, através da Câmara dos Deputados, realizou um encontro denominado Painel Sobre o Desemprego, conduzido pelos deputados membros da “Comissão de Trabalho e Legislação Social”. Esse encontro iniciou-se no dia 13 e foi encerrado no dia 22 de setembro de 1983, totalizando cinco sessões. Além da presença e participação dos governadores de Pernambuco e Amazonas, Secretários de Trabalho de São Paulo e Rio de Janeiro, técnicos ligados ao DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos) e IBSE ( Instituto Brasileiro de Análises Sócio-Econômicas), líderes sindicais, jornalistas, deputados e senadores, o painel contou com a participação de dois representantes do MLCD, que na ocasião faziam parte da coordenação geral do acampamento do Ibirapuera. O encontro de Brasília resultou em um conjunto de sugestões denominado de “Um Programa de Geração de Empregos”, que implicava na adoção do Segurodesemprego e numa reorientação na política econômica pelo Governo Federal. Tais propostas, embora apoiadas por outros setores da sociedade, não foram consideradas pelo Governo, que manteve a política recessiva, responsável pelo desemprego coletivo. A documentação desse encontro foi reproduzida na forma de um livro pelo Centro de Documentação e Informação da Câmara dos Deputados, com a denominação de “Painel Sobre o Desemprego”. 117 A elaboração do projeto sobre o seguro-desemprego pode ser interpretada como uma outra resposta parlamentar. Durante os acontecimentos de rua (o período dos saques) e o acampamento no Ibirapuera, vários projetos, instituindo o segurodesemprego, tramitaram no Congresso, mas foram rejeitados pela maioria dos parlamentares filiados ao PDS, que alegavam “inconstitucionalidade” e “injuricidade” da matéria. (Gazeta Mercantil: 14.5.83). 3. O apoio da Igreja Durante aproximadamente dois anos a Igreja apoiou ativamente o MLCD. Tal apoio não se restringiu à participação de algumas paróquias, mas da intervenção da própria Arquidiocese. O discurso do Papa João Paulo II, durante a sua visita ao Brasil, no estádio do Morumbi, em São Paulo, na sua referência a questão do desemprego, serviu de base e pretexto para justificar e legitimar o esforço da Igreja no apoio ao MLCD. Na ocasião o Papa afirmou: “A primeira e fundamental aspiração de vocês é trabalhar (…) Por isso, a primeira e fundamental preocupação de todos e de cada um, homens do governo, dirigentes de sindicatos e donos de empresa deve ser esta: dar trabalho para todos”. Pode-se dizer que o apoio da igreja ao MLCD foi relativamente constante. Por ocasião do acampamento do Ibirapuera, D. Paulo Evaristo Arns e D. Pedro Casaldáliga visitaram os manifestantes. A Arquidiocese iniciou em São Paulo uma campanha conduzida pelas paróquias que, além de arrecadar gêneros para os acampados, intensificou o contato de padres e agentes pastorais com os desempregados nos bairros. Várias publicações ligadas às CEB’s deram divulgação ao movimento e o jornal “O São Paulo”, de responsabilidade da Cúria Metropolitana, publicou matérias favoráveis ao movimento, de sua edição de número 1431 (8 a 15 de setembro) até o número 1437 (21 118 a 27 de outubro) e, posteriormente, durante outros episódios de manifestação contra o desemprego. A Igreja realizou, ainda, no dia 25 de setembro de 1983, na praça da Sé, uma missa campal “celebrada por D. Paulo Evaristo Arns, 11 bispos e 410 padres, diante de cerca de 150 mil pessoas” (Folha de São Paulo: 26.9.83). A convocação para essa tarde de oração foi feita através de uma carta assinada pelo Arcebispo e nove bispos a todas as paróquias, associações e colégios religiosos. A carta fazia referência à Encíclica “Labore Exercens”, do Papa João Paulo II, e afirmava de forma imperativa: “Ordenamos, estejam presentes todos os padres e religiosos com suas Comunidades, Colégios e Associações, para sermos uma só voz e um só coração diante de Deus, que pode mudar o rumo da HISTÓRIA”. A partir do recebimento desta carta, os Colégios, Associações e Igrejas faziam a sua convocação direta ao povo em geral, utilizando a forma que julgassem mais conveniente. A Igreja de Itapecerica da Serra, por exemplo, distribuiu um folheto, durante as missas, onde citava partes da carta recebida e acrescentava: “Como o profeta Isaías, clamamos: ‘E que direito tendes de esmagar o meu povo?’” (Is. 3,15). “Manifestamos também nosso apoio ao ACAMPAMENTO DOS DESEMPREGADOS do Ibirapuera, como sinal de firmeza e esperança para milhares de trabalhadores deste país”. Durante a oração, o apoio público da Igreja à manifestação do MLCD com o acampamento, foi assumido pelo Bispo de Santo André, D. Cláudio Hummes, ao ler a sua homília: “O desemprego, o subemprego e o achatamento salarial são insuportáveis para o nosso povo sofrido (…) A Igreja apóia plenamente o protesto pacífico dos acampados no Ibirapuera” (Folha de São Paulo: 26.9.83). 119 O reconhecimento pela Igreja, da legitimidade da manifestação promovida pelo MLCD, pode ser verificado também pela inclusão, entre os oradores da tarde de oração, de um membro da coordenação do acampamento, que destacou, entre outros aspectos, a combatividade do movimento. “… entre várias formas de luta e de protesto criamos o acampamento dos desempregados do Ibirapuera, mas não vamos parar por aí (…) precisamos contar com a solidariedade e o apoio de todos os homens de boa vontade, que querem justiça”. Na ocasião em que foi realizada essa missa campal, discutia-se no, Congresso Nacional, o decreto 2.024 que impunha ao trabalhador um arrocho salarial pela política em vigor. Esse decreto complementava medidas anteriores de perda salarial, que eram justificadas em temos da diminuição do desemprego. “Nilo Coelho disse que a eliminação dos 10 por cento acima do INPC, para os que ganham até três salários mínimos, é uma medida correta, ‘porque esse acréscimo é que vem causando o desemprego’” (Folha de São Paulo: 21.1.83). O decreto 2.024 foi rejeitado no Congresso Nacional que se sentiu pressionado pela sociedade civil. A rejeição pode ser considerada como um gesto de independência inédito durante o período de vigência do regime militar no país. A missa se constituiu de um ato político contra o desemprego e o decreto 2.024. Nas reuniões da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), em Itaici (julho e novembro de 1984), foram divulgadas notas de apoio ao MLCD e em defesa de suas reivindicações, principalmente o seguro-desemprego, e, em 2 de março de 1985, foi promovida uma pastoral sobre o desemprego com a presença do Cardeal-Arcebispo de São Paulo. 120 Além dos apoios acima citados, várias paróquias e Centros Sociais abriram as suas portas para reunião dos comitês e Grupos de Solidariedade nos bairros. Além disso, a participação das paróquias nos bairros não se limitava a ceder espaço, mas também facilitar a criação de infra-estrutura para o movimento. 4. A posição da imprensa O impacto causado pelo MLCD pode ser observado através da cobertura da imprensa. Os principais jornais de São Paulo, a partir das primeiras manifestações do movimento, até a invasão do SINE, apresentaram amplas reportagens e editoriais, retratando e analisando tais eventos. Concomitantes com a descrição das manifestações promovidas pelo movimento, ganharam espaço, na imprensa, a questão do desemprego, a política salarial e econômica e o seguro-desemprego. Pode-se inferir que os debates e análises permitiram a disseminação de que tal política recessiva não se constituía de uma ocorrência inevitável, mas de uma escolha deliberada, não partilhada com a sociedade. Tomando-se os dois jornais de maior circulação da cidade, a Folha de São Paulo e o Estado de São Paulo, observou-se que durante os quatro dias de manifestações (os saques de abril), foram produzidas 92 e 101 matérias, respectivamente, sobre os acontecimentos. Considerando-se os dois eventos de maior repercussão promovidos pelo MLCD o acampamento do Ibirapuera e a invasão do SINE, observa-se que os jornais Folha de São Paulo e o Estado de São Paulo adotaram posições diferentes: O Estado assumiu, consistente e progressivamente, uma linha crítica e alarmista em relação ao 121 movimento e seus prováveis desdobramentos. A folha mostrou-se mais moderada na crítica, exibindo opiniões favoráveis e contrárias a respeito do movimento. Com relação ao acampamento do Ibirapuera verifica-se, que as primeiras reportagens foram benevolentes em relação ao evento, fazendo referências às dificuldades da manutenção do acampamento, à dura rotina dos acampados, ao inverno prolongado e chuvoso que molhava os colchões, apontando o descaso das autoridades e abrindo espaço para os depoimentos mais dramáticos e até mesmo elogiando a persistência dos acampados. “Alheios ao frio, à lama e à semifome, meninos jogavam vigorosa pelada. Estão corados como transbordando saúde. Ledo engano: é o tom sanguíneo nos rostos, provocados pelo vento gélido, incapaz, no entanto, de esconder as clássicas marcas amareladas que denunciam desnutrição, verminose, insônia e carência protéica” (Folha de São Paulo: 11.9.83). “A gente não pode perder o ânimo – comentou Antônio Farco, metalúrgico desempregado há três anos e sem qualquer esperança concreta de conseguir emprego em curto prazo. ‘As fabricas estão é demitindo, não contratando’ – diz rindo tentando se proteger melhor com um agasalho do frio intenso da manhã” (Estado de São Paulo: 13.9.83). Posteriormente, ao que parece, na medida em que os acampados insistiam em permanecer no parque, aos poucos os temas mais freqüentes passaram a ser as desavenças, as divisões entre os comitês e as dificuldades na manutenção da disciplina. Anunciava-se com freqüência, o fim do acampamento e, como isso não ocorria, cobrava-se tal medida, criticando o “rompimento de acordo”. Acusava-se o movimento de radical e atribuía-se toda a organização do acampamento a agentes pastorais ou militantes do Partido dos Trabalhadores. “Briga quebra a rotina dos acampados” (Estado de São Paulo: 2.10.83). “Clima passa de cordial a tenso entre os acampados” (Folha de São Paulo: 5.10.83) 122 “PT camping vira circo” (Estado de São Paulo: 7.10.83). “Acampados prometem retirar domingo as barracas do parque” (Folha de São Paulo: 7.10.83). “Acampados rompem acordo e continuam no parque” (Folha de São Paulo: 10.10.83). “O circo cai, protesto do Ibirapuera termina” (Estado de São Paulo: 16.11.83). Apesar das manchetes e reportagens da “Folha de São Paulo” ensejarem a interpretação, feita pelas lideranças, de que esse órgão se colocava contrário ao movimento, os editoriais, no entanto, eram moderadamente críticos e chamavam a atenção para a questão social, como se observa na transcrição abaixo do editorial “Não à desordem”. “De toda maneira, a manifestação a que a Capital paulista assiste revela ter-se encontrado um caminho menos agressivo que a arruaça, encetada anteriormente (…) O problema, no entanto, é muito mais do que policial. É econômico, com intensa repercussão social” (Folha de São Paulo: 9.9.83). Além disso, a Folha de São Paulo manteve espaço para aqueles que quisessem defender o movimento, como pode ser visto nas transcrições parciais dos artigos, “A mensagem das barracas” e “Acampamento do Ibirapuera é recurso legítimo”. A autora da primeira transcrição fazia parte da Comissão de Justiça e Paz, ligada à Arquidiocese e o autor da segunda era vereadores em São Caetano do Sul pelo Partido dos Trabalhadores e havia sido apontado pelo “Estado” como um dos organizadores do acampamento. “… a solidariedade inicial foi sendo substituída pela irritação ou pela desconfiança; afinal, que mais eles querem? Esses acampados já estão exagerando… Ou seja, nossa boa sociedade, tão marcada por costumes políticos elitistas e conservadores ainda não percebe a legitimidade dos movimentos sociais e das organizações de base. (…) A mensagem das barracas – armadas ou desarmadas – é também uma nova forma de conquista da cidadania” (Margarida Genevois). 123 “Parte da imprensa e parlamentares de alguns partidos têm atacado o movimento reivindicatório dos acampados no Ibirapuera fugindo de abordar as causas mais profundas do desemprego e da omissão governamental diante dele. (…) O problema não será resolvido buscando gente de classe média no acampamento, nem entrevistando um ou outro desempregado que rejeite ofertas humilhantes de subemprego…” (João Cardoso Alves). Já o “Estado de São Paulo” manteve uma posição acentuada contrária ao movimento, criticando a organização do acampamento e solicitando providências das autoridades “contra esse estado de coisa”. O editorial “A participação em marcha” (15.9.83) refletiu essa tendência e pareceu ter tido o objetivo de colocar dúvidas sobre a participação dos desempregados na condução do movimento e sobre a justeza das suas reivindicações. A transcrição é parcial. “O acampamento montado no parque do Ibirapuera parece fadado a ampliar-se, restabelecido o bom tempo em São Paulo (…) É estranho, entretanto, que um dos coordenadores dessa invasão insólita não seja propriamente desocupado (…) É estranho também que os desempregados, antes de mais nada, lutem por reivindicações que nada têm que ver com sua situação. Pois eles pretendem que lhes seja fornecida alimentação gratuita e que se lhes abram os sanitários do parque, enquanto lá permanecerem; e pleiteiam o cancelamento do aumento de 13 por cento nas prestações devidas ao BNH (serão mutuários inadimplentes?), o fim do arrocho salarial (que não lhes pesa, pois não trabalham – ou pelo menos alegam isso) e o tabelamento dos gêneros alimentícios. É o caso de perguntar se, na hipótese de sobrevir esse tabelamento, desistiriam das refeições grátis (…) Não foi por acaso que, viajando mais de dois mil quilômetros, o inefável D. Pedro Casaldáliga apressou-se a comparecer no Ibirapuera azafamado em solidarizar-se com os desempregados. (…). A conseqüência é que, algumas centenas de manifestantes decidem tomar o parque paulistano e não há quem assuma o encargo de forçá-los a recuar. Durante o episódio da invasão do SINE, A “Folha de São Paulo” e o “Estado de São Paulo” mantiveram as mesmas posições adotadas anteriormente. A Folha elogiou a organização da invasão, mas queixou-se das restrições, impostas aos 124 jornalistas, pelos membros da coordenação geral. O jornal Estado de São Paulo, no segundo dia da invasão, exibiu manchete: “PT comanda a ocupação do SINE”. A suposição de que o Partido dos Trabalhadores estivesse por trás da manifestação era também partilhada pela Folha, porém, com menor insistência e sem veicular a idéia, defendida pelo Estado, de que o movimento tinha sido manipulado por aquele partido. A crítica do Estado de São Paulo à ocupação do SINE, dirigiu-se igualmente, à ala progressista da Igreja Católica, como pode ser verificado no editorial “Totalitarismo e invasão do SINE” de 23 de agosto de 1984. “Não há, pois sinceridade na ação desses padres que transformam as suas paróquias em locais de reunião onde são planejados movimentos de massa como o de um ano, no Ibirapuera, como os quebra-quebras no largo 13 e Maio, em Santo Amaro, e como este agora, do qual resultou a invasão do SINE”. A atribuição, à Igreja, de favorecer e incentivar “movimentos de massa”, atuando através do Partido dos Trabalhadores, e a suposta manipulação do MLCD, por esse partido foram as temáticas do “Estado de São Paulo”, em vários momentos da invasão do SINE. “O Partido dos Trabalhadores (PT) é, sem dúvida nenhuma, a ala politicamente organizada e legalmente reconhecida da corrente progressista da Igreja Católica, cujos membros realizam trabalho de massa por seu intermédio…” (Estado de São Paulo: 23.8.84). “Alheios a esse ‘jogo político’, centenas de crianças, mulheres e homens passam fome e sede, manipulados por políticos do PT” (Estado de São Paulo: 25.8.84). 5. O efeito sobre outros movimentos Um outro aspecto que reflete a repercussão do MLCD se constitui no fato de que Movimentos de Luta Contra o Desemprego de outros estados do país tentaram 125 repetir a manifestação do acampamento do Ibirapuera. Em Salvador e Curitiba ocorreram tentativas de organização de acampamentos em praças centrais, reprimidas pela polícia militar (Folha de São Paulo: 25.10.83). Em Porto Alegre, cerca de 150 desempregados acamparam defronte ao Palácio Piratini, na praça da Matriz (Folha de São Paulo:1.5.84). Em Vitória (Espírito Santo), o MLCD local organizou um acampamento próximo ao Palácio de Anchieta, sede do governo do Estado (Estado de São Paulo: 7.6.84). Em São Paulo, cerca de cinco meses após a desativação do acampamento, foram feitas duas novas tentativas de acampamento por grupos pequenos e isolados, frustradas pela ação policial (Folha de São Paulo: 2.5.84). Poder-se-ia considerar que as tentativas de acampamento, surgidas após a experiência do Ibirapuera, tenham sido inspirados nesse movimento. Quanto aos acampamentos surgidos muito tempo depois (Porto Alegre e Vitória), poderiam não guardar uma relação mais direta, apesar de os Sindicatos, as CEB’S e as Centrais Sindicais, manterem divulgação e análise de eventos como aquele. Um exemplo pode ser verificado pela publicação do “Pelejando” – Jornal da CEB’S, Minas Gerais, número 10, julho/agosto de 1984, que analisou o acampamento e os seus desdobramentos. É possível supor, então, que a experiência do acampamento em São Paulo, por suas características e impacto, tenha sido aceita por lideranças de movimentos contra o desemprego de outros estados, como uma alternativa viável. Tal suposição parece plausível considerando-se também as referências de lideranças dos acampados no Ibirapuera sobre o evento. “O acampamento começou a ser notícia. Na Bahia tinha um pessoal que estava querendo acompanhar a idéia, para organizar os desempregados. Em Volta Redonda e no Rio de Janeiro também. Aí eu fui convidado logo depois do acampamento para relatar nossa experiência em uma reunião em Volta Redonda, com sindicalistas e lideranças ligadas à Pastoral do Trabalho…” (A26). 126 O MLCD participou também, de uma forma mais direta, com suas lideranças, de várias mobilizações populares, que apareceram na ocasião. Em Ermelino Matarazzo, por exemplo, o Comitê de Luta Contra o Desemprego, formado por Grupos de Solidariedade daquele bairro, participou de manifestações e na organização dos movimentos dos Sem Terra (também denominado de movimento dos Filhos da Terra), de Transporte e do Hospital6 . Alguns membros do referido Comitê participaram ainda, auxiliando a infra-estrutura da greve dos bancários em 1985, no bairro. C – Entidades na dinâmica do movimento Durante o aparecimento e trajetória do MLCD observou-se uma dinâmica na qual participaram várias entidades e grupos. O objetivo desta secção é o de descrever as principais entidades ligadas ao movimento, que será precedida por uma breve referência aos grupos de apoio e de negociação, que se movimentavam no interior do conflito produzido pelas manifestações. O grupo de negociação era bastante heterogêneo, isto é, os seus integrantes provinham de entidades e categorias sociais com objetivos diferenciados como, por exemplo, membros de secretarias de Estado, da Igreja, de órgãos sindicais, de partidos políticos e representantes dos manifestantes. Cessado o período de negociação, o grupo se dissolvia independentemente dos resultados. 6 Os Movimentos referidos acima se reuniam em espaço cedido pela Igreja de São Francisco de Assis de Ermelino Matarazzo. Dentre eles, o que obteve maior projeção, foi o “dos Sem Terra”, que se espalhou por quase toda Zona Leste da cidade, efetuando várias ocupações de terrenos durante o ano de 1987. 127 O grupo de apoio podia ser considerado como mais homogêneo, pois seus integrantes eram filiados a grupos e associações que mantinham um discurso de defesa dos interesses das populações mais pobres e/ou no apoio da organização popular. Membros de entidades como OAB, FNT, Arquidiocese, partidos políticos etc., se organizavam em um grupo com objetivo de manifestar solidariedade e de fornecer sustentação político-estratégica, em especial durante as manifestações do movimento. Os grupos de apoio e de negociação possuíam um caráter efêmero e podiam ser considerados como grupos-tarefa, cuja existência se condicionava ao cumprimento de atribuições específicas. As entidades, por outro lado, acompanhavam, de forma razoavelmente constante, o movimento em sua trajetória, porém possuíam projetos independentemente do mesmo. Destacam entre estas, a Associação Paulista de Solidariedade no Desemprego (APSD), a Associação de Apoio às Iniciativas Populares (Basenova ou BN), a Associação de Apoio à Intercomunicação, promovedora do Jornal Intercarta, o Centro Social de São Francisco de Assis, da Igreja de São Francisco de Assis e o Comitê de Luta Contra O Desemprego de Ermelino Matarazzo (CLCD-EM). 1. A Associação Paulista de Solidariedade no Desemprego A descrição que segue compreende o período que se inicia com a criação da entidade, em novembro de 1983 e vai até o início do ano de 1986, que delimita o término da coleta de dados da presente pesquisa. A história da Associação. A APSD foi fundada como uma sociedade civil, sem fins lucrativos, no dia 28 de novembro de 1983. Os seus objetivos, conforme estatutos eram: a) o 128 desenvolvimento da solidariedade entre e para os desempregados; b) a obtenção e o encaminhamento de auxílio financeiro a desempregados; c) a luta pela adoção do seguro desemprego no país. A idéia de se desenvolver um trabalho de organização popular com núcleos autônomos antecedeu o acampamento do Ibirapuera, e mesmo a organização dos desempregados em um movimento de pressão social. A ocorrência dos saques e depredações, em abril de 1983, serviu como “pano de fundo” para que algumas pessoas se mobilizassem em torno da idéia da formação de pequenos núcleos populares, que deveriam buscar uma autonomia e autogestão. Essas pessoas se reuniram principalmente na Cúria Metropolitana. “Nós constituímos um grupo especial, o Grupo de Emergência Sobre o Desemprego, com membros de todas as pastorais” (A7). A idéia básica que predominou era a de se organizar um tipo de segurodesemprego alternativo contido na proposta da APSD que, em primeiro lugar se colocava contrário a um sistema de seguro-desemprego sob o controle de órgãos governamentais. “Nós pretendíamos um seguro-desemprego alternativo que negasse a idéia de um grande instituto nacional de seguro por causa da corrupção e problemas políticos que necessariamente iriam existir”. (A7). O seguro alternativo se constituiria de um sistema organizado com a participação da base, isto é, com uma discussão e aproveitamento de idéias oriundas dos próprios interessados que, no mínimo, jogariam com o papel de fiscalizador. Em segundo lugar, o sistema não se ateria ao trabalho burocrático ligado ao repasse de auxílio àqueles que necessitavam, mas deveria difundir um ideal de solidariedade que, no primeiro momento seria vivenciado por aqueles que se encontravam empregados, e 129 pelos desempregados, com contribuição financeira e constatação de que os primeiros se sentiam responsáveis pela situação dos sem-trabalho. À medida que os desempregados se organizassem em núcleos com empregados, em seus bairros, esperava-se que essa solidariedade fosse vivenciada no cotidiano como um ato concreto de ajuda - mútua: os que estavam trabalhando contribuiriam para a formação e organização do grupo e se constituiriam em um vínculo entre o mercado de trabalho e os que dele foram expelidos. Além disso, os sem-trabalho poderiam se organizar em formas coletivas de busca de alguma atividade que lhes possibilitasse meios de sustentação familiar e, ao mesmo tempo, quebrasse o isolamento imposto pela situação de desempregado. Antecedendo e concomitantemente à discussão da idéia de uma Associação de Solidariedade, outras iniciativas solidárias apareciam no contexto social como, por exemplo, a experiência desenvolvida na paróquia da Reconciliação, do Parque Santa Madalena7 que ficou conhecida como “5 X 2” (cinco famílias “adotavam” duas outras cujo responsável pela sua manutenção encontrava-se desempregado, ajudando-a econômica e moralmente). Contrapondo-se à insensibilidade dos governos, a Sociedade8 ela própria, buscava formas alternativas de minorar a situação dos sem-trabalho. Existia, dessa forma, um contexto social favorável, um momento histórico sobre o qual uma análise adequada indicaria a ocasião de receptividade para uma idéia que contasse com a participação de representantes de correntes de pensamento, distintos e até opostos, os quais se conjugariam em uma prática comum. 7 Bairro da Zona Leste da cidade de São Paulo. 8 O termo Sociedade é utilizado com o significado dado, moderadamente, à Sociedade Civil, ou seja, como o campo das relações entre indivíduos e entre grupos que ocorrem paralelas às relações de poder das instituições do Estado. A Sociedade pode, pois, antecipar-se ao Estado ou mesmo fornecer-lhe recursos ou elementos de tomada de decisão ulterior. 130 “É uma questão muito delicada a participação de representantes dos católicos, evangélicos e espíritas na formação da Associação: são aqueles momentos da história que dependem da ação catalisadora de alguma pessoa ou instituição que tenham idéias diferentes, para mostrar que em algum ponto pode haver um compromisso”. (A1). Dessa maneira, poder-se-ia considerar o Grupo de Emergência Sobre o Desemprego como instância precursora, que catalizou a ação de outras entidades para formação da Associação. Quando os desempregados acamparam no Ibirapuera, ali permanecendo por 70 dias, o Grupo de Emergência Sobre o Desemprego apressou-se em dar corpo às idéias, na forma de um anteprojeto. A criação da APSD foi, portanto, apressada pelo acampamento. “Então surge a idéia de uma Associação. Algumas pessoas fazem o esboço de uma proposta de estatuto que é levada ao acampamento para se estabelecer o diálogo com o pessoal acampado” (A6). O anteprojeto em discussão, cuja denominação para a APSD era de Associação de Bairro de Solidariedade no Desemprego, previa, além do auxílio aos desempregados, a implantação de pequenos núcleos nos bairros, que também receberiam essa denominação. Esse documento inicial foi discutido com desempregados acampados no Parque Ibirapuera e membros das Pastorais Operárias, chegando-se finalmente a um estatuto definitivo, que estabelecia a denominação, finalidade, funcionamento, administração e a normalização das relações entre a APSD e os Grupos de Solidariedade. No estatuto, o ideário da APSD estava resumido em quatro princípios básicos: autonomia, democracia, solidariedade e honestidade. A proposta da criação da APSD provocou certa controvérsia, envolvendo lideranças do MLCD, pastorais e membros do Grupo de Emergência Sobre o Desemprego (GESD). A Pastoral Operária (PO) da região de Itapecerica da Serra e o 131 Comitê de Embu mantiveram-se contrários à formação da APSD, enquanto que a PO de São Mateus e Sapopemba e o Comitê de São Mateus assumiram posicionamento favorável. Entre a data de sua fundação (novembro de 1983) até o mês de janeiro de 1986, que marca o término do convênio da APSD com o governo do Estado, passaram-se aproximadamente dois anos de atividades ininterruptas. Nesse período, a Associação organizou grupos de desempregados e empregados, repassou auxílio e procurou desenvolver um trabalho visando estruturar “um novo tecido social com base na solidariedade e democracia”. Em seu início, a APSD começou a funcionar com base no trabalho voluntário e com a ajuda da FABES (Secretaria do Bem-Estar da Família) que se encarregou do serviço de cadastramento. Em janeiro de 1984 havia 10 grupos formados e, dois anos após, 217 grupos. Em dezembro de 1985, a Associação adotou processo computadorizado em seu sistema de repasse de auxílio. Até novembro de 1984, o trabalho desenvolvido pela Associação, de formação de grupos, cadastramento, acompanhamento aos grupos, informação, estatística etc., foi realizado em grande parte por voluntários; posteriormente, devido à demanda de serviços, pelo aumento considerável de grupos, alguns desses voluntários se tornaram funcionários da APSD. Decorridos mais de 2 anos de funcionamento, o contexto sócio-econômico sogreu alguma transformação. Embora o contingente de desempregados ainda fosse grande, observou-se certo reaquecimento da economia que alterou, ainda que não substancialmente, o quadro de miséria anteriormente agravado pela recessão. A criação do seguro-desemprego foi um outro aspecto que compôs o novo quadro social existente. 132 Esse novo quadro, somado ao que se poderia denominar de “exagero da propaganda desenvolvimentista”, dificultou a manutenção e expansão dos setores que responderam positivamente ao apelo da Associação. O próprio governo do Estado encerrou a sua subvenção à APSD em dezembro de 1985 quando também as contribuições voluntárias decresceram significativamente. Dessa forma, a APSD redefiniu suas estratégias de atuação, condicionando qualquer tipo de ajuda aos grupos ao desenvolvimento de atividades produtivas. “Estas atividades seriam propiciadoras apenas de uma renda suplementar, isto é, em vez de se organizar trabalhos deficientes e portanto sempre dependentes de ajuda, pensou-se em ‘bico comunitário’ auto-sustentado como um instrumento de nucleação e coesão social e, ao mesmo tempo, de aprendizado de convivência solidária, de relacionamento igualitários no trabalho e de autogestão comunitária”. Intercarta; outubro de 1986. Embora não descartando a possibilidade da ajuda governamental para esse tipo de atividade, a Associação reafirmou seu objetivo de facilitar a organização de pequenos núcleos na perspectiva de adensamento social. Além da ajuda de órgãos governamentais que atuavam na comunidade, a APSD esperava obter recursos provenientes de instituições e pessoas sensíveis ao tipo de ação comunitária proposto. A estrutura da Associação. A administração da APSD, segundo o seu estatuto (art. 12.), deveria ser realizada por uma diretoria composta por três membros. Cada diretor representava uma categoria de sócio, a saber: católica, evangélica e espírita-kardecista. O critério estabelecido para o repasse de auxílio determinava que o desempregado fizesse parte de um grupo denominado de Grupo de Solidariedade (GS). Esse grupo deveria se compor de desempregados e empregados, na proporção mínima 133 de um quarto de empregados sobre o total de desempregados, podendo existir, teoricamente, grupos com todos os seus componentes empregados, mas não de desempregados. O processo inicial de repasse de auxílio envolvia algumas etapas: a) encaminhamento, pelos grupos, das listas dos desempregados cadastrados; b) conferência da listagem na Associação, para evitar a duplicidade de nome ou inclusão de pessoas não cadastradas, e cálculo do montante destinado a cada grupo; c) listagem final das pessoas que deveriam receber o auxílio e envio da lista ao Banco do Estado de São Paulo S. A., que se encarregava da confecção dos cheques; d) entrega dos cheques aos respectivos Grupos, na sede da Associação. A relação entre a Associação e os Grupos de Solidariedade aparecia claramente definida no estatuto desta entidade. Ao se filiar à APSD, o grupo assinava um termo de adesão, comprometendo-se a respeitar as normas estabelecidas. O regimento, que regulava a relação entre o grupo e a APSD era aprovado pela associação de bairro ao qual o grupo pertencia. Este funcionava como um departamento de uma associação civil, sem fins lucrativos, que o avaliava perante a APSD. Assim, o primeiro aspecto a ser definido dessa relação referia-se à responsabilidade, inclusive legal, sobre o grupo, que foi estabelecido na forma que se segue: Art. 4. – Quanto à sua constituição, o Grupo deve: Ser formado como Divisão Autônoma de associação civil, sem fins lucrativos existentes ou que venham a se constituir com esse objetivo, doravente chamada Associação, e que o credencie junto Associação Paulista; uma mesma Associação pode constituir, no mesmo bairro, mais de um Grupo e diferentes associações podem constituir diferentes Grupos no mesmo bairro. (Estatuto Social da APSD). 134 O critério inicial para a formação de grupos, estabelecido em 200 pessoas, foi posteriormente modificado devido às dificuldades decorrentes dos grupos amplos, para no mínimo 20 e no máximo 60 membros, todos moradores do bairro onde o grupo era formado. Além da promessa de cumprimento do regimento da APSD, formalizada na assinatura do termo de adesão, o grupo se comprometia a: “(…) trabalhar para que se obtenha emprego para os desempregados membros do Grupo e iniciar alguma atividade comunitária” (Documento: Associação Paulista de Solidariedade no Desemprego – O que é e como funciona). Uma outra etapa da formação do Grupo envolvia o cadastramento que, até maio de 1984, foi realizado pela Supervisão Regional de Serviço Social (SURS), órgão da Secretaria do Bem Estar da Família (FABES), ficando posteriormente sob a responsabilidade da Associação, que o refazia periodicamente. “VI – O Cadastramento é condição obrigatória para que o desempregado possa ser incluído na lista nominal apresentada pelo Grupo à Associação Paulista para o recebimento do auxílio de que trata este Regulamento” (Estatuto Social da Associação). Ainda que todas as pessoas do Grupo fossem cadastradas, a norma para o recebimento de auxílio, indicava que somente podiam se candidatar a auxílio, “os desempregados que estivessem na condição de responsáveis principais pelo sustento da família” (Estatuto Social. Art. 8., número I). Como desempregado a associação definia: a) pessoa que já esteve empregada e que já não mais trabalha e não possui renda e b) pessoa que teve algum trabalho comprovado e que sobrevive fazendo “bicos”, menos de três dias por semana. As categorias “desamparada ou carente” (pessoas que dependem da assistência social governamental ou particular), não deveriam ser encaminhadas para 135 recebimento de ajuda da APSD. Os grupos podiam, no entanto, cadastrá-las e auxiliálas caso desejassem. O não cumprimento das normas estabelecidas podia levar o grupo a sofrer punições que implicavam na suspensão do encaminhamento dos cheques. Após esses passos iniciais, o grupo formalizava a sua existência por meio de registro em cartório de Títulos e Documentos. A denominação definitiva do GS, sob o qual ele era registrado, ficava à escolha de seus integrantes. A entrega do cheque ao desempregado beneficiado, de acordo com as normas estabelecidas, era feita em reunião com o comparecimento dos diretores do grupo que assinavam um recibo. O destino final dos auxílios era uma decisão do grupo como um todo, que na maioria das vezes transformava o dinheiro em gêneros de primeira necessidade. A obtenção de recursos destinados aos desempregados beneficiados era feita por campanhas publicitárias, ou comunicação direta, junto a empresas, Governos, entidades ou pessoas. Todos os recursos eram depositados em uma conta denominada de “solidariedade”. Esses recursos eram repassados mensalmente aos grupos, zerandose a conta bancária. A fonte de recursos mais substancial com que a Associação contou para repasse aos GS foi o Governo do Estado, que contribuiu em subvenção, feita pela Secretaria de Promoção Social, de abril de 1984 à dezembro de 1985, excetuando o mês de agosto de 1985. Outra fonte de recursos era a contribuição individual voluntária com pagamento de carnês ou depósito em conta. Cinco por cento do valor das contribuições individuais era destinada, mensalmente, para fazer face às despesas administrativas da Associação. 136 A comunicação da Associação com a sociedade não se restringia à solicitação de auxílio e à prestação periódica de conta, mas, igualmente, incluía a tentativa de esclarecimento à população, sobre a situação de desemprego e seus desdobramentos naturais. “O Caráter enganador das informações sobre a elevação de nível de emprego se revela: a fome e o desespero da grande massa de desempregados e subempregados mudam muitíssimo pouco com os eventuais e insignificantes aumentos na oferta de vagas. O noticiário sobre uma pretendida reativação da economia só serve para adormecer as consciências dos que são questionados por esse problema”. (Nota da Associação Paulista de Solidariedade no Desemprego Sobre a ocupação do SINE). A comunicação da Associação com os desempregados se fazia de forma direta, com contato freqüente de seu quadro de colaboradores nas diversas atividades junto aos Grupos (formação de Grupo, acompanhamento, cadastramento etc.), por meio de reuniões setoriais realizadas mensalmente e, ainda, usando-se o jornal Intercarta, de circulação mensal, distribuído gratuitamente aos Grupos. “(…) A ata é a história do que aconteceu na reunião. Por isso ela deve ter algumas coisas que provem que a reunião aconteceu que são: a data e o local da reunião… Se a ata é a história da reunião, o livreo de atas é a história do grupo (…)”. (Intercarta: junho de 1985, p.9). Alguns boletins também foram utilizados, nos primeiros meses de atividades da Associação, como forma de comunicação com os GS. 2. A Associação de Apoio às Iniciativas Populares. A Associação de Apoio às Iniciativas Populares, (Basenova) foi formada como uma entidade jurídica, sem fins lucrativos, em 1984. 137 Algumas das pessoas que participavam da Associação Paulista de Solidariedade no Desemprego e outras que, embora não participassem diretamente dessa entidade, compartilhavam das idéias da formação de núcleos populares autônomos, decidiram sobre a criação da Basenova. Tal decisão foi tomada, possivelmente, levando-se em consideração a dinâmica do Movimento dos Desempregados na ocasião: de um lado, a Associação, ligada ao Estado pela tarefa de repasse de verbas provenientes do Governo e com origem histórica derivada da confluência momentânea de representantes de três segmentos religiosos, a Católica, a Evangélica e a Espírita e, de outro, a Plenária Estadual Contra o Desemprego formada pelos CLCD e GS mais combativos em conflitos com as autoridades governamentais. É possível pensar que a criação da Basenova se constituí de uma estratégia empregada pelas lideranças da APSD, na medida em que identificaram certa limitação política na prática da Associação, principalmente pela sua atribuição de repasse de verbas, provenientes do Governo, para os desempregados. “A Basenova era a face diferente da mesma moeda. Quanto mais a gente perpetuava a Associação, mais se perpetuava a Basenova”. (A1). A Basenova era então, uma outra entidade, ocupando o espaço paralelo e aberto pela Associação, mas livre de qualquer vinculação formal com o Governo, e que poderia, de forma bem sucedida dar encaminhamento a discussões e propostas que dificilmente a APSD poderia executar. “Eu vejo a Basenova como uma entidade mais tática que ocupa um espaço junto a APSD (…) Ela foi formada logo depois da APSD com o pessoal preocupado com a continuidade do trabalho”. (A9). 138 Podia-se observar na Basenova, dois subgrupos: um, cuja maioria pertencia igualmente à equipe da APSD, era de certa forma, responsável pela orientação ideológica e de planejamento da programação dessa entidade; o outro subgrupo, era, em sua maioria, formado por pessoas recrutadas nos GS, com liderança no MLCD. Estes pode-se afirmar, formavam a equipe operativa da Basenova e tinham a incumbência de acompanhar os Grupos que solicitavam ajuda. A distinção entre esses dois grupos baseava-se na especificidade das tarefas e não refletia nenhuma hierarquização formal dentro do grupo como um todo. O ideário da Basenova foi explicitado em uma “carta de princípios” com quatorze itens. Tal carta evidenciava a filosofia, os objetivos e a prática da Basenova. O componente ideológico pode ser representado nos itens que seguem. (reproduzidos parcialmente da referida carta) “… incentiva o desenvolvimento da autonomia dos grupos, não só através de atividades econômicas conjuntas e solidárias que lhes diminuam a dependência, mas também pela constituição de uma unidade social com organização e dinâmica próprias, com vistas à superação dos mecanismos de controle político e econômico”. “… apóia iniciativas que objetivem o crescimento pessoal de todos os membros da comunidade através da educação, saúde, lazer, das formas grupais de interação na produção, das decisões comunitárias, da criação artística, suporte psicológico etc.”. Havia, por parte da maioria dos agentes, dificuldade em diferenciar os papéis da Basenova e da APSD. De certa maneira, as delimitações eram tênues e as atribuições, especialmente na tarefa de acompanhamento dos Grupos, se sobrepunham, dificultando a identificação do agente a partir da tarefa requerida. “Eu ainda confundo muito sobre a Basenova e a Associação, mas acho que a Basenova é uma organização que quer ajudar a população… os Grupos né. Então, por exemplo, nós estamos reunidos com um grupo e discutindo o tema empresa, se pode fazer uma microempresa, o que é 139 preciso, tal. A gente está fazendo isso enquanto Basenova, mas podia ser como Associação também né?” (A12). A maioria dos agentes representava a Basenova como uma entidade de ajuda aos Grupos e que atuava complementando a APSD. “Eu vejo assim, como não foi possível a Associação acompanhar os Grupos devido a falta de espaço político, então foi criada a Basenova (…) … As pessoas que são da Associação são da Basenova também”. (A29). As pessoas pertencentes ao subgrupo responsável pela orientação ideológica da entidade, ao explicitarem os objetivos da Basenova esforçavam-se por evitar qualquer contradição da prática junto aos GS com os princípios norteadores, como por exemplo a questão da autonomia. …”proposta, o objetivo é esse de organizar a produção, dar assessoria contábil, jurídica, é batalhar a grana, é ajudar… A gente não tem o objetivo de estar resolvendo, mas de simplesmente estar propiciando que o movimento gere soluções”. (A8). Podia-se observar que, derivada da filosofia da entidade, havia uma grande expectativa quanto ao resultado final da prática. Esperava-se que os Grupos se transformassem em unidades que intercambiassem produtos e serviços, o que lhes traria gradativamente maior autonomia, pela possibilidade de uma produção extensa de vários itens de produtos de consumo. Em outras palavras, a autonomia seria alcançada quando os Grupos, entre si, se tornassem auto-suficientes, produzindo, principalmente, alimentos destinados ao consumo e à troca. “A Basenova pretende ajudar os grupos a desenvolver sua autonomia em relação ao sistema. Por exemplo, se o Grupo plantar verduras ele não depende da feira, ou do supermercado. É claro que ele não pode produzir tudo, mas muita coisa ele pode fazer, e é essa a proposta da Basenova”. (A2). 140 Foi com esse ideário sobre a autonomia que a Basenova se apresentou aos Grupos, quando de sua formação, usando uma publicação no jornal Intercarta. “Muitos Grupos estão procurando realizar atividades produtivas (…)”. Essas atividades podem ser pensadas de duas maneiras: 1) com o objetivo de produzir para vender e conseguir dinheiro para o Grupo; 2) com o objetivo de produzir para o consumo própio. Na primeira dessas maneiras, o grupo funciona como uma pequena empresa (…) Na segunda, o Grupo pode ganhar certa autonomia no atendimento de algumas de suas necessidades. E pode aumentar essa autonomia fazendo intercâmbio com outros Grupos que produz (SIC) coisas que ele não produz. Algumas pessoas (…) decidiram se organizar para oferecer ajuda técnica e educacional aos Grupos que desenvolvam atividades dentro dessa segunda maneira (…)” (Autonomia dos Grupos: Basenova, uma proposta de ajuda. Intercarta: outubro de 1984)”. Embora na prática, a Basenova tenha modificado sua proposta inicial, atuando igualmente com grupos que produziam para vender, assessorando-os, inclusive na questão de organização de microempresa, o discurso da autonomia, por meio da produção e troca, continuou presente entre os membros dessa entidade. Com a dispersão do MLCD, dos Grupos de Solidariedade e a redefinição do trabalho da APSD, a Basenova encerrou suas atividades. 3. Associação para o Desenvolvimento da Intercomunicação A história da Associação para o Desenvolvimento da intercomunicação se relaciona diretamente com um projeto denominado de “Jornadas Internacionais por uma Sociedade Superando as Dominações”, lançada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em 1976. 141 O projeto das “Jornadas” deveria facilitar o intercâmbio entre pessoas e grupos de diversos países com o objetivo de divulgação das “lutas populares contra a dominação”. A preparação do projeto resultou em um intercâmbio preliminar entre pessoas e associações de diferentes lugares. Muitas associações do Brasil e do exterior apoiaram a iniciativa, cujo primeiro encontro ocorreu na cidade de João Pessoa em 1976. Após esse encontro, o Vaticano interferiu e a CNBB deixou de aparecer como patrocinadora do projeto das “jornadas”. Apesar da intervenção do Vaticano, os bispos comprometidos com o empreendimento mantiveram o seu apoio buscando preservar os ganhos obtidos, embora evitassem vincular o projeto com a igreja. A idéia central era a da divulgação de experiências contra qualquer forma de dominação, que seriam relatadas pelas pessoas que as vivenciavam. Esse tipo de relato foi denominado de intercomunicação horizontal. “O encontro projetado nunca se realizou: as reações contra esta intercomunicação horizontal levaram o Vaticano a interferir (…) a intercomunicação continuou, apoiada não mais pela CNBB como instituição, mas pelos bispos que haviam lançado a iniciativa e por aproximadamente trinta organizações regionais e internacionais que haviam aderido ao projeto inicial” (Documento: Novas Orientações para a Intercomunicação Internacional – março de 1984). O processo de comunicação proposto pelas jornadas internacionais desdobrouse em três iniciativas de documentação da experiência de intercomunicação. Uma delas resultou na publicação de um livro9 pela CNBB relatando experiências bem sucedidas contra a dominação, que deveria servir de base para novas tentativas de organização popular. 142 Como resultado dos primeiros intercâmbios na fase preparatória das jornadas, organizou-se, em vários países, grupos que passaram a centralizar e publicar relatos de experiências em português, francês, inglês e espanhol. Tais publicações eram feitas em um jornal bimestral chamado “Notas & Notícias”. No Brasil, a experiência da intercomunicação centralizou-se em São Paulo, através da Associação para o Desenvolvimento da Intercomunicação, que juntamente com a APSD decidiram-se pela criação de um jornal denominado Intercarta, onde os integrantes dos Grupos de Solidariedade relatariam suas experiências. Tal projeto revelava, a nível local certa similaridade, em termos de objetivos, com “Notas & Notícias”, no plano internacional. “A Intercarta é uma contribuição e uma outra associação, chamada Intercomunicação, que têm outros projetos além da Intercarta. A Intercarta tem a mesma visão da Associação (APSD), por isso elas atuam em conjunto”. (A7). A Intercarta, como um veículo de Intercomunicação horizontal, deveria se inserir na perspectiva que norteava o projeto inicial da CNBB, ou seja, da ausência de controle sobre a forma e conteúdo das experiências relatadas, que seriam publicadas, segundo a ótica de quem as vivenciou. Após uma tentativa com vários jornalistas, o trabalho de organização da Intercarta (excetuando a parte gráfica) centralizou-se em uma única pessoa, também jornalista, cujo principal papel era o de incentivador de relatos das experiências vividas pelos grupos. 9 “Por uma sociedade superando as denominações”. São Paulo: Edições Paulina, Caderno 19, 1978. 143 O jornal era de formato tablóide com um número de páginas que variava de acordo com a disposição dos grupos para enviar matérias. A sua circulação era mensal e, do número zero, de abril de 1984, ao número 21, de fevereiro de 1986, ele deixou de circular apenas no mês de junho de 1985. Durante esse período, teve uma média mensal de quatro páginas. Seu único editorial (reproduzido parcialmente), nessas vinte e duas edições, apareceu no número zero e explicitava a origem, o objetivo e o procedimento do jornal. “A Associação para o Desenvolvimento da Intercomunicação, que tem como objetivo estimular e fortalecer iniciativas que experimentam formas alternativas de exercício do poder sem dominação (…) pública a Intercarta (…) Eles, os jornalistas simplesmente colocarão no papel, sem censura nem manipulação, o que os leitores de Intercarta disserem que deve ser colocado, na linguagem e do jeito que determinarem” (Intercarta: abril de 1984). A Intercarta era, em grande parte, preenchida por matérias assinadas pelos Grupos de Solidariedade relatando experiências, criticando autoridades governamentais e descrevendo reivindicações setoriais. Servia também, como instrumento de comunicação da Associação, da Basenova, de órgãos governamentais e de pessoas, que escreviam sobre assuntos teoricamente do interesse dos Grupos. A sua distribuição aos membros dos GS era feita pelos diretores desses grupos, em reunião mensal. Aos contribuintes da Associação a Intercarta era enviada, pelo correio. O Jornalista responsável pela Intercarta, a definia como um veículo que se diferenciava de seus homônimos em termos de neutralidade sobre as matérias e de ausência de programa e de pauta. “No fundo, a Intercarta não é um jornal no sentido literal de jornal que vai atrás dos fatos (…) É um espaço de intercomunicação (…) Não tem pauta, nem programa pré-determinado (…) Não interfere no que o grupo escreve, nem como escreve”. (A2). 144 É possível afirmar, com base nas publicações dos Grupos no jornal Intercarta e nas entrevistas dos agentes, que este veículo era avaliado positivamente pelos integrantes dos SG, em especial pela possibilidade de troca de experiência. “A gente acha bom o Intercarta porque todo mundo que lê fica sabendo o que os grupos estão fazendo” (A14). “Nosso Grupo aproveitou uma vez uma notícia que saiu no Intercarta. A gente se interessou e então procuramos o Grupo autor da matéria para saber. Era um negócio de fazer compra no Ceasa. Nesse particular é interessante esse trabalho da Intercarta” (A20). Enquanto veículo dos relatos dos Grupos de Solidariedade, a última edição da Intercarta foi a de número 22, de 4 páginas, no mês de abril, em 1986. 145 4. O Centro Social de São Francisco de Assis. O Centro Social de São Francisco de Assis era uma associação com constituição jurídica, destinada à assistência social, ligada à Igreja de São Francisco de Assis. O Centro localizava-se na Vila Paranaguá no distrito de Ermelino Matarazzo, mas atuava em vários bairros da região por meio dos chamados centros comunitários. Além de propiciar as bases legais para o funcionamento dos GS, tomando-os como seus departamentos, o Centro Social oferecia-lhes também espaço físico necessário às suas atividades. “A entidade, o Centro Social do qual eu faço parte é que fornece a parte burocrático-legal para os GS (…) Atualmente nós temos uns vinte Grupos”. (A27). A importância do Centro Social para o MLCD estava ligada à postura da Igreja de São Francisco de Assis diante dos Movimentos Populares e particularmente de seu pároco. A Igreja de São Francisco possuía uma tradição de trabalhos comunitários. Localizada em um dos distritos mais pobres do município de São Paulo, tendo por vizinhança a favela Nossa Senhora Aparecida com uma população aproximada de 15 mil pessoas, havia adquirido certa familiaridade no trato das dificuldades dos habitantes do bairro, atuando em uma perspectiva da Teologia da Libertação. “Então temos na Igreja essas duas dimensões. A evangélica é essa leitura que a gente vai fazendo do evangelho onde, o cristão vai percebendo que lutar pela vida é justamente ser mais cristão (…) A dimensão política é a percepção dos direitos… A gente participa de uma Igreja que incentiva as organizações populares”. (A27). 146 O sacerdote dessa igreja viera há quatro anos, do interior, onde havia encontrado dificuldades para imprimir “um trabalho de conscientização”. Na Igreja de São Francisco de Assis, além das atividades religiosas propriamente ditas, era diretor do Centro Social que construía centros comunitários em vários bairros e, ao mesmo tempo, incentivava a utilização desses centros pelos movimentos populares e grupos comunitários em determinada forma de organização. Cada centro comunitário da Igreja se tornava, também, espaço destinado ao lazer da população, onde se organizavam bailes, quermesses, bingos etc. “É difícil existir uma entidade aqui no bairro que tenha tantos espaços como tem a Igreja. São dezoito comunidades onde têm centro comunitário. Atualmente nós estamos trabalhando e construindo mais quatro centros comunitários. Então a gente coloca tudo isso à disposição do movimento”. (A27). Além de oferecer o espaço e atuar com lideranças leigas, a Igreja de São Francisco organizava, ela própria, algumas das atividades como encontros culturais, debates políticos e firmes, abertos à comunidade em geral. Para as lideranças das CEBs e Pastorais, organizava cursos regulares, destinados à formação política. “Nós criamos uma escola de fé e de participação política. É uma escola de dois anos com encontros quinzenais, através da Pastoral dos Direitos Humanos (…) Nesse semestre é tudo sobre política (…) Fizemos essa escola para esse pessoal que avança mais… é um grupos que já começa a perceber, por exemplo, a luta de classe”. (A27). A Igreja, portanto, oferecia à população, usando o centro comunitário, espaço e oportunidade de reuniões, funcionado como catalisadora de grupos de moradores que sentiam as mesmas necessidades, facilitando a emergência de vários movimentos populares. Entre esses, os mais combativos eram: Movimento da Terra, Movimento dos 147 Desempregados, Movimento pela Creche, Movimento do Hospital de Ermelino Matarazzo e Movimento da Educação da Zona Leste. A Igreja de São Francisco de Assis era relativamente pequena, com uma nave que poderia abrigar aproximadamente oitenta pessoas. A sua porta central localizava-se um biombo com quadro de avisos, contendo máximas no espírito da teologia da libertação e um pôster, comum nas associações de classes, em defesa do povo nicaragüense: “Tirem as Mãos da Nicarágua”. Após a nave, havia um corredor que conduzia a uma escada e a duas salas, utilizadas, uma como sacristia e, a outra, para reuniões. No piso superior havia algumas divisórias, onde localizava uma sala, usada pelo diretor do Centro Social e escritório. No escritório funcionava uma espécie de central dos Movimentos Populares incentivados pela Igreja, onde trabalhavam alguns funcionários. Defronte à Igreja, localizava-se o centro comunitário, um prédio com dois pavimentos situado em um terreno em declive. Nesse prédio existiam salas de aulas, cozinha, almoxarifado, gráfica, farmácia e um amplo salão com capacidade para abrigar cerca de quinhentas pessoas. Uma outra atividade ligada à estrutura do Centro Social era a confecção e impressão de materiais como programas de cursos, resumos de palestras, apostilas para aulas, convocatórias de atividades, cantos de animação e cadernos historiando os Movimentos Populares. Além desse material impresso, a Igreja de São Francisco auxiliava na organização, em vários conjuntos populares, de um sistema de transmissão denominado de “Rádio do Povo”, com programação regular, destinada à mobilização da comunidade em torno de reivindicações para a resolução de problemas próprios. Um exemplo dessa 148 experiência localizou-se na favela Nossa Senhora Aparecida, conforme na ilustração que segue. “Diante da falta de leitura de grande parte dos moradores da favela Nossa Senhora Aparecida, nasceu a Rádio do Povo, um meio de comunicação não escrita, onde 13 mil habitantes da vila recebem informações de reuniões, encontros, mutirões (…) A Rádio tem um ano de atividade e está à disposição de qualquer comunidade que esteja interessada nessa nova forma de comunicação” (Caderno: Movimentos Populares (3). Equipe de Coordenação dos Movimentos Populares de Ermelino Matarazzo). Algumas das lideranças ligadas aos centros comunitário, integrantes de pastorais e CEB participavam ativamente como membros dos Grupos de Solidariedade e também de outros movimentos sob a influência da Igreja de São Francisco. 5. O Comitê de Luta Contra o Desemprego de Ermelino Matarazzo A região de Ermelino Matarazzo se caracterizava por um parque fabril de indústrias de pequeno porte (até 100 empregados)1 que, na crise recessiva, foi duramente atingido. Muitas indústrias paralisaram por completo suas atividades e outras diminuíram seu quadro de funcionários. Diante dessa situação a idéia de formação de Grupos de Solidariedade, possuía uma grande atratividade. “No Jardim Veronia a gente foi convidando algumas pessoas e ficamos esperando umas oitenta. Só que na hora marcada tinha mais de duzentas, então tivemos que formar dois grupos”. (A24). A partir da formação de cinco Grupos de Solidariedade em diversos bairros do distrito de Ermelino Matarazzo, como Vila São Francisco, Jardim Veronia, Vila Paranaguá e parque Borurussu foram organizadas reuniões semanais entre algumas 1 Atlas das Administrações Regionais. Dossiê 013 – Prefeitura Municipal de São Paulo. 149 lideranças que atuaram na formação desses grupos e os seus diretores. A principio as reuniões não obedeciam a uma programação prévia, mas permitiram uma reflexão sobre a importância de uma unidade de atuação para os Grupos nas questões mais comuns. Esses encontros podem ser considerados como o embrião do Comitê de Luta Contra o Desemprego de Ermelino Matarazzo. O Comitê de Luta Contra o Desemprego de Ermelino Matarazzo (CLCD-EM), foi criado como uma associação civil, sem fins lucrativos, no dia 29 de setembro de 1984 e funcionava em local cedido na sede do diretório do Partido dos Trabalhadores. O CLCD-EM possuía, conforme seu estatuto, objetivos que podiam ser resumidos em termos de: desenvolvimento da vida comunitária e organização da população do bairro na luta contra o desemprego. Embora criado a partir dos Grupos de Solidariedade, o seu estatuto não fazia qualquer referência aos mesmos. De acordo com seu estatuto o CLCD-EM se constituiria de pessoas independentemente de filiação grupal. “O Comitê de Luta Contra o Desemprego de Ermelino Matarazzo é constituído por número ilimitado de sócios, sendo que todos os candidatos deverão requerer sua admissão à Diretoria, preenchendo a proposta respectiva” (Estatuto do CLCD: Cap.V, Art. 27). Na prática, porém, o CLCD-EM era formado pelos diretores dos Grupos de Solidariedade ligados ao Centro Social de São Francisco de Assis, que tinham o direito a voto nas assembléias. Ao final de 1985, o Comitê era definido como uma instância dos GS e os que se afastaram foram tidos pelos demais como “rebeldes”, “alheios às questões políticas” e “desinteressados das atividades produtivas” e “voltados unicamente para o auxílio da APSD”. 150 O crescimento dos Grupos de Solidariedade em Ermelino Matarazzo foi rápido. Em agosto de 1985 o bairro possuía muitos grupos, sendo que oito deles estavam filiados ao Comitê e haviam sido formados como departamento do Centro Social de São Francisco. “Hoje, nove meses após o início de um trabalho, somos oito Grupos organizados em nosso bairro e estamos prestes a iniciar novos grupos” (Histórico de Nossa Luta – CLCD - Intercarta: janeiro de 1985). Buscando visibilidade na própria região e desvinculado do Movimento de Luta Contra o Desemprego, o CLCD-EM conduziu uma passeata de protesto contra o desemprego, ainda em 1984, logo após a sua formação. Posteriormente participou de outros movimentos, como o de luta pela terra e colaborou ativamente na greve dos bancários em Ermelino Matarazzo em 1985. “Em 14 de agosto, realizamos uma passeata, do largo 13 de Maio até a Ponte Rasa, que lá culminou com a realização de um pedágio, que foi notícia em todos os jornais”. (Comitê de Luta Contra o Desemprego) Intercarta: janeiro de 1985. Com relação à participação do Comitê no movimento, observou-se que os GS que lhes eram filiados tendiam a votar nas propostas discutidas no próprio CLCD-EM, contra propostas apresentadas por Grupos de outras regiões. Quando da ocasião da caravana do Movimento até o palácio do Governo, o CLCD-EM unificou a participação dos Grupos de Solidariedade de Ermelino Matarazzo e se fez presente em várias comissões de organização do evento e na comissão de negociação com representantes do Governo do Estado. “O Comitê tem um objetivo de unificar a atuação dos Grupos, de ajudar na sua organização e criar um espaço mais político (…) Então o pessoal começa a ter uma linha de trabalho mais parecida” (A29). 151 “O setor de Ermelino Matarazzo tem u peso muito grande no Movimento. A nível de Plenária Estadual Contra o Desemprego, as propostas tiradas no Comitê são levadas já discutidas”. (A25). Com o declínio do MLCD, o Comitê se voltou predominantemente para o próprio bairro. Alguns dos coordenadores tinham interesses eleitorais próprios, o que causava alguma dificuldade na separação dos papéis dessas lideranças, que tendiam a imprimir ao Comitê uma ação excessivamente político-partidária. Pessoas ligadas à APSD criticavam tal postura, entendendo que isso dificultava a coesão grupal. “… isso eu tenho bem claro, os Grupos criados ou inspirados e com atuação direta dos militantes partidários um por um foi para as cucuias, porque houve a reprodução da forma de comportamento”. (A1). O CLCD-EM acabou se transformando em um espaço onde o conflito entre Grupos e entre estes e a APSD e entre esta e o próprio comitê eram mais explicitados sem, contudo, serem solucionados. Um dos problemas que dava margem a dissensões era o financeiro. A permanente falta de recursos levou à decisão de se cobrar dos grupos filiados uma percentagem do auxílio que estes recebiam da APSD. Embora fosse uma decisão coletiva, com o passar do tempo essa providência gerou descontentamentos entre alguns diretores dos Grupos, que passaram a levantar suspeita sobre o uso do dinheiro arrecadado. Argumentava-se que o Comitê movimentava muito dinheiro, que não era correto pagar alguns diretores que atuavam em comissão do Comitê e que o coordenador utilizava parte do dinheiro em benefício próprio. “O pessoal vê as notas fiscais, mas decerto pensam que é muito dinheiro (…) Tem Grupo que não dá o dinheiro e fica fazendo a cabeça dos outros: ‘Vocês dão 20 por cento porque são bobos. Esse dinheiro é para o J. tomar cerveja’ (…) Eles querem que a gente faça todas as atividades sem gastar. Tem que comprar faixa, panfleto, dar passe de ônibus para quem sai procurar emprego e comida. O dinheiro acaba. Agora, o J. não é isso o que eles falam. Eu sei, eu observei, eu 152 pesquisei ele. Eu todo dia estou lá na sede. Ele fala: ‘Vamos lá em casa, almoçar lá com a gente’. Eu vou e estou vendo tudo, até o que ele come. Não! Ele não é nada daquilo que estão falando”. (A20). As críticas não eram colocadas nas reuniões, mas abordadas entre pessoas, evitando-se falar diretamente ao interessado que, no entanto, acabava tomando ciência por meio de terceiros, o que criava uma situação de “mal-estar” razoavelmente generalizado. O descontentamento com o CLCD-EM e toda a situação parecia refletir-se no relacionamento entre os Grupos. Observam-se referências depreciativas apontando para algumas características de Grupos, como a composição por favelados, ou para o comportamento de alguns membros, generalizados para o grupo como um todo, como por exemplo, o uso de bebidas alcoólicas. Tais referências evidenciavam a existência de subgrupos e oposição entre eles. Observou-se também abandono do Comitê por alguns grupos. Com as primeiras defecções, foram feitas algumas tentativas para manter a coesão do Comitê. Uma tentativa foi a realização de um encontro denominado de avaliativo, que ocorreu nos dias 21 de setembro, cinco e 10 de outubro, em um colégio, nas dependências de um Posto de Saúde e no salão comunitário da Igreja de São Francisco no Parque Boturussu, respectivamente. Uma das resoluções desse encontro consistiu em transferir a responsabilidade legal sobre os Grupos, do Centro Social São Francisco de Assis para o Comitê de Luta Contra o Desemprego de Ermelino Matarazzo. Na prática, tal medida transformava os GS em departamentos do Comitê, dificultando as tentativas de afastamento, uma vez que a APSD não repassava auxílio para grupos independentes. O próprio diretor do Centro Social foi solicitado a notificar os grupos dessa decisão, o que conferia à resolução um caráter definitivo. 153 “… envio de documento ao padre E., no sentido de informar-lhe sobre as resoluções do 1º Encontro do Comitê e ainda solicitar-lhe que visite todos os grupos para informar sobre a decisão do Centro Social de passar ao Comitê as responsabilidades e poder de encaminhamento e direcionamento dos Grupos de Solidariedade”. (Documento: Resumo do 1º Encontro do Comitê de Luta Contra o Desemprego). Essa prerrogativa diminuiu o conflito, pelo menos momentaneamente, uma vez que o apoio do Centro Social, de certa forma, representava o apoio da Igreja de São Francisco. Ainda durante o ano de 1985, o CLCD-EM solicitou a colaboração do pesquisador, na organização, junto com alguns de seus membros interessados, de um “grupo psicológico”. Tal grupo se reuniu duas vezes por semana, em uma sala cedida pela Igreja de São Francisco de Assis, de junho a agosto do mesmo ano, com uma média de 12 participantes. Nessas reuniões foram abordados problemas de funcionamento dos GS e do Comitê e habilidades consideradas próprias da militância, tais como falar em público, dirigir reuniões e assembléias, fazer recrutamento, distribuir tarefas, entrevistar, opinar, contrapor etc. A partir de setembro de 1985, o fundo de Solidariedade do Palácio do Governo iniciou a liberação de equipamentos e maquinários para os GS que os haviam solicitado nos projetos de atividades produtivas. O Comitê centralizou as máquinas de costura que recebeu do Fundo de Solidariedade, em um barracão cedido por um de seus membros. Essa centralização resultou no abandono do Comitê pelo Grupo Jardim Veronia Contra o Desemprego, que passou a organizar a sua atividade produtiva independentemente do mesmo. Já no início do ano de 1986, com o MLCD totalmente disperso, o Comitê passou a existir em função 154 da oficina de costura, enquanto que suas principais lideranças se dedicavam à campanha eleitoral. 155 OS ELEMENTOS DA AÇÃO COLETIVA Na análise dos elementos que compuseram o Movimento de Luta Contra o Desemprego pode-se distinguir, em um primeiro nível, os grupos de que era formado e, em um nível mais molecular, os agentes que compunham esses grupos e/ou que participavam das entidades anteriormente descritas. Considerando-se os grupos, o movimento foi composto basicamente pelos Comitês de Luta Contra o Desemprego (CLCD) e pelos Grupos de Solidariedade (GS). Em um primeiro momento, da gênese até o acampamento do Ibirapuera, os Comitês constituíram a base do movimento; desse período até após a invasão do SINE, os Comitês se esvaziaram e o movimento se compôs exclusivamente pelos GS. Esta parte do trabalho descreve os Comitês de Luta Contra o Desemprego, os Grupos de Solidariedade e os agentes que se destacaram no movimento e nas entidades envolvidas na dinâmica gerada pelo mesmo. A diferença em termos de formalização na constituição dos Comitês de Luta Contra o Desemprego e dos Grupos de Solidariedade indicou a possibilidade de uma descrição sumarizada dos primeiros e, devido à sua maior complexidade, a necessidade de uma descrição mais detalhada dos segundos. A. Os Comitês de Luta Contra o Desemprego A denominação de “Comitê de Luta Contra o Desemprego”, ou simplesmente Comitê, utilizada pela imprensa para designar qualquer grupo organizado que se manifestava contra o desemprego, somente foi consensualmente adotada pelo o 156 conjunto do movimento após o acampamento do Ibirapuera. Em São Bernardo, os desempregados se designavam por Comissão de Desempregados; em Embu e São Mateus a denominação era de Grupo de Desempregados. O primeiro grupo a utilizar o termo Comitê foi o de Santo Amaro. Os Comitês em geral se formavam a partir da ação de trabalhadores desempregados nas Pastorais Operárias (PO). No período de crise recessiva, as Pastorais se voltaram para a questão do desemprego promovendo encontros e debates. Esses encontros facilitavam a formação de pequenos núcleos de trabalhadores desempregados, alguns dos quais se transformaram em Comitês. Quanto à estrutura, os Comitês não possuíam estatutos ou regimentos, organizando-se de maneira informal. As tarefas eram executadas e/ou distribuídas por uma coordenação composta por três membros, eleitos em votação aberta. Na maioria das vezes os coordenadores eram membros das PO e/ou sindicatos. Os Comitês reuniam-se em locais cedidos pelas Igrejas, nos bairros, excetuando alguns poucos, como os de Santo Amaro, de São Bernardo do Campo e de São Caetano do Sul que faziam suas reuniões em Sindicatos. Os participantes dos Comitês eram em sua maioria desempregados, em geral de uma mesma categoria profissional (os de Santo Amaro, São Caetano e São Bernardo eram formados por metalúrgicos), ou moradores de um mesmo bairro, caso específico de Embú e São Mateus. Alguns Comitês alcançaram um tipo de organização mais complexa que os demais, como os Comitês de Santo Amaro, São Mateus, São Bernardo e Embu. O Comitê de Embu, por exemplo, se estruturou em três comissões: cadastro, finanças e divulgação. Os principais membros dessas comissões formavam uma comissão geral 157 que coordenava todas as demais atividades desenvolvidas. Em relação aos filiados, o Comitê de Embú os diferenciava em beneficiado e de apoio. O beneficiado era o desempregado que podia comprovar a situação de desemprego na carteira profissional e que se engajava nas atividades em curso. Este tinha direito de voto nas assembléias, de concorrer a cargos e de compartilhar das conquistas do Comitê, ou seja, receber parte de gêneros obtidos, candidatarem-se a possíveis ofertas de emprego etc. O participante de apoio referia-se àquelas pessoas que, embora não estando desempregados, colaboravam ativamente com o Comitê e com a luta contra o desemprego e, na medida em que participavam das atividades, também tinham direito de votar nas reuniões. Embora os Comitês empreendessem ações isoladas, como descritas no item “os primeiros conflitos emergentes” (p.66), eles se formavam na perspectiva mais global de pertencimento ao MLCD. Nesse sentido, todos os aspectos organizativos dos Comitês e de suas atividades voltavam-se, para as questões relacionadas ao desemprego e para a criação de conflito com as autoridades. A maioria dos Comitês debatia internamente o problema do desemprego, a política salarial, buscava articulação com sindicatos e participava das Plenárias e das manifestações do MLCD. As relações estabelecidas entre os Comitês e entre estes e os GS nem sempre eram desprovidas de conflitos. Alguns conflitos pareciam resultar de uma maior hegemonia de um ou alguns Comitês e dificultavam a manutenção da unidade do MLCD. Durante o episódio do acampamento do Ibirapuera observaram-se divergências entre o Comitê de Santo Amaro e a Coordenação Geral (formada por representantes de todos os comitês) sobre as estratégias de negociações adotadas, resultando em seu afastamento do movimento. Ainda durante o Acampamento, o Comitê de Embu liberou 158 uma reação à criação da APSD e se manteve, até a sua dispersão em 1985, crítico em relação a essa entidade e aos GS. Os Comitês recebiam apoio de entidades com conteúdo político como da Pastoral Operária e das Comunidades Eclesiais de Base. Esse apoio se refletia a nível organizacional e parece ter contribuído na caracterização política do movimento no período em que os Comitês predominavam. Além dessas associações receberam apoio de Sindicatos ligados a CUT e a CGT. A análise produzida sobre o movimento no I Encontro Estacional de Luta Contra o Desemprego, em abril de 1984 evidencia a preocupação dos Comitês com o caráter político do MLCD e a questão de sua autonomia. “Essa subordinação natural da luta contra o desemprego à luta sindical, é uma decorrência lógica da prática do movimento operário que tem, na luta sindical, sua expressão mais tradicional na resistência à exploração capitalista” (Documento do I Encontro Estadual de Luta Contra o Desemprego). A trajetória dos Comitês foi interrompida logo após a invasão do SINE, período em que se observou um aumento acentuado dos GS. A dispersão dos Comitês do ABC e de São Mateus, o abandono do movimento por algumas lideranças e a passagem de outras para os GS contribuiu para a dispersão final dos demais Comitês. B. Os Grupos de Solidariedade. O aspecto fundamental da formação dos Grupos de Solidariedade era a solidariedade, que se caracterizava, em um primeiro momento, pelo repasse de verbas da APSD e, em um segundo momento, pela colaboração das associações que os tomavam como departamentos. Essa era a orientação imprimida pela APSD, embora a dinâmica possibilitasse uma rede de relações no qual outras entidades participavam e 159 outras idéias e ações apareciam. Nessa dinâmica participavam órgãos do governo, grupos religiosos, associações de bairros, partidos políticos, cada qual com o seu objetivo e sua forma de atuação. Os GS se formavam com uma base estrutural aparentemente rígida, na medida em que se via impelido a aceitar um regimento determinado pela APSD. Apesar disso, tal regimento não impedia que eles desenvolvessem suas próprias normas e apresentassem características relacionadas à sua composição e de entidades afins. Dessa forma, os grupos se caracterizavam por uma estrutura formal, de origem definida pela Associação, e uma estrutura informal decorrente de sua dinâmica interna. Os elementos resultantes da estrutura formal eram: o registro no Cartório de Documentos e Títulos, o regimento e as atividades burocráticas que previam o recebimento do auxílio repassado. Os elementos decorrentes da estrutura informal eram: a denominação do grupo, a sua composição, o aspecto da religiosidade, a condição sócio-econômica e as atividades desenvolvidas. Se de um lado, a estrutura formal igualava os Grupos pela padronização das normas e burocracia, de outro lado, as diferentes combinações e a exacerbação de um ou mais elementos da estrutura informal produzia uma certa diferenciação entre estes. 1. Estrutura burocrático-formal O GS era, em seu aspecto legal, uma “divisão autônoma” de uma associação civil sem finalidade lucrativa, formado com um quarto do total de seus membros de pessoas empregadas. O grupo se filiava à Associação de Solidariedade no Desemprego, assinando um termo de adesão em que se comprometida a respeitar o regimento dessa entidade. Além disso, o grupo estabelecia, junto à APSD, um compromisso de se 160 esforçar para obter emprego para os seus membros e desenvolver alguma atividade comunitária. Ao assinar o termo de adesão, o grupo se candidatava a receber mensalmente um auxílio repassado pela APSD. A legalização do grupo consistia de seu registro em Cartório de Títulos e Documentos. O grupo recebia da Associação um modelo de regimento interno que devia permanecer inalterado, mas sobre o qual ele podia acrescentar outros itens. O regimento previa uma divisão incipiente de tarefas e atribuições pela designação de “serviços de secretaria, tesouraria e condução de reuniões”. Os trabalhos de secretaria se resumiam à confecção e leitura de atas e o de tesouraria, à elaboração e encaminhamento da lista de pessoas com direito a recebimento de auxílios através da APSD. A partir de sua constituição legal e das normas básicas estabelecidas no regimento, o grupo iniciava efetivamente o seu funcionamento. 2. Estrutura histórico-formal Se a documentação (registro no cartório, ata, regimento interno etc.) definia a estrutura burocrático-formal do grupo e a sua relação com a Associação, a dinâmica imprimida pelos seus integrantes revelava a sua estrutura informal. Essa estrutura informal foi observada através de dimensões tais como: denominação, composição, religiosidade, condição sócio-econômica e atividades. a. Denominação. A denominação do Grupo consistia de um processo de escolha que ocorria geralmente a partir de uma discussão pública, quando um ou mais nomes eram submetidos a uma votação. 161 Uma análise cuidadosa da relação dos 235 Grupos de Solidariedade e dos relatos dos integrantes dos grupos sobre a escolha dos nomes permitiu verificar que o local de inserção do grupo (vila, bairro, favela etc.) e a questão religiosa (santos de devoção, figuras da história da Igreja etc.) estavam na base de mais de 80 por cento das denominações dos grupos. O restante das denominações, à exceção de algumas, faziam referência às entidades a que os grupos se ligavam enquanto departamentos e a prováveis elementos próprios do discurso da APSD e BASENOVA, como por exemplo, “solidariedade”, “paz”, “esperança” etc. Finalmente, em cerca de 10 grupos, não foi possível identificar a origem de suas denominações. As considerações acima podem ser ilustradas pelas denominações que se seguem: “G. S. Arthur Alvin”; “G. S. Jardim Lisboa”; “G. S. São Francisco, Urgente”; “G. S. Nossa Senhora Aparecida”; “G. S. São Judas Tadeu”; “G. S. Residentes do Parque Bristol”; “G. S. Nova Esperança”; “G. S. Planeta Água” etc. Os dados de entrevista descrevem o processo de denominação e a justificativa das escolhas. “O nome do Grupo foi tirado em uma reunião. A gente começou na Vila Rica, na ‘Comunidade’. Então foi sugerido esse nome (‘Comunidade de Vila Rica’). Todo mundo aceitou porque todo mundo era dali, morava por ali na Vila Rica”. (A13). “O Grupo se chama ‘Dois de Maio’ porque esse é o nome da favela e porque no dia 2 de maio de 1980 foi realizado o I Congresso Nacional de Favelas”. (A21). “Foi falado em vários nomes. Esse (‘Boturussu com Fé e União’) foi escolhido porque o pessoal achou que era bom que devia ter muita fé e união para superar as dificuldades”. (A19). Esse processo, embora razoavelmente simples e rápido era importante para regularizar a situação do Grupo e encaminhar decisões posteriores sobre sua organização e funcionamento. 162 b. Composição. A composição dos GS apresentava as seguintes características: a) predominância de mulheres em relação a homens b) prevalência do oriundo do subemprego (homem ou mulher) em relação ao trabalhador desempregado possuidor de carteira profissional com registro; c) razoável contingente de pessoas dependentes de ajuda assistencial (aposentado do FUNRURAL e/ou doentes) que recebia a denominação genérica de “carente” e “velho”; d) pequeno número de trabalhador empregado e desempregado com experiência sindical. A predominância de mulheres parece relacionada, de um lado, ao seu envolvimento com as questões da sobrevivência e, por outro lado, à resistência do trabalhador desempregado de participara de grupos que, de alguma maneira, lhe parecessem de caráter assistencial ou caritativo. Os dados de observação nos Grupos, nas assembléias, e nas ações de rua não registraram evidências de discriminação negativa entre os participantes com base nas diferenças de sexo. Observou-se, também, que a maioria dos GS era dirigido por mulheres, embora as assembléias gerais fossem coordenadas por participantes do sexo masculino. O predomínio numérico das mulheres era realçado positivamente pelos membros dos sois sexos, afirmando-se que estas, “também estavam na luta”. Observou-se, com relação aos extratos aposentados e dependentes de assistência social, queixas generalizadas sobre a ausência de engajamento tanto para as atividades produtivas e quanto para as de protesto. Os Grupos que fugiam à característica de composição em termos do carente e aposentado e que contavam com certo número de trabalhadores com alguma prática sindical tendiam a expressar a sua diferenciação. 163 “Não, esse pessoal do grupo não vai para o lado assistencialista, vai para a luta (…) O meu grupo se coloca junto com aqueles que querem mudar o sistema”. (A10). “Das 50 pessoas participantes do grupo, umas 25 participam de vários movimentos (…) O pessoal que está no grupo, a maior parte é simpatizante do PT e não vou lá só por causa da cesta”. (A17). c. Religiosidade. A maior parte dos grupos foi formada através da ação de lideranças ligadas à Igreja Católica. Dentre os 235 GSs cadastrados na APSD ao final de 1985, aproximadamente 65 por cento funcionavam como departamentos de entidades católicas nos bairros, os chamados “Centros Sociais”. Os demais pertenciam a entidades leigas, sociedades amigos de bairros, clubes recreativos e clube de serviços. Apenas cinco grupos funcionavam como departamentos de entidades não católicas nos bairros, os chamados “Centros Sociais”. Estes se ligavam a sociedades de orientação protestante, umbandista e esotérica. A religiosidade se expressava também através das denominações dos Grupos com o nome de santos e de figuras da Igreja, conforme se referiu no “tópico denominação”. A prática religiosa era, contudo, separada da dinâmica e organização dos Grupos, à exceção de alguns, que sobrepunham rituais religiosos às suas atividades rotineiras, como se observa na descrição que segue. “… o meu grupo começa a reunião com uma oração (…) Todo mundo dá as mãos e rezam juntos (…) A gente tem muita fé e aí começa rezando. Qualquer um pode puxar a reza” (A19). Os seguidores de outras doutrinas religiosas que não a católica, provavelmente por se constituírem em menor número, raramente expressavam suas convicções religiosas. Segundo o relato de alguns agentes, no episódio da invasão do SINE, os partidários da Reforma manifestaram, em conjunto, a sua religiosidade. 164 “Foi uma coisa incrível né. A polícia ameaçando bater. Aí a gente botou assim: ficaram as crianças na frente, depois as mulheres e aí os homens (…) Então a gente começou a cantar o hino nacional. Aí a polícia desistiu, voltou para trás. Foi aquela festa. Então… os crentes começaram a fazer a reza deles. A dar graças. Gritavam: ‘Aleluia! Graças a Deus!’ Foi emocionante, muita gente chorou”. (A12). O relato evidencia que a expressão e sentimentos cívicos (cantar o hino nacional) e religiosos (dar graças e evocar o nome de Deus) algumas vezes se sobrepunham. Os GS com traço religiosos mais salientes tendiam a aceitar a filiação de idosos e carentes, no que eram criticados por aqueles que viam nisso uma acomodação e desmobilização. “O que um idoso vai querer? Ele quer apenas a cesta de alimento. Se você falar, vamos preparar uma manifestação, ele até pode ajudar, mas ele não vai (…) Ele tem medo… ele não pode enfrentar a polícia (…) Esses Grupos confundem, eles fazem assistencialismo sem poder”. (A24). Apesar dessas críticas, justificava-se tal atitude como um cumprimento de dever cristão e, além disso, defendia-se o caráter assistencial-religioso como fator de controle sobre certos padrões indesejáveis de conduta. “Já teve gente que veio visitar o meu Grupo e achou bonito rezar (…) Se tiver alguém disposto para fazer uma agressão, já não faz porque a reunião começa com uma reza (…) Os outros Grupos senão, principalmente os do Jardim Veronia. Cada coisa que eu vejo lá: agressão, gente de fogo (…) O meu Grupo nunca teve problema, gente bebendo, agredindo, nunca”. (A17). A predominância de Grupos ligados a entidades católicas não dificultava a convivência de pessoas de diferentes credos religiosos. Observava-se respeito e tolerância e não raramente pessoas de diferentes filiações religiosas partilhavam de cultos e orações umas das outras. 165 A observação dos GS através do acompanhamento, na região de Ermelino Matarazzo, em particular a dos Grupos que funcionavam como departamentos do Centro Social São Francisco de Assis, evidenciou uma relação e camaradagem entre os membros dos Grupos e o pároco, diretor do Centro Social. Os membros dos GS expressavam admiração com a atuação daquele sacerdote. “O padre T é um verdadeiro servo de Deus. Ele está junto com o povo no movimento. Se a Igreja tivesse bastante padre como esse daí, aí sim” (A14). As visitas aos GS, em várias regiões, não possibilitaram registro de controvérsias sobre princípios religiosos. Observou-se, porém, em alguns Grupos da Zona Sul da cidade, insatisfação dos membros dos GS com a atuação de religiosos (católicos de protestantes) em relação à atividades desenvolvidas. Essa questão foi abordada por um dos entrevistados que fazia acompanhamento dos Grupos de Solidariedade naquela região. “Eu disse: ‘ó menina não tem nenhuma paróquia aqui perto para vocês usarem as salas para as reuniões?’ A diretoria me disse: ‘Não! A paróquia que tem aqui tem umas freirinhas que ficam querendo meter o nariz em tudo’ (…) e também tem um Grupo onde o pastor dirige tudo,é ele quem regula as coisas, quem diz o que deve ser feito (…) (A3). d. Condição sócio-econômica. Embora a condição geral dos membros dos Grupos fosse de pobreza, os GS eram diferenciados entre si através da valorização dada à sua localização e ao seu engajamento em atividades produtivas. Os itens valorizados com relação à localização eram: proximidade da futura estação de metrô ou de terminal de ônibus, distanciamento de aglomerados de “maconheiros e vagabundos” e a existência de um comércio tido como “dinâmico”. Com relação às atividades produtivas, deus resultados positivos 166 derivavam em um maior reconhecimento do Grupo, que era apontado como modelo pelas entidades e frequentemente requerido para relatar sua experiência nos encontros dos GS patrocinados pela APSD e/ou Basenova e no Jornal Intercarta. Dentre os Grupos que desenvolveram atividades produtivas, um deles (“Grupo de Solidariedade do Jardim das Camélias”) se transformou em uma microempresa, utilizando a denominação de “Oficina de Costura Mulheres em Luta Contra o Desemprego”. Ouros itens de diferenciação positiva frequentemente abordados foram: combatividade, organização, ausência de favelados, não descriminação de favelados quando presentes no grupo e sobriedade e autocontrole. Os itens de diferenciação negativa com maior freqüência, mencionados, foram: ausência de combatividade, preponderância de favelados, discriminação aos membros moradores de favelas, agressividade e episódios de embriaguez. Quando o GS era formado unicamente por não favelados, havia uma tendência a ilustrar essa composição de forma positiva. Quando a formação compunha-se de favelados e não favelados observou-se casos de discriminação negativa do segmento de moradores da favela pelos moradores do bairro. Observou-se, igualmente, formação de subgrupos com base no local de residência (favela-bairro) e ausência de discriminação negativa de um segmento pelo outro. Os relatos abaixo parecem confirmar as observações. “O pessoal da favela é mais difícil de falar, parece que o pessoal tem medo, não sabe falar. Os outros (os não favelados) não, estes falam bastante”. (A11). “Tem Grupo que discrimina o pessoal da favela. A gente percebe uma separação. Agora no meu Grupo, isso foi superado. Há uma união muito bonita entre o pessoal favelado e não favelado (…) Qualquer um poderia ser diretor do Grupo, morados da favela ou não”. (A10). 167 “O meu Grupo não é da favela, apenas tem pessoas da favela nele (…) Se eu deixasse o Grupo, o pessoal da favela não votaria (para o cargo de diretor do Grupo) em alguém lá de baixo da favela. Eles iriam votar em alguém quem não fosse da favela. Os de cima (não moradores da favela) têm um maior preparo para dirigir o Grupo”. (A17). e. Atividades dos Grupos de Solidariedade. Uma parte dos GS se voltava quase que exclusivamente para o repasse de verbas, desenvolvendo as atividades inerentes ao recebimento e a distribuição da ajuda financeira mediada pela APSD. Uma outra parcela dos GS, se organizou também em função de outras atividades, que eram divulgadas no Jornal Intercarta. Para a APSD a divulgação era considerada um incentivo ao Grupo, colocando-o como um modelo a ser seguido. Observou-se dificuldades na implementação de muitos projetos. Tais dificuldades estavam relacionadas tanto à retração do mercado na época quanto a problemas organizacionais. Defendia-se a idéia de flexibilidade no horário de trabalho, de rodízio nas tarefas e, de dispensa de controles como, por exemplo, o registro de material consumido. Imprimia-se também, uma divisão igualitária dos lucros independentemente da produção individual. Tais decisões, embora não questionadas no interior do Grupo, geravam queixas quase sempre dirigidas à APSD que buscava contornar e solucionar os problemas. Dentre as atividades dos Grupos algumas delas objetivavam arrecadar recursos em dinheiro ou espécies, enquanto que outras se relacionavam a organização, lazer etc. As atividades dos GS relacionadas na Intercarta, foram classificadas e aparecem no quadro abaixo. _____________________________________________________________________________ ATIVIDADES 168 1. Produção. Trabalho artesanal, semi-industrial e industrial. Exemplos: pintura em pano de prato, tapetes de retalhos, tricô, fábrica de vassoura, fábrica de bloco, padaria etc. 2. Comércio. Venda de produtos fabricados pelo grupo e/ou compra e venda de produtos. Exemplos: venda de vassouras fabricadas pelo grupo a supermercado ou diretamente ao consumidor, compra de doces para revenda em feiras livres e/ou a domicílio. 3. Levantamento de recursos. Promoção de festividades e/ou campanhas para obtenção de recursos em dinheiro e/ou espécie. Exemplos: quermesses, bailes, rifas, visitas ao comércio solicitando prendas etc. 4. Abastecimento. Providências relacionadas a obtenção de gêneros de primeira necessidade. Exemplos: horta comunitária, compra comunitária, aproveitamento de sobras de verduras no CEASA, fabricação de pão para o consumo etc. 5. Relações públicas. Providências destinadas a favorecer o relacionamento amistoso com outros grupos, associações e comunidade em geral. Exemplos. Carta de agradecimento ou referências a benefícios recebidos, visitas a outros grupos etc. 6. Ajuda mútua. Prestação de serviços e/ou doações a pessoas do próprio grupo. Exemplos: mutirão para reformas de casas, solicitação de empregos para outro(s) do grupo, contribuição em dinheiro etc. 7. Ajuda a comunidade. Prestação de serviços e/ou doações a pessoas ou entidades do bairro onde o grupo se localiza. Exemplos: reformas de casas ameaçadas de desabamento, corte de cabelos de crianças e idosos, arrecadação de dinheiro para socorrer pessoas necessitada etc. 8. Educação. Instituição de cursos e reuniões destinados à alfabetização e/ou à formação crítica dos membros do grupo. Exemplos: curso ministrado pelo Mobral, método Paulo Freire pelo Vereda, palestras e debates sobre política econômica e o desemprego etc. 9. Saúde. Serviços relacionados ao restabelecimento da saúde. Exemplos: organização de farmácia comunitária, fundo destinado à compra de medicamentos, intercâmbio com serviços de saúde etc. 10. Política. Planejamento e participação em eventos de caráter reivindicativos. Exemplos: caravana ao Palácio do Governo, invasão do SINE, elaboração de panfleto etc. _____________________________________________________________________________ Quadro 4. Classes de Atividades desenvolvidas pelos Grupos de Solidariedade, relatadas na Intercarta. O estudo desse rol permite algumas considerações quanto à natureza das atividades. É possível afirmar que a produção, o comércio, o levantamento de recursos, o abastecimento, a ajuda mútua e as relações públicas se relacionam diretamente com os objetivos de sobrevivência dos membros dos Grupos. É interessante notar que tais objetivos foram, de maneira geral, minimizados nas entrevistas dos agentes, que deram ênfase a outras atividades. Apesar disso, a maioria dos agentes apontou a importância do GS na resolução desse problema para si próprio e para os demais. 169 Essas atividades (1,2,3,4,5,6) representavam, sem dúvida uma preocupação constante para esses Grupos. Se, de um lado, os integrantes dos GS ainda corriam o risco de não resolução de suas necessidades básicas, o que teoricamente podia representar uma forte motivação em direção à atividade produtiva, de outro lado, o apoio e o incentivo das entidades como a APSD e a Basenova atuavam reforçadoramente na consecução do mesmo alvo. O trabalho desenvolvido por essas associações evidencia o esforço nessa direção, como uma tentativa de prolongar a vida do grupo para além do período previsto de ajuda financeira, que tendia a se encerrar. Os órgãos governamentais também tinham interesse que os grupos desenvolvessem atividades produtivas e atuavam apoiando as iniciativas ou mesmo procurando criar condições para despertar a motivação destes. Observou-se várias publicações com esse objetivo, por exemplo, a SEMPLA (Secretaria Municipal do Planejamento) fez publicar na Intercarta (março de 1984), o lançamento do programa “feito em casa” incentivando o artesanato através de sua colocação no mercado. A atividade relações públicas, embora de outra natureza, aparece quase como um desdobramento do levantamento de recursos. O agradecimento pela ajuda recebida, o relato da colaboração de pessoas ou entidades, parecia ser um elo final de um processo iniciado na atividade 3. De certa forma, essa atividade cumpria duas funções: a principal, agradecer e manter a possibilidade de abertura de uma via de comunicação em relação aos colaboradores e, secundariamente, a de revelar um pouco da vida e funcionamento do grupo. As atividades de ajuda mútua e de ajuda á comunidade são de natureza semelhante, uma se referindo ao exercício da solidariedade entre pessoas do Grupo, e a outra entre estes e pessoas de for a. A ajuda prestada à comunidade quase que 170 invariavelmente era em termos de trabalho: corte de cabelos de idosos e crianças, reconstrução de casas derrubadas pelas chuvas, reforma de creches beneficentes, participação na sopa comunitária etc. As atividades educação e saúde possuem uma certa afinidade, ou seja, ambas se voltam diretamente para os membros do grupo. A primeira tem como objetivo a alfabetização ou sua complementação e a discussão política; a segunda, busca secundar o tratamento médico e promover a saúde. As duas podem ser entendidas como instrumento de superação das falhas do sistema na garantia da escolarização e no oferecimento de serviços ligados à saúde. Finalmente, a atividade política evidencia o nível de participação do Grupo em ações de protesto, seja no MLCD, seja em ações isoladas. Das atividades destinadas a obter recursos, algumas eram planejadas e executadas pelos próprios membros dos Grupos. Outras dependiam da elaboração de um projeto e contavam com o apoio da APSD e/ou Basenova. Tais projetos, embora simples, deviam conter: uma denominação, objetivos, breve justificativa, recursos necessários e disponíveis. Os projetos se destinavam à Secretaria de Promoção Social do Governo do Estado, que decidia quanto a sua viabilidade. Para os projetos aprovados, a Secretaria liberava maquinários e material considerado de consumo a ser empregado. Para fazer jus a essa contribuição, os GS assinava um contrato de responsabilidade que lhe dava o direito de uso dos maquinários, que deveriam, em caso de desistência do empreendimento, ser restituído aquele órgão público. 171 C. Os agentes sociais Esta parte do trabalho procura caracterizar os agentes entrevistados, membros do MLCD e/ou de entidades que participavam da dinâmica desenvolvida. Os principais aspectos a serem considerados são: história filiativa, característica prévia, determinantes do desemprego, situação de desemprego, recrutamento, motivo de filiação, atividades, crenças e aspirações. As classes “determinantes do desemprego” e “situação de desemprego” são provenientes dos relatos dos agentes que viveram tal situação; as demais se derivam do relato de todos os agentes. Dado que a história filiativa do agente permite “situá-lo” em relação à trajetória do MLCD e nas relações entre grupos, optou-se por analisar inicialmente, a sua filiação. 1. História filiativa. Nesta classe estão descritas as experiências filiativas dos agentes, considerando-se apenas aqueles Grupos ou entidades que atuavam em uma perspectiva de organização popular. As experiências filiativas prévias dos agentes foram então, agrupadas em três conjuntos: a) os filiados exclusivamente á entidades ligadas à Igreja e a entidades ligadas à Igreja e PT; b) os filiados exclusivamente aos Movimentos Populares e PT e apenas ao PT; c) os que não possuíam experiência filiativa anterior. A Figura 2, a seguir, mostra história de filiações dos agentes agrupados no primeiro conjunto. 172 Observa-se na figura acima que todos os agentes da APSD com experiência filiativa prévia vieram de entidades ligadas à Igreja. Os agentes A2, A6, A28 e A29 pertenciam às CUB’s (Comunidade Universitária de Base), enquanto o A7 era ligado à Cúria Metropolitana e, junto com outros participantes da Cúria e liderança das pastorais (Operária, Universitária etc.), formaram o GESD (Grupo Especial sobre o Desemprego) que foi o precursor da APSD. Dentre estes, apenas o A6 interrompeu na APSD seu percurso filiativo. O A2 foi o responsável pela Intercarta e associou-se a A7 e outros para formar a Basenova (BN). Os agentes A28 e A29 permaneceram, um longo período na APSD, adotando progressivamente uma posição crítica em relação a essa entidade e participando simultaneamente da Basenova. Desligaram-se da APSD e iniciaram participação ativa no CLCD-EM, ingressando depois no PT. O A17 participava da CEB (Comunidade Eclesial de Base), Após o desemprego ingressou em um GS e no CLCDEM, onde iniciou participação no MLCD e no MT (Movimento da Terra), de Ermelino Matarazzo e no PT. 173 Os demais agentes representados na Figura 2 pertenciam a entidades ligadas à Igreja e ao PT. O agente A26 manteve uma participação ativa na PO (Pastoral Operária) e no PT. No MLCD esteve presente desde as primeiras manifestações, auxiliou a formação do CLCD/Eb e fez parte da coordenação geral do acampamento do Ibirapuera e da invasão do SINE deixou o movimento criticando a perspectiva dada pelos GS. Os agentes A13 e A21 pertenciam às CEB’s e ao PT, sendo que o segundo estava ligado à Convergência Socialista no Partido dos Trabalhadores. A participação e ambos no MLCD ocorreu através do Comitê, foi escolhida para a função de diretora de um GS e finalmente foi convidada para colaborar na BN. O agente A21 com outros companheiros, formaram o GS “2 de julho” do qual foi indicado para diretor. A figura 3 mostra o conjunto de agentes cuja filiação de origem era o MP (Movimento Popular), o PT e ambos. 174 Os agentes A14, A3 e A8 se filiavam exclusivamente aos movimentos populares. O primeiro, ao MRRV (Movimento de Remoção por Risco de vida), que atuava pressionando a Prefeitura Municipal, especialmente nos períodos chuvosos, para a retirada de moradores cujas casas eram tidas como passíveis de desabamento. O agente A14 foi diretor do Grupo de Solidariedade “Jardim Verônia contra o Desemprego”. Após algum tempo ingressou no CLCD-EM e em seguida ao MLCD. Posteriormente iniciou participação nos Movimentos da Terra (MT) e do Hospital (MH) incentivados pela Igreja São Francisco de Assis. No período final da desarticulação do MLCD, A14 se afastou do CLCD por discordar da centralização das atividades produtivas, produzindo a primeira dissensão naquela entidade. O A3 participava no interior de Ceará de um movimento de educação popular, ligado à Igreja progressista. Deixou esse movimento para ingressar na APSD, abandonando-a após um ano e se filiou à “Vereda”, entidade ligada à educação popular. O agente A8 foi filiado aos movimentos ecológico e pacifista nos EUA. No Brasil, se interessou pelo trabalho da APSD, vindo a formar, juntamente com algumas lideranças dessa entidade, a Basenova, na qual era seu principal mentor. O agente A9 participou de alguns movimentos como o da saúde e contra loteamentos clandestinos e era filiado ao PT. Ingressou no CLCD de São Mateus e teve um papel de destaque no MLCD, participando do acampamento do Ibirapuera e da invasão do SINE. Manteve uma posição pró APSD e deixou o CLCD para ingressar em um GS no qual ocupou a função de diretor. Posteriormente ingressou na Basenova. Os agentes A24 e A25 possuem uma trajetória filiativa razoavelmente semelhante e simultânea. Ambos atuaram em movimentos populares em Ermelino Matarazzo e ingressaram no PT onde foram escolhidos para a função de coordenador de 175 diretório. Com o surgimento do MLCD tornaram-se membros do CLCD de São Mateus, mas A24 não chegou a participar do movimento. Quando a APSD começou a formar grupos de solidariedade na Zona Leste, os agentes A24 e A25 auxiliaram na formação de diversos grupos através do Centro Social da Igreja, mas não se inscreveram em nenhum deles. Finalmente, com a participação de alguns diretores dos GS e membros do PT, fundaram o CLCD-EM, no qual ocuparam a função de coordenadores. O A1 teve origem filiativa no PT, desde o início da fundação deste partido o qual abandonou em 1980. Ingressou na APSD desde a sua formação onde desempenhou um papel importante na coordenação das atividades dessa entidade. Juntamente com os agentes A7 e A8 auxiliou na criação da Basenova. Na figura 4 estão representados os agentes que não possuíam experiência filiativa prévia em grupos ou entidades que atuavam em uma perspectiva de organização popular. 176 O agente A27 era sacerdote da Igreja São Francisco de Assis e atuava com mais liberdade no papel de incentivador dos movimentos populares da região através do Centro Social São Francisco de Assis, entidade com formação jurídica ligada à Igreja. Os agentes A16, A22, A23 ingressaram nos GS e não registraram outras experiências filiativas posteriormente, nem mesmo participando do MLCD. A experiência filiativa dos agentes A4 e A5 também foi restrita. Ambos ingressaram na APSD onde participaram do setor de cadastramento e acompanhamento de grupos de solidariedade. O A5, após aproximadamente um ano de atividade, deixou aquela entidade. Já o A4 manteve-se na APSD e iniciou participação também na BN em atividade semelhante à realizada na primeira entidade. Os agentes A10 e A12, igualmente, ingressaram nos GS, participaram do MLCD e se filiaram ao PT. Posteriormente começaram a participar da BN. A experiência filiativa de A11 foi iniciada em um GS, onde passou a ocupar a função de tesoureiro. Depois começou a participar do MLCD, quando entrou para a BN e se filiou ou PT: posteriormente com a participação de antigos companheiros do GS,m formou uma microempresa (Me). Já os agentes A19 e A20 entraram como tesoureiro e diretor, respectivamente, em um GS, aderindo pouco depois ao CLCD-EM. Ambos participaram do MLCD e compuseram a caravana até ao Palácio dos Bandeirantes. Depois de algum tempo de atividades no CLCD-EM se filiaram ao PT através de A25 (coordenador do CLCDEM). Finalmente, os agentes A15 e A18 ingressaram nos GS, o primeiro na condição de colaborador e o segundo como desempregado. Ambos participaram do CLCD-EM. 177 2. Caracterização inicial dos agentes Os dados de identificação inicial dos agentes focalizavam os seguintes aspectos: filiação, sexo, atividade profissional, inserção ou não no mercado de trabalho e nível de escolaridade. A descrição das atividades de trabalho anteriormente exercidas ou em exercício segue a denominação dada pelo agente. No entanto, em relação à escolaridade, os agentes que relataram ter feito o curso primário (denominação que correspondia o período escolar até a 4ª série do 1º grau) foram classificados em termos de 1º grau incompleto. As relações entre atividade profissional e escolaridade dos agentes das entidades de grupos, são apresentados no Quadro 5. Associações APSD APSD + BN INT / BN BN CLCL-EM-BN GS-BN GS–CLCDEN Agent e Sexo Atividade Profissional 3 5 6 1 4 7 M F F M M M PROFESSOR/EDUCAÇAO POPULAR 2 8 28 29 9 10 11 12 13 14 15 17 18 19 20 16 M M F F M M M F F F F M F F F M JORNALISTA NUNCA TRABALHOU ASSISTENTE SOCIAL TÉCNICO EM METALURGIA TÉCNICO AGRÍCOLA PROFESSOR UNIVERS./ARQUITETO PROF. UNIVERS./ SOCIOL / PSICÓL. TÉCNICO RECUP./ AC. TRABALHO ENFERMEIRA BANCÁRIO ECRITURÁRIO COBRADOR DE ÔNIBUS OPERÁRIO INDUSTR. ALIMENTOS OPERÁRIO INDUST. TÊXTIL OPERÁRIO FABR. CX PAPELÃO NÃO ESPECIFICADO SEGURANÇA BANCÁRIO OPERÁRIO DE FIBRA DE SACOLAS COSTUREIRA OPERÁRIO INDUST. TÊXTIL OPERÁRIO INDUST. TÊXTIL 178 Desempr./ Empreg. (D ou E) E D E D D E E E E E D D D D D D D D D D D D Escolaridade 3º. GRAU 3º. GRAU 3º. GRAU 2º. GRAU 2º. GRAU 3º. GRAU GRAD. + PÓS- 3º. GRAU 3º. GRAU 3º. GRAU (incompleto) 3º. GRAU 2º. GRAU 2º. GRAU (incompleto) 1º. GRAU (incompleto) 1º. GRAU (incompleto) 1º. GRAU 1º. GRAU (incompleto) 3º. GRAU 2º. GRAU 1º. GRAU (incompleto) 1º. GRAU (incompleto) 1º. GRAU (incompleto) 1º. GRAU GS CLCD-EM IGREJA 21 22 23 24 25 26 2 M F M M M M M MARCENEIRO / CARPINTEIRO OPERÁRIO INDUSTR. CALÇADOS FRENTISTA EM METALURGIA SUPERVISOR SEGUR. TRABALHO COMERCIANTE OPERÁRIO EM METALURGIA SACERDOTE D D D D E D E 3º. GRAU (incompleto) 1º. GRAU 1º. GRAU 2º. GRAU 2º. GRAU (incompleto) 2º. GRAU (incompleto) 3º. GRAU Quadro 5. Características dos agentes entrevistados de acordo com filiação, sexo, profissão, inserção/não inserção no mercado de trabalho. Conforme se observa no quadro 5, 20 dos 27 agentes entrevistados (72%) experienciaram a situação de desempregado. Todos os agentes com escolaridade até o 1º grau eram desempregados e em sua maioria mulheres. Os agentes com níveis mais altos de escolaridade (A2, A6, A7, A8, A27, A28, A29) eram os que se mantinham empregados em suas atividades profissionais, exceção para os agentes A3, A5 e A21 que, mesmo com nível universitário, encontravam-se for a do mercado de trabalho. Os agentes que no quadro 5 aparecem na condição de empregados, pelas atividades exercidas e informações complementares, podem ser classificados em termos econômicos como pertencentes à classe média. Estes possuíam uma situação razoavelmente estável, nenhum se sentia ameaçado de perda do emprego e muitos possuíam familiares com trabalho fixo e regular. Dentre os classificados como desempregados, os agentes A1, A2, A3, A4, A5 encontraram na APSD e Intercarta uma oportunidade de prestação de serviços remunerados que os distinguiam dos demais e que, por outro lado, configurava uma situação mais próxima do trabalhador autônomo, com obrigações definidas por ambas as partes. Além disso, pagavam instituto (IAPAS) e mantinham uma atividade diária, rotineira. Embora suas atividades na APSD se diferenciassem daquelas exercidas no sistema produtivo, a maioria possuía algum tipo de experiência nas questões relativas à 179 organização de grupos e todos pareciam ter interesse na execução das novas tarefas. O A2 constituía uma exceção quanto ao exercício de atividade diferenciada, uma vez que exercia, na Intercarta, a mesma na qual se qualificou, ou seja, a de jornalista. A agente A6 era Assistente Social, funcionária pública lotada na SPS (Secretaria da Promoção Social) e, trabalhando inicialmente no cadastramento dos grupos de solidariedade (ver secção: Entidades na dinâmica do movimento - APSD), foi posteriormente cedida à Associação para a continuidade do mesmo trabalho sob a responsabilidade desta. Os agentes filiados aos GS e à Basenova (A9, A10, A11, A12 e A13) se mantiveram na condição de desempregos, embora A9, A12 e A13 recebessem uma ajuda financeira através de verba destinada a pagamento de assessoria de um deputado do PT que divida tal verba entre cinco pessoas com trânsito nos movimentos populares. Os demais dependiam da parte que lhes cabia do auxílio Os recrutadores: A1 e A6. Por outro lado, o recrutado por A1 também realizou o trabalho de recrutar. È possível supor que esse processo alcançasse um desdobramento mais extenso do que o apresentado na figura. Embora algumas entidades, como a APSD, Basenova e Intercarta, não tivessem nenhum interesse em aumentar demasiadamente os seus quadros de colaboradores, a formação de novos GS fazia parte de seus programas e, nesse sentido, a tarefa de recrutar se desdobrava teoricamente, ad infinitum. O mesmo processo também ocorria com o Centro Social São Francisco de Assis, ilustrado pela atuação de A27. Esse recrutou os agentes A24 e A25, que por seu turno recrutaram vários outros para o CLCD-EM. O Comitê de Luta Contra o Desemprego de Ermelino Matarazzo não somente atuava na formação de Grupos (objeto da atuação da APSD e Basenova) como também, por outro lado, se constituía de 180 um espaço de vivência política. Tal espaço derivava agentes para os Movimentos Populares, coordenados por A27, e para o Partido dos Trabalhadores, especificamente para o diretório, também coordenado por A24 e A25, repassado pela APSD, quase sempre transformado pelo próprio grupo em gênero de primeira necessidade. Todos eles recebiam da BN uma importância inferior a um salário mínimo a título de ajuda para as despesas de transporte e de alimentação quando estivessem a serviço da mesma. Tal ajuda dependia do êxito dessa entidade em “captar recursos”, uma vez que ela própria não gerava nenhuma receita. A situação deste era, portanto, instável e diferenciava-se da dos agentes da APSD. Os filiados aos GS e CLCD-EM (A14, A15, A17, A18, A19, A20) recebiam, á exceção de A15, ajuda dos grupos, sendo que A17, A18, A19 e A20 contavam ainda com ajuda financeira, correspondente a um terço de um salário mínimo dada pelo Comitê, com objetivos semelhantes àqueles da Basenova. Essas formas de rendimentos, somados aos obtidos com os bicos permitiamlhes um mínimo necessário à manutenção própria e da família. Os filiados exclusivamente aos GS (A16, A21, A22, A23) dependiam quase que totalmente do auxílio provido pelos GS e por isso eram os que se encontravam em situação de maior dificuldade econômica. Finalmente, a situação dos dois agentes sem trabalho (A24 e A25), pertencentes ao MLCD-EM se diferenciava entre si. O A24 dependia da ajuda de algum Grupo de Solidariedade participante do CLCD-EM, que lhe passava, mensalmente, uma cesta de gêneros de primeira necessidade e do trabalho assalariado da companheira. Já A24 possuía casa própria e vivia de rendas. 181 3. Determinantes do Desemprego. Os relatos dos agentes que experienciaram a situação de desemprego, sobre “a causa” de sua exclusão do sistema produtivo, permitiram identificar quatro classes de fatores determinantes: a aposentadoria compulsória, a opção pela militância no Movimento Popular, as reivindicações salariais e as restrição no mercado de trabalho. A distribuição dos agentes, conforme as “causas” relatadas pode ser vista na Figura 5. Observa-se na Figura 5 que a grande maioria foi dispensada do trabalho devido à restrição do mercado, ou seja, á recessão. As explicações para as demissões daqueles que se situaram nessa classe variaram em termos de “contenção de despesas”, “ajustamento às regras do mercado”, “diminuição dos serviços”, “racionalização do quadro de pessoal” etc. O A24, no entanto, interpretou a sua demissão e a de outros companheiros como uma política de substituição de mão-de-obra, que trocava os operários mais bem pagos por outros que se tornavam desvalorizados pela disponibilidade. 182 Os agentes A16, A17, A18 afirmaram ter deixado de trabalhar por “iniciativa própria”, mas suas descrições deixam claro que se viram na contingência de deixar o emprego por não conseguirem trocar de função na mesma empresa. O A17 relatou ter sido pressionado pela mãe a pedir demissão, porque ela via em seu trabalho de vigia bancário um risco de vida permanente. Os A16 e A18 relataram problemas de saúde relacionados às atividades desenvolvidas e, não obtendo transferência de setor, também se afastaram do trabalho. Na classe reivindicação, os A1 e A9 foram dispensados do trabalho após participação em movimento paredista. O primeiro teve seu nome incluído na “lista negra1” não obtendo trabalho por mais de um ano quando resolveu deixar o país. O segundo, era bancário e, após a participação na greve de 1980, foi colocado na “geladeira”, o que significava perder a função, as gratificações relacionadas e ficar sem tarefas. Essa situação se lhe configurou como uma dispensa disfarçada obrigando-o a aceitar proposta de acordo com o banco. Já A13 relatou exploração no trabalho devido a condição de mulher, o que motivou a sua participação em ações de reivindicações e denúncias, pelas quais foi despedida com outras companheiras. Os agentes A3 e A25 deixaram voluntariamente os trabalhos para se dedicarem aos MP. O primeiro era funcionário público em uma Universidade Federal da qual se demitiu para ir trabalhar em uma cidade no interior do Ceará junto a uma Igreja progressista. O segundo, após muito esforço construiu o que chamou de “um pequeno império econômico” que incluía duas casas, dois automóveis, uma motocicleta, uma loja de material de construção, um posto de gasolina, uma loja de discos e algumas bancas de revista. Este agente se desfez de todos os negócios com exceção de três 1 A “lista negra” inexiste de uma relação de operários ativistas e faz parte de um processo colaborativo entre as empresas que lhes restringe o mercado. Embora constantemente negada, a lista 183 bancas de revista arrendadas, com a justificativa de “detestar o trabalho no comércio” e de “interesse de participar dos movimentos populares”. 4. Situação de desemprego. A perda involuntária do emprego no período recessivo se caracterizou, conforme os relatos, em uma ameaça e sobrevivência. Os relatos da situação envolviam sentimentos, percepções e ações e foram agrupados em três subclasses. A primeira refere-se às tentativas empreendidas de obtenção de novo emprego, a segunda, diz respeito aos problemas decorrentes do desemprego e a terceira agrupa as estratégias de sobrevivência utilizadas. a. Tentativas de obter emprego. Todos os agentes que experienciaram a situação de desemprego relataram ter feito tentativas para alcançar uma nova ocupação. A procura de trabalho consistia de visitas às empresas ou às agências de empregos. Tais visitas ocorriam a partir de alguns indicadores aos quais os agentes tinham acesso: informações sobre a existência de vagas através de anúncios em jornais ou na própria empresa, avisos de amigos e expectativas de vagas pela constatação de ampliação ou reforma de setores da empresa e/ou rumor de dispensa de grande número de funcionários. A tentativa através de anúncios, embora aparentando maior probabilidade de sucesso, implicava em um maior custo de resposta. Havia as despesas com a compra de jornal e do transporte e o enfrentamento de longas filas. Além disso, o tempo empregado na procura implicava em redução do tempo disponível para os expedientes chamados bicos. é uma realidade para muitos operários. 184 A busca com base apenas na expectativa da existência de vagas era mais utilizada possivelmente porque o custo de resposta fosse mais baixo. Não havia a despesa com a compra de jornais, e a demora no atendimento era mínima. Por outro lado, o transporte para a procura de emprego era articulado com o dos bicos, ou seja, o agente mantinha-se atento aos indícios que surgissem no seu itinerário, e aproveitava a oportunidade para tentar obter emprego. Ocasionalmente, as tentativas empreendidas pelos agentes pareciam que se revestiriam de êxito, especialmente quanto estes passavam pelos processos seletivos das empresas e aguardavam respostas sobre os resultados. Contudo, devido ao número excessivo de candidatos, nem sempre os agentes eram atendidos. Além disso, ocorriam também os chamados “anúncios frios”, que se constituíam de uma estratégia publicitária de algumas empresas que os faziam publicar na imprensa, oferecendo vagas “para seu programa de expansão”. Os relatos dos agentes A10 e A12 apontaram, além dos obstáculos para obtenção de emprego, próprios da crise econômica, a discriminação, experienciada pela negritude e pela condição de mulher, respectivamente. Os agentes A9, A13 e A25 relataram a desistência de busca de emprego e de opção por dedicar todo o tempo disponível à militância partidária e aos movimentos populares. b. Conseqüência do desemprego Os relatos sobre as conseqüências do desemprego referem-se àquelas vividas pelo próprio agente e às experiências observadas com parentes, amigos e vizinhos. 185 Os agentes relataram como conseqüência da situação de desemprego, os próprios sentimentos de culpa, o isolamento social, a ameaça da fome, a desestruturação da família e a perda de bens adquiridos com esforço. Os relatos das próprias experiências, embora se referissem, em grande parte, às dificuldades, pelo menos parcialmente superadas, como a ameaça da fome, mostram que as seqüelas pareciam ainda presentes e podiam ser inferidas do componente emocional manifestado no momento do relato. Havia ainda as conseqüências observadas pelos agentes na experiência de parentes, amigos e vizinhos, que incluíam sentimentos de culpa e de inutilidade, fome, desestruturação da família e as “psicopatias” (crime e suicídio). c. Estratégias de sobrevivência A perda do emprego impeliu os agentes à mudança radical no estilo de vida. De imediato, a fuga ao supérfluo e a racionalização das aquisições de consumo, mesmo aquelas consideradas de primeira necessidade. Em seguida, a busca de alternativas de obtenção de meios de sobrevivência. A solução mais indicada pela lógica do sistema, a mudança de atividade de trabalho, frequentemente não produzia os resultados esperados, uma vez que a recessão penalizava todos os setores, observando-se uma certa saturação e competitividade mesmo no chamado setor degradado de serviços. Os relatos sobre as adotadas no enfrentamento da situação de desemprego foram agrupadas em 6 categorias que aparecem no quadro 6. 186 ENTIDADES / AGENTES GS - BN ESTRATÉGIAS 09 10 11 Ajuda Mutua GS – CLCD/EM 12 13 X Venda de Bens 15 17 X Ajuda de Entidades X X Mudança Residência X X X Mudança Atividade. X X X 19 20 16 X 21 22 23 01 04 05 X X X X X X X 18 APSD - BN CLCD-EB 24 26 X X Ajuda de Parentes 14 GS X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X Quadro 6. Estratégias de sobrevivência adotadas após a perda do emprego. Observa-se que a maioria dos agentes (65 por cento) adotou mais de uma estratégia de sobrevivência. Dentre as estratégias que aparecem no quadro, a de maior incidência (85 por cento) é a mudança de atividade, seguida pela mudança de residência (com 50 por cento de incidência). A venda de bens, a ajuda de entidades e de parentes foi relatada por 25 por cento dos agentes, enquanto que a ajuda mútua apenas por 15 por cento. A mudança de atividade mais utilizada pelos agentes foi a do comércio. As demais atividades exercidas foram: faxina, pintura em pano, assessoria a sindicatos e cooperação em atividades de entidades ligadas a Igreja. Os agentes A11, A13 e A23 tentaram o comércio em feira livre. Compravam utensílios de cozinha e armarinhos e os revendiam. A dificuldade de colocação de seus produtos, devido à presença de concorrentes mais bem preparados, e a pequena margem de lucros impedia a expansão e mesmo a manutenção dos negócios, que se encerraram pouco tempo depois. Os agentes A11 e A13, em períodos de maior dificuldade, obtiveram ajuda de entidades de assistência social. O A13 obteve ainda, ajuda de parentes. 187 Os agentes A9, A10 e A24 investiram o que haviam recebido do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço) e poupanças próprias para se estabelecerem comercialmente. O primeiro abriu um armazém de secos e molhados que funcionou por cerca de um ano, quando se viu obrigado a fechá-lo por falência. A9 relatou priorizar as atividades políticas às relacionadas ao armazém. Para amenizar a situação de dificuldade em que ficou, vendeu alguns bens e mudou-se para uma residência com aluguel menor do que vinha pagando. O A10 organizou, com um sócio, antigo colega de trabalho, uma distribuidora de livros, fechando-a, após pouco tempo de atividade, sem recurso algum e dependendo da ajuda de parentes. Já, o A24 abriu uma lanchonete no Centro da cidade. Após seis meses sem obter lucro algum, admitiu um sócio, pessoa alheia ao seu círculo de amizade que lhe deu desfalques e o deixou falido. Posteriormente teve que vender os bens que ainda possuía, um apartamento, um terreno e um carro para saldar dívidas contraídas com a lanchonete e manter a família. O agente A21, após várias tentativas infrutíferas de mudança de atividade, mudou de residência procurando um aluguel mais baixo e vendeu bens. A sua segunda mudança de residência foi para uma favela quando, então, abriu uma pequena oficina de conserto de televisão. Após três meses encerrou as atividades da oficina uma vez que os fregueses “não tinham como pagar os serviços prestados”. Outro que optou pelo comércio foi o A22 que tentou ganhar a vida como ambulante, vendendo um produto que lhe era familiar, calçados. Esperava obter lucro suficiente para comprar um carro e assim aumentar as vendas, mas seus negócios não prosperaram. Alguns meses após o início dessa atividade, o A22 deixou o comércio, vendendo para a vizinhança “a baixo preço” seus últimos pares de calçados. 188 Não obstante as dificuldades enfrentadas, os agentes A18 e A20 obtiveram resultados compensadores nas atividades de comércio. A primeira desempregada juntamente com o marido, vendeu quase tudo o que possuía e mudou-se para um barraco cedido pela Igreja em uma favela. Aos poucos começou a vender mercadorias de bazar e comestíveis. Cerca de seis meses depois conseguiu mudar com a família para uma casa maior, fora da favela. Esta agente procurou conciliar tanto quanto possível suas atividades no MLCD com as do comércio: freqüentemente levava comestíveis para vender nas assembléias e nas manifestações. A agente A20 elaborou uma estratégia sem muita concorrência na época, a venda de café nas ruas e nas construções, que combinou com mudança para uma residência com aluguel mais barato. Essa atividade permitiulhe, sozinha, manter-se e aos filhos e ainda dispor de recursos para abrir, pouco tempo depois, um “barraco” de lanches e refeições. As estratégias adotadas pelos agentes A12 e A14 envolveram uma combinação de ajuda mútua com mudança de atividade de trabalho. O A12 cedeu parte de sua casa a uma família que também enfrentava dificuldades financeiras, em troca do aluguel, da garantia da alimentação a seus filhos e do pagamento da taxa de água e luz. A agente A12 passou a trabalhar como faxineira. A agente A14, para se manter, vendeu diversos bens e posteriormente combinou com uma vizinha, em condições de dificuldade semelhante, a divisão da responsabilidade de cuidados com os filhos, enquanto uma delas estivesse trabalhando fora em faxina. Já o agente A16 fez um curso de pintura em pano e passou a atender pedidos ocasionais de fábricas de camiseta, combinando essa estratégia com mudança de residência para uma casa com aluguel de menor valor. Alguns agentes como A4 e A5, na condição de desempregados, dependiam da família. 189 Mudança de atividade e ajuda de entidades foram as estratégias adotadas pelo agente A1. Com participação ativa em sindicato e congressos de trabalhadores, A1 tornou-se uma pessoa conhecida mantendo correspondência com lideranças de trabalhadores de diversos países. Não conseguindo emprego no país, obteve ajuda de entidades sindicais na Nicarágua e no México, permanecendo nesses países por cerca de um ano, realizando trabalho de assessoria sindical e ministrando cursos sobre organização sindical. O conteúdo de dramaticidade que permeou os relatos dos agentes sobre a situação de desemprego e a luta pela sobrevivência durante os períodos mais críticos da recessão econômica, somente pode ser mais bem aquilatado na transcrição de trechos de seus depoimentos. Julgou-se, dessa forma, oportuno transcrever algumas narrativas, suprimindo-se apenas os excessos de detalhamento. a) observações dos agentes sobre experiências de outrem: “Eu vi caso da mulher abandonar o marido, a casa. O cara saiu para procurar emprego, a mulher pegou os filhos e sumiu (…) Aí quando ele voltou tava tudo deserto e ele ficou lamentando”. (A20). “Lá perto de casa (…) um vizinho não arrumava emprego (…) O homem foi procurar emprego, não achou, entrou em casa e começou a beber, beber, beber. Aí subiu lá em cima (construção inacabada) e disse: ‘ Quer ver eu me jogar? ’ Os parentes diziam: ‘Não faz isso não!’ Quando viu ele se jogou. Ficou mortinho lá estendido”. (A19). “O cara ficou assim… como se ele fosse culpado, porque era velho, porque só tinha uma profissão… isolado” (A26). b) observações sobre as próprias experiências: “Minha mulher ia às igrejas e arrumava alguma coisa para casa (…) Estava ruço, não tinha nada para comer… é por isso que muita gente se mata (…) Eu não… eu não pensei em me matar não, Deus me livre”. (A11). “Eu sem emprego… meu marido também perdeu o emprego. Aí passou em tempo e eu ganhei neném. Estava tudo tão difícil, não tinha roupa, 190 não tinha nada. Fome mesmo eu não passei porque a comadre ajudou… Deus me livre eu nem gosto de lembrar. A gente estava devendo aluguel e o dono querendo a casa (…) Aí alguém falou: ‘ Vai falara com o padre, talvez ele tenha um barraco para você morar… Meu Deus eu não gosto de lembrar (chora)”. (A13). “Eu tinha um carro, um terreno, um apartamento pela COHAB em Carapicuiba. Aí eu fui me desfazendo dessas coisas (…) Foi uma época difícil, eu chegava em casa com fome, pegava um copo de leite ia tomar e devolvia, tornava a guardar para sobrar para as crianças (…)”. (A24). “Eu comecei a vender café nas firmas e nas ruas. Pegava um bule, o café, o açúcar, (…) pegava as crianças e saía cedo, fazia o fogo no mato e as crianças ali por perto (…) Até que eu consegui dinheiro e montei um barraco em Cumbica. Lá eu dava almoço, lanches, vendia pinga, bolo…” (A20). “Aí eu abri uma oficina de conserto de TVB aqui na favela. Eu tinha confiança na minha oficina, só que não deu, o pessoal não pagava (…) Acabaram-se as peças e eu tive que fechar a oficina”. (A21). “Eu fiquei no maior desespero. Um dia eu coloquei outra família para morar lá em casa (…) Eles pagavam a luz e a água e traziam comida. Foi um jeito das crianças não passar fome né?”. (A12). 5. Recrutamento A filiação dos agentes sociais em um grupo ou entidade dava-se comumente pela mediação de um outro participante. O único quesito requerido para filiação aos Grupos de Solidariedade era o de ser morador no bairro onde se localizava o Grupo; para o Comitê de luta Contra o Desemprego a condição era ser desempregado. Enquanto a entrada nos Grupos e Comitês era aberta, o mesmo não corria com as entidades. As entidades possuíam seus próprios critérios e métodos de “seleção”, que correspondiam a uma observação sistemática do possível participante, uma avaliação feita pela equipe e uma entrevista informal onde o convite era feito. Nessa entrevista sondava-se a disposição da pessoa para a tarefa requerida. Os critérios relacionavam-se experiência prévia ligada às atividades, à disposição para o trabalho e à “formação 191 ideológica e de caráter”. Na maioria das vezes, o provável participante já desempenhava um papel de destaque nas entidades de origem, no MLCD ou em outros movimentos. Dentre os agentes entrevistados, foi possível identificar que a tarefa de recrutamento muitas vezes estava centralizada em alguns agentes. A identificação dos agentes recrutadores-recrutados pode ser verificada na Figura 6. Observa-se na figura 6 que, entre os entrevistados, os agentes A7, A24 e A25 foram os que mais recrutaram. Entre os recrutados por A7, dois deles se tornaram recrutadores: A1 e A6. Por outro lado, o recrutado por A1 também realizou o trabalho de recrutar. È possível supor que esse processo alcançasse um desdobramento mais extenso do que o apresentado na figura. Embora algumas entidades, como a APSD, Basenova e Intercarta, não tivessem nenhum interesse em aumentar demasiadamente os seus quadros de colaboradores, a formação de novos GS fazia parte de seus programas e, nesse sentido, a tarefa de recrutar se desdobrava teoricamente, ad infinitum. O mesmo processo também ocorria com o Centro Social São Francisco de Assis, ilustrado pela atuação de A27. Esse recrutou os agentes A24 e A25, que por seu turno recrutaram vários outros para o CLCD-EM. O Comitê de Luta Contra o Desemprego de Ermelino 192 Matarazzo não somente atuava na formação de Grupos (objeto da atuação da APSD e Basenova) como também, por outro lado, se constituía de um espaço de vivência política. Tal espaço derivava agentes para os Movimentos Populares, coordenados por A27, e para o Partido dos Trabalhadores, especificamente para o diretório, também coordenado por A24 e A25. 6. Motivos da Filiação Esse tópico refere-se aos motivos que levaram os agentes a se filiarem aos grupos e entidade. Foram identificadas cinco classes de motivos, que aparecem no Quadro 7. Motivo Entidades e Agentes APSD 3 5 APSD-BN 6 1 4 7 INTBN BN 2 8 SAT. PESS. NECESS. 28 29 GS/BN 9 10 11 CLCD – EM /BN 12 13 14 15 17 18 GS 19 20 16 21 CLCD-EM 22 23 24 25 CLCDEB IGR 26 27 x SOLID. IDEOL. CLCD-EM BN X x X X X X X X X X X X X X X X X X x X x X X X X X X X X X X X X X X x X Quadro 7. Motivo de filiação dos agentes nas entidades e grupos, conforme relato Os motivos mais frequentemente evocados nos relatos dos agentes foram o ideológico e a necessidade. O ideológico expressa a busca de contato com pessoas ou grupos com objetivos doutrinários e/ou de organização popular. A necessidade refere-se à possibilidade de satisfação através da filiação, de \itens básicos de sobrevivência: a alimentação, a moradia e o vestuário. O motivo solidariedade define um conjunto de comportamentos de interesse, apoio e ajuda em relação aos que viviam a situação de desemprego, que poderiam ser 193 expressos através da participação nos grupos. Já a satisfação pessoal refere-se a sentimentos de “bem-estar”, “alegria” etc., derivados da filiação nas entidades. Observa-se, no Quadro 7, que a maioria dos agentes dos Grupos de Solidariedade apresentou a necessidade como motivo de filiação e que os que possuíam motivação ideológica se filiaram também a outras entidades: A9 e A13 na Basenova, A14, A17 e A20 no Comitê de Ermelino Matarazzo. O agente A21 aparece como uma exceção, uma vez que permaneceu apenas no GS. Os pertencentes à APSD, Basenova e Intercarta se filiaram a essas entidades por motivos ideológicos e de solidariedade com exceção do A4, cuja motivação incluía tanto a questão ideológica quanto a necessidade e o A28 que compreendia a solidariedade e a satisfação pessoal. Dado que o objetivo fundamental da formação dos GS era o de possibilitar uma ajuda financeira emergencial aos participantes desempregados, poder-se-ia esperar que a motivação principal de filiação neste, fosse a da satisfação da necessidade. Apesar disso, era suposição corrente entre vários agentes que a participação nos GS, nas entidades e no movimento facilitaria a aquisição ideológica, que se converteria pouco-apouco no principal motivo da participação. 7. Atividades de Militância Essa classe trata das atividades desenvolvidas nos grupos, entidades e no MLCD pelos agentes. As atividades desenvolvidas pelos agentes que trabalhavam na APSD eram diárias e contínuas e envolviam: a) plantão na sede da APSD para atendimento de pessoas participantes dos grupos; b) serviços burocráticos próprios do funcionamento a 194 entidade; c) visitas aos grupos para assessoria e projetos; d) reuniões setoriais com os grupos; e) reuniões da própria equipe. Dentre os entrevistados, apenas os agentes A2, A3, A6, A7, A8 e A27 executavam tarefas nas entidades e GS relacionadas (quadro 5, p. 178)com as suas áreas de atividades profissionais. A maioria dos agentes sobrepunha sua participação nas entidades e grupos a atividades profissionais regulares (empregados) e ocasionais (desempregados). Excluem-se dessa classe os agentes A1, A2, A3, A4, A5, A6, A9 e A24 que não exerciam nenhuma outra atividade profissional. A participação nas entidades, Grupos de Solidariedade e movimento, dos agentes que trabalhavam era intercalada aos seus horários profissionais quando possível (agentes A7, A8, e A27) e/ou ocorria nas horas destinadas ao descanso e lazer ( agentes A7, A8, A27, A28 e A29). Os agentes A28 e A29, após o cumprimento de 7 e 8 horas de trabalho respectivamente, dirigiam-se para a sede da APSD, Basenova, CLCD ou GS onde permaneciam trabalhando por cerca de três horas. Quando atuavam pela APSD, basicamente se incumbiam do cadastramento dos integrantes dos GS, o que implicava na realização de entrevistas individuais. Já na Basenova e no CLCD-EM, realizavam assessoria aos grupos que tinham interesse em desenvolver algum projeto de atividade produtiva. Participavam de reuniões, auxiliavam na elaboração e execução de projetos, assessoravam os Grupos nas atividades que envolviam relação com os órgãos do Governo etc. Além dessas tarefas quase diárias, participavam de encontros e reuniões feitas aos domingos. 195 As atividades dos agentes A9, A10, A11, A12 e A13 na Basenova se constituíam de acompanhamento aos grupos e objetivavam facilitar os meios necessários para que estes pudessem desenvolver seus projetos. Em geral, ocupavam aproximadamente 20 horas nessas tarefas que envolviam plantão na sede da entidade, visitas aos Grupos e reuniões com a participação de vários GS, visando o intercâmbio de informações. Além disso, cada um participava das tarefas inerentes às funções que exerciam em seus respectivos Grupos e àquelas ligadas à militância partidária. Os agentes dos GS e do CLCD-EM (A14, A15, A17, A18, A19 e A20) desenvolviam atividades nos respectivos grupos e no Comitê. No Comitê participavam da farmácia comunitária e de um esquema de ajuda aos membros dos Grupos que procuravam trabalho. Além disso, faziam parte das comissões de visitas aos GS e de projetos de trabalho. Aqueles ligados exclusivamente aos GS (A16, A21, A22 e A23) participavam das atividades próprias de cada grupo, relacionadas às funções que exerciam. O agente A21, além da função de diretor, coordenava um projeto de fábrica de blocos do grupo. Os A22 e A23 trabalhavam 4 horas diárias na oficina de costura e bazar do grupo. Os agentes A24, A25 e A27 desenvolviam um intenso trabalho junto aos Grupos de Solidariedade de Ermelino Matarazzo. O agente A27, além das tarefas próprias do sacerdócio coordenava, como diretor do Centro Social da Igreja, uma equipe que atuava na comunidade local. Ocupava-se também em organizar cursos de educação religiosa e política em vários níveis para os participantes das Comunidades Eclesiais de Base e Pastorais. Já A24 e A25 coordenavam o Comitê que buscava estruturar as atividades políticas dos GS de Ermelino Matarazzo em relação ao MLCD e 196 na questão do desemprego. A todas as atividades do Comitê somavam-se aquelas relativas à militância no PT. Finalmente, A26, como coordenador do CLCD-Eb, mantinha contato com as entidades da região, realizava reuniões e organizava e tomava parte das atividades políticas conduzidas pelo Comitê. A26 era ainda membro ativo da PO e do PT. 8. Crenças e aspirações. As crenças e as aspirações dos agentes aparecem em diferentes segmentos da fala dos mesmos, mas, principalmente, quando se referiam aos objetivos das entidades e grupos a que se filiavam e seus motivos de participação em um movimento reivindicativo. Identificou-se nos relatos três classes de crenças: a) o desemprego como uma situação de injustiça; b) o sistema social como instável, isto é, passível de mudanças; e c) a ação coletiva como via para a mudança social. Observou-se também que as aspirações se relacionavam à crença na mutabilidade do sistema. a. O desemprego como injustiça Aqueles agentes que trabalhavam enfatizaram que a situação de desemprego feria um direito básico que é o de trabalhar. “Nessa época as chances de arrumar emprego diminuem consideravelmente (…) está muito claro para mim o quanto isso é injusto (…) é um desrespeito porque a pessoa quer trabalhar e não consegue”. (A28). Os agentes A1 e A7 (APSD-BN), A8 (BN), A9 e A12 (GS-BN), A24 e A25 (CLCD-EM), A26 (CLCD-Eb) e A27 (Igr.) explicitaram que o desemprego era um fenômeno decorrente do sistema capitalista e que, no caso brasileiro, o Estado não assegurava qualquer tipo de amparo ao desempregado. 197 Além disso, A7, A8 e A27 defenderam a necessidade de a sociedade como um todo, e cada indivíduo em particular, reconhecer a sua parcela de responsabilidade sobre as decorrências próprias da situação de desemprego. Uma vez que o sistema não garante o direito ao trabalho para todos, o indivíduo e a sociedade deveriam, no mínimo, ser solidários com aquela parcela da população impelida para essa posição diferenciada dos demais. “Nós fazemos parte do exército industrial de reserva (…) O capitalismo precisa desse pessoal todo desempregado, faz parte do sistema (…) No Brasil, só que no Brasil, o desempregado fica arriscado a morrer de fome, o Governo não dá nenhuma assistência”. (A9) “Quem está desempregado, não é por culpa dele, é porque nós da sociedade não fomos capazes de nos organizar para haver emprego para todo mundo. Então nós temos que ser solidários com aqueles que pagam pela nossa insuficiência”. (A7). Já os agentes A22 e A23 (GS), embora desempregados há mais de dois anos e tomando por base alguns aspectos da experiência pessoal, atribuíram o desemprego a “deficiências profissionais do trabalhador” e/ou à “excessiva exigência funcional das empresas” e/ou mesmo à “falta de sorte e destino”. “Olha eu acho que todo esse desemprego é porque as firmas passaram a exigir demais. Outro dia para um emprego, lá… de ajudante tinha que saber trigonometria. Que Diabo, quem via saber só engenheiro. Mas tem o lado de cá… o despreparo né. O cara não consegue, não chega a atingir aquele ponto que é preciso (…) Você vai aqui ali e não consegue. Então o que é? Tem coisa! Coisa que puxa você, isso de destino”. (A23). Alguns agentes consideravam a crença na injustiça do desemprego como importante fator no engajamento ao MLCD. O A26 relatou trabalho de “combate” às crenças opostas que dificultavam a mobilização. “Então nosso primeiro trabalho foi o de tirar da cabeça do pessoal que o problema do desemprego era individual, que a pessoa era culpada, 198 mas que, ao contrário, o problema é do sistema, a responsabilidade é do sistema e tal”. (A26). b. O sistema como passível de mudança Com relação à mutabilidade do sistema social, excetuando-se os agentes A15, A18, A22 e A23, os demais acreditavam que era mutável. Dentre os que não manifestaram crença na imutabilidade do sistema, os agentes A15 e A18 (GS-CLCD/EM) não abordaram o assunto enquanto que A22 e A23 (GS) contrariamente, acreditavam na estabilidade do sistema. Para eles, não haveria alteração social e as mudanças que ocorriam na vida dos indivíduos estavam relacionadas ao esforço próprio, porém não alteravam sua posição na sociedade. “Os ricos sempre vão estar por cima, quem é pobre tem que se virar para não ficar na pior (…) Agora se ele lutar ele pode melhorar um pouco”. (A22). As aspirações dos agentes referem-se ao conteúdo e à direção das mudanças. Alguns explicitaram desejo de mudanças sociais e de participação nessas mudanças. “É um sonho, um sonho não impossível de se transformar em realidade (…) Um sonho que eu queria estar ajudando acontecer. Modificar o sistema político que a gente vive em uma nova sociedade”. (A29) Algumas referências apontavam para a mudança de situação ou fatores que comprometiam a qualidade de vida da população. Essas referências foram feitas pelos agentes A9, A10, A11, A12, A13 (GS-BN) e A24 (CLCD-EM). “Eu quero um sistema de governo em que os problemas básicos da população sejam solucionados. Quero um sistema que não tenha desemprego, fome, onde não falte a escola e o leite das crianças (…) Esse é o sistema que eu vou ajudar a construir. A gente está longe, muito longe do socialismo, mas eu acho que o caminho é esse, devagar mesmo”. (A24). 199 A idéia de exclusão das dificuldades ligadas à sobrevivência era complementada pelos agentes A9, A10, A11, A12, A13 (GS-BN), A18, A19, A20 (GSCLCD/EM), A21 (GS). A24, A25 (CLCD/EM) A26 (CLCD/Eb) com referências ao socialismo como um sistema ideal para garantir a solução dos problemas experienciados. “Eu quero uma nova vida e vou lutar para conseguir isso. Não dá mais para viver assim. Fome, exploração e o governo enrolando a gente (…) o governo do PMDB é diferente porque conversa com a gente, mas não mudou nada (…) Eu luto pelo socialismo”. (A10). Os agentes A3, A5, A6 (APSD), A1, A4 e A7 (APSD-BN) e A8 (BN) não especificaram os rumos das mudanças do sistema. Suas aspirações relacionavam-se à pedagogia do próprio trabalho e seu resultado em termos da organização popular. “O que é importante é a busca do novo. Esse novo está na possibilidade de organizar o povo de uma forma ainda não realizada (…) Acredito que o elo principal é esse desafio apaixonante, a busca do novo”. (A8). “Não importa que nos acuse de amortecedores da luta da classe, o que importa é que vamos tecer o tecido social, ou seja, o povo tava disperso e agora vai se unindo. Lá em baixo, o povo vai se juntando e a gente vai conseguindo isso de uma outra maneira”. (A1). c. A ação coletiva como instrumento de mudança. A crença de que as mudanças no sistema social dar-se-iam através da ação coletiva foi manifestada pela grande maioria dos agentes com exceção de A22 e A23 (GS) que aceitavam a imutabilidade do sistema e de A2 (INT-BN) que, embora defendendo a mutabilidade do sistema não acreditava na sua mediação através da ação coletiva. “Eu tô cansado de ver nos movimentos a exploração, a dominação, um querendo prejudicar o outro, neguinho querendo aparecer no jornal 200 porque tem alguma pretensão (…) Eles fazem do mesmo jeito, iguais àqueles aqueles querem derrubar (…) Claro que não vai alterar nada”. (A2). Os demais defendiam a ação coletiva em detrimento da individual como força de mudança social. “Acho que é o movimento popular que vai mudar o país (…) O movimento popular ensina o povo a lutar por coisas mais coerentes. De um lado, as pessoas vão se transformando pela sua participação. Esses se transformam e transformam a sociedade”. (A17). “Qualquer mudança tem que ser com os outros porque sozinho você não consegue nada e, além disso, a pressão é muito grande”. (A18). Para alguns agentes essa ação era representada como seguindo na direção de seus próprios objetivos. Para os agentes A10, A11, A12 (GS-BN) A17, A18, A19, A20 (GS-CLCD/EM), A24 e A25 (CLCD/EM), não se colocava a hipótese de que a ação coletiva pudesse seguir em direção oposta ao seu próprio desejo. Poder-se-ia pensar que havia algo de mágico no processo descrito como “ação do povo”: pessoas conversando, descobrindo a vivência de problemas comuns e por um ato de vontade criando um novo sistema pleno de justiça social. “Acho que juntar pessoas é o começo da mudança, é a semente. Quando você junta duas ou mais pessoas, elas descobrem que têm os mesmos problemas. Se junta as pessoas e elas começassem a conversar, isso um dia vai terminara no socialismo”. (A24). No entanto, outros subordinaram o sucesso da ação coletiva a processos educativos mediados por diferentes entidades (A1 e A7 da APSD e BN; A8 da BN; A21 do GS; A26 de CLCD/Eb e A27 da Igr.) e/ou por partidos políticos com posições radicais como o PT (A9, A10, A12, A13 dos GS e da BN; A21 do GS, A26 do CLCD/Eb; A28 e A29 do CLCD e BN). As divergências observadas dizem respeito aos agentes A3 e A5 que desconfiavam dos reais objetivos da Igreja no papel de 201 incentivadora dos MP e de A1, que se opunha a ação dos partidos políticos em geral e do PT em particular. “Nós (da APSD) damos uma ajuda emergencial que serve como um atrativo para a organização popular e faz com que essa organização se multiplique (…) O processo é educativo (…) a autonomia faz com que essa organização se auto-eduque e descubra nas próprias lutas que vão surgindo (…) descobrindo e dando passos. Isso vai solidificando o tecido social”. (A7). “A gente (refere-se a posição da Igreja progressista) acredita muito nas formas de organização do povo para mudar a sociedade. A gente participa de uma Igreja que incentiva as organizações populares, ele atua como um instrumento… É isso que nós acreditamos, na força do povo organizado”. (A27). “Eu acho que, num primeiro momento, é o povo, o movimento popular que vai mudar tudo (…) mas na hora… no fim tem que ter um partido para poder dar a base. Agora não ºe qualquer um partido não (…) tem que ser um partido que tá na luta (…) Eu puxo a sardinha para o PT, é claro”. (A24). “A Igreja quer o povo livre… mas livre de quem? Ela mesmo tá ali ó. ‘ Vamos mudar a sociedade, vamos ficar livre da dominação’, só que dentro da igreja, com o cabresto da Igreja”. (A3). “Eu fui do PT, daquele comecinho que a história não registra, só que eu vi que se reproduzia a mesma coisa que lá for a. Neguinho falava ninguém ouvia (…) Eu acredito na força do povo, mas sem partido nenhum” (A1). Alguns agentes relataram suas próprias mudanças de crenças enquanto que outros fizeram menção aos esforços de persuasão para “converter” os demais para a sua posição. É possível supor que, de um lado, as mudanças ocorriam mais frequentemente com os que não possuíam experiência filiativa anterior e, de outro, os que possuíam uma história anterior de filiação manifestavam as crenças ligadas à militância política e à filosofia das entidades a que pertenciam e/ou pertenceram e que eram reforçadas nas discussões e tentativas de persuasão. 202 “Quando eu comecei no grupo eu achava que a gente não ia conseguir nada… Eu achava até mesmo ridículo esse movimento de rua. Agora eu acho que a participação é importante, que é por aí que a gente vai conseguir (…) A gente na rua (fazendo manifestações) mostrar que não está de acordo com aquilo que está acontecendo, que lutando a gente pode mudar alguma coisa”. (A16). “Vocês pensam que essas máquinas que vocês estão pedindo vão ser dada porque o governo é bonzinho? Isso é do povo mesmo. È tirado do imposto (…) O que é do povo tem que voltar para o povo”. (A1). 203 DISCUSSÃO A. Ação Coletiva e Identidade Social O fenômeno coletivo de luta contra o desemprego se alternava em processos de composição ou recomposição e decomposição. Nos episódios de manifestações de rua ou de eventos internos (composição) observava-se relativa uniformidade das ações. Passados tais episódios os manifestantes se reintegravam aos seus grupos de origem, que se constituíam de subunidades componentes do movimento. O movimento de Luta Contra o Desemprego (MLCD), cuja trajetória abrange o período entre o ato público de Santo Amaro, em abril de 1983, até a última reunião da Plenária Estadual em outubro de 1985, pode ser considerado, como um processo conduzido por um conjunto de pessoas que se percebiam com um destino comum e em algumas circunstâncias agiam com relativa homogeneidade. Os dados evidenciam que o MLCD se compunha de diferentes grupos que se ligavam à mesmas entidades ou a entidades diferentes que se sobrepunham e/ou se cruzavam no interior do movimento, cujo trabalho de alguma forma se refletia na organização deste. A análise que segue abordará esse processo coletivo em sua formulação usual: emergência, percurso e dispersão. 1. A emergência do processo coletivo O contexto social prevalecente no período inicial do processo coletivo se caracterizava, conforme descrição anterior (p. 62), pelo desemprego em massa, derivado 204 da política econômica recessiva em vigor. Essa característica esteve, sem dúvida alguma, na base da emergência da ação coletiva em análise. Não se pode, porém, supor uma relação linear entre o desemprego e o processo reivindicativo conduzido pelos desempregados. Além do contingente de desempregados participantes e condutores do processo, havia, de um lado, uma considerável parcela da população, que embora vivenciasse a mesma situação de desemprego, não aderiu e, de outro lado, um certo número de pessoas empregados que participou ao longo do tempo, da ação coletiva. Muitos desses não desempregados tiveram, mesmo, uma “posição de destaque” nas tarefas organizativas do movimento. Com relação aos desempregados não participantes, a omissão não pode ser explicada pela falta de informações ou oportunidades. Alguns dados de entrevista e de observação mostram convites e insistência dos membros do movimento “resistiam” e se esquivavam da participação. Poder-se-ia dizer, portanto, que o desemprego apresentava-se como uma condição presente, mas não suficiente para derivar a emergência e a manutenção do processo em discussão. A análise da ação coletiva sugere outros aspectos em uma perspectiva psicológico-social, que deveriam ser considerados. Pode-se apontar como aspectos principais, a emocionalidade generalizada no ato público de Santo Amaro, a identificação razoavelmente imediata da categoria considerada oponente, responsável ou co-responsável pela situação de dificuldades dos manifestantes, a propri3edade das reivindicações em termos da categoria desemprego, a natureza e a direção das ações coletivas e o tipo de intercâmbio entre o movimento e outras categorias. a. A identidade de espoliado na ação coletiva. A teoria da identidade social enfatiza que a identificação social está na base da formação grupal, ou seja, que variáveis sociais ou físicas induzem os indivíduos a se 205 perceberem e ou serem percebidos com base em atributos e experiências comuns. Na medida em que o indivíduo avalia positivamente (a nível perceptivo, cognitivo e emocional) o seu pertencimento a um grupo, passa a comportar-se de acordo com as normas e valores desse grupo. Em outras palavras, grande parte de seu comportamento pode ser explicado a partir da identidade social que decorre de sua filiação a diferentes grupos. As pessoas que compareceram no ato público de Santo Amaro, conforme descrição (p. 67), em sua maioria, partilhava a condição de desempregado. A situação provia, não apenas elementos cognitivos para uma auto-atribuição categórica, mas também elementos emocionais. O conteúdo crescente de dramatização estava presente na frustração dos que esperavam mudanças imediatas empreendidas pelo governo oposicionista, no depoimento de privação fornecido por alguns dos oradores, no forte sentimento oposicionista ao Governo Federal, no significado do largo 13 de Maio, como espaço de luta e conquista da classe trabalhadora da região. Tais elementos contribuíram na exasperação da emocionalidade dos presentes. Um conjunto de categorias identificadas na fala dos oradores como, por exemplo: trabalho/trabalhador/desemprego; política salarial/arrocho/fome; presidente/ autoritarismo; ministro/manipulativo etc., pode ser “cognitivamente” incorporado em termos de uma identificação social de “si mesmo”, “da situação” e do “outro”. É possível pensar que a explicitação do compartilhamento a condição de espoliados, através do ato público, facilitou a percepção dos manifestantes de pertencimento a um grupo distinto. A identificação social dessas pessoas, com base no conhecimento, na percepção e no sentimento de compartilhar a experiência de 206 espoliação pode ser vista como componente de uma identidade emergente que se consolidou posteriormente na ação coletiva. A análise de algumas das características essenciais da ação coletiva aponta para algumas evidências dessa identidade emergente: a) uma identificação dos alvos, realçando a diferenciação nós - eles; b) uma ampliação dos alvos e das ações circunscrita a determinados limites; c) a delimitação de um espaço geográfico das ações em seu significado político-ideológico. Identificação dos alvos. As ações iniciais dos participantes do ato público no largo 13 de Maio em Santo Amaro, eram aquelas esperadas e sancionadas em tais situações: críticas à política econômica em vigor e às autoridades, ironias e irreverências feitas pelos oradores e vaias e xingamentos por parte da “platéia”. Essas ações apontavam frequentemente para um mesmo alvo: os Ministérios do Planejamento e Fazenda e a Presidência da República. Os alvos identificados nas ações eram responsabilizados pela situação de desemprego e pobreza. Observa-se, na análise dos dados, que as ações e os alvos se ampliaram permanecendo, no entanto, dentro de certos limites. Limites das ações e dos alvos. A ampliação das classes de ações, evidenciada durante o ato público para depredações, saques e agressões nas manifestações de rua, ocorreu em seguida da ampliação dos alvos e foi desencadeada à partir da apropriação das laranjas do caminhão da COBAL (p. 7). O Quadro 8 relaciona (tanto quanto possível em ordem temporal) as ações mais freqüentes e seus respectivos alvos nos três dias de manifestações. AÇÕES ALVOS 207 Discursos (denúncias, vaias e xingamentos) Apropriação das laranjas da Cobal e utilização como projéteis Passeatas (deslocamento, palavras de ordem e tentativas de entrevista com o titular da Administração Regional ) Refrega com a polícia (vaias e xingamentos, revides de agressões) Saques Depredações (arrombamento, quebra-quebra) Tentativa de invasão Tentativa de depredação Governo Federal: Ministros do Planejamento e da Fazenda Vitrines de Lojas e luminárias próximas ao largo 13 de Maio Governo Federal: ministros do Planejamento e da Fazenda; Administração Regional; Polícia Militar. Estabelecimentos comerciais; supermercados, lojas, açougues etc. Vitrines de lojas, luminárias de praças e ruas; mansões e telefones públicos; ônibus e viatura policial. Jardins do Palácio do Governo Palácio da Justiça Quadro 8. Classes de ações generalizadas durante as manifestações contra o desemprego (“saques de abril”) e respectivos alvos. A ampliação das classes das ações conforme o quadro oito sugere um crescendo de agressividade que, no entanto, permaneceu dentro de certos limites. Tais limites consistiram, de um lado, em críticas, vaias e xingamentos, ou seja, o que é esperado e sancionado em um ato público e, de outro, em tentativas de invasão e depredação. Em relação aos alvos, os limites se situaram nas autoridades mais diretamente responsabilizadas pela própria situação de espoliação partindo do governo federal, relativamente inacessível em termos de ações mais diretas, para o Governo Municipal (Administração Regional), o poder legislativo e judiciário (Assembléia Legislativa e Palácio da Justiça) e o executivo (Palácio dos Bandeirantes). Observa-se que os saques (a exceção da apropriação das laranjas da COBAL) somente ocorreram e se disseminaram após a recusa do titular da Administração Regional em atender os manifestantes. O não atendimento possivelmente avivou o 208 sentimento de abandono e de antagonismo e facilitou que se tornasse pró-normativo o comportamento de saquear. A disseminação dos saques pode ser interpretada como decorrência de norma estereotípica associada à identidade de espoliados, no sentido de a multidão considerar a posse de gênero como legítima, sobrepondo-se à norma de respeito à propriedade alheia. A adesão de novos participantes a manifestações subseqüentes relaciona-se, em um primeiro momento, à divulgação do evento. A informação, através dos processos informais já estabelecidos nos bairros e comunidade, tende a ser mais seletiva para os tópicos relacionados aos seus interesses e ganha, dessa forma, um significado adicional, ou seja, o de desencadear a aproximação ao fenômeno. O comportamento de aproximação ao evento pode ir do relato e comentários até ao envolvimento através da adesão no caso do indivíduo se perceber como pertencente ao segmento envolvido. Por outro lado, a divulgação das ocorrências pela televisão possibilitou, através das imagens, a visão de pessoas carregando gêneros provenientes de saques, permitindo, dessa forma, o confronto e a realimentação da divulgação informal. Esses dois aspectos parecem ter contribuído para uma identificação com os manifestantes, em particular por aqueles que viviam situação de privação semelhante e que, não obstante o receio da repressão, estavam dispostos a participar. A manutenção das classes de ações dentro dos limites daquelas exibidas no primeiro dia de manifestações parece relacionar-se com a tendência pró-normativa para essas ações. As normas eram provavelmente inferidas a partir da observação do outro, na medida em que este fosse percebido como membro do grupo e, principalmente, quando sua ação estivesse de acordo com a atribuição da filiação categórica. As pessoas que já haviam participado das manifestações tendiam, na situação, a exibir mais 209 prontamente as ações normativas, facilitando, dessa forma, a manutenção das classes de ações. Pode-se afirmar, apoiado na teoria da identidade social, que a identidade dos manifestantes enquanto grupo de espoliados esteve na base da relação destes com os segmentos considerados oponentes. A percepção de ilegitimidade e instabilidade da situação exacerbou o conflito com as autoridades, percebidas como espoliadoras ou omissas/coniventes e uma relação não conflitante com outros segmentos. Uma suposição alternativa para explicar os limites dos conteúdos das ações é a que os relaciona ao aparato repressivo acionado, podendo-se exemplificar, no episódio da tentativa de invasão do palácio dos Bandeirantes (p. 70), através da evitação de confronto com o policiamento e o retorno da multidão à posição demarcada em seguida ao derrubamento das grades. Supor que a invasão não se concretizou porque resultaria em uma maior repressão é plausível quando vista isoladamente. Embora se possa admitir o medo da repressão como um componente presente, inserindo-se este episódio no conjunto das manifestações, tem-se o dado de que nas ruas e praças a multidão enfrentou riscos de repressão semelhantes e possivelmente mais acentuados, pois o policiamento agia com violência. Admitindo-se que os limites do conteúdo das ações sejam determinados pela identidade emergente, é possível inferir que os manifestantes percebiam a ocupação as praças e ruas como um “direito natural” que cabia exercitar, enquanto que a invasão ao palácio excedia à filiação categórica e, portanto, não era normativa. A ação de derrubar as grades não se generalizou entre os participantes e, consequentemente, os que a emitiram retornaram à posição original. 210 As ações que não ocorreram, como por exemplo, uso de armas, agressões entre os manifestantes, depredações de residências modestas e danos aos funcionários dos estabelecimentos saqueados e as que não se generalizaram como, por exemplo, agressão aos funcionários da Televisão Globo, reforçam, também, a idéia de que os manifestantes se comportavam com base na identidade emergente. Admitir que as ações coletivas se relacionam a uma identidade emergente, não significa, porém, supor uma relação do tipo causa-efeito. A identidade social é um processo resultante da inserção das pessoas em um grupo que é percebido enquanto tal pelas características comuns (sociais ou físicas) de seus membros. Assim, pessoas com a mesma identidade (de alguma forma percebendo-se como iguais) em uma mesma situação, tenderiam a reagir de forma razoavelmente semelhante. Geografia da ação coletiva. O início do processo coletivo localizou-se em Santo Amaro, especificamente no largo 13 de Maio. Esse espaço representa uma tradição de tentativas coletivas de exercício da cidadania e possui um significado muito especial ligado às categorias “popular”, “protesto” e “luta”. O retorno da multidão a esse local e as tentativas subseqüentes de ocupação do referido logradouro parecem evidenciar sua importância na manutenção da identidade emergente. Do Largo 13 de Maio, a multidão se deslocou em várias direções, percorrendo (p. 75) durante três dias de manifestações, cerca de 40 quilômetros de ruas e avenidas. O deslocamento da multidão relaciona-se com os alvos, ou seja, os manifestantes se movimentam em busca do lócus do poder político como uma tentativa de solução do problema vivenciado. Pode-se pensar que os manifestantes agiam enquanto um grupo na tentativa de solucionar problema comum (desemprego) que, de alguma forma, era percebido como resultando das ações (política econômica) de outros 211 grupos (autoridades). Dessa forma, os manifestantes se comportaram seguindo a lógica da “economia de movimentos” indo mais próximo (Administração Regional) para o mais distante (Assembléia Legislativa, Palácio do Governo e Centro da cidade) e obedeceram á hierarquia dos poderes constituídos. A delimitação do espaço geográfico na ação coletiva é determinada pelos alvos e se constitui de uma condição onde a expressão de ação uniforme (caminhar junto e verbalizar palavras de ordem) deriva-se da identidade social emergente e, ao mesmo tempo, atua no sentido de modelar tal identidade. A identificação de grupo é altamente provável em manifestações dessa natureza onde o conteúdo das ações e os enfrentamentos representam elementos “condicionantes” da percepção ingroup-outgroup. Essa identificação por sua vez determina o aparecimento de normas estereotípicas que definem e tornam mais uniforme o comportamento do grupo e constitui uma condição necessária e suficiente para a influência social. Provavelmente aqueles que não se comportavam de acordo com as normas não eram percebidos como pertencentes ao grupo. Isso parece explicar algumas “lideranças” para modificação das ações e do curso das ações. Em resumo, a seleção dos alvos, o estabelecimento de limites dos conteúdos das ações e a geografia da ação coletiva, parecem ter-se constituído em importantes fatores conjugados que permitem explicitar/justificar a hipótese de uma identidade emergente de espoliado. b. A identidade dos sem-trabalho. A diminuição e o desaparecimento das ações de rua relacionam-se diretamente com a reação empreendida pelo governo do Estado. A resposta governamental, 212 conforme a descrição (p. 112) ocorreu em três níveis: a repressão, a negociação e a persuasão. Na repressão o governo criou mecanismo legais impeditivos para o ajuntamento de caráter reivindicativo e desenvolveu ações diretas contra os manifestantes através do policiamento ostensivo. As tentativas de negociações diretas com os manifestantes obtiveram, em geral, resultados satisfatórios e foram mediadas por outros setores da sociedade. O objetivo imediato da negociação era o de interromper uma ação do movimento e diminuir o conflito e a tensão. Na persuasão o objetivo era mais amplo. De imediato buscava serenar os ânimos. Mensagens persuasórias, no sentido de compreensão e serenidade, foram assumidas, igualmente, por diversos setores da sociedade como, por exemplo, a Igreja. Da perspectiva governamental, as idéias veiculadas nos discursos das autoridades podiam ser interpretadas como segue: a) os “distúrbios sociais” haviam sido promovidos por pessoas (identificadas nas manifestações) ligadas ao Governo anterior; b) os desempregados, embora se reconhecendo as suas dificuldades, haviam sido manipulados; c) a perturbação social poderia servir de pretexto para o Governo Federal intervir em São Paulo e consequentemente retardar o processo de abertura política; d) a situação de pobreza acentuada e o desemprego eram de responsabilidade do Governo Federal; e) o Governo Estadual, através do Fundo de Solidariedade do Palácio do Governo, dirigido pela esposa do Governador, iria distribuir cestas de alimento; f) o Governo iria desenvolver uma política de criação de empregos; g) a ação policial “enérgica” não se dirigia contra os desempregados, mas contra aqueles que pretendiam “desestabilizar” o Governo. 213 O êxito dessas idéias, repetidas sempre que possível, deveria desenvolver o sentimento, naquele que aderisse às manifestações, de estar contribuindo com o retrocesso político, participando da “desestabilização” de um governo (finalmente) democrático, aceitando a manipulação dos “inimigos da democracia” e exigindo reparos de quem não possuía nenhuma responsabilidade pela situação. Os itens a e b, apareciam igualmente na fala dos Ministros e políticos ligados ao Governo Federal, embora a identificação (p.116) “dos manipuladores dos desempregados” remetesse a outras categorias, como PT e o PC do B. principalmente. A teoria que aponta as ações coletivas como resultado da presença incitadora dos “fomentadores profissionais da revolta popular”, largamente utilizada durante as manifestações de abril, deve ser discutida. Embora se possa admitir a presença de pessoas interessadas em exacerbar o conflito, com base nos dados disponíveis, não se pode atribuir-lhes nenhum controle da multidão. Conforme a descrição (p. 78) observase tentativas frustradas de algumas “lideranças”, de alterar o curso das ações e de alterar a própria ação, o que permite supor uma influência pouco significativa para utilizá-la como variável explicativa. Ademais, tal explicação minimiza e mesmo mascara a inadequação da ordem social e das autoridades ao maximizar, de um lado, a esperteza de uns poucos, e de outro, a ingenuidade de muitos. Embora as ações de rua, após os primeiros dez dias, tivessem praticamente desaparecido, não se pode afirmar que a identidade de espoliado se desvaneceu completamente. As tentativas isoladas de ajuntamento (descritas à partir da p. 77), imediatamente dispersas pelo policiamento, mostram que a percepção de pertinência a um grupo distinto ainda existia. Outras identidades sobrepostas, já existentes, passaram, no entanto, a prevalecer, o que explica as dificuldades iniciais de unidade e organização 214 do movimento. Duas identidades distintas, a da CUT/PT e CGT/PMDB, que representavam, na ocasião, diferentes visões de política sindical, sobressaiam, dividindo o movimento em dois grupos maiores. Na medida em que tais grupos começaram a colaborar na construção de um movimento único, como evidenciado pela assembléia na Igreja de Santo Amaro (descrição na p. 79) possivelmente as fronteiras entre tais grupos se tornaram menos rígidas. Essa maior permeabilidade entre grupos parece ter possibilitado a percepção de pertencimento uma categoria comum (desempregado), sobrepondo-se às filiações preexistentes. Alguns acontecimentos (p. 79 e seguintes) podem ter contribuído para essa cooperação entre grupos, e assim facilitando a ascendência de uma identidade comum: a) a ocupação do largo 13 de Maio após a Assembléia realizada na Igreja de Santo Amaro, apesar da proibição do uso de espaços públicos; b) o deslocamento, subseqüente à ocupação do largo (Santo Amaro), até a Assembléia Legislativa (parque do Ibirapuera) e c) a recusa do Governador de conversar com o movimento, não obstante a intermediação de deputados através de telefonemas ao palácio dos Bandeirantes. Esses fatores podem ter reavivado o sentimento de antagonismo e a percepção de homogeneidade distinta pelo compartilhamento de uma experiência. A descrição das “reações do Estado” (p. 112) mostra que havia um esforço por parte do Governo em “inocentar” os desempregados da responsabilidade pelos distúrbios ocorridos, o que se constitui de uma estratégia objetivando separá-los do restante dos manifestantes. Estes, embora não tivessem emprego fixo e regular, não eram considerados como desempregados. Para as autoridades e representantes de entidades patronais, “os desempregados”, constituíam um contingente de trabalhadores recentemente expulsos do mercado de trabalho. Essa separação tornou-se mais evidente 215 quando, da distribuição das cestas de alimento, aqueles que não puderam, através da carteira do trabalho, comprovar rescisão de contrato de trabalho, foram excluídos desse benefício. Essa separação, na perspectiva governamental, facilitava a negociação. As autoridades sabiam que o “caldo político” das negociações era mais positivo do que aquele derivado do confronto de rua que naquela circunstância, poderia ter desdobramento imprevisível. Essa separação efetuada pelas autoridades foi seguida de categorizações assumidas, igualmente, por outros segmentos da sociedade. O conjunto de manifestantes passou a ser designado por “desempregado” e “movimento dos desempregados”. A categorização de “for a” contribuiu para o reforçamento da auto-atribuição e o fortalecimento da identidade dos sem-trabalho. O percurso do Movimento de Luta Contra o Desemprego O percurso do MLCD consistiu das ações coletivas empreendidas desde sua emergência até a sua dispersão e se caracterizou por eventos de maior visibilidade social intercalados por outros de menor repercussão. As manifestações de maior visibilidade do MLCD ocorreram com certa regularidade. Considerando o ato público, e as manifestações de rua que se sucederam como marco de emergência do movimento, a segunda manifestação ocorreu após cinco meses e as demais registraram uma periodicidade de aproximadamente 12 meses. Essa periodicidade era intercalada por algumas manifestações mais restritas (p. 81), conduzidas por partes isoladas do movimento, e por eventos internos neste. A caracterização do MLCD e a identificação dos possíveis fatores que determinaram ou contribuíram para a sua sustentação implicam em uma análise da 216 natureza de suas reivindicações e das respostas que obteve dos diversos segmentos da sociedade. Além disso, a análise dos aspectos simbólicos de suas principais manifestações parece evidenciar elementos que influenciaram a sua estrutura e dinâmica interna e o impacto social por ele causado, constituindo assim, possíveis fatores adicionais de sua sustentação. a. As manifestações do MLCD As manifestações, conforme descrição (a partir da p. 66), representaram momentos de visibilidade nos quais o MLCD conseguia se fazer ouvir pela sociedade e pelo seu interlocutor mais direto, o Estado, nas questões em que pretendia obter alguma mudança e/ou nas suas propostas de mudança. A análise das manifestações em termos do significado das ações coletivas e do conteúdo das reivindicações evidenciam muitas das características do MLCD. Elementos simbólicos das manifestações. As ações coletivas ao longo da trajetória do movimento trouxeram, em seu bojo, alguns elementos dotados de simbolismos próprios de uma identidade dos sem trabalho. Alguns desses elementos se reproduziam nas diversas manifestações enquanto que outros se apresentavam irregularmente. Em relação aos significados do ato público e demais ações de rua, é bastante expressiva a escolha, como local das manifestações, do largo 13 de Maio que, além dos aspectos relacionados à sua denominação, representa uma longa tradição de encontros da classe trabalhadora da região Sul, nas relações de amizade e no exercício da cidadania. O ato de derrubar as grades do palácio dos Bandeirantes deriva, igualmente, 217 alguns sinais como, por exemplo, a exigência de uma relação mais direta entre autoridade/povo que, em algumas circunstâncias, não pode ser mediada pela burocracia do poder político, e a cobrança de promessas eleitorais de democracia e participação do Governo eleito. O acampamento (descrito à partir da p. 83), em si mesmo, contém alguns elementos simbólicos, como dividir o espaço, reunir os pertences essenciais, montar a barraca etc., que se relacionam ao coletivo, à família e partilha. Em termos de seus objetivos mais imediatos, o acampamento no parque expressava, de forma eloqüente a contradição do sistema. Por outro lado, a rotina do acampamento se desdobrou em vivências repletas de novos significados como exigência por uma distribuição igualitária dos bens recebidos e o exercício coletivo da democracia nas grandes assembléias. O reinventar do cotidiano, sob tal prisma, impeliu à elaboração de normas, algumas das quais diferenciadas daquelas já consagradas pela vida em sociedade. A invasão do SINE (descrição a partir da p. 96) denunciava a fragilidade da política de empregos do Governo, pois este era o órgão responsável pela colocação da mão de obra ociosa. Tornava-se explícito, assim, um mercado de trabalho restrito e um contingente de trabalhadores sem ocupação. A caravana ao palácio dos Bandeirantes (p. 107 e seguintes) foi planejada para se constituir em encontro entre os Grupos de Solidariedade e o Governador e, para tanto, foi protocolado pedido de audiência com um mês de antecedência. O uso de ônibus fretado para o transporte dos manifestantes e a solicitação de audiência marcaram o caráter de novidade na organização desse episódio. Além dos aspectos evidenciados em cada manifestação, existiam outros, comuns a todas elas, como por exemplo, o ritual das assembléias, o caminhar coletivo, o 218 conteúdo das palavras de ordem, a cantoria etc., que revelavam o caráter organizativo das manifestações. Alguns aspectos decorrentes das manifestações como o ritual das assembléias, as reuniões setorizadas, as tomadas de decisões coletivas, a produção de boletins e o caráter de anomia de algumas ações como a desobediência na ocupação de espaço público interditado e o religar clandestino de água e energia elétrica compunham, a nível interno, uma “cultura política” do movimento, subdividida em diferentes subunidades na medida em que o MLCD se compunha de grupos. Nessa cultura política o valor fundamental era o do direito ao trabalho, que se disseminava como um traço de junção dos grupos e expressava a identidade do MLCD. Poder-se-ia dizer que a cultura política exprimia, em um sentido difuso, que um conjunto de pessoas se percebia partilhando de uma situação de exclusão social (desemprego e pobreza) e, portanto, deveriam esforçar-se para se tornar visíveis (acamparem, invadirem) e, consequentemente, problematizar a política econômica em vigor. Com base na suposição de uma cultura política do movimento, expressando a sua identidade, pode-se dizer que as manifestações não se constituíam de ações isoladas em si mesmas, mas representavam elos de um contínuo que produziam e eram produzidas por desdobramentos próprios de sua identidade de base. O conteúdo das reivindicações. Algumas das reivindicações do MLCD como, por exemplo, o seguro desemprego, mantiveram-se em quase todas as manifestações, enquanto que outras eram introduzidas circunstancialmente. O quadro que segue relaciona as reivindicações de cada manifestação e as conquistas obtidas. 219 MANIFESTAÇÕES REIVINDICAÇÕES CONQUISTAS Ato público e protesto de rua Seguro-desemprego, redução da jornada de trabalho, estabilidade no emprego, direito sindical, assistência média, passe de ônibus Seguro-desemprego, redução da jornada de trabalho, estabilidade no emprego, isenção de pagamento de água e luz, passe de ônibus, congelamento de preços, reforma agrária, frentes de trabalho, liberdade de manifestação. Seguro-desemprego, emprego com um ano de estabilidade, cestas de alimento com 75Kg por 6 meses, isenção de pagto. de energia elétrica e água, passes de ônibus, atendimento médico, reconhecimento de organização. Recursos para projetos dos GS, passes ônibus, frente de trabalho, leite para crianças até 10 anos de idade. Cestas de alimento com 45Kg, isenção de pagto. de energia elétrica e água Emprego, passe de ônibus, isenção de pagto. de energia elétrica e água, cestas de alimento, projeto de instituição de segurodesemprego, formação de grupo extraordinário Cestas de alimento com 45Kg, passes de ônibus. Acampamento Ibirapuera do Invasão do SINE Caravana ao Palácio dos Bandeirantes Libertação de recursos aos projetos dos GS, renovação convênio do governo com a APSD. Quadro 9. Principais manifestações, reivindicações e conquistas do Movimento de Luta Contra o Desemprego ao longo de sua trajetória. Observa-se no quadro nove que alguns itens de reivindicações eram comuns às três primeiras ações coletivas conduzidas pelo MLCD. A análise dos itens de reivindicações permite considerá-los em duas perspectivas: classista e emergencial. Os itens considerados como classistas refletem uma ligação com as principais bandeiras do sindicalismo como, por exemplo, o seguro desemprego, a redução da jornada de trabalho e a estabilidade no emprego, que faziam parte da pauta das resoluções aprovadas pela 1ª CONCLAT (Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras). Os itens de cunho emergencial referem-se a soluções paliativas que minoram a situação imediata, mas não a alteram substancialmente e nem removem sua causação. Exemplificam essas perspectivas os passes de ônibus, cestas de alimento, isenção de pagamento de energia elétrica e água etc. As três primeiras manifestações incluíram reivindicações nas perspectivas classista e emergencial, enquanto que a caravana ao palácio dos Bandeirantes apresentava apenas as emergenciais. 220 Poder-se-ia pensar que a inclusão de itens de reivindicações emergenciais nas primeiras manifestações (p. 87, 96, 97) se constituiu em uma estratégia bem sucedida, pois requeriam respostas imediatas ou a curto prazo, do governo. Essas respostas necessariamente implicavam na abertura de canais de negociação e consequentemente no reconhecimento do MLCD. Além disso, esse tipo de reivindicação exigia uma atuação do Governo além dos mecanismos convencionais. Em outras palavras, as providências governamentais necessariamente teriam que superar os trâmites da burocracia, das decisões quanto às competências e atribuições para criar procedimentos eficazes de atendimento. As reivindicações emergenciais colocavam em cheque o modelo de assistência à classe trabalhadora e expressavam. à sociedade, a questão fundamental que é o direito á vida. Por outro lado, o atendimento dessas reivindicações representava ganhos parciais mantendo a nível objetivo a atratividade filiativa do movimento. O conteúdo das reivindicações, classistas e emergenciais, apresentadas simultaneamente, independente de seu provável sentido estratégico, desvelava a contradição do sistema. Este, ao permitir a exclusão do trabalhador do mercado de trabalho, como um “reajuste” ou “corretivos” necessários da economia, deveria igualmente, prover mecanismos de proteção aos excluídos. Ao mesmo tempo em que o movimento reivindicava o direito ao trabalho, ele cobrava, também, a assistência àqueles que involuntariamente estavam privados de atividade regular remunerada. As reivindicações classistas e as emergenciais mantinham a atratividade imediata do movimento pois, de um lado, expressavam a dignidade dos excluídos em seu desejo de trabalho e, de outro, representavam a possibilidade de ganhos parciais que contribuíam na sobrevivência pessoal e familiar dos filiados. 221 O conteúdo classista das reivindicações expressava a cultura política do movimento e provia elementos para a categorização externa deste enquanto grupo de desempregados. Tal categorização externa por outro lado, reforçava, a nível cognitivo, a auto-atribuição categórica dos participantes do MLCD. Assim, os elementos simbólicos das manifestações e o conteúdo das reivindicações atuavam simultaneamente, a nível interno, modelando a identidade dos sem trabalho enquanto movimento reivindicativo e, a nível externo, produzindo diferentes respostas, que convergentemente, reforçavam essa mesma identidade. b. As respostas obtidas As respostas obtidas pelo MLCD, dos diversos setores da sociedade e do Estado, se apresentaram, algumas delas com um caráter de pertinência que ultrapassava os momentos de visibilidade (“entidades na dinâmica do movimento”). Com relação à população em geral, o impacto gerado pelas manifestações (p. 112 e seguintes) parece estar associado ao tipo de ação e aos conteúdos das reivindicações. Algumas das reivindicações de caráter classista, se atendidas, beneficiariam a outras categorias e, portanto, serviam de pontos de contato entre o MLCD e a população. No entanto, cada ação pareceu produzir diferentes percepções e atribuições na população. Dependendo do alcance do consenso social obtido, como por exemplo, apoio ou indiferença da Igreja, cobertura favorável ou desfavorável da imprensa, tipo de reação do Governo, as atribuições foram positivas ou negativas para diferentes parcelas da população, gerando respostas diferenciadas tolerância/aproximação, intolerância/distanciamento etc. 222 como, por exemplo, de Dentre as manifestações do MLCD, a do acampamento do Ibirapuera foi a que gerou uma atribuição positiva mais generalizada, pelo menos em seu início. A aproximação da população se traduziu pelo envolvimento de diferentes entidades, grupos e pessoas com as questões do movimento e pelo apoio observado. Este apoio permitiu ao MLCD sustentar a manifestação por um período de tempo razoavelmente prolongado. Nos dois principais episódios de visibilidade, o acampamento do Ibirapuera e a invasão do SINE, o MLCD fez várias tentativas para manter uma relação satisfatória com a população em geral mas, pode-se dizer que grande parte da reação positiva desta com o movimento foi significativamente mediada pela Igreja (p. 118 e demais). O conflito entre o movimento e o Estado, em especial durante o acampamento do Ibirapuera e a invasão do SINE permitiu que se tornassem vais visíveis os conflitos entre a Igreja e o Estado. Durante o acampamento do Ibirapuera, o Governo Federal pretendia alterar a política salarial vigente visando a contenção dos ganhos salariais para níveis inferiores aos dos crescimentos dos preços. A Igreja, mais precisamente a Igreja progressista de São Paulo, mantinha-se crítica em relação ao modelo econômico em vigor, evitando porém, o confronto verbal mais direto. A Igreja apoiava plenamente o MLCD e na esteiras de suas manifestações externava mais diretamente a sua crítica ao modelo econômico, o que facilitava a disseminação de um forte sentimento oposicionista à política econômica adotada. Na ocasião da votação do decreto-lei 2.024, que introduzia mudança na política salarial penalizando acentuadamente a classe trabalhadora, o conflito entre a Igreja e outras categorias, com o Governo, se tornou ainda mais exacerbado. 223 Os principais protagonistas desse conflito foram o Governo Federal, o Congresso nacional, a Igreja e o MLCD. A igreja apoiava o MLCD, criticava abertamente o modelo econômico e defendia a necessidade de certa pressão da sociedade sobre o Congresso nacional na manutenção dos ganhos obtidos pelos trabalhadores. O MLCD dependia de apoio da Igreja e buscava do Estado o atendimento de suas reivindicações. O Governo Federal parecia confiar no “controle” exercido sobre o Congresso, mantendo-se pouco responsivo às críticas e à oposição, razoavelmente generalizada, à sua política. O Congresso Nacional, composto majoritariamente por parlamentares do PDS (partido que dava sustentação política ao regime militar) mantinha-se, conforme as críticas correntes, “subserviente” ao Governo Federal. Sensível, porém, às críticas que lhe estavam sendo endereçadas, o Congresso rejeitou o referido decreto, modificando sua relação com o poder executivo. O conflito com o Estado, a busca e obtenção de apoio de entidades cujo referencial ideológico priorizava a organização popular, as tentativas de explicitação da posição do movimento á sociedade e a relativa indiferenciação entre os grupos nos momentos de visibilidade reforçavam a identidade do MLCD enquanto grupo reivindicativo. De outro lado, a cobertura jornalística (p. 1231) e as freqüentes convocações de representantes do movimento para negociações, informações depoimentos etc., evidenciavam que o movimento era reconhecido e categorizado enquanto grupo. Esses dois aspectos contribuíram para caracterizar e acentuar a natureza das relações estabelecidas, entre o movimento e entidades e categorias sociais, como predominantemente intergrupais. O conflito entre o MLCD e o Estado, não se 224 constituiu, conforme análise do contexto, uma colisão isolada. Tal conflito se insere em um momento histórico relevante da vida nacional. Nesse sentido, algumas questões conduzidas pelo Movimento, permeavam os vários setores da sociedade. Pode-se dizer mesmo, que havia certa tendência pró-normativa em relação ao seguro-desemprego, mas que tal posição pode ser atribuída, em grande parte, à ação do movimento. Não obstante o contexto favorável, o seguro-desemprego somente foi regulamentado após a dispersão do MLCD. Durante as manifestações, as fronteiras entre o movimento e as demais categorias sociais e entidades ficavam nitidamente realçadas. Nem mesmo o compartilhamento da situação do desemprego (p. 99), em alguns momentos, era condição suficiente para a entrada outros indivíduos no movimento. Nessas ocasiões, o movimento se “fechava” reconhecendo como seus membros apenas aqueles que participavam de seus grupos internos e/ou das preparações para as manifestações. Certamente, a percepção de pertencimento tornava-se progressivamente mais forte a partir das preparações para as manifestações. As divisões de tarefas, as discussões gerais sobre estratégias a serem adotadas “diluíam” as fronteiras entre os grupos e aumentavam a colaboração entre estes, facilitando uma percepção de pertencimento ao movimento e dos possíveis outgroups. Os apoios circunstanciais pareciam favorecer a percepção do ingroup. Tais apoios (p. 128) se auto-atribuiam tarefas específicas de favorecer canais de negociação e de gerar recursos para a manutenção do movimento, o que “atenuava” o isolamento, sem, no entanto, desmanchar a fronteira do movimento. Em resumo, a natureza das manifestações, seus elementos simbólicos, o conteúdo das reivindicações e muitas das respostas obtidas pelo MLCD atuaram 225 convergentemente favorecendo a percepção de pertencimento a um conjunto distinto. As ações relativamente articuladas e uniformes derivadas da identidade de desempregado podem ter se constituído nos fatores fundamentais da sustentação do movimento ao longo do seu percurso. 3. A dispersão do MLCD Assim como a emergência do MLCD não pôde ser atribuída exclusivamente às contradições sociais existentes, a dispersão e igualmente não mantém uma relação direta com a resolução dessas contradições, pois dois anos após os saques de abril, o quadro de desemprego ainda podia ser considerado preocupante, estimando-se, conforme o DIEESE/SEAD, a existência de aproximadamente 400 mil desempregados no terceiro trimestre do ano de 1985. Além disso, constatou-se ainda, (p. 111) que grande parte dos que abandonou o movimento não o fizeram devido ao retorno imediato ao mercado de trabalho. É certo que se observou, ente o final de 1985 e início de 1986 (período em que o movimento se dispersou), um “reaquecimento” da economia que se refletiu em um aumento na oferta de emprego na área industrial e de serviços. A economia, nessa ocasião, no entanto, estava ainda distante dos melhores índices de desenvolvimento no país e de representar uma possibilidade de reabsorção imediata do imenso contingente de trabalhadores desempregados para o mercado de produção. A descrição da trajetória no MLCD evidencia que a sua dispersão não ocorreu abruptamente. A partir do episódio da invasão do SINE é possível identificar sinais de esvaziamento progressivo do movimento. 226 Considerando-se o MLCD como estruturado a partir de grupos, é possível supor que a natureza de tais grupos e as relações por eles engendradas se constituem de elementos importantes para a compreensão de sua dispersão. Os Comitês possuíam como traços comuns (p. 157), a participação de desempregados com experiência anterior de trabalho regularizado pela legislação e prática sindical de assembléia e de organização dos trabalhadores. Nesse sentido, suas principais lideranças manejavam, com certa desenvoltura, categorias de análise sobre a conjuntura social em geral, e sobre a situação de desemprego em particular. Tal experiência lhes permitia avaliar as ações do movimento com relativa teorização e defender propostas com base nas análises efetuadas. Os Comitês mantinham uma ligação mais próxima com partidos políticos, entidades politizadas como as CEBs, POs e Sindicatos. A base para a formação da identidade dos GS era o bairro e a religiosidade (p. 160). Os laços de vizinhança, as relações de amizade, a solidariedade, a oração coletiva eram elementos que perpassavam a vida do bairro e dos Grupos. Grande parte dos integrantes dos GS provinha da situação do subemprego e em geral não possuia experiência sindical. Os Grupos mais combativos se formaram com base na defecção dos Comitês e, por isso, se diferenciavam dos demais. Além desses aspectos, um outro diferenciava Comitês dos Grupos de Solidariedade. O primeiro se formava em uma perspectiva de pertencimento ao movimento, enquanto os GS eram constituídos como departamentos de uma associação civil sem fins lucrativos e se ligavam à APSD (p. 161). Nesse sentido os GS possuíam uma atratividade especial comparativamente aos Comitês: o repasse de verbas obtidas pela APSD junto ao governo e a sociedade (p. 160). Este parece ter sido o principal 227 fator do esvaziamento dos Comitês e do rápido crescimento dos Grupos de Solidariedade. A descrição do percurso do MLCD mostrou que o crescimento dos GS coincide com o descenso dos Comitês (p. 106) e, dada a perspectiva na qual os GS estavam se ampliando e se direcionando, pode-se compreender que o esvaziamento dos Comitês contribuiu para que a cultura poética do movimento e diluísse ainda mais e praticamente perdesse qualquer sentido de convergência em relação ao direito ao trabalho. Os dados permitem inferir que o movimento perdeu sua combatividade, o que pôde ser observado no episódio da caravana ao palácio dos Bandeirantes, pela pauta de reivindicações que enfatizava excessivamente os itens emergenciais e a posição claramente paternalista por parte do Governo do Estado. Pode-se dizer que a forma com que os grupos se estruturavam vinha ao encontro dos interesses do Estado. A possibilidade de desenvolvimento de projetos de trabalho e a criação de microempresas poderia se constituir em uma forma de abrandar a situação de pobreza e de recolocação e remanejamento “natural” de mão de obra. Daí por que os órgãos e secretarias buscavam incentivar e prestar assistência aos GS, nas suas tentativas de organização de projetos. O maior temor do Governo relacionava-se ao trabalho dos partidos oposicionistas e da Igreja progressista junto aos Grupos. Tal temor, embora justificado, não se traduzia em maiores alterações na ação governamental, uma vez que sua estratégia parecia, pelo menos em curto prazo, manter o MLCD longe das manifestações mais espetaculares. Essa estratégia governamental pode ser compreendida como uma tentativa de cooptação. Em outras palavras, o Governo criava espaços na economia informal onde se 228 movimentavam os Grupos, sobrepondo às tentativas de “novas vivências” e de conflito com o Estado, as relações inerentes ao sistema: dependência so poder público, controle de horário, incentivo à produção, hierarquização, competitividade etc. Por outro lado, não se pode, apesar do quadro de desemprego ainda se grande na época da dispersão do MLCD, minimizar os efeitos da propaganda desenvolvimentista na criação de expectativas e comportamento em direção à adaptação, inserção e aproveitamento de novos recursos gerados pelo reaquecimento da economia. O reaquecimento da economia e a propaganda desenvolvimentista se constituíram um fato novo, não presente ao longo da trajetória do movimento. Esse fato pode ter atuado no sentido de favorecer o conflito entre Grupos que se voltavam para a elaboração de projetos de atividades econômicas uma vez que eles se movimentavam em uma faixa estreita da economia informal. Essa economia pde ser compreendida nesse contexto, como um conjunto de atividades voltadas para a satisfação de necessidades básicas, mediadas apenas indiretamente pelo mercado de produção e consumo do sistema. Trata-se pois, de serviços destinados a um consumo diminuto e circunscrito como as padarias de fundo de quintal, pequenas fábricas de vassouras localizadas em barracões alugados ou cedidos, oficinas de costura instaladas em um cômodo extra da residência etc. Por atuarem na mesma faixa, muitos Grupos acabavam disputando o mesmo mercado de produção e serviços e se tornavam por isso mais vulneráveis à competição. Esse fator eliciava mais fortemente o processo de comparação/categorização tendendo a tornar mais saliente as fronteiras grupais. Não obstante o trabalho desenvolvido pelas entidades, os conflitos se tornavam mais freqüentes e mais difíceis de serem superados, 229 o que se constatou na defecção de alguns Grupos do Comitê de Ermelino Matarazzo. Observava-se nas reuniões promovidas pelas entidades, baixo comparecimento de Grupos e certo desinteresse pelos temas e problemas mais gerais como, por exemplo, a constituinte. A não renovação de convênio para repasse de verbas entre o Governo do Estado e a APSD dispersou, igualmente, a maioria dos Grupos de Solidariedade. Os que permaneceram se mantiveram ligados a APSD que redefiniu seus objetivos e estratégias. A reivindicação, a ação de rua, o conflito com o poder, características do movimento, não se constituíam de questões para tais Grupos, chegando-se, portanto, à dispersão total do MLCD. B. A diversidade de identidades nas unidades componentes do Movimento de Luta Contra o Desemprego. A análise do processo coletivo denominado de Movimento de Luta Contra o Desemprego em sua emergência, trajetória e dispersão, efetuada na parte A, toma como base a composição do movimento em subunidades (Grupos de Solidariedade e Comitês), que se ligavam a entidades (APSD, Basenova, CLCD-EM etc.) externas a este. A análise que segue enfatizará as características das subunidades, a dinâmica estabelecida entre estas e outras categorias sociais e prováveis fatores determinantes da passagem subunidade (Grupos de Solidariedade e Comitês) para a unidade ou conjunto (Movimento). 230 1. Similaridade e diferenciação. A análise da estrutura e organização dos Comitês de Luta contra o Desemprego e dos Grupos de Solidariedade (p. 156) permite afirmar que: a) os Comitês se diferenciavam amplamente dos Grupos de Solidariedade; b) os Comitês possuíam características comuns e diferenciadas entre si; c) os Grupos de Solidariedade se apresentavam com características comuns e distintas entre si. As principais características de similaridade e convergência entre os Comitês se relacionavam à noção de trabalho como um direito; à preocupação com a vinculação das reivindicações do movimento dos sem-trabalhos com aquelas conduzidas por outras categorias; à busca da criação de conflito com as autoridades e à defesa da adoção do seguro desemprego como um direito de assistência ao trabalhador desempregado. Dentre esses “traços” característicos dos Comitês o mais difundido foi a noção do direito ao trabalho, que estava na base de sua formação e organização enquanto grupo social. Essa noção possuía significado de valor que parece ter influenciado o conflito verificado no episódio da distribuição das cestas, quando a posição dos Comitês se dividiu entre os que eram favoráveis e os que eram contrários à sua aceitação. A justificativa em termos de “estratégia de mobilização” (p. 158) utilizada por aqueles que eram favoráveis ao recebimento das cestas, parecia representar uma tentativa de se contrapor às idéias difundidas de humilhação e de derrogação dos valores do direito ao seguro-desemprego e ao trabalho. Pode-se afirmar, que os Comitês de Luta Contra o Desemprego, possuíram de forma razoavelmente clara, a noção de oposição às autoridades (outgroup), responsabilizando-as pela situação de desemprego e pobreza em que se encontravam. 231 Mesmo mantendo-se coesos em torno das reivindicações, em particular do direito ao trabalho e à assistência social ao desempregado através do seguro desemprego, os diversos Comitês se distinguiam entre si, em especial, quanto à forma de encaminhamento de suas questões e das estratégias a serem adotadas. Nesse sentido, faziam alianças circunstanciais e buscavam apoios extra-movimento visando fortalecer suas posições internas. Os principais aspectos de diferenciação entre os Comitês eram, portanto, de natureza ideológica quanto às estratégias da luta contra o desemprego e se derivavam das imbricações com diferentes entidades como as Pos (pastorais operárias) e as principais tendências sindicais, a CUT e a CGT. Além dessas entidades, existiam outras, como núcleos do PT (Partido dos Trabalhadores) e do PC do B (Partido Comunista do Brasil) que influenciavam no posicionamento dos Comitês. Os Grupos de Solidariedade tinham, por sua vez, em sua estrutura formal, dotada pela APSD (p. 159) a base de sua similaridade e convergência. Pode-se dizer que a solidariedade era o vínculo que orientava a formação dos GS. Os seus membros eram moradores do mesmo bairro, possuíam laços de amizade, de vizinhança e tinham também certa familiaridade com a entidade que “criava” o grupo. O objetivo principal dos GS, ao menos em sua estruturação formal, era o da distribuição, entre seus membros desempregados, dos recursos assegurados pelo Estado e mediados pela APSD. Essas características, comuns a todos os GS, não impediam porém, que eles buscassem alcançar alguma forma de diferenciação. Constatou-se, não obstante o nivelamento dos GS’s através da estrutura burocrático-formal (p. 160) derivada da APSD, que a escolha dos nomes dos grupos não 232 se restringia, para a sua maioria, em um mero cumprimento de uma exigência burocrática de registro. Mais do que isso, a denominação do grupo expressava um significado próprio, que se relacionava ao bairro enquanto local de moradia e/ou uma entidade ali vinculada, que representava o espaço de encontro e de referência. Cada grupo, portanto, desde a sua formação, expressava, através de seu nome, uma identificação particular de seus membros com algum elemento de ligação entre eles (Bairro, Igreja, estilho de vida, dificuldade, associações etc.), e que os distinguiam entre si. Assim, um grupo não era um grupo qualquer e se tornava inconfundível, em um primeiro momento, pela escolha de uma designação. Além da identificação com o bairro e com a entidade, algumas das denominações (p. 162) continham certo apelo ou convocação para a mobilização, que expressava uma indignação diante da experiência comum de pobreza e desemprego. Outras características como a composição, as atividades desenvolvidas, o local de moradia, também constituíam, muitas vezes, a base da diferenciação e da comparação entre os Grupos de Solidariedade. Observou-se uma relação entre a composição do grupo e os projetos de atividade desenvolvidos. Os Grupos com predominância feminina tendiam a priorizar atividades produtivas do tipo oficina de costura, fabricação de bonecas de pano, de peças de crochê etc., a escolha das atividades, dependia das habilidades e experiências de alguns membros do grupo ou da possibilidade de se encontrar, na comunidade, pessoas com preparo e interesse em ensinar tais habilidades. Alguns grupos, cujos projetos cresceram mais significativamente passaram a ser reconhecidos e designados pela classe de atividade a que se dedicavam. Era comum ouvir referências do tipo: “o grupo da fábrica de blocos” ou o “das doceiras” etc. 233 As características salientes, identificadoras dos grupos como, por exemplo, a denominação, local de inserção e atividade desenvolvida, pareciam adquirir, para os seus membros, um significado valorativo. Os dados (p. 167) sugerem, também, que os participantes comparavam seus grupos a outros, na maioria das vezes de um mesmo bairro ou de bairros próximos. Essa comparação era auto-avaliativa e pode-se supor uma tendência, de um lado a maximizar as características do ingroup, tidas como positivas como, por exemplo, orar antes das reuniões e, de outro, a realçar as características consideradas negativas no outgroup, como por exemplo, “reações agressivas”. A partir do processo de comparação, frequentemente o outro GS era categorizado com base no traço saliente de sua diferenciação. Assim, por exemplo, o grupo formado exclusivamente por moradores da favela Nossa Senhora Aparecida (Ermelino Matarazzo) era chamado de “grupo de favelados”. Por outro lado, os moradores dessa favela, participantes de um outro grupo composto também por moradores do bairro Paranaguá, eram referidos por estes como “os de baixo”. Os “de baixo” (que moravam na favela situada em terreno em declive), eram contrastados com “os de cima” (moradores do bairro) tidos como “mais capazes” e equilibrados para assumirem posição de direção do grupo (p. 167, 168). Algumas categorizações se disseminavam e pareciam ser aceitas pelos grupos alvos sem maiores resistências. Outras, talvez por expressarem valoração excessivamente negativa, não eram utilizadas pública e diretamente, observando-se que se restringiam apenas a algumas situações e que apareciam com certo caráter de cumplicidade entre os interlocutores. Pode-se supor que, além de evitar uma confrontação com o grupo a que se referiam o que poderia resultar em acusações e 234 rompimentos, tal atitude evitava também uma possível indisposição com as entidades que defendiam uma união e solidariedade entre os grupos. Em outras palavras, nenhum grupo pretendia ser identificado como responsável por categorização negativa de outros junto às entidades que lhes prestavam apoio. Em resumo, os traços característicos dos Comitês parecem refletir a percepção de um destino comum, compartilhado com um conjunto amplo, além do próprio Comitê. Esses traços facilitavam a identificação dos membros dos Comitês com o conjunto do Movimento. Por outro lado, as diferenças significativas de concepções de estratégias para o MLCD e as ligações dos Comitês com outras entidades atuavam na exacerbação da percepção do ingroup e outgroup. O Comitê, ao qual se discordava ido logicamente passava, a ser considerado o outgroup oponente que deveria ser superado na disputa pela hegemonia na condução do Movimento. a dificuldade dos Comitês em criar estratégias que “administrassem”os conflitos e superassem as divergências parece ter contribuído para as dissensões e a dispersão. Com relação às similaridades encontradas entre os GS, pode-se dizer que elas refletiam e, ao mesmo tempo, fortaleciam a identificação com a APSD mais do que com o Movimento. Além disso, suas dessemelhanças refletiam uma identificação com o bairro em termos de local de moradia e com a entidade ao qual pertencia, que tendiam a fortalecer uma percepção restrita do ingroup. Pode-se dizer que a estrutura formal, e mesmo informal, trazia uma noção de certa “perenidade” do grupo, independentemente do MLCD. Em outras palavras, o Grupo de Solidariedade se formava na perspectiva da solução do problema de sobrevivência através da assistência do Estado, mediada pela APSD, e poderia subsistir mesmo com a dispersão do Movimento. 235 Os Grupos de Solidariedade, a rigor, não estabeleciam como primado a luta contra o desemprego, como pode ser inferido das características de sua estrutura e das reivindicações explicitadas na caravana ao palácio do Governo (p. 108, 109). Tal manifestação se expressou em decorrência da ameaça de não renovação de convênio entre o Governo do Estado e a Associação Paulista de Solidariedade no Desemprego. Pode-se dizer, então, que os Grupos de Solidariedade se posicionaram em função do principal objetivo de sua formação: a questão do recebimento de verbas repassadas pela APSD. A viabilização dos demais objetivos da APSD em relação aos GS, principalmente o da atividade produtiva, deveria transformá-los, a nível de sua estrutura e, consequentemente, de sua prática e dinâmica. Isso de fato ocorreu com o GS “Jardim das Camélias” que se transformou em uma microempresa, embora a sua nova denominação “Oficina de Costura Mulheres em Luta Contra o Desemprego”, sugerisse uma acentuada relação com a sua história passada. Era de se esperar, portanto, que à mediada em que o Governo do Estado deixasse de suprir a Associação Paulista de Solidariedade no Desemprego com verbas, e os objetivos de auto-sustentação não se concretizassem, os Grupos de Solidariedades não encontrariam elementos de convergência externa (entre grupos) e interna (no grupo) e se dispersariam. Os poucos grupos remanescentes eram os que priorizaram o trabalho e não se estruturavam unicamente em função do auxílio financeiro recebido. 2. Identidade de grupo e identidade de movimento. Embora não se possa precisar com exatidão os fatores “desencadeantes” da passagem da identificação da categoria subunidade (GS ou Comitê) para a categoria 236 movimento, pode-se supor que a disseminação da cultura política do movimento e as reações externas de caráter ameaçador se constituíram em fatores preponderantes. Como cultura política entende-se as explicações sobre o desemprego, a pobreza, a organização social e valores sobre as questões relativas ao trabalho, ao direito à assistência social, à ação reivindicativa etc., a cultura política pode ser considerada como “causa” das manifestações (organização, reivindicações) e também como produto destas. A cultura política do MLCD se disseminava e influenciava a organização dos grupos, as normas, as atitudes e os comportamentos dos membros dos grupos. Certos “traços” da cultura atuavam no sentido convergente das subunidades. A disseminação da cultura política, pelo movimento, passava, porém, por uma “reelaboração”, nas suas subunidades componentes, a partir das experiências prévias de cada uma. Possivelmente, os “traços” culturais mais disseminados eram os que se relacionavam com a percepção de um destino comum. Assim, cada subunidade, não obstante os traços culturais disseminados pelo movimento desenvolviam, a partir das experiências prévias e de suas ligações a outras entidades, uma subcultura própria. Tal subcultura exprimia traços distintivos da subunidade como, por exemplo, a religiosidade do Grupo de Solidariedade “Boturussu com fé e união” (p. 164). No processo de absorção da cultura política do movimento e da expressão da própria subcultura, os participantes desenvolviam a percepção e o sentimento de pertencimento à subunidades e ao Movimento. Na medida em que os valores da cultura e da subcultura não produzissem “conflito psicológico” e que os objetivos de atuação não fossem antagônicos, ambos os sentimentos de pertença eram plausíveis. 237 A autodefinição categórica momentânea em um ou outro conjunto (subunidade ou unidade) relacionava-se às variáveis contextuais das relações em curso. A definição categórica definitiva em um dos conjuntos somente era possível em casos onde a subunidade se desligasse do Movimento. Em se tratando de comitê, isso implicava na sua dissolução, como de fato ocorreu com o CLCD-Eb e outros que se separaram. Algumas das reações externas que podiam ser consideradas como ameaçadoras ao conjunto, e não apenas a uma ou mais subunidades, pareciam ter uma maior probabilidade de desencadear a autocategorização em termos do Movimento e alterar a orientação das relações de membros de diferentes grupos para relações entre membros de de um movimento. Em outras palavras, nas ocasiões em que as reações externas eram interpretadas como ameaçadoras, cada subunidade componente tornava sua fronteira mais permeável à do grupo análogo e a fronteira do movimento mais demarcada em relação à categoria da qual supostamente a ameça provinha. Um exemplo que pode ser ilustrativo desse processo refere-se à disposição, do Governo do Estado, de não renovar convênio com a APSD (p. 133), o que resultaria na suspensão do repasse de verbas aos GS. Tal possibilidade se configurou como uma ameaça, observando-se uma “proximidade” entre os Grupos de Solidariedade que foi traduzida por um aumento na freqüência de visitas, reuniões, formação de comissões e, posteriormente, na realização de assembléias. Pode-se supor que a ameaça extensiva a todos os Grupos “eliciava” ou fortalecia a percepção de um destino comum, favorecendo, em um primeiro momento, relações cooperativas intra-grupo e depois entre grupos. Teoricamente o processo perceptivo-comportamental, a partir de um ou mais estímulos eliciadores, pode ser representado como no quadro que segue: 238 AMEAÇA EXTERNA PERCEPÇÃO DE COMPARTILHAMENTO DE UM DESTINO COMUM DIMINUIÇÃO DA PERCEPÇÃO DO INGROUP, DAS FRONTEIRAS E DA DIFERENCIAÇÃO INTERGRUPAL AUMENTO DO INTERCÂMBIO ENTRE OS GRUPOS DIMINUIÇÃO DA COMPETIÇÃO ENTRE OS GRUPOS PERCEPÇÃO DE PERTENCIMENTO AO MOVIMENTO PERCEPÇÃO DO OUTGROUP EXTERNO AO MOVIMENTO PRONTIDÃOP PARA A AÇÃO COLETIVA DE COMATE À AMEAÇA Quadro 10. Representação de processos psicológicos eliciados por eventos externos ameaçadores que alteravam a dinâmica interna do movimento. O sentimento de ameaça decorrente desses acontecimentos era rapidamente disseminado entre a maioria dos Grupos. Tal ameaça parecia contribuir para a ampliação da percepção de compartilhamento de um destino comum. Isso parecia resultar em uma ninimização da competitividade entre os grupos e uma maior permeabilidade de suas fronteiras, evidenciadas pelo aumento de encontros entre eles. Nessas ocasiões as reuniões se sucediam, bem como o início de intercâmbio. Nas reuniões, a percepção do outgroup se deslocava do grupo vizinho, pertencente igualmente ao movimento, para categorias externas responsabilizadas pela ameaça, podendo-se supor que a definição do outgroup facilitava o aparecimento da percepção de pertencimento ao MLCD. Esse processo ocasionava certa prontidão para a definição de algum curso de ação coletiva que possibilitasse a remoção da ameaça externa. A passagem da identificação de grupo para a de movimento não ocorria simultaneamente para todos os grupos. Pode-se supor que essa identificação era mais 239 rápida para os grupos em que a subcultura se aproximava mais fortemente da cultura do movimento, em especial, com relação aos valores do direito à assistência e da ação coletiva na resolução dos problemas comuns, percebidos como resultantes das ações de outras categorias. A identificação podia também ser “reforçada” pela entidade às quais as subunidades se ligavam, em particular por aquelas que, atuando na perspectiva da organização popular, tendiam a expressar os mesmos valores. Os grupos que se identificavam mais prontamente com o conjunto exibiam comportamentos mais uniformes e, em geral, as autocategorizações e as categorizações externas em termos de “combativos” atuavam reforçadoramente para tais comportamentos. Pode-se dizer que, nesse contexto, as relações eram marcadamente em temos da filiação categórica. Dois exemplos são pertinentes: os grupos (CLCD e GS) da Zona Leste que formaram a Plenária de Luta Contra o Desemprego e os Grupos de Solidariedade de Ermelino Matarazzo que formaram o Comitê de Luta Contra o Desemprego. Tais grupos se definiram mais prontamente em termos da categoria Movimento de Luta Contra o Desemprego, e buscavam e exerciam uma maior influência sobre os demais nessa direção. Essa influência se desdobrava em várias situações, em especial na preparação para as assembléias gerais e ações de rua através de um comportamento consistente com a proposta de estratégia de ação como, por exemplo, a de invasão do SINE. Essa proposta foi discutida em alguns Comitês (São Mateus) e Grupos de Solidariedade (Jardim Veronia e Ermelino Matarazzo), compondo progressivamente uma aliança, até ser apresentada na Plenária da Zona Leste, para finalmente chegar ao conjunto do Movimento. 240 O aumento de intercâmbio entre os grupos, frequentemente conduzia a decisões relacionadas a manifestações, que exigiam uma preparação razoavelmente cuidadosa. Os objetivos específicos de cada grupo eram, nesses momentos, sobrepostos por subjetivos gerais partilhados por todos os grupos. Na preparação para as manifestações, a noção do outgroup se tornava progressivamente mais clara. Este era avaliado e categorizado como oponente o que facilitava a identificação com o conjunto do Movimento. Nesse contexto, as diferenças salientes entre as subunidades do movimento, sobretudo as de caráter não político, eram minimizadas. As diferenças quanto ao mesmo aspecto ideológico, porém, às vezes, se exacerbavam. A fase de preparação para as manifestações desempenhava, portanto, um papel importante na indiferenciação ou, pelo menos, na minimização das diferenças entre os grupos, facilitando certa convergência de idéias e objetivos e uma diferenciação entre o Movimento e outras categorias sociais. O processo de diferenciação/indiferenciação tendia a se manter durante algum tempo após as manifestações e o ciclo teoricamente se repetia a cada nova situação crítica “eliciadora” da autocategorização do movimento. A minimização das diferenças salientes entre as subunidades facilitava o processo de percepção de pertencimento a um conjunto mais amplo e, por outro lado, a diferenciação entre o movimento e outras categorias, derivava relações da base intergrupal. Passado esse período, com o afastamento da ameaça ou, mesmo, com a sua concretização, as subunidades componentes do movimento tendiam a expressar sua diversidade de identidades. 241 C. Aspectos psicológico-sociais da participação A análise do processo coletivo toma como base, na secção A, a sua emergência, trajetória e dispersão e, em B, suas subunidades componentes e a dinâmica por elas estabelecida. Na presente secção, discute-se os dados referentes aos agentes sociais (p. 172 e seguintes), com ênfase na relevância da questão do desemprego sobre a “natureza” do envolvimento destes no processo coletivo e nos determinantes imediatos de sua filiação grupal. 1. O vínculo com a questão do desemprego Uma análise da história filiativa dos agentes (p. 172) permite considerar, em um primeiro momento, que estes pertenciam a grupos constitutivos do Movimento de Luta Contra o Desemprego e entidades ou exclusivamente ás entidade. Considerando-se os dados da “história filiativa”, e também da “caracterização inicial dos agentes” (p. 178), podes-se agrupá-los em dois conjuntos: a) os que tiveram a primeira filiação nas unidades componentes do MLDC enquanto desempregado, b) os que se filiaram exclusivamente nas entidades, na condição de empregado sem experiência de desemprego ou, na condição de “trabalhador autônomo”, com experiência anterior de desemprego. Dado que os agentes que se filiaram às entidades atuavam direta e exclusivamente junto aos desempregados, “formando” os Grupos de Solidariedade e fortalecendo sua organização, é possível dizer que a questão do desemprego constituía um vínculo entre as entidades e os grupos e entre estes e o movimento. Embora o desemprego tenha se constituído em um vínculo unificador do movimento, a condição dos agentes em cada um dos conjuntos, de empregado ou 242 desempregado, permite supor que a questão pessoal e social do desemprego era “elaborada” de forma diferente para cada um dos conjuntos, e que tinha também, implicações diferentes em termos de participação. Para o primeiro conjunto, ou seja, aqueles desempregados filiados às subunidades do movimento, a questão do desemprego remetia à luta pela sobrevivência. a. Experiência distinta compartilhada. Os relatos dos agentes que viveram a condição de desempregado (p. 190) permitem supor que essa experiência marcou profundamente o cotidiano de cada um, alterando-lhe a autodefinição e a auto-estima. Poder-se-ia dizer que a autodefinição categórica de desempregado, durante o período da economia em recessão, adquire um sentido acentuadamente negativo, pois a expectativa de uma nova colocação no mercado de trabalho é, nesse contexto, quase inexistente. Assim, o sentido negativo, pois a expectativa de uma nova colocação no mercado de trabalho é, nesse contexto, quase inexistente. Assim, o sentido negativo da categoria desempregado é convergentemente reforçado. De um lado, o trabalhador utiliza as atribuições negativas como uma justificativa pessoal para o afastamento de conhecidos, o isolamento, a dificuldade com a família etc. e, de outro, a designação externa, através de indicadores sociais, como a restrição de crédito no comércio e o registro no Sistema Nacional de Empregos (SINE), fortalece os atributos negativos da categoria. As dificuldades encontradas pelos agentes que possuíam uma história de relativo sucesso profissional e pareciam mais bem preparados para implementar alternativas adequadas de trabalho parecem relacionadas, de um lado, à crise econômica 243 que estreitava o campo das atividades convencionais e, de outro, ao sentimento de desvantagem psicológica decorrente da própria situação. Os agentes que obtiveram sucesso (A8 e A20 – p. 188) foram os que adotaram estratégias pouco convencionais. Os relatos sobre suicídio, alcoolismo, e desestruturação familiar experienciados por vizinhos e conhecidos (p. 189) parecem confirmar as teorias que enfatizam as psicopatias relacionadas ao desemprego. No entanto, as estratégias de sobrevivência, individuais ou coletivas, que permeiam a vida do trabalhador desempregado, aparecem como elementos que se contrapõem à relação desemprego-psicopatias. Isso não significa uma negação dos efeitos psicológicos e sociais do desemprego. Os dados permitem, mesmo, a afirmação de que a perda de emprego ou, mais apropriadamente, a ausência de perspectiva de nova colocação em médio prazo e a falta de assistência social afetaram a auto-estima dos agentes que viveram tal situação. Todos os agentes entrevistados que passaram pela situação de desemprego buscaram, conforme a lógica do sistema, soluções individuais para seus problemas. Possivelmente, as tentativas individuais mal-sucedidas facilitaram uma alteração da crença na mobilidade social para a crença na mudança social. Os depoimentos de A26 (p. 198) e de A16 (p. 202) podem ilustrar essa suposição. Também a decisão de A9 e A25, de se dedicarem exclusivamente à militância, pode ser tomada com uma certa evidência de que, aos esforços individuais malogrados de mudança na situação, pode suceder a busca de soluções através da ação coletiva. Além da expectativa de soluções para os problemas de vida através da ação coletiva (p. 200 e seguintes), outros aspectos, relacionados à questão do desemprego e da participação, devem ser considerados. 244 Se, de um lado, a categoria desempregado não provia ao trabalhador nenhuma identidade social positiva e, mesmo, podia afetar-lhe a identidade pessoal, de outro lado, a sua filiação a um movimento reivindicativo de direito ao trabalho, ainda que expondo socialmente sua situação, representava a possibilidade de superação de sentimentos negativos e de construção de uma nova identidade social ligada ao exercício da cidadania. Ao mesmo tempo em que o envolvimento do agente nas questões dos grupos e do movimento podia funcionar como um processo pedagógico de aprendizagem de habilidades inerentes à organização grupal como, por exemplo, organizar, conduzir e avaliar reuniões, dividir tarefas, entrevistar, fazer discursos e dirigir assembléias, ele facilitava a apreensão de uma cultura política e modificava atitudes e sentimentos negativos de autodepreciação e apatia. Dado que o papel de provedor da sobrevivência familiar é socialmente atribuido ao homem, é possível pensar que o desemprego resulta relativamente em um maior impacto neste do que na mulher, o que poderia ser um dos fatores explicativos para a predominância feminina nos GS. Em outras palavras, os sentimentos negativos, em decorrência do desemprego, seriam mais exacerbados no homem, resultando em obstáculo à sua filiação e participação nos Grupos de Solidariedade. Pode-se supor que a permanência, relativamente prolongada, dos agentes entrevistados no movimento e sua trajetória filiativa, relacionavam-se à mudança de sentimentos de “culpa-apatia”, para uma auto-estima positiva e uma prontidão para a atividade. Essa alteração de sentimento, a partir da filiação, contribuía para a formação de uma identidade social positiva que se reforçava pela participação nas tarefas organizativas do grupo e do movimento e nas manifestações de rua. A ausência de uma 245 identidade social positiva faria com que o trabalhador abandonasse muito rapidamente o movimento e/ou os grupos resultando em um fluxo mais acentuado, o que certamente dificultaria a organização e manutenção do MLCD. Do ponto de vista das relações sociais, o trabalhador podia recuperar contatos com antigos companheiros e/ou aumentar seu círculo de amizade através da das tarefas coletivas nos grupos ou no movimento. Esse engajamento desenvolvia nele a percepção de pertencimento, através da experiência social compartilhada com um conjunto distinto de pessoas que reivindicava, de outras categorias, o exercício de um direito (trabalho) do qual se sentiam excluídas. b. Crença na mudança social. Os agentes que não experienciaram a situação de desemprego filiaram-se a “grupos externos” ao Movimento de Luta Contra o Desemprego, como APSD, Basenova, Intercarta. Os dados disponíveis permitem apontar, como traço comum desses agentes, uma elaboração sobre a questão do desemprego em termos de justiça social. À exceção do agente A2, os demais explicitaram (p. 196 e seguintes) a convicção que o desemprego e a ausência de assistência social ao desempregado constituía uma injustiça praticada contra o trabalhador. A maioria expressou, também, que alterações na estrutura social, no sentido da reversão desse quadro, somente ocorreriam através da ação coletiva. Pode-se dizer, portanto, que esses agentes não partilhavam da idéia difundida de mobilidade social, mas, contrariamente, expressavam a crença na mudança social. 246 A disseminação da crença de que o sistema social é injusto e passível de ser alterado pode ser compreendida como um fator potencial na emergência do conflito entre grupos e no surgimento da ação coletiva. O objetivo, frequentemente explicitado pelos agentes em termos de “adensamento do tecido social”, permite afirmar que essas crenças mediavam atitudes e comportamentos de conflito com o sistema. Assim, a formação de grupos de pessoas excluídas pelo sistema social, que se ligariam pela solidariedade na formação de um “novo tecido social”2, evidencia uma forte crença na mudança social. O discurso dos agentes sobre o sistema social era elaborado com a utilização de alguns termos, bastante difundidos, tais como “novo”, “solidariedade”, “autonomia”, “sonho”, “democracia” e “busca”. Os termos “busca”, “sonho”, “novo”, ligavam-se às expectativas dos agentes e, ao mesmo tem, reforçavam a idéia da importância do trabalho por estes desenvolvido. As representações parecem indicar uma espécie de dever, a construção de uma nova ordem social (ver depoimento de A29, p. 198). Já a solidariedade, dada a sua conotação ético-religiosa, parecia refletir uma espécie de “sentimento de culpa social”. O depoimento de A7 (p. 197) não deixa dúvida quanto a plausibilidade dessa suposição. Em resumo, o conjunto de agentes empregados elaborava a questão do desemprego diferentemente dos desempregados. Para os primeiros, o Movimento de Luta Contra o Desemprego era um processo transitório, que se esgotaria pela recuperação da força do mercado de trabalho ou através da instituição do segurodesemprego e, para os segundos representava, de alguma forma, a possibilidade da resolução do problema de sobrevivência. A ação dos empregados e seus objetivos, embora apoiando o movimento, ultrapassam a perspectiva deste. Pode-se dizer, 247 portanto, que o projeto dos agentes empregados era mais abrangente e perene do que os dos desempregados partícipes do movimento. 2. Determinantes da filiação. A experiência da perda de emprego e os seus desdobramentos, em período recessivo da economia, configuram um quadro razoavelmente semelhante para o conjunto da classe trabalhadora. A crescente, que dificulta a sobrevivência própria e da família, atinge praticamente a todos. Assemelha-se, igualmente, de empresa para empresa, o ritual burocrático de desligamento do trabalhador de seu emprego. Este obedece, em geral, os passos que se seguem: a) notificação verbal ou escrita de comparecimento ao setor responsável pela tarefa de seleção e dispensa de pessoal; b) comunicação formal de rescisão de contrato de trabalho, anotações na carteira profissional, assinatura de documentos (recibos, guias para o FGTS etc.); c) encaminhamento para recebimento de salário e outros direitos como férias, décimo terceiro proporcional etc, e para retirada do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço). Esse ritual compreende um conjunto de estímulos que sinaliza, para o trabalhador, a sua inserção na categoria desempregado. Quando a expectativa de nova colocação é baixa, tais estímulos provêm sentimentos de desconforto, com prováveis alterações na auto-estima. As alterações na auto-estima orientam-se na direção de sentimentos negativos difusos em relação à própria pessoa ou, mesmo, de autocrítica e autodepreciação, em termos da escolha da atividade profissional, do local de trabalho etc. 248 Assim, a experiência de desemprego aparece como uma condição determinante da filiação do trabalhador a um movimento que, por definição, se colocava contra o desemprego e reivindicava a implementação do seguro-desemprego como um instrumento legal de assistência social ao sem-trabalho. Vista nesses termos, a relação entre esses aspectos pode ser resumida no esquema c= f(s), onde, c, comportamento filiativo, aparece como uma função (f) da situação (s) pessoal ou social do desemprego. Tal explicação, embora aparentemente bem fundamentada, não consegue, no entanto, dar conta de algumas questões. A primeira e talvez a mais importante é o comportamento de recusa filiativa ao movimento, por trabalhadores desempregados que também viveram situação semelhante àquela experienciada pela maioria que se filiou ao MLCD. Além disso, o movimento contava com a presença de pessoas empregadas, com situação econômica definida, que mantinham uma participação ativa e dedicada. Mesmo quando a necessidade parecia o principal fator (caso GS), é possível pensar que a situação de desemprego (e portanto a necessidade) era uma condição presente, porém, não inteiramente suficiente como determinante do comportamento filiativo. Entre a situação de desemprego e o comportamento filiativo alguns outros fatores intra-individuais pareciam atuar no sentido mediacional. Considerando-se, pois, a situação de desemprego, apenas como uma condição presente, o esquema que segue parece mais abrangente para explicar o comportamento filiativo: c= f(s + fp). Onde, c, comportamento filiativo é função (f) da situação e de fatores pessoais (s + fp). 249 Os fatores pessoais que provavelmente atuariam como mediadores do comportamento filiativo são: a) a atribuição sobre as causas da situação vivenciada; b) a experiência prévia de filiação; c) o encontro social significativo. Os itens a e b referem-se a uma espécie de prontidão para filiação e o ítem c pode ser definido como a interação do indivíduo com “agentes do movimento”. A atribuição diz respeito a uma identificação de uma ou mais causas prováveis para a situação experienciada. Uma experiência como a do desemprego pode ser analisada pelo indivíduo de forma a atribuir a si próprio, ou a algum fator supranatural, a “causação” da situação. Ele pode explicar o fenômeno do desemprego a partir de uma observação excessivamente restrita, relacionando-o a atributos próprios, sentidos como negativos, como por exemplo, idade avançada, conhecimento teórico insuficiente etc. Além disso, ele pode relacionar a sua situação a fatores externos, inacessíveis, for a de seu controle, sobre os quais nada pode fazer como, por exemplo, “destino”, “castigo divino” etc. A atribuição a si próprio e/ou a fator supranatural provavelmente dificultam a filiação, pois “dispõem”à autodepreciação e a apatia e/ou à busca de soluções através da oração e do misticismo. Por outro lado, uma análise mais “objetiva” da situação pode levar à atribuição do desemprego a fatores mais plausíveis como a relação entre categorias sociais, a estratégias política ou o sistema social de forma genérica. Esse tipo de atribuição provavelmente facilitaria o comportamento filiativo, pois “dispõe” a queixas da ação de outras categorias e ao sentimento de injustiça. A autodepreciação cederia lugar à crítica ao sistema ou às categorias responsabilizadas pela situação “criando” noção de 250 “ingroup” e “outgroup” que poderia ser seguida pela aceitação de “mensagens” de grupos e/ou de filiação a um grupo ou entidade comprometida com o problema. Evidentemente, isso não exclui uma avaliação do indivíduo na escolha de um ou outro grupo, de uma outra entidade ou mesmo na recusa de filiação. A experiência prévia de filiação refere-se à inserção dos agentes em grupos ou entidades em período anterior à sua filiação a uma subunidade do movimento ou a entidades que apoiavam o desempregado. Tais experiências alteravam a crença na mobilidade e/ou fortaleciam crenças na direção de mudanças sociais, além de se constituírem de um reino de habilidades específicas que tornavam o agente conhecido e requisitado para novas filiações, além de se tornarem também recrutadores. É significativo o processo de recrutamento (p. 190 e seguintes) em particular nos casos dos agentes A1, A24 e A25, o primeiro recrutado por A7 e os dois seguintes por A27 que também se tornaram recrutadores. O encontro social significativo é constituído por interações entre um indivíduo não partícipe e um agente, membro de um grupo, que se comporta com base na sua filiação categórica. Como exemplo de encontros sociais significativos, pode-se citar o ato público, a assembléia, a palestra e mesmo uma interação diádica com um agente pertencente a uma entidade ou subgrupo do MLCD. Tal encontro provê ao indivíduo não participante um alargamento de sua compreensão sobre questões relacionadas ao tema em discussão e expectativas favoráveis de mudança da situação social através do engajamento coletivo. Naqueles casos em que o não participante vivencia problemas relacionados aos tópicos discutidos, o encontro pode produzir alterações positivas em sua auto-estima pela constatação de compartilhamento e solidariedade e pela ampliação 251 de seus contatos sociais. Em suma, o encontro social significativo produz certo impacto no não participante, o qual pode se decidir pela filiação. A atribuição à causação externa para a situação de desemprego, as experiências filiativas prévias e o encontro social significativo podem atuar separadamente sobre o comportamento filiativo, mas não são excludentes entre si. Esses fatores modelam a crença na direção da mudança social, porém isto não significa que as filiações ocorram unicamente com base nessa crença. Embora a maioria dos agentes tenha explicitado crença na mudança social, é possível que, em alguns casos, esta tenha sido modelada como um resultado da filiação. Pode-se pensar, além disso, que a filiação aos Grupos de Solidariedade se dava, também, com base em uma espécie de avaliação custo/benefício. Em ouras palavras, a filiação era avaliada em termos de ganhos e perdas imediatos e/ou em longo prazo. Os agentes A22 e A23 parecem exemplificar essa suposição. Ambos atribuíram, como causa do desemprego, as dificuldades próprias do trabalhador e os fatores supranaturais e evocaram a necessidade como motivo de filiação ao GS e não se engajaram das manifestações do MLCD. 252 CONSIDERAÇÕES FINAIS Em geral os estudos mais recentes sobre os processos coletivos tendem a tomálos em uma perspectiva homogeneizante, dificultando a visão dos seus possíveis elementos constituintes. Além disso, frequentemente, os participantes do processo coletivo aparecem meramente enquanto informantes, desconsiderando-se seu papel de agentes. Dito de outra forma, a priorização do processo desvanece o ator, abstraindo-se aspectos importantes como a diversidade de experiências, de papéis e de concepções, que podem se constituir de fatores intra-individuais relacionados às ações que compõem esse processo. A complexidade dos Movimentos Sociais, enquanto processo coletivo inserido em um contexto social dinâmico, somente pode ser apreendida através de uma análise que considere o fenômeno em seu aspecto global (“sujeito coletivo”) e também, em seus elementos constitutivos. Assim, um processo coletivo pode ser considerado como um fenômeno de grupo e, como tal, compõe-se de subunidades (subgrupos) que estabelecem diferentes relações entre si. O desocultamento das subunidades enquanto elementos constitutivos de um processo coletivo, implica não apenas na seleção de adequadas técnicas de coleta de dados, mas também em uma perspectiva de análise que oriente a metodologia adotada. Em termos de metodologia, a descrição minuciosa e cuidadosa do fenômeno implica em uma visão de “dentro”, onde de fato, a dinâmica organizacional ocorre e de onde os elementos do processo podem ser apreendidos. Se orientada por uma 253 perspectiva social psicológica ela, necessariamente se direcionará, tanto para o “sujeito coletivo” quanto para os “sujeitos-indivíduos” (atores) que são, dialeticamente, pacientes e agentes do processo. Essa perspectiva de análise, social e psicológica, dá uma nova dimensão à discutida pertinência da proximidade do pesquisador com o seu objeto de estudo. A apreensão da dinâmica interna do processo e da elaboração que o agente faz de sua filiação, do significado da ação e das próprias concepções parece requere necessariamente a inserção do pesquisador neste mesmo processo. Considerando o objeto da presente pesquisa, o Movimento de Luta Contra o Desemprego, a presença razoavelmente contínua do pesquisador em sua trajetória, possibilitou a observação da existência de subunidades, suas diferenciações, implicações etc. Onde, provavelmente, a visão à distância tenderia a privilegiar o todo e a indiferenciação. A tarefa implicou, portanto, não apenas em definir seus contornos, ações e relações, mas também na apreensão dos elementos próprios da conjuntura social, da dinâmica interna do movimento, em termos de suas subunidades, e de “aspectos psicológicos” da participação coletiva. Objetivando a descrição minuciosa, combinou-se vários procedimentos, tais como, a observação participante, a entrevista e a pesquisa de material escrito. Os “componentes psicológicos” aqui considerados, não se restringem aos processos intra-individuais, mas derivam-se de uma abordagem que toma a interação em temos das modalidades interpessoal e intergrupal e considera certos processos psicológicos relacionados à filiação categórica do indivíduo. Considerando o referencial teórico utilizado, o Movimento de Luta Contra o Desemprego pode ser considerado como um Movimento Social, pois satisfaz aos 254 critérios de prolongamento no tempo, de envolvimento significativo de várias categorias sociais e de existência de um sistema de crenças compartilhado. A contribuição deste trabalho pode ser resumida, portanto, em termos de uma análise psicológica e social do Movimento de Luta Contra o Desemprego que: a) identifica fatores determinantes da emergência, trajetória e dispersão do movimento, enquanto sujeito coletivo, e suas relações externas com grupos e entidades da sociedade civil e do governo; b) identifica as subunidades do movimento, suas características, diferenças e a dinâmica entre elas estabelecida; c) identifica aspectos psicológicos e sociais relacionados ao comportamento filiativo e à natureza da inserção dos agentes no processo coletivo. Tendo em vista os objetivos deste estudo é possível considerar que a abordagem teórica utilizada mostrou-se pertinente e significativa, em especial quanto aos aspectos psicológicos relacionados à emergência e à dispersão da ação coletiva e ao comportamento filiativo. A Teoria da Identidade Social caracteriza-se como uma abordagem de grupo bastante inovadora e, como tal, parece indicada na análise do fenômeno coletivo. Não obstante a consideração da importância do referencial teórico utilizado, a amplitude e a complexidade dos dados apontam para a necessidade de pesquisas adicionais. Parece, por exemplo, sumamente importante que pesquisas comparem perfis de participantes das ações coletivas em relação àqueles indivíduos que, embora vivendo a mesma situação, recusam-se a participar. 255 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Allport F. Social psychology. Boston: Houghton Mifflin, 1924. Asch, S. E. Social psychology. New York; Prentice – Hall Inc. 1952. Barreira A. I. Incômodos hóspedes? Notas sobre a participação da Igreja e dos partidos políticos nos Moviemntos Sociais Urbanos. In: P. Krischke e S. Mainwaring (Orgs.), A Igreja nas bases em tempo de transição. Porto Alegre. L & PM CEDEC, 1986. Billig, M. The Social Psichology of intergroup relations. 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Combinações de atributos de estratificação social em função da amplitude pela qual são compartilhados. Quadro 2. Estrutura de crença representada como um contínuo influenciando o comportamento interindividual e comportamento intergrupal. Quadro 3. Procedimento de coleta de dados e respectivas fontes. Quadro 4. Classes de atividades desenvolvidas pelos Grupos de Solidariedade, relatadas na Intercarta. Quadro 5. Características dos agentes entrevistados de acordo com filiação, sexo, profissão, inserção/não inserção no mercado de trabalho e escolaridade. Quadro 6. Estratégias de sobrevivência adotadas após a perda de empregos. Quadro 7. Motivo de filiação dos agentes nas entidade e Grupos. Quadro 8. Classes de ações generalizadas durante as manifestações contra o desemprego e respectivos alvos. Quadro 9. Principais manifestações, reivindicações e conquistas do Movimento de Luta Contra o Desemprego ao longo de sua trajetória. Quadro 10. Representações eliciadas por eventos externos ameaçadores e alterações na dinâmica interna do Movimento de Luta Contra o Desemprego. Figura 1. Representação da composição do Movimento de Luta Contra o Desemprego após o acampamento do Ibirapuera. 263 Figura 2. Percurso filiativo dos agentes que possuíam filiação prévia em entidades ligadas à Igreja e ao Partido dos Trabalhadores. Figura 3. Percurso filiativo dos agentes que possuíam filiação prévia em Movimentos populares; Movimentos Populares e Partido dos Trabalhadores e exclusivamente no Partido dos Trabalhadores. Figura 4. Percurso filiativo dos agentes que não possuíam experiência prévia de filiação. Figura 5. Distribuição dos agentes conforme determinantes do desemprego.- Figura 6. Identificação de agentes recrutadores e recrutados dentre os entrevistados. 264