encontros teológicos 58

Transcrição

encontros teológicos 58
Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC
ISSN 1415-4471
www.itesc.org.br
FUNDAÇÃO DOM JAIME DE BARROS CÂMARA
INSTITUTO TEOLÓGICO DE SANTA CATARINA
Diretor: Pe. Dr. Vitor Galdino Feller
Vice-diretor: Pe. Dr. Domingos Volney Nandi
Secretário: Prof. Ms. Celso Loraschi
Coordenador/Departamento de Ecumenismo: Pe. Dr. Elias Wolff
Coordenador/Departamento de Comunicação: Pe. Dr. Domingos Volney Nandi
Coordenador/Departamento de Bíblia: Prof. Ms. Celso Loraschi
Bibliotecária: Adriana de Mello Tomaz
Secretária Acadêmica: Ana Maria Ramos
Secretária Institucional: Aline Maria Pereira
Assistente Administrativo: Donizeti Mendes Guimarães
Recepcionista: Crisleine Daiana Radatz
[Catalogação na fonte por Daurecy Camilo (Beto)]
CRB-14/416
Encontros Teológicos. Revista do Instituto Teológico de Santa Catarina –
ITESC, n. 58, Florianópolis, 2011.
Quadrimestral ISSN 1415-4471
I. Instituto Teológico de Santa Catarina
CDU 2 (05)
Preço de Assinatura para o ano 2011
Contribuição a partir de R$ 40,00
Forma de Pagamento
Cheque em nome do Instituto Teológico de Santa Catarina
ou depósito bancário:
Banco do Brasil, Agência 3191-7, Conta 09.645-8
Correspondência e Assinatura
Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC
Caixa Postal 5041
88040-970 Florianópolis, SC
Fone/Fax: (0xx48) 3234-0400
Home Page: www.itesc.org.br
E-mail: [email protected]
Revisão: Pe. Ney Brasil Pereira
Editoração eletrônica e projeto gráfico da capa: Atta
Projeto gráfico: Antônio Frutuoso
Printed in Brasil
Pede-se permuta
Exchange is Requested
ENCONTROS TEOLÓGICOS
Revista quadrimestral fundada em 1986
Diretor: Elias Wolff
Editor: Vitor Galdino Feller
Redator: Ney Brasil Pereira
Conselho Editorial:
Celso Loraschi – ITESC – Florianópolis, SC
Domingos Nandi – ITESC – Florianópolis, SC
Edinei da Rosa Cândido – ITESC – Florianópolis, SC
Elias Wolff – ITESC – Florianópolis, SC
Helcion Ribeiro – PUC – Curitiba, PR
Inácio Neutzling – UNISINOS – São Leopoldo, RS
João Batista Libânio – ISI-FAJE – Belo Horizonte, MG
José Artulino Besen – ITESC – Florianópolis, SC
Lilian Blanck de Oliveira – FURB – Blumenau, SC
Luiz Carlos Susin – PUC-RS e ESTEF – Porto Alegre, RS
Márcio Fabri dos Anjos – Pontifícia Faculdade N. Sra. da Assunção – São Paulo, SP
Maria Clara Bingemmer – PUC-RJ, Rio de Janeiro, RJ
Maria de Lourdes Pereira Dias – UFSC – Florianópolis, SC
Marlene Bertoldi – ITESC – Florianópolis, SC
Ney Brasil Pereira – ITESC – Florianópolis, SC
Rudolf von Sinner – EST – São Leopoldo, RS
Valter Maurício Goedert – ITESC – Florianópolis, SC
Vilmar Adelino Vicente – ITESC – Florianópolis, SC
Vitor Galdino Feller – ITESC – Florianópolis, SC
CoNSELHO CONSULTIVO:
Analita Candaten – Centro de Fomação Scalabriniana – Passo Fundo, RS
Armando Lisboa – UFSC – Florianópolis, SC
Cecília Hess – UNIVILLE – Joinville, SC
Érico Hammes – PUC-RS – Porto Alegre, RS 
Evaristo Debiasi – ITESC – Florianópolis, SC
Fábio Régio Bento – UNISUL – Tubarão, SC
Gabriele Cipriani – CONIC – Brasília, DF
Joaquim Cavalcante – Universidade Estadual de Goiás – Itumbiara, GO
Luís Dietrich – ITESC – Florianópolis, SC
Luís Inácio Stadelmann SJ – ITESC – Florianópolis, SC
Márcio Bolda da Silva – ITESC – Florianópolis, SC
Mari Hammes – ITESC – Florianópolis, SC
Marta Magda Antunes Machado – ITESC – Florianópolis, SC
Paulo Cezar da Costa – PUC-Rio, Rio de Janeiro, RJ
Roberto Iunskovski – UNISUL – Florianópolis, SC
Sérgio Rogério Junqueira Azevedo – PUC-PR – Curitiba, PR
Siro Manoel de Oliveira – ITESC – Florianópolis, SC
Vilson Groh – ITESC – Florianópolis, SC
Nota: O autor de cada artigo desta publicação assume a responsabilidade das opiniões que expressa.
Publicação dirigida aos agentes de pastoral das igrejas e aos professores universitários, pesquisadores e alunos nas áreas da Teologia, das Ciências da Religião e Ciências Humanas em geral, com o
objetivo de favorecer a formação religiosa, social e humana, promover o debate e incentivar a troca de
informações sobre temas teológicos, pastorais e sociais.
Sumário
Editorial ....................................................................................................... Crise e esperança: A CF 2011 e a Igreja Samaritana
Celso Loraschi.......................................................................................................... Ecologia Política
Gert Schinke..............................................................................................................
Ética e Ecologia
Pedro Paulo das Neves.............................................................................................
Mudanças Climáticas
Ir. Delci Maria Franzen............................................................................................ Bioética ambiental personalista
Frei Carlos Paula de Moraes, OSM......................................................................... Ética e episteme: contribuição das religiões para a ecologia
Marcial Maçaneiro...................................................................................................
Religiões bíblicas baseadas na Aliança Sagrada
Luis Stadelmann, SJ.................................................................................................. Caritas in veritate
Murilo S.R.Krieger, SCJ............................................................................................ Imagens e verdadeira face de Deus
7
11
25
39
51
67
77
93
107
Geraldo Maia............................................................................................................ 117
Teologia, Economia e Ecologia: Síntese da Semana Teológica realizada
no ITESC nos dias 20 a 24 de setembro de 2010......................................... 131
VERBUM DOMINI: Exortação Apostólica pós-Sinodal do Papa Bento XVI
Entrevista com Johan Konings.................................................................................
155
Recensões...................................................................................................... 165
Crônicas........................................................................................................ 171
Índice Geral dos anos 2009 e 2010............................................................... 175
Revista Encontros Teológicos 25 anos.......................................................... 187
Editorial
A Campanha da Fraternidade de 2011 volta-se novamente à temática ecológica com o tema Fraternidade e a vida no Planeta e o lema A criação
geme em dores de parto (Rm 8,22). Tema e Lema da CF 2011 afirmam o
valor da vida, não somente das pessoas, mas de toda a criação. De fato,
não haverá sobrevivência do ser humano se o planeta não sobreviver.
A Igreja, mesmo já tendo promovido Campanhas com temas ecológicos
como terra, matas, água... une-se agora às preocupações que perpassam
a sociedade como um todo em relação aos desequilíbrios climáticos e
o aquecimento global.
Tais mudanças são indiscutíveis, tanto que as pessoas já contam com a imprevisibilidade do clima e demonstram crescente temor
com as intempéries climáticas. Tais atitudes resultam da assustadora
intensidade de certos fenômenos como chuvas, que arrasam cidades e
ceifam vidas, ou prolongadas estiagens, dentre outros fenômenos cada
vez mais frequentes.
Trata-se de um problema atual que diz respeito a todos. A expressão “mudanças climáticas” indica algo sério, pois se o clima continuar
nessa escalada crescente de mudanças, em última análise o perigo não
é somente a ocorrência de catástrofes pontuais como vemos até o momento, mas um desequilíbrio climático tal que pode vir a colocar em
risco as condições para a sobrevivência da biodiversidade característica do planeta Terra. Além do mais, os que hoje mais sofrem com estas
mudanças em curso e o aquecimento global são os pobres, pois acabam
se instalando em locais que se tornam cada vez mais perigosos, como
encostas e margens de rios.
A Igreja, mesmo ainda não dispondo de uma doutrina bem estruturada sobre as questões ecológicas, a exemplo do que podemos ver no
campo da Doutrina Social, mas a julgar pelos documentos do Magistério
produzidos a partir da década de setenta, não esteve alheia à questão.
Segundo os documentos eclesiásticos mais recentes, existe a percepção da importância e urgência do engajamento das comunidades
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
7
Editorial
cristãs nos problemas dessa ordem. É o que podemos entender a partir
desta afirmação encontrada no Documento de Aparecida: “A Igreja
agradece a todos os que se ocupam com a defesa da vida e do ambiente.
É necessário dar especial importância à mais grave destruição em curso
da ecologia humana” (DAp n. 472).
A Campanha da Fraternidade 2011 nos propõe a reflexão, a
oração e ações concretas, com este objetivo geral: Contribuir para
a conscientização das comunidades cristãs e pessoas de boa vontade
sobre a gravidade do aquecimento global e das mudanças climáticas,
e motivá-las a participar dos debates e ações que visam enfrentar o
problema e preservar as condições de vida do planeta.
Esse objetivo será atingido com a realização dos seguintes objetivos específicos:
– Viabilizar meios para a formação da consciência ambiental
em relação ao problema do aquecimento global, e identificar
responsabilidades e implicações éticas;
– Promover a discussão sobre os problemas ambientais, com
foco no aquecimento global;
– Mostrar a gravidade e a urgência dos problemas ambientais
provocados pelo aquecimento global, e articular a realidade
local e regional com o contexto nacional e planetário;
– Trocar experiências e propor caminhos para a superação dos
problemas ambientais, relacionados ao aquecimento global.
Como estratégias que facilitam a realização desses objetivos,
temos as seguintes:
– Mobilizar pessoas, comunidades, Igrejas, religiões e sociedade
para assumirem o protagonismo na construção de alternativas
para a superação dos problemas socioambientais, decorrentes
do aquecimento global.
– Propor atitudes, comportamentos e práticas fundamentados em
valores que tenham a vida como referência, no relacionamento
com o meio ambiente;
8
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Editorial
– Denunciar situações e apontar responsabilidades no que diz
respeito aos problemas ambientais decorrentes do aquecimento
global.
Assim, a CNBB propõe que todas as pessoas de boa vontade olhem
para a natureza e percebam como as mãos humanas estão contribuindo
para o fenômeno do aquecimento global, com sérias ameaças para a
vida em geral, e a vida humana em especial, sobretudo a dos mais pobres
e vulneráveis.
A presente edição da revista “Encontros Teológicos” quer dar,
como o tem feito a cada ano, a sua contribuição para a vivência da
Campanha. Apresenta reflexões a respeito do tema, ajudando na sua
compreensão e fortalecendo as iniciativas concretas que contribuem para
a prática da fraternidade e a defesa da vida no planeta. Celso Loraschi
reflete sobre Crise e Esperança – a CF 2011 e a Igreja Samaritana; Pedro
Paulo das Neves trata da relação entre Ética e Ecologia, mostrando que
a ação do ser humano sobre o meio ambiente se constitui em matéria
essencial para a ecologia; Delci Maria Franzem analisa as atuais Mudanças Climáticas, tratando do aquecimento global e suas consequências para a natureza e o ser humano; Carlos Paula de Moraes – OSM,
trata da Bioética Ambiental Personalista, refletindo “sobre a relação
entre antropocentrismo e personalismo cristão no atual debate de bioética ambiental”; Marcial Maçaneiro aborda o tema Ética e episteme:
contribuição das religiões para a ecologia, as religiões demonstrando
“a busca da compreensão do cosmo e da natureza por parte do homo
religiosus nas diferentes culturas”; Luis Stadelmann reflete sobre as
Religiões bíblicas baseadas na Aliança Sagrada, o que fundamenta a fé
e a ética, reveladas por Deus; Dom Murilo S.R. Krieger escreve sobre
a encíclica Caritas in veritate, do papa Bento XVI, acentuando que “a
caridade na verdade, que Jesus Cristo testemunhou ... é a força propulsora principal para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa
e da humanidade inteira”; enfim, Geraldo Maia propõe uma reflexão
oportuna sobre “Imagens e verdadeira face de Deus”. Apresentamos,
também: uma síntese da Semana Teológica realizada no ITESC nos
dias 20 a 24 de setembro de 2010, na qual se refletiu sobre a relação
entre Teologia, Economia e Ecologia; uma entrevista de Johan Konings
sobre a Exortação Apostólica pós-Sinodal do papa Bento XVI, Verbum
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
9
Editorial
Domini; o Indice Geral dos números 52 a 57 (2009 e 2010) da nossa
revista; Recensão e Crônicas.
Esperamos, assim contribuir para que os leitores de “Encontros
Teológicos” possam, de fato, aprofundar o consciência da gravidade das
questões climáticas atuais, e tomar atitudes concretas que contribuam
para a promoção da fraternidade e da vida no planeta, como propõe a
CF 2011.
Pe. Elias Wolff
10
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Resumo: Este artigo tem a intenção de fazer ecoar o apelo lançado pelo Secretário
Geral da CNBB, Dom Dimas Lara Barbosa, na apresentação do Texto-Base da Campanha da Fraternidade 2011 a respeito da missão da Igreja samaritana no mundo
que sofre. A partir de seis palavras-chave, o autor aprofunda as reflexões em torno do
tema “Fraternidade e Vida no Planeta”. Cada uma dessas palavras é fundamentada
em referências bíblicas, com menção especial à parábola do samaritano, por oferecer
preciosas indicações à missão da Igreja nesta situação desafiante em que se encontra a terra, casa comum de todos os povos. As “dores de parto” pelas quais passa a
criação nos interpelam à cor-responsabilidade, na viva esperança de um novo mundo.
A bondade de Deus reflete-se em todas as suas criaturas. Formamos um só corpo.
Estamos intimamente relacionados. A vida no planeta terra está condicionada pela
ação respeitosa e solidária do ser humano com todas as coisas. A Igreja samaritana
testemunha a gratuidade de Deus pela prática do amor incondicional. Recria, em
cada local, as condições para a vida digna sem exclusão.
Abstract: The article intends to respond to the call heralded by the bishop Dimas
Lara Barbosa, secretary general of the CNBB, on the occasion of the publication
of the platform concerning the CAMPANHA DA FRATERNIDADE 2011focusing
on the task of the Church like the Good Samaritan in solidarity with the suffering
world. In the light of six key-words the author delves into specific themes dealing with “Fraternity and Life on this Planet”. Each of these words is framed by
biblical references, with special attention to the parable of the Good Samaritan.
In this perspective worthwhile hints are offered to the mission of the Church in
this challenging situation of the planet as a common place for all the peoples to
live in the world. As if the earth would be suffering the pains of childbirth all the
habitants are urged to exercise their responsibility to offer better conditions for a
new world. The Lord’s kindness irradiates on all creatures. We are bound together
as one living organism in mutual relationship and solidarity. The Church has the
task to give visibility to God’s graciousness through unconditional love to Him.
Thus at every place should sprout the fruits of life in dignity without restrain.
Crise e esperança
A CF 2011 e a Igreja Samaritana
Celso Loraschi*
*
O autor é Mestre em Teologia Dogmática com Concentração em Estudos Bíblicos e
Professor no ITESC.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011, p. 11-24.
Crise e esperança: a CF 2011 e a Igreja Samaritana
“No mundo em que vivemos, somos diariamente interpelados por
tantos rostos sofredores, que clamam por nossa solidariedade. A Igreja
samaritana não pode passar adiante, na presença de tantos irmãos e
irmãs que dela esperam acolhida fraterna, ombro amigo, mãos generosas...”. Esse apelo encontra-se na apresentação do Texto-Base (TB) da
Campanha da Fraternidade (CF) 2011, elaborado por Dom Dimas Lara
Barbosa, Secretário Geral da CNBB. Inspira-se no episódio do samaritano solidário, narrado no Evangelho de Lucas (10,25-37). Funciona
como fio condutor de toda a reflexão em torno do tema: “Fraternidade
e Vida no Planeta”.
De fato, as consequências do aquecimento global afetam a vida de
multidões de pessoas no mundo inteiro. São situações que reclamam por
providências imediatas. Diante da vida ameaçada, é necessário acionar
a força da compaixão capaz de nos fazer abandonar projetos pessoais,
para priorizar atitudes de cuidado coletivo.
A ONU já promoveu 16 Conferências para as Mudanças Climáticas. A última Conferência (COP-16) se deu em Cancun, no México, nos
dias 29 de novembro a 10 de dezembro de 2010, com representantes de
194 países. É impressionante como as declarações e acordos resultantes
desses encontros são praticamente inócuos. De fato, constata-se que os
governos das nações estão engessados aos interesses do grande capital,
interesses que se alicerçam no crescimento a qualquer custo.
Cancun foi a arte do possível em uma conjuntura desfavorável às propostas do movimento ecológico. A situação segue como dantes: a crise
ecológica se estende rapidamente e os segmentos sociais conscientes
desse fato não conseguem infletir a tendência. Enquanto isso, os responsáveis pelo sistema social resistem às mudanças indispensáveis à
preservação da vida. Ainda há muita água para passar em baixo da
ponte, até que sejam tomadas soluções à altura do desafio. O movimento
ecológico deverá fazer prova de que é politicamente capaz de propor
soluções e sensibilizar a população.1
O primeiro objetivo específico da CF 2011 expressa exatamente
a intenção de “viabilizar meios para a formação da consciência ambiental...”. Une-se, assim, ao movimento ecológico mundial dinamizado por
milhares de pessoas, grupos e instituições civis e religiosas. A gravidade
1
12
TARQUINIO, Tomás Togni. Cop-16-conferencia-de-cancun-um-pequeno-passoadiante, www.ecodebate.com.br. Acesso em 17 de dezembro de 2010.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Celso Loraschi
da situação exige urgente tomada de posição de todas as pessoas de boa
vontade. É uma questão de bom senso que implica na adoção de atitudes éticas, promotoras de condições de vida digna na casa comum de
todos os povos. A Igreja, seguindo a Jesus de Nazaré, atualiza o gesto
do samaritano solidário, dando prioridade ao resgate da vida ameaçada.
A partir de algumas palavras-chave, queremos contribuir nesta reflexão
sobre a “Fraternidade e Vida no Planeta” visando despertar a esperança
militante.
1 Em dores de parto
A criação em expectativa anseia pela revelação dos filhos de Deus... na
esperança de ela também ser libertada da escravidão da corrupção para
entrar na liberdade da glória dos filhos de Deus. Pois sabemos que a
criação inteira geme e sofre as dores de parto... (Rm 8,19-22).
O lema escolhido pela CF 2011 aponta para uma realidade de
sofrimento pela qual passa a criação. É consequência da transgressão
humana descrita em Gn 3. “A queda dos seres humanos tem por conseqüência a queda de toda a criação... A relação para com ela passa a ser de
exploração, fadiga e indiferença”2. No entanto, dentro do mesmo espírito
em que Paulo escreveu à comunidade cristã de Roma, com a certeza da
redenção trazida por Jesus Cristo, esse sofrimento é prenúncio de uma
nova vida. Os seres humanos podem aguardar a libertação em atitude de
viva esperança, deixando-se conduzir pelo Espírito de Deus e não pelos
desejos da carne. Ele explica: “O desejo da carne é a morte, ao passo
que o desejo do espírito é a vida e a paz” (Rm 8,6).
No contexto atual, podemos interpretar os termos paulinos “carne”
e “espírito” como duas orientações fundamentais para a nossa vida: ou
seguimos o caminho da vida pela prática do amor ou seguimos o caminho
da morte pela prática do egoísmo. Em outras palavras, são dois projetos
que se opõem, movidos por agentes humanos com diferentes interesses.
As consequências de cada um desses projetos são percebidas no cotidiano
da nossa vida, desde o âmbito familiar até o global.
A missão da Igreja é anunciar a Boa Notícia da vida e da paz a
todos os povos. Por isso mesmo, acolhendo as dores da humanidade,
2
REIMER, Ivoni Richter. Criação e Bíblia, in “Ecologia: cuidar da vida e da integridade
da criação”, Curso de Verão, Ano XX, São Paulo: CESEP e Paulus, 2005, p. 139.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
13
Crise e esperança: a CF 2011 e a Igreja Samaritana
perscruta o plano de Deus, o qual estabeleceu uma Aliança com o seu
povo e comprometeu-se a cuidar dele. Deixa-se interpelar por sua Palavra
e inquieta-se com a resposta que deve ser dada com toda convicção.
Que me restava ainda fazer à minha vinha que não tenha feito? Por que,
quando esperava que ela desse uvas boas, deu apenas uvas azedas?... Deles
esperava o direito, mas o que produziram foi a transgressão; esperava a
justiça, mas o que apareceu foram gritos de desespero (Is 5,4.7b).
A igreja é herdeira da tradição profética. Como fez Isaías, ela não
pode calar diante dos problemas que ferem a dignidade humana e de toda
a criação. Preocupa-se, em primeiro lugar, com as causas do sofrimento.
A principal delas é o sistema econômico atual, por ser “altamente concentrador e gerador de disparidades, quer a nível internacional, quer no
interior das sociedades...” (TB, 90); caracteriza-se pela produção de bens
em escala infinita, condicionando “o consumo compulsivo, inclusive de
produtos supérfluos...” (TB, 25); apossa-se das fontes não renováveis
oferecidas pela natureza, sem dar-se conta de que sua quantidade é
limitada e, portanto, seu esgotamento com funestas consequências já se
faz sentir: “destruição das florestas e da flora em geral, contaminação de
solos e águas, danos à saúde humana, deterioração de edificações etc...”
(TB, 34); prioriza, como acontece no Brasil com o Plano de Aceleração
ao Crescimento (PAC), os projetos de grandes e pequenas hidroelétricas, ignorando “o potencial oferecido pelo nosso imenso território para
a implementação e expansão da energia solar e da eólica” (TB, 41); o
agronegócio “foi desenhado para os grandes produtores... desmata impiedosamente... e não tem nenhuma sensibilidade para com os pobres”
(TB, 51 e 52); a biodiversidade encontra-se em processo de extinção
acelerada e “a continuidade dessas situações pode significar a perda, em
pouco tempo, de metade da diversidade atualmente existente, e seria um
desastre de proporção inestimável” (TB, 64).
Essas e várias outras advertências levantadas pelo Texto-Base,
a partir de estudos especializados, revelam que a natureza com o ser
humano encontra-se em situação de queda. Já não consegue defenderse. Assaltado pela força dos gananciosos, o planeta Terra mal respira o
hálito de vida. Necessita da atenção e do carinho da Igreja samaritana
que, por força da missão herdada de Jesus de Nazaré, volta seu olhar às
vítimas deste sistema econômico globalizante que almeja unicamente o
lucro; solidariza-se com as dores das populações migrantes, das famílias
expropriadas de suas terras e tradições, das que sofrem as consequências
14
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Celso Loraschi
da falta de água potável e de saneamento básico, das pessoas desempregadas, famintas, doentes...; denuncia as atitudes de governos e de grupos
de poder que, levados pela cegueira da ambição, não se preocupam com
os desdobramentos da exploração desmedida dos recursos naturais nem
tampouco com a produção de alimentos para todas as pessoas.
A justiça social passa a ser retórica comumente utilizada pelos defensores do progresso ilimitado, sendo que esse mesmo progresso aprofunda
a injustiça. A gravidade dessa constatação torna-se ainda mais patente ao
se afirmar que um bilhão de pessoas no mundo passa fome, quando está
provado que não há falta de alimento. E, tristemente, constata-se que “os
governos se tornam reféns dessa lógica do capital...” (TB, 90).
O drama não é apenas que os recursos são limitados, e que a terra já não
agüenta mais a exploração atual. O drama é que as classes dirigentes,
os chefes da economia, querem uma exploração mais forte ainda e um
esgotamento mais rápido dos recursos naturais. Querem o aquecimento
global e as perturbações climáticas, porque não querem mudar a estrutura da economia. O drama é dirigido por criminosos que dominam os
chamados governos, que na realidade não governam nada.3
Ao ler uma declaração tão contundente como esta de José Comblin,
tem-se a impressão de que a vida no planeta é causa perdida. A esperança, porém, não decepciona (Rm 5,5). Jesus, ao contar a parábola do
samaritano solidário, oferece ao seu interlocutor (um representante do
poder oficial) a alternativa de libertar-se do sistema excludente em que
está atado, para agir na defesa da vida das pessoas excluídas. Não basta
saber quem é o próximo e quais são seus direitos legais. A questão de
fundo é o que e como fazer: “Vai, e também tu faze o mesmo” (Lc 10,
37). Em dores de parto, assumindo “os sofrimentos do tempo presente”
(Rm 8,18), a Igreja aposta na gestação de um novo modo de ser e de
agir no mundo. Exerce sua missão profética de denúncia, e nos convoca
à solidariedade com toda a criação.
2 Bondade da criação
Quão numerosas são tuas obras, SENHOR,
e todas fizeste com sabedoria!
A terra está repleta das tuas criaturas (Sl 104,24)
3
COMBLIN, José. Deus e a Natureza, in: Agenda Latino-Americana 2010, São Paulo:
Ave-Maria, p. 25.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
15
Crise e esperança: a CF 2011 e a Igreja Samaritana
A primeira narrativa da criação (Gn 1,1-2,4a) resgata a bondade
radical de todas as coisas a partir de sua origem comum. Os autores,
imbuídos de espírito contemplativo, expressam a exultação do próprio
Criador, admirado com sua obra. Após cada etapa, Ele se mostra plenamente satisfeito: “Deus viu que era bom”...
A Teologia da Criação nos ajuda a compreender os desígnios de
Deus para suas criaturas. O universo não é fruto do acaso. É a concretização do desejo de Deus de comunicar sua própria vida. Portanto, todas
as coisas mantêm uma íntima ligação com o seu Criador. São vestígios
dele, expressão de sua bondade e de sua generosa criatividade.
A criação guarda um sentido, obedece a um plano, como expressa
o Catecismo da Igreja Católica: “Não é produto de uma necessidade
qualquer, de um destino cego ou do acaso. Cremos que o mundo procede
da vontade livre de Deus que quis fazer as criaturas participar do seu ser,
da sua sabedoria e da sua bondade” (n. 295). O plano divino, interpretado dessa maneira, orienta o ser humano a acolher com gratidão todas
as demais criaturas, pois tudo provém da mesma origem e participa do
mesmo destino.
Deus é bom. A natureza é boa. Todas as coisas são boas. Basta
pensar na beleza e importância do ar, da água, das árvores, do fogo, dos
animais, dos vegetais, dos minerais, de tudo o que existe no universo...
Da bondade divina recebemos também os dons da inteligência, da vontade e da liberdade, para preservar e promover a bondade de todas as
criaturas. Não há argumentos que justifiquem a exploração e a destruição do que Deus nos deu para o bem de todos. “Temos muitos motivos
para revalorizar a criação. Já fomos alertados com muita insistência. A
terra está morrendo porque está sendo explorada de uma maneira que
não consegue se recuperar. Isso constitui um desafio novo na história
da humanidade”.4 Oxalá a bondade divina pulsando no coração de cada
um de nós possa mover a nossa inteligência, a nossa vontade e a nossa
liberdade, para abraçar este novo desafio como em dores de parto, na
certeza de um mundo novo!
O samaritano da parábola do Evangelho de Lucas é a própria
figura de Jesus de Nazaré. Revela extrema bondade ao socorrer a natureza ferida naquele ser humano jogado à beira do caminho. Aplica seus
bens e seus talentos para resgatar a vida ameaçada. O azeite e o vinho,
4
16
COMBLIN, J., op.cit., p. 26.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Celso Loraschi
naquele momento, são administrados como elementos curativos segundo as propriedades inerentes, dons divinos. Também o dinheiro tem a
função social de promover a saúde e salvar a vida. Ao propor o tema da
“Fraternidade e Vida no Planeta” a Igreja no Brasil revela-se consciente
da “gravidade dos problemas ambientais” e pretende “trocar experiências
e propor caminhos para superar os problemas” (cf. objetivos específicos). No seguimento de Jesus, é nossa missão, como Igreja, acolher os
gemidos da criação e envidar todos os esforços para curar-lhe as feridas
e resgatar a bondade de todas as formas de vida.
3 Solidariedade cósmica
Grandes são as obras do SENHOR,
dignas de reflexão para quem as ama.
Sua obra é esplendor e majestade,
E sua justiça permanece para sempre.
Ele deixou um memorial de suas maravilhas... (Sl 111,2-4).
Todas as criaturas foram gestadas no útero divino. Estão intimamente ligadas umas às outras. A vida de uma depende da vida das outras.
Também o ser humano foi criado junto com as demais criaturas, fazendo parte da totalidade. Após a conclusão de sua obra criadora, o relato
bíblico ressalta a exclamação de Deus que contempla e integra todas
as coisas: “Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito bom”. O Texto
Base afirma: “Deus criou por meio de suas palavras todas as realidades,
formando uma grande solidariedade cósmica” (n. 100).
Formamos uma imensa comunidade planetária, interrelacionada
e interdependente.5 As diferentes espécies não são criaturas autônomas.
Vitalmente dependem umas das outras. Mais do que isso: há uma comunhão na diversidade. Somos UM, imagem da Trindade.
Dessa forma, como num jogo complexo e completo de relações, no qual
tudo é incluído, nada é negligenciado, tudo é valorizado e concatenado,
resgatamos a concepção de Deus, como Deus-Comunhão... A natureza criada, todos nós, somos imagem de Deus Trindade. Constituímos
um desdobramento dessa diversidade e dessa união. Uma verdadeira
5
Cf. BOFF, Leonardo. Princípio-Terra – A volta à Terra como pátria comum. São Paulo:
Ática, 1995.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
17
Crise e esperança: a CF 2011 e a Igreja Samaritana
unidade na pluralidade. O mundo é assim: complexo, diverso, uno e
entrelaçado. Somos espelho da Trindade. Somos Vida.6
Em todas as tradições religiosas cultiva-se a relação com Deus
para perscrutar seus desígnios e realizá-los na história. O universo é um
dos veículos comuns de revelação divina. O diálogo com Deus implica
o diálogo com o universo. É fonte de sabedoria. Nesse processo de dialogação o ser humano foi conhecendo o mundo e, infelizmente, passou
a dominá-lo ao invés de respeitá-lo. Equivocadamente aprendemos a
“amar a Deus” e desrespeitar a natureza.
Jesus, o samaritano solidário, é o modelo de relação íntima com
o Pai e com tudo o que o rodeia. A parábola não é meramente fruto de
uma imaginação fértil. É resultado de uma prática cotidiana. Junto às
vítimas dos poderosos “assaltantes” das estâncias políticas, econômicas
e religiosas, Jesus se movimenta dentro do Espírito que se desdobra em
sensibilidade, carinho, acolhida, cuidado, perdão e todas as virtudes que
o amor contém. A Igreja samaritana, no seguimento de Jesus, deixa-se
conduzir pelo Espírito de Deus que liberta de toda escravidão e transforma
a realidade. “Não recebestes um espírito de escravos..., mas um espírito
de filhos adotivos, pelo qual clamamos: Abbá! Pai!” (Rm 8,15). 4 Ser humano: senhor ou mordomo?
Que é o ser humano...?
Tu o fizeste pouco menos do que um deus,
de glória e de honra o coraste.
Tu o colocaste à frente das obras de tuas mãos (Sl 8,6-7).
Os relatos da criação situam o ser humano numa relação especial
com Deus: homem e mulher foram criados à sua imagem e semelhança
(cf. Gn. 1,27). Também possui uma relação íntima com a terra: foi modelado por Deus com a argila do solo (cf. Gn 2,7) e foi colocado no jardim
do Éden para o cultivar e guardar (cf. Gn 2,15). Ao mesmo tempo em
que o ser humano faz parte do conjunto de toda a criação, recebe de Deus
uma missão: é responsável pela vida, pelo bem estar e pela integridade
do conjunto das criaturas.
6
18
VIEIRA, Tarcísio Pedro. O nosso Deus: um Deus ecológico – Por uma compreensão
ético-teológica da ecologia. São Paulo: Paulus, 1999, p. 21.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Celso Loraschi
Muitas vezes se fez uso de textos sagrados para legitimar atitudes
de apropriação e de exploração da natureza. A visão antropocêntrica,
porém, deve dar lugar à biocêntrica. “O ser humano deve ser ‘mordomo
da criação’. Sua tarefa fundamental deve ser a de ‘cultivar e guardar’”
(TB, 217). Aos homens e mulheres, portanto, é confiada a missão de
zelar pela natureza, de tal maneira que se cumpra a vocação para a qual
foi criada: manifestar a glória de Deus. “O ser humano torna-se, através
de sua missão, concriador com Deus”.7
A perda desse sentido leva a humanidade a desprezar a sua própria nobreza e dignidade. Estas somente serão cultivadas na medida em
que todas as coisas sejam respeitadas, pois tudo é parte do todo. Deus
“dotou o ser humano de uma vida profundamente ligada a ele, o Criador, e profundamente ligada às criaturas. Assim, a natureza não aparece
como algo de externo ao ser humano, mas como um prolongamento
dele próprio”.8
Nessa perspectiva entende-se melhor o sentido da advertência
de não comer da “árvore do conhecimento do bem e do mal”, pois essa
atitude traria a morte (cf. Gn 2,17). “Os detentores do poder quiseram
comer da árvore do bem e do mal, utilizando de modo destrutivo os bens
do planeta..., conforme suas leis e critérios, sem nenhum respeito pelas
normas que presidem o justo e solidário relacionamento humano com o
universo” (TB, 111 e 116).
Na parábola do samaritano, Jesus insere alguns personagens que
revelam diferentes visões relacionadas ao próximo, e que condicionam a
maneira de se comportar. Ivo Storniolo explica de forma simples e clara:
São três compreensões diferentes, que condicionam o ser e o comportamento das pessoas. O ladrão acha que ‘o que é teu é meu’, e vive à
espreita contínua do roubo e da exploração. O sacerdote e o levita acham
que ‘o que é meu é meu’, e se fecham no que são e no que possuem,
deixando que os outros ‘se virem’. Já o samaritano acha que ‘o que é
meu é teu”, e reparte não só o seu coração, mas também o seu tempo e
tudo o que possui”.9
7
VIEIRA, T., op. cit., p. 47s.
8
MOSER, Antônio. O problema ecológico e suas implicações éticas. Petrópolis: Vozes,
1983, p. 41.
9
STORNIOLO, Ivo. Como ler o Evangelho de Lucas – Os pobres constroem a nova
história. São Paulo: Paulinas, 1992, p. 108.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
19
Crise e esperança: a CF 2011 e a Igreja Samaritana
Três personagens que sintetizam o modo de comportar-se frente
aos bens que Deus nos concedeu. Duas atitudes precisam ser rechaçadas: apossar-se do que é de todos e fechar-se no seu mundo, muitas
vezes legitimado por uma ideologia religiosa. Torna-se imperativo,
como mordomos da criação, assumir a ética do cuidado, preservando e
promovendo as condições de vida sem exclusão, para o tempo presente
e para o futuro.
5 Ética do cuidado
Vem, meu amado, vamos ao campo, pernoitemos nas aldeias, madruguemos pelas vinhas, vejamos se a vinha floresce,
se os botões se abrem, se as romeiras florescem:
lá te darei meu amor... (Ct 7,12-13).
O tema “Fraternidade e Vida no Planeta” implica na adoção da
ética do cuidado. É uma questão de amor e carinho com a criação. A
mulher e o homem, verdadeiramente livres, assumem a responsabilidade
(imperativo moral) pela vida em todas as suas formas. Vale aqui aplicar a
“regra de ouro” também com relação ao cuidado com a natureza: “Como
quereis que os outros vos façam, fazei também a eles” (Lc 6,31). O bem
comum humano, também o das futuras gerações, está ligado com o bem
comum da comunidade cósmica. Por isso, tudo o que existe merece viver. “Pode-se aqui falar do ‘princípio responsabilidade’ como elemento
fundamental da ética...” (TB, 219). Daí a importância de amorizar os
gestos cotidianos. As pequenas atitudes são importantes, pois contribuem
para um novo modo de ser e de viver na casa comum: o cuidado com a
água, com a comida, com a energia, com a poluição, com o lixo, com o
saneamento básico...
Não se busca nem se pratica a ganância, a soberba, a morte, a violência, a diferença que desvaloriza o outro ser. As diferenças que causam
opressão e sofrimento são superadas, e isso vale para todas as formas
de vida, porquanto Deus dá vida a todo ser vivente, respiração e tudo
mais... e nele vivemos, nos movemos e existimos (At 17,25.28)10
O cuidado é intrínseco ao ser humano. Nele e por ele nos formamos, crescemos e nos realizamos. “Esta palavra, cuidado, no latim
provém de ‘cura’, que se exerce mediante atitudes de amizade e amor...
10
20
REIMER, Ivoni Richter. Op. cit., p. 149.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Celso Loraschi
Não é exagero dizer que o cuidado é a essência do ser humano, o cuidado
inclui uma dimensão ontológica” (TB, 185).
A ética ecológica possui dimensão macro-ecumênica: caracterizase pelo relacionamento aberto e respeitoso com o próximo: todas as
pessoas de boa vontade, para além de sua pertença cultural ou religiosa,
pois o que está em jogo é a promoção da vida em todas as suas dimensões.
O próximo, porém, não é apenas o outro humano. É toda a alteridade. E,
como já sabemos, a alteridade é extensão da nossa própria identidade.
Formamos um corpo. Toda decisão a ser tomada deve considerar suas
implicações com a totalidade desse corpo. Por isso, merece cuidado
prioritário o membro que sofre. Em nossos dias, como enfatiza o Texto
Base (n. 187), o próximo que clama por cuidado é o planeta terra.
“Quem é o meu próximo?” Foi para responder a esta pergunta do
legista que Jesus contou a parábola do samaritano solidário. E o legista
parece ter entendido: “É aquele que usou de misericórdia para com ele”.
A misericórdia é a bondade humana acionada em favor dos necessitados.
Enquanto o levita e o sacerdote fazem-se estranhos à pessoa abandonada
à beira do caminho, o samaritano faz-se próximo, usando da misericórdia. A ética do cuidado pressupõe o “princípio misericórdia”. A Igreja
samaritana tem consciência dessa verdade revelada pela prática de Jesus.
A misericórdia derruba preconceitos, encurta as distâncias, promove a
reconciliação, vence o ódio, vê a necessidade do outro, aproxima-se,
cura, liberta...
6 O sétimo dia
O relato da criação culmina com o estabelecimento e a santificação
do “sétimo dia”. É o momento da contemplação de toda a obra. É no
sétimo dia “que o homem e a mulher vão reconhecer a realidade na qual
vivem e perceber-se criação de Deus” (TB, 119). Essa concepção do sétimo dia desdobra-se na valorização da vida, não pela produtividade sem
controle e sim pela reflexão, pelo discernimento, pela gratuidade, pela
relação de reverência... Por isso, esse dia é santificado e abençoado.
O sétimo dia, portanto, refere-se a um jeito de ser e de se relacionar
com todas as coisas. O descanso não é meramente uma parada no meio
do ativismo: é a oportunidade de conectar-se consigo mesmo, cultivar
a integridade e sentir-se parte da totalidade. O ser humano percebe-se
intimamente ligado com Deus e com as demais criaturas. “Deus liga a
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
21
Crise e esperança: a CF 2011 e a Igreja Samaritana
sua presença eterna com a sua criação transitória, está com ela e nela”
(TB, 123). É uma relação de amor, de mútua acolhida, de alegria e de paz.
Sim, pois o sétimo dia remete à “festa da criação. É em vista dessa festa
que Deus criou o céu e a terra e tudo o que neles existe” (TB, 122).
No capítulo 16 do livro do Êxodo nos deparamos com o episódio
do maná e das codornizes, alimentos que Deus garantiu para o povo
em caminhada pelo deserto. A própria natureza oferece cotidianamente
esses alimentos, que devem ser recolhidos e partilhados conforme a necessidade de cada pessoa. No sexto dia, por ordem divina, o povo devia
recolher também para o sétimo dia, pois este seria de descanso sagrado.
O legítimo esforço humano para suprir suas necessidades não pode ser
suplantado pela ganância. Violar o sétimo dia significa desejar o acúmulo
em detrimento das relações justas e fraternas. Deus é providente, mas
não tolera a acumulação. Alguns acumularam, “porém deu vermes e
cheirava mal” (Ex 16,20). Sem dúvida, uma importante lição para hoje:
“Provavelmente Deus perguntaria: até quando vocês vão desprezar a
natureza, pela ambição de acumular e gastar, e assim, fazer apodrecer o
planeta irresponsavelmente?” (TB, 135).
No tempo de Jesus, o sentido original do sétimo dia fora totalmente
distorcido pelo sistema legalista do Templo. Fora transformado num
mecanismo de controle e de exploração sobre o povo. Jesus resgata o
significado verdadeiro do sétimo dia, fazendo o bem e salvando vidas (cf.
Mc 3,4). Ele é o samaritano solidário, uma pessoa capaz de sensibilidade.
Dedica seu tempo prioritariamente para a libertação e a dignificação da
vida. O uso do seu tempo não está impulsionado pela ótica da produção,
e sim da gratuidade amorosa.
A Igreja samaritana testemunha a gratuidade de Deus pela prática
do amor incondicional. Recria, em cada local, as condições para a vida
digna sem exclusão. “O cuidado com o ambiente pode e deve ser hoje
uma resposta ao amor redentor de Deus. Com o Criador podemos e devemos ser cuidadores, ajudando a salvaguardar o direito e a dignidade
de vida...” (TB, 215).
22
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Celso Loraschi
Para prosseguir
A Carta da Terra11, redigida por uma Comissão Internacional após
um debate de 10 anos e apresentada durante a ECO-92, no Rio de Janeiro,
em seu preâmbulo, adverte e desafia:
Estamos diante de um momento crítico na história da Terra, numa
época em que a humanidade deve escolher o seu futuro. À medida em
que o mundo torna-se cada vez mais interdependente e frágil, o futuro
enfrenta, ao mesmo tempo, grandes perigos e grandes promessas. Para
seguir adiante, devemos reconhecer que, no meio de uma magnífica
diversidade de culturas e formas de vida, somos uma família humana
e uma comunidade terrestre com um destino comum. Devemos somar
forças para gerar uma sociedade sustentável global baseada no respeito
pela natureza, nos direitos universais, na justiça econômica e numa
cultura de paz...
Cada um de nós é capaz de cooperação, de solidariedade, de
carinho, de veneração, de cuidado, de relações justas e fraternas. A
comunidade humana global será certamente melhor se, nas pequenas
comunidades – família, rua, bairro e município –, cuidarmos de nossa
casa comum com a mesma atenção e carinho com que cuidamos do nosso
próprio corpo. Para isso, como alertou João Paulo II, “simplicidade,
moderação e disciplina, bem como um espírito de sacrifício, precisam
tornar-se parte de nossa vida cotidiana, para que não soframos todos as
consequências negativas dos hábitos descuidados de alguns”.12
A esperança militante concretiza-se no amor cotidiano. O maior
de todos os mandamentos se torna condição indispensável para salvar
a Vida no Planeta. O imperativo de Jesus: “Vai e faze o mesmo” nos
lança à prática do amor fraterno não apenas entre os humanos, mas com
todas as criaturas. Esse é o caminho de redenção do mundo. O amor é
o princípio que fundamenta a espiritualidade ecológica, patrimônio de
todos os povos e de todas as religiões. O amor ao próximo nos leva a
acolher o grito da terra, do ar, das águas, dos animais, das florestas...
Somos irmãos! Somos membros de um único corpo! Aprendamos uns
dos outros e salvemo-nos mutuamente!
11
Reproduzida no livro de BOFF, Leonardo. Do Iceberg à Arca de Noé – O nascimento
de uma ética planetária, Rio de Janeiro: Garamond, 2002.
12
João Paulo II. Paz com Deus, Paz com toda a criação. Mensagem para o Dia Mundial
da Paz de 1990.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
23
Crise e esperança: a CF 2011 e a Igreja Samaritana
Para prosseguir, uma prece do povo indígena Ute, da América
do Norte:13
Terra, ensina-me a quietude,
como a relva é silenciada pela luz.
Terra, ensina-me a sofrer,
como as velhas pedras sofrem com a lembrança.
Terra, ensina-me a humildade,
como as flores são humildes em seus primórdios.
Terra, ensina-me a acarinhar,
como a mãe que envolve seu bebê.
Terra, ensina-me a coragem,
como a árvore que se eleva solitária.
Terra, ensina-me a limitação,
como a formiga que rasteja no solo.
Terra, ensina-me a liberdade,
como a águia que paira no céu.
Terra, ensina-me a resignação,
como as folhas que morrem no outono.
Terra, ensina-me a regeneração,
como a semente que brota na primavera.
Terra, ensina-me a esquecer de mim mesmo,
como a neve que derrete esquece sua vida.
Terra, ensina-me a lembrar da bondade,
como os campos áridos choram com a chuva.
13
24
Endereço do autor:
Rua Maurício Spalding de Souza,
465, casa 01
Bairro Santa Mônica
CEP: 88035-110 Florianópolis, SC
E-mail: [email protected]
Cf. NOVAK, Philip. A Sabedoria do Mundo – Textos sagrados sobre as religiões universais, Rio de Janeiro: Nova Era, 1999, p. 387.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Resumo: Análise sobre a situação ambiental no Estado de Santa Catarina;
problemas e ameaças ecológicas atuais e futuras no Estado de SC; conceitos
científicos ecológicos; valores filosóficos do ecologismo; importância da temática ecológica no cenário mundial; ecologia política e engajamento individual e
coletivo no movimento ecológico.
Abstract: The analysis of the situation concerning the environment of the State
of Santa Catarina, merits the attention of the entire population because it focuses
on problems and alarming implications affecting present and future conditions of
life on earth. Value judgments based on philosophical principles underpinning
scientific ecological issues are to be dealt with. Ecology in a world wide scope
related with the political sphere and the role of the individual cannot be evaded
by anyone committed to the improvement of the environment.
Ecologia Política
Gert Schinke*
*
Historiador e ecologista; Presidente-executivo do Instituto Para o Desenvolvimento de
Mentalidade Marítima – INMMAR; Coordenador do MOSAL – Movimento Saneamento
Alternativo; Coordenador de Formação do Centro de Direitos Humanos da Grande
Florianópolis – CDHGF; membro titular do Núcleo Gestor Municipal do Plano Diretor
Participativo de Florianópolis.
Endereço: Rua Felipe Schmidt, 390, Sala 508, Centro, Florianópolis, SC.
Contatos: (48) 8424-3060, (48) 3324-0581, à tarde.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011, p. 25-38.
Ecologia Política
Neste artigo pretendo discorrer sobre o panorama ambiental catarinense, apontando os principais problemas ambientais que enfrentamos
no momento, assim como trazer à luz a discussão em torno de conceitos
ecológicos e valores filosóficos e políticos que alimentam esse movimento
social cada vez mais importante no cenário mundial.
O que se observa em Santa Catarina
Vivemos em um Estado muito diverso sob todos os aspectos:
morfologia, geologia, hidrologia, cobertura vegetal, fauna e flora, além
da diversidade étnica, resultado da ocupação humana que se deu ao longo
dos últimos séculos. Isso nos indica uma riqueza ímpar, um Estado no qual
podemos encontrar paisagens das mais diversas, fator de atração turística
inquestionável que coloca esta região do país de forma privilegiada no
cenário nacional e internacional. Esse fator, porém, também traz pesados
ônus ecológicos, como veremos mais adiante ao longo do texto.
Para uma análise mais acurada, ainda que ligeira, sobre os maiores
problemas ecológicos estaduais, perpassarei as macro-regiões do Estado,
sob essa perspectiva, procurando apenas destacar as ameaças e situações
mais importantes, sem, no entanto, deixar de observar que ocorrem um
sem número de outras situações que não reporto aqui, dadas as limitações
do espaço dese artigo.
Região Nordeste de SC
Seus maiores expoentes urbanos são as cidades de Joinville e São
Francisco do Sul. As maiores ameaças ecológicas na Região resultam de
uma combinação de fatores, dentre os quais encontramos os seguintes:
– Terminais portuários: áreas com enorme índice de poluição
e imenso tráfego de cargas;
– Polo industrial: geração de vários tipos de poluição e contaminação de aquíferos;
– Expansão urbana caótica: infra-estrutura nas cidades e na orla
marítima resultando de um processo assimétrico e irregular de
ocupação do solo;
– Degradação de áreas naturais: desmatamento em áreas da
Mata Atlântica; ocupação de mangues; pressões intensas sobre
fauna e flora endêmicas
26
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Gert Schinke
Região do Vale do Itajaí
Tendo como expoentes as cidades de Blumenau e Brusque, repetese o padrão verificado na região Nordeste, porém incluindo outros fatores
importantes:
– Polo industrial e rizicultura: atividades geradoras de intensa
poluição de vários tipos e contaminação de aquíferos;
– Turismo intensivo: atividade econômica de alto impacto
ambiental, geradora de poluição e estimuladora de intensa
especulação imobiliária;
– Expansão urbana caótica: impacto na infra-estrutura das cidades que se expandem em áreas não apropriadas para ocupação
urbana, fator gerador de riscos e tragédias sociais como as que
assistimos nos anos recentes;
– Degradação de áreas naturais: resultante da combinação
dos fatores acima, gerando desmatamento e também intensas
pressões sobre fauna e flora endêmicas dessa região.
Região do Litoral
Despontam as cidades de Itajaí, conurbação metropolitana de
Florianópolis e as cidades de Tubarão e Criciúma mais ao sul, todas
situadas na estreita faixa litorânea de baixa altitude que se estende até a
Serra do Mar, refúgio da Mata Atlântica.
– Terminais portuários: polos geradores de intensa poluição
de diversos tipos, e intenso tráfego na orla marítima;
– Polo industrial cerâmico, energia carbonífera e rizicultura:
poluição atmosférica e contaminação de aquíferos;
– Turismo intensivo: poluição de diferentes tipos e incremento
da especulação imobiliária, notadamente na região metropolitana de Florianópolis;
– Expansão urbana caótica: infra-estrutura nas cidades aquém
das necessidades da população, com imenso déficit no saneamento básico, transportes urbanos e planejamento urbano,
agravado pelo descumprimento do Estatuto da Cidade, gerando
impactos ao longo de toda a orla marítima;
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
27
Ecologia Política
– Degradação de áreas naturais: desmatamento e ocupação de
manguezais, pântanos, restingas e dunas, além de gerar intensas
pressões sobre fauna e flora endêmicas.
Região do Planalto Serrano
Tendo como expoente a cidade de Lages, essa região apresenta
os seguintes problemas:
– Monoculturas de pínus e eucaliptos, e pecuária extensiva:
degradação das terras de plantio e ameaças à fauna e flora
endêmicas;
– Polo industrial de celulose e papel: poluição e contaminação
de aquíferos;
– Barragens de usinas hidrelétricas: expulsão de agricultores e
inundações em enormes áreas antes ocupadas, gerando grande
tensão e problemas sociais em toda a região limítrofe ao Rio
Grande do Sul;
– Degradação de áreas naturais: desmatamento para dar lugar
às plantações de monoculturas arbóreas e pressões sobre fauna
e flora endêmicas.
Região do Meio Oeste
Tendo a cidade de Concórdia como símbolo maior, esta região
concentra o maior polo industrial de elaboração de carnes do Estado.
– Polo industrial de produção de carnes: poluição atmosférica
e contaminação de aquíferos; tráfego rodoviário intenso;
– Expansão urbana caótica: graves problemas na infra-estrutura
das cidades que sofrem com a migração interna em busca de
empregos;
– Degradação de áreas naturais: desmatamento; pressões sobre
fauna e flora endêmicas.
Região do Planalto Norte
A cidade de Mafra simboliza a região, sendo que esta apresenta
as seguintes características:
28
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Gert Schinke
– Monoculturas de pínus e eucaliptos: degradação das terras;
– Polo industrial de móveis: poluição e contaminação de aquíferos;
– Degradação de áreas naturais: desmatamento e pressões
sobre fauna e flora endêmicas, sendo a região do Estado que
apresenta o maior índice de desmatamento nos últimos anos,
fonte de enorme preocupação e geradora de intensos conflitos
sociais.
Região do Oeste
Tem na cidade de Chapecó seu maior expoente urbano, e apresenta
as seguintes características:
– Polo industrial de produção de carnes: poluição e contaminação de aquíferos; geração de tráfego rodoviário intenso;
– Monoculturas de soja e milho: contaminação da terra e aquíferos;
– Expansão urbana caótica: impactos sobre a infra-estrutura nas
cidades, notadamente na região metropolitana de Chapecó;
– Degradação de áreas naturais: desmatamento e pressões
sobre fauna e flora endêmicas, sendo que esta região é a que
dispõe de menor índice de cobertura vegetal florestal no Estado, em função da forma de ocupação e modelo do produção
agrícola baseado na monocultura e produção de carnes.
Maiores ameaças na atualidade e no futuro
próximo em SC
A economia em nosso Estado é pautada pelo binômio CARNESTURISMO. Carnes produzidas no Oeste e Meio Oeste do Estado, basicamente voltadas para exportação, ítem no qual o estado está atualmente
no topo do ranking nacional.
Esse complexo agro-industrial exportador demanda um fortíssimo impacto sobre os polos escoadores da produção situados nos portos
oceânicos, regiões que concentram um sem número de serviços ligados
à importação-exportação. Configurou-se ao longo das últimas décadas
um enorme corredor de exportação do agronegócio que inicia no extremo
Oeste e chega ao litoral na forma de vários sub-corredores rodoviários,
hoje totalmente insuficientes para um adequado atendimento da demanda
dos imensos volumes em questão.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
29
Ecologia Política
De outra parte, o lindíssimo litoral catarinense, recortado caprichosamente em centenas de baías dispersas de norte a sul, pauta o
TURISMO, atividade que se expande no mundo todo e que, em nosso
caso específico, atrai não somente o consumidor turista, mas principalmente enormes empreendimentos de diversos tipos voltados a atender a
demanda atual e futura nesse setor – complexos hoteleiros; condomínios
e prédios residenciais; resorts; marinas; complexos de entretenimento;
shoppings; além da especulação imobiliária local que é retroalimentada
na região onde se instalam esses empreendimentos.
Não por acaso, o maior índice de multas ambientais e processos
de licenciamentos questionados pelos poderes fiscalizadores das três
esferas de governo são da área da construção civil, infinitamente maior
em número que os do setor industrial e do agronegócio.
Na região Nordeste, há a ameaça presente por parte de um novo
terminal portuário, o Porto Mar Azul, em São Francisco do Sul. Já em
Joinville, coerente com a característica da cidade, instala-se uma nova
fábrica da General Motors, voltada para a produção interna e exportação.
Embora licenciada, gerará tremendo impacto sócio-ambiental sobre toda
a região, por via da atração dos empregos que gerará, mas, sobretudo,
por seus efeitos poluidores sobre o solo e atmosfera em toda a região
metropolitana de Joinville.
No Litoral-centro do Estado, a região de Florianópolis assistiu a
recente refrega em torno da instalação do Estaleiro da OSX, no município
de Biguaçu. Indústria metal-mecânica pesada, que importaria a maior
parte dos seus insumos para a produção de embarcações e adequação de
equipamentos navais voltados à exploração do pré-sal, ela traria inúmeros
impactos ecológicos, tanto na área territorial quanto marítima do seu
entorno, caso viesse a ser instalada. Felizmente o movimento ecológico
local comemorou a decisão do grupo empresarial em não instalar o
estaleiro em Biguaçu, mas no litoral do Rio de Janeiro – Porto de Açu,
localidade onde o empreendimento produzirá mais “sinergias econômicas
e logísticas” (leia-se retorno financeiro), conforme divulgado pelo grupo
empresarial EBX. Essa decisão, porém, não extirpou totalmente a ameaça
ambiental, pois a área que acolheria o estaleiro deverá ser utilizada para
um grande empreendimento imobiliário, embora gerando, sem dúvida,
menor impacto ecológico que o anterior.
Ainda na região de Florianópolis está em discussão a construção
de um novo terminal aeroviário internacional – o novo Aeroporto Inter-
30
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Gert Schinke
nacional Hercílio Luz, que destinará o atual terminal para uso exclusivo
de cargas aéreas. Esse empreendimento, a ser construído dentro da Ilha de
Santa Catarina, ao lado do atual terminal, é, certamente, a maior ameaça
ecológica que paira sobre Florianópolis, na medida em que agravará o
problema viário na capital e atrairá no seu entorno mais serviços ligados
ao transporte de cargas e passageiros. Nesse sentido, embora longe de ser
unânime, há uma proposta concreta, de índole popular, de se construir o
“novo aeroporto internacional” na área do continente, em algum lugar
ao norte da cidade de Biguaçu, com fácil acesso à BR-101, e afastado o
suficiente das concentrações urbanas na capital.
Ao longo de todo o litoral catarinense há, portanto, uma ameaça
comum, conforme analisamos acima – os mega-empreendimentos imobiliários, sejam voltados ao turismo e negócios, sejam voltados à moradia.
As consequências desse processo se fazem sentir nos inúmeros problemas de trânsito nas cidades litorâneas, na falta de saneamento básico e
água potável, e de todos os demais equipamentos públicos necessários
a garantir uma boa qualidade de vida para as populações.
Na região Litoral-sul há a discussão em torno da instalação da
“fosfateira” da VALE, no município de Anitápolis, conhecido como “fosfateira de Anitápolis”, empreendimento de altíssimo impacto ambiental
que desfigurará toda uma bela região atualmente ocupada com pequenas
propriedades de agricultura de subsistência e turismo ecológico. A região
também agrupa um sem número de fontes de água, recurso que está cada
vez mais escasso e que nos últimos anos recebe mais atenção por parte
da população e das autoridades ligadas à gestão dos recursos hídricos,
saneamento básico e drenagem urbana. A ligação desses fatores remete
para o planejamento urbano integrado municipal e regional, assim como
alerta para que as tragédias sócio-ambientais não venham a se repetir
em nosso Estado.
Não por acaso, a VALE insiste na concretização do seu projeto,
porquanto ele atenderá a uma demanda garantida por parte do agronegócio, dependente do exterior na produção de fosfato – o item é necessário
na composição do NPK, adubo básico utilizado na monocultura em
grande escala que alimenta as criações para abate e posterior exportação
do complexo industrial de processamento de carnes no Estado.
Já nas regiões Centro Oeste e Oeste do Estado, as ameaças atuais
e futuras se dão principalmente pela expansão do complexo do agronegócio, pressionando politicamente pela revisão do Código Florestal,
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
31
Ecologia Política
atualmente em acirrada discussão no Congresso Nacional. O desfecho
desse “cabo de força político”, polarizado entre “ruralistas” de um lado,
e dos “ambientalistas”, de outro, determinará o quanto nosso Estado
será futuramente agredido por via do incremento do desmatamento das
áreas ainda remanescentes, ou de outra sorte, se a situação poderá ser
paulatinamente estabilizada com vistas a uma melhoria das condições
ecológicas regionais.
A ecologia na história recente – uma síntese
O surgimento da área de conhecimento “ECOLOGIA”, e do
movimento ecológico que a realimenta, é a grande novidade sóciopolítico-cultural no cenário mundial a partir do pós-guerra: 2ª metade
do século XX para cá.
No limiar do século XXI, com a economia capitalista plenamente
globalizada, combinada com a escassez iminente de recursos naturais e a
ocorrência de catástrofes climáticas cada vez mais frequentes, a ecologia
se destacará ainda mais na agenda política global. Dada sua importância
no cenário atual, a ecologia galgou a agenda política, assumindo a forma
e a estatura da moderna ECOLOGIA POLÍTICA.
Atualmente, o movimento ecológico passa por uma “crise de
identidade” e de rumos diante dos desafios globais, mas se liga cada vez
mais com maior ênfase ao debate econômico, social e político. Assim
como nos demais “movimentos sociais”, também o ecológico é dividido
em distintas correntes de pensamento que se alinham, em certa medida,
com as ideologias políticas mais consolidadas: liberalismo, marxismo
clássico e o contemporâneo.
Entre os conceitos mais importantes da ecologia “ciência” estão
a ENTROPIA, a CADEIA TRÓFICA; a BIOCENOSE – EQUILÍBRIO
ECOLÓGICO; o PONTO DE NÃO RETORNO; os CICLOS BIO-GEOQUÍMICOS; o ECOSSISTEMA; a RESILIÊNCIA; a DEPLEÇÃO; o
AMBIENTE ECOLOGICAMENTE ESTÉRIL; o IMPACTO AMBIENTAL; a CAPACIDADE DE SUPORTE, dentre outros.
Comparando sistemas organizacionais e filosóficos
O estudo da ecologia ressaltou um novo olhar filosófico, ao constatar a forma como a natureza se organiza e funciona, e a forma pela
32
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Gert Schinke
qual se pauta o comportamento humano na dimensão social. Abaixo,
um comparativo entre as características do pensamento ecológico e o
convencional:
NA SOCIEDADE ATUAL
Pensamento Tecnocrático
Verticalidade
Simplificação
Uniformidade-padronização
Desequilíbrios-crises
X
X
X
X
X
NA NATUREZA
Pensamento Holístico
Transversalidade
Complexidade
Diversidade-singularidade
Homeostase-equilíbrio
Complexidade como modo de organização
e funcionamento
Os sistemas organizacionais simples se caracterizam pelo modo
binário de funcionamento, enquanto que, em outro extremo, os sistemas
organizacionais complexos se caracterizam pelo modo de funcionamento
em redes e nuvens. Essa relação é importante no estudo da ecologia,
pois ela cruza diferentes ambientes, assim como as espécies que neles
habitam, e estabelece relações extremamente complexas, muitas das
quais nos fogem do controle e perfeita compreensão.
Sistema simples (binário)
X
Sistema complexo (nuvens)
O conceito filosófico de complementaridade
Um dos conceitos filosóficos mais importantes para uma boa
compreensão do modo de funcionamento da natureza é o da Complementaridade, que pode ser simbolicamente traduzido pela relação abaixo
representada por:
OU (exclusão)
X
E (inclusão)
Ou também como:
OU
modo BINÁRIO
raciocínio reducionista
Ex.: 010011110000110
E
modo MÚLTIPLO
raciocínio complexo
Ex.: aBxy6#k4rn0mz
Esses conceitos, aparentemente simples, são fundamentais para
compreendermos a máxima segundo a qual “na natureza nada se perde,
tudo se transforma”. Não há, portanto, exclusão de elementos ou partes
na natureza. Tudo é PERTENÇA. Todas as formas de vida têm sua deEncontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
33
Ecologia Política
vida função ecológica, paradigma este que alguns sistemas teológicos
também incorporam.
Paradigmas filosóficos basilares da ecologia política
1 Um novo posicionamento do homem no mundo
– O Pensamento Ecológico desloca o ANTROPOCENTRISMO
em direção ao BIOCENTRISMO.
– O valor maior é A VIDA – gera-se uma “ÉTICA ECOLÓGICA” – A VIDA sempre em primeiro lugar.
– Compromisso com o DEVIR – um olhar voltado para o FUTURO, que questionará a “TESE DA INEVITABILIDADE DA
DOMINAÇÃO HUMANA SOBRE O UNIVERSO”, moto
ideológico propulsor do Capitalismo Globalizado. Ao mesmo
tempo trará à tona o “CONFLITO GERACIONAL”, ao atribuir
responsabilidades advindas das ações das gerações pregressas,
assim como da atual, sobre os destinos da HUMANIDADE e
da VIDA no Planeta.
2 Nova abordagem científica e filosófica
– Opera a TRANSVERSALIDADE na forma de abordar os
temas – “Small is beautiful”. E GOVERNANÇA DESCENTRALIZADA.
– O PENSAMENTO ECOLÓGICO alimenta a COMPLEXIDADE NO PENSAR e coloca em cheque o modelo educacional
vigente.
3 Uma nova visão no desenvolvimento material e social
– A Ecologia Política coloca em cheque as visões econômicas
hegemônicas: a ECONOMIA (em sua dimensão real) é vista
como apenas um capítulo da ECOLOGIA, o que gera uma nova
abordagem econômica.
– A GESTÃO DO ESTADO é colocada em cheque, pois propõe uma
radical DESCENTRALIZAÇÃO NA AÇÃO POLÍTICA, com
ênfase na autonomia local e participação direta nas decisões.
34
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Gert Schinke
– A noção da “PEGADA ECOLÓGICA” – comparação de consumo energético de consumo e de bens materiais (1 norte-americano = 10 brasileiros, por exemplo), o que provoca o surgimento de
conceitos e estudos incorporando os CUSTOS AMBIENTAIS no
valor dos produtos, ainda que não “ecológicos” em sua grande
maioria, porém válidos no contexto atual.
Uma das consequências do sistema filosófico ecológico, ao operar
um novo olhar sobre o modo de desenvolvimento material e social humano, provoca um forte questionamento sobre o ARMAMENTISMO, as
GUERRAS de todos os tipos, assim como as DISPUTAS BÉLICAS
POR RECURSOS NATURAIS E PODER DE INFLUÊNCIA POLÍTICA de uns povos sobre outros.
Não por acaso, o movimento ecológico se liga politicamente
ao movimento pacifista mundial e caminha de par em par com todas
as forças que lutam pela PAZ, direitos humanos e todas as formas de
solidariedade.
Grosso modo, poderíamos fazer a seguinte comparação entre os
dois polos ideológicos que representam modos de desenvolvimento
que propõem rumos diametralmente opostos – um, claramente capitalista; e outro, claramente anti-capitalista, expressos nas conhecidas
fórmulas de:
“DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL”
FUKUIAMA (o fim da História e o
último Homem)
X
DESENVOLVIMENTO
“ECOLOGICAMENTE” ORIENTADO
SINDAMA SHIVA, ROBERT KURTZ,
NOAM CHOMSKY
A discussão em torno da produção de energia é bem ilustrativa,
para estabelecer a comparação entre os dois modelos de desenvolvimento
acima enunciados. E, nesse contexto, o Brasil desponta com um papel
fundamental, pois é possuidor de imenso potencial hidráulico, terras para
produção de biocombustíveis de toda ordem, insolação em proporções
tropicais e ventos virtualmente inesgotáveis, o que coloca nosso país entre
os detentores dos maiores índices mundiais de energias renováveis.
Paradoxal, mas não de todo incompreensível, é o discurso recorrente que diuturnamente prega a produção de cada vez mais energia,
seja de fonte hidrelétrica, de biomassa, de gás, ou nuclear, esta última
novamente retornando à agenda governamental.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
35
Ecologia Política
A notícia abaixo desmente o argumento do maior custo das chamadas “energias alternativas”:
Energia eólica já é uma das mais competitivas do Brasil
Com preço médio de R$ 130,86 o MWh, fonte de energia bate até mesmo as usinas térmicas
movidas a gás natural (Renée Pereira – O Estado de S.Paulo – 30.08.10).
A forte disputa, verificada nos leilões promovidos pelo governo federal
ultimamente, pôs a energia eólica na lista das mais competitivas do
Brasil, abaixo até do custo das térmicas movidas a gás natural, de cerca de R$ 140 o megawatt/hora (MWh). Na média, o preço da energia
produzida com o vento foi negociada por R$ 130,86. No leilão do ano
passado, cada MWh custou em média R$ 148,39.
“O resultado realmente surpreendeu a todos”, afirmou o presidente da
Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeólica), Ricardo de Maya
Simões. Ele acredita que há vários fatores para explicar a forte disputa
verificada no leilão, que contratou 2.892 MW de capacidade, sendo 70%
desse montante de energia eólica.
Nosso papel pessoal e coletivo diante desse cenário
No âmbito pessoal, é possível efetivar um sem número de ações,
todas, porém, dependentes de uma decisão que tem como foco a diminuição de consumo energético e de bens materiais. Em suma, o abandono
do “consumismo”, mecanismo ideológico/político que retroalimenta
nosso sistema de produção predador. Nos dias atuais, não há como fugir
dessa ATITUDE inadiável.
No âmbito coletivo, o movimento ecológico oferece muitas oportunidades de ação, mediante engajamento nas inúmeras entidades que hoje
existem em todos os cantos do planeta – pequenas, médias e grandes, seja
orientadas para focos específicos, seja orientadas para questões mais genéricas. Entidades “guarda-chuva”, como as federações, confederações e uniões,
também existem para agrupar as diferentes organizações, seja do ponto de
vista territorial, seja do ponto de vista programático ou de seus objetivos.
A Igreja Católica tem, no Brasil, um dos seus mais importantes
pilares e, consequentemente, um papel fundamental para promover,
por via da sua imensa capilaridade social, uma orientação mais clara
a seus fiéis quanto aos problemas ecológicos que o país vive e que se
aprofundam dia a dia.
A Campanha da Fraternidade de 2011, tendo como foco o “meio
ambiente”, é mais que oportuna e bem vinda. Ela ajuda o movimento
36
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Gert Schinke
ecológico em sua árdua tarefa de colocar a questão ecológica como
URGENTE na agenda política nacional e internacional.
Referências bibliográficas
ALIER, J. M.; SCHLPMANN, K. La ecologia y la economia. México:
Fondo de Cultura Economica, 1991.
BERTALANFFY, L. v. Teoria geral dos sistemas. 2. ed. Vozes/MEC, 1968.
BOULDING, K. Ecodinamic: A new theory of societal evolution. ����
London: Sage, 1978.
BROWN, L. Por uma sociedade viável. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1983.
CAPRA, F. et al. Gerenciamento ecológico. Guia do Instituto de Auditoria
Ecológica e Negócios Sustentáveis. São Paulo: Cultrix, 1993.
CAPRA, F. O ponto de mutação: A ciência, a sociedade e a cultura
emergente. São Paulo: Cultrix, 1982.
_____. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas
vivos. São Paulo: Cultrix, 1996.
_____. O tao da física: um paralelo entre a física moderna e o misticismo
oriental. 2a ed., São Paulo: Cultrix, 1983.
CASTORIADIS, C.; COHN-BENDIT, D. Da ecologia à autonomia.
São Paulo: Brasiliense, 1981.
COMMONER, B. Energias alternativas. Barcelona: Gedisa, 1980.
DALY, H. Steady state economics. San Francisco: N.H. Freeman Co., 1977.
DEUTSCH, K. W. Eco-social systems and eco-politics. Paris: Unesco,
1977.
DORST, J. Antes que a natureza morra: Por uma ecologia política. São
Paulo: Edgard Blücher Ltda, 1973.
DUPUY, J-P. Introdução à crítica da ecologia política. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1980.
EHRLICH, P. The population bomb. Stanford University Press, 1968.
GALTUNG, J. - Self-reliance. A strategy for development. London,
Bogle-Lóuverture, 1977
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
37
Ecologia Política
GARAUDY, R. Appel aux vivants. Editions du Seuil, 1979.
GEORGESCU-ROEGEN, N. The entropy law and the economic process.
Cambridge, London: Harvard University Press, 1971.
GORZ, A. Adieux au prolétariat. Editions Galilée, 1980.
ILLICH, I. A convivencialidade. Lisboa: Europa-America, 1976.
INGLEHART, R. The silent revolution: changing values and political
styles among western publics. Princeton University Press, 1977.
LEFF, E. Ecologia y capital: Racionalidad ambiental, democracia
participativa y desarrollo sustentable. 2. ed. Universidad Autônoma de
México, 1994.
McCORMICK, J. Rumo ao paraíso: A história do movimento ambientalista. Rio de Janeiro, 1992.
MILBRATH, L. Environmentalism: Vanguard for a new society. Albany:
State University of New York Press, 1984.
MORIN, E. & KERN, A. Terra-pátria. Porto Alegre: Sulina, 1996.
MORIN, E. Le paradigme perdu: la nature humaine. Editions du Seuil, 1973.
OPHULS, W. Ecology and politics of scarcity. San Francisco: Freeman, 1977.
RAMOS, A. G. A nova ciência das organizações: uma reconceituação da
riqueza das nações. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1981.
SACHS, I. Ecodesenvolvimento: crescer sem destruir. São Paulo: Vértice, 1986a.
_____. Espaços, tempos e estratégias do desenvolvimento. São Paulo:
Vértice, 1986b.
SCHINKE, G. Ecologia Política. Porto Alegre: Ed. Tchê, 1986.
SCHUMACHER, E. F. O negócio é ser pequeno. 4. ed. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1983.
TOYNBEE, A. O desafio do nosso tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
Endereço do Autor:
E-mail: [email protected]
Blog: http://gertschinke.blogspot.com
38
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Resumo: Podemos abordar a situação ecológica na qual se encontra nosso planeta, com todos
os sistemas de vida, sem recorrer ao campo da ética. A tomada de consciência ecológica
vem-nos dando um diagnóstico da situação: abusos, crimes, extinção de espécies, poluição
do ar, da água, do solo etc. Mas a aceitação desse fato como positivo ou negativo, bem ou
mal, requer uma reflexão articulada entre a ecologia e a ética. Para que essa articulação
seja feita de modo adequado, presisamos compreender o que significam estes termos: ética
e ecologia. A ação do ser humano sobre o meio ambiente se constitui em matéria essencial
para a ecologia. Daí a importância de um olhar atento ao processo do agir humano sobre a
natureza e, mesmo, suas alternâncias ao longo da história humana. Segundo Michel Métayer,
o atual quadro destrutivo representa um problema muito grave: talvez o mais grave dos que
a humanidade teve que enfrentar até hoje. Diante da situação, humanistas e universalistas
trazem à “ordem do dia” o princípio da dignidade humana e, na América Latina, acompanhamos
o surgimento de uma reflexão ética socioambiental. É preciso uma postura ética que articule
o social com o ambiental. Diante desse quadro, percebemos que o lugar do ser humano e de
cada ser dentro da “casa comum” precisa ser revisado. Sem colocar em questão a missão
do homem no conjunto da criação, constatamos o desafio de uma nova compreensão na
relação entre os seres: é necessário fazer a passagem de uma compreensão onde impera o
domínio, para uma compreensão dialogal e de comunhão.
Abstract: The ecological dimension of our planet could be dealt with in the context of all forms
of life without any recourse to ethics. We are called to focus upon ecology and taking into
account concrete situations of abuse, crimes, extinction of species of both flora and fauna,
pollution of air, water, and soil, etc. However, both the negative and positive aspects, good
and bad, demand a deeper analysis of the relationship between ecology and ethics. What is
the meaning of the concepts: ethics and ecology? The reply takes into account human action
affecting the environment where ecology comes to the fore. Thus it becomes imperative to
take a good look at human initiatives in the course of history. According to Michel Métayer, the
general picture of destruction is rather alarming and possibly the most serious which humanity
is asked to confront up till now. As a viable response to this situation humanists propose to
envisage human dignity as the foremost imperative in Latin America to be fostered in circles of
study in the area of ethics applied to the environment concerned with social implications. A type
of dialectic is therefore presented which will bring such value judgments and their implications
into the open with special emphasis on dialogue and communion.
Ética e Ecologia
Pedro Paulo das Neves*
*
O autor, Licenciado em Filosofia pela Universidade do Sul de Santa Catarina, UNISUL;
Bacharel em Teologia pelo Instituto Superior de Teologia de Belo Horizonte; Especializado em Teologia Bíblica pela Universidade Católica de Pelotas, RS; Mestre em
Teologia pela Universidade Católica de Louvain (UCL), Bélgica , é Padre da Diocese
de Tubarão e Professor no ITESC.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011, p. 39-50.
Ética e Ecologia
Como construir uma nova relação entre o ser humano e o ambiente, que
garanta a permanência da vida em sua diversidade, sem destruir a casa
comum, nem comprometer o futuro de todos os seres? Isso é, em síntese,
o que se busca da relação dialógica entre ética e ecologia.
Introdução
Dizer algo pertinente sobre as várias crises por que passa a humanidade hoje, não é tarefa simples. Ainda mais difícil se torna, quando queremos entender os processos que conduziram a este contexto, com o objetivo
de encontrar alternativas para poder fazer diferente. No que tange à crise
ecológica, a maioria significativa das análises e estudos reconhece que as
raízes do problema estão fincadas no tipo de relação estabelecida entre o ser
humano e o ambiente natural. Por outro lado, uma abordagem histórica dessa
relação desnuda as idéias, concepções e convicções, que alimentaram ações
e comportamentos nos mais diferentes povos, culturas e tempos.
Por isso, não podemos abordar a situação ecológica na qual se
encontra nosso planeta, sem recorrer ao campo da ética. Toda a tomada
de consciência ecológica vai- nos dando um diagnóstico da situação:
os abusos, os crimes, a extinção de espécies, a poluição do ar, da água,
do solo etc. Mas a aceitação desse fato como positivo ou negativo, bem
ou mal, exige uma reflexão articulada entre ecologia e ética. As metas
e valores, elaborados ao longo das gerações, que motivaram o agir das
civilizações, não podem ficar esquecidos neste momento.
Nosso propósito é começar a clarear um pouco o que se entende por
ética e ecologia. Com o cruzamento desse instrumental, pretendemos iluminar
as forças geradoras do estado atual da natureza, bem como constatar alguns
esforços presentes, na prática e na teoria, que poderão somar e enriquecer toda
a reflexão feita pela Campanha da Fraternidade deste ano no Brasil, que tem
como lema: “A criação geme em dores de parto” (Rm 8,22).
1 Clareando conceitos
1.1 Ética
“Assim como a palavra “moral” vem do latim, mores, a pala­vra “ética” vem do grego, éthos, e se refere aos costumes, à conduta da vida,
às regras do comportamento. Etimologicamente ela indica a mesma
realidade que a palavra moral, como esclarecem vários dicionários e
como o filóso­fo francês Michel Serres observa em seu livro Génétique,
procréation et droit, Paris, 1985”.1
1
40
DURAND, G.,La bioéthique, Cerf, Paris, 1989, p.13
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Pedro Paulo das Neves
Muitos autores empregam as palavras “ética” e “moral”, uma pela
outra, quase como sinônimos. Segundo Durand, a ética abrange três
campos: pesquisa, sistematização e prática.
1.1.1 Pesquisa de normas ou de regras do comporta­mento, análise
dos valores, reflexão sobre os funda­mentos dos direitos ou dos valores.
1.1.2 Sistematização da reflexão. Fala-se da ética de Kant, ou de
algum outro filósofo. Muitos teólogos empregaram a expressão “ética
cristã”, para falar dos grandes valores evangélicos e da sua aplicação
concreta na vida cotidiana dos cristãos.
1.1.3 Prática concreta e realização dos valores.
Encontramos, também, não poucos autores que, com frequência,
distin­guem ética e moral. Assim, certos filósofos tendem a limitar a
ética aos dois primeiros campos da palavra “moral”. A ética é, então, “a
ciência do bem e do mal”, ou a “ciência da moral”. Ou, ainda, limita-se
ao estudo dos fundamentos da moral.
Além disso, a vida cotidiana confere às palavras uma história específica, que agrega a cada uma um sentido próprio. Assim, no Ocidente,
onde prevaleceu o latim, difundiu-se o emprego da palavra moral. E,
com a primazia cultural do cristianismo, a palavra “moral” facilmente
ganhou uma conotação religiosa. Da mesma maneira, a descoberta dos
filósofos gregos colocou em realce a palavra ética, com a conotação de
moral não religiosa, isto é, de moral natural ou secular.
Como a moral dominante no Ocidente tem sido frequentemente
apresentada como um sistema de princí­pios imutáveis e aparentemente
definidos, a palavra “moral” tomou, para muitos, um sentido conservador
e fechado. Muitos têm também tomado a palavra “ética” para ex­pressar
uma pesquisa moral nova, aberta e atenta à evolução do mundo moderno.
Quer se deplore ou não, essas concepções são muito espalhadas e mantêm
uma indisfarçável ambiguidade.2
2 Ecologia
Por “ecologia” entendemos a ciência (ramo da biologia) que estuda os seres vivos e suas interações com o meio ambiente onde vivem.
Etimologicamente, a palavra ecologia deriva do grego: “oikos” = casa e
“logos” = estudo. Os resultados desses estudos nos permitem o acesso
a dados que revelam se os animais e os ecossistemas estão em perfeita
harmonia. A ação do ser humano sobre o meio ambiente se constitui
2
Cf. ibid. p. 14
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
41
Ética e Ecologia
em matéria essencial para a ecologia.3 Numa época em que o desmatamento e a extinção de várias espécies estão em andamento, o trabalho
dos ecologistas e, deles, com a dimensão ética do agir humano, é de
extrema importância. Através das informações, geradas pelos estudos
da ecologia, o homem pode planejar ações que evitem a destruição da
natureza, possibilitando um futuro melhor para a humanidade e para o
conjunto do planeta.
2.1 Sinais do equilíbrio perdido
Em nossos dias vemos um despertar de preocupações com o
meio ambiente. Era de esperar que, com um modo de vida centrado
no desenvolvimento tecnológico, onde o lucro é o critério e a meta da
relação homem-natureza, cedo ou tarde as conseqüências iriam aparecer
e suscitar uma nova maneira de agir. Assim sendo, não é de se surpreender diante de alguns efeitos desastrosos. O desenvolvimento industrial é
freqüentemente acompanhado por uma degradação dos recursos naturais
e uma acumulação de dejetos tóxicos na natureza. As emissões de CO2
na atmosfera são uma ameaça constante ao clima do planeta.
Com a continuidade desse processo, marcado por ações destrutivas, milhões de espécies animais e vegetais são ameaçadas de extinção.
Segundo Michel Métayer, esse quadro faz referência ao aumento de
um problema muito grave: talvez o mais grave dos problemas que a
humanidade teve que enfrentar até hoje4. Mas é claro que todo esse problema só veio fazer parte das reflexões em nossos dias, porque emerge
de uma realidade nova que por sua vez suscita a consciência ecológica:
as ações humanas, bem como suas aspirações, capacidades e projetos,
devem apoiar-se numa fundamentação ética, a qual é capaz de garantir
um desenvolvimento sustentável.
Diante dessa emergência da consciência ecológica, temos que nos
interrogar sobre nosso dever para com as gerações futuras, nossa relação
com a natureza, e mesmo sobre o sentido de nossa presença sobre a terra.
A redescoberta de um sentido mais profundo e mais amplo do existir
impõe-se como condição para continuar vivendo. Talvez seja neste ponto
que, necessariamente, a ética e a ecologia precisam se cruzar, e trazer à
luz do dia um horizonte compatível com a grandeza da criação. Segundo
Afonso Murad, na América Latina e no Caribe, desenvolve-se agora uma
42
3
Cf. Dicionário de Teologia Moral, Paulus, São Paulo, 2007.
4
Cf. MÉTAYER, M. La Philosophie Éthique: enjeux et débats actuels. R P. Québec,
2002, p. 258.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Pedro Paulo das Neves
corrente ética socioambiental5. Dentro dessa perspectiva, podemos ouvir
a condenação de uma economia centrada no mercado, destruidora das
culturas dos povos, destruidora do ambiente e alimentadora da exclusão.
É preciso uma postura ética que articule o social com o ambiental.
Não restam dúvidas de que estamos diante do nascimento de um
novo tempo. Isso não significa que tenhamos que reinventar a roda!
Também não podemos ignorar a necessidade de um instrumental éticofilosófico e teológico que possa dar conta da complexidade dessa relação
entre o ser humano e o meio ambiente neste novo tempo. Precisamos ir
além de uma relação parasitária entre o ser humano e a natureza. Uma
compreensão da criação que não pontue a necessidade de um desenvolvimento sustentável, e a construção de valores sobre os quais se possa
habitar e sustentar a vida no planeta de forma solidária, carece de uma
revisão. É urgente que as relações de poder e domínio fundamentadas
mesmo nas páginas do Gênesis (relatos da criação) por interpretações
distorcidas da Palavra de Deus, sejam substituídas desde dentro por um
novo ethos capaz de portar solidariedade e paz a todos os seres e ao meio
ambiente. Mas vejamos, a seguir, como, na questão ético-ecológica, paira
a tentação de se condenar o que para muitos ainda não está garantido: os
direitos da dignidade humana.
2.2 A questão da dignidade humana
Os extremos, como a história tem mostrado, nunca foram uma
boa solução para os problemas. Neste ponto, a filosofia nos situa diante
de dois caminhos: Humanismo e Universalismo.
2.2.1 Humanismo: Postula o valor intrínseco da dignidade moral
do ser humano, dotado de intelecto (ética filosófica-secular) e criado à
imagem e semelhança de Deus (revelação ética-teológica) .
2.2.2 Universalismo: Questiona o postulado básico dos humanistas: o ser humano tem uma dignidade que lhe é própria.
No dizer de Métayer, quando os universalistas reivindicam essa
mesma dignidade a todos os outros seres animais e vegetais, isso implicaria
em dar a eles uma dignidade moral. Sendo assim, podemos deparar-nos
com duas posições diferentes em relação ao conceito de meio ambiente:
No primeiro caso, protege-se o ambiente para proteger os interesses dos seres humanos, enquanto, no segundo caso, protege-se o meio
ambiente por si mesmo. Ele tem um valor intrínseco.6
5
MURAD, A., in A MISSÃO EM DEBATE: Provocações à Luz de Aparecida. Col.
Ecclésia-Amerindia, PAULINAS, São Paulo, 2010, p. 119.
6
Cf. Ibid., p. 259
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
43
Ética e Ecologia
Aqui é importante distinguir a dignidade humana inerente ao ser
humano, e a dignidade ético/moral decorrente do seu agir. Robert Andorno7, em um de seus artigos8, diz o seguinte :
A noção de dignidade faz referência a uma qualidade ligada ao
ser mesmo do homem, o que justifica que ela é a mesma para todos, não
permitindo que haja níveis diferentes. Nesse sentido, trata-se de uma
dignidade inerente e não de uma dignidade ética. Destaca-se a característica estática desta dignidade, a qual não depende de qualidade moral,
ao passo que a dignidade ética é uma noção dinâmica que não se aplica
ao ser da pessoa mas ao seu agir. A dignidade ética permite afirmar que
um homem honesto tem “mais dignidade” que um trapaceiro...
Seguindo a reflexão desse autor, podemos afirmar que o problema,
manifestado na relação do ser humano com o ambiente, não pode ser
atribuído ao fato de a dignidade humana lhe conferir uma qualidade que
lhe é própria, e que não podemos atribuir aos outros seres. A declaração
universal dos direitos humanos (1948), bem como os organismos internacionais que buscam nesse princípio fundar a defesa da vida humana, não
desmerecem ou favorecem a degradação do meio natural(ambiente). O
que precisamos e devemos urgentemente desenvolver é uma compreensão
relacional entre o ser humano e o ambiente, que seja iluminada por um
cruzamento entre ecologia e a dignidade ético-moral humana.
Quando nos propusemos refletir um pouco sobre esta relação entre
ética e ecologia, é claro que não pretendemos satanizar todo desenvolvimento e/ou todo e qualquer tipo de relação entre o ser humano e a
natureza. Precisamos reconhecer os avanços da ciência, as descobertas
portadoras de esperanças para a humanidade... Porém, os danos causados
reclamam um investimento significativo para a recuperação do que foi
destruído, bem como, mais prudência em relação ao futuro.
Com a inegável interdependência entre a totalidade do sistema
ambiental, muitas das ações do ser humano precisam ser revisadas, e o
44
7
�������������������������������������������������������������������������������
Doutor em Direito; Membro da Comissão Internacional de Bioética da UNESCO; Pesquisador do Centro Interdepartamental de Ética das Ciências (IZEW), Universidade
de Tübingen, Alemanha.
8
Cf. Rubrique Éthique, março, 2005: «La notion de dignité fait référence à une qualité
inséparablement liée à l’être même de l’homme, ce qui explique qu’elle soit la même
pour tous et qu’elle n’admette pas de degrés. On comprend bien que ce dont il est
question ici, c’est de la dignité inhérente et non pas de la dignité éthique : tandis que
la première est une notion statique, puisque elle revient à tout être humain du seul fait
de son existence et indépendamment des qualités morales de l’individu en question, la
seconde est une notion dynamique, car elle ne s’applique pas à l’être de la personne,
mais à son agir, et permet d’affirmer, par exemple, qu’un homme honnête a ‘ plus de
dignité’» qu’un cambrioleur».
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Pedro Paulo das Neves
agir humano em alguns aspectos precisa ser re-fundamentado. Não se
trata aqui de destituir o ser humano de sua dignidade própria, que lhe
confere uma responsabilidade especial e um valor singular na relação
com os demais seres. Quer seja o posicionamento da filosofia humanística ou da teologia cristã, a dignidade humana não pode constituir-se em
elemento de destruição de nenhuma vida e de nenhum sistema.
Temos conhecimento de iniciativas por parte de alguns países, de
organismos nacionais e internacionais, de conferências mundiais; estamos
num tempo em que os problemas ambientais, enraizados na exploração
dos recursos naturais, podem ser visualizados. Pode se dizer que esse
despertar reflexivo começou a ganhar corpo já em meados do século XIX,
período em que a questão ecológica passou a ocupar oficialmente lugar
nas preocupações com os efeitos negativos da industrialização. Porem,
é somente a partir de 1970 que a questão ecológica vai ganhar status de
problema ético, relacionando o agir humano com a natureza.9
3 Diferentes modos do Agir Humano em relação
ao Ambiente
Para compreender a relação entre o homem e seu ambiente, e
aventurar-nos em busca de um novo agir, é quase necessário um olhar
panorâmico de seu processo histórico. Desde a ótica da ecologia, podemos
perceber algumas etapas bem definidas, por onde vão-se sucedendo as
transições no tipo de relacionamento.
3.1 Época do equilíbrio natural – Remontando ao paleolítico,
encontramos uma relação equilibrada, onde o ambiente vai exercer
uma forte influência sobre o homem. Com as atividades de subsistência
restritas à caça e à pesca, dispondo dos recursos do fogo, vegetais e
animais, o impacto do ser humano sobre o ambiente era muito reduzido. A natureza, por sua vez, era quem detinha certo controle sobre o
homem. Pode-se dizer que, nesse período, a relação homem-natureza
não diferia muito dos outros animais, caracterizando-se por uma dimensão biológica. O aspecto cultural, enquanto criação e invenção da
mente humana, ainda não se manifestam: é um período de profunda
adaptação ao ambiente natural.
3.2 Da integração com a natureza ao desequilíbrio – Segundo
A. MORONI10, é no neolítico que se dá o início do desequilíbrio en
Cf. MOSER, A.& SOARES, A., BIOÉTICA: Do consenso ao bom senso, VOZES,
Petrópolis, 2006, p. 92
10
MORONI, A., Uma leitura dos acontecimentos históricos na relação homem-ambiente,
in “Dicionário de Teologia Moral”, PAULUS, São Paulo, 1997.
9
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
45
Ética e Ecologia
tre homem e ambiente. Com a escassez dos alimentos, o ser humano
começa a ter os primeiros sinais de diferença e separação entre ele e
a natureza. Com esse estado de consciência, tem início uma relação
marcada pela descoberta do poder do homem sobre a natureza. Esta
tem que produzir o alimento necessário ao seu “senhor”; desmatamentos, queimadas e o ritmo da agricultura itinerante (nomadismo),
vão deixando os traços do desequilíbrio na biodiversidade; espécies
animais e vegetais vão desaparecendo.11 Mesmo que com técnicas
elementares, o domínio do ambiente permitiu um aumento na produção de alimentos e da população.
A fixação na terra possibilitou o desenvolvimento de grupos e aldeias e, posteriormente, de cidades. Sem sombra de dúvida, a revolução
urbana vai gerar uma nova mentalidade: a descoberta e o domínio de
novas formas de energia (novas relações com a natureza), provenientes
da utilização dos metais, foram gradativamente desenvolvendo sistemas
próprios de posse e de exploração da natureza. Assim sendo, cada povo
ia se tornando cada vez mais poderoso de acordo com o domínio que
detinha do ambiente natural; assim poderia impor-se aos outros. Nesse
período, a natureza ainda marcava boa parte do ritmo de vida das pessoas;
situações de insegurança diante das catástrofes naturais, epidemias, mortalidade infantil, curta duração da vida etc. Favoreciam um sentimento
de fatalismo diante do não controlável pelo homem.12
3.3 Controle da Natureza Pelo Homem (revolução industrial)
– Com a industrialização, a partir do séc. XVII, a humanidade ganhou
inúmeros benefícios: medicina, higiene, produção de alimentos, informação etc. Os pontos negativos não foram decorrentes do progresso em
si, mas da falta de uma cultura capaz de equilibrar desenvolvimento,
economia e ambiente. Alguns pontos sinalizam esse desequilíbrio: a)
Homem, sujeito ativo x natureza, elemento passivo; b) Investimento
elevado na produção de bens que satisfaçam necessidades criadas pelo
próprio sistema de exploração de recursos naturais, a maioria das vezes
visando o lucro; c) Globalização, impondo as culturas dominantes e
o desaparecimento das culturas menores; d) Desenvolvimento global
da tecnologia com seus impactos fortes e às vezes irreversíveis sobre
o ambiente natural e humano; e) Novas fontes de energia; f) Culto ao
11
Cf. Ibid., p.278.
12
46
Ibid., p. 279.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Pedro Paulo das Neves
poder, descompromissado com um desenvolvimento sustentável que
garantisse a preservação da vida13.
Ao dar ao ser humano a possibilidade de controle e de interferência
sobre a natureza, essa etapa desconhece a presença de limites; o eu se
impõe (subjetivismo) a qualquer objetividade coletiva; a busca desenfreada pela realização imediata dispensa qualquer dever e responsabilidade
em relação aos outros e a outros tempos (gerações futuras) . Este é um
momento da história da relação entre o ser humano e a natureza, onde
é indubitável a presença de uma orientação ética de cunho utilitarista;
os valores são substituídos pelos interesses; o bem e o mal, o certo e o
errado, se revestem de um relativismo ético capaz de ofuscar a própria
dimensão ética do agir humano.
4 Cristianismo, Ética e Ecologia: um tripé
na busca do equilíbrio
Muitos são os que divergem da possibilidade de colaboração do
cristianismo para uma relação equilibrada entre o ser humano e o meio
ambiente. Partidários da ética secular chegam mesmo a desacreditar
de uma fundamentação e reflexão de fundo religioso que tenha algo a
oferecer dentro de um tecido diversificado e plural da atualidade. Assim, as correntes de ética religiosa vão sendo cada vez mais reduzidas
à esfera do privado, referindo-se a determinado grupo; de outro lado,
vemos universalizarem-se práticas e “valores” independentes, e mesmo
contrários aos princípios religiosos.
O princípio da autonomia vai abrindo portas a um individualismo
exacerbado, uma liberdade totalmente desconectada com a verdade, um
sentido do bem utilitário que, como uma luva, se mescla com o relativismo ético. A distinção entre autonomia, heteronomia e anomia moral,
talvez nos ajude a compreender melhor os prós e os contras na relação
do tripé acima citado.
4.1 Quando a norma moral tem origem num outro, vem de fora ,
sua internalização se chama heteronomia moral (héteros, do grego=outro,
nómos, nomia= lei, norma: lei de outro). As religiões e as filosofias espiritualistas partem desse princípio moral.
4.2 Bem diferente é a elaboração da norma moral exclusivamente
pela razão humana, sem uma interferência vinda de fora: é a autonomia
13
Cf. CADORRE, B., L’Expérience bioéthique de la responsabilité, Louvain-La-Neuve,
Artel, p. 5-6.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
47
Ética e Ecologia
(autós=do grego ele mesmo, lei de si mesmo). Esta é reivindicação suprema do iluminismo e neo-iluminismo.
4.3 A ausência de norma moral, anomia, se entende como a ausência total de norma moral.14
Esses três princípios morais nos colocam diante do desafio de relacionar
cristianismo, ética e ecologia. Devido a experiências errôneas do passado, a
heteronomia e mesmo a teonomia, foram sendo interpretadas como supressão
da liberdade humana; abrir-se ao transcendente era uma negação do intelecto
humano. O caráter dinâmico e relacional da moral foi-se constituindo num
conjunto de proibições, com isso conduzindo o ser humano a um fechamento
sobre si e à proclamação da sua soberania sobre Deus e o mundo.
A ecologia, enquanto ciência dos sistemas de vida e do ambiente
natural e humano, em suas análises e demonstrações, vem justamente
denunciar essa indiferença, separação e fechamento do ser humano aos
demais seres do meio em que vive. Desse ponto de vista, o horizonte cristão não difere da natureza e perspectiva da ecologia: interdependência,
abertura, relação, diferença, responsabilidade... O desafio está em elucidar
metas e valores para levar a efeito essa relação de forma amadurecida.
“O homem se torna bom, e suas ações são boas, quando estuda a ordem
cósmica e nela se insere sem destoar”15. Um mínimo de ética é fundamental para assegurar a convivência dos povos, e as religiões sempre
foram uma fonte ética capaz de animar valores, ditar comportamentos e
construir significado para a vida da humanidade.16
Na Conferencia de Aparecida, os bispos da América Latina e do
Caribe declaram, no n° 473: “A América Latina e o Caribe experimentam
uma exploração irracional, que vai deixando um rastro de morte por toda
a nossa região... A devastação de nossas florestas e da biodiversidade
mediante uma atitude predatória e egoísta envolve a responsabilidade
moral daqueles que a promovem..Colocam em risco a vida de milhões
de pessoas e sobretudo do hábitat ...”17
Como podemos ver, Aparecida aponta com clareza o desequilíbrio
presente na relação entre o ser humano e a natureza. As raízes desse desequilíbrio, suas conseqüências e a responsabilidade moral, são fortemente
denunciadas pelo documento em vários números. Assim sendo, Murad
lembra que a ecologia nos convida a uma nova percepção do lugar de
48
14
Cf. MARCHIONNI, A., Ética: A arte do Bom, VOZES, Petrópolis, 2008, p. 105
15
Ibid., p. 124.
16
Cf. BOFF, L., Cuidar da Terra, proteger a Vida, RECORD, Rio de Janeiro, 2010,
p.155.
17
Documento de Aparecida, n° 473a.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Pedro Paulo das Neves
cada um dos seres, nesta casa comum. Com isso, novos horizontes se
abrem para o cristianismo e outras religiões.18 Nesse sentido, a teologia
da criação (Gn 1 e 2) é um dos primeiros temas a serem revisados na
interpretação da fundamentação bíblica. É necessário fazer a passagem da
compreensão onde impera o domínio, para uma compreensão dialogal e
de comunhão. Compreender a criação como fruto da ação trinitária19, obra
que sai do coração de um Deus comunhão, relação, abertura, nos permitirá
mais e melhor fundamentar um agir humano que leve cristianismo, ética/
moral e ecologia a um restabelecimento do equilíbrio perdido.
Conclusão
No presente artigo procurou-se dar um destaque especial à possibilidade e necessidade de uma cooperação entre ética e ecologia, na
busca do equilíbrio relacional entre o ser humano e o meio ambiente.
Uma nova compreensão de cada um dos seres, e de seus lugares na
teia de relação uns com os outros, trouxe à tona os danos de uma ação
desregrada e inconseqüente, levada a efeito com o processo do desenvolvimento técnico-científico. A dignidade humana, por força da reflexão
(fundamentação) filosófica ou teológica, se constitui numa dimensão
essencial na harmonização da vida na casa comum. Os gritos das vítimas
de uma relação egoísta e destruidora vão chegando a todos os ouvidos:
nacionais e internacionais; instituições seculares e religiosas.
As grandes conferências mundiais sobre as questões ecológicas:
Rio 92, Copenhague, Cancun etc., sentiram nitidamente a necessidade
de uma ética capaz de fundamentar um novo agir, que possa conduzir
a humanidade e sua relação com o ambiente para além dos interesses
mesquinhos de grupos e países que não conseguem visualizar nada, e
muito menos a vida, longe do horizonte mercadológico. “A criação geme
em dores de parto” (Rm 8,22). A igreja no Brasil, através deste lema da
Campanha da Fraternidade de 2011, presta ouvidos ao grito da natureza
e de toda a vida. É uma escuta esperançosa, “escuta com o coração” e,
ao mesmo tempo, um anúncio dos valores éticos/morais que poderão
garantir a sustentabilidade da vida no planeta. Solidarizar-se com este
gemido e com este choro da criação, talvez seja a atitude primeira na
descoberta, acolhida e construção de uma ética da vida.
18
MURAD, A., op. cit., p. 3.
19
Cf. MOLTMANN, J., Dios en la Creación, Salamanca, Sígueme, 1997, pp. 22-26.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
49
Ética e Ecologia
Bibliografia
Dicionário de Teologia Moral, Paulus, São Paulo, 2007.
Documento de Aparecida, 2007.
DURAND, G., La bioéthique, Cerf, Paris, 1989.
MÉTAYER, M., La Philosophie Éthique : enjeux et débats actuels, R.
P. Québec, 2002.
MURAD, A., in A MISSÃO EM DEBATE : Provocações à Luz de Aparecida, Col. Ecclésia-Amerindia, PAULINAS, São Paulo, 2010.
MOSER, A.& SOARES, A., BIOÉTICA: Do consenso ao bom senso.
VOZES, Petrópolis,2006.
MORONI, A., Uma Leitura dos Acontecimentos Históricos da relação
homem-ambiente, in Dicionário de Teologia Moral, PAULUS, São
Paulo. 1997.
CADORRE, B., L’Expérience bioéthique de la responsabilité, LouvainLa-Neuve, Artel, 1994.
MARCHIONNI, A., Ética : A arte do Bom, VOZES, Petrópolis, 2008.
BOFF, L., Cuidar da Terra, proteger a Vida, RECORD, Rio de Janeiro,
2010.
MOLTMANN, J., Dios en la Creación, Salamanca, Sígueme, 1997.
Endereço do Autor:
Rua Dep Antônio Edu Vieira, 1524
Caixa postal, 5073
Pantanal
88040-970 Florianópolis, SC
E-mail: [email protected]
50
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Resumo: Enchentes, deslizamentos, secas, tornados, furacões. Eventos
climáticos não são novidades, mas a frequência entre eles tem aumentado,
assim como sua potência e isso se deve às mudanças do clima. A falta de ação
política, a desinformação da população, bem como um modelo de desenvolvimento com índices de consumo exagerado e níveis de pobreza extremos torna
as consequências desses fenômenos mais graves. Um mundo que carece de
ética ambiental deteriora as bases da vida, nas suas diferentes formas. Nesse
contexto, apresentam-se desafios para as ciências, também para a teologia, na
busca de uma nova espiritualidade na relação do ser humano com a Criação.
Abstract: Floods, mud slides, dry seasons, tornados, and hurricanes are well
known phenomena in nature. However, their impact on the climate and the
resulting havoc in wide areas have recently on a world wide scale. The lack of
a concentrated effort by the government of various countries, the disregard of
supplying the citizens with needed information, the option of a model of development with high indices of consumer-goods with no regard to aggravated levels
of poverty are leading to severe consequences of all these phenomena. One
reminder of a menacing situation awaiting the world which disregards ethics
concerning the environment needed to protect the very bases of life in all the
different forms. In this context science and theology are faced with challenges
to search for new tasks and create conditions for spiritual life in relationship with
the human being and the Creation.
Mudanças Climáticas
Ir. Delci Maria Franzen*
*
Religiosa da Congregação das Irmãs de Santa Catarina, VM. Pós Graduação em
Teologia e Ministérios pela Universidade Mc Cormick de Chicago, EUA. Assessora
da Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz/
CNBB, fone (61) 8111-1285.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011, p. 51-66.
Mudanças climáticas
“Antes que seja tarde demais, precisamos fazer escolhas corajosas,
que possam restabelecer uma forte aliança
entre o homem e a Terra”1.
Introdução
Em meio à perplexidade e a imensa solidariedade do povo brasileiro diante da maior tragédia climática que o país já enfrentou, apresentamos alguns conceitos e reflexões sobre as mudanças do clima que
atingem o Planeta. Chuvas despencaram em volume espantoso sobre áreas
do Sudeste, fazendo mais de 800 mortos só na região serrana do Rio de
Janeiro. Nos primeiros dias de janeiro, também na Austrália, viveu-se
a maior enxurrada em 120 anos. Depois de Angra dos Reis e de Santa
Catarina, nos anos passados, surge a pergunta que não quer calar: Serão
eventos isolados, ou fatos de uma tragédia já anunciada?
Os cientistas estão avisando há tempo que os fenômenos naturais,
que sempre estiveram conosco, como tempestades e secas, vão acontecer
com mais frequência e com mais intensidade. Se as cidades não estão preparadas para o momento atual, o que se dirá do futuro que os climatologistas
prenunciam. Hoje há um consenso entre as populações, tanto das regiões
urbanas quanto do meio rural, de que o clima não é mais o mesmo. No ano
passado, o abundante e aparentemente infinito Rio Negro, na Amazônia,
enfrentou uma seca que o desfigurou. As imagens que chegavam de seu leito
seco em algumas áreas eram inacreditáveis, para quem já o viu na cheia.
Como outros rios amazônicos, ele tem oscilações fortes de volume de água,
mas o extremo a que chegou na seca do ano passado foi impressionante.
Anos atrás, uma seca na Amazônia exibiu o solo da região mais úmida do
Brasil rachado, como se fosse o Nordeste. Podemos afirmar que o Brasil
sofre as consequências das mudanças climáticas que atingem o Planeta e
se manifestam também em muitas regiões do mundo de forma diferenciada
e cada vez mais intensa. Políticas públicas integradas, redução da pobreza,
planejamento urbano, fontes diversificadas de energia e preservação do
meio ambiente são projetos que merecem urgência para que o país esteja
preparado neste cenário climático.
Resultado do aquecimento global da Terra, as mudanças do clima
são pautadas exaustivamente pela mídia, mas a maioria das pessoas
ainda não se deu conta da hecatombe que elas representam para todas
1
52
Papa Bento XVI, discurso em Loreto, Itália, 2007.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Delci Maria Franzen
as formas de vida, inclusive a humana. Portanto, é necessário urgentemente entender o que está em jogo e tomar atitudes pessoais e políticas
imediatas para tentar reverter, ou minimizar, a tragédia dantesca que a
mão humana pode estar construindo.
Um grande fator do aquecimento acelerado nas últimas décadas se
dá em função da concentração de gás carbônico – CO2 – na atmosfera.
As principais causas da emissão desses gases é a queima de combustíveis
fósseis e das florestas. Diante deste fenômeno já confirmado pela ciência, a
única dúvida que resta está no grau do aquecimento, com seus consequentes
desdobramentos. A teoria mais comum é que o aquecimento será gradativo,
podendo subir de dois a sete graus progressivamente. Cada grau já traz
desdobramentos praticamente imprevisíveis. O aquecimento trará o derretimento das geleiras, aumento do nível do mar, diminuição no volume de
água doce disponível, alterações no regime das chuvas, imensas dificuldades
para a agricultura, fenômenos extremos como furacões, chuvas torrenciais,
evaporação das águas, estiagens prolongadas, deixando em seu rastro fome,
sede, miséria e milhões e milhões de mortos. Calcula-se que cerca de 1 bilhão
de pessoas terão que migrar das áreas litorâneas. Países, cidades e ilhas (!)
próximas ao nível do mar vão desaparecer. Regiões brasileiras, como a Amazônia, tendem a se transformar numa savana e o semi-árido em um deserto.
Será uma tragédia sem precedentes na história da humanidade. A Terra já
enfrentou catástrofes semelhantes, como na era em que os dinossauros foram
extintos, mas o ser humano ainda não estava aqui.
O acesso à água limpa e segura já é insuficiente em muitos países,
também em algumas regiões brasileiras. As alterações do clima agravam
essa situação pelas secas prolongadas e pela infiltração da água salgada
na terra, em muitas zonas costeiras do planeta. A água é uma questão
central na abordagem do aquecimento global, pois é um recurso natural
primordial para o futuro da humanidade e a sobrevivência das espécies no
Planeta. Por isso, a questão da água receberá um destaque neste artigo.
Causas
O Aquecimento global é um fenômeno climático de larga extensão: um aumento da temperatura média superficial do Planeta, que vem
acontecendo de forma mais intensa nos últimos 150 anos. Entretanto, o
significado desse aumento de temperatura ainda é objeto de muitos debates entre os cientistas. Causas naturais, ou antropogênicas (provocadas
pelo ser humano), têm sido propostas para explicar o fenômeno.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
53
Mudanças climáticas
Mesmo havendo céticos, desde o 4º Relatório do IPCC2, de
fevereiro de 2007, há praticamente um consenso de que a evolução
acelerada da tragédia ambiental “tem causante antropogênico”. Grande
parte da comunidade científica acredita que o aumento de concentração
de poluentes antropogênicos na atmosfera é causa do “efeito estufa”. A
Terra recebe radiação emitida pelo Sol e devolve grande parte dela para
o espaço através de radiação de calor. Os poluentes atmosféricos estão
retendo uma parte dessa radiação que, em condições normais, seria
refletida para o espaço. Essa parte retida causa um importante aumento
do aquecimento global.
Segundo dados do IPCC, a principal evidência do aquecimento
global vem das medidas de temperatura de estações metereológicas em
todo o globo desde 1860. Os dados mostram que o aumento médio da
temperatura foi de 0.6+-0.2 graus, durante o século XX. “Os maiores
aumentos foram em dois períodos: 1910 a 1945 e 1976 a 2000, que correspondem à era industrial, confirmando o aceleramento das mudanças
do clima com o aumento das emissões de gases do efeito estufa”3.
Efeitos
Devido aos efeitos potenciais sobre a saúde humana, economia e
meio ambiente, o aquecimento global tem sido fonte de grande preocupação. Algumas importantes mudanças ambientais têm sido observadas e
foram ligadas ao aquecimento global. Os exemplos de evidências secundárias (diminuição da cobertura de gelo, aumento do nível do mar, mudanças
dos padrões climáticos) são exemplos das consequências do aquecimento
global, que podem influenciar não somente as atividades humanas mas
também os ecossistemas. O aumento da temperatura global permite que
um ecossistema mude; algumas espécies podem ser forçadas a sair dos
seus hábitats (possibilidade de extinção) devido a mudanças nas condições,
enquanto outras podem espalhar-se, invadindo outros ecossistemas.
Outra grande preocupação é o “aumento do nível dos mares, que
está crescendo em 0.01 a 0.02 metros por década, e em alguns países insulares no Oceano Pacífico é expressivamente preocupante, porque cedo
eles estarão debaixo da água”4. O aquecimento global provoca subida
54
2
Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU (IPCC).
3
Fonte: 4º Relatório do IPCC.
4
Fonte: IPCC para os dados e as publicações da grande imprensa para as percepções
gerais das mudanças climáticas.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Delci Maria Franzen
dos mares principalmente por causa da expansão térmica da água dos
oceanos, mas alguns cientistas estão preocupados com que, no futuro, a
camada de gelo polar e os glaciares derretam. Em consequência, haverá
aumento do nível, em vários metros. Como o clima fica mais quente, a
evaporação aumenta. Isso provoca pesados aguaceiros e mais erosão.
Muitas pessoas pensam que isso poderá causar resultados mais extremos
no clima, com o progressivo aquecimento global.
O aquecimento global também pode apresentar efeitos menos óbvios.
A Corrente do Atlântico Norte, por exemplo, é provocada por diferenças entre
a temperatura entre os mares. Aparentemente ela está diminuindo, conforme
as médias da temperatura global aumentam. Isso significa que áreas como
a Escandinávia e a Inglaterra, que são aquecidas pela corrente, devem apresentar climas mais frios a despeito do aumento do calor global.
Consequências
O aquecimento global pode trazer consequências graves para todo
o planeta incluindo plantas, animais e seres humanos. A retenção de calor
na superfície terrestre pode influenciar fortemente o regime de chuvas
e secas em várias partes do mundo, afetando plantações e florestas.
Algumas florestas podem sofrer processo de desertificação, enquanto
plantações podem ser destruídas por alagamentos. O resultado disso é o
movimento migratório de animais e seres humanos, escassez de comida,
aumento do risco de extinção de várias espécies animais e vegetais, e
aumento de mortes e de destruição.
Outro grande risco do aquecimento global é o derretimento das placas
de gelo da Antártida. Esse derretimento já vinha acontecendo há milhares de
anos, por um lento processo natural. Mas a ação do homem e o efeito estufa
aceleraram o processo e o tornaram imprevisível. A calota de gelo ocidental
da Antártida está derretendo a uma velocidade de 250 km cúbicos por ano. O
degelo desta calota pode fazer os oceanos subirem até 4,9 metros, cobrindo
vastas áreas litorâneas pelo mundo e ilhas inteiras. Os resultados também
são escassez de comida, disseminação de doenças e mortes.
O aquecimento global também acarreta mudanças no clima, já
responsável por 150 mil mortes a cada ano em todo o mundo. Os países
tropicais e pobres são os mais vulneráveis a tais efeitos. “A modificação do clima é responsável por 2,4% dos casos de diarreia e 2% dos de
malária em todo o mundo. Esse quadro pode ficar ainda mais sombrio:
alguns cientistas alertam que o aquecimento global pode se agravar nas
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
55
Mudanças climáticas
próximas décadas e a OMS calcula que para o ano de 2030 as alterações
climáticas poderão causar 300 mil mortes por ano”5.
Destacando o Brasil nesse processo de mudanças das condições
de vida na Terra, é preciso ter presente que não passa de ilusão a ideia de
que será um país privilegiado. Por isso, junto com mudanças que ocorrerão em todas as regiões, vale destacar o que acontecerá no Nordeste, no
Centro-Oeste e no Norte do país. Aumentarão sensivelmente as já altas
temperaturas dessas regiões. Haverá mudanças nos regimes das chuvas e,
consequentemente, no nível geral das águas, com tempos mais longos de
estiagens e períodos de chuvas intensas, com ocorrências mais comuns de
secas e enchentes. Junto com isso, alastrar-se-á a desertificação dos solos.
Na verdade, a pesquisa mais recente indica que 50% do solo do Nordeste
já se encontra em processo avançado de desertificação. O Centro-Oeste,
com a derrubada de 85% da cobertura vegetal legada aos seres humanos
pela história da Terra, tem como certo o agravamento da desertificação
nos próximos vinte anos. A Amazônia, que já sofre os efeitos da devastação de sua floresta, enfrentará novos desafios causados pelo fim das
geleiras nos picos da Cordilheira do Andes e com a diminuição ou falta
das águas que correm do Cerrado para o norte do país.
Impactos sociais
As mudanças do clima afetam a todos, mas não da mesma forma.
Sabemos que alguns são mais afetados, com menos possibilidade de
escolha que outros e que, sem ação apropriada, espécies de plantas e
animais, também povos e culturas, irão sofrer e morrer.
É preocupante o impacto desproporcionado que as alterações climáticas provocadas pelo ser humano têm nas pessoas pobres e vulneráveis
que vivem nos países em desenvolvimento. É constatado que as alterações
climáticas estão prejudicando os avanços feitos na redução da pobreza e
na concretização dos objetivos de desenvolvimento do milênio.
Ainda que a pobreza exista independentemente das alterações do
clima, elas criam um novo ciclo vicioso que rouba às pessoas em situação
de pobreza a capacidade de melhorar a sua situação. Como resultado,
estão mais expostas ao impacto dos desastres naturais, em que muitas
pessoas perdem a vida, a maioria perde a sua casa e as suas culturas,
e as fontes de água ficam contaminadas. A frequência e a intensidade
5
56
Fonte: Organização Mundial da Saúde (OMS).
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Delci Maria Franzen
cada vez maiores dos desastres naturais implicam em que as populações
mais pobres não tenham o tempo nem os recursos para se recuperarem
adequadamente de um desastre antes que aconteça o seguinte.
Muitas entidades estão conscientes da responsabilidade coletiva
em relação ao perigo do clima e ao sofrimento dos que são mais atingidos e marginalizados. Os que se encontram em extrema pobreza, os
deficientes, as comunidades ribeirinhas ou que vivem nas pequenas ilhas,
estão sujeitos aos maiores impactos da crise climática embora sejam os
que menos contribuem para a mesma.
A maioria absoluta das comunidades pobres veem-se mais limitadas quando se trata de se adaptarem às alterações climáticas, uma vez
que dependem mais dos métodos de cultivo tradicionais e dos sistemas
locais de abastecimento de água, os quais, segundo as previsões, serão
gravemente afetados.
As pessoas que vivem em situações de pobreza nos países em
desenvolvimento têm mostrado grande resistência e adaptação face ao
impacto da variabilidade do clima sobre suas vidas e o seu sustento. No
entanto, estão chegando rapidamente a um limite, a partir do qual já não
poderão adaptar-se mais. Prevê-se o aumento do número de pessoas
subnutridas e famintas, já que a sequência de secas e inundações afeta
as colheitas, principalmente as de curto período: milho, trigo, feijão.
Coloca-se em cheque a segurança alimentar.
As mudanças do clima, incluindo o calor e o frio extremo, aumentam a
taxa de mortalidade por doença. As doenças sensíveis ao clima, por exemplo as que se transmitem através da água ou através de vectores como os
mosquitos, são algumas das causas de morte mais importantes na escala
mundial: a diarreia, a malária e a subnutrição proteico-energética em
conjunto, causaram mais de 5 milhões de mortes em 2006.6
A escassez de água ou alimento, e o aumento de doenças, não
só representam uma crise humanitária a curto prazo, mas também um
problema para o desenvolvimento a longo prazo.
Como fica a questão da água
Em setembro de 2010, uma resolução das Nações Unidas declarou
um Direito Humano o acesso à água potável e ao saneamento básico.
Segundo o documento votado pelos países-membros da ONU, na As6
Cf. Relatório de Desenvolvimento Humano 2007/2008.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
57
Mudanças climáticas
sembleia Geral, é motivo de extrema preocupação o fato de 884 milhões
de pessoas no Planeta não terem acesso à água potável. Cabe agora aos
países regulamentarem esse direito em políticas públicas efetivas e
investimentos adequados. Encontra-se aí um compromisso comum que
Organizações de Igrejas Cristãs, como o Conselho Mundial de Igrejas e o
Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, têm assumido como gesto concreto
em defesa da vida humana e da integridade da criação. Também outras
Religiões e Entidades não Governamentais têm manifestado seu apoio
pela água como Direito Humano e bem público.
Segundo a ONU, “mais de um sexto da população mundial, ou o
equivalente a 1,1 bilhão de pessoas, não tem acesso ao fornecimento de
água doce. Em 2025, cerca de 3 bilhões de pessoas viverão em países
com conflito por falta de água. Desde 1950, o uso da água triplicou no
mundo. A água potável salva mais vidas que todas as instituições médicas do mundo: segundo a ONU, a água contaminada causa 80% das
doenças do planeta”.7
Neste cenário mundial, a América Latina é uma região muito rica
em recursos hídricos, com 30% da água superficial da Terra. Apesar da
abundância desses recursos hídricos, um quarto da população da América
Latina e Caribe vive em regiões onde a demanda de água é maior do que
a capacidade de recuperação deste recurso.
O Brasil parece estar numa situação privilegiada, pois detém
11,6% da água doce superficial do mundo. Mas já enfrenta sérios problemas hídricos. Os 70 % da água disponíveis para uso estão localizados na
Região Amazônica. Os 30% restantes distribuem-se desigualmente pelo
País, para atender a 93% da população. Na última década, a quantidade
de água distribuída aos brasileiros cresceu 30%, mas quase dobrou a
proporção de água sem tratamento (de 3,9% para 7,2%) e o desperdício
ainda assusta: 45% de toda a água ofertada pelos sistemas públicos.
Nas cidades, os problemas de abastecimento estão diretamente
relacionados ao crescimento da demanda, ao desperdício e à urbanização descontrolada – que atinge regiões de mananciais. Na zona rural, os
recursos hídricos também são explorados de forma irregular, além de
parte da vegetação protetora da bacia (mata ciliar) ser destruída para a
realização de atividades como agricultura e pecuária. Não raramente, os
7
58
Cf. Relatório da UNESCO, Órgão da ONU para a educação e responsável pelo Programa Mundial de Avaliação Hídrica.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Delci Maria Franzen
agrotóxicos e dejetos utilizados nessas atividades também acabam por
poluir a água. A baixa eficiência das empresas de abastecimento se associa
ao quadro de poluição: as perdas na rede de distribuição por roubos e
vazamentos atingem entre 40% e 60%, além de 64% das empresas não
coletarem o esgoto gerado. O saneamento básico não é implementado de
forma adequada, já que 90% dos esgotos domésticos e 70% dos afluentes
industriais são jogados sem tratamento nos rios, açudes e águas litorâneas,
o que tem gerado um nível de degradação nunca imaginado.
É necessário pensar urgentemente em alternativas, maior consciência da população no uso da água e, por parte do poder público, um maior
cuidado com a questão do saneamento e abastecimento. Por exemplo,
90% das atividades modernas (!) poderiam ser realizadas com água de
reúso. Além de diminuir a pressão sobre a demanda, o custo dessa água
é pelo menos 50% menor do que o preço da água fornecida pelas companhias de saneamento. Apesar de não ser própria para consumo humano,
poderia ser usada, entre outras atividades, nas indústrias, na lavagem de
áreas públicas e nas descargas sanitárias de condomínios. Além disso,
as novas construções – casas, prédios, complexos industriais – poderiam
incorporar sistemas de aproveitamento da água da chuva, para os usos
gerais que não o consumo humano.
A crise do atual modelo de desenvolvimento
São visíveis os sinais que confirmam o consenso dos cientistas em
relação ao “estado do planeta Terra”. Ele realmente está em processo acelerado de aquecimento, e isso se deve à forma como os seres humanos se
relacionaram e continuam relacionando-se com ele. É efeito especialmente
da velocidade tomada pelo denominado “progresso econômico” nos últimos cinquenta anos. Construiu-se uma crença no crescimento econômico
– o capitalismo vive da promessa de que o futuro é sempre promissor e de
que o desenvolvimento econômico é inesgotável. Essa lógica econômica,
vigente nos últimos 200 ou 250 anos, especialmente, desencadeou várias
crises que se manifestam de forma sinérgica, mesmo se, às vezes, isso não
pareça tão evidente: a crise econômica, energética, alimentar, climática, do
trabalho – que necessitam ser enfrentadas simultaneamente.
A ideologia presente nessas crises do atual modelo de desenvolvimento é de que a única coisa que importa é o crescimento econômico,
e que o restante é secundário, não se sustenta mais. Por trás dessa ideia
está a lógica de que os recursos naturais são sempre abundantes, infinitos.
Não haveria por quê preocupar-se com a possibilidade de que algum
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
59
Mudanças climáticas
dia se terá falta de petróleo, de carvão, de aço, de água, de energia, para
alimentar a “máquina” do progresso humano.
Segundo muitos analistas, a mais grave crise é a ecológica, exatamente porque ela pode dar cabo da civilização humana. A Terra já mostrou
que tem condições de regeneração, coisa que nós humanos ainda não
demonstramos. Iniciamos, portanto, o século XXI colocando as questões
relacionadas ao meio ambiente no centro do debate. A ecologia, de oikoscasa, tornou-se um tema que nos faz saltar das particularidades destacadas
a uma abordagem unitária, global, planetária. É neste tema que o mundo
parece ter encontrado sua grande unidade, que exige de nós uma mudança
de ponto de vista – não mais particular, mas holístico, universal, de totalidade. Descobrimos que nós – seres humanos, seres vivos e Terra – formamos
um conjunto inseparável. “O destino da Terra e da humanidade coincidem:
ou nos salvamos juntos ou sucumbimos juntos”.8
O que fica evidente é que o futuro da vida na Terra – especialmente
da vida humana – dependerá do rumo que se der hoje ao que se denomina
economia. Por essa razão, a discussão sobre os modos de produção e de
consumo torna-se crucial no contexto de uma sociedade ecologicamente
sustentável.
O “modo de produzir” e o “modo de consumir” da sociedade
mundial estão levando o planeta ao esgotamento dos recursos naturais.
Por outro lado, a crise alimentar – 1 bilhão de pessoas passa fome no
mundo – está ligada à crise da economia e à crise ecológica. “Presumindo
que a humanidade mantenha os mesmos níveis de produção e consumo
que até agora, quer dizer, que não se adapte às condições alteradas, o
número de famintos na América Latina poderá aumentar em 85 milhões
de pessoas, até 2080”9. No entanto, parece que o problema da fome não
se deve ao excesso da população; há alimentos para todos. O problema
é político, de acesso à comida. O problema está no mercado. Por outro
lado, a opção pelo aumento da produção de agrocombustível compromete o uso da terra para a produção de alimentos. O agrocombustível,
por sua vez, está encadeado à crise ecológica porque piora a alteração
climática e promove outros efeitos negativos sobre a soberania alimentar,
a biodiversidade, a contaminação de solos e água, o desmatamento de
florestas e outros ecossistemas naturais.
60
8
Boff, Leonardo, Artigo no Espaço Cultural CPFL, 2010.
9
Cf. IPCC (2007): Impactos, Adaptação e Vulnerabilidade, pág. 597.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Delci Maria Franzen
“Permeada à crise ecológica, econômica e alimentar, encontrase a crise energética. A voracidade por energia é infinita. O modo de
produção e de consumo exige e demanda muita energia – petróleo, gás,
biocombustível, hidroeletricidade, energia nuclear. A maioria das matrizes
energéticas são poluidoras (fósseis), perigosas (nuclear) e devastadoras
do meio ambiente (hidrelétricas, agrocombustíveis), e exigem enormes
investimentos”10.
Percebe-se, e cada vez com maior evidência, um encadeamento
das crises. Já não se pode mais dar centralidade apenas à economia para,
depois, ocupar-se das outras crises. A questão central diz respeito ao
esgotamento do modelo de desenvolvimento criado e incrementado na
sociedade industrial, baseado em uma visão linear, progressiva, infinita
e redutora de desenvolvimento, e que tem no consumo desenfreado a sua
mola propulsora. A crença no crescimento econômico e sua linearidade
se romperam.
Compromissos políticos
Já mencionamos que as alterações climáticas são mais que um problema ambiental; elas são principalmente um problema de justiça global
e equidade. Os governos devem assumir políticas e compromissos que
tenham efeitos locais e globais, e devem fazê-lo junto com a sociedade
e as Igrejas. As mudanças climáticas são um problema que requer um
esforço conjunto de todas as partes para encontrar uma solução eficaz.
Os indivíduos, as comunidades, a sociedade civil, o setor privado e o
Estado, todos tem o dever de aprender mais sobre o que se pode e deve
fazer para enfrentar esse terrível risco para a família humana e a vida
no Planeta. Para tanto, é crucial abordar as alterações climáticas numa
perspectiva de desenvolvimento, centrada nas pessoas.
Para o Brasil, o maior desafio é continuar o desenvolvimento sem
aumentar a emissão de gases de efeito estufa. Incluir socialmente grandes
segmentos da população, sem aumentar a crise do clima. Coloca-se aí
o maior dos impasses: o debate e a construção de outro paradigma de
desenvolvimento que seja justo, sustentável e responsável com as futuras
gerações. No caso do Brasil, urge a discussão sobre tecnologia e matriz
energética. Construir mecanismos que contribuam para um modelo de
desenvolvimento baseado na agroecologia, numa matriz energética
diversificada e descentralizada, no reconhecimento e valorização das
10
Em Busca dos Sinais dos Tempos, Editora, CNBB, 2010, p.9.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
61
Mudanças climáticas
práticas tradicionais, baseadas na convivência entre produção e preservação ambiental.
Para especialistas, o grande desafio do próximo governo no setor
ambiental é criar uma política integrada, que possa abranger diversas
áreas da gestão. “Considero uma missão sagrada do Brasil a de mostrar
ao mundo que é possível um país crescer aceleradamente, sem destruir o
meio ambiente.”11 É um compromisso e tanto, principalmente se levado
em conta o fato de que foi Dilma a coordenadora do PAC que literalmente
acelerou a destruição ambiental no país, num governo com profundas
crises no IBAMA e com aprovação da Hidroelétrica de Belo Monte, na
contramão de todas as reivindicações da sociedade civil organizada.
A prioridade número um do novo governo deveria ser integrar
efetivamente todas as suas ações ambientais e criar uma política que
esteja presente em todo o planejamento. Aí entrariam não apenas os
ministérios do Meio Ambiente e da Agricultura, mas também outros
setores como Ciência e Tecnologia, Minas e Energia e Desenvolvimento Social. Esse é de fato um grande desafio, que não foi assumido nos
dois governos Lula, onde o que havia eram posturas antagônicas dentro
da mesma gestão. O risco é o país não avançar para o grupo de nações
que se deram conta de que questões ambientais não são um estorvo, e
que sustentabilidade não é apenas um termo bonito para se colocar em
anúncios e propagandas políticas.
É fundamental, para o Brasil, promover a sustentabilidade e
dignidade do desenvolvimento humano, especialmente das populações
mais vulneráveis. A construção de metas e políticas, também na área
da adaptação, deve passar pelos diferentes setores da economia e da
execução de políticas públicas para possibilitar uma sociedade brasileira
sustentável e reduzir a desigualdade social.
A Política Nacional de Mudança do Clima precisa fazer a articulação entre mudança do clima e pobreza, relacionando-as com a questão
da vulnerabilidade das populações. “A compreensão dos fatores sociais
que contribuem para a vulnerabilidade e capacidade de adaptação de
uma população reforça a responsabilidade dos governos para o desenvolvimento eficaz de medidas preparatórias para prevenir e minimizar
as consequências de mudanças climáticas. A estratégia é observar os
processos sociais que conduzem certa população a condições vulneráveis,
11
62
Presidente Dilma Rousseff, Discurso de posse. 1.1.2011.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Delci Maria Franzen
bem como as desigualdades estruturais que são muitas vezes a raiz da
vulnerabilidade social-ambiental. Ao mesmo tempo, avaliar o potencial
das estratégias de enfrentamento a desastres no registro histórico das
comunidades e grupos sociais”.12
Para isso, é necessário que as populações tradicionais indígenas,
pescadores, quilombolas, agricultores, sentem à mesa para expor o seu
conhecimento milenar na adaptação às adversidades do clima e também
na sua maneira de relacionar-se com a natureza e construir sociedades
baseadas no valor do bem comum, da solidariedade, e em diferentes
formas de produzir e consumir. Esse conhecimento contribui para uma
compreensão mais precisa de quem é vulnerável e resiliente, e como e
por que são vulneráveis ou resilientes. Isso é fundamental, se políticas
públicas e estratégias de desenvolvimento sustentável são desenvolvidas
para promover a adaptação aos efeitos da alteração do clima.
O Brasil é o quarto maior poluidor do planeta, não tanto pela
queima de petróleo e combustíveis fósseis, quanto pelas queimadas
das florestas. Portanto, pode contribuir com a humanidade evitando a
queimada das florestas, da cana, dos campos. E diminuir a queima de
fósseis também. O Brasil, que tem várias possibilidades de matrizes
energéticas, que os países do Norte não têm, como a hídrica, a solar, a
eólica (ventos) e a gerada a partir da biomassa, pode contribuir muito
com o bem de nossa casa comum.
Além de implementar as necessárias políticas nacionais, as autoridades brasileiras devem assumir o compromisso de defender ativamente
no plano internacional o avanço para um acordo climático global que
possa, no mínimo garantir: 1) o reconhecimento e a proteção do direito
dos países em desenvolvimento a um desenvolvimento sustentável,
dando prioridades às comunidades vulneráveis que vivem em situação
de pobreza; 2) a provisão, por parte dos países industrializados, de um
financiamento suficiente, previsível, seguro e acessível, de intercâmbio
tecnológico e de desenvolvimento das capacidades – em qualquer dos
casos, de uma forma que se possa medir, descrever e verificar – para
apoiar e permitir os esforços de mitigação e adaptação dos países em
desenvolvimento; 3) a manutenção das temperaturas médias globais da
superfície terrestre o mais abaixo possível de um aumento de 2°C, em
relação a níveis pré-industriais.
12
Cf. Professores do Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Gestão Ambiental
da Universidade Católica de Brasília, DF.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
63
Mudanças climáticas
Diante do princípio da responsabilidade comum, mas diferenciada,
os países industrializados devem pagar pela sua dívida ecológica e os
países em desenvolvimento devem por sua vez ter planos e investimentos
que sinalizem a capacidade de enfrentar as consequências das mudanças
de clima que já se manifestam em diferentes setores da produção, atingindo fortemente as populações mais pobres. A solução parece estar no
enfrentamento das causas sistêmicas na forma de produzir e consumir.
Nesse sentido, ecoa a frase de efeito dos movimentos ambientais reunidos em Cancun, por ocasião da COP 16:” Mudemos o Sistema, não
o Clima!”
Cancun
A 16ª Conferência das Partes (COP 16) da Convenção Marco das
Nações Unidas sobre Mudança Climática, realizada na cidade de Cancun, México, em dezembro de 2010, foi a prova de que povos de todo
o planeta reconhecem a urgência do desafio da mudança climática. Ao
mesmo tempo, provou mais uma vez, o “quanto é difícil chegar a um
acordo mundial para um novo protocolo sobre alterações climáticas, pois
envolve deliberações complexas e controversas, devido à existência de
preocupações políticas e econômicas em curto prazo”13.
Depois da decepção da COP 15 no final do ano passado, na capital
da Dinamarca, o mundo estava precisando mais do que conversações.
A população do Planeta necessita de benefícios concretos, sobretudo
para as comunidades mais vulneráveis, que já estão sofrendo desastres
meteorológicos.
As Organizações não governamentais presentes em Cancun,
salientaram que os governos atrasaram-se nas medidas para reduzir a
contaminação, mas não atrasaram a mudança climática. Esperava-se que
Cancun entregasse um fundo que priorizasse a adaptação e garantisse
que ao menos a metade desse dinheiro fosse para enfrentar os impactos que já são inevitáveis. Este fundo, alertam algumas organizações,
também poderia ser colonizado pelo setor financeiro e privado. “É claro
que os países mais ricos buscam caminhos para fugir de sua obrigação
13
64
CIDSE. Rede Internacional de Agências Católicas –“Todos Juntos para a Justiça
Global”: Manos Unidas, Misereor, Trôcaire, Cordaid, Fastenopfer, Cafor, SCIAF, Entraide et Fraternité, CCFD, Development and Peace, Center of Concern, Volontari
nel Mondo, Fundação Evangelização e Culturas.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Delci Maria Franzen
de entregar fundos públicos” para políticas de adaptação nos países em
desenvolvimento.
Segundo ativistas do clima, como camponeses e indígenas da
América Latina e dos Estados Unidos, movimentos sociais mexicanos
dos direitos humanos, e representantes de organizações como Amigos da
Terra, chama a atenção na política internacional a “generosidade e presteza para colocar centenas de milhões de dólares no resgate dos sistemas
financeiros”, em contraste com a “tacanhez” na hora de dispor de dinheiro
para enfrentar a mudança climática. Nesse cenário das negociações governamentais, parece que há pouco a se esperar da evolução das reuniões
internacionais sobre o assunto. A paralisia do sistema multilateral é deprimente. Os governos mostram-se indiferentes frente ao aquecimento do
planeta e, em vez de debater sobre as mudanças de políticas necessárias
para o resfriamento, debatem sobre o negócio financeiro especulativo,
a nova economia verde e a privatização dos bens comuns.
Há uma esperança no crescimento do movimento social que saiu
fortalecido de Cancun. Toda forma de mobilização para exercer pressão
sobre os líderes mundiais será de grande importância, pois somente com
a participação da sociedade civil é possível mudar o rumo dos riscos que
ameaçam as bases da vida no planeta.
Desafios teológicos
O pressuposto da Teologia é a Revelação de Deus. Uma das formas
dessa revelação é a criação. A corrupção da ordem da criação e suas consequências, expostas nas crises acima evidenciadas, subverteram a ordem
da criação. Essas crises não são superficiais; elas interferem na vida de
milhões de seres humanos. Por trás delas estão vidas ameaçadas, vidas
que não foram vividas em plenitude, e existências vividas indignamente
pelas condições de risco, de vulnerabilidade e de miséria a que estão
expostas. Populações inteiras, distantes da tecnologia e das alternativas
de adaptação às mudanças do clima.
Há mais tempo teólogos e teólogas esforçam-se por entender “este
sinal dos tempos, “este decisivo ‘lugar teológico’, onde a teodiceia enfrenta a pergunta crucial: A última palavra será a da morte sobre a terra?
Onde está o Deus Criador e Redentor? Onde está a possibilidade de
Reconciliação que inclua todas as criaturas? Como fica a afirmação
dolorosa, mas também esperançosa, de Paulo:
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
65
Mudanças climáticas
A criação foi submetida à vaidade – não por seu querer, mas por vontade
daquele que a submeteu – na esperança de ela também ser liberta da
escravidão da corrupção para entrar na liberdade da glória dos filhos
de Deus14.
Pois sabemos que a criação inteira geme e sofre as dores de parto até
o presente. E não somente ela. Mas também nós que temos as primícias
do Espírito, gememos interiormente, suspirando pela redenção do nosso
corpo” (Rm 8, 20-23).
Trata-se, pois, de ouvir os gritos da Terra. Mesmo em situação
limite, continuam gritos nascidos de “dores de parto”, como adverte o
apóstolo Paulo. E a Mãe Terra está à espera da “gloriosa manifestação
dos filhos e filhas de Deus” para ser libertada. Sua libertação tem tudo a
ver com a história auto-libertadora dos próprios seres humanos. É dela
que são feitos, e ela é seu lugar e seu ambiente de vida (Gênesis 1 e 2).
Ela foi entregue aos cuidados dos seres “feitos à imagem e semelhança
de Deus”. Seu destino está, portanto, diretamente ligado ao modo de ser,
de pensar e de agir das pessoas humanas. A Campanha da Fraternidade
de 2011, da CNBB, com o tema Fraternidade e Vida no Planeta e com
o lema “A criação geme em dores de parto” (Rm 8,22), tem muito a ver
com este debate.
Este é o tempo oportuno, até porque é urgente uma transformação
no modo de a humanidade viver sua relação com a Terra, com os seres
vivos, com os próprios seres humanos e com seu Deus. Não serão suficientes, por isso, reformas superficiais, mas a aventura redentora para
uma nova civilização na busca do verdadeiro sentido humano.
E-mail da Autora:
[email protected]
14
66
Cf. Entrevista com Prof. Luis Carlos Suzin, publicada no Sítio do Instituto Humanitas
Unisinos (IHU), 29.1.2009.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Resumo: O presente artigo parte da realidade concreta do movimento extrativista do Alto Acre e Purus, nascido na década de 70 na Amazônia brasileira, e
tentará refletir sobre a relação entre antropocentrismo e personalismo cristão
no atual debate de bioética ambiental, reconhecendo a legítima autonomia da
realidade criada, sem contudo diluir o sujeito moral. Para isso, se analisará o
desenvolvimento do tema do meio ambiente dentro do Magistério católico, bem
como a influência da Igreja no nascimento do movimento extrativista.
Abstract: The article starts with the contemporary situation of exploration of
extracting industries in the area of the Alto Acre and Purus. Beginning with the
decade of the seventies in the Amazon region of Brazil, and rehearsing anthropological issues together with the core of religious commitment of Christianity in the
dignity of the human person in relationship with bioethics and the environment,
new perspectives are opening up by valuing the human person as moral authority
deciding about his actions in the world. It is the task of the Magisterium of the
Catholic Church to shed more light on the influence regarding economics and
environment in the Amazon region.
Bioética ambiental personalista
Frei Carlos Paula de Moraes, OSM*
*
O autor tem Graduação e pós-graduação em Filosofia, pela Pontifícia Universidade
Católica do Paraná. Mestre em Teologia Moral e Master em Bioética, pelo Pontifício
Ateneo Regina Apostolorum- Roma. Doutorado em Teologia Moral pela Accademia
Alfonsiana de Roma. Professor dos Cursos de Psicologia e Direito – Faculdade da
Amazônia Ocidental – FAAO; Filosofia e Saúde Coletiva – Universidade Federal do
Acre – UFAC.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011, p. 67-76.
Bioética ambiental personalista
Introdução
As discussões sobre o “meio ambiente” tem adquirido um status
crescente nos debates mundiais sobre a sobrevivência do ser humano,
questões cruciais de vida e de morte, um grito tão forte que não podemos
mais ignorar. A Terra pede socorro, nossa pátria comum está revelando o
que a Sagrada Escritura chama de “dores de parto, esperando a gloriosa
manifestação dos filhos de Deus.” (Rm 8,19).
A questão do meio ambiente hoje é tão forte como as questões
sociais nas décadas 60, 70 e 80, tempos em que a Igreja foi responsáveel, na Amazônia, por uma grande contribuição ao amadurecimento
no compromisso cristão no campo social e ambiental, não é indiferente
o fato de Chico Mendes, um grande ícone do movimento ambiental
e organizador do movimento extrativista do Acre, ter “nascido” e se
fortalecido à sombra da Igreja assistida pelos freis Servos de Maria na
região do Alto Acre e Purus.
Dentro dessa realidade concreta, a partir da compreensão da relação entre o homem e a natureza neste movimento de caráter ambiental,
buscar-se-á identificar qual visão de antropocentrismo é própria desse
movimento, bem como se existiria alguma relação entre o modelo personalista cristão e o antropocentrismo do movimento extrativista do Alto
Acre e Purus.
O presente trabalho partindo da análise da origem do movimento
extrativista, que possui uma matriz religiosa (católica) e antropocêntrica,
mas que a sua vez, assumiu um caráter de defesa do meio ambiente a
partir das pessoas (índios e seringueiros), defende a tese de que o antropocentrismo cristão pode oferecer as bases de uma reta compreensão da
relação entre o homem e a natureza, podendo inclusive servir como via
do diálogo ecumênico no Brasil, unindo as forças das várias denominações para efetivar-se uma proposta de bioética ambiental com base no
personalismo ontologicamente fundado.
1 A acusação do ambientalismo norte americano
Uma das acusações que o movimento ambientalista norte americano deflagrou contra o cristianismo, foi à afirmação de que este, por
ser antropocêntrico, não poderia “servir” como base para uma bioética
ambiental, por isso, vários autores, propuseram o abandono do antropo-
68
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Frei Carlos Paula de Moraes, OSM
centrismo, caindo por vezes no nivelamento ontológico do ser humano
entre os outros seres, assumindo posições do, assim chamado, ecocentrismo ou biocentrismo, visões criticadas pelo Magistério Católico por
operarem a diluição do sujeito moral. Hoje na Europa, existem autores
que estão concentrando suas pesquisas sobre como definir a “diferença
humana”.1
2 O nascimento do movimento extrativista no Brasil
A partir dos anos 70, a região amazônica do Acre vai se configurando no paraíso dos fazendeiros, para a criação de gado e especulação
da terra. Esse momento é conhecido na história econômica do Acre como
o momento da “pecuarização” da economia acreana.2
As terras compradas ou adquiridas por meios ilegais foram as que
mais geraram conflitos. Tentavam expulsar a qualquer preço os posseiros, aqueles que não detinham o título da terra, mas habitavam nelas há
décadas, geralmente índios e seringueiros, dois seguimentos historicamente rivais, que foram unidos na mesma perseguição. Inicialmente não
existia nenhuma organização sindical que protegesse os seringueiros, foi
nesta ocasião que a participação da Igreja Católica se fez essencial na
organização dos seringueiros na luta pelos seus direitos. A Igreja apoiou
o início dos primeiros sindicatos dos trabalhadores rurais em um tempo
que, no Brasil, vivia-se uma ditadura militar.3
Durante a década de 70, para impedir a expulsão e o desmatamento
das “colocações”, onde viviam os seringueiros, foram organizados “empates” 4, ou seja, a comunidade se colocava de braços dados e de forma
1
Luca Grion et al., La differenza umana. Riduzionismo e antiumanesimo, Ed. Scuola,
Brescia 2009; Anna Maria Leonora, Etica ambientale e comportamento ecologico, Ed.
Bonanno, Roma 2002; Michele Matta, “Il tema dell’ambiente in prospettiva filosofica”,
em: Rivista di Scienze religiose – RSR, 46/2 (2009), pp. 315-330; Saverio Di Liso,
“Ecologia e antropocentrismo”, em: RSR, 46/2 (2009), pp. 331-346; Carlo Dell’Osso,
“Per una teologia ecologica. La solidarietà tra uomo e creature nei Padri della Chiesa”,
em: RSR, 46/2 (2009), pp. 347-368.
2
Euderli Freire de Freitas, Análise da Ascensão da Pecuária bovina como atividade econômica nos municípios de Rio Branco, Xapuri e Brasileia de 1970- 2006..., pp. 56-62.
3
Euderli Freire de Freitas, Análise da Ascensão da Pecuária bovina como atividade
econômica nos municípios de Rio Branco, Xapuri e Brasiléia de 1970- 2006. Tese
licencia em Filosofia, FADISI, Rio Branco Acre 2009, pp. 30-36.
4
Flaviano Scheneider, “Seringueiros impedem que a mata se acabe sem grito”, em:
O Rio Branco, Rio Branco Acre 26 de maio de 1988, p. 6.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
69
Bioética ambiental personalista
pacífica entre a floresta e as motoserras para empatarem (daí o nome de
empates) as derrubadas. Esse movimento foi se fortalecendo até unir
num mesmo sindicado os “povos da floresta” (índios e seringueiros). A
voz da Igreja era uma das poucas respeitadas, ainda que não isenta das
perseguições. O crescente conflito entre os trabalhadores rurais, apoiados
pela Igreja do Alto Acre e Purus, e os fazendeiros apoiados pelo governo
tomou corpo e caracteres dramáticos no final da década de 80.5
Duas figuras foram essenciais para a formação das bases de uma
consciência social dos cristãos do Acre nesse período, ou seja, o bispo
servo de Maria Dom Giocondo Grotti, que ficou como prelado de 1963
até 1971 quando morreu vítima de um acidente áreo, sua morte chocou
todo o Estado do Acre, e é ainda hoje conhecido como o “bispo dos
pobres”.6
O seu sucessor foi Dom Moacyr Grechi, primeiro Servo de Maria
brasileiro nomeado bispo da missão Servita na Amazônia com 36 anos
de idade, ficará como bispo de Rio Branco de 1973 até 1998. Será ele,
que dará continuidade, à implantação da reforma do Concílio Vaticano
II na Igreja do Alto Acre e Purus.7
Dom Moacyr acompanhou todo o processo de implantação das
comunidades de base no Acre. Foi das comunidades de base implantadas
no Alto Acre e Purus de onde nasceu e se fortaleceu o movimento extrativista, que teve como grande representante Chico Mendes (assassinado
em 1988)8 e Marina Silva, ex-ministra do meio ambiente do governo
Lula e atual Senadora da república.9
As primeiras efetivas vitórias do movimento extrativista se deram
no ano de 1988 com a primeira desapropriação das terras de um grande
70
5
Comitê Chico Mendes, 10 anos sem Chico Mendes (CD), a cura do Conselho
Nacional dos Seringueiros – CNS, Rio Branco Acre, 1998.
6
Carlos Alberto Alves de Souza, História do Acre. Novos temas, nova abordagem,
Ed. Carlos A, Rio Branco 2002, p.100; Carta aberta dos Servos de Maria, Servos de
Maria 75 anos na Amazônia. Salve a Selva, Ed. Ordem dos Servos de Maria, Rio de
Janeiro, 1995, p. 20.
7
Dilermando Ramos Vieira, Os Servos de Maria no Brasil. Tradução de José Milanez,
Ed. Ordem dos Servos de Maria, São José dos Campos, 2009, p. 216.
8
Comitê Chico Mendes, 10 anos sem Chico Mendes (CD), a cura do Conselho
Nacional dos Seringueiros – CNS, Rio Branco Acre, 1998.
9
Senador Tião Viana, O Acre e o Pac. Programa de aceleração do crescimento,
Ed.Senado Federal, Brasília 2008; Dom Moacyr Crechi OSM, L’ultimo polmone verde,
em: Corrado Corradini et al., Beati i costruttori di Pace e Giustizia, Pace e Salvaguardia
del Creato, Ed. Publiprint, Verona, 1990, pp. 68-76.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Frei Carlos Paula de Moraes, OSM
fazendeiro de Xapurí-Acre, Darly Alves, para a criação do primeiro
assentamento extrativista no seringal Cachoeira, (Futura Reserva Chico
Mendes). Nessa ocasião, Darly Alves “condenará” Chico Mendes à morte
por ter perdido grande parte de suas terras.10
Com a promulgação da Constituição Federal do Brasil de 5 de
outubro de 1988, que retomava o caminho da República no Brasil depois
de uma ditadura militar de 1964-1985, dedicará de forma inovadora, todo
um capítulo ao Meio Ambiente, impondo como obrigação da sociedade
e do próprio Estado, a preservação e defesa do meio ambiente, onde se
pode vislumbrar a influência do movimento extrativista na origem da
legislação ambiental brasileira, já que os conflitos pela terra no Acre
tinham assumido níveis dramáticos e de repercussão internacional.11
Meses após a promulgação da Constituição Federal de 1988, Chico
Mendes receberá homenagens internacionais pelo seu trabalho em favor
da preservação do meio ambiente. Porém, no dia 22 de dezembro de
1988, será assassinado na sua residência diante de sua esposa e filhos.
O assassinato do ambientalista proporcionará o fortalecimento da onda
ecológica no Brasil.12
O movimento extrativista, é também conhecido como o movimento dos “povos da floresta”, um movimento de base popular, que
nasce não só em um país subdesenvolvido, mas na região amazônica,
uma das regiões mais pobres do Brasil, com um caráter fortemente
religioso, tendo na religião o seu apoio e respiro, e também fortemente
antropocêntrico, já que a defesa do ambiente está estreitamente ligada
com a defesa do homem da floresta, daí sua principal reivindicação da
criação das reservas extrativistas. Origem bem diferente do movimento
ambientalista norte americano da década de 60, que nasceu num contexto
de crítica ao cristianismo e numa potência capitalista. O que estes dois
grandes movimentos têm em comum é a consciência da necessidade de
defender o meio ambiente.
10
11
Milton Claro, A Amazônia que não conhecemos, Ed. Ordem dos Servos de Maria,
São Paulo 2007, pp. 57-60.
Pedro Martinello, A batalha da borracha na segunda guerra mundial e suas conseqüências para o vale amazônico, Cadernos UFAC. N. 1, Série C, Ed. Universidade
Federal do Acre, Rio Branco 1988.
12
Paulo Tormim Borges, Instituto básico do Direito Agrário, Ed. Saraiva, São Paulo
1998, pp. 25-40.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
71
Bioética ambiental personalista
3 A visão católica do meio ambiente
A crise ecológica dentro da visão católica é vista como uma crise
moral e necessita de uma conversão. O papa Paulo VI em 1972, durante
a primeira conferência da ONU sobre o meio ambiente, já frisava que
a pobreza é a pior forma de contaminação de um ambiente, pois gerava
degradação ambiental e guerra. Esse caráter “social” do tema do meio
ambiente foi desenvolvendo-se dentro do Magistério Católico, em uma
linha que ligava sempre mais o ser humano como parte responsável de
“cuidar” da criação. O tema sobre o empenho cristão na defesa da criação
foi se afirmando progressivamente, passando pela chamada de João Paulo
II à “conversão ecologia” e à “ecologia humana”, até hoje fazer parte do
Compêndio da Doutrina Social da Igreja Católica, sendo reafirmado em
várias ocasiões, no magistério de Bento XVI.13
Quanto ao fundamento epistemológico da (bio)-ética ambiental,
se pode inferir, da análise de alguns autores católicos, que os mesmos
parecem não tratarem do estatuto epistemológico da diferença entre a
ética ambiental ou bioética ambiental, pois utilizam os dois termos, às
vezes, como sinônimos.14
Como formulação conceitual de bioética ambiental, o presente
trabalho entende como bioética ambiental: o estudo sistemático e interdisciplinar da intervenção do homem sobre a vida animal, vegetal
e dos ecossistemas, à luz dos valores éticos, quanto ao sujeito moral.
Os vários temas abordados pela bioética ambiental seriam: ecologia;
aquecimento global; relação cultural entre homem e natureza; religião
e ambiente; desmatamento; projetos políticos de desenvolvimento e impactos ambientais; saúde e meio ambiente; lixo tóxico; biodiversidade;
política alimentar e organismos geneticamente modificados; direitos
dos animais, etc.
72
13
Pontificio consiglio della Giustizia e della Pace, Compendio della Dottrina Sociale
della Chiesa..., n. 451-487. Quanto ao debate da legitimidade ou não de se considerar
uma bioética católica, Cf. Giovanni Fornero et al., Laicità debole e laicità forte. Il
contributo della bioetica al dibattito sulla laicità, Ed. Mondadori, Milano 2008. A referida
obra oferece uma reflexão sobre o desenvolvimento e a legitimidade, ou não, de se
considerar uma bioética católica, com base na diferenciação entre sacralidade da vida
e qualidade da vida.
14
Giovanni Russo et al., Bioetica ambientale, Ed. Elle di ci, Torino 1998; Alfons Auer,
Etica dell’ambiente. Il contributo teológico al dibattito ecológico, Ed. Queriniana, Brescia
1988; Elio Sgreccia et al., Etica dell’ambiente, Ed. Ucsc – Facoltá di Medicina e
Chirurgia A Gemelli, Roma 1997.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Frei Carlos Paula de Moraes, OSM
Os vários modelos de bioética ambiental podem ser sintetizados
em três grandes linhas, como: ecocentrismo, que defende a dignidade de
sujeito moral para todos os ecossistemas; o biocentrismo, que defende a
dignidade de sujeito moral a todos os seres vivos, vegetais e animais; o
antropocentrismo, que de certa forma, defende a primazia do ser humano
sobre todas as outras espécies vivas.15
O homem precisa rever seu relacionamento com a natureza, pois o
planeta já não suporta o modelo antropocêntrico capitalista, dentro do paradigma moderno, grande responsável de muitos males ambientais. Este
é um dos principais deveres da bioética ambiental. Não bastam reações
emotivas ou rejeição do progresso, ou até mesmo, o controle selvagem
da natalidade, como tão pouco soluções tecnológicas, é necessário uma
conversão radical da concepção do Ser que fundamente a consciência
do sujeito moral, chamando-o para uma conversão ético-política, que
firme um compromisso pessoal e estrutural, em favor de uma relação
mais harmônica entre o homem e a natureza.16
4 Do “antropocentrismo” ao personalismo cristão
Talvez um dos maiores desafios hoje da Igreja no campo da bioética
seja a “questão antropologica” devido à pluralidade de concepções sobre
o homem do nosso tempo. Não é diferente esse desafio para a questão
ambiental. Tanto na bioética clínica, quanto na bioética ambiental, a
diferença da base antropológica pode significar muito na execução concreta do juízo bioético.17
15
Peter Singer, Vida Ética. Os melhores ensaios. Tradução de Alice Xavier, Ed. Ediouro,
Rio de Janeiro 2002 (Original: Peter Singer, Animal liberation: a new ethics for our
treatment of animals, Review-Randon House, New York 1975); Barid Callicott,
L’etica della terra, em: Giovanni Russo et al., Bioetica Ambientale, Ed. Elle di ci,
Leumann (Torino), 1998, pp. 66-72; Arne Naess, L’armonia tra l’uomo e l’ambiente:
La Deep Ecology, em: Giovanni Russo et al., Bioetica Ambientale, Ed. Elle di ci,
Leumann (Torino), 1998, pp. 62-65; Baird Callicott, Modelli di Bioetica ambientale,
em: Giovanni Russo et al., Bioetica Ambientale, Ed. Elle di ci, Leumann (Torino),
1998, pp. 32-61.
16
Andrea Mariani, Bioetica e teologia morale. Fondamenti per un’etica della vita,
Ed. Lev, Città del Vaticano, 2003, pp. 141-149; Cnbb, Discípulos e Missionários na
Amazônia, Ed. Scala, Manaus, 2007, n. 65-68; Congregazione per La Dottrina
della fede, Istruzione dignitas personae su alcune questioni di bioetica, Ed. Lev, Città
del Vaticano, 2008, n. 1.
17
Elio Sgreccia, La bioetica alle soglie del Duemila, em: Aldo Mazzoni et al., A sua
immagine e somiglianza? Il volto dell’uomo alle soglie del 2000 – un approccio bioetico, Ed. Città Nuova, Roma, 1997, pp. 26-30. Por bioética clínica, se entende as
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
73
Bioética ambiental personalista
No campo da bioética ambiental, o grande desafio da antropologia
hoje é justamente a superação dialética da crítica do movimento ambientalista norte americano, que dentro de suas várias acepções e graus,
nega ao homem o privilégio de ser o “único sujeito moral”. O homem
tem um grau único de responsabilidade ontológica, tanto na degradação,
como também no apelo para que ele mude de atitude em favor da vida
do planeta, isso revela a importância ética do ser humano diante da crise
ambiental também para a solução dessa questão.18
Sabe-se que o Magistério Católico não adotou explicitamente uma
“formulação oficial” para o juízo bioético, mas colheu dos debates sempre a parte da dignidade da pessoa humana. No entanto, o personalismo
ontologicamente fundado, é a base para muitas das conclusões que aparecem nas discussões e documentos católicos.19 Um dos manuais atuais
em bioética, de filo “católico”, é na realidade um manual de bioética na
visão do personalismo ontologicamente fundado.20
A pessoa é entendida como a definição de Boezio: “rationalis naturae individua substantia” (natureza racional e substância individual).
Ou seja, no homem a personalidade existe na individualidade constituída
de um corpo animando e estruturado de um espírito.21
Do momento da fecundação à morte, em cada situação de sofrimento ou saúde, é a pessoa humana o ponto de referência e de medida
entre o lícito e ilícito. O personalismo, sem negar o componente existencial, ou a mesma capacidade de escolha, em que consiste o destino
questões ligadas a ética bio-médica, já a bioética ambiental às questões ligadas ao
meio ambiente.
74
18
Paolo Carlotti et al., Quale Filosofia in teologia morale? Problemi, prospettive e
proposte, Ed. Las, Roma, 2003, pp. 129-139;Andrea Mariani, Bioetica e teologia morale.
Fondamenti per un’etica della vita, Ed. Lev, Città del Vaticano, 2003, pp. 141-223.
19
Bento XVI, Se queres cultivar a paz, preserva a criação (Roma, 1º de janeiro de
2010), Mensagem para a celebração do dia Mundial da Paz, n.13, em: L’Osservatore
Romano, Roma, 16 dezembro 2009, pp. 4-5; Comissione teológica Internazionale.,
Alla ricerca di un’etica universale: nuovo sguardo sulla legge naturale, Ed. Lev, Città
del Vaticano, 2009, n.81.
20
Congregação Per la Dottrina della Fede, Instruzione Dignitas personae su alcune
questioni di Bioetica, Ed. Lev, Città del Vaticano, 2008, n. 1, 4-5. Uma comprovação
dessa realidade e o próprio manual de E. Sgreccia, o qual logo na apresentação (da
edição italiana de 2003) faz sua opção clara pelo “personalismo ontologicamente fundado”, não frisando qualquer “fundamentação religiosa”. Cf. Elio Sgreccia, Manuale
di bioetica. Fondamenti ed etica biomedica vol. I, Ed.Vita e pensiero, Milano, 2003.
21
J. Hervada, Introduzione critica al diritto naturale, Ed. Glf, Milano, 1990; L. Palazzani, Il concetto di persona tra bioetica e diritto, Ed.Glf, Torino, 1996.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Frei Carlos Paula de Moraes, OSM
e o drama da pessoa, entende afirmar também, e prioritariamente, um
estatuto objetivo e existencial (ontológico) da pessoa. A pessoa é antes
de tudo um corpo espiritualizado, um espírito encarnado, que vale pelo
que é e não somente pelas suas escolhas.22
5 Conclusão
Do exposto até o presente momento se pode intuir que o foco de
debate nas questões de bioética ambiental é quanto ao sujeito moral,
que os vários modelos antropocêntricos, biocentricos e ecocentricos,
respondem de forma diversa. O cristianismo se identificaria muito mais
com uma visão antropocêntrica, entendida como personalismo ontologicamente fundado. Pois assim se preservaria o sujeito moral ao homem,
com o justo reconhecimento do valor intrínseco dos seres não humanos
na legítima autonomia das realidades criadas.
Hoje, devido ao crescente debate sobre o meio ambiente, se faz urgente uma atenção aos desvios das propostas biocentricas e ecocentricas,
que chegam a diluir o sujeito moral e criam uma verdadeira inversão do
valor ontológico do ser humano, considerando-o quase como um “vírus”
da natureza, como se existisse uma “luta de classes” entre homem x ambiente, no esquema marxista. Até o presente momento, muitos autores
“ambientalistas” adotaram um caminho de distanciamento do antropocentrismo, tentando por vezes, superar esta visão, por acreditarem, que
tal visão seria incompatível com a atual “questão ambiental”.23
De forma especial na Europa “católica” se desenvolve um debate
que busca definir a “diferença humana” em relação aos outros seres,
mesmo conservando uma base de compromisso pela defesa ambiental,
mas sem com isso reduzir o sujeito moral. Poder-se-ia citar várias pesquisas nos campos filosóficos e teológicos neste sentido em progressivo
desenvolvimento, principalmente depois da crítica do Magistério ao ecocentrismo e biocentrismo, como também à ecologia profunda. O caminho
está ainda aberto e não se possui uma palavra final, mas é indicativo de
22
Carlo Caffara, La persona umana: aspetti teologici, em: Aldo Mazzoni et al., A sua
Immagine e Somiglianza?..., pp. 86-89.
23
Alberto Peratoner, Quale antropocentrismo? Ripensare la persona umana in
relazione all’ambiente, em: Luca Grion, La differenza umana. Riduzionismo e
antiumanesimo, Ed. La Scuola, Brescia, 2009, pp. 39-48; Andrea Aguti, “La critica
naturalistica della religione”, em: Luca Grion, La differenza umana...., pp.85-94.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
75
Bioética ambiental personalista
um possível reorientamento do desenvolvimento do tema da bioética
ambiental dentro da pesquisa teológica católica.24
Email do Autor:
[email protected]
24
76
Rinaldo Fabris, “Teologia bíblica e l’etica che ne deriva”, em: Rivista de Teologia
Morale – RTM, 165 (2010), pp. 11-14; Francesco Compagnoni, “La questione ambientale e i diritti umani”, em: RTM, 165 (2010), pp. 15-20; Saverio Di Liso, “Ecologia e
antropocentrismo”, em: Rivista di Scienze Religiose – RSR, 46/2 (2009), pp. 331-345;
Luca Grion, La differenza umana. Riduzionismo e antiumanesimo, Ed. La Scuola,
Brescia, 2009.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Resumo: O autor propõe a Ética e a Epistemologia como áreas de contribuição
das religiões para a ecologia. De fato, as linhas-mestras da ciência ecológica
estão em plena elaboração, incluindo dados das diferentes Ciências Humanas
e Naturais. Neste sentido, as religiões desenvolveram perspectivas cosmológicas e morais para compreender a condição humana e nortear nossa relação
com a Terra, originando uma ética de perfil eco-religioso. Há quatro princípios
de compreensão da Natureza em que religiões e ecologia podem cooperar:
inteligibilidade, hermenêutica, organicidade e coesão.
Palavras-chave: religiões, ecologia, conhecimento, ética.
Abstract: The author presents ethics and epistemology in terms of fields which
offer contributions to ecology elaborated by religions. In fact, the major themes
of the study of ecology are still being worked out together with data drawn from
different human and natural sciences. In this context, the wide spectrum of religions developed cosmological and moral viewpoints for a deeper understanding
of human conditions and delineate our relationship with the Earth, contributing
thus with special insights into an ethical profile of ecology. Four principles are
involved in the understanding of nature drawing from religions and ecology which may enter into mutual co-operation: intelligibility, hermeneutics, relationship,
and cohesion.
Key words: religions, ecology, insight, ethics.
Ética e episteme: contribuição
das religiões para a ecologia
Marcial Maçaneiro*
* Doutor em teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma). Vice-diretor geral
da Faculdade Dehoniana (Taubaté, SP), onde coordena o NERI – Núcleo de Estudos
e Relações Interconfessionais. Editor da revista “TQ – Teologia em Questão”. Membro
do GREDIRE – Grupo de reflexão em Ecumenismo e Diálogo Inter-religioso da CNBB.
Membro da International Commission for Catholic/Pentecostal Dialogue (Santa Sé).
Religioso da Congregação dos Padres do Coração de Jesus (dehoniano). O presente
artigo se inspira em sua recente publicação “Religiões & Ecologia – cosmovisão,
valores, tarefas” (Paulinas).
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011, p. 77-92.
Ética e episteme: contribuição das religiões para a ecologia
Introdução
As religiões propõem desenhos do mundo a partir de emblemas
milenares e suas releituras sucessivas: criação a partir das águas primordiais, organização do caos pela ação da Divindade, harmonia de
esferas celestes, analogia entre macrocosmo e microcosmo etc. Tais
representações demonstram a busca de compreensão do cosmo e da
natureza por parte do homo religiosus nas diferentes culturas. Daí a complexa literatura sacra, em que elementos míticos se mesclam com dados
histórico-culturais, tecendo uma peculiar episteme da natureza: um saber
que “religa” o biológico e o espiritual, o cotidiano e a transcendência
(conforme o sentido original de religio). Nesta perspectiva, os desenhos
do mundo aproximam religião e ciência em três pontos fundamentais
para a Ecologia:
Inteligibilidade: a convicção de que o universo é uma realidade
inteligível, capaz de ser compreendida, ainda que parcial e progressivamente. Daqui provêm a classificação dos elementos naturais, a classificação das propriedades químicas e terapêuticas, a identificação dos
astros e das constelações, a medição do tempo pelo ciclo lunar ou solar,
a otimização das fontes e do solo, e o desenvolvimento de habilidades
intelectivas e técnicas relacionadas à manutenção da vida. O conhecimento necessário para a sobrevivência foi cercado de ritualidade, porque
reflete a sacralidade da vida que ele preserva.
Hermenêutica: a interpretação do mundo como exercício próprio
da humanidade, em busca de sentido para sua trajetória na Terra. Daqui
provêm as mitologias cosmogônicas (sobre o começo e o término do
universo); a cultura dos quatro elementos (água-terra-fogo-ar) relacionados aos humores da alma; a veneração de astros e potências naturais;
a concepção da Terra como mãe e provedora (Ceres, Gaia, Deméter); a
intuição de um sentido transcendente para o universo e a humanidade.
Organicidade: a tentativa de ordenar os elementos da natureza,
terrestres e siderais, ensaiando visões de conjunto que articulem o todo e
as partes. Daqui provêm a compreensão do mundo como árvore sefirótica
ou corpo cósmico; a concepção do corpo humano como microcosmo
detalhadamente referido ao macrocosmo; a relação entre macrocosmo
e microcosmo como princípio místico e terapêutico; a sacralidade dos
elementos orgânicos e sua utilização ritual; as várias mitologias que
associam terra e céu.
78
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Marcial Maçaneiro
1 As religiões como episteme da natureza
Ao examinar os registros religiosos e científicos da compreensão
humana do mundo, notamos que ambos constatam a imensidão do espaço,
o curso do sol, o fascínio do fogo e a virtude das águas, relacionando
as partes com o todo e mapeando o curso humano na Terra. Registros
científicos e religiosos são distintos entre si, mantendo, porém, vários
pontos de aproximação:
– O Hinduísmo organizou o mundo em círculos concêntricos de
terra, intercalados pela água, tendo ao centro o monte Meru
(hoje identificado com o Himalaia). Ultrapassando os limites
do planeta, podiam-se imaginar outras dimensões paralelas
do universo, como ampolas flutuantes no espaço, cada uma
contendo ar, solo e água. Se esse desenho funcionava para a
Terra, por que não pensá-lo além dos horizontes conhecidos?
– A corrente bhakti do Hinduísmo sintetiza os processos de aniquilação (Shiva) e regeneração (Vishnu) na figura do Krishna
Universal: “Eu sou a meta, o sustentador, a testemunha, a
morada, o refúgio e o amigo mais querido. Sou a criação e
a aniquilação, a base de tudo, o lugar onde se descansa e a
semente eterna” (Bhagavad-Gita 9,18). Krishna se oculta sob
todas as formas de vida.
– O Budismo herdou parte da cosmovisão hinduísta e, depois,
constatou a provisoriedade de tudo o que existe. A impermanência da matéria (animal, vegetal ou mineral) revela seu devir
contínuo, no compasso da criação e da aniquilação, da geração e
da degeneração. Indo além da forma e da coesão energética dos
corpos, o Budismo admite uma realidade última, sem forma e
sem fixidez corporal – modo sereno de existir, além dos limites
do espaço e do tempo. Nesse aparente “nada” estaria a verdadeira
realidade das coisas, sua essência informe e livre de pretensões.
Nesse nível ontológico, todos os seres vivos se irmanam na sua
singela vacuidade, conexos na totalidade do universo, porque
não se separam mais pela forma ou pelo corpo.
– O Judaísmo expressou a organicidade do universo a partir da
potência criadora da Palavra divina: ao nomear cada criatura,
chamando-a à existência, Deus colocava ordem na Criação,
separando-a do caos. Por sua Palavra os astros seguem sua
órbita; os mares se detêm à borda dos continentes, os peixes,
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
79
Ética e episteme: contribuição das religiões para a ecologia
répteis e pássaros ocupam seu hábitat; a terra produz as colheitas; o ser humano vive. A cada aurora, a Palavra eterna de Deus
convoca as criaturas e a vida se perpetua. Tudo ordenadamente,
longe do abismo caótico das águas primordiais (cf. Gn 1,2).
Depois, num salto cultural formidável, o Judaísmo entreviu –
por trás da arquitetura do mundo – um princípio eterno, sutil,
penetrante e engenhoso: a Sabedoria (Hokmá). Emanada do
próprio Deus, foi ela quem presidiu a Criação do mundo na
qualidade de mestre-de-obras. Ela conhece a composição, a
medida, o percurso a o fim de todos os elementos. Tudo o que
existe, reside nela e por ela subsiste.
– Trilhando outra via especulativa, a Cabala desenhou o mundo
como “árvore cósmica”, formada pelos dez Nomes excelentes
de Deus: coroa (keter), sabedoria (hokmá), inteligência (biná),
misericórdia (hesed), julgamento (din), beleza (tiféret), eternidade (netsá), majestade (hod), fundamento (yessod) e reinado
(malkut). Esses Nomes são, ao mesmo tempo, atributos de Deus
e qualidades expandidas por Ele no mundo. Logo, Criador e
criatura se refletem mutuamente: quanto mais vemos o mundo
refletido em Deus, mais percebemos Deus refletido no mundo
(cf. Sefer Ietsira).
– O Candomblé, por sua vez, representou o mundo através das
forças da natureza. Cada orixá é, a seu modo, um emblema
da vida em sua diversidade: águas, raios, minérios, florestas,
ventos, seivas e raízes, fogo e forja. A casa dos orixás – com
seus encontros e desencontros – é imagem mítica dos elementos
da natureza e da tensão que os afasta e integra continuamente.
Como princípio de coesão, está o axé – energia vital que reside
em tudo, que circula em tudo.
– No Cristianismo, os elementos telúricos, celestes e abissais da
Criação encontram-se no Cristo Cósmico, formando um Corpo
encabeçado pelo Logos divino (cf. Col 1,15-20). Afinal, Jesus
é professado como encarnação histórica do Logos criador e
reconciliador de todas as coisas que há “nos céus, na terra e sob
a terra” (Fil 2,10). Este Cristo-Logos é principio e plenitude
da nova criação (cf. Rm 8,19-23).
– O Islam retoma a narração bíblica e organiza o mundo a partir da
Palavra divina, inscrita nas criaturas. Os astros e constelações,
a terra e suas colheitas, os animais e a diversidade de povos são
80
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Marcial Maçaneiro
sinais (ayat) da Sabedoria do Criador. Há um profundo vínculo
entre o mundo visível e o mistério invisível de Allah – pois ele
revela seus atributos em analogia com o vigor e a beleza da
Criação (cf. Alcorão: Sura 30,27).
2 O triálogo religiões-ciências-ecologia
Como dissemos, as religiões traçaram seu desenho do mundo em
resposta aos três pontos já assinalados: inteligibilidade do universo; interpretação e conhecimento humano; organicidade da natureza. A partir daí,
distinguimos quatro componentes da cosmovisão religiosa que dialogam
com as Ciências da Natureza e com a Ecologia, particularmente:
Inteligibilidade – Desde os antigos filósofos gregos, preocupados
em decifrar a natureza das coisas (physis), a ciência buscou compreender
o mundo nas suas múltiplas manifestações. Do aprimoramento epistemológico surgiram novas análises e novas sínteses, levando as ciências a se
classificarem de modo especialístico. Hoje, várias abordagens aproximam
as especializações para compor um saber holístico. Portanto, religiões e
ciências se aproximam ao admitir a possibilidade de conhecer o mundo,
compondo, porém, epistemes diferenciadas.
Hermenêutica – Cada desenho de mundo proposto pelas religiões
é, na verdade, uma interpretação da realidade conhecida. As religiões utilizam narrativas cosmogônicas, identificam centros do mundo, organizam
o caos e distinguem os elementos (água-terra-ar-fogo-éter), na tentativa
de ordenar e interpretar o mundo. Ao lado de rudimentos técnicos adquiridos, surgem elementos simbólicos que indicam que o homo religiosus
– à medida que se situa no mundo – busca interpretar e descrever sua
ambiência vital. É nessa ambiência que o sujeito se abre à sacralidade,
descobre a transcendência e cria ritos que expressam memória (relação
como passado) e sentido (relação com o devir).
Organicidade – Antes da cosmologia moderna e da teoria de Gaia1,
as religiões ensaiaram a seu modo um esboço holístico do mundo, na
dialética entre imanência e transcendência, tempo e eternidade. Esferas,
labirintos, árvore sefirótica e concepção do corpo como microcosmo
foram as primeiras expressões de uma percepção orgânica da natureza.
É admirável o quanto as religiões enfrentaram o caos, a fragmentação e a
1
James LOVELOCK. A vingança de Gaia. São Paulo: Editora Intrínseca, 2006. Também:
Gaia – Cura para um planeta doente. São Paulo: Cultrix, 2006.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
81
Ética e episteme: contribuição das religiões para a ecologia
finitude, afirmando a ordem, a regeneração e a transcendência. Não só em
termos nocionais, mas sensoriais, experimentadas no devir das estações,
no ciclo lunar, na passem da infância à vida adulta, nas refeições ao fim
das colheitas – elementos ao mesmo tempo ecológicos e litúrgicos.
Coesão – Estruturada como organismo de muitas partes, a natureza é múltipla e coesa ao mesmo tempo. Algo semelhante se observa
no cosmo: os astros, cometas e constelações se expandem pelo espaço
sideral, mantendo-se numa cadeia energética e causal que os relaciona
entre si. No sistema solar e nos ecossistemas conhecidos há vínculos
que ligam partículas e corpos. Trata-se de uma coesão dinâmica e plural
(e não monolítica ou estática). As religiões constataram esse fenômeno
cósmico e natural, percebendo forças de coesão visíveis e invisíveis.
Para os hinduístas o princípio de coesão é Brahman, sustentador de todos
os seres. O Oriente elaborou também a noção do Tao: “indiferenciado,
porém completo; sem forma e sem nome; fonte de todas as coisas; uno
com o movimento e as mudanças na Natureza”2. Para o Judaísmo, quem
sustenta o universo é a potência criadora de Deus, expressa como Sabedoria (hokmá) ou Palavra (dabar). A religião dos orixás acredita que
uma energia primordial (axé) acompanhe a expansão da vida nas diversas
direções (obá), como força que atravessa e une todas as coisas. Para os
cristãos, a força dinamizadora e vinculante do mundo é o Espírito Divino, chamado justamente de dynamis (energia motriz) e pneuma (sopro
vital). Notemos, ainda, que, no Judaísmo e no Islam, as letras do texto
sagrado têm valor numérico, possibilitando uma versão matemática (e
não só metafísica) do universo.
3 Religiões e epistemologia ambiental
O debate sobre o conhecimento humano e os métodos científicos
tem crescido na direção da chamada “epistemologia complexa”3. Nessa
direção convergem os ensaios interdisciplinares, o diálogo entre Ciências
Humanas e Ciências Naturais e o encontro das várias esferas de realização
do humanum com seus saberes: Arte, Direito, Ética, Comunicação, Psicologia, Sociologia, Religião. Busca-se superar a fragmentação do conheci-
82
2
Jennifer OLDSTONE-MOORE. Conhecendo o taoísmo. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 22.
3
Cf. Edgar MORIN. Science avec conscience. Paris: Fayard, 1982. Dele também: O
problema epistemológico da complexidade. Lisboa: Europa-América Publicações,
1984. Giancarlo BOCCHI; Mauro CERUTI. La sfida della complessità. Milano:
Feltrinelli, 1985.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Marcial Maçaneiro
mento em partes estanques, bem como corrigir certas tendências de cisão
entre a humanidade e a natureza. Alguns autores, como Edgar Morin, têm
feito uma revisão geral da epistemologia e suas pretensões4.
A partir desse debate vão se delineando os contornos de uma epistemologia ecológica: fundamentos, métodos e imbricações da ecologia
enquanto Ciência, que explicite o que sabemos (e o que não sabemos)
sobre o círculo vinculante Humanidade-Natureza-Sociedade.
Edgar Morin opina que “a ciência ecológica necessitará de um
pensamento organizador, mas que ultrapasse os princípios da organização
estritamente física”5. Outro pesquisador, Pierre Dansereau, tem reclamado a construção de uma epistemologia ecológica que inclua a ética e o
princípio da síntese: “as ciências do meio-ambiente estão à procura de
uma nova síntese do saber e de uma nova prescrição, cujo princípio será
mais ecológico do que econômico e mais ético do que científico”6.
De seu lado, Alfredo Pena-Vega assume e desenvolve as perspectivas de Edgar Morin: ele vê a Ciência Ecológica como construção
e percepção complexas; um conhecimento inclusive crítico, pois coloca
“em xeque” nossas coordenadas gnosiológicas, nossa delimitação das
Ciências e nosso comportamento. Afinal, a concepção tecnicista do
progresso e o consumismo se refletem na exploração desordenada da
natureza, na produção de toneladas de lixo por hora e no acúmulo de
bens nas mãos de poucos. Tudo isso é ao mesmo tempo injusto, danoso
e irracional. Para consertar tal situação, projetamos uma nova gestão, a
partir de um novo saber bio-ecológico.
Na opinião de Alfredo Pena-Vega, os dados da biologia, psicologia
e física participam da elaboração da epistemologia ecológica, desde que
todos se disponham a rever seus paradigmas com disposição intelectiva
e avaliação dos métodos. O autor diz também que admitir os limites do
saber é uma oportunidade de conhecimento. Isso significa que o “mistério” (o ignoto, o limítrofe, o não-sabido) também constitui a realidade
e as abordagens que a tentam decifrar:
4
Cf. Edgar MORIN. Introduction à la pensée complexe. Paris : ESF, 1990. Mauro CERUTI ;
Giancarlo BOCCHI; Edgar MORIN. Un nouveau commencement. Paris: Seuil, 1991.
5
Alfredo PENA-VEGA. O despertar ecológico. Rio de Janeiro: Garamond, 2005, p. 38.
6
Pierre DANSEREAU, Ecologia humana. Apud Mauricio Andrés RIBEIRO. Ética e
sustentabilidade. Em: <www.ecologizar.com.br>.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
83
Ética e episteme: contribuição das religiões para a ecologia
Lembremo-nos que a epistemologia da complexidade [aplicada
à ecologia] não deve ser vista como uma espécie de catálogo no qual
se acumulariam, por justaposição, todos os conhecimentos: físico, biológico, lógico, psicológico, psicanalítico etc. Ao contrário, ela deve ser
considerada como um princípio de complexificação do nosso próprio
conhecimento, que introduz, em todas essas consciências, a consciência das condições bio-antropológicas, socioculturais ou nosológicas
do conhecimento. Em outras palavras: o conhecimento que traduz a
complexidade dos fenômenos deve reconhecer a existência dos seres e
interrogar-se sobre o mistério do real7.
Esse “mistério do real” tem sido abordado também pelas religiões,
com chaves interpretativas e narrativas próprias e, em alguns pontos, complementares. O olhar religioso vai além do empírico e se abre à intuição
do mistério, acolhido como percepção de beleza, sentido e transcendência.
Esses elementos se inscrevem no cosmo e são decifrados pelo espírito
humano. Daqui brotam os mitos ordenadores do caos e explicadores do
dinamismo da vida, e os códigos de conduta que orientam as relações
entre as pessoas, delas com a divindade e, enfim, com as demais criaturas. Temos, aqui, elementos hermenêuticos (interpretação do mundo) e
morais (princípios de conduta) preservados pelas religiões e ainda ativos
no comportamento atual.
Também Enrique Leff aponta para uma nova abordagem da
natureza em que seja possível o diálogo com a religião (ao menos em
nível de princípio). Mirando a uma nova epistemologia ambiental, ele
cita a convergência de saberes num “sistema holístico”, e a capacidade
unificadora do “pensamento simbólico”. O olhar holístico e a abordagem
simbólica da realidade são características da cosmovisão religiosa, porém
muitas vezes desqualificadas do ponto de vista científico. Leff propõe,
então, que se reveja o que tem sido considerado “científico”, para depois
rever o que seja “conhecimento”. Investiga os diferentes “saberes” e
procura recuperar a dignidade epistemológica do patrimônio simbólico,
mítico e ritual dos povos:
O saber ambiental reconhece as identidades dos povos, suas cosmologias e saberes tradicionais, como parte de suas formas culturais de
apropriação do seu patrimônio de recursos naturais. Assim, inscrevemse dentro dos interesses diversos que constituem o campo conflitivo do
7
84
Alfredo PENA-VEGA. O despertar ecológico. Rio de Janeiro: Garamond, 2005, p. 41.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Marcial Maçaneiro
ambiental. Emergem daí novas formas de subjetividade na produção de
saberes, na definição dos sentidos da existência e na qualidade de vida
dos indivíduos, em diversos contextos culturais. Nesse sentido, mais
que reforço da racionalidade científica prevalecente, o saber ambiental impulsiona novas estratégias conceituais para construir uma nova
racionalidade social8.
A busca de “novas estratégias conceituais” abre uma importante
brecha de participação das religiões, com suas cosmologias e interpretações sobre o sentido da vida e o lugar do ser humano no mundo. Também o ethos e a racionalidade simbólica das religiões podem contribuir
para a construção dessa “nova racionalidade social” mencionada por
Henrique Leff.
4 Consolidar uma ética para a ecologia
As religiões (de cunho profético, místico ou sapiencial) oferecem
chaves hermenêuticas sobre o mundo e a condição humana; constroem
sentido existencial; inserem o ser humano no cosmos; propõem valores e
norteiam condutas. Antes da emancipação histórica da Ética, do Direito e
das Artes, as religiões se ocupavam (como em parte ainda se ocupam) das
esferas moral, jurídica e estética. Hoje, a sociedade se setorizou e o sujeito
é nutrido por várias fontes, professando ou não um determinado credo.
Contudo, as religiões não podem renunciar à sua responsabilidade
pela vida, pelo mundo – que perdura, se aprimora e é convidada a reler-se
no curso da História. Muitos líderes acreditam que as religiões podem ser
parceiras valiosas na promoção de uma ética ecológica, de nível triplo:
pessoal, comunitária e global9.
Vejamos algumas posições:
– A capacidade de pensar racionalmente e a capacidade de expressar-se através da fala elevam o homem acima de seus amigos
mudos [os demais seres naturais]. Mas, em busca do sossego,
da comodidade e da segurança, com excessiva fre­quência
o homem emprega meios inadequados, ou mesmo brutais e
8
Enrique LEFF. Epistemologia ambiental. São Paulo: Cortez, 2006, p. 169.
9
Cf. Hans KÜNG. Projeto de ética mundial. São Paulo: Paulinas, 2001. Marcelo BARROS.
O sonho da paz. Petrópolis: Vozes, 1995. Bernhard HAERING; Valentino SALVOLDI.
Tolerância – por uma ética de solidariedade e paz. São Paulo: Paulinas, 1995. Al GORE.
A Terra em balanço – ecologia e o espírito humano. São Paulo: Gaia, 2008.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
85
Ética e episteme: contribuição das religiões para a ecologia
repulsivos. Quando por motivos egoístas se cometem crueldades desumanas, quando se maltrata o próximo ou os animais,
estamos diante de comportamentos inteiramente inadequados
à posição e à capacidade evolutiva do homem. Infelizmente,
esses comportamentos quase fazem parte da ordem do dia.
Atos insensatos desse tipo apenas trazem sofrimentos para a
própria pessoa e para os outros. Para nós que nascemos como
seres humanos, é de vital importância exercer benevolência e
realizar ações meritórias para nosso próprio proveito e para o
proveito dos outros, nesta vida e em vidas futuras. [...] Aqueles
que seguem a senda [do budismo] mahayana são aconselhados
não somente a evitar um comportamento prejudicial, mas também a desenvolver um intenso sentido de compaixão. Isso traz
consigo um grande desejo de salvar todos os seres sensíveis,
de suas dores e sofrimentos (Dalai Lama – budismo)10.
– Reduzir completamente a natureza a um conjunto de simples
dados reais acaba por ser fonte de violência contra o meioambiente e até por motivar ações que desrespeitam a própria
natureza do homem. Esta, constituída não só de matéria, mas
também de espírito – e, como tal, rica de significados e de fins
transcendentes a alcançar – tem um caráter normativo também
para a cultura. O homem interpreta e modela o ambiente natural
através da cultura, a qual, por sua vez, é orientada por meio
da liberdade responsável, atenta aos ditames da lei moral. Por
isso, os projetos para um desenvolvimento humano integral
não podem ignorar os vindouros, mas devem ser animados pela
solidariedade e a justiça entre as gerações, tendo em conta os
diversos âmbitos: ecológico, jurídico, econômico, político e
cultural (Papa Bento XVI – cristianismo)11.
– A manutenção de um ambiente limpo é o dever cívico fundamental dos crentes que devem contribuir para o controle
da poluição e para um ambiente mais saudável. O profeta
[Muhammad] encorajou a plantação de árvores, a preservação
e conservação de recursos, o uso cuidadoso da água e de outros
recursos ambientais, e a segurança no ambiente quando ele
descreveu atos como a remoção de um objeto perigoso do ca10
11
86
Dalai Lama, apud Leonardo BOFF. Princípio da compaixão e cuidado. Petrópolis:
Vozes, 2001, p. 59-60.
BENTO XVI, encíclica Caritas in veritate, n. 48.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Marcial Maçaneiro
minho das pessoas, como caridade merecedora da recompensa
de Allah. Entretanto, o princípio do equilíbrio e da moderação
continua a ser fundamental nos ensinamentos islâmicos. [...]
Os humanos têm a vice-regência de Deus na terra (Sura 2,30).
Por conseguinte, são responsáveis pela proteção e preservação
daquilo que lhes foi confiado por Deus. Toda a vida deve ser
respeitada, de modo que não deve haver caça, ou matança de
animais ou a sua manutenção em cativeiro, para prazer e lucro.
Deve evitar-se o desperdício e também o uso excessivo de
recursos (Saleha Mahmud-Abedin – Islam)12.
Em diálogo com as ciências, a sociedade e os governos, as religiões
podem oferecer critérios de valia moral e espiritual que reeduquem as
pessoas ao cuidado da natureza – dom do Criador. Sabemos que o risco
de desaparecimento da vida no planeta é real e até crescente: a água
escasseia, as espécies se extinguem, a poluição aumenta, a temperatura
global se eleva. Além dos possíveis fatores naturais ou geológicos, tal
crise tem agravantes sérios de nossa parte: exploramos sem replantar,
descartamos sem reciclar, consumimos sem partilhar. Há desperdícios e
má gestão em muitos setores. Tal situação nos obriga a rever nossos padrões de progresso, nossas práticas de gestão, nossos hábitos de consumo
e a exclusão social decorrente. Pierre Dansereau é enfático:
A maior catástrofe ecológica tem a ver com a tendência ao recolhimento
no âmbito confortável da nossa própria prosperidade, através da nossa
obstinação em perpetuar o elevado nível de vida que já alcançamos.
Se não formos capazes de romper esta concha, de atenuar a pressão
desse torno compressor e de ajudar as outras nações, estaremos – nós
mesmos – simplesmente condenados! [...] Para além do progresso tecnológico e das coações econômicas, como tomar decisões que estejam
à altura desse desafio moral? Pois tem-se falado muito em combater
a poluição (sem rebaixar, entretanto, o nível de vida dos ricos!); e ao
mesmo tempo não se tem encarado com a devida intensidade a linha
de continuidade que associa a poluição à pobreza, à ignorância, à
injustiça social. Um mundo realmente novo deverá ser capaz de contemplar, face a face, a necessidade de se definir a crise planetária em
12
Saleha MAHMUD-ABEDIN, apud Patrícia MISCHE; Melissa MERKLING (orgs.).
Desafio para uma civilização global – diálogo de culturas e religiões. Lisboa: Instituto
Piaget, 2001, p. 325.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
87
Ética e episteme: contribuição das religiões para a ecologia
suas dimensões morais, para além da análise científica e ecológica do
abuso dos recursos da Terra13.
A dimensão moral foi apontada também por João Paulo II, na
esperança de corrigir comportamentos e consolidar uma noção de desenvolvimento integral e sustentável:
O caráter moral do desenvolvimento também não pode prescindir
do respeito pelos seres que formam a natureza visível, a que os gregos,
aludindo precisamente à ordem que a distingue, chamavam de “Kosmos”.
Também essas realidades exigem respeito, em virtude de três considerações sobre as quais convém refletir atentamente:
– A primeira refere-se às vantagens de tomar ainda mais consciência de que não se pode, impunemente, fazer uso das diversas
categorias de seres, vivos ou inanimados (animais, plantas e
elementos da natureza) como se quiser, em função das próprias
exigências econômicas. Pelo contrário , é preciso ter em conta
a natureza de cada ser e as ligações mútuas entre todos, num
sistema ordenado, como é exatamente o cosmo.
– A segunda consideração se fundamenta, por sua vez, na convicção – eu diria premente! – de que os recursos naturais são
limitados; alguns dos quais não são nem mesmo renováveis.
Usá-los como se fossem inexauríveis, com absoluto domínio,
põe em perigo seriamente a sua disponibilidade, não só para a
geração presente, mas sobretudo para as gerações futuras.
– A terceira consideração se relaciona diretamente com as consequências que certo tipo de desenvolvimento tem, quanto à
qualidade de vida nas áreas industrializadas. Todos nós sabemos
que, como resultado direto ou indireto da industrialização, ocorre cada vez com mais frequência a contaminação do ambiente,
com graves consequências para a saúde da população.
Portanto, é evidente que o desenvolvimento, e a vontade de planificação que o orienta, assim como o uso dos recursos e a maneira de
consumi-los, não podem estar separados do respeito das exigências morais. Uma dessas impõe limites, sem dúvida, ao uso da natureza visível.
O domínio conferido ao homem pelo Criador não é um poder absoluto,
nem se pode falar de liberdade de “usar e abusar” ou de dispor das coisas
13
88
Pierre DANSEREAU, Ecologia humana. Apud Mauricio Andrés RIBEIRO. Ética e
sustentabilidade, em <www.ecologizar.com.br>.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Marcial Maçaneiro
como melhor agrade. A limitação imposta pelo mesmo Criador, desde o
princípio – simbolicamente expressa pela proibição de “comer o fruto
de determinada árvore” (cf Gn 2,16-17) – mostra com clareza que, nas
relações com a natureza, nós estamos submetidos a leis, não só biológicas,
mas também morais, que não podem impunemente ser transgredidas14.
Fundamentalmente, a ética ecológica quer superar a divisão
radical entre humanidade e natureza – com a primeira dominando o
meio-ambiente pela crescente tecnicização; e a segunda separando-se na
direção de uma preservação sem nenhuma incidência humana, como se
o homem não fizesse parte, também ele, da natureza. Esta cisão conduz
a extremos de mútua negação entre natureza e humanidade, esquecendo
o princípio fundamental de que “todo homem está na natureza, e toda a
natureza está no homem”15.
Desde os anos noventa, representantes de várias religiões incluem
sua assinatura à Convenção da Terra – um tratado inter-religioso para
a segurança ecológica comum. Seus parâmetros servem de exemplo de
como as religiões contribuem para a ética ecológica:
Relação com a Terra – Todas as formas de vida são sagradas.
Cada ser humano é uma parte única e integral da comunidade de vida
da Terra e tem uma responsabilidade especial para cuidar da vida em
todas as suas diversas formas. Por conseguinte: agiremos e viveremos
de modo a preservar os processos da vida natural da Terra e a respeitar
todas as espécies e os seus hábitats. Trabalharemos para evitar a degradação ecológica.
Relação com os outros – Cada ser humano tem o direito a um
ambiente saudável e a ter acesso aos frutos da Terra. Cada um também
tem o dever contínuo de trabalhar para a realização desses direitos para
as gerações presentes e futuras. Por conseguinte: interessados em que
todas as pessoas tenham comida, abrigo, ar puro, água potável, educação
e emprego, e tudo o que seja necessário para desfrutar de toda a dimensão dos direitos humanos – trabalharemos por um acesso mais justo aos
recursos da Terra.
Relação entre economia e segurança ecológica – Como a vida
humana se baseia nos processos naturais da Terra, o desenvolvimento
14
JOÃO PAULO II, encíclica Sollicitudo rei socialis, n. 34.
15
Edgar Morin, apud Alfredo PENA-VEGA. O despertar ecológico. Rio de Janeiro:
Garamond, 2005, p. 71.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
89
Ética e episteme: contribuição das religiões para a ecologia
econômico, para que seja sustentado, deve preservar os sistemas de
apoio à vida da Terra. Por conseguinte: usaremos tecnologias protetoras
do ambiente e promoveremos a sua disponibilidade às pessoas em todas
as partes da Terra. Quando houver dúvidas sobre as consequências dos
objetivos econômicos e das tecnologias sobre o ambiente, permitiremos
uma margem extra para proteger a natureza.
Governança e segurança ecológica – A proteção e a melhoria da
vida na Terra exigem sistemas legislativos, administrativos e judiciais
adequados, nos níveis local, regional, nacional e internacional. Para
serem eficazes, esses sistemas precisam ter poder, ser participativos e
estar baseados no acesso à informação. Por conseguinte: trabalharemos
pela promulgação de leis que protejam o ambiente e promovam a sua
observância através da ação educativa, política e legal. Avançaremos
com políticas de prevenção, em vez de apenas reagirmos aos danos
ambientais16.
Notas finais
Em tempos de crise ambiental – quando buscamos rever nosso
lugar no planeta, na tentativa de educar ao cuidado ecológico a partir
de motivações profundas – não podemos dispensar as religiões de sua
contribuição: todos os saberes e âmbitos de responsabilidade humana são
interpelados à cooperação interdisciplinar, internacional e interreligiosa,
em benefício da vida humana e planetária.
Nesse sentido, as religiões oferecem uma perspectiva de profundidade e de ética à percepção cultural, política e científica do mundo, com
efeitos potencialmente benéficos: aproximação da física e da metafísica
numa visão holística do mundo; integração do ignoto numa epistemologia
que vai além da racionalidade instrumental; interação dos acervos técnicos e simbólicos educadores da humanidade; contribuição das religiões
para uma ética planetária.
Essas bases éticas e epistêmicas nos permitem tomar iniciativas
mais eficazes de educação e gestão ambiental, inspirados no patrimônio
das religiões. A partir daí tem-se organizado centenas de fóruns, parcerias
16
90
Convenção da Terra, apud Patrícia MISCHE; Melissa MERKLING (orgs.). Desafio
para uma civilização global, op. cit., p. 454-455.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Marcial Maçaneiro
e programas de ação, muitos dos quais com o apoio da UNEP – United
Nations Environment Programme. Destacamos alguns:
– Fórum Global de Líderes Espirituais e Governamentais sobre
questões ambientais: Oxford (1988), Moscou (1990), Rio de
Janeiro (1992) e Kyoto (1993).
– Encontro sobre Ética Global de Cooperação das Religiões
para as Questões Humanas e Ambientais: Chicago, 1993.
– Seminário sobre Meio-Ambiente, Cultura e Religião: Teerã,
2001.
– Simpósio Internacional sobre as Religiões e a Água: Amazonas
(Brasil), 2005.
– Seções do Parlamento das Religiões Mundiais sobre questões
ambientais: Chicago (1993), Barcelona (1994), Melbourne
(2009).
Desse modo, as narrativas eco-religiosas (com seus emblemas e
valores) contribuem para a epistemologia complexa de estatuto dinâmico
e interdisciplinar, atenta à ética e promotora do conhecimento integral.
Não são esses os componentes de uma efetiva Ecologia de Profundidade
(Deep Ecology), capaz de educar consciências e motivar práticas sustentáveis? Além dos governos e dos cientistas, cabe também aos líderes
religiosos – pessoal e institucionalmente – aprofundar suas perspectivas
e ingressar na grande rede de iniciativas pelo bem da humanidade e da
Terra.
Referências
BENTO XVI. Encíclica “Caritas in veritate”. São Paulo: Paulinas,
2009.
BOCCHI, Giancarlo; CERUTI, Mauro. La sfida della complessità. Milano: Feltrinelli, 1985.
BOFF, Leonardo. Princípio da compaixão e cuidado. Petrópolis: Vozes,
2001.
CERUTI, Mauro; BOCCHI, Giancarlo; MORIN, Edgar. Un nouveau
commencement. Paris: Seuil, 1991.
DANSEREAU, Pierre. Ecologia humana. Apud Mauricio Andrés RIBEIRO. Ética e sustentabilidade. Disponível em: www.ecologizar.com.br.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
91
Ética e episteme: contribuição das religiões para a ecologia
GORE, Al. A Terra em balanço – ecologia e o espírito humano. São
Paulo: Gaia, 2008.
HAERING, Bernhard; SALVOLDI, Valentino. Tolerância – por uma
ética de solidariedade e paz. São Paulo: Paulinas, 1995.
JOÃO PAULO II. Encíclica “Sollicitudo rei socialis”. São Paulo: Paulinas, 1988.
KÜNG, Hans. Projeto de ética mundial. São Paulo: Paulinas, 2001.
LEFF, Enrique. Epistemologia ambiental. São Paulo: Cortez, 2006.
LOVELOCK, James. Gaia – Cura para um planeta doente. São Paulo:
Cultrix, 2006.
MISCHE, Patricia; MERKLING, Melissa (orgs.). Desafio para uma
civilização global – diálogo de culturas e religiões. Lisboa: Instituto
Piaget, 2001.
MORIN, Edgar. Science avec conscience. Paris: Fayard, 1982.
_____. O problema epistemológico da complexidade. Lisboa: EuropaAmérica Publicações, 1984.
_____. Introduction à la pensée complexe. Paris : ESF, 1990.
PENA-VEGA, Alfredo. O despertar ecológico. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.
PRANDI, Reginaldo. Segredos guardados – Orixás na alma brasileira.
São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
SANTOS, Edson Fabiano dos. Religiões de matrizes africanas. Rio de
Janeiro: CEAP, 2007.
Endereço do Autor:
Faculdade Dehoniana
Caixa postal 128
12010-970 Taubaté, SP
92
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Resumo: O tema central das religiões bíblicas é a Aliança sagrada que fundamenta a fé e a ética, reveladas por Deus. Começando com a instituição da antiga
Aliança no Sinai, e continuando com a nova Aliança de Jeremias, surge uma
inovação com a nova e eterna Aliança de Cristo. A novidade está no Mediador
divino e, na dimensão universal, com o papel da Igreja em função do Reino de
Deus. O capítulo final desenvolve o assunto do meio ambiente como âmbito de
convivência dos fiéis e dos cidadãos da sociedade civil num desafio de superar
o indiferentismo religioso e reverter o dinamismo da violência.
Abstract: The central theme of the biblical religions is the sacred covenant as
the basis of faith and ethics, revealed by God. Beginning with the institution of
the old covenant at Sinai and continuing with the new covenant of Jeremiah,
an innovation is introduced with the new and eternal covenant of Christ. The
novelty consists in the divine mediator and in the universal dimension, which is
carried on by the Church due to its service for the benefit of the Kingdom of God.
The final chapter develops the subject of the environment of the faithful and the
citizens of civil society facing the challenge to overcome religious indifferentism
and to reverse the spiral of violence.
Religiões bíblicas baseadas
na Aliança Sagrada
Luis Stadelmann, SJ*
*
O autor, Doutor em Língua e Literatura Semítica, Cincinnati, e Mestre em Ciências
Bíblicas, Roma, é Professor no ITESC.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011, p. 93-106.
Religiões bíblicas baseadas na Aliança Sagrada
Introdução
Tanto o judaísmo como o cristianismo insiste seguidamente sobre
o lugar central da Aliança sagrada, cuja essência constitui a religião
bíblica, incorporada depois na celebração litúrgica. Nela os rituais e as
instituições estão relacionados entre si e expressam a fé em Deus como
Ser Absoluto pessoal, moral e exclusivo. Em outras palavras, a presença
de Deus não era um assunto da categoria da universalidade das verdades e
dos valores absolutos e autônomos, mas da revelação divina no contexto
da religião judaico-cristã1. Os fiéis, agraciados com a relação estreita com
Deus, concretizaram tal relação fundamental constitutiva na história,
nos espaços diversos da vida em convivência social, e traduziram-na
em variadas formas de solidariedade, em conformidade com regras morais, transmitindo-a em múltiplas estruturas religiosas, aplicando-a na
organização dos habitantes, não propriamente em grupos de interesses
afins e tendências homogêneas, mas em comunidade de fé e comunidade
ética. Não é de admirar-se, pois, que a instituição da Aliança divina tenha
inspirado o lema da “Fraternidade e Meio Ambiente”, para a vivência
eclesial promovida pela Campanha da Fraternidade de 2011.
O tema da ecologia é muito atual nos dias de hoje, tanto na preservação da flora e fauna, em seu habitat, como frente aos problemas
causados pelo aquecimento global bem como diante da crescente demanda de energia para suprir o refluxo dos recursos naturais do modelo
progressista de desenvolvimento urbano e industrializado. Não menos
desafiante que a ecologia ambiental é a preocupação com a defesa da
ecologia humana, gerando implicações eclesiais na integração social
dos fiéis na comunidade cristã. Sua incorporação tem por finalidade o
desempenho da nobre missão de se tornarem portadores dos dons salvíficos para todos os povos, e de servirem como paradigma de salvação
à humanidade. Para solucionar os graves problemas do nosso tempo,
propomos uma abordagem de temas relevantes da Bíblia, capazes de
abrir-nos à criatividade de nossa iniciativa.
1
94
Diversos tipos de religião: 1º religiões de integração (povos primitivos, siberianos,
ameríndios, indígenas brasileiros, oceânicos, australianos, africanos); 2º religiões
de servidão (antigo Egito, Mesopotâmia, indo-europeus: celtas, eslavos, germanos,
gregos, romanos, semitas: cananeus, antiga China, Japão, astecas, mayas, incas);
3º religiões de libertação (de Mani, gnosticismo, antiga Índia, hinduísmo, budismo,
jainismo, budismo chinês, budismo japonês, budismo tibetano, confucionismo); 4º
religiões de salvação (masdeísmo, judaísmo, cristianismo, islamismo). Cf. W.O. Piazza,
Religiões da Humanidade, Ed. Loyola, S.Paulo, 2a. ed., 1991.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Luis Stadelmann, SJ
1 A instituição da antiga Aliança no Sinai (Ex 19-24)
A “Aliança” sagrada é uma das duas colunas da religião de Israel,
e tem sua origem na revelação de Deus ao Povo Eleito no monte Sinai2.
Igualmente, a outra coluna é a “Eleição” divina, dando origem à comunidade consagrada a Deus: “Tu és um povo consagrado ao Senhor, teu
Deus. O Senhor teu Deus te escolheu dentre todos os povos da terra
para seu povo particular” (Dt 7,6). Neste texto da revelação bíblica
encontramos a origem e finalidade do Povo Eleito, incumbido de servir
de paradigma da atuação de Deus para outros povos:
Entre as nações se comentava:
“O Senhor fez por eles maravilhas”.
Maravilhas o Senhor fez por nós,
e ficamos jubilosos (Sl 126,2-3).
No NT se alarga o âmbito da atuação de Deus para o mundo inteiro, pela colaboração dos cristãos como instrumento de mediação da
salvação divina. Cabe-lhes exercer a nobre tarefa de portadores de dons
salvíficos para toda a humanidade (Mt 28,19). No NT (1Cor 3,9) consta
a proposta que Deus faz às comunidades de fé para cooperarem com Ele
na obra da redenção3.
A característica da Aliança sagrada é fundamentar a relação entre
Deus e seu povo pelos laços de amizade, e não por servidão, como entre os
povos pagãos em sua veneração do deus tutelar4. A finalidade da Aliança
sagrada é de mediação da salvação divina dentro de dois âmbitos: na
comunidade de fé e na comunidade ética. Sua vigência é perene para
os fiéis do AT e do NT, mas admite uma atualização quanto ao uso dos
meios, dos mediadores e das mediações na História da Salvação. Em
2
É importante notar que os livros históricos e proféticos da Bíblia mencionam as montanhas ao sul da Palestina (Sinai) como a pátria da fé em Javé; cf. E. Gerstenberger,
Teologias no AT – Pluralidade e sincretismo da fé em Deus no AT. (Trd. de N. Kilpp),
Ed. Sinodal, São Leopoldo, 2007, p. 171. Destarte, a religião do AT foi revelada fora
do território do antigo Israel.
3
A função da “Eleição” (vocação) divina na religião do Povo Eleito foi valorizada por
W. Zimmerli, Grundriss der alttestamentlichen Theologie, Kohlhammer, Stuttgart,
1972, p. 35 ‘Die Erwählung Israels’, p. 35-39, mas foi descartada na teologia do
AT por C. Westermann, Fundamentos da Teologia do AT, Ed. Academia Cristã, S.
Paulo, 2005.
4
Entre os povos pagãos, desde a época mais remota até o presente, nunca se ouviu
dizer que um deus tutelar tivesse feito uma “Aliança” com seu povo.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
95
Religiões bíblicas baseadas na Aliança Sagrada
outras palavras, não basta ter fé em Deus, é importante, também, acolher
os meios do encontro d’Ele conosco.
É de notar que a Aliança do Sinai estava associada, posteriormente,
a uma religião ligada ao nacionalismo judaico. Entretanto, não é o direito
de cidadania que garante aos fiéis o benefício da Aliança sagrada, pois
essa não se adquire por nascimento, nem por herança, nem por osmose,
mas por um ato de adesão pessoal a Deus, a fé. Aliás, o Templo, a cidade
de Jerusalém, o sacerdócio e o culto religioso, tinham função assessória
para canalizar as bênçãos divinas às respectivas áreas de seu alcance.
Além disso, é bom lembrar que a Aliança sagrada não se reduz a uma
ideia nem é mero conteúdo conceitual, cuja relevância deixaria de ser
virtual, desde que a mente humana começasse a pensar nisso. Pois a
eficácia dessa Aliança torna-se atual, toda vez que for ratificada pelo
sacrifício oferecido na liturgia da comunidade de fé5.
2 A instituição da nova Aliança em Jeremias
(Jr 31,31-34)
A inovação na instituição da Aliança sagrada pelo profeta Jeremias
foi o desafio de renovar a vivência da religião javista de Israel, por ocasião
da reforma deuteronomista promovida pelo rei Josias (em 622 a.C.). A situação política da Palestina estava muito conturbada por causa da queda do
domínio assírio, no antigo Oriente Médio (em 627 a.C.), e a expansão do
Império Babilônio para a Palestina, ameaçando a independência territorial
do Reino de Judá. O avanço da hegemonia pagã representava sério perigo à
sobrevivência da religião do Povo Eleito, ameaçada de ser apagada do mapa,
se não pudesse integrar os fiéis do antigo Reino do Norte com os do Reino
de Judá, para formarem uma frente unificada entre as forças de resistência ao
culto dos outros deuses. Pois o antigo Reino do Norte de Israel foi extinto na
conquista do país pelos assírios (em 721 a.C.), e grande parte da população
foi exilada para Mesopotâmia e a Média6.
Entretanto, essa integração só teria êxito se o princípio de coesão
fosse mais abrangente e menos político, e estivesse inserido na tradição
religiosa de Israel. Nessas condições, o profeta Jeremias empenhou-se
96
5
Veja-se o rito de ratificação da nova e eterna Aliança de Cristo do NT, que se celebra
em cada Missa.
6
Referências à deportação e ao exílio de israelitas constam na Bíblia (2Rs 17,6; 18,11).
Dez das 12 tribos do Povo de Israel deixaram de existir e se perderam nas brumas
do passado.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Luis Stadelmann, SJ
na busca de uma solução do dilema e encontrou na instituição da “Aliança” sagrada o dinamismo transcendente da fé, nos moldes da tradição
israelita. Desde o início, a Aliança veio a ser uma das duas colunas da
religião de Israel, e tem sua origem, por revelação divina, no monte
Sinai. A finalidade da Aliança sagrada é de mediação da salvação divina
dentro de dois âmbitos: na comunidade de fé e na comunidade ética.
Sua validade é perene para os fiéis do AT e do NT. Em outras palavras,
não basta ter fé em Deus: é importante, também, acolher os meios de
encontro d’Ele conosco.
É bom lembrar o fato de que a Aliança do Sinai foi incrementada,
no período monárquico, com elementos cultuais encontrados também
em religiões ligadas ao Estado. Enquanto competia ao Estado conceder
o direito de cidadania aos israelitas, não cabia às instâncias do governo
civil outorgar o benefício da Aliança sagrada, já que essa se adquire por
um ato de fé em Deus como autor da Aliança.
O teor da nova Aliança de Jeremias contém um elemento inovador,
que lhe dá um dinamismo que ultrapassa a antiga:
Um dia chegará – oráculo do Senhor –, quando hei de fazer uma
nova Aliança com a casa de Israel e a casa de Judá. 32 Não será como a
aliança que fiz com seus pais quando pela mão os peguei para tirá-los
do Egito. Essa aliança eles quebraram, mas continuei senhor deles –
oráculo do Senhor. 33 Esta é a aliança que farei com a casa de Israel a
partir daquele dia – oráculo do Senhor: colocarei a minha lei no seu
coração, vou gravá-la em seu coração; serei o Deus deles, e eles, o
meu povo. 34 Ninguém mais precisará ensinar seu irmão, dizendo-lhe:
“Procura conhecer o Senhor!” Do menor ao maior, todos me conhecerão – oráculo do Senhor. Já terei perdoado suas culpas; de seu pecado
nunca mais me lembrarei.
31
A novidade da Aliança tem dupla dimensão, pois se trata do seu valor
perene e da finalidade de substituir a antiga Aliança do Sinai. É que a antiga
tornou-se ineficaz e, por isso, uma nova Aliança precisava ser estabelecida
para vincular a comunidade de fé com Javé, após o desaparecimento das
estruturas do Estado (Reino do Norte e do Sul), do governo monárquico de
Davi, da nação (de Israel), do Templo (o santuário nacional) e da cidade de
Jerusalém (a sede do governo central), após a dissolução do Reino de Judá.
Doravante haveria referência a Sião, por ser o centro litúrgico e lugar do altar
dos holocaustos (Jr 31,6-12): lá os sacerdotes oficiariam a liturgia sagrada,
ratificando a Aliança (Jr 31,14). Encontram-se aí os elementos de uma reEncontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
97
Religiões bíblicas baseadas na Aliança Sagrada
ligião viva, baseada na liturgia do sacrifício e na instituição do sacerdócio
oficiando nas celebrações de ratificação da Aliança sagrada, onde a presença
de Deus é atuante na comunidade de fé.
A iniciativa de substituir a antiga por uma nova Aliança é de Javé e
não de uma manobra política com laivos de religiosidade ou preferência
humana. No futuro, Javé agirá diretamente sobre o coração do homem (Jr
31,33) sem consultar preferências pessoais nem responder a objeções de
consciência. A Lei divina não será mais gravada sobre tábuas de pedra como
regras extrínsecas, mas sobre o coração humano, como normas assumidas
interiormente, sem que se tenha de ensinar (v.32-34). Notável é o novo conhecimento de Deus, porque está baseado na experiência do perdão dos pecados7
e na expressão do louvor de Deus. Disso resulta uma nova pedagogia de
ensino, pois não se precisa de outros meios externos, como, p. ex., o ensino
dos “preâmbulos da fé” ou de uma “teologia apologética” com argumentos
sobre a existência de Deus (v.34). Permanecendo, todavia, completamente
nacional, a religião será, pois, personalizada. Vale dizer que os fiéis estarão
inspirados pela moção do Espírito de Deus que mora no coração deles. Não
depende da imposição autorizada dos mestres da religião no ensino da fé em
Javé. Entretanto, não se dispensa jamais o papel da comunidade de ensinar o
conhecimento de Deus à luz da revelação, já que não é possível substituí-la
por uma espécie de intuição humana, ou por ideias inatas surgindo espontaneamente do subconsciente. Na verdade, Deus tem muitas maneiras de
manifestar-se à nossa alma, nunca, porém, por meio de veleidades da psique
ou impulsos do capricho, ou ainda, por tendências sublimadas da natureza
humana. A inspiração divina age sobre nossas faculdades superiores (intelecto
e vontade), pois fomos criados à imagem e semelhança de Deus8.
Interessa-nos também esclarecer o significado do verbo “personalizar”, porque disso depende a origem de virtualidades do tipo intimista
ou da experiência pessoal, cujo epicentro se encontra na pessoa definida,
em relação com a autoconsciência. Nela se manifesta a experiência da
presença de Deus, através da voz da consciência, no coração do indi-
98
7
Com base na experiência de reconciliação com Deus foi instituída a “liturgia penitencial”, com seus nove elementos constitutivos, dando origem aos Salmos penitenciais,
(Sl 6; 32; 38; 51; 102; 130; 143), cf. L. Stadelmann, Os Salmos: Comentário e Oração,
Ed. Vozes, Petrópolis, 2001, p. 44-46.
8
Esta hendíadis associa duas dimensões de autotranscendência do homem: “imagem”
(hebr.: şelem), de ordem natural, i.e. intelecto, e “semelhança” (hebr.: demut), de ordem sobrenatural, i.e. graça santificante.Daí que os seres inteligentes são dotados do
amor preferencial de Deus, excluindo os seres do mundo animal que estão privados
de inteligência.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Luis Stadelmann, SJ
víduo (prevenindo, encorajando, inculpando ou felicitando), e através
da expressão do louvor de Deus (pelas obras da criação e providência
divina na História da Salvação). Essa presença divina não é genérica,
como intuição a partir da doutrina da onipresença de Deus, mas resulta
da vivência da fé na celebração litúrgica9.
A vantagem da nova Aliança consiste em propiciar aos fiéis uma
nova forma de acesso à presença de Deus junto ao povo: sem Templo,
sem monte Sião, sem Jerusalém, sem o respaldo das estruturas de um
Estado. Mas o que realmente importa é que deve haver uma religião com
práticas específicas de adoração de Deus, sem imiscuir ritos de civismo
judaico. Entretanto, essa nova Aliança precisava ser ratificada por um
sacrifício oferecido num rito religioso. Por isso, em qualquer conjuntura
política, social ou cultural, nunca deveria faltar o ato litúrgico da oferta do
sacrifício em honra de Deus e em reconhecimento pela Aliança sagrada.
Apesar da destruição do Templo pelos babilônios (em 587 a.C.), continuava o oferecimento de sacrifícios sangrentos como revela a romaria
de um grupo de fiéis, sobreviventes de Israel e Judá, vindos de Siquém,
Silo e Samaria, para a oblação de oferendas no altar em Jerusalém (Jr
41,5). Embora houvesse vários lugares de culto alhures, não se oferecia
aí, mas somente em Sião, o sacrifício de ratificação da Aliança.
3 Nova e eterna Aliança de Cristo
A dimensão universal da obra de redenção na História da Salvação
exige um Mediador, que seja ao mesmo tempo Homem e Deus atuando
no mundo. É preciso, porém, instaurar uma nova hermenêutica da universalidade que tenha alcance retroativo, a fim de incluir, no desígnio
salvífico de Deus, todas as gerações anteriores à era cristã10. Na Carta
aos Hebreus se confirma essa dimensão em termos de palavra, de verdade e mensagem de salvação: os dons salvíficos para a humanidade vêm
Em virtude da nova Aliança, revelada por Jeremias, foi instituída a liturgia de “renovação da Aliança” (Sl 50; 81; 95), após o Exílio: cf. L. Stadelmann, op. cit., p. 38.
10
No Credo da Igreja Católica está incluído o artigo de fé a respeito da descida de Cristo
ressuscitado à mansão dos mortos, indicando-se inclusive no texto o prazo de três dias
após a morte, o sepultamento e a descida (Mc 9,31). Ora, o tríduo de eventos post
mortem não se refere a um tempo intermédio (como se Jesus precisasse descansar em
paz após os sofrimentos da agonia antes de ressuscitar), mas aponta para o anúncio da
redenção às almas dos justos (1Pd 3,18-22). É que os frutos da redenção aplicam-se
não só ao presente e ao futuro, mas também ao passado. Com efeito, o período de três
dias representa, na Bíblia, um prazo salutar, haja vista o resgate do profeta Jonas do
ventre da baleia após três dias (Jn 2,1.11), e a intervenção salvífica de Deus em favor
dos israelitas, após três dias, como remate da invasão assíria (Os 6,3).
9
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
99
Religiões bíblicas baseadas na Aliança Sagrada
através dos cristãos (Hb 11,40). Em outros termos, a entrada dos justos
no céu se deve às orações, sacrifícios e vida empenhada no compromisso
dos cristãos no mundo. Esta verdade não pode ser encarecida demais na
abordagem das respostas plurais para o sentido da vida eterna, e precisa da
contribuição da teologia para aprofundar sua repercussão na história11.
O gesto culminante de todos os gestos de doação e ações salvíficas de
Cristo em prol da redenção da humanidade foi o sacrifício cruento na cruz.
Mas, para ter eficácia, em todas as épocas da história, era preciso que Cristo
instituísse também o modo incruento do sacrifício de ratificação da Aliança.
Quanto ao sacramento da Eucaristia, celebrada na Última Ceia,
ressalta-se com este sacramento a participação nos dons sagrados da Aliança.
São os frutos da redenção que redundam em benefício dos fiéis, em virtude
dos méritos do sacrifício de Cristo. A diferença essencial entre o sacrifício
e a Eucaristia defronta-se com paradoxos e surpresas que são da essência da
obra de salvação. É que o sacrifício não se restringe ao aspecto negativo, nem
a Eucaristia está relacionada apenas ao encontro de anseios positivos12. É só
pensar quanto nos preocupa o estado de pecado e a miséria humana, e quanto
se almeja o enriquecimento com os dons divinos. Na verdade, os dois elementos da instituição salvífica estão intimamente ligados, visto que é durante
o sacrifício da Missa que se consagra a vítima que nós comungamos.
Tal evento marcante na vida de Cristo é também o momento da
confirmação do testamento sobre a redenção de toda a humanidade. É
crucial para entender a importância desse evento, pois jamais se permitiu que fosse desvirtuado em mero simbolismo e fosse transmitido
às gerações futuras que o converteriam em rito simbólico, senão se
tornaria apenas uma referência virtual. O que se procurava implantar
no cristianismo, desde o início, era o “memorial” (em grego αναμνησις
− anamnesis) do sacrifício de ratificação da Aliança entre Deus e a
11
Se faltar a explicação teológica da ação retroativa da redenção cristã, surgem crenças espúrias e totalmente fictícias. Basta mencionar um dos equívocos em voga na
“Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias” (mórmons), pondo em prática
a crença na redenção retroativa dos antepassados entre os mórmons mediante o
mero cadastramento das genealogias de famílias e indivíduos nos anais da seita,
arquivados em galerias subterrâneas nas Montanhas Rochosas dos EUA.
12
100
É muito elucidativa a invocação que precede a participação na Eucaristia: “Senhor,
eu não sou digno de que entreis em minha morada, mas dizei uma palavra e serei
salvo!” Pois a miséria humana é o motivo mais forte para Cristo aproximar-se dos que
precisam da salvação divina. Por isso se acrescenta o ato de fé: “serei salvo”. Trata-se
da salvação e junto com este dom recebemos de Deus muitos dons que dEle pedimos
(cura, ajuda, bens materiais, quando forem necessários à nossa salvação).
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Luis Stadelmann, SJ
comunidade cristã. Ora, a anamnese diz respeito diretamente à glória
de Deus, como Autor da Aliança, e ao mesmo tempo refere-se a Cristo
como Mediador dessa Aliança13. Sempre é necessário lembrar que,
desde o início da Igreja nascente, continua em vigor, entre as comunidades cristãs, a celebração da S. Missa com grande apreço pelo fruto
espiritual. A razão determinante é o fato de que ali os fiéis participam de
uma religião viva e, por isso, convergem com assiduidade para prestar
a homenagem de louvor a Deus e haurir força, a fim de assumirem a
nobre tarefa de irradiar os dons salvíficos para todos os homens. Aliás,
quem não frequenta a celebração litúrgica não recebe os sacramentos,
mas se beneficia de sua eficácia através dos participantes. Na verdade,
a Aliança sagrada se ratifica nas comunidades cristãs da Igreja, e não
de forma genérica entre os redimidos do Reino de Deus. A explicação
baseia-se no princípio da visibilidade, em contraste com a vivência da
fé sem religião. Pois a mediação dos dons salvíficos, e o paradigma de
salvação no mundo, precisam de uma mediação visível para realizar a
obra da salvação na história, isto é, a sagrada liturgia, os sacramentos,
a espiritualidade cristã vivida pelos fiéis, os ministérios eclesiais. Além
disso, o lugar privilegiado da presença atuante de Deus é a celebração
da S. Missa, porque tanto o Autor como também o Mediador da Aliança
sagrada encontram-se ali na comunidade cristã (Mt 18,20), tornando-se
o sacramento central na vida das pessoas e das comunidades. A inovação na instituição da Aliança sagrada consiste na vinculação dos fiéis
a Cristo, mediante a participação no sacramento da Eucaristia e não
por meio da recordação de uma ideia que evoca a Última Ceia. Outro
aspecto da novidade é sua duração eterna, porque os fiéis se tornam
não só “filhos adotivos” em virtude da Aliança sagrada, mas também
“herdeiros” e “co-herdeiros de Cristo” para sempre (Rm 8,15-17).
A maneira legítima e válida de transmitir o sacramento da Eucaristia
às gerações futuras, sem alteração da forma nem do conteúdo, era instituir
sacerdotes ordenados pelo próprio Cristo. Esse ministério foi conferido aos
doze apóstolos para exercerem o múnus sacerdotal no âmbito eclesial junto
às comunidades cristãs, dando-lhes o poder de tornar presente ali a oferenda
sacramental de Jesus Cristo. A própria fórmula da ordenação sacerdotal tem
função litúrgica: “Fazei isto em memória de mim!” (1Cor 11,24-25). Não
13
O tema da “anamnese” é aprofundado por Joachim Jeremias que ressalta a relação
com a glória de Deus, cf. Abendmahlsworte, Göttingen 1967.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
101
Religiões bíblicas baseadas na Aliança Sagrada
se trata de executar meramente um rito sagrado14 como tal, que Cristo lhes
mandou realizar, e sim, de celebrar o sacrifício memorial da Sexta-Feira
Santa: “meu corpo que será dado por vós” e “meu sangue que será derramado por vós e por todos” (1Cor 11,24-25). É de notar o tempo do verbo no
futuro, cuja tradução entrou em vigor no Concílio Vaticano II, suplantando
a preferência pelo tempo presente, com base no argumento de que a ação
litúrgica comemora uma ação com eficácia em todos os tempos. O Concílio
visava ressaltar a atuação de Cristo dentro da História da Salvação marcada
pela continuidade e descontinuidade.
4 A comunidade de fé como meio ambiente
dos israelitas e cristãos
A inovação da Bíblia é situar a Aliança sagrada no meio ambiente
onde a comunidade de fé e a comunidade ética possam tornar visível a
religião bíblica do AT e NT. É muito elucidativa a evocação das origens
da fé em Javé entre os nômades semitas em contato com os trabalhadores
egípcios nas jazidas de cobre na região de Timna, situada na rota das caravanas a caminho do Egito para a Arábia15. Entre os anseios de liberdade
dos escravos, manifesta-se o apelo a Javé como libertador dos oprimidos.
A solidariedade social entre gente oprimida passou-lhes a noção de um
Deus que liberta da escravidão do Egito, e acompanha os fiéis em busca
da liberdade. Existia também a estrada do mar que levava do delta do
Nilo a Canaã16. Qualquer um dos caminhos oferecia grandes riscos à
sobrevivência das caravanas de mercadores ou soldados marchando ao
longo do mar. Mas a migração dos israelitas em busca da pátria não era
uma utopia, já que fazia parte da fé na intervenção divina, pois Deus
tinha “escolhido” seu povo para constituírem uma comunidade de fé por
ocasião da celebração da Páscoa no Egito (Ex 12). A razão do Êxodo era
dupla: a celebração da Páscoa em honra de Javé, fora do domínio de um
deus pagão (Ex 5,1-3), e a libertação do Povo Eleito da escravidão (Ex
14). No caminho para a Terra Prometida, Deus realizou sua intervenção
providencial em favor do seu povo por meio da proteção da vida em
face da morte, em quatro situações de risco extremo: pela fome (Ex 16),
pela sede (Ex 17,1-7); pelos inimigos (Ex 17,8-16), pela divisão interna
102
14
Veja-se o artigo de Jung Mo Sung, “Eucaristia: memorial ou rito sagrado”, em Convergência, Ano 43, Nº 411, Maio 2008, p.328-336.
15
Cf. E. Gerstenberger, op.cit., p. 171-177.
16
Cf. E. Zenger, O Deus da Bíblia. Estudo sobre os inícios da fé em Deus no AT, (Trd.
de E.M. Pereira Glenck), Ed. Paulinas, S. Paulo 1989, p. 92-103.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Luis Stadelmann, SJ
(Ex 18). Eram esses os fatores servindo de evidência e comprovação aos
fiéis de que Javé era o Deus Altíssimo (‛eliôn) exercendo o poder divino
(Sl 78,35), e não mera projeção das aspirações humanas. O período do
duro itinerário do Êxodo, desde o Egito até a Palestina, durou quarenta
anos (Nm 14,33), a duração de uma geração (Sl 95,10). O desgaste das
forças vitais foi tamanho, que ninguém sobreviveu, senão os filhos da
nova geração que adotaram o estilo de vida de seminômades ao entrarem na Palestina. A motivação de sua migração inspirava-se no anseio
pela libertação da escravidão, buscando a liberdade do povo na Terra
Prometida. Entretanto, eles eram ádvenas na Palestina, procurando o
re-assentamento em meio a outras populações17. O único desafio era
localizar as fontes de água às quais era facultado acesso para os novos
povoados e os rebanhos. Era essa a conquista desses migrantes: terra
para a convivência dos grupos sociais, e tolerância dos habitantes locais
para levarem a vida sem hostilidade e agressão. Não é de admirar-se que,
desde então, os israelitas evoquem os inícios de sua pátria como dádiva
de Deus que lhes garantia a posse da Terra Prometida. De modo algum
era isso objeto de uma utopia coletiva, e tampouco tornou-se um Éden
ou Eldorado e muito menos um Shangri-lá18. Não era um reduto de seminômades ou migrantes apátridas, designados hapiru19 que defendessem,
com unhas e dentes, o solo de sua conquista, mas desde sempre era dom
de Deus, porque jurou dar a posse da terra a seu povo, pelo fato de ser
“Terra do Senhor”, em hebr. ’ereş ’adonay (Os 9,3).
A Terra Prometida era o habitat do Povo Eleito. Doravante, os israelitas
tinham dois endereços: o país e a comunidade de fé. Os laços de pertença
ao lugar de moradia davam-lhes sua identidade sociológica, e o direito de
cidadania. Surge a pergunta pela razão de os israelitas se organizarem em
tribos, clãs e famílias. A resposta é, em parte, sociológica, pelo fato de serem
grupos com uma origem comum, mas com descendência de ancestrais distin17
As terras estavam ocupadas pelos amorreus, hititas, fereseus, cananeus, heveus e
jebuseus (Ex 23,23), e por isso não havia uma alternativa senão infiltrar-se na região
de Canaã ocupando as terras devolutas e os terrenos situados entre as áreas agrícolas
e as bandas das estepes margeando o deserto.
18
A designação simbólica da Terra Prometida em termos de uma “terra que mana leite
e mel” (Ex 3,8) tem o significado relacionado às condições de vida bastante precárias
dando subsistência apenas a uma população de poucos habitantes e sem os recursos da agricultura, como era típico nas histórias dos Patriarcas e em épocas após a
devastação pelas guerras.
19
Os hapiru eram migrantes apátridas em busca de emprego e não possuíam coesão
social nem tradições religiosas, mas tinham uma analogia com esses grupos do Egito
e da Mesopotâmia, cf. E. Gerstenberger, op.cit., p. 140-142.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
103
Religiões bíblicas baseadas na Aliança Sagrada
tos configurando-os em unidades sociais coesas em torno de uma figura com
autoridade reconhecida por todos. Era um aspecto da ecologia social que dava
identidade à população israelita na Palestina. Na Bíblia acrescenta-se o fator
de cunho religioso com a função de transmitir a bênção divina, significando
a força da fecundidade, explicitada no Livro do Deuteronômio (Dt 28,4) em
termos de bênção do ventre (filhos) e da saúde, bênção do rebanho (gado),
e bênção da terra (colheita), acrescentada posteriormente, no período da
vida sedentária. Havia uma norma comum para os cidadãos de exercerem
uma atividade produtiva e não de mera subsistência em vista do ônus da
assistência social aos membros de famílias carentes e aos deficientes. Pois
o valor humanitário de uma sociedade se mede pelo auxílio aos familiares
necessitados, e não meramente pela filantropia esporádica. Nos governos
da Antiguidade não existia o ministério da assistência social. A divisão em
tribos, clãs e famílias tinha o papel de dar o aval de pertença ao Povo Eleito
somente àqueles que frequentavam o culto religioso e viviam de acordo com
as exigências religiosas e éticas.
A ecologia religiosa enfrentava o problema da pluralidade de deuses tutelares dos diferentes povos de Canaã, com sério perigo de contágio
de suas crenças com a religião javista20. A reação não se fez esperar, pois
surgiram os profetas que orientavam os israelitas na fidelidade à fé e ao
desígnio de Deus na História da Salvação. O dinamismo na vivência da
fé produziu a ecologia espiritual entre as comunidades de fé, perceptível
ao longo dos séculos como fruto da reza dos Salmos na liturgia, e da
espiritualidade vibrante na prática de uma religião viva.
Para os judeus exilados em terras estrangeiras, impôs-se um novo
critério de convivência desde o período do Exílio (587 a.C.). De modo
algum se permitiu às comunidades seguir o lema Ubi bene, ibi patria
(Cícero), visando um individualismo sem laços de pertença à família,
parentela ou grupo social, à mercê de uma miscigenação sem identidade
cultural e religiosa. Tampouco deveriam assumir uma atitude de rejeição
exclusivista diante dos cidadãos do país, com o pretexto de criarem uma
sociedade alternativa. Com efeito, a clarividência do profeta Jeremias foi
providencial ao enviar uma carta aos judeus com a exortação:
Construí casas e instalai-vos, plantai pomares e comei seus frutos. 6 Casaivos e gerai filhos e filhas, tomai esposas para os vossos filhos e dai as filhas
em casamento, a fim de gerarem filhos e filhas; multiplicai-vos e não dimi5
20
104
Cf. E. Gerstenberger, op. cit., cap. 8.5: “A religiosidade popular” p. 309-313.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Luis Stadelmann, SJ
nuais! 7 Procurai o bem-estar da cidade para onde vos deportei; rogai por
ela ao Senhor, porque de seu bem-estar depende o vosso (Jr 29,5-7).
Sua missão na vida era testemunhar o modus vivendi, típico dos
fiéis do Povo Eleito, a fim de configurar sua inserção no mundo como
paradigma de salvação para todos os povos. Era esse o lema das comunidades judaicas da diáspora (διασπορα)21.
A característica de premência esteve presente desde o início da
tradição bíblica, incentivando a configuração do meio ambiente segundo
os parâmetros de uma ecologia abrangente de alcance pessoal e comunitária. Na atualidade, impõe-se novamente a ingente tarefa de redobrar os
esforços para alcançar os objetivos autênticos e eficazes no mundo, já que
forças deletérias estão atuando para transtornar o processo civilizatório
dos povos por meio da destruição em massa, inspirada na violência22.
Em pauta está o islamismo, inserido no rol das religiões de salvação, mas passando por uma transformação radical. É que o Islão foi
sequestrado pelos grupos islâmicos fundamentalistas, deturpando-o em
mera ideologia religiosa como meio de coação para mobilizar grupos
fanáticos a serviço de uma causa. Os adeptos desse movimento se autodenominam como taliban, “estudantes”23, porque se concentram apenas
nas passagens ultra-agressivas dos “versículos da Espada”, inseridos no
Alcorão e ajuntando alguns parágrafos truncados do mesmo teor. Fora
disso, os estudantes conhecem apenas uma coisa: a guerra. Imbuídos
dessa mentalidade, têm diante de si o perfil de Alá como justiceiro e
vingador. Os líderes são os “imames” semi-analfabetos, vindos das
montanhas e infiltrando-se na cidade de Cabul, a capital de Afeganistão
(em 1994)24. São esses os mestres do ensino islâmico, alterando, porém,
profundamente, a própria tradição muçulmana, e mudando a religião de
salvação, em religião de servidão, inspirada por uma só ideia: a ira de Alá.
21
Comunidades judaicas existiam não só na Mesopotâmia, mas também no Egito (em
Elefantina), na Ásia Menor e alhures na região do Mar Mediterrâneo. Nas viagens apostólicas, Paulo Apóstolo teve inúmeros contatos com muitas comunidades judaicas.
22
A destruição das torres gêmeas do World Trade Center em Nova York, em 11 de
setembro 2001, ocasionou como que numa reação em cadeia outros atos terroristas
pelo mundo todo.
23
O substantivo “estudante” em árabe é talib, mas no plural é taliban em “pachto”, a
língua falada no Afeganistão, cujo tronco linguístico é composto de elementos semitas
(árabe) e indo-iranianos (persa). Na língua persa, consta o plural do nominativo e do
acusativo sempre com a mesma terminação “a”, por causa do sincretismo dos casos;
não existe portanto o nominativo no plural talibun, como no árabe; cf. Roland G. Kent,
Old Persian, Grammar, Texts, Lexicon, Ed. American Oriental Society, New Haven,
1961, § 254.
24
Cf. Frederick Forsyth, O Afegão, (Trd. de S. Gonçalves), Ed. Record, Rio de Janeiro
– S. Paulo, 2007, p. 119.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
105
Religiões bíblicas baseadas na Aliança Sagrada
A ideologia da revolta cresceu dentro do próprio país na luta contra a ocupação soviética, mas se estendeu principalmente para o Sudeste asiático
e outros países, p.ex. Líbia, visando criar uma hegemonia mundial com
o objetivo de acabar com a civilização ocidental e a cultura cristã.
Ao fazer teologia inter-religiosa, os cristãos ficam abertos à influência de outras religiões. Isso ampliará nossos horizontes, preparando o
caminho para um diálogo para dirimir as diferenças sem desconfiança e
atar laços de fraternidade entre povos e culturas sob a ação de Deus. Os
caminhos de encontro com Ele são dos mais variados, mas conduzem à
Sua presença desde que as pessoas estejam motivadas por uma religiosidade que consegue transcender as limitações das metas intraterrenas.
Conclusão
O tema da Aliança sagrada é o complemento necessário à reflexão
teológica da libertação, por acrescentar a “teologia do abraço” às situações
de conflito. Pois opressores e oprimidos devem continuar vivendo juntos,
na condição de vizinhos, e ambos precisam empenhar-se pela reconciliação. A categoria da Aliança sagrada é central nas religiões bíblicas e tem
influência direta sobre o meio ambiente do mundo social. Por um lado,
serve de unificação entre os fiéis sob a égide de Deus, estreitando os laços
de fraternidade, e estendendo-se para a sociedade civil através de atitudes
de solidariedade. Por outro lado, fora do âmbito da religião, é um pretexto
para a exclusão de indivíduos e grupos sociais que não são dos “nossos”.
Por isso, faltando o espírito de ecumenismo, surgem tendências de excluir
os estranhos e até de abominar as diferenças. Surge então o desafio de
mantermos nossa identidade em meio ao acréscimo das diferenças dos
“outros”, que nos enriquecem. Num abraço mútuo, nenhum permanece o
mesmo, porque os dois se engrandecem mutuamente pelo calor da presença
amiga que o Espírito de Deus acalenta no coração25.
Endereço do Autor:
Colégio Catarinense
Rua Esteves Júnior, 711
Cx. Postal 135
CEP 88015-130 Florianópolis, SC
E-mail: [email protected]
25
106
O fruto da presença divina é a união fraterna sob a ação do Espírito de Deus, como
ressoa no cântico: “Pois só quando vivemos unidos, é que o Espírito Santo nos vem”.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Resumo: O artigo apresenta uma síntese da terceira encíclica do papa Bento XVI, e
aponta algumas de suas intuições, antes de apresentar uma breve conclusão. Na síntese,
destaca-se a Introdução do documento papal, seguindo-se o conteúdo de seus capítulos:
o primeiro, sobre a mensagem da Populorum Progressio, a encíclica social de Paulo VI;
o segundo, sobre o desenvolvimento dos povos em nosso tempo, neste início do terceiro
Milênio; o terceiro, sobre as relações entre fraternidade, desenvolvimento econômico
e sociedade civil; o quarto, sobre o desenvolvimento dos povos, direitos e deveres, e
o meio ambiente; o quinto, sobre a colaboração da família humana; o sexto, sobre o
desenvolvimento dos povos e a técnica. Segue o que o autor chama as “intuições” da
Encíclica, “verdadeira luz para nós, cristãos, e para a sociedade”. Entre elas, o fato de
que, “do ponto de vista cristão, o progresso não depende só da promoção humana, do
anúncio da fé e do amor de Cristo, mas, também, da esperança cristã, dom de Deus.
Ela impede que nos contentemos com a construção do reino aqui e agora, e nos ajuda
a reconhecer que somente em Deus se concretiza nosso desejo de felicidade”.
Abstract: The paper presents a synthesis of the third of Pope Benedict XVI’s encyclicals,
and points out some of its intuitions, before presenting a brief conclusion. In the synthesis,
is emphasized the Introduction of the papal document, being followed by the content
of its chapters: the first, about the message of Populorum Progressio, Paul VI’s social
encyclical; the second, about the development of the nations in our time, in this beginning of the third Millennium; the third, about the relations between fraternity, economical
development and civil society; the fourth, about the development of the peoples, rights
and duties, and the environment; the fifth, about the collaboration of the human family;
the sixth, about the development of the peoples and technique. Then follows what the
author calls the “intuitions” of the Encyclical, “true light for us, Christians, and for society”.
Among them, the fact that, “from the Christian point of view, progress depends not only
from the human promotion, from the announcement of faith and love of Christ, but also
from the Christian hope, gift of God. It prevents that we be satisfied with the building of
the Kingdom now and here, and helps us recognizing that only in God is fulfilled our
wish of happiness”.
Caritas in veritate*
Murilo S.R.Krieger, SCJ**
* Esta apresentação da encíclica Caritas in Veritate foi feita no decorrer da Semana Teológica do ITESC, Instituto Teológico de Santa Catarina, realizada dias 20 a 24-09-2010,
com o tema geral “Teologia, Economia e Ecologia”. À apresentação, propositalmente
esquemática, seguiu o diálogo e debate com os participantes.
** O autor, Arcebispo de Florianópolis, SC, até 12-01-2011, foi nessa data nomeado
Arcebispo de Salvador, BA, e Primaz do Brasil.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011, p. 107-116.
Caritas in veritate
No dia 29 de julho de 2009, o Papa Bento XVI presenteou os bispos,
presbíteros e diáconos, pessoas consagradas, fiéis leigos e todos os homens
de boa vontade, com sua terceira encíclica: Caritas in veritate. Eleito a 19
de abril de 2005, tendo iniciado seu pontificado no dia 24 de abril, Bento
XVI havia assinado sua primeira encíclica – Deus caritas est – poucos
meses depois de sua posse (25.12.2005); a segunda – Spe salvi –, a 30 de
novembro de 2007. Deus caritas est nos apresentou o centro da fé cristã;
Spe salvi veio nos recordar que “é na esperança que fomos salvos”; Caritas
in veritate aborda temas sociais e econômicos, procurando “aprofundar
alguns aspectos do desenvolvimento integral de nossa época, à luz da
caridade na verdade” (Bento XVI, Angelus, 05.07.09).
Depois de apresentar uma síntese desta encíclica, apontarei algumas de suas intuições e uma breve conclusão.
A) Síntese da Encíclica
1 Introdução
A encíclica Caritas in veritate começa lembrando que “a caridade na verdade, que Jesus Cristo testemunhou com sua vida terrena
e, sobretudo, com sua morte e ressurreição, é a força propulsora
principal para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da
humanidade inteira” (1).
“A caridade é a via mestra da doutrina social da Igreja” (2); ela é
tudo, porque Deus é caridade; “é o dom maior que Deus concedeu aos
homens” (id.). Mas a caridade deve, necessariamente, estar unida à verdade.
“Sem a verdade, a caridade cai no sentimentalismo” (3). Como a justiça é
o primeiro caminho da caridade, “não posso ‘dar’ ao outro do que é meu,
sem antes ter-lhe dado aquilo que lhe compete por justiça” (6).
“Ao lado do bem individual, existe um bem ligado à vida social das
pessoas: o bem comum” (7). Demonstramos nosso amor pelo próximo,
trabalhando em prol do bem comum.
O Papa Paulo VI, em 1967, ao publicar a encíclica Populorum
Progressio (“a Rerum Novarum da época contemporânea”), lembrou-nos
que o anúncio de Jesus Cristo “é o primeiro e o principal fator de desenvolvimento” (8). A História já nos demonstrou que, para um autêntico
desenvolvimento humano, não basta a mera partilha dos bens e recursos:
é necessário o amor.
“A Igreja não tem soluções técnicas para oferecer” ao homem e à mulher
de todos os tempos (9); tem, sim, critérios que são necessários para a construção
de uma sociedade que corresponda à dignidade da pessoa humana.
108
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Murilo S.R. Krieger, SCJ
Cap. I – A mensagem da Populorum progressio
Quarenta anos depois da publicação da Populorum progressio,
Bento XVI nos recorda duas grandes verdades apresentadas pelo Papa
Paulo VI naquela encíclica: 1ª) “a Igreja inteira, em todo o seu ser e
agir, quando anuncia, celebra e atua na caridade, tende a promover o
desenvolvimento integral do homem” – por isso, é essencial para a Igreja
poder agir num regime de liberdade; 2ª ) “o autêntico desenvolvimento
do homem diz respeito unitariamente à totalidade da pessoa em todas
as suas dimensões” – por isso, “sem a perspectiva de uma vida eterna, o
progresso humano neste mundo fica privado de respiro” (11).
O que se chama hoje de Doutrina Social da Igreja é fruto do que
foi transmitido pelos Apóstolos aos Pais da Igreja e, depois, acolhido e
aprofundado pelos pensadores cristãos (cf. 12). Essa Doutrina ilumina os
novos problemas que vão aparecendo. Foi nessa linha que a Populorum
progressio reafirmou a exigência imprescindível do Evangelho para a
construção da sociedade segundo a liberdade e a justiça, na perspectiva
de uma civilização animada pelo amor (cf. 13).
O ser humano está constitutivamente inclinado para “ser mais”
(14); um desenvolvimento autêntico promove todos os homens e o homem todo (cf. 18). A causa principal do subdesenvolvimento é a falta de
fraternidade: “a sociedade cada vez mais globalizada nos torna vizinhos,
mas não nos faz irmãos” (19). Numa sociedade sem Deus, o desenvolvimento é “desumanizado”.
Cap. II – O desenvolvimento humano em nosso tempo
No segundo capítulo de Caritas in veritate, Bento XVI analisa o
desenvolvimento humano em nosso tempo. O objetivo exclusivo do lucro
“sem ter como fim último o bem comum, arrisca-se a destruir riqueza e a
criar pobreza” (21). São distorções do desenvolvimento: uma atividade
financeira muito especulativa, os fluxos migratórios e “a exploração desregrada dos recursos da terra”. As crises nos obrigam a projetar novos
caminhos: há necessidade de “uma nova síntese humanista”.
Lembrava o Papa João Paulo II: “cresce a riqueza mundial em termos absolutos, mas aumentam as desigualdades” (Sollicitudo rei socialis,
1987, n. 28) e nascem novas formas de pobreza. Em nosso tempo, os problemas se multiplicam: países ricos protegem, por vezes excessivamente,
suas propriedades intelectuais, especialmente no campo sanitário (cf.
22); o Estado sente-se limitado pela “crescente mobilidade dos capitais
financeiros” (24); a segurança social está ameaçada pela desregulamentação do mundo do trabalho; as organizações sindicais têm dificuldade de
representar os direitos dos trabalhadores; aumenta a mobilidade laborial;
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
109
Caritas in veritate
o desemprego “provoca aspectos novos da irrelevância econômica do
indivíduo”. Ora, não se pode perder de vista que “o primeiro capital a
preservar é o homem, a pessoa, na sua integridade” (25).
No plano cultural, há um duplo perigo: de um lado, o do ecletismo
cultural, no qual as culturas são vistas como substancialmente equivalentes, o que favorece o relativismo; de outro, o do nivelamento cultural,
isto é, a homogeneização dos estilos de vida (cf. 26).
Apesar de todo o progresso alcançado pelo ser humano, paira
sobre muitos países o desafio da fome, fruto não tanto da escassez de
alimentos, mas da “falta de um sistema de instituições econômicas que
seja capaz de garantir um acesso regular e adequado... à alimentação
e à água” (27). Falta, na verdade, a consciência do respeito pela vida,
manifestada, também, sob outras formas: o favorecimento do aborto
e de toda uma mentalidade antinatalista, e a prática da eutanásia. Ora,
“a abertura à vida está no centro do verdadeiro desenvolvimento” (28).
Não há desenvolvimento sem o respeito à liberdade religiosa, sem
a erradicação do terrorismo e sem o cuidado com “o estado de saúde
ecológica da terra”. Países que promovem o ateísmo tiram de seus cidadãos a força moral e espiritual indispensável para se empenharem no
desenvolvimento humano integral (cf. 29-33).
Cap. III –Fraternidade, desenvolvimento econômico
e sociedade civil
O ser humano foi feito para o dom. A fé nos ensina, porém, que
não pode ser ignorado o “pecado das origens”, que inclina o homem para
o mal e o leva a errar em diversos campos, inclusive no econômico. Para
que o desenvolvimento econômico, social e político seja autenticamente
humano, precisa dar espaço ao “princípio da gratuidade” (34).
O mercado é uma instituição econômica que permite o encontro entre
as pessoas, na sua dimensão de operadores econômicos, que usam o contrato
como regra de suas relações e trocam bens e serviços para satisfazer carências e desejos. Se não levar em conta a solidariedade, o mercado não poderá
cumprir plenamente sua função econômica. Os pobres não podem ser considerados um fardo, mas um recurso, mesmo do ponto de vista econômico.
É errado pensar que há necessidade de pobres e subdesenvolvidos para que
o mercado funcione melhor. O mercado tem necessidade, sim, de “energias
morais”, que supõem uma visão que vai muito além da economia (cf. 35),
pois leva em conta o bem comum. Não é, pois, o mercado que é danoso,
mas o ser humano, quando não lhe dá uma orientação correta. Também
“nas relações comerciais, o princípio de gratuidade e a lógica do dom como
expressão da fraternidade podem e devem encontrar lugar dentro da ativi-
110
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Murilo S.R. Krieger, SCJ
dade econômica normal” (36). Cada decisão econômica tem consequências
de caráter moral (cf. 37). A solidariedade consiste em que todos se sintam
responsáveis por todos. Para superar o subdesenvolvimento é necessária
uma “progressiva abertura, em contexto mundial, para formas de atividade
econômica caracterizadas por cotas de gratuidade e de comunhão” (39). A
gestão de uma empresa, por exemplo, não pode levar em conta unicamente
o interesse de seus proprietários, mas também o daqueles que contribuem
para ela, particularmente os trabalhadores (cf. 40).
O Estado tem um papel importantíssimo e imprescindível na economia, mesmo e particularmente numa economia globalizada. Por sinal,
“a globalização a priori não é boa nem má. Será aquilo que as pessoas
fizerem dela”. O ideal é uma globalização em termos de relacionamento,
comunhão e partilha (cf. 42).
Cap. IV –Desenvolvimento dos povos, direitos
e deveres, ambiente
“A solidariedade universal é para nós não só um fato e um benefício,
mas também um dever” (Paulo VI, PP, 17). Não temos apenas direitos,
mas também deveres. Hoje, infelizmente, muitos querem ver seus direitos
reconhecidos, mas ao mesmo tempo, direitos elementares e fundamentais
são violados e negados a boa parte da humanidade (cf. 43).
Aos que consideram o aumento da população como a causa principal do subdesenvolvimento, é necessário lembrar que aumentam as
crises em países com uma preocupante queda da natalidade. A Igreja
lembra que os direitos humanos devem ser respeitados também no uso
da sexualidade. Trata-se de um campo que não pode ser reduzido a mero
fato hedonista. “A abertura moralmente responsável à vida é uma riqueza social e econômica” (44): grandes países superaram seus problemas
graças à capacidade de seus habitantes. Por isso, é importante propor às
novas gerações a beleza da família e do matrimônio.
A economia, que é um setor da atividade humana, tem necessidade
da ética para seu correto funcionamento. A Doutrina Social da Igreja, que
se baseia no “princípio da centralidade da pessoa humana” (47), muito
contribui para a elaboração das normas éticas nesse campo, ao lembrar
duas certezas: 1ª) fomos criados à imagem e semelhança de Deus; 2ª)
temos uma dignidade inviolável; por isso, as normas morais têm um
valor transcendente (cf. 45).
Ao lado de empresas que têm por finalidade o lucro e organizações
que não buscam o lucro, estão surgindo empresas intermediárias – isto é,
empresas que valorizam a economia de comunhão. Elas não excluem o
lucro, mas o consideram “instrumento para realizar finalidades humanas
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
111
Caritas in veritate
e sociais” (cf. 46). Além disso, fazem com que as pessoas e os povos a
serem beneficiados se tornem protagonistas de seu desenvolvimento.
Não se pode pensar em desenvolvimento sem levar em conta a
dimensão ecológica, já que “a natureza é expressão de um desígnio de
amor” (48): nesse campo, temos uma grave responsabilidade para com
os pobres, as gerações futuras e toda a humanidade.
O cuidado e a preservação do ambiente devem levar em consideração as “problemáticas energéticas”. Como os recursos naturais não
são renováveis, os mais prejudicados são os países pobres. Eles não têm
recursos para pesquisar fontes alternativas de energia, daí ser necessário
que as sociedades tecnicamente avançadas diminuam o consumo energético e busquem energias alternativas (cf. 49).
“Há espaço para todos nesta terra” (50). É preciso, contudo, que
entreguemos às novas gerações uma terra em condições de ser habitada
e cultivada. Isso exige toda uma mudança de mentalidade e, consequentemente, de estilo de vida. O ser humano precisa ser protegido
de si mesmo; “requer-se uma espécie de ecologia do homem” (51). A
História nos mostra que, quando os direitos humanos fundamentais não
são respeitados – por exemplo: o direito à vida e à morte natural –, “a
consciência comum acaba por perder o conceito de ecologia humana e,
com ele, o de ecologia ambiental” (51).
Cap. V – A colaboração da família humana
“Uma das pobrezas mais profundas que o homem pode experimentar é a solidão” (53). Nós nos realizamos nas relações interpessoais – isto
é, relacionando-nos com os outros e com Deus. Isso vale também para
os povos (cf. 53). Deus é Trindade, é relação, e quer nos associar à sua
realidade de comunhão. A Igreja é sinal e instrumento dessa comunhão
(cf. 54). Não se pode aceitar, pois, propostas religiosas que isolam o
ser humano na busca do bem-estar individual, limitando-se a satisfazer
seus anseios psicológicos. O cristianismo, “religião do ‘Deus’ de rosto
humano” (cf. 55), é chamado a levar Deus também para a esfera pública.
Somente assim os direitos humanos serão respeitados (cf. 56). Há que
se levar em conta, naturalmente, o princípio da subsidiariedade, que
respeita a autonomia dos corpos intermediários – princípio que deve
ser respeitado particularmente em nosso mundo globalizado (cf. 57) e
estritamente ligado com o princípio da solidariedade (cf. 58).
Além da colaboração econômica entre os países – levando-se sempre
em conta que o recurso humano é o autêntico capital dos países mais pobres
– há necessidade de uma cooperação também no campo cultural, mas no
112
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Murilo S.R. Krieger, SCJ
respeito à identidade cultural de cada país. Afinal, ter uma tecnologia mais
avançada não significa ter uma cultura superior (cf. 59).
“Uma possibilidade de ajuda para o desenvolvimento poderia derivar da aplicação eficaz da chamada subsidiariedade fiscal, que permitiria
aos cidadãos decidirem a destinação de cotas de seus impostos versados
ao Estado” (60). E uma solidariedade no campo internacional poderá se
expressar na ajuda para um maior acesso de todos à educação, que leve em
conta a formação completa da pessoa; no incentivo ao turismo, “que pode se
constituir em notável fator de desenvolvimento econômico e de crescimento
cultural” (61); em uma atenção especial ao fenômeno das migrações, para
“salvaguardar as exigências e os direitos da pessoas e famílias emigradas e,
ao mesmo tempo, os das sociedades de chegada dos próprios emigrantes”
(62); em uma “coligação mundial em favor do trabalho decente” (63), uma
vez que há um nexo direto entre pobreza e desemprego; no apoio às organizações sindicais dos trabalhadores (64); em apoio a “iniciativas financeiras
em que predomine a dimensão humanitária” (65); no favorecimento a microfinanciamentos; e, também, na busca de “formas novas de comercialização
de produtos provenientes de áreas pobres da terra” (66).
Dadas as novas formas de interdependência mundial, é urgente
uma “reforma quer da Organização das Nações Unidas quer da arquitetura econômica e financeira internacional” (67), possibilitando que
as nações mais pobres tenham uma voz eficaz nas decisões comuns.
Urge uma verdadeira Autoridade política mundial que, reconhecida por
todos, tenha um poder efetivo “para garantir a cada um a segurança, a
observância da justiça e o respeito dos direitos” (id.).
Cap. VI – O desenvolvimento dos povos e a técnica
“Ninguém plasma arbitrariamente a própria consciência, mas todos
formam a própria personalidade sobre a base de uma natureza que lhe foi dada”
(68). Precisamos, pois, reentrar em nós mesmos, para reconhecer as normas
fundamentais da lei moral natural que Deus inscreveu em nossos corações.
O desenvolvimento está unido ao progresso tecnológico; a técnica
insere-se no mandato de “cultivar e guardar a terra (Gn 2,15)” (69). Mas o
desenvolvimento tecnológico não torna a técnica auto-suficiente. “Quando o
único critério da verdade é a eficiência e a utilidade, o desenvolvimento acaba
automaticamente negado” (70). Daí a urgente necessidade de uma formação
para a responsabilidade ética no uso da técnica. “O desenvolvimento é impossível sem homens retos, sem operadores econômicos e homens políticos que
sintam intensamente em suas consciências o apelo do bem comum” (71).
Já é quase impossível imaginar a existência da família humana sem
os meios de comunicação social. Para que eles favoreçam a liberdade e
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
113
Caritas in veritate
globalizem o desenvolvimento e a democracia para todos, é preciso que
estejam centrados na promoção da dignidade das pessoas e dos povos e
colocados a serviço da verdade (cf. 73).
Em vários campos da vida humana, como, por exemplo, da bioética, da fecundação in vitro, da pesquisa sobre os embriões, da possibilidade da clonagem e hibridação humana, coloca-se hoje uma questão
fundamental: são suficientes razões técnicas para uma tomada de decisão
ou é necessário levar em conta a responsabilidade moral do homem?
Diante de tais desafios, precisamos entender que razão e fé ajudam-se
mutuamente e só conjuntamente salvarão o homem: “a razão sem a fé
está destinada a perder-se na ilusão da própria onipotência, enquanto a
fé sem a razão corre o risco do alheamento da vida concreta das pessoas”
(74). Longe de Deus, o ser humano vive inquieto e está mal; a droga
e o desespero comprovam isso (cf. 76). Necessitamos de olhos novos
e coração novo para superar a visão materialista dos acontecimentos
humanos, e entrever no desenvolvimento um “mais além” que a técnica
não pode dar (77).
Conclusão
“Sem Deus, o homem não sabe para onde ir e não consegue sequer
compreender quem é. (...) Deus nos dá a força de lutar e sofrer por amor
do bem comum” (78). “O desenvolvimento tem necessidade de cristãos
com os braços levantados para Deus em atitude de oração” (79); cristãos
convictos de que o amor cheio de verdade – caritas in veritate – não é
produzido por nós, mas nos é dado por Deus (cf. 79).
B) Intuições da Encíclica
– Em sua primeira encíclica, Deus caritas est, sobre a teologia
da caridade, Bento XVI deu indicações sobre a Doutrina Social
da Igreja (n. 26-29); Caritas in veritate é um texto dedicado
inteiramente a essa matéria, mas o conceito central é a caritas,
entendida como amor divino manifestado em Cristo. A caridade é
a fonte inspiradora do pensar e do agir cristão no mundo. Ela não
pode ser reduzida a um simples querer bem ou à filantropia.
– A Igreja foi constituída por Cristo para ser sacramento de salvação para todos os povos (Lumen Gentium, 1). Ela não é um agente
político nem uma ONG; ela inspira, mas não faz política. Assim,
a Doutrina Social da Igreja não é um “terceiro caminho”, isto
é, um programa político para se atingir uma sociedade perfeita;
tal Doutrina também não busca a instalação de uma teocracia,
onde os princípios válidos no campo da fé devem ser aplicados
no viver social. A Igreja defende, sim, a liberdade religiosa.
114
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Murilo S.R. Krieger, SCJ
– Bento XVI insiste na idéia de que a Doutrina Social da Igreja é
um elemento de evangelização – isto é, o anúncio de Jesus Cristo,
morto e ressuscitado, tem uma incidência social. Assim, de um
lado ela deve ser vista sempre no contexto do Evangelho; de outro,
deve-se ter consciência de que ela é tão somente um dos caminhos
da evangelização – uma evangelização que a ultrapassa, pois o
homem é muito mais do que um ser que vive na sociedade.
– O coração da Doutrina Social da Igreja é o ser humano. Por
isso, as primeiras encíclicas sociais se preocuparam com
o trabalho, o justo salário, a associação dos trabalhadores
etc. Mais tarde, as encíclicas sociais se voltaram para os
desafios internacionais: os desequilíbrios entre países ricos
e pobres, o desenvolvimento, as relações internacionais.
Bento XVI procura responder a uma pergunta fundamental:
que homem queremos salvar? Pode-se considerar verdadeiro
desenvolvimento aquele que fecha o homem em horizontes
terrenos, feito só de bem estar material e que ignora valores,
particularmente aqueles que são uma resposta às interrogações mais profundas do ser humano? Pode haver verdadeiro
desenvolvimento sem Deus?
– O ser humano não é apenas o objetivo do processo de desenvolvimento, mas sujeito desse processo. Quem conheceu Jesus
Cristo sente-se impelido a trabalhar pelo bem comum.
– O “pecado das origens” impede, em muitos lugares, a construção de uma sociedade justa. Não se pode, pois, afrontar
a questão social sem um referimento à questão ética. Para a
construção de uma nova sociedade, para uma economia autenticamente humana e essencialmente ética, há necessidade de
homens novos, impulsionados pela caridade.
– A via para corrigir o rumo da globalização se apóia em uma
lógica diferente da baseada nas leis da oferta e da procura. Sua
sustentação é a gratidão, a responsabilidade social, a redistribuição equitativa da riqueza, a capacidade para criar novas formas
de empresa. Experiências atuais em matéria de comércio justo,
micro-financiamentos, economia solidária e de comunhão, nos
mostram que esse caminho não só é possível, mas necessário.
A globalização só modificará seu perfil através de pessoas que
sejam capazes de remodelá-la.
– Do ponto de vista cristão, o progresso não depende só da promoção humana, do anúncio da fé e do amor de Cristo, mas,
também, da esperança cristã, dom de Deus. Ela impede que
nos contentemos com a construção do reino aqui e agora, e nos
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
115
Caritas in veritate
ajuda a reconhecer que somente em Deus se concretiza nosso
desejo de felicidade.
– Deus renova o coração do homem para que possa viver na caridade e na justiça. O cristão não se contenta em acompanhar
a História ou a protestar, mas, convertido, quer transformar os
acontecimentos, inclusive pela oração.
C) Conclusão
Caritas in veritate é uma luz para nós, cristãos, e para a sociedade.
Referências
ALLEN, John L. Jr. “Chaves de leitura da encíclica social de Bento
XVI”. National Catholic Reporter, 02.07.2009. Tradução de Moisés
Sbardelotto, site da Unisinos.
BIANCHI, Enzo. “Caritas in veritate: além da lógica da troca”. In La
Stampa, Turim, 12.07.2009. Tradução de Benno Dischinger, site da
Unisinos.
CORDES, Cardeal Paul Josef. “Intervento alla Conferenza Stampa di
Presentazione dell´enciclica del Santo Padre Benedetto XVI dal titolo:
Caritas in veritate. In: site do Vaticano.
GUERRA LÓPEZ, Rodrigo. “Entrevista para Zenit: Caritas in veritate
no atual debate filosófico-social”. In site de Zenit, 22.07.2009.
IHU (Instituto Humanitas Unisinos) – On-Line. “Dossiê especial Caritas
in veritate”. In site da Unisinos.
SPILLER, Eduardo; BOTAS, Paulo. “Caritas in veritate: denúncia e
esperança profética”. In TQ – Teologia em Questão, Taubaté, Ano VIII,
15 (2009/1), pp. 9-34.
Endereço do autor (após 25/03)
Avenida Cardeal da Silva, 26,
Condomínio Pedra da Marca, Casa 33, Federação
40231-250 Salvador, BA
116
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Resumo: A imagem de Deus surge das experiências humanas. A partir da
educação que recebemos, especialmente na família, mas também diante de
outras influências – religiosas, culturais, comunitárias etc. – criamos uma imagem
de Deus. Essa imagem se manifestará no relacionamento que teremos e, de
maneira muito acentuada, na educação a transmitir. “Conforme a imagem que
temos, assim a atitude que adotamos”. Essas imagens podem ser consideradas
reais ou distorcidas, à luz da verdadeira face de Deus.
No primeiro momento, o autor expõe algumas imagens negativas de Deus,
condicionadas por paradigmas culturais. Assim, navega pelos mares de uma
cultura medieval, passando depois a breve análise da cultura moderna, para
analisar, em seguida, a imagem de Deus naquilo que se convencionou chamar
de pós-modernidade, no seu fenômeno de retorno do sagrado. No segundo
momento, quer contribuir para resgatar a verdadeira face de Deus.
Abstract: The image of God springs out from the human experiences. Starting
from the education we received, especially in the family, but also because of
other – religious, cultural, communitarian – influences, we create in ourselves
an image of God. That image will be manifested in our relations and, in a very
especial manner, in the education we will transmit. “According to the image we
have, that will be the posture we will adopt.” Those images may be considered
real or distorted, at the light of the true face of God. Firstly, the author describes
some negative images of God, conditioned by cultural paradigms. In that way,
he sails in the seas of a medieval culture, going then to a brief analysis of the
modern culture, to examine, afterwards, the image of God in this that we convened to call the post-modernity, in its phenomenon of the return to the sacred.
Finally, he wants to contribute to rescue the true face of God.
Imagens e verdadeira face de Deus
Geraldo Maia*
*
O autor é presbítero da Arquidiocese de Uberaba, Mestre em Teologia Dogmática
pela FAJE-BH (2005), e doutorando em Teologia Dogmática pela PUG-Roma.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011, p. 117-130.
Imagens e verdadeira face de Deus
Introdução
A imagem de Deus surge das experiências humanas. A partir da
educação que recebemos, especialmente na família, mas também diante
de outras influências – religiosas, culturais, comunitárias etc. – criamos
uma imagem de Deus. Essa imagem se manifestará no relacionamento
que teremos e, de maneira muito acentuada, na educação a transmitir.
“Conforme a imagem que temos, assim a atitude que adotamos”1. Essas
imagens podem ser consideradas reais ou distorcidas, à luz da verdadeira
face de Deus.
Compreendemos “a face de Deus” já como a manifestação daquilo
que Deus é, na sua essência. E é na História salvífica que essa face se nos
deu a revelar. A Constituição Dogmática do Concílio Vaticano II, Dei
Verbum, nos garante que Deus quis revelar-se naquilo que ele é em si
mesmo2. K. Rahner elaborou seu mais famoso axioma sobre a Trindade
baseado nesta identidade mesma de Deus, ou seja, aquilo que conseguimos captar de Deus na história salvífica é aquilo que ele é3.
Procuraremos, num primeiro momento, expor algumas imagens
negativas de Deus, condicionadas por paradigmas culturais. Assim,
navegaremos pelos mares de uma cultura medieval, passando depois a
breve análise da cultura moderna, para analisar, em seguida, a imagem
de Deus naquilo que se convencionou chamar de pós-modernidade, no
seu fenômeno de retorno do sagrado. No segundo momento trataremos
de resgatar a verdadeira face de Deus.
118
1
F. Pires Lopes, “Imagens de Deus” [recensão da obra homônima coordenada por
Jean Holm e John Bowker], Broteria 149 (1999) 494.
2
“Aprouve a Deus, em sua bondade e sabedoria, revelar-se a si mesmo e tornar conhecido o mistério de sua vontade (cf. Ef 1,9), pelo qual os homens, por intermédio
doCristo, Verbo feito carne, e no Espírito Santo, têm acesso ao Pai e se tornam
participantes da natureza divina (cf. Ef 2,18; 2Pd 1,4)”. Dei Verbum 2, in G. Alberigo; G. L. Dossetti; P. P. Joannou; C. Leonardi; P. Prodi. Conciliorum
Oecumenicorum Decreta, 2. ed., Bologna, 2002, 972.
3
“Il principio che stabilisce questo collegamento tra i trattati e che presenta la Trinità come
mysterium salutis per noi (nella sua realtà e non solo come dottrina), potrebbe venir così
formulato: la Trinità ‘economica’ è la Trinità ‘immanente’ e viceversa”. K. Rahner, La
Trinità, 4. ed., Brescia, 2008, 30. A Comissão Teológica Internacional comentou este
axioma com muita propriedade: “la Trinità che si manifesta nell’economia della salvezza
è la Trinità immanente; è la Trinità immanente che si comunica liberamente e a titolo
gratuito nell’economia della salvezza”. Commissione Teologica Internazionale, “Teologia,
cristologia, antropologia (1991)”, in Commissione Teologica Internazionale, Documenti
1969-2004, Bologna, 2006, 200. Sobre este assunto, cf. ainda: L. F. Ladaria, El Dios
vivo y verdadero. El misterio de la Trinidad, Salamanca, 2005, 23-39. E ainda: L. F.
Ladaria, La Trinidad misterio de comunión, 2. ed., Salamanca, 2007, 11-64.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Geraldo Maia
1 Cultura e imagem de Deus
Sendo Deus ser espiritual, sentimos necessidade de representálo através de imagens. Mas Deus não se esgota na sua representação.
Como tão bem expressou Tomás de Aquino, o que Deus é ultrapassa a
tudo quanto possamos compreender dele4. Nesse mesmo sentido já havia
expressado Agostinho de Hipona: “Pode-se dizer tudo de Deus, e nada se
consegue dizer dignamente”5. Certamente era por isso que os israelitas
tinham tanto escrúpulo até em pronunciar o nome de Deus. Tratava-se
de um cuidado para não se cair no reducionismo.
As imagens são influenciadas pela realidade histórica, social e
cultural, o que chamamos de paradigma. Pensando esculpir uma imagem
de Deus, colocava-se nele, muitas vezes, uma máscara que distorcia suas
feições. “Para C.J.Jung, Deus é o mais forte arquétipo que existe. Quando
a imagem de Deus está doente, também o ser humano fica doente. As
imagens arquetípicas mexem com alguma coisa no ser humano. Elas ou
confundem a psique ou trazem ordem para dentro dela.[...] Da imagem
de Deus depende a imagem de si”6.
Tomaremos três paradigmas clássicos que esculpiram imagens
distorcidas de Deus. Poderíamos escolher outros paradigmas, mas nos
restringimos a estes três considerando-os simbólicos, pois continuam,
sobremaneira, influenciando a atual cultura. Convém considerar que,
elegendo imagens distorcidas de Deus, não pretendemos negar a importância e os valores presentes em cada um desses paradigmas, que vêm
oferecendo tantos frutos ao desenvolvimento da humanidade. Apenas
ressaltamos algumas imagens com expressões negativas.
1.1 Paradigma medieval
Na abordagem pré-moderna, o teocentrismo teve influência marcante e, por vezes, negativa. Tomemos uma imagem de Deus aí articulada
de maneira negativa: um Deus “castigador”, “justiceiro”, “vingador”.
Tratava-se do “grande olho”, do qual Sartre se lamentava mais tarde.
Tem-se aí a imagem de um “deus” que está atento, vigiando as pessoas
4
Cf. Tomás de Aquino, Suma Teológica, I, q. XII, a. 7.
5
Santo Agostinho, “Commento al Vangelo di San Giovanni”, 13,5 [tradução nossa].
6
Anselm Grün, Se quiser experimentar Deus, 2. ed., Petrópolis, 2001, 40.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
119
Imagens e verdadeira face de Deus
para puni-las após o menor deslize. A melhor expressão que traduz essa
imagem é: “Se você fizer isso, ‘deus’ vai castigá-lo”.
Deus aí é identificado como origem e distribuidor do mal; “deus
sádico”, gerador de medo, o anti-humano. Trata-se de um “deus patrikiriarkal”: pai que é dono e senhor de tudo. É essa imagem que certa
pastoral arcaica e pregações tenebrosas ensinavam, fazendo um verdadeiro terrorismo nas crianças e nos fiéis em geral. Daí a dificuldade de
relacionar-se com Deus e experienciá-lo como amor, bondade, misericórdia, ternura.
Essa imagem gera insegurança e angústia até hoje, obrigando as
pessoas a se justificarem sempre. É traumática e desumana. Incute medo
nas pessoas. Ainda é muito empregada por pais na educação de crianças.
Sobre essa imagem houve a reação da filosofia moderna, desembocando no ateísmo. Certamente o indiferentismo religioso atual é fruto de
uma postura diante dessa imagem incutida no inconsciente coletivo das
pessoas. Afinal, não se pode levar a sério um “deus” que seja origem e
dispensador do mal a seu bel prazer, como se fosse um sádico. O Concílio Vaticano II, através de sua Constituição Pastoral Gaudium et Spes,
apresentou lúcida intuição acerca da relação da responsabilidade dos
cristãos na formação do ateísmo “na medida em que, pela negligência
na educação da sua fé, ou por exposições falaciosas da doutrina, ou
ainda pelas deficiências da sua vida religiosa, moral e social, se pode
dizer que antes esconderam do que revelaram o autêntico rosto de Deus
e da religião”7.
1.2 Paradigma moderno
A virada antropológica marcou profundamente a abordagem
moderna. A imagem de Deus aí articulada acabou por apresentar um
“deus” inimigo do ser humano, que não o deixa emancipar-se. Essa
imagem negativa de Deus, agora, diante do fascínio da razão humana,
é desnecessária, inerte, um mero defunto velado pelo saudosismo de
algumas carpideiras. Os filósofos modernos e, em especial, os “Mestres
7
120
“Por essa razão, nesta gênese do ateísmo, grande parte podem ter os crentes, enquanto, negligenciando a educação da fé, ou por uma exposição falaz da doutrina,
ou por faltas na sua vida religiosa, moral e social, se poderia dizer deles que mais
escondem que manifestam a face genuína de Deus e da religião”. Gaudium et Spes,
19c, in G. Alberigo; G. L. Dossetti; P. P. Joannou; C. Leonardi; P. Prodi.
Conciliorum Oecumenicorum Decreta, 2. ed., 2002, 1079.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Geraldo Maia
da suspeita”8, de martelo em punho, se puseram a demolir essa falsa
imagem de “deus”.
Descartes, através da dúvida metódica, propôs o sujeito racional:
“Cogito, ergo sum”. Kant chamou o ser humano à maturidade em razão
de sua racionalidade, nos altos voos do Iluminismo. Feuerbach considerou
“deus” como projeção do melhor do ser humano: para que o ser humano
cresça, é preciso que esse “deus” seja negado. Marx propôs a negação
desse “deus” para assegurar a realização social. Freud desprezou esse
“deus” para que o inconsciente realize sua libido. Nietzsche proclamou
a morte de “deus” para que o ser humano realize sua vontade de poder.
O ateísmo surge, assim, como “negação da negação”. Suspeita-se de
um “deus” que é apresentado como rival do ser humano. Sua morte é
proclamada como gesto de misericórdia pela humanidade. No afã de
tirar-lhe as máscaras pré-modernas, sua imagem foi decapitada e nada
mais representa para alguns. “Se Deus não existe, tudo é permitido”,
preconizara Dostoievski. Caiu-se no eclipse de Deus e, na sua esteira,
no eclipse do humano. Eis o tempo da sociedade secularizada!
A repercussão dessa demolição da imagem de Deus, que levou
ao niilismo, continua a ser percebida hoje. Além do ateísmo teórico, foi
gerado um ateísmo prático, que levou ao relativismo. Nessa consideração, vive-se como se Deus não existisse, especialmente se a concepção
desta imagem inibe minhas atitudes antiéticas. A indiferença religiosa,
que tem sido superada pelos novos anseios da pós-modernidade – retorno
ao sagrado –, ainda se manifesta em variadas situações. Desconsiderase o respeito pelo semelhante por desconsiderar que ele seja “imagem e
semelhança de Deus”. Afinal, a imagem de Deus foi negada.
1.3 Paradigma pós-moderno
A pós-modernidade se apresenta como momento novo da civilização, portando, em suas características, luzes e sombras. Não pretendemos,
aqui, reduzir todo este complexo paradigma ao negativismo, pois reconhecemos grandes valores brotados desta cultura em variados aspectos.
Abordaremos, entretanto, como fizemos, nos paradigmas anteriormente
visitados, uma imagem negativa de Deus, mesmo sabendo que existem
imagens positivas.
8
Seguindo P. Ricoeur, por “Mestres da suspeita” entendemos Marx, Nietzsche e
Freud.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
121
Imagens e verdadeira face de Deus
A pós-modernidade absolutizou o subjetivismo e o domínio da
emoção9. Prenhe de tecnicismo, moldou uma imagem plástica de um
“deus” mágico, técnico, retribuidor. A matriz dessa imagem de Deus parte
do capitalismo neoliberal: Deus é o grande dispensador das riquezas.
Ele premia a uns e castiga a outros. É o retorno da antiga “teologia da
retribuição”. Há um grande acento na teologia da prosperidade, resgatada
hoje em certas tendências religiosas. Parte, assim, da concepção de um
“deus ex machina”: resolve os impasses de forma mágica. Como nos
antigos palcos de teatro, o ídolo sobe pelo alçapão, movimentado por
uma engenhoca – uma máquina – e resolve a trama encenada. Trata-se
da concepção de um “deus” pragmático, utilitarista, sem compromisso
social efetivo. A relação humano-divina neste paradigma não permite o
amor gratuito e desinteressado. “Quando usamos Deus para a defesa de
algo, colocamos esse algo acima de Deus; por conseguinte, convertemolo em um ídolo”10.
Além de querer que esse “deus” resolva meus problemas particulares, o “eu narcísico” procura relacionar-se com ele de forma emotiva,
nas mais extravagantes manifestações, numa demonstração neurótica e, às
vezes, até psicótica. A pessoa passa a querer que esse “deus” resolva seus
problemas depressivos ou comportamentais. O relacionamento da pessoa
com Deus assume características patológicas da mente humana.
O ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus, cria um
“deus” à sua própria imagem e semelhança. Não é mais a pessoa que é
chamada a fazer a vontade de Deus, mas é esse “pseudodeus” que deve
fazer a vontade e os caprichos da criatura. Como se o Criador pudesse
desrespeitar a liberdade finita e a própria finitude de sua criatura. Esse
“deus” não existe para amar, mas para satisfazer a índole consumista da
humanidade.
Balanço provisório
Apresentamos imagens distorcidas de Deus, em paradigmas
diferenciados, segundo convicções e demandas da humanidade numa
Segundo A. Giddens, não houve uma ruptura na modernidade, mas esta atingiu seu
estágio mais avançado. Sua obra mais célebre sobre este assunto é: A. Giddens, Modernity and Self-Identity. Self and Society in the Late Modern Age, Cambridge, 1991.
10
J. I. González Faus e Josep Vives, Creer sólo se puede en Dios. Ensayos sobre las
imágenes de Dios en el mundo actual, Santander, 1985, 43 [tradução nossa].
9
122
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Geraldo Maia
determinada época. Mesmo que não seja mais tão incisiva quanto na
época pré-moderna, a imagem do “olho de Deus” continua monitorando
muitas consciências, violentando a liberdade humana através de leis
cegas e moralistas. Assistimos à derrocada do ateísmo teórico, proposto
pela modernidade, substituído agora pela redescoberta do sagrado na
pós-modernidade, mas o ateísmo prático-convencional permanece: “se
Deus não realiza o que eu quero, ele não merece ser acreditado”.
Urge resgatar a verdadeira face de Deus, para além das máscaras,
com o intuito de representar Deus como ele realmente é: o Deus revelado em Jesus de Nazaré. “Se os cristãos estão decididos a renovar em
si mesmos e na sociedade presente uma imagem sadia da Paternidade
divina, eles devem detonar as perspectivas falsas que fazem com que
Deus seja um tirano temível, para ser reconhecido como um Pai bom e
tranquilizador”11.
Somos chamados a resgatar a face de Deus, para além de nossos
preconceitos, de nossas mórbidas imaginações. Acreditamos que a
verdadeira face de Deus seja translúcida de ternura, amor e compaixão.
Uma face solidária com o ser humano nas suas lutas de esperança e de
vida, assim como Jesus Cristo nos revelou.
2 Resgate da verdadeira face de Deus
A deturpação das imagens plásticas, modeladas pelas culturas em
épocas diferentes, assim como foram apresentadas acima, nos interpelam
e exigem um compromisso sério de superação, a partir de nossa conversão. Assim poderemos resgatar a verdadeira face de Deus. Para tanto, há
que se ter sensibilidade e se deixar tocar pela revelação de um Deus que
não se esgota em puras imagens, mas que se manifesta como um muito
mais de plenitude. Essa revelação terá sentido se a considerarmos como
iluminadora de nossas experiências humanas do divino.
O deparar-se com a verdadeira face de Deus só pode acontecer
a partir da experiência com Deus. E é na intimidade que ele se revela.
A partir dessa experiência pessoal, somos chamados a “projetar uma
imagem de Deus para a qual a liberdade e o amor não são coisas que se
opõem mutuamente, uma imagem de Deus cuja grandeza não é diminu11
G. Morel, Les images de Dieu, in Dieu aujourd’hui. Semaine des Intellectuels Catholiques 1965, Paris, 1965, 193 [tradução nossa].
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
123
Imagens e verdadeira face de Deus
ída pela libertação do homem, mas que precisamente nessa libertação
se manifesta como grandeza”12.
Deus “não se deixa encerrar na imaginação nem na linguagem
humanas. Para o exprimirmos, porém, é frequente o imemorial recurso
a símbolos [...]”13. Ao retirarmos as máscaras colocadas em Deus, vamos
redescobrindo suas feições, mas sempre representadas por novas imagens
que sejam manifestações de uma nova visão. O revelador da verdadeira
face resplandecente de Deus é Jesus de Nazaré. Ele é o protótipo da
relação humano-divina, pois se manifestou na intimidade com o Pai:
“Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14,10a). Através de Jesus podemos tirar as
máscaras colocadas em Deus.
2.1 Criador: partilha da experiência de amor
O Pai Criador, revelado em Jesus de Nazaré, não é aquele que cria
o ser humano a seu serviço. Deus cria para comunicar seu amor, que não
é solitário mas solidário. É um Criador que deseja partilhar, por isso cria
pensando no bem da humanidade. Cria porque quer dar amor. Seu único
interesse é o ser humano. Já criando, Deus chama sua criatura a participar
de sua plenitude de vida. Na verdade, Deus projeta o ser humano para
um “muito mais”. Criado à imagem de Deus, o ser humano é chamado
a assemelhar-se a ele: é o percurso da “imago Dei” à “similitudo Dei”,
como diz Ireneu de Lião. Esse percurso é o que chamamos de salvação,
assim entendida como projeção para um futuro de plenitude humana na
comunhão com Deus, é divinização14; é levar o ser humano à plenitude
de sua humanidade, sem anular sua identidade antropológica15.
Criando-nos na condição humana de finitude, Deus decide entrar
em nossa história como colaborador, na luta pelo rompimento das amarras
124
12
Regina Ammicht Quinn, “Imagens de Deus. Imagens do ser humano e moral. O
paradigma da sexualidade”, Concilium 279 (1996) 67.
13
F. Pires Lopes, “Imagens de Deus”, op. cit., 495.
14
Ireneu de Lião formulou seu célebre axioma que tão bem sintetiza essa ideia: “A
glória de Deus é o homem que vive e a vida do homem consiste na visão de Deus”
[tradução nossa]. Na versão latina, assim se lê: “gloria enim Dei vivens homo, vita
autem hominis visio Dei”. Ireneu de Lião, Adversus Haereses IV, 20,7, in «Sources
Chrétiennes» 100, Paris 1965.
15
Por tudo isso podemos afirmar com B. Sesboüé: “A concepção ireneana da liberdade humana responde às objeções admiravelmente modernas”. B. Sesboüé, Tout
récapituler dans le Christ. Christologie et sotériologie d’Irénée de Lyon, Paris, 2000,
203 [tradução nossa].
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Geraldo Maia
que nos tornam vulneráveis ao mal. Deus não é o distribuidor dos males,
que são frutos da condição de finitude humana ou da liberdade finita da
humanidade. Ele se nos apresenta como o antimal, que se põe do lado
do sofredor para fortalecê-lo e ajudá-lo a se erguer de sua condição. A
histórica do Primeiro Testamento revela a teimosia de um Deus apaixonado pela sua criação, que não se cansa de chamar seu povo à salvação. A
história do Segundo Testamento é o testemunho do Filho que se encarna
para apontar à humanidade o rosto amoroso de Deus.
Foi para nos amar que Deus nos criou. Por isso ele consiste em
estar amando: “Deus é amor” (1Jo 4,8.16). Ele sofre com o nosso sofrimento e se faz solidário conosco, amando-nos e impulsionando-nos
pelos caminhos da salvação. Deus não sabe e nem quer fazer outra coisa
senão amar a sua criatura.
2.2 Pastor: a segurança de nossas vidas
A figura do Pastor está presente em diversas abordagens bíblicas:
Ez 34,11-16; Sl 22(23); Jo 10,11-18. Há um simbolismo próprio na metáfora do pastor: é o guia, o companheiro. É ele que transmite segurança
e proteção ao rebanho. Cuida das ovelhas: prenhes, doentes, desviadas,
filhotes. Conhece os atalhos que levam aos oásis. “As ovelhas podem não
ver o pastor. Ele, então, com seu cajado, dá toques ritmados nas pedras.
Transmite confiança e segurança, como quem diz: ‘Estou contigo’. As
ovelhas, sob o cuidado caloroso do pastor, têm a sensação de que ‘nada
lhes falta’”16. O antigo Israel viveu experiências profundas da presença
de Deus em sua caminhada: êxodo, repatriamento, peregrinações. Esse
povo vivenciou a presença marcante de seu Deus que nunca o abandonou,
especialmente na terrível experiência do exílio da Babilônia. A metáfora
do Deus/Pastor remete à certeza de que Deus não abandona seu povo.
Jesus de Nazaré, o Deus humanizado, assume o pastoreio de seu
povo (cf. Jo 10,11-18; Mc 6,30-44; 8,1-10; Mt 14, 13-21; 15,32-38; Lc
9,12-17; Jo 6,5-15). Assim como Deus outrora prometera cuidar, em
pessoa, de seu rebanho, Jesus agora se manifesta como “o bom pastor.
O bom pastor dá a vida pelas suas ovelhas” (Jo 10, 11). Ele pode ser o
Pastor, porque soube ser o Cordeiro de Deus.
16
L. Boff, O Senhor é meu Pastor. Consolo divino para o desamparo humano, Rio de
Janeiro, 2004, 34.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
125
Imagens e verdadeira face de Deus
A vida humana é um êxodo, uma longa jornada de transcendência.
Trazemos anseios de vida nova, de novas esperanças. Suspiramos por
mudanças, que vão desde nossa existência pessoal até às transformações
estruturais das sociedades. Gememos as dores de parto, conforme a expressão paulina (cf. Rm 8,22-23). Há, portanto, que se fazer a experiência
de uma força maior em nossa vida. O Deus-Pastor nos fortalece e nos
impulsiona rumo ao horizonte da libertação.
2.3 Abbá: amor de pai com ternura de mãe
Através de sua intimidade com o Pai, Jesus nos revela a face de
Deus que é Pai. E Pai não somente dele, mas de toda a humanidade. A
palavra hebraica Abbá, “paizinho”, revela a confiança plena da criança
diante da ternura do pai. A expressão supera a mentalidade de um pai
todo-poderoso na sua arrogância. Desperta-nos para nova visão de Deus:
amor e ternura de mãe. O Pai para Jesus é cheio de ternura, amor, misericórdia, perdão: é presença consoladora.
“Em Jesus, a vivência do Pai – a vivência do Abbá – constitui o núcleo
mais íntimo e original de sua personalidade. Dela, como que de um centro vital, emana para ele uma confiança sem limites que até hoje torna
inconfundível sua figura. [...] Nascia da audácia da ternura e constituía
o anúncio de um tempo novo: o do homem filial, porque tem a segurança
de que Deus, em sua profundeza mais abissal e em sua interioridade
mais entranhável, é um Deus paternal”17.
A face materna de Deus precisa ser resgatada em nossas culturas.
Acreditamos que ficaria bem mais próximo de nossas mentes o que seria a
ternura e o carinho de Deus para com suas criaturas. A figura da mãe evoca
muitas experiências de bondade e amor. O próprio texto bíblico utiliza
esta metáfora em Is 49,15 e chega a comparar Deus com uma parteira
(cf. Is 66,9). Sabemos ainda que o termo original, hebraico, empregado
para o Espírito Santo (Ruah), é feminino. Foi traduzido para o grego no
neutro (Pneuma) e se tornou o masculino latino Spiritus. Mas, na origem,
era expressão feminina. Quando resgatarmos a dimensão feminina de
Deus, teremos dele uma visão mais calorosa.
17
126
A. Torres Queiruga, Creio em Deus Pai. O Deus de Jesus como afirmação plena
do humano, São Paulo, 1993, 96.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Geraldo Maia
Balanço geral
O caminho da experiência humana diante do Divino se inicia
no querer, passa pelo buscar, exige o empenhar-se e se consolida no
questionar-se. Para se chegar a esta experiência de Deus há que se fazer
a experiência do desejo de infinito, de transcendência, a partir de nossa
própria existência e das necessidades do mundo18.
Contemplar a realidade familiar, comunitária, social, nos faz
constatar uma sede de infinito. Detectamos em nós um desejo de transcendência, como capacidade de romper todos os limites, projetar-nos
sempre para um mais além19. É nesse anseio que podemos intuir a presença de Deus se esforçando por demonstrar sua solidariedade com o ser
humano, fortalecendo-o para que transponha os percalços da existência.
Somos chamados a vivenciar essa experiência, atingindo a dimensão
mais profunda do ser humano, na abertura ao Espírito.
Revelação não é mágica. É autocomunicação de Deus. E Ele continua a revelar-se através dos nossos semelhantes (cf. Mt 25,40). Afinal,
fomos criados à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,26). Trazemos
as marcas de Deus em nossa vida e podemos detectá-las nas feições
de nossos semelhantes. É o rosto do outro que me interpela e me faz
constatar a imagem de Deus. Contemplar o rosto do outro é contemplar
a face mesma de Deus20.
Levinas destaca a antropologia como o manifestar de Deus. Segundo ele, o que me constitui como eu é a alteridade: a interpelação do
outro. Antes de qualquer pressuposto sobre o sujeito, está o outro que me
interpela. É no rosto do outro que permanecem as pegadas do Infinito.
Para se contemplar o Totalmente Outro, há que se contemplar o outro e
18
“Nosso desejo de infinito não pode ser saciado por metas finitas. [...] Se não sentimos
a Deus, podemos, no entanto, entrar em contato com nosso desejo. Então nosso desejo mantém viva a pergunta por Deus. [...] Ao contemplar Deus no espelho de nossa
alma, cresce em nós a intuição de quem seja esse Deus, o único a satisfazer nosso
desejo”. A. Grün, Se quiser experimentar Deus, 2. ed., Petrópolis, 2001, 73s.
19
O grande teólogo K. Rahner designou esse fenômeno como o “existencial sobrenatural”.
20
“É fácil servir diretamente a Deus – essa ação não compromete ninguém. [...] Amar o
próximo pobre e doente, humilhado e explorado, isso nos compromete e nos obriga
a tomar posição. Só quem ama o outro ama a Deus; só quem se engaja em sua
libertação é que serve ao Senhor da história [...]”. L. Boff, Tempo de transcendência.
O ser humano como um Projeto Infinito, 3. ed., Rio de Janeiro, 2000, 30.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
127
Imagens e verdadeira face de Deus
deixar-se fascinar por ele, que me interpela e me faz responsável. Quanto
mais responsável pelo outro, mais encontro minha ipseidade21.
Contemplar a face de Deus é perceber o sofrimento do outro, na
compaixão, e deixar-se ser interpelado a fazer algo, buscando atitudes
concretas que transformem a situação do semelhante. Daí brota a verdadeira ética numa dimensão relacional, para além de todo individualismo
e de todo moralismo. É nessa dimensão que podemos compreender o
Documento de Puebla quando ressalta as “feições concretíssimas, nas
quais deveríamos reconhecer as feições sofredoras de Cristo, o Senhor,
que nos questiona e interpela”, tecendo uma longa rede de feições:
crianças sofridas, jovens desorientados e frustrados, indígenas e afroamericanos segregados, camponeses relegados, operários explorados,
subempregados e desempregados...22.
Recolhemos aqui a memória de algumas pessoas que souberam
contemplar a face de Deus no rosto dos mais sofredores, a partir do olhar
de compaixão e solidariedade: D. Helder Câmara, o profeta do amor
e da paz; D. Luciano Mendes de Almeida, o pastor dos excluídos; D.
Paulo Evaristo Arns, o cardeal dos direitos humanos; Dra. Zilda Arns, a
leiga das ações sociais; Ir. Doroty, a mártir da justiça; Ir. Dulce, a irmã
dos empobrecidos; Franca, a leiga consagrada das crianças da periferia;
e uma multidão de bem aventurados e bem aventuradas da casa do Pai.
O percurso da contemplação da face de Deus como amor nos leva
a adentrar no mistério mesmo da Trindade. Sendo o amor a essência de
Deus – e isso o sabemos pela sua relação com o mundo criado – o que
Deus fazia “antes de criar” – se é que se pode falar de um antes e de um
depois em Deus – se ainda não havia a criatura para ser amada? Deus
se amava na relação das Pessoas intratrinitárias. Portanto, o conceito de
Deus-amor supõe uma relação trinitária! Assim, podemos concluir com
Urs von Balthasar: “Só o amor é digno de fé”23.
128
21
Cf. I. Levinas, Totalidade e Infinito, Lisboa, 1980. I. Levinas é filósofo lituano, judeu,
radicado na França e falecido em 1995. Desenvolveu uma filosofia peculiar. Para
além da formulação clássica da filosofia, ele parte do Talmud (interpretação dos textos
judaicos revelados) para edificar uma filosofia nova.
22
Conselho Episcopal Latino-americano, Documento de Puebla. A Evangelização
no presente e no futuro da América Latina, 31 a 39, 5. ed., Petrópolis, 1983, p. 70s.
O Documento de Aparecida atualiza essa abordagem do rosto dos irmãos que nos
interpela, cf. seu número 65.
23
Urs von Balthasar conclui, pela economia salvífica, a imanência mesma de Deus,
que é amor. “Tutti gli ‘abbassamenti’ contingenti di Dio nell’economia della salvezza
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Geraldo Maia
Bibliografia
Alberigo, G.; Dossetti, G. L.; Joannou, P.P.; Leonardi,
C.; Prodi, P. Conciliorum Oecumenicorum Decreta, 2. ed., Bologna,
2002.
Ammicht Quinn, R. “Imagens de Deus, Imagens do ser humano e
moral: o paradigma da sexualidade”, Concilium 279 (1996).
von Balthasar, U. Teologia dei tre giorni, Brescia, 1990.
Boff, L. O Senhor é meu Pastor. Consolo divino para o desamparo
humano. Rio de Janeiro, 2004.
_____. Tempo de transcendência: O ser humano como um Projeto Infinito. 3. ed., Rio de Janeiro, 2000.
Commissione Teologica Internazionale. “Teologia, cristologia, antropologia (1991)”, in Commissione Teologica Internazionale, Documenti
1969 – 2004, Bologna, 2006.
Conselho Episcopal Latino-Americano. Documento de Puebla: A
Evangelização no presente e no futuro da América Latina, 5. ed., Petrópolis, 1983.
_____. Documento de Aparecida: Texto conclusivo da V Conferência
Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, 5. ed. Brasilia;
São Paulo, 2008.
Giddens, A. Modernity and Self-Identity: Self and Society in the Late
Modern Age, Cambridge, 1991.
González Faus, J. I.; Vives, J. Creer sólo se puede en Dios: Ensayos sobre las imágenes de Dios en el mundo actual, Santander, 1985.
Grün, A. Se quiser experimentar Deus. 2. ed., Petrópolis, 2001.
Irinéu de Lião, Adversus Haereses IV, in «Sources Chrétiennes» 100,
Édition critique par Adelin Rousseau avec la collaboration de Bertrand
Hemmerdinger, Louis Doutrelau et Charles Mercier, Paris, 1965.
Ladaria, L. F., El Dios vivo y verdadero: El misterio de la Trinidad,
Salamanca, 2005.
sono da sempre inclusi e superati nell’evento eterno dell’Amore”. U. von Balthasar,
Teologia dei tre giorni, Brescia, 1990, 22.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
129
Imagens e verdadeira face de Deus
____. La Trinidad misterio de comunión, 2. ed., Salamanca, 2007.
Levinas, I. Totalidade e Infinito, Lisboa, 1980.
Morel, G. “Les images de Dieu”, in Dieu aujourd’hui. Semaine des
Intellectuels Catholiques, Paris, 1965.
Pires Lopes, F. “Imagens de Deus” [recensão da obra homônima
coordenada por Jean Holm e John Bowker], Broteria 149 (1999).
Rahner, K. La Trinità, 4. ed., Brescia, 2008.
Santo Agostinho. “Commento al Vangelo di San Giovanni”, in
Opere di Sant’Agostino, v. XXIV/1, Roma (1968).
Sesboüé, B. Tout récapituler dans le Christ: Christologie et sotériologie d’Irénée de Lyon, Paris, 2000.
Tomás de Aquino. Suma Teológica, vol. I, Caxias do Sul, 1980.
Torres Queiruga, A. Creio em Deus Pai: O Deus de Jesus como
afirmação plena do humano. São Paulo, 1993.
Endereço do Autor:
a/c do ITESC
Rua Dep. Antônio Edu Vieira, 1524
Pantanal
88040-001 Florianópolis, SC
130
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Teologia, Economia e Ecologia
Síntese da Semana Teológica realizada no ITESC
nos dias 20 a 24 de setembro de 2010
I Conferência: A encíclica
Caritas in Veritate, de Bento XVI
Conferencista: Texto: Dom Murilo Sebastião Ramos Krieger, scj,
então Arcebispo Metropolitano de
Florianópolis
neste número de “Encontros Teológicos”,
pp.107-116.
II Conferencia: Questões ecológicas
em Santa Catarina
Conferencista: Luiz Fernando Scheibe / UFSC
Debatedora: Suzana Cordeiro Trebein / FATMA
Relatores: Fernando Baraúna e Wellington da Silva
O Estado de Santa Catarina é formado por quatro grandes grupos
de rochas: sedimentos recentes, continentais e marinhos; embasamento
cristalino; rochas sedimentares Gondwânicas da Bacia do Paraná; e
basaltos e outras rochas vulcânicas da formação da Serra Geral. As
questões ecológicas estão muito ligadas a essa distribuição geológica
do Estado.
Os sedimentos recentes, continentais e marinhos, restringem-se
á faixa litorânea. Os sedimentos marinhos são predominantemente depósitos de praias atuais, constituídos por areias e depósitos de mangues,
mais argilosos; os continentais são depósitos aluvionares e coluviais, na
base das encostas ou preenchendo os vales dos rios principais; ou ainda,
depósitos de dunas, ao longo do litoral. Esses tipos de sedimentos são
basicamente provenientes da erosão de rochas das serras e montanhas do
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011, p. 131-154.
Teologia, economia e ecologia
litoral que, pela grande quantidade de chuvas nessa região, são levadas
pelos rios, depositando-se em suas margens. Esses processos, que vem
ocorrendo nos milhares de anos, é que foram dando origem às grandes
planícies que vemos no litoral. Esse processo continua a acontecer. A
questão polêmica é que é nessas regiões que se concentra grande parte
da população. Assim, o que seria um fenômeno natural, passa a ser considerado um desastre natural, já que a erosão, causada principalmente em
regiões montanhosas, acaba atingindo populações e causando prejuízos.
O problema não é a natureza, mas a forma como o homem ocupou essas
áreas. A fim de evitar danos à população, como os que têm ocorrido
recentemente no Estado, ou ao menos para minimizar os impactos dos
desastres naturais, é necessário localizar e demarcar essas áreas de risco,
evitando ocupações.
Embasamento cristalino compreende o segundo grupo de rochas
que compõem a solo catarinense. Aflora numa faixa norte-sul com largura
de 50 km, desde o limite com o Paraná até a cidade de Morro da Fumaça.
São rochas antigas, que sofreram grande deformação e movimento. Elas
estão entre as mais antigas do Brasil, de modo especial as que se situam
mais ao norte catarinense.
O terceiro grupo é formado pelas rochas sedimentares Gondwânicas da Bacia do Paraná. Assim denominadas, pois são provenientes do
supercontinente Gondwana, que deu origem a todos os atuais continentes,
graças ao movimento das placas tectônicas. Trata-se de rochas constituídas por várias camadas, correspondendo a argilitos bem compactados
que formam uma espécie de cascalho. É nelas que se encontra o carvão,
resultado de florestas que foram encobertas pela água e que sofreram
ação de bactérias anaeróbicas1.
Hoje, ao extrair o carvão e utilizá-lo como fonte energética, estáse permitindo que todo o gás carbônico nele acumulado seja devolvido
novamente à atmosfera. A questão é se a exploração carbonífera, feita
1
132
No período Permiano (entre 270 e 230 Ma), ocorreu o desenvolvimento de densas
florestas que, cobertas pelas águas e submetidas à ação de bactérias anaeróbicas,
à pressão e ao aumento de temperatura pelo soterramento, vieram a constituir as
camadas de carvão da formação do Rio Bonito. Acredita-se que toda essa floresta
encoberta pela água, há mais de duzentos milhões de anos, retirou carbono da
atmosfera de forma maciça, garantindo uma atmosfera mais adequada para a vida,
especialmente para os mamíferos, animais de sangue quente, que necessitam de
muito oxigênio.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Semana Teológica
pelo homem, está causando as possíveis mudanças que se observam
no clima.
A extração do carvão é causa de muitos problemas ecológicos,
presentes no Estado catarinense. Entre eles está o problema da perita.
A perita é um sulfeto de ferro presente nos rejeitos do carvão. Ao entrar
em contato com a atmosfera, o sulfeto, juntando-se à água, gera ácido
sulfúrico. Esse ácido acaba sendo lançado nos rios, assim como outros
metais, ocasionando a contaminação das águas no sul do Estado. Esse
tipo de contaminação configura um dos maiores problemas ambientais de
Santa Catarina. Problema também significativo são as minas abandonadas
e as imensas áreas de aterro para onde se encaminhavam os rejeitos de
carvão sem quaisquer precauções.
Após o período em que se originou o carvão, formou-se, nos chamados períodos Triássico e Jurássico (entre 250 e 150 Ma), um imenso
deserto, conhecido no Brasil como Deserto de Botucatu, originando um
pacote de arenitos porosos e permeáveis, com 100 a 200m de espessura:
o atualmente famoso Aquífero Guarani2.
Cerca de 180 milhões de anos atrás teve início o processo de fragmentação do Gondwana, conhecido como Tectônica de Placas. À medida
que os continentes se afastavam, à razão de alguns centímetros por ano,
o magma basáltico proveniente do manto da terra ia se depositando no
fundo dos novos oceanos que se formavam. Esse mesmo tipo de magma
penetrava pelas antigas fraturas da crosta continental, reativadas pelos
movimentos tectônicos, espalhando-se então em camadas sucessivas
sobre as areias do deserto de Botucatu, e formando um pacote com espessura de centenas de metros de rochas vulcânicas básicas, intermediárias e
ácidas da Formação Serra Geral. Temos aqui os basaltos e outras rochas
vulcânicas da formação Serra Geral, que correspondem ao quarto grupo
de rochas presentes no Estado.
O aquífero Guarani, que é uma reserva incomensurável de água,
está protegido pelo basalto, que se encontra acima do aquífero. Trata-se
do aquífero Serra Geral. É desse aquífero que provém toda a água de
poços no Estado. Ele é a fonte de água mais utilizada. Mas deve-se ter
precauções quanto ao seu uso. Para entender isso, veja-se onde estão as
2
Aquífero é a rocha onde há um armazenamento de água que pode ser utilizada. O
Aquífero Guarani é constituído de rochas sedimentares pertencentes à Bacia Sedimentar do Paraná. Dessas rochas que compõem o aquífero, a mais importante é o Arenito
Botucatu, depositado gradualmente desde cerca de 180 milhões de anos atrás.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
133
Teologia, economia e ecologia
reservas de água doce no mundo: 68% está nas calotas polares, 29,9%
são subterrâneas, 0,9% está em lagos e rios, e 0,9% em outras fontes.
Somente 0,3% estão presentes nos rios. Mesmo assim, trata-se de muita
água, e com um diferencial: renova-se constantemente pelo ciclo hidrológico. Diferentemente da água subterrânea, que não se renova com a
mesma facilidade e rapidez.
É grande a poluição dos rios em Santa Catarina. No sul, o problema
decorre da exploração do carvão. Na região da grande Florianópolis e
vale do Itajaí, deve-se ao precário sistema de saneamento básico, além
dos agrotóxicos utilizados na agricultura, em regiões rurais. No centro do
Estado, a poluição dos rios vem das grandes fábricas de papel/celulose.
Já no oeste, são a agroindústria e a suinocultura as responsáveis pela
poluição das águas fluviais. Solução existe, e ela passa pela adoção de
sistemas de produção menos poluentes.
Devido à poluição das águas superficiais, busca-se extrair a água
subterrânea. Contudo, as águas superficiais se renovam constantemente
devido às chuvas, o que não ocorre com as águas subterrâneas, que têm
uma renovação lenta.
A grande concentração de poços em Santa Catarina se dá na região
oeste, por causa da poluição das águas fluviais. A água subterrânea é
responsável por cerca de 50% do abastecimento de água nessa região. O
aquífero Guarani até agora está protegido, mas com o uso constante das
águas do aquífero Serra Geral, pode-se chegar à sua degradação.
Para conscientizar sobre a importância e como deve ser usada essa
reserva de água, está sendo desenvolvido o Projeto rede Guarani Serra
geral, com seis grandes metas: hidrogeologia e recuperação ambiental;
qualidade da água; políticas públicas; marco jurídico; educação e tecnologias alternativas; e coordenação da REDE.
Debatedora: Susana Cordeiro Trebein
– Bióloga e técnica da Fatma
Apoiando-se na conferência do professor Scheibe, Susana Trebein
argumentou que Santa Catarina enfrenta grandes questões ambientais e
que, na base dessa realidade, está o ser humano marcado pelo imediatismo. Nosso Estado apresenta uma intensa ocupação do solo, processo
iniciado com a chegada dos imigrantes europeus, no século XIX. Eles
não tinham um conhecimento adequado do relevo e das condições
134
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Semana Teológica
geográficas, ao se estabelecerem em determinadas áreas. Muito menos
buscaram valorizar as contribuições das populações que aqui habitavam. A ocupação do solo se deu basicamente pela agricultura e pelo
desmatamento. Atualmente, começamos a dar-nos conta de quantos
problemas poderiam ter sido evitados se tivesse havido, no passado, um
planejamento sustentável.
Trebein não deixou de destacar alguns dos problemas ecológicos
que mais preocupam nosso Estado. Entre eles: a ocupação desordenada,
principalmente no litoral, a falta de saneamento básico, a agroindústria e
suas consequências, o problema das minas de carvão no sul e a dificuldade
de acesso a água no oeste, a ocupação desordenada do litoral catarinense.
Diante desses desafios, sente-se a necessidade do zoneamento ecológico econômico, de uma maior socialização dos conhecimentos junto às
populações e uma maior presença das instituições públicas. A bióloga
sublinhou também as hidrelétricas e as PCHs (pequenas centrais elétricas) que estão sendo construídas, e as possíveis consequências nocivas
ao ecossistema. Por fim, ela lamentou a inexistência de uma secretaria
estadual do meio ambiente e dos recursos hídricos em Santa Catarina.
Trata-se de um descuido com aquilo que deveria ser fundamental.
Esclarecimentos do Prof. Scheibe
Quanto ao problema das minas de carvão, salientado pela bióloga,
Scheibe afirmou que, de fato, esse não é apenas um problema de sobrevivência, mas, sobretudo, de consumismo e acumulação. Isto se torna mais
grave quando se observa a realidade dos mineiros e sua relação com as
mineradoras. Os mineiros são quase comparados a materiais de consumo.
Eles se aposentam aos quinze anos de trabalho. Quando já estão doentes, com as forças debilitadas, eles são aposentados e o governo passa a
arcar com os custos. Lembra o professor que a questão de saúde não se
restringe apenas aos mineiros, mas a toda a população, que também sofre
com problemas respiratórios decorrentes da extração do carvão.
Outro desafio ligado à ecologia, levantado pela técnica da Fatma,
refere-se ao acesso à água em Santa Catarina, especialmente na região
oeste. Scheibe argumenta que a estiagem existe, mas apenas em algumas
áreas e por breves períodos. O problema é que geralmente esses períodos coincidem com os ciclos da agricultura, causando grande perda.
A mesma coisa acontece com a suinocultura, que necessita de contínuo
acesso à água. Para ajudar as populações a lidar com os problemas deEncontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
135
Teologia, economia e ecologia
correntes da falta de água, está sendo organizado o projeto Rede Guarani
Serra Geral. O professor explica que é meta dessa iniciativa induzir a
um melhor aproveitamento da água, evitando sua poluição e possíveis
contaminações dos aquíferos. Ele lembra também que as fezes dos suínos contaminam consideravelmente as águas. Entretanto, os coliformes
fecais não sobrevivem por muito tempo. O mais alarmante são outros
materiais que são expelidos junto à urina e às fezes desses animais, que
afetam a saúde humana. Há locais em que o problema é tão sério, que
mesmo fontes subterrâneas estão sendo contaminadas por esse tipo de
resíduo animal.
Mas não só a água dos rios e poços merece atenção. Há também
problema na água engarrafada, quanto à sua qualidade. Em muitos casos,
a água que chega às nossas torneiras pela rede de distribuição é de melhor
qualidade do que as vendidas em garrafas. E, ligado à suspeita quanto
à qualidade da água engarrafada, surge a o problema das garrafas PET,
muitas vezes não recicladas.
Observando os problemas apresentados, Scheibe adverte que o
sistema montado não está voltado à sobrevivência humana. O fim último
é sempre o capital, o lucro. “O capitalista não é bom. Se ele for bom,
vai à falência”, afirma. Prega-se um modelo de desenvolvimento, que
nada mais é que se libertar das amarras de tudo e todos à volta, saindo
do ambiente restrito. A ideologia do desenvolvimento sustentável é uma
incógnita: até que ponto é realmente sustentável? Desenvolvimento sustentável é uma forma de desenvolvimento que merece ser sustentável,
pela sua qualidade.
Por fim, ele dá seu parecer quanto ao acesso à água no oeste. Um
poço atrás do outro vai provocar uma diminuição na quantidade de água
nos aquíferos. Se não houver um controle, a fonte secará. Referente às
hidrelétricas e PCHs, o professor usa o exemplo do Rio Uruguai, que
está virando uma “escadinha”. O lago de uma barragem chega até ao da
outra barragem. Esses lagos estão sendo usados para criação de outras
espécies de peixes. Há assim, uma interferência biológica nos rios.
Outros esclarecimentos
O último momento foi aberto aos participantes da conferência.
Perguntou-se ao professor se há preocupação dos órgãos públicos quanto
à saúde ambiental e humana, visto o problema das minas de carvão,
136
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Semana Teológica
destacando-se a região de Lauro Müller. Segundo o professor Scheibe,
há uma tendência atual de controle por parte de órgãos ambientais. As
questões, com o tempo, vão sendo atenuadas. Quanto às zonas carboníferas, houve ações contra mineradoras que foram condenadas a recuperar
áreas degradadas. O meio utilizado nesse trabalho é cobrir os depósitos de
resíduos do carvão com argila. O professor ressaltou que esse método vem
trazendo alguns resultados na melhora da qualidade da água de alguns
rios. A argila evita que a água entre em contado com o material resultante
da extração do carvão, rico em metais e elementos que contaminam a
água, que acabavam parando, posteriormente, nos rios.
Scheibe também aproveitou o momento para chamar a atenção
para a situação em que se encontram os órgãos públicos responsáveis
pela fiscalização e preservação do meio ambiente. Ele ressalta o caso
da Fatma, que carece da consistência necessária para atuar em todo o
Estado. Faltam técnicos e há grande influência política nas decisões. O
que conta é o dinheiro e o desenvolvimento.
Referente à usina de fosfato em Anitápolis, aprovada inicialmente
pelos órgãos competentes, Scheibe afirmou que há capacidade explorativa de fosfato na região. O problema é que o volume de resíduos
seria muito grande, chegando a 92% de todo o material a ser extraído.
Somente 8% são aproveitados. A produção de material estéril é muito
grande. Em outras jazidas, esse material é utilizado para outros fins, o
que não aconteceria no caso de Anitápolis. A sugestão da empresa que
pretende explorar a área era de acumular esses estéreis em barragens
no Rio Pinheiro, formando duas extensões planas. Só que a jazida fica
na raiz de um antigo vulcão e está no caminho de chuvas torrenciais. A
área é de extremo risco de enxurradas. Logo, as barragens colocariam
a população em risco. Uma solução seria extrair e moer toda a rocha e
utilizá-la para enriquecimento do solo no próprio Estado, garantindo
melhor produtividade no agronegócio. Seria uma forma de exploração
que não devastaria o meio ambiente e traria muitos benefícios.
Outro questionamento direcionou-se para o problema do estabelecimento de limites para o uso das terras ao longo dos leitos dos rios.
O professor observou que reduzir a área de proteção de trinta para cinco
metros é um grande risco. Parece que só o lado econômico está sendo
observado.
Por fim, perguntou-se: Por que a ciência não tem alertado as populações acerca dos perigos da má relação do ser humano com o meio
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
137
Teologia, economia e ecologia
ambiente? Segundo Scheibe, as pesquisas são muito recentes, a ciência
não previu tal situação. Hoje existe entendimento sobre os problemas,
mas o que se deve buscar mesmo são as razões, os motivos reais. Os
problemas ambientais não são fruto do uso irracional dos recursos
ambientais. Em cada atitude há sempre uma razão forte. A “razão” está
ligada com a razão de consumo, de acúmulo... A ciência está evoluindo
e mostrando muitos caminhos. A questão é que há uma indisposição para
a necessária mudança radical nos hábitos de consumo.
III conferencia – Análise Conjuntural
da Economia Catarinense
Expositor: Prof. Glauco Corte / FIESC
Debatedor: Roberto Iunskovski / ITESC
Relatores: Kelvin Kons e Marlon Malacoski
A economia, essencial na vida humana, deve ter como referencial o ser humano. Nos últimos anos tivemos uma forte crise financeira,
que abalou o panorama da economia mundial. Países como Grécia,
Itália e Portugal, ainda encontram dificuldades em superar a crise. Os
países desenvolvidos foram os que mais sofreram, diferentemente dos
países emergentes, que tiveram até um pequeno crescimento. O Brasil
se insere nesse cenário como um país emergente, sendo um dos menos
afetados pela crise. Para os próximos anos, a previsão econômica é que
os ­países desenvolvidos cresçam, mas os emergentes cresçam mais ainda.
Vislumbra-se, portanto, um quadro otimista.
Nosso país perde a oportunidade de poder crescer mais, devido à
escassez dos investimentos públicos. O que nos ajuda muito ainda são os
investimentos privados. Isso se torna um dos obstáculos maiores para o
crescimento. Enquanto muitos países emergentes crescem em ritmo mais
acelerado, de modo mais eficaz, por causa dos investimentos públicos, nós
ainda ficamos a desejar, tendo uma infraestrutura que ainda é deficiente.
Um dos fortes fatores que nos ergueram no ano passado, diante
de toda a crise mundial, foi o consumo das famílias. Também os gastos
do governo foram expressivos também. O mercado interno é que se
manteve. O governo incentivou o consumo. O crédito tornou-se amplo,
com diversas facilidades. Nenhum banco quebrou, houve participação
acionária, um tanto de junções, mas nenhum problema de crédito. E isso
se deve a um trabalho anterior de saneamento bancário.
138
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Semana Teológica
O setor que mais foi atingido pela crise foi a indústria, mas que
já obteve um considerável crescimento neste ano, e irá liderar o crescimento no próximo ano. Tivemos gerações de novas vagas de empregos,
bom desempenho nas exportações. Mas enquanto não eliminarmos o
problema da infraestrutura, não serão superados os limites do crescimento. Também irão progredir os investimentos e o consumo das famílias.
Os investimentos do governo se manterão, provavelmente. Precisariam
aumentar, investindo mais e melhor em infraestrutura.
Atualmente, a renda das famílias retornou ao ritmo pré-crise (o mais
alto patamar da última década) e, houve um aumento significativo do salário mínimo (quase 10%), que irrigou a economia. O aumento do salário
mínimo último foi o dobro da inflação, aumentando o poder aquisitivo das
famílias. As pessoas abaixo da linha da pobreza seriam o dobro, se não
fosse esse crescimento. Houve uma mudança extraordinária na ascensão
de classe das famílias: cresce a classe C (de 45 a 49%). Classes A e B (15
a 16%). As classes D e E reduziram (de 40 para 35%). Em 2005 era quase
30% de pobreza absoluta, diminuiu para 11,5%. Aumentou o emprego e o
poder aquisitivo. Redução de cerca de 60% de desemprego.
Santa Catarina
Nosso Estado é composto de 50% de homens e 50 % de mulheres, um pouco diferente da configuração nacional, composta de 49% de
homens e 51% mulheres. O Brasil corre o risco da desindustrialização
precoce, mas o setor industrial ainda é o que mais emprega, seguido do
de serviços. O que é mais predominante em nossa economia é a “microempresa”. Santa Catarina possui um percentual de 93% de microempresas, outros tantos de pequenas empresas, que empregam um total de
56% dos empregados. As empresas de grande porte constituem apenas
1% e empregam 25%. É necessário estarmos cientes dessa realidade,
uma vez que as políticas de governo não levam em consideração essa
situação: uma microempresa não tem condições de pagar um salário tão
bom quanto uma grande empresa.
Participação no PIB catarinense:
2003
2007
Indústria
32,88%
35,7%
Agropecuária
10,82%
7,2%
Comércio e serviços
56,30%
57,1%
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
139
Teologia, economia e ecologia
Santa Catarina é líder nacional na produção de cebola e maçã,
segundo em arroz e fumo. Terceiro em trigo e bananas. Mesmo tendo um
território pequeno, dá uma contribuição expressiva. É também o segundo
Estado na produção de frango. Primeiro em suíno e pescados.
A atividade industrial catarinense se compõe de: 17,29% alimentos: por isso nosso crescimento não foi grande comparado ao restante;
9,76% máquinas, aparelhos e materiais elétricos; 8,69 % vestuário;
7,54% têxtil. Nota-se que é diversificada a produção. Há polos bastante
distintos, característicos, mas com padrões de desenvolvimento basicamente equilibrados. Desse modo, possuímos o 2° maior PIB per capita
do Brasil. Tivemos uma boa recuperação na geração de empregos. Em
2009 eram quase 30 mil. Neste ano chegamos a cerca de 85 mil. A área
que mais contribuiu foi a metal-mecânica e a têxtil de vestuário. Esse
crescimento de empregos pode ser considerado a melhor notícia para SC,
pois o que dá dignidade para a pessoa é a carteira de trabalho assinada.
Santa Catarina é o primeiro Estado brasileiro nessa relação de carteira
assinada.
Nas exportações estamos abaixo da média do Brasil, porque a
grande maioria dos produtos que são exportados nós não produzimos,
como minérios etc. Um destaque da exportação nossa é o frango e, agora,
o fumo. Do fumo não somos os produtores em si, mas processadores. Já
na importação, temos uma média bastante alta. Enfim, um fator importante a ser destacado e que prejudica a nossa economia é que 20% de
nossa produção se perde na logística (transportes, burocracia etc.), que
é o dobro do que é nos EUA. Superando problemas como esse, nosso
crescimento poderá apresentar um quadro mais otimista ainda.
Debate:
Prof. Roberto Iunskovski: O modelo de desenvolvimento econômico e a oportunidade de acesso ao
crédito por outro modelo
Pensando a realidade vivida no Brasil e Santa Catarina nos últimos
anos, sob a perspectiva econômica, veem-se alguns aspectos mais positivos. Entretanto, poderíamos nos questionar sobre o modelo que subjaz
à ideia de crescimento econômico e que norteia a economia de nosso
País e de nosso Estado. O crescimento econômico torna-se um fato em
140
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Semana Teológica
Santa Catarina, mas tem de outro lado as suas preocupantes consequências: nosso Estado apresenta um alto índice de êxodo rural, levando a
concentração da propriedade para determinados setores. A indústria do
carvão acarreta consequências gravíssimas, como a poluição demasiada
e os problemas sérios de saúde nos mineradores. Ainda somos um dos
piores países na distribuição de renda, apesar de esse aspeto em Santa
Catarina não ser tão grave. Crescimento, sim, mas a custa de quê?
Um segundo ponto é a questão da crise financeira. Um dos elementos que garantiram a diminuição do seu impacto foi o consumo das
famílias, e nele a questão do crédito. Hoje, alguns setores mostram o
crescimento da inadimplência. Registra-se uma dificuldade de saldar
essas dívidas. Dentro do crédito, temos a grande dificuldade da concentração do sistema financeiro nacional: três ou quatro grupos com quase
90% do dinheiro do Brasil. Bancos com rendimentos díspares em relação
àqueles que produzem. Para financiar uma casa, fora os programas do
governo, os juros dão um valor altíssimo no final das contas (quase 10%).
O cooperativismo de crédito, apesar de ser pequeníssimo, já causa uma
provocação nos grandes grupos. É nos últimos anos que se está recuperando: já constitui 2% dos ativos, mesmo com diversos movimentos
que visam prejudicá-lo. Porque as pessoas hoje não se associam numa
cooperativa, onde irão pagar menos taxas?
Prof. Glauco:
Visão mais otimista. A melhora da saída da pobreza foi mais pelo
emprego do que pela bolsa-família. Ajudou a diminuir a desigualdade.
O que faz a diferença é o emprego. Todas as ações, por isso, devem ter
um destinatário: o ser humano, o trabalhador. O problema, antes, era
só o devastamento. Agora, é só reflorestamento. O carvão é melhor do
que há décadas atrás. É mais difícil aprovar usinas de carvão, por força
dos avanços, das exigências. Os tempos mudaram. Por força das novas
legislações e fiscalizações, as atividades são menos prejudiciais.
A inadimplência não deve crescer, pois, se as pessoas estão empregadas, terão como saldar suas dívidas. Certamente as cooperativas de
crédito devem ser mais incentivadas. Os bancos ganham demais, cobram
demais. O governo não incentiva muito as cooperativas, e os grandes
bancos comerciais não gostam. O problema do êxodo rural não é tão
grave atualmente. Mais que o êxodo, a urbanização está chegando no
campo. As cidades do interior já têm até faculdade. A taxa de desemprego
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
141
Teologia, economia e ecologia
nacional que gira em torno de 8% a 10%, em Santa Catarina se constitui
em torno de 7% a 8%. Hoje há falta de trabalhador em SC.
Professor, o senhor lembrou que, em cinco anos, a pobreza diminuiu em Santa Catarina de 30% a 11%. Com este dado podemos afirmar
que a pobreza atual é diferente da pobreza de cinco anos atrás? É “um
tipo de pobreza diferente”?
O pobre não mudou. Mas está reduzido em número. Os que estão
ascendendo, têm um padrão de vida diferente dos dessa classe há 10
anos, com as facilidades e propagação da tecnologia, os benefícios do
progresso, acesso facilitado à habitação.
Sobre a configuração das exportações, suínos e fumo ainda sustentam o agricultor em suas propriedades. A Cáritas favorece a transição do
cultivo do fumo para o de alimentos. Como fica essa problemática?
Santa Catarina está deixando de produzir o fumo. Nossas propriedades são menores. Somos grandes exportadores do fumo, porque recebemos a matéria prima do Rio Grande do Sul, e aqui nós processamos.
Quando se falou em micro e pequenos empresários, houve um
“brilho nos olhos”, como uma saída econômica. O senhor visualiza uma
concorrência entre a microempresa (que tem mais facilidades de impostos
etc.) e a grande empresa? Não se cria uma sobrecarga de tributação nas
grandes empresas?
Nosso Estado é favorável ao andamento das microempresas. Elas
não se afetam tanto com as grandes crises pela sua estrutura, uma vez
que quase não exportam, tem menos empregados etc. Porém as políticas sobre o andamento dos empreendimentos acabam por favorecer a
estagnação das microempresas. Se a microempresa avança, começa a ter
maiores tributos e burocracias. Por isso preferem ficar onde estão, ou
então abrem outras microempresas. O empregado negligente também
se beneficia com a legislação do trabalho. Há quem “crie caso” para ser
despedido e receber os benefícios.
O custo desse desenvolvimento é a precarização do trabalho: os
danos corporais, terceirização, desresponsabilização social e ecológica,
o colapso da previdência. E quem paga a conta é o trabalhador. O que
o professor tem a dizer sobre essa questão?
O maior custo é o emprego. As políticas do governo e a legislação fornecem boas condições de trabalho. Por isso é importante que se
142
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Semana Teológica
favoreça a terceirização: que a empresa se preocupe com seus objetivos
finalísticos, com aquilo que é o seu específico. Diante disso é preciso
haver alterações na legislação, que é antiga e acaba não acompanhando
o crescimento e as mudanças na configuração da economia.
Como o senhor percebe a participação da juventude no mercado
de trabalho? Ela tem apresentado a qualificação necessária? Quem está
concluindo a universidade tem encontrado fácil acesso ao mercado?
Há um problema: não há áreas que aceitem funcionários sem qualificação profissional. Um dos recursos para ajudar nessa questão seriam
as aulas profissionalizantes, ao lado das aulas normais. Empresas com
programas de recrutamento, programas que viabilizem a contratação de
recém-formados.
Prof. Glauco, o senhor afirmou que hoje em Santa Catarina o
interior está se urbanizando. Isso significa que, no panorama estadual,
o êxodo rural tem diminuído? Se diminuiu, por quê?
Vejamos o êxodo rural: porque tem diminuído tanto? As condições
do campo são melhores: estradas, acessos asfálticos, escolas, faculdades.
Os investimentos vão um pouco para o interior. Se tivéssemos mais
investimentos, com aeroportos, estradas decentes etc, a população do
campo aumentaria. Com uma logística que custa muito: gastos de envio,
transportes e tudo o mais, as coisas demoram mais, e consequentemente
saem mais caro. Na área da educação fundamental e educação profissional
o quadro é ruim, o professor não é valorizado. Falamos de crescimento
nas escolas, mas a educação é de péssima qualidade.
IV conferência: Economia de comunhão
Conferencistas: Empresário Sergio Pina
Professor Mauricio Serafim – UDESC
Ana Fatima Athias – Mov. Focolari
Empresária Milena Cordova
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
143
Teologia, economia e ecologia
V conferência – aspectos da
Economia catarinense
Conferencista: Debatedor: Relatores: Prof. Armando Lisboa / UFSC
Jornalista Estela Benetti
Nicanor Alves de Lima
e Emerson Henrique Citadin.
Falar numa “economia catarinense” pode ser um grande equívoco,
uma ilusão. Ao olhar para os estados vizinhos, Paraná e Rio Grande do
Sul, vê-se uma atividade econômica fortemente concentrada em pólos:
Curitiba (Ponta Grossa); Porto Alegre (Caxias). O mesmo não ocorre
em Santa Catarina. Em nosso Estado a economia está voltada para polos
regionais, com suas respectivas peculiaridades: metalurgia (Joinville –
Jaraguá), têxtil (Vale do Itajaí), moveleira (Planalto Norte), agroindústria
(Oeste – Meio Oeste), cerâmica (Sul), prestação de serviços, turismo e
tecnologia (Florianópolis). Essa é a característica de Santa Catarina:
somos mais distributivos do que os Estados vizinhos. Uma economia de
várias “Catarinas”, regiões relativamente independentes.
Essa gama distributiva deve-se ao estilo de nossa imigração, no
caso, europeia. O dinamismo de nossos imigrantes possibilitou a pulsão
e diversificação da economia. No entanto, o preço foi a fragmentação
cultural e regional. Não é observável em Santa Catarina uma economia
que vise à unidade produtiva.
Entretanto, o nosso Estado é marcado pelo macro-processo econômico. A macro esfera intervém aqui. É o que presenciamos, sobretudo,
em três lugares: a desapropriação de campesinos em Imbituba, onde
ocorreu a interferência e a agressão policial, envolvendo a Votorantim.
Outro caso, oportuno de ser lembrado, é a instalação da mina de fosfato,
em Anitápolis, e seu possível impacto ambiental. E, mais próximo de
nossa realidade, o projeto de construção de um estaleiro na baía norte
da ilha de Santa Catarina, pelo grupo econômico de Eike Batista. Para
tanto, medidas públicas nacionais e estaduais precisam ser tomadas! No
passado, assistimos à construção de uma ferrovia que originou a revolta
do Contestado. A empresa Brazil Railway Company, de propriedade
do estadunidense Percival Farquha, tinha o objetivo de construir uma
ferrovia e, ao mesmo tempo, reivindicava a aquisição e exploração das
terras vizinhas.
144
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Semana Teológica
Temos vantagens, mas não somos um modelo próprio. O mosaico
econômico catarinense é real, mas não podemos acreditar que formamos
uma economia própria diante da grande economia nacional. Quando se
fala em “economia catarinense”, ocultam-se esses vínculos mais amplos,
enfocando apenas os elementos nossos (provincianos), e invisibilizando
esse jogo maior, dentro da perspectiva de nação, a que estamos ligados.
As contradições nacionais estão presentes aqui, e “Santa” Catarina não
é tão santa assim.
Um sonho: nossas dificuldades locais não devem impedir-nos
de desejar um projeto de economia regional. Por isso, devemos ter a
coragem de buscar uma integração estadual em vista da esfera nacional.
No entanto, no momento presente, devemos ser realistas, pois as macrodinâmicas capitalistas são imperantes em nossas perspectivas econômicas. Em virtude dessa regionalidade, o Estado carece de personalidades
políticas, de lideranças com projeção nacional: não temos representantes
com força expressiva.
Essa ilusão de que a diversidade configura um modelo próprio,
tem-nos impedido de pensar o Brasil. Ficamos presos ao local. Desse
modo, não conseguimos pensar os grandes projetos. Acreditamos possuir um modelo próprio (regionalidade), mais equilibrado; mas isso nos
debilita para enfrentar os verdadeiros problemas. Em Santa Catarina não
temos uma percepção de conjunto, e exogenamente somos conduzidos às
praticas governamentais federais. É um consenso de quem trabalha nessa
área: devemos sair dessa discussão de um “modelo catarinense”. Não há
um modelo catarinense, o que existe é uma variedade regional.
Intervenção de Stela Benetti
A economia catarinense é um modelo dividido desde a colonização. Mas é verdade que vivenciamos uma cultura de apreço à beleza e
educação, um protótipo europeu que herdamos de nossos pais. Nossas
indústrias oferecem razoáveis opções de trabalho, mas ao custo de baixos
salários, talvez por sermos dependentes de uma iniciativa federal. Por
isso, entende-se que, no funcionalismo público, ocorre o contrário: bons
salários e estabilidade de emprego. Outro aspecto curioso é o fenômeno
da sazonalidade dos empregos em nossas áreas litorâneas. Muitas cidades
de beira mar gerenciam seus capitais em torno dos ciclos turísticos.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
145
Teologia, economia e ecologia
O caso do Grupo Votorantin e a instalação da mina de fosfato, na
região de Anitápolis, têm como objetivo a administração de recursos, que
possibilitem a geração de empregos diretos e indiretos; mas a fosfateira
pode ocasionar a poluição daquela região. O possível estaleiro de Eike
Batista talvez seja instalado no estado do Rio de Janeiro. A intenção é a
construção de um estaleiro que obedeça às ordens ambientais, respeitando
toda a geografia e ecossistema local. O interesse na região, por parte do
grupo empresarial de Eike Batista, seria por causa da qualificação de
nossa gente nas áreas de informatização de software, a tradição no ramo
metal-mecânico, bem como a especialização da construção naval adquirida na região de Itajaí. A perspectiva de produção seria de seis navios por
ano; e as dependências, do porto desse estaleiro, seriam utilizadas para o
atracamento de navios, em vista de um turismo marítimo regional.
A economia catarinense, para melhorar, precisa de investimentos
na educação e, consequentemente, uma qualificação dos professores.
Existem dificuldades no sistema educacional que precisam ser sanadas.
Para tanto, requerem-se políticas de incentivo que valorizem o rendimento
e o ingresso dos estudantes no campo universitário, a exemplo do sistema
ProUni (Programa Universidade para Todos).
Perguntas dos participantes
Pe. Valter Maurício Goedert – As empresas devem respeitar as
normas ambientais, sim. Porém, não existe indústria que não polua. Se
ficarmos numa posição radical, nunca construiremos nada. O que não se
pode esquecer é a preocupação com os impactos no meio ambiente. As
grandes empresas devem se comprometer em afetar o menos possível.
Não podemos ter uma posição radical, é necessário um jogo de cintura.
Santa Catarina tem a característica da regionalidade. O que pode ser
negativo, quando as regiões não se unem por um motivo maior.
Prof. Armando – Não sou contra o Projeto do Estaleiro. Quero
chamar a atenção sobre a existência de um bastidor nacional. Não é uma
articulação casual, há um jogo por trás. Do mesmo modo, não se pode
negar o impacto para a região. As mudanças afetarão radicalmente as
condições de vida da região. Temos que pensar além da condição econômica. Esse é o melhor lugar? E por trás disso: em que projeto de nação
apostamos, com esse modelo?
146
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Semana Teológica
Pergunta: O modelo político catarinense de Secretarias Regionais
não seria um empecilho à unidade política estadual? O caminho não seria
uma maior centralização?
Stela Benetti: Não acredito no modelo de descentralização como
se dá aqui. O grande problema é o aumento dos gastos com o funcionalismo público. Perde-se dinheiro que se deveria aplicar em outras áreas
(educação e saúde). Algo positivo das secretarias é a descentralização
de algumas decisões.Seria interessante uma campanha, nos meios de
comunicação, a fim de unir os catarinenses.
Ao mesmo tempo em que a economia é descentralizada, outros
aspectos não o são, como as Universidades públicas. Somente agora, 50
anos após sua fundação, é que a Universidade Federal de Santa Catarina,
UFSC, avança para outras regiões.
Pe. Roque Favarin: A provocação do Prof. Armando coloca em
xeque o modelo de desenvolvimento atual e quem o pratica. Acreditase que “desenvolver” é sinônimo de uma indústria que se instala e gera
empregos. Não se pensa nas consequências. Isso leva a pensar: o que é
“desenvolvimento”? Vai beneficiar a quem? O desenvolvimento deve
ser sempre da escala humana, sendo que as necessidades locais devem
exigir os investimentos. Como criar uma nova sociedade? Como fazer
as pessoas terem mais voz? Implicado nisso está o modo como nós consumimos as coisas. É o consumo que sustenta os grandes projetos.
Prof. Armando: Caso houvesse uma real descentralização, as
decisões sobre esses grandes projetos deveriam passar pelas comunidades
locais, segundo o princípio da subsidiariedade. Para o corpo humano
a obesidade é um problema, apenas cresce a barriga. O que estamos
construindo não é para o corpo social, mas apenas para crescer a barriga.
Quer dizer, os grandes projetos não são para resolver a pobreza, apenas
para continuar enriquecendo a poucos.
Ademar: A indústria do meio ambiente é uma das que mais crescem no Estado. Como você vê a indústria ambiental?
Prof. Armando: Ecologicamente não somos uma “ilha”, estamos
vinculados com a América Latina e com o mundo. O que está aqui é a
macro-dinâmica. As queimadas do cerrado, no norte do país, influenciam
na seca do oeste catarinense. O que me espanta é a não veiculação de muitas informações, sobretudo das queimadas. No belo modelo catarinense,
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
147
Teologia, economia e ecologia
o grupo que domina a comunicação em Santa Catarina é um monopólio
comunicativo, a RBS, governada por um gaúcho.
Fabiana: Sofremos um problema na educação, cada vez mais
voltada para a técnica. As pessoas são ensinadas a apertar botões e não
conseguem discutir política. Como estamos discutindo a questão climática? As mudanças aqui? Como pensamos o modelo social?
Prof. Stela: Os professores têm a liberdade de ensinar além
da matéria. O que falta é o tempo para preparar as aulas, como
também a remuneração adequada. Os professores deveriam
orientar melhor os alunos.
Prof. Dietrich: Que modelo de sociedade a gente quer? Na imprensa aparecem mais as vozes dos grandes interesses do que as das
vítimas. Quem são as vítimas desse modelo de exploração? As humanas
e ambientais. São essas vozes que devemos fazer ecoar.
Prof. Armando: Concordo em parte com essa afirmação. Ao
falar de “vitimização” podemos cair em erro, marcando uma posição
polarizada. Todos somos autores (exploradores) e vítimas; somos vítimas
e vitimadores.
VI Conferencia: A Teologia face
à Economia e seus desafios
Conferencista: Debatedor: Relatores:
Jung Mo Sung
Pastor Renato Becker/IECLB – Joinville
Armando Rafael Acquaroli
e Claudemir Serafim
Primeiramente, é mister situar a reflexão da economia no âmbito
da teologia. A economia é uma face da Doutrina Social da Igreja, que
é uma parte da Moral Social. Esta, enquanto disciplina, ainda é muito
recente, dado que o primeiro livro que a aborda é de 1976. Não obstante,
a separação entre teologia moral e sistemática se dá a partir de Kant.
“Seguir Jesus define o cristão. Refletir sobre essa experiência é o
tema central da teologia”, diz Gutierrez. Teologia é a reflexão crítica sobre
os dados da fé. Hoje há um conflito entre estudantes que vêm em busca
da teologia a partir de uma experiência de fé, e outros, mais interessados
numa reflexão sistemática que se pretende como ciência.
148
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Semana Teológica
Ser cristão significa seguir os passos de Jesus, o que implica um
contexto de caminho. Ora, o caminho que trilhamos é perpassado de
modernidade. De que modo? Antes de qualquer outra característica, é
própria do mundo moderno a questão econômica. Caímos na tentação de
achar que a modernidade é o que os modernos comentam a seu respeito:
oposição entre fé e razão; religião é coisa de crianças, mulheres e pobres;
oposição entre secular e religioso, isto é, a Igreja não tem que discutir
questões políticas. O progresso é a boa nova do mercado. A modernidade
liberal é o primeiro movimento que propõe uma boa nova não religiosa.
Aquilo que a religião promete para depois da morte, o capitalismo liberal
o realiza agora. Portanto, desloca-se o paraíso.
As três formas de morte que mais se temem são estas: fome,
doença, guerra. No entanto, tudo isso é solucionado pelo capitalismo. A
fome é resolvida com o crescimento econômico. As doenças são curadas
com o progresso da medicina e dos remédios. E as guerras são solucionadas com o movimento do capital. Por conseguinte, a modernidade
capitalista tira o paraíso do céu e o foca no mundo, substituindo a Igreja
pelo Mercado.
Afinal, qual é a missão da Igreja? Santo Tomás de Aquino diz que
sabemos mais de Deus o que Ele não é, do que o que Ele é. O que precisamos é desmascarar a idolatria, discernindo os falsos deuses modernos
e apontando o Deus verdadeiro.
A primeira tentação idolátrica é pensar que o deus que se tem na
cabeça é o Deus verdadeiro. Weber, o filósofo do desencantamento, diz
que, assim como os antigos da Grécia ofereciam sacrifícios aos seus
deuses, hoje as pessoas continuam oferecendo-os a deuses impessoais.
Isso significa que a razão moderna tenta racionalizar o irracional.
Não é verdade que o mundo moderno perdeu o critério da verdade. Mamon é o critério universal abstrato, o dinheiro, os números, as
porcentagens, as medidas, os lucros... Precisamos contrapor a isso um
critério efetivo: Deus, que é amor/solidariedade e relação de comunidade.
Portanto, seguir Jesus é possibilitar que as pessoas experimentem Deus
na relação concreta de comunidade.
A razão moderna idolatrou o deus dinheiro e com ele racionalizou o
irracional. Matar milhões de pessoas para acumular riquezas é irracional.
Mas, para tudo isso, buscou-se dar uma razão (razão instrumental).
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
149
Teologia, economia e ecologia
Pastor Renato Becker – IECLB
Ninguém pode servir a dois senhores: com efeito, ou odiará um e amará
o outro, ou se apegará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a
Deus e ao Dinheiro (Lc 16,13).
O reformador Martim Lutero tinha uma visão muito clara da realidade social de seu tempo. As grandes casas bancárias lideradas pela
família “Függer” (Augsburg – Alemanha) financiavam os príncipes
europeus e também as “grandes excursões” que ousavam atravessar os
mares em busca da conquista dos novos tesouros, como o ouro dos Incas
e dos Astecas. Lutero criticou a usura do comércio que se aninhava no
“pré-capitalismo”. Cabe frisar que a usura era proibida pela lei canônica,
mas a conjuntura da época facilitava essa prática que até teve bênção
relativa da Igreja.
A “ética empresarial” de Lutero transparece em muitos dos seus
escritos. Para ele, os juros excessivos eram roubo. Ele entendia que a
vontade de Deus implicava o perdão das dívidas dos pobres e necessitados; a ajuda gratuita para a resolução dos seus problemas financeiros; o
empréstimo de dinheiro somente se a quantia fosse exatamente a necessária para a resolução das dificuldades. Os juros cobrados nunca deveriam
ser maiores do que 6%. Claro que ninguém observava essa máxima. Os
donos do dinheiro exploravam sempre de novo os empobrecidos, e Lutero
entendia isso como “prática ímpia de idolatria”. Para ele, o credor era
um servo do “Deus Dinheiro” e ponto final.
É interessante notar que Lutero converteu uma questão ética sobre
Economia em questão doutrinária, quando se pôs a explicar o Primeiro
Mandamento. O que quero dizer com isso? “Eu sou o Senhor, seu Deus.
Você não deve ter outros deuses além de mim” (Ex 20,2-3). É exatamente
neste Mandamento que, na negação, se percebe uma clara oposição a
todos os conteúdos que compõem a vida e que podem vir a ser adorados,
reverenciados como “outros deuses”. É aqui que, num lugar de destaque,
se mostra o “Deus Dinheiro”, o maior ídolo da terra.
Lutero qualificou o comportamento econômico vigente de sua
época como idolátrico. Ele entendia o “apego ao dinheiro” como o mais
perigoso ídolo no lugar que, por natureza, era de Deus. Cabe frisar que
os escritos mais importantes de Lutero são estruturados com base em
três pensamentos neo-testamentários:
150
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Semana Teológica
1. É preferível dar. A proposta que Deus dá para a Comunidade
é a “doação”.
2. É preferível emprestar a pedir emprestado, e isso, sem taxa de
juros.
3. É preferível dar o casaco àquele que pede nossa manta.
Assim Martim Lutero faz chegar a “Teologia da Justificação por
Graça e fé” (somente pela graça, somente pela fé) às pessoas de senso
comum. Se Deus nos dá tudo, então não nos cabe reter o que está dado
para todos.
VII conferência: Crítica Teológica
ao neoliberalismo
Conferencista: Jung Mo Sung
Debatedor: Vitor Galdino Feller/ITESC
Relatores: Marcelo Buss e Ederson Iarochevski
VIII conferencia: Implicações Éticas
sobre a Economia
Conferencista: Jung Mo Sung
Conclusões finais: Pe. Vilmar A. Vicente
Relatores: Fernando Cargnin e Tiago Tomás
Encerrando as atividades da Semana Teológica, em sua última
sessão, o professor Mo Sung refletiu sobre as implicações éticas da reflexão teológica sobre a economia. Apontou alguns marcos categoriais,
o modo de pensar a prática de como podemos influir, fazer a diferença
na questão econômica. Eis os eixos-temáticos: complexidade, utopias e
limites, níveis de ética, e o drama existencial e espiritual de quem luta
e não vê mudanças.
Para se poder relacionar teologia e economia, precisamos sair de
uma visão analítica, onde se separam as coisas. Na visão analítica, dividese o problema no máximo número de partes possíveis, analisa-se cada
uma rigorosamente, e depois se ajuntam. A sociedade é uma junção de
sistemas: economia, política, cultura e religião. São coisas diferentes. A
partir daí estamos acostumados a escutar que teólogo não dá palpite sobre
economia e que economia não tem nada haver com religião. É assim que
aprendemos a pensar, mas na vida não é assim. Nós precisamos de uma
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
151
Teologia, economia e ecologia
teoria que seja capaz de dar conta disso, e a teoria que vou propor para
vocês começarem a pensar é o “conceito de complexidade”.
Já ouvimos falar muito em “complexidade”, e ela virou a palavra
da moda. Na década de 80, quando não se sabia qual era o problema, diziase que era falta de “conscientização”. Quando não se sabia o que fazer,
diziam: vamos “conscientizar”. Hoje, quando não se sabe explicar alguma
coisa, diz-se: “Ah, isso é complexo”. Mas, o que é “complexo”?
O termo vem da palavra latina “complexus” e significa “o que
foi tecido junto”3. Há, portanto, “complexidade”, quando elementos
diferentes são inseparáveis constitutivos do todo (como o econômico,
político, sociológico, psicológico, afetivo, mitológico, o que, segundo
o pensamento de Edgar Morin, é a religião). Tudo está misturado. Há
especificidade em cada um, mas a articulação é inseparável. Há um
tecido interdependente, interativo, inter-retroativo entre o objeto do
conhecimento e o seu contexto, as partes do todo, o todo e as partes e
as partes em si mesmas. O pensamento analítico privilegia as partes, o
pensamento holístico privilegia o todo; e o pensamento hologramático
propõe pensar a relação entre as partes e o todo de um modo diferente.
As partes estão no todo, só que o todo também está nas partes. Como?
Isso parece uma contradição lógica. Explico: vejamos o exemplo de uma
célula. Ela é uma parte do corpo humano, só que essa célula contém todas
as informações do corpo. Esse exemplo esclarece uma nova forma de
pensar a realidade.
Desse modo entendemos que a economia é uma parte da sociedade,
mas todos os aspectos da sociedade estão na economia. Portanto, na economia há questões políticas, jurídicas, ecológicas e também teológicas.
A teologia é uma parte do pensamento e a religião é uma parte da sociedade, e percebemos que questões econômicas estão na religião. Aqui há
também questões políticas, psicológicas e sociológicas etc. Não dá para
refletir as partes separadamente, se uma implica na outra. Um exemplo
claro disso, e que é muito antigo, é o caso dos dez mandamentos.
Os mandamentos têm como centro o quinto, “não matarás”, que
por sua vez vem casado com o quarto, “honrar pai e mãe” e com o sexto,
“não cometerás adultério”. Essa ligação nos prova a sua inter-relação: não
podemos analisá-los como blocos separados. Dessarte, quando falamos
em teologia e economia, precisamos lembrar que a teologia não pode
3
152
Definição de Edgar Morin, grande sistematizador dessa teoria.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Semana Teológica
perder a especificidade de sua perspectiva teológica, mas também não
pode viver como um fio isolado do mundo. Esse fio (teologia) se articula
na tessitura com os outros aspectos, e isso é uma das coisas que se pode
aprender com esta leitura conjugada dos dez mandamentos.
O segundo eixo-temático que nos leva a refletir sobre as implicações éticas da reflexão teológica sobre economia é a questão da utopia e
da ação humana. Aqui consideramos um problema sério. Falar de utopia
gera mais polêmica do que falar nos dez mandamentos, pois utopia muitas
vezes é entendida como algo impossível de se realizar; aquilo que ainda
não tem lugar na realidade etc. Contudo, neste caminho que estamos
percorrendo, “utopia” vem a ser um horizonte de perfeição. Por exemplo: um engenheiro, quando quer fabricar um motor econômico, qual
é o objetivo final que ele quer alcançar? Um motor que não precise de
combustível! E ele tenta construir motores que precisem cada vez menos
de combustível. É a ideia da perfeição que o faz continuar tentando.
Assim sendo, a utopia vem ser um horizonte de perfeição que
nos dá sentido para compreender e caminhar. Se eu tenho uma utopia,
eu olho para a realidade de um modo diferente: a utopia torna-se um
critério para julgar o presente, olhando para o futuro. Cada utopia dá
sentido para o presente e um rumo para as ações. Por isso entendemos
que a “utopia do Reino de Deus” é um horizonte para nossa vida, pois
todos queremos um mundo mais justo, fraterno e igualitário. O grande
problema das nossas lutas é que medimos as nossas conquistas não a
partir de onde saímos, mas a partir do horizonte, que nunca chega. É
preciso, portanto, que haja uma mudança de mentalidade nas reflexões
e no modo de conduzir as nossas ações.
Para entender racionalmente isso, percebemos quatro tipos de
limites que nos rodeiam e que de certa forma vão nos intimidando frente
às ações. O limite técnico-operacional, por exemplo: “eu não sei falar
russo, mas posso aprender”. Nós ainda não temos energia elétrica sem
fio, mas podemos ter, tecnicamente falando não é impossível. Quem
poderia imaginar que teríamos internet sem fio, onde em qualquer canto
e lugar há pessoas se conectando?
Existe outro tipo de limite que chamamos de “limite sistêmico”.
Numa sociedade escravagista, é impossível que todos sejam livres. Portanto, para que todos sejam livres, é preciso superar o sistema. Existe
também o limite humano-histórico, por exemplo: “eu não posso voar
sem equipamento, eu não posso viver eternamente, eu não posso estar
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
153
Teologia, economia e ecologia
em três lugares ao mesmo tempo”. O que nós não gostamos, quando
falamos de utopia, é isso. Certas coisas nós mudamos com a evolução,
outras coisas nós não conseguimos mudar. Só que entre o limite lógico e
o limite da condição humana existe um espaço, e esse espaço é o espaço
do desejo que transcende a nossa possibilidade. Nós somos capazes de
desejar o impossível, seja para o mal, seja para o bem. O ser humano
é a única espécie que é capaz de desejar o impossível, pensar além do
biológico. É por isso que o ser humano pode pensar em Deus, pode
pensar na vida eterna.
Se conseguirmos perceber esses limites, ao discutir a partir da
perspectiva ético-teológica no mundo, é preciso perceber que há níveis
diferentes da ética na vida prática. Existe o nível dos princípios éticos
universais, como por exemplo: “é preciso defender a vida”. Mas a vida
não se defende assim. De fato, para defender a vida, a pessoa precisa ter
diretrizes: defender a vida de quem? que tipo de vida? Consequentemente,
são necessárias estratégias éticas, o que é o segundo nível na vida prática:
temos recursos escassos, temos conhecimento escasso, tempo escasso,
dinheiro escasso, pessoas em número escasso. Fazem-se necessários
uma organização e um planejamento de ações. Dentro dessas estratégias éticas, precisamos descobrir quais os tipos de técnicas que temos à
disposição. É o que chamamos de discernimento ético – terceiro nível
da ética na vida prática.
Através desses níveis da ética na vida prática, vamos percebendo
que são muitos os olhares e caminhos que nos levam a determinada conquista. Entretanto, nem todos esses caminhos nos apontam seguranças.
Diante da reflexão que aqui nos propomos, percebemos que existem modos diferentes de se administrar o capitalismo. E, se queremos mudanças
na sociedade, precisamos começar por nós mesmos, pelos nossos desejos
e nossas conquistas, nossas utopias e lutas diárias. “Não há esperança
se não houver dor”!
O reinado de Deus não é “uma nova sociedade”, pois ele não
acontece se não somos nós que o construímos. Deus, que é Amor, “reina”,
quando nós praticamos o amor solidário e a luta pela justiça nos faz tornar
mais humanos. Eis a nossa vocação: tornar-nos mais humanos, porque
nós amamos e somos amados por pessoas que se descobrem humanas
nessa presença da Igreja, dos cristãos e das pessoas de reta vontade.
154
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
VERBUM DOMINI
Exortação Apostólica pós-Sinodal
do Papa Bento XVI
Entrevista com Johan Konings*
*
O entrevistado é padre jesuíta, Doutor em Teologia pela Universidade de Louvain e
professor na Faculdade de Teologia da Companhia de Jesus, de Belo Horizonte, autor
de muitos livros e artigos na área bíblica. Ele foi um dos dois exegetas brasileiros que
participaram como peritos no Sínodo de 2008.
Entrevista Publicada em IHU (Unisinos), 19/12/2010. Disponível em: <http://www.
ihu.unisinos.br/index.php?option=com_entrevistas&Itemid=29&task=entrevista&i
d=39397>.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011, p. 155-164.
Verbum Domini: Exortação Apostólica pós-Sinodal do Papa Bento XVI
Como o senhor analisa a recente Exortação Apostólica Verbum
Domini, a partir dos debates e das questões destacadas no Sínodo,
em 2008?
O Documento representa com bastante fidelidade o que foi dito
no Sínodo, tanto nos relatórios como nas Proposições aprovadas pela
Assembleia. Evidentemente, tudo passou por um amplo processo de
redação e de enriquecimento, sobretudo mediante citações de documentos anteriores do Magistério, dos Santos Padres, do próprio Bento XVI.
Como todos esses elementos estão identificados nas referências de fonte
(nas notas de rodapé), fica fácil reconhecer os acentos próprios que o
Papa houve por bem reforçar, como sejam, principalmente: o encontro
pessoal com Cristo, a questão do secularismo e a dimensão da fé, ou, mais
exatamente, a circularidade dos métodos histórico-crítico e teológico no
estudo bíblico. E também a liturgia e a lectio divina.
A Exortação também se apresenta como um aprofundamento da
Constituição Dei Verbum, do Concílio Vaticano II. Em geral, quais
são as ressonâncias ou os distanciamentos entre esses dois documentos?
Como o foi o Sínodo, a Exortação é uma reflexão a partir da Dei
Verbum, e também da anterior Encíclica Divino Afflante Spiritu de Pio
XII, 1943, e do posterior documento da Comissão Bíblica de 1993. À
primeira vista, não aparecem contradições. Talvez os teólogos mais críticos descobrirão, com o tempo, diferenças de acento, mas não parece
que algo de essencial esteja em jogo. Poderíamos dizer que Pio XII, o
Concílio e a Comissão Bíblica estavam mais preocupados em legitimar
o estudo histórico-crítico e literário, enquanto a Exortação, refletindo
certamente a preocupação do próprio Papa, procura fomentar a dimensão teológico-espiritual da leitura bíblica como mensagem para a vida
pessoal e comunitária hoje, sem abrir mão do estudo científico do sentido
primeiro, sem o qual o sentido de atualidade não teria base.
O ponto central do Sínodo foi a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja. Em traços gerais, como a Exortação final interpreta
e atualiza o conceito “Palavra de Deus”?
O que, para o teólogo, mais salta à vista é que o Documento
fala da Palavra de Deus como um “acontecer” e como um “encontro“.
Costumeiramente, ao ouvir o termo “Palavra de Deus”, pensamos quase
156
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Entrevista com Johan Konings
automaticamente num livro, a Bíblia; e quando se diz “o Verbo de Deus”,
pensamos na segunda pessoa da Santíssima Trindade, Deus Filho. Claro,
tudo isso está certo, mas o Documento quer abrir nosso olhar e nosso
modo de pensar para o ato, o “evento” de comunicação de si mesmo que
Deus realiza para conosco, sua autocomunicação ou revelação. Esta é
uma realidade maior que a Bíblia. A Bíblia faz parte da palavra de Deus
e a contém de modo totalmente singular, mas não é pura e simplesmente
“a Palavra de Deus”. Por outro lado, o evangelista João diz que Jesus
é a Palavra de Deus em pessoa (cf o evangelho de João, especialmente
Jo 1,14 e 1,16-18). E devemos completar isso pelo que diz o início da
Carta aos Hebreus (Hb 1,1-2): “Muitas vezes e de muitos modos, Deus
falou outrora aos nossos pais, pelos profetas. Nestes dias, que são os
últimos, falou-nos por meio do Filho...”.
Deus não é um objeto sobre o qual possamos falar como se estivesse disponível à nossa observação e elucubração. “Ninguém jamais
viu Deus” (Jo 1,18; também 6,46; 1ª Carta de João 4,12). Mas “o Unigênito, que é Deus e está junto do seio do Pai, este no-lo deu a conhecer”
(Jo 1,18). E esse “dar a conhecer” não é um ensinamento em forma de
conceitos, dogmas ou teses, mas uma história que se narra ou se expõe,
como diz o texto original de João 1,18 (exegêsato, em grego). É a história
de Jesus de Nazaré. Ao narrar-se o que aconteceu em Jesus de Nazaré,
conhecemos a Deus, que ninguém jamais viu. Na hora de concluir sua
história na terra, Jesus dirá: “Quem me viu, viu o Pai” (Jo 14,9), pois
naquela hora ele vai dar sua vida por amor até o fim, e assim ele mostra
Deus, pois “Deus é amor” (1Jo 4,8.16).
Esse acontecer, em que Deus se dá a conhecer, só chega a seu
pleno efeito se se torna um encontro pessoal com aquele que é sua Palavra, Jesus de Nazaré. E para isso serve como base a narrativa de sua
história, enraizada na história de seu Povo, respectivamente no Novo
e no Antigo Testamento. Mas para que o encontro se realize, não basta
ler essas histórias. Precisa do ambiente da Tradição viva que, animada
pelo Espírito de Cristo, o torna presente a nós hoje, na proclamação, na
memória celebrada e na vivência de sua prática de vida.
Além de ver a Palavra de Deus como evento, como acontecer, o
Documento acentua também fortemente a unidade da Palavra de Deus,
o que pode até ser uma chave de leitura. Pois exatamente a unidade da
Palavra em suas diversas manifestações, como a descreve o conceito
analógico que a primeira parte sublinha, permite ver a homogeneidade
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
157
Verbum Domini: Exortação Apostólica pós-Sinodal do Papa Bento XVI
entre o sentido histórico de sua manifestação como registrada nas Escrituras, e o sentido atual hermeneuticamente desdobrado. É sempre a
mesma Palavra que fala e nos convoca a dialogar.
O documento também dedica um capítulo à parte para refletir sobre
“a interpretação da Sagrada Escritura na Igreja” (n. 29). Como o
senhor analisa a hermenêutica proposta pela Exortação?
O texto fica perto dos ensinamentos de Pio XII (Divino afflante
Spiritu) e do Concílio Vaticano II (Dei Verbum), completados pelo
documento da Pontifícia Comissão Bíblica de 1993. O acento está no
caráter eclesial. A oposição Tradição/Escritura parece superada, pois a
Escritura é vista como parte da Tradição viva, mais especificamente,
como seu momento referencial. Em torno disso, porém, há muito que
esclarecer, sobretudo quanto à referência primordial em Cristo, que num
certo sentido faz, do Novo, o “primeiro” Testamento. E também, quanto
à relação dialética entre Tradição e Escritura, pois foi a própria Tradição
viva que estabeleceu em que consiste o tesouro escriturístico...
O texto vê num mesmo olhar a referência a Cristo e sua comunidade, que, guiada pelo mesmo Espírito que é o do Senhor, encontra na
Escritura a Palavra de Deus que inspira a sua vida. Ora, por trás disso
está um processo de “abertura do texto”, e nesta abertura a exegese
histórico-literária e a hermenêutica, ou interpretação atualizante, devem
dar-se as mãos.
O termo “hermenêutica”, no sentido positivo, não é muito comum
em documentos do Magistério supremo, mas a realidade que ele aponta
não é nova. A exegese tradicional sempre privilegiou o sentido espiritual,
e foi só no século XX que a Igreja católica deu um lugar oficial – e ainda
assim controvertido – à exegese histórico-crítica. No futuro deverá ser
aprimorada a articulação entre a exegese histórico-crítica, que investiga
o que o autor quis dizer aos destinatários primeiros, e a hermenêutica,
que estuda a nova abertura de sentido para cada geração, já desde o momento em que os escritos foram canonizados e interpretados em vista de
seu conjunto (leitura canônica) e em vista da fé da Igreja (analogia da
fé). Pouco importa que essa “leitura aberta” se chame “sentido pleno”
ou “espiritual” (suscitado pelo Espírito), sempre deverá ser homogênea
com o sentido original, histórico, pois senão a analogia fidei perderia
seu elo primeiro.
158
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Entrevista com Johan Konings
É no contexto dessas questões que se valoriza a preocupação em
manter unidos os dois níveis da leitura bíblica: o nível histórico-crítico
e o nível teológico (n. 34). Um não pode excluir o outro, nem devem
os dois ficar justapostos, o que provocaria um dualismo insustentável
(n. 35). Acertadamente, o texto relaciona isso com a problemática, mais
ampla, de razão e fé (n. 36). É na perspectiva do sentido ampliado que
se considera a unidade do Antigo e do Novo Testamento e a superação
da “letra” (nn. 37-41). A crítica ao fundamentalismo cabe bem no quadro do Documento (n. 44), pois este, como vimos, valoriza a semântica
aberta, o que o fundamentalismo nega. E é valioso o parágrafo sobre
a vida cristã, especialmente dos santos, como “hermenêutica viva” da
Palavra de Deus (n. 49).
Outra questão levantada pela Exortação é a liturgia, já que “na ação
litúrgica, a Palavra de Deus […] [se] torna operante no coração dos
fiéis” (n. 52). À luz do documento, como se dá essa relação entre
Palavra e liturgia? Como podemos repensar essa relação na vida
da Igreja, diante dos desafios da contemporaneidade?
Considerando a Igreja como “casa da Palavra”, pensa-se antes de
tudo na Liturgia, âmbito privilegiado onde Deus fala hoje ao seu povo
que escuta e responde. Cada ação litúrgica é impregnada da S. Escritura.
O próprio Cristo está presente na sua palavra: é Ele que fala quando é
lida na Igreja a S. Escritura. A Palavra de Deus permanece viva e eficaz
pela ação do Espírito Santo, que sugere a cada um tudo aquilo que, na
proclamação da Palavra, é dito para a assembleia inteira. E, enquanto
reforça a unidade de todos, o Espírito favorece também a diversidade
dos carismas e valoriza a ação multiforme.
Em certo sentido, a hermenêutica da fé relativamente à S. Escritura
deve ter sempre como ponto de referência a liturgia, onde a Palavra de
Deus é celebrada como palavra atual e viva. Dispondo a leitura da Palavra de Deus em torno do centro que é o Mistério Pascal, o ano litúrgico
mostra os mistérios fundamentais da nossa fé.
O texto fala muito do caráter performativo da Palavra na liturgia,
tanto da Eucaristia como dos outros sacramentos. A palavra não só fala,
mas age. Por isso, a liturgia da Palavra é um elemento decisivo em
todos os sacramentos. Não há separação entre o que Deus diz e faz. Na
ação litúrgica, sua Palavra realiza aquilo que diz. O Documento aponta
dois exemplos, o sinal do Pão no capítulo 6º do Evangelho de João e a
história de Emaús, em Lucas 24.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
159
Verbum Domini: Exortação Apostólica pós-Sinodal do Papa Bento XVI
A Palavra de Deus, lida e proclamada na liturgia pela Igreja, conduz ao banquete da graça, a Eucaristia. Palavra e Eucaristia não podem
ser compreendidas uma sem a outra: a Palavra de Deus faz-se carne,
sacramentalmente, no evento eucarístico. A Eucaristia abre-nos à inteligência da S. Escritura, e esta, por sua vez, ilumina e explica o Mistério
eucarístico. Sem o reconhecimento da presença real do Senhor na Eucaristia, permanece incompleta a compreensão da Escritura. Em palavras
mais simples: na proclamação do Evangelho (emoldurado pelas outras
leituras e pelo Salmo Responsorial, que é também Palavra de Deus),
Jesus diz em que consiste o Reino, o Projeto do Pai. E na consagração,
celebramos a memória de como ele colocou isso na prática, dando sua
vida até a morte. Palavra e ação, inseparavelmente unidas. Por isso, a
principal celebração cristã tem a Mesa da Palavra e a Mesa do Pão, e
pede-se que isso transpareça até na disposição arquitetônica, sendo ambas
devidamente acentuadas e visualmente relacionadas entre si.
Tudo isso tem consequências práticas para nossas comunidades: não é normal que – como acontece no Brasil – 70 por cento das
celebrações dominicais são celebrações da Palavra sem a consagração
eucarística. Isso, por falta de presbíteros. Será que não há meio de aliviar essa falta? E tem também consequências para o modo de celebrar
e de assistir. Se a escuta da Palavra e a memória da Ceia da Aliança e
da morte de Jesus constituem uma unidade, será que não deveria haver
um pouco mais de compenetração em nossas eucaristias, músicas mais
profundas, mais verdadeiramente bíblicas, cristológicas e comunitárias,
menos individualismo e vedetismo, menos show? E que dizer das homilias, as quais, exatamente, deveriam mostrar a vinculação entre a palavra
proclamada e o mistério celebrado, para fecundar a nossa vida e missão
no dia a dia, na comunidade e no mundo?
Sobretudo, a Palavra, unida à memória sacramental do gesto, deve
produzir em nós o fruto da caridade, numa forma coerente com nossa
contemporaneidade, inclusive, com suas dimensões políticas e sociais
e – por estarmos falando a universitários – científicas, mediante o saber
responsavelmente assimilado e posto a serviço da humanidade, na qual
a Palavra veio morar, e da criação, que por meio dela veio a ser.
Como já dizia o tema do Sínodo, a Exortação ressalta que a missão
da Igreja é anunciar a palavra de Deus ao mundo. Nesse sentido,
160
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Entrevista com Johan Konings
como podemos compreender o diálogo da Igreja com um mundo
cada vez mais globalizado, multicultural e multirreligioso?
Os primeiros cristãos consideraram o anúncio missionário como
exigência da própria fé, que não pertencia a um âmbito cultural particular,
mas ao da verdade, que diz respeito a todos (cf. Paulo no Areópago, At
17,16-34). Como disse o Papa certo dia, o cristão deve dizer a todos: “O
Deus desconhecido mostrou-se, em pessoa, e agora está aberto o caminho
para Ele. A novidade do anúncio cristão não consiste num pensamento,
mas num fato: Ele revelou-se” (n. 93).
O dom do Espírito nos assimila a Cristo, o Enviado do Pai (Jo
20,21). Devemos descobrir a urgência e também a beleza de anunciar
a Palavra para a vinda do Reino de Deus pregado por Jesus e que é sua
própria pessoa. A luz de Cristo deve iluminar cada âmbito da humanidade, como palavra que desinstala, que chama à conversão e propicia o
encontro com Ele, para que floresça uma humanidade nova.
A globalização, característica da nossa época, permite viver em
contacto mais estreito com pessoas de culturas e religiões diferentes,
oportunidade providencial para promover relações de fraternidade universal e uma mentalidade que veja em Deus o fundamento de todo o
bem, a fonte da vida moral e o sustentáculo do sentido de fraternidade.
Lembre-se a Aliança estabelecida em Noé com toda a humanidade (Gn
9,13-16). Em muitas das grandes tradições religiosas, aparece a ligação
íntima entre a relação com Deus e a ética do amor universal.
Daí o respeito por todas as culturas e religiões que colaboram para
isso, mas também a justa crítica quando isso não acontece – inclusive no
tradicional âmbito cristão. Essa atitude positiva e ao mesmo tempo crítica
se exprime, por exemplo, no parágrafo dedicado ao Islão (n. 118). Os
muçulmanos reconhecem a existência de um único Deus, e sua tradição
contém figuras, símbolos e temas bíblicos. Continue-se, pois, o diálogo
sincero e respeitoso, fazendo votos de que se aprofundem o respeito da
vida como valor fundamental, os direitos do homem e da mulher e a sua
igual dignidade.
Tendo em conta a distinção entre a ordem sociopolítica e a ordem
religiosa, as religiões devem dar a sua contribuição para o bem comum.
Quanto à cultura propriamente, quero apontar três ideias:
1) A tradição admira os artistas “enamorados da beleza”, que se
deixaram inspirar pelos textos sagrados e ajudaram a tornar de
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
161
Verbum Domini: Exortação Apostólica pós-Sinodal do Papa Bento XVI
algum modo perceptível no tempo e no espaço as realidades
invisíveis e eternas.
2) Recomenda-se o uso inteligente dos meios de comunicação
social, bem como a atenção a seu rápido desenvolvimento
e diversos níveis de interação. Há que reconhecer um papel
crescente à internet, que constitui um novo fórum para a voz
do Evangelho. Mas não pode ficar no virtual, deve chegar ao
encontro pessoal. No mundo da internet, deverá sobressair o
rosto de Cristo e ouvir-se a sua voz, porque, “se não há espaço
para Cristo, não há espaço para o homem”.
3) Deus comunica-se numa cultura concreta, assumindo os
códigos nela inscritos. Por outro lado, a Palavra tem caráter
intercultural e deve ser transmitida em culturas diferentes –
evangelização das culturas –, transfigurando-as a partir de
dentro. Mas a inculturação do Evangelho não deve ser confundida com adaptação superficial ou mistura sincretista; só
será um reflexo da encarnação do Verbo, quando uma cultura
transformada e regenerada pelo Evangelho deixar crescer em
seu próprio seio as “sementes da Palavra” e produzir na sua
própria tradição expressões de vida cristã que sejam originais
– não simplesmente importadas do Velho Mundo.
Destaca-se, no final, que o tempo atual urge “uma nova escuta da
Palavra de Deus e […] uma nova evangelização” (n. 122). Como o
senhor analisa esse desafio no contexto atual da Igreja brasileira,
“aqui e agora”?
Continua necessária a missão ad gentes, aos que não conhecem o
Evangelho de Cristo. A Igreja deve ir ao encontro de todos, com a força
do Espírito, e continuar profeticamente a defender o direito e a liberdade
de as pessoas escutarem a Palavra de Deus, procurando os meios mais
eficazes para a proclamar, mesmo sob risco de perseguição.
Mas há também, nas regiões consideradas cristãs, muitos que
foram “batizados, e talvez até catequizados, mas não suficientemente
evangelizados”, e que têm necessidade de um novo anúncio da Palavra de Deus. Nações outrora ricas de fé e de vocações vão perdendo a
própria identidade, sob a influência de uma cultura secularizada. Daí a
exigência de uma nova evangelização. Os “índios” a serem evangelizados
encontram-se agora na Avenida Paulista, nos Alfaville...
162
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Entrevista com Johan Konings
Os horizontes imensos e a complexidade da situação presente
requerem, hoje, novas modalidades para que a Palavra de Deus seja
comunicada eficazmente, sob a guia do Espírito de Cristo.
Ora, antes de mais nada, há a relação intrínseca entre comunicação da Palavra de Deus e testemunho cristão, pois é indispensável dar
credibilidade à Palavra pelo testemunho vital. O testemunho comunica
a Palavra atestada nas Escrituras, e as Escrituras explicam o testemunho
que os cristãos são chamados a dar com a própria vida.
E ainda, nossa responsabilidade não se limita a sugerir valores
que compartilhamos; é preciso chegar ao anúncio explícito da Palavra.
Não há verdadeira evangelização, se não forem proclamados o nome, a
doutrina, a vida, as promessas, o Reino, o mistério de Jesus de Nazaré,
Filho de Deus. A nova evangelização não se contenta, pois, com a divulgação de valores cristãos, ou com um serviço de inspiração cristã à
sociedade, como fazem, por exemplo, muitas escolas ou universidades
cristãs. Isso tem seu valor, mas o que é preciso mesmo é formar novos
cristãos, que professem sua fé e pratiquem o que professam.
Como convite à leitura, que aspectos centrais o senhor destacaria
no documento, para aprofundar o diálogo entre o “Deus que fala”
e o homem que responde, hoje?
A Exortação preocupa-se, em primeiro lugar, em orientar o destinatário da Palavra de Deus e do testemunho eclesial para o encontro
pessoal com Cristo. O conhecimento da Bíblia, sem a qual não se pode
conhecer Cristo, ocupa nisso um lugar central, desde que seja abordada
numa perspectiva que leve Deus à fala, numa “lectio divina”.
Daí a importância da “Cristologia da Palavra” (nn. 11-13), ou
seja, a exposição sobre a Palavra de Deus em Jesus Cristo como centro
da teologia cristã, numa linguagem que ultrapasse o uso de conceitos
“feitos e acabados”, mas possa evocar o acontecer da autocomunicação
de Deus.
Em conexão com isso, a hermenêutica bíblico-teológica é vista
como uma circularidade entre o estudo científico-crítico do verdadeiro
fato histórico e a compreensão teológica que, por força de seu objeto,
recorre à analogia, ao sentido ampliado ou “pleno” daquilo que é assinalado pelo sentido histórico. Sem desistir da racionalidade científica,
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
163
Verbum Domini: Exortação Apostólica pós-Sinodal do Papa Bento XVI
tal hermenêutica permite conceber significações que superam a “letra”,
sem se desprender dela.
Quanto à prática pastoral, deseja-se que toda a pastoral seja bíblica:
se a Bíblia é o registro original e privilegiado da Palavra definitiva que
Deus nos dirigiu em Jesus de Nazaré – depois de ter falado na Criação,
na história do Povo de Deus e nos Profetas –, ela não pode ser confinada
num setor da catequese ou da pastoral, mas deve ser a referência sempre
presente de toda a pastoral. E o meio mais eficaz para isso é, certamente,
a valorização da Liturgia, que toda ela é habitada pela Palavra, a ponto
de se falar numa “presença real” da Palavra de Deus.
Um elemento que me agradou muito é o discreto aceno ao “belo”. A
Palavra de Deus é uma palavra de amor, e toda palavra de amor envolve
aquele a quem se destina. Não é um comando, lei, receita, constatação
ou definição. É uma palavra que mais abre do que fecha o sentido – e
estas são características da arte. A Escritura narra o acontecer do amor
de Deus junto a seu povo, e somos arrastados pela beleza da narração.
Representa os sentimentos do piedoso no encontro com Deus, e procuramos nos identificar com quem assim reza. Narra Deus mesmo na sua
manifestação definitiva em Jesus, e contemplamos no silêncio a Palavra
que as palavras só podem evocar e invocar, nunca esgotar. Aí está o
“Belo”, o que supera os nossos sentidos, o que nos faz ver o Deus que
ninguém jamais viu. O próprio Documento, em muitas de suas páginas,
brilha pela beleza e sensibilidade de suas expressões. É preciso captar
essa dimensão estética para desfrutar toda a sua riqueza.
E-mail do entrevistado:
[email protected]
164
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Recensões
VIEIRA, Paulo Leonardo Medeiros, “Deus no banco dos réus.
Uma resposta da Ciência ao Ateísmo militante”, Florianópolis,
Ed. LEDIX, 2010, 21 x 14,5cm, 230 p.
Ney Brasil Pereira*
Quatro anos após lançar, pela mesma Editora, “A Fé de Pedro e a
Ciência de Tomé”, volta o autor, como lemos na orelha direita da capa do
novo livro, “ao centro desse borbulhante cenário de aparente contradição
entre a Fé e a Ciência, a Religião e a Academia. Mais uma vez acerta
na preciosa seleção de textos, experimentos e experiências, e dentre os
melhores personagens da ciência apresenta ao leitor ótimas testemunhas
em favor da tolerância e da não negligência da Possibilidade, enfim, a
essência da própria procura de respostas pela Ciência.”
O livro, que conta com a apresentação de Dom Murilo S.R. Krieger, Arcebispo de Florianópolis, e com nove páginas de Bibliografia (pp.
221-229), desenvolve-se didaticamente em 18 capítulos, cujo conteúdo
coloca o leitor em dia com o momentoso assunto. Lembro-me da forte
impressão que, sobre idêntico tema, causou-me a leitura do livro “O
princípio de todas as coisas”, do teólogo suíço Hans Küng. Esse livro,
lançado no Brasil pela editora Vozes, em 2007, e citado várias vezes por
Vieira, tem como subtítulo: “Ciências naturais e religião”. Küng trata o
tema de maneira mais irênica, menos combativa, não focalizando frontalmente os ataques do “ateísmo militante”. De uns anos para cá, porém,
esses ataques à religião e à fé em Deus têm tomado tal vulto, longe de
diminuir a intensidade, que a postura apologética de Vieira se justifica
plenamente. A propósito, é sugestiva, na abertura do livro, a citação do
papa Paulo VI, na sua alocução a teólogos reunidos em Roma em 1966,
poucos meses após a conclusão do Concílio Vaticano II: “Estamos inteiramente persuadidos de que bispos e padres não podem mais desempenhar
sua missão de iluminação e salvação do mundo moderno, se não forem
capazes de apresentar, defender e explicitar as verdades da fé divina por
*
O recensor, Mestre em Ciências Bíblicas, é Padre da arquidiocese de Florianópolis,SC
e Professor no ITESC.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
165
Recensões
meio de conceitos e termos mais compreensíveis para espíritos formados
na cultura filosófica e científica contemporânea” (p. V).
Hoje, quase 50 anos após essas palavras do Papa, quanto se tem
avançado na ciência e na tecnologia! E quanto a humanidade tem continuado a debater-se, apesar do progresso técnico, com as perguntas que
continuam a desafiar a mente e o coração: porque, ainda, tanta violência,
tanta maldade, tanta injustiça, tanto consumismo, tanta miséria? Que nos
diz a Ciência, sobre tudo isso? E que nos diz a Fé? A crença em Deus
ajuda, ou, como insiste o “ateísmo militante”, atrapalha?
Aqui, uma distinção, que costumo fazer e que pode ser útil, entre
“Fé” e “Religião”. Sem entrar nos detalhes abordados pela Teologia
Fundamental, “Fé” é obediência, pessoal, e “Religião” é instituição,
coletiva. Explico-me, sintetizando. “Fé” é adesão pessoal a Deus e à
sua Palavra, é obediência e confiança, é, segundo João, “a vitória que
vence o mundo” (1Jo 5,4). E “Religião” é a expressão coletiva dessa Fé,
expressão coletiva que se dá em dois níveis: o nível ritual, doutrinal,
que distingue as várias “religiões”, e o nível ético, moral, que as une,
segundo Tiago: “Religião pura e sem mancha diante do Deus e Pai é esta:
assistir os órfãos e as viúvas em suas dificuldades e guardar-se livre da
corrupção do mundo” (Tg 1,27). Infelizmente, as religiões, todas, são
zelosas dos seus ritos e doutrinas, aliás necessários, exatamente porque
expressam coletivamente a Fé, mas falham na ética, que devia ser a sua
preocupação fundamental, isto é, dizem que “amam a Deus, a quem não
veem, e não amam a/o irmã/o, a quem estão vendo” (cf 1Jo 4,20). Daí,
desse mal-entendido, tantos crimes, tanta “guerra santa”, empreendida
em nome “de Deus”. E daí também, do mesmo mal-entendido, tanta
virulência do “ateísmo militante” contra Deus.
Mas retornemos ao livro que nos ocupa. O simples elenco dos
títulos dos 18 capítulos nos dá uma ideia da amplidão e do valor da
pesquisa. Ao primeiro capítulo, programático, “Deus no banco dos réus”
(pp. 15-26), segue o segundo, com o título “Os limites da Ciência” (pp.
27-40), a qual, “sem prejuízo de seus significativos avanços, ainda está
longe de explicar o mundo” (p. 27). No capítulo terceiro, “Uma revisão
histórica” (pp. 41-49) , o autor se detém sobre o “caso Galileu”, condenado pela Igreja em 1633, e reabilitado só mais de três séculos depois,
em 1992, por João Paulo II. O capítulo quarto, “Darwin, a Igreja e a
seleção das espécies” (pp. 51-57), aborda “um dos temas mais candentes
na disputa entre Ciência e Fé, ou entre a religião e a academia, a saber,
166
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Recensões
o que diz respeito ao evolucionismo, nos termos em que o colocou
Charles Darwin” (p. 51). O tema é aprofundado no capítulo seguinte,
sintetizado na pergunta do título: “São Tomás e Charles Darwin: uma
parceria?” (pp.59-72)
A relação entre o cérebro e o que chamamos “alma” é estudada
no capítulo sexto: “Deus, a neurociência, o cérebro quântico” (pp. 7384). É provocativa a constatação inicial do autor, de que “na madrugada
do novo século, a neurociência intenta demonstrar empiricamente que
o espírito religioso, e mesmo a própria fé, estão sediados no cérebro,
precisamente como uma máquina...” (p.73). O título que o autor dá
ao capítulo sétimo, em forma de questionamento, “Fora da Ciência não
há salvação?” (pp. 85-92), inspira-se no famoso axioma do bispo de
Cartago, Cipriano, que, em meados do século III, lutou pela unidade da
Igreja. Contra o movimento desagregador das heresias e cismas, o santo
bispo insistia: “Fora da Igreja não há salvação”. Vieira demonstra que o
caminho a seguir não é uma disjuntiva, “ou a Ciência ou a Igreja”, mas
uma conjuntiva: cada uma no seu campo, tanto a Ciência como a Fé (a
Igreja), são necessárias. O que é preciso superar, isso sim, é a utopia da
“verificação de todas as teses” (título do oitavo capítulo, pp. 93-109),
bem como o “nível de desinformação” (título do capítulo nono, pp.
111-121), obviamente de parte a parte, para que o debate entre Ciência
e Fé, Ciência e Religião, não se torne um diálogo de surdos.
No capítulo décimo, “Brasil – Estado republicano e laico” (pp.
123-131), o autor aborda o tema da separação entre Igreja e Estado, tema
cuja atualidade se demonstra “pelo espaço que ocupa na mídia. Em todas
as mídias, em todo o mundo” (p. 123). O tema retorna no capítulo onze
“Brasil – Símbolos religiosos no espaço público” (pp. 133-138), símbolos
cuja remoção é postulada pelo “ateísmo intolerante”, com base no “desgastado fundamento da separação Igreja/Estado” (p. 133). Outro tema,
na crista da onda, é abordado no capítulo 12: “A cultura da morte contra
a cultura da vida – Aborto, Eutanásia, Células-tronco embrionárias” (pp.
139-150). O autor começa observando que “sob o surrado argumento da
laicidade, alguns intentam silenciar a Igreja sobre esses temas” (p. 139),
cerceando a própria liberdade de expressão, um dos fundamentos da democracia. O capítulo treze, com o título “As alternativas” (pp. 151-161),
responde aos que defendem as pesquisas em células-tronco embrionárias,
aduzindo o argumento da “solidariedade humana em relação aos enfermos
que depositaram nessas pesquisas todas as suas esperanças” (p.151). A
resposta, “escorada em fatos”, escreve Vieira, “é realista e não menos
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
167
Recensões
alvissareira: há, sim, alternativas. No plural, porque são múltiplas” (p.
151). E explica: Ao contrário do insucesso da bilionária pesquisa com
células-tronco embrionárias, “grupos cada vez maiores de cientistas
avançam nas pesquisas com células-tronco maduras...” (p. 151)
“A herança cristã” é o título do capítulo quatorze (pp. 163-175),
no qual o autor retoma um tema já desenvolvido em sua obra anterior,
“A Fé de Pedro e a Ciência de Tomé”. E cita T. E. Woods: “A civilização
ocidental é uma herança da Igreja Católica, verdadeira responsável por
valores e instituições que fazem parte da nossa história” (p. 163). Seria
desonesto, portanto, como Vieira conclui na p. 175, “arguir a ‘tese’ do
Estado laico como argumento de negação da história, confundindo os conceitos de laicidade e de ateísmo, para o fim, inconfessável, de promover
uma ruptura”, uma negação da evidência dos fatos, ou seja, da verdade.
Explicitando essa “herança cristã”, o autor dedica o capítulo quinze à
relação entre “Igreja e Universidade” (pp. 177-183), justificando, de
início, que “vale um capítulo para sublinhar, no mundo do saber, o papel
da Universidade e sua origem. Ora, a universidade emergiu inspirada na
própria visão teísta do cristianismo, que forneceu as bases do espírito
científico” (p. 177). Por isso mesmo, comenta e deplora o sintomático
incidente ocorrido com Bento XVI em janeiro de 2008, quando 67
professores e uma centena de alunos da Universidade La Sapienza, de
Roma, exigiram o cancelamento do convite para que o Papa falasse na
abertura do ano letivo. E o autor conclui: Eles quiseram “nada menos
que calar a Igreja e revogar a História. Ou vice-versa. Revogar a História
para calar a Igreja” (p. 183).
No capítulo dezesseis, Vieira aborda “o ateísmo militante e a origem das religiões” (pp. 185-194), comentando a posição dos que, como
C. Hitchens, afirmam que elas vêm “da infância assustada e chorosa da
nossa espécie”... (p. 185) Após uma bem elaborada síntese do complexo
tema, o autor expõe “o alvorecer do cristianismo”, título do capítulo
dezessete (pp. 195-202). Surpreendentemente, não aborda os inícios
do Novo Testamento, nem focaliza a pessoa divino-humana de Jesus,
mas prefere falar dos intelectuais que o reconheceram como Messias e
Senhor ao longo da história. Entre eles, destaca a figura mística, quase
contemporânea, de Simone Weil (1909-1943), judia e ateia até a idade
adulta, como Edith Stein (1891-1942). A conversão de Simone “não
foi uma mudança de religião, mas a passagem da pergunta à resposta,
do anseio à revelação” (p. 197). “Segundo os críticos, a sua ‘Carta a
um religioso’ pode, como símbolo, ser colocada à altura da ‘Carta ao
168
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Recensões
Pai’, de Kafka. Seus biógrafos dizem que essa obra pertence ‘à série de
documentos fundamentais de nossa civilização, como a Regra de São
Bento, os Exercícios de Santo Inácio de Loyola, ou o Pequeno Príncipe,
de Saint-Exupéry’” (pp. 199-200). Depois de citar um dos famosos “Pensamentos” de Pascal, o autor termina o capítulo contrapondo os muitos
que são da mesma fé que o ilustre filósofo e matemático (ver a lista na p.
201), aos que “optam pela simplificação de Hitchens, Dawkins, Sagan,
Crick, Atkins, Monod, Brown, para ficar com alguns dos mais badalados
missionários do ateísmo. Não descobrindo Deus onde se encontra Deus,
escolheram para Ele um lugar no banco dos réus” (pp. 201-202).
O último capítulo, o dezoito, se apresenta como síntese de todo o
livro: “Uma resposta da Ciência ao Ateísmo militante” (pp. 203-219).
Cito o parágrafo inicial: “Excluída a cruzada do Ateísmo militante, há
em curso, por parte da Igreja e da Academia, um esforço de conciliação
entre a Fé e a Razão, que, na bela alegoria com que João Paulo II inicia
a encíclica Fides et Ratio, ‘constituem como que as duas asas pelas quais
o espírito humano se eleva para a contemplação da Verdade’” (p. 203).
Entre os “novos caminhos que a filosofia e a ciência nos propõem”, Vieira
sintetiza o do Metarrealismo, de Jean Guitton, e o da Hiperfísica, de
Teilhard de Chardin. Quanto ao primeiro, situa-o “para além da lógica
clássica, que por seu turno vai dando lugar a um modo de pensamento
metalógico”, o qual “demonstra a existência de limites físicos ao conhecimento” (p. 207). Quanto à Hiperfísica de Chardin, “não é uma metafísica,
mas a admirável síntese de uma visão do mundo que fica além dos dados
objetivos da Ciência” (p. 211). Para Chardin, “a evolução não é apenas um
princípio, doutrina ou teoria, mas um padrão necessário do pensamento
humano: é condição da própria existência do universo... Ela se dá a partir
da cosmogênese, em direção à geogênese, à biogênese, à antropogênese,
à noogênese, para enfim culminar na Cristogênese, quando enfim todas
as coisas serão instauradas em Cristo, segundo a cosmovisão de Paulo
na carta aos efésios (Ef 1,10; cf pp. 215-216).
No final do livro, antes da citação de Thomas Merton, o autor
reafirma seu objetivo, expresso no subtítulo da obra, de apresentar “uma
resposta da Ciência ao Ateísmo militante” (p. 219). Qualifica-a, modestamente, “ao menos como um esboço, sem qualquer pretensão acadêmica,
muito menos, dogmática” (p. 219). O tom dialogal da obra confirma que
ela não tem, é verdade, “pretensão dogmática”. O fundamentado de suas
afirmações, porém, todas comprovadas por abundantes e atualizadas
notas bibliográficas de rodapé, confere-lhe, se não “pretensão”, em todo
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
169
Recensões
caso, verdadeira dimensão acadêmica. Formulo votos para que sejam
muitos os leitores, especialmente da juventude universitária, que, tendo
estudado esta obra, “façam, livre e conscientemente, o seu julgamento,
e proclamem o seu veredicto” (cf p. 219).
E-mail do Recensor:
[email protected]
170
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Crônicas
Mais um ex-aluno Bispo
Dom Geremias Steinmetz, ex-aluno do ITESC nos anos de 1987
a1990, foi eleito bispo de Paranavaí, PR, no dia 5-1-2011, segundo
notícia no “Osservatore Romano” de 8-1 p.p., pág. 15. Nascido em
1965, foi ordenado presbítero em 9-2-1991, contando, portanto, apenas
20 anos de ministério sacerdotal. Ultimamente era Coordenador diocesano de Pastoral na sua diocese de Palmas-Francisco Beltrão, PR. Sua
ordenação episcopal está marcada para o dia 25-3, sexta, e sua “tomada
de posse”, em Paranavaí, será no dia 9-4, véspera do 5º domingo da
Quaresma. Outros ex-alunos do ITESC ordenados Bispos: Dom Luís
Carlos Eccel, atualmente bispo emérito de Caçador, SC; Dom Pedro
Zilli, PIME, bispo de Bafatá, na Guiné Bissau; e Dom Mário Marquez,
ofm, bispo de Joaçaba,SC.
Novo Primaz do Brasil
Dom Murilo S.R. Krieger, SCJ, arcebispo metropolitano de Florianópolis, e representante do Episcopado catarinense no Colegiado do
ITESC, foi nomeado Arcebispo de São Salvador da Bahia e Primaz do
Brasil, por ato do Santo Padre Bento XVI, segundo notícia no “Osservatore Romano” de 12-1 p.p. Dom Murilo sucederá ao Cardeal Geraldo
Majela Agnello, assumindo São Salvador aos 67 anos de idade, 41 anos
de padre e 25 anos de bispo. Dom Murilo foi ordenado bispo em 1985,
como auxiliar de Dom Afonso, aqui em Florianópolis, tornando-se bispo
diocesano de Ponta Grossa, PR, em 1991, Arcebispo de Maringá, PR,
em 1997 e, finalmente, Arcebispo de Florianópolis em 2002. Aqui em
Florianópolis, coordenou a realização do XV Congresso Eucarístico Nacional, em 2006, e as comemorações do centenário da diocese, em 2008.
A “tomada de posse “ em Salvador, BA, será no dia 25-3, solenidade da
Anunciação, às 19.00h. A Dom Murilo, com os agradecimentos do nosso
Instituto Teológico pelo constante apoio e presença, os nossos votos de
abençoado ministério em Salvador.
Apresentação do Anuário Acadêmico 2011
Fundado pelo episcopado catarinense, a 10 de janeiro de 1973, o
ITESC iniciou seu curso de teologia no mesmo ano. Por isso, enquanto
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
171
Crônicas
celebramos o aniversário de 38 anos, estamos no 39º. ano de funcionamento! Apresentamos este Anuário Acadêmico, fazendo votos aos
estudantes e professores e funcionários de que este seja um ano cheio
de realizações.
Na apresentação do anuário do ano passado dizíamos: “Nossa
expectativa (!) é que, em 2011, poderemos dar início ao curso de bacharelado em teologia, já aprovado pelo MEC”. Infelizmente, isso não
aconteceu. O processo é mais demorado do que se pensava. Desde outubro
de 2009 encontram-se no MEC os processos de nossas duas solicitações:
o credenciamento da Faculdade Católica de Santa Catarina e a autorização de seu primeiro curso, o de bacharelado em teologia. No decorrer
do ano passado foram feitas as visitas dos avaliadores em vista dos dois
processos. Numa graduação de 1 a 5 (um a cinco), obtivemos nota 4
(quatro) nas duas avaliações, um resultado bastante animador. Desde 31
de janeiro deste ano, nosso processo encontra-se no Conselho Nacional
de Educação, para onde foi encaminhado pelo MEC com recomendação
de aprovação. É a última etapa antes da assinatura das portarias (para o
credenciamento da Faculdade e a autorização do curso de teologia) pelo
Ministro da Educação. Se isso acontecer ainda no primeiro semestre,
poderemos retomar em julho os nossos cursos de pós-graduação que,
durante alguns anos, eram feitos em convênio com a Faculdade Jesuíta
de Filosofia e teologia (FAJE), de Belo Horizonte-MG. No decorrer de
2011, temos tempo para ir implantando nosso Plano de Desenvolvimento
Institucional (PDI) e encaminhando a criação dos órgãos previstos no
Regimento da Faculdade. Prevê-se, assim, que em 2012 poderemos começar nosso curso de bacharelado em teologia, autorizado pelo MEC.
Começamos o ano sob a luz da Palavra de Deus. Inserimo-nos no
processo de recepção da Exortação Apostólica Verbum Domini, publicada pelo papa Bento XVI em 30 de setembro passado. A teologia é, por
antonomásia, ciência da palavra, não de uma palavra qualquer, mas da
Palavra de Deus. É ciência da fé, isto é, da resposta humana à Palavra de
Deus escondida na criação, manifestada a Israel e encarnada em Jesus
de Nazaré. Lembrando que o Concílio Vaticano II afirmara ser a Bíblia a
alma de toda a teologia (DV 24), o papa nos indica como primeiro passo
da teologia a acolhida da hermenêutica bíblica conciliar, caracterizada
pelos “três critérios de base para se respeitar a dimensão divina da Bíblia:
1) interpretar o texto tendo presente a unidade de toda a Escritura; isto
hoje se chama exegese canônica; 2) ter presente a Tradição viva de toda
a Igreja; 3) observar a analogia da fé. Observar, portanto, os “dois níveis
172
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Crônicas
metodológicos, o histórico-crítico e o teológico (VD 34). Em seguida, o
papa adverte para o perigo de fixar-se só no nível histórico-crítico, em
detrimento do nível teológico: a Escritura torna-se um texto do passado,
a exegese torna-se pura historiografia, cria-se uma hermenêutica secularizada, positivista, em que não há mais espaço para o mistério de Deus
(VD 35). Mas uma exegese puramente espiritual ou teológica, baseada
em interpretações subjetivistas ou literalistas, que não se fundamente nos
avanços da razão científica, pode degenerar-se em fideísmo e tornar-se
produtora dos mais diversos fundamentalismos (VD 36; 44).
Como estudiosos e estudantes de teologia, cabe-nos fazer “com que
o estudo da Sagrada Escritura seja verdadeiramente a alma da teologia,
enquanto reconhecemos nela a Palavra que Deus hoje dirige ao mundo,
à Igreja e a cada um pessoalmente”. Cabe-nos ainda “evitar o cultivo
de uma noção de pesquisa científica, que se considere neutral face à
Escritura”. É também necessário que, ao lado dos métodos científicos,
históricos, linguísticos, “os estudantes tenham uma profunda vida espiritual, para se aperceberem de que só é possível compreender a Escritura
se a viverem” (VD 47).
Pondo nas mãos de Deus o passado, o presente e o futuro de cada
um de nós e de nosso ITESC, da Igreja e de toda a humanidade, fazemos
votos a todos – professores, alunos e funcionários – de um abençoado e
proveitoso Ano Acadêmico 2011.
Pe. Dr. Vitor Galdino Feller – Diretor
Novo Bispo de Joaçaba
No dia 19 de fevereiro p.p., na Catedral de Santa Teresinha, de
Joaçaba, SC, deu início ao seu ministério episcopal naquela diocese o 4º
bispo diocesano, Dom Frei Mário Marquez , da Ordem dos frades menores Capuchinhos. Natural do próprio município de Joaçaba, onde nasceu
em 1952, Dom Mário cursou o último ano de Teologia no ITESC, em
Florianópolis, em 1980. Ordenado presbítero na mesma Catedral de Santa
Teresinha, em novembro de 1980, em 2006 foi nomeado Bispo Auxiliar
da Arquidiocese de Vitória, ES. Em dezembro de 2010, o papa Bento
XVI transferiu-o para a sua diocese de origem, onde, na data mencionada,
recebeu o báculo das mãos do metropolita de Florianópolis, Dom Murilo
Sebastião Ramos Krieger. Prestigiando seu ex-auxiliar, estava presente,
também, o Arcebispo de Vitória, ES, Dom Luís Mancilha Vilela, com
numerosa comitiva daquela Arquidiocese.
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
173
Mensagem de Bento XVI ao Presidente da CNBB,
sobre a CF 2011
Ao Venerado Irmão
DOM GERALDO LYRIO ROCHA
Arcebispo de Mariana (MG) e Presidente da CNBB
É com viva satisfação que venho unir-me, uma vez mais, a toda Igreja no Brasil
que se propõe percorrer o itinerário penitencial da quaresma, em preparação para a Páscoa
do Senhor Jesus, no qual se insere a Campanha da Fraternidade cujo tema neste ano é:
“Fraternidade e vida no Planeta”, pedindo a mudança de mentalidade e atitudes para a
salvaguarda da criação.
Pensando no lema da referida Campanha, “a criação geme em dores de parto”, que
faz eco às palavras de São Paulo na sua Carta aos Romanos (8,22), podemos incluir entre
os motivos de tais gemidos o dano provocado na criação pelo egoísmo humano. Contudo, é igualmente verdadeiro que a “criação espera ansiosamente a revelação dos filhos
de Deus” (Rm 8,19). Assim como o pecado destrói a criação, esta é também restaurada
quando se fazem presentes “os filhos de Deus”, cuidando do mundo para que Deus seja
tudo em todos (cf. 1Co 15,28).
O primeiro passo para uma reta relação com o mundo que nos circunda é justamente o reconhecimento, da parte do homem, da sua condição de criatura: o homem
não é Deus, mas a Sua imagem; por isso, ele deve procurar tornar-se mais sensível à
presença de Deus naquilo que está ao seu redor: em todas as criaturas e, especialmente,
na pessoa humana há uma certa epifania de Deus. «Quem sabe reconhecer no cosmos os
reflexos do rosto invisível do Criador, é levado a ter maior amor pelas criaturas» (Bento
XVI, Homilia na Solenidade da Santíssima Mãe de Deus, 1º-01-2010). O homem só será
capaz de respeitar as criaturas na medida em que tiver no seu espírito um sentido pleno
da vida; caso contrário, será levado a desprezar-se a si mesmo e àquilo que o circunda, a
não ter respeito pelo ambiente em que vive, pela criação. Por isso, a primeira ecologia a
ser defendida é a “ecologia humana” (cf. Bento XVI, Encíclica Caritas in veritate, 51).
Ou seja, sem uma clara defesa da vida humana, desde sua concepção até a morte natural;
sem uma defesa da família baseada no matrimônio entre um homem e uma mulher; sem
uma verdadeira defesa daqueles que são excluídos e marginalizados pela sociedade, sem
esquecer, neste contexto, daqueles que perderam tudo, vítimas de desastres naturais, nunca
se poderá falar de uma autêntica defesa do meio-ambiente.
Recordando que o dever de cuidar do meio-ambiente é um imperativo que nasce da
consciência de que Deus confia a Sua criação ao homem não para que este exerça sobre
ela um domínio arbitrário, mas que a conserve e cuide como um filho cuida da herança
de seu pai, e uma grande herança Deus confiou aos brasileiros, de bom grado envio-lhes
uma propiciadora Bênção Apostólica.
Vaticano, 16 de fevereiro de 2011
BENEDICTUS PP. XVI
Envie a um amigo | Imprima esta
Índice Geral
INDICE GERAL dos números 52, 53 e 54
(2009/1, 2 e 3)
a) Índice geral dos 3 números monográficos
– No. 52 (2009/1): CF – 2009: Fraternidade e
Segurança Pública
- LOOZ, Márcio José, Fraternidade e segurança pública: “A
paz é fruto da justiça” (Is 32,17), pp. 11-20
- DE LUCA, Clésio, Objetivo e dinâmica da Campanha da
Fraternidade de 2009, pp. 21-26
- PEREIRA, Ney Brasil, Não-retaliação, perdão, amor dos
inimigos: três salutares desafios do Evan­gelho, pp. 27-38
- RIBEIRO, Célio, Segurança pública a partir do sermão da
Sexagésima, pp. 39-56
- SCHAUFFERT, Fred Harry, O comportamento social ante a
segurança pública, pp. 57-70
- SCHAUFFERT, Fred Harry, Mulher, vítima de violência: o
resgate da dignidade, pp. 71-84
- SILVEIRA, André Luís da, e SCHNEIDER, Rodrigo Raiser,
Construindo Políticas Públicas de Segurança: uma análise
criminológica brasileira, pp. 85-100
- HOFFMANN, Marcos Érico, e ZANELLI, José Carlos,
Possibilidades e limitações das aprendizagens na prisão, pp.
101-11
- ROSA, Alexandre Matos, e SCHUH, Sara Maria Lemos, Do
cárcere à liberdade Quando a esperança vence a exclusão, pp.
115-120
- STADELMANN, SJ, Luís, Confiança em Deus na crise, pp.
121-132
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
175
Índice Geral
- PEREIRA, Reginaldo, Aparecida: a bem-aventurança do
discipulado, pp. 133-146
- CARRANZA, Brenda, O Brasil, fundamentalista?, pp. 147166
- DE LUCA, Clésio, Um programa de rádio a serviço da
Segurança, pp. 167-169
- BENEDET, Ronaldo, Fraternidade e segurança – Mensagem,
pp. 171-172
– No. 53 (2009/2): Ano Sacerdotal 2009-2010
- LIMA, Reginaldo de, Ano Sacerdotal – junho de 2009 a junho
de 2010, pp. 09-20
- BESEN, José Artulino, São João Vianney, o Vigário do Bom
Deus, pp. 21-36
- PEREIRA, Ney Brasil, Povo Sacerdotal, pp. 37-47
- DEBATIN, Osmar, A espiritualidade do Presbítero, pp. 49-60
- DAL’BO, Paulo, Ano Sacerdotal e a formação dos seminaristas,
pp. 61-72
- FRANCISCO, Manoel João, Os ministérios em Santo
Agostinho, pp. 73-100
- BESEN, José Artulino, Perfis de presbíteros missionários em
Santa Catarina, pp. 101-117
- STADELMANN, SJ, Luís, O sacerdócio do reino messiânico
(Sl 110), pp. 119-133
- FARIAS, Esmeraldo Barreto de, O ministério presbiteral: dom
de Deus a serviço da edificação do seu Povo, pp. 135-150
- PEREIRA, Reginaldo, Igreja Povo de Deus: o Sacerdócio
comum dos fiéis na vida da Igreja, pp. 151-164
- HUMMES, Cláudio, O Ano Sacerdotal – Carta, pp. 165-166
- PEREIRA, Ney Brasil, Hino do Ano Sacerdotal – Hino e
Comentário, pp. 167-171
- DREHER, Martin Norberto, SOUZA, Rogério Luís de, e
OTTO, Clarícia (Orgs.), “Faces do Catolicismo” (recensão),
pp. 173-177
176
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Índice Geral
- IAROCHEVSKI, Ederson, BOFF, Leonardo, “Virtudes para
outro mundo possível: comer e beber juntos e viver em paz”
(recensão), pp. 178-183
– No. 54 (2009/3): Diaconato Permanente
- GOEDERT, Valter Maurício, O Diaconato Permanente e o
Mistério de Cristo, pp. 11-46
- BATTISTI, Anuar, O Diaconato Permanente no Documento
de Aparecida, pp. 47-58
- TRENTIN, Avelino, Quarenta anos do Diaconato Permanente
em Florianópolis, pp. 59-70
- COSTA, Odélcio Calligaris Gomes da, A mística do Diaconato
Permanente, pp. 71-84
- RAMADA PIENDIBENE, Daniel, O Diaconato Permanente:
vigência pastoral e fundamentos teológicos, pp. 85-112
- STADELMANN, SJ, Luís, Roteiro de atividades pastorais na
Bíblia: Livros Sapienciais do AT e Diáconos no NT, pp. 113132
- LORASCHI, Celso, Os Doze e os Sete: uma abordagem de At
6,1-7, pp. 133-146
- PEREIRA, Ney Brasil, “Bíblia Sagrada Almeida Século XXI,
Antigo e Novo Testamento” (recensão), pp. 147-156
- JUNKES, Lauro, MARCON, Cornélio Angelo, “Alice no poder
de Asclépio, entre óvulos, embriões e fetos” (recensão), pp.
157-160
- SÁVIO, Joel, LA DUE, William J., “O guia trinitário para a
Escatologia” (recensão), pp. 161-165
- BITTENCOURT, Joel Marcolino, MANZATTO, Antônio;
PASSOS, João Décio; e VILLAC, Sylvia, “De esperança em
esperança” (recensão), pp. 166-170
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
177
Índice Geral
b) ÍNDICE GERAL dos três números monográficos de
2009, por Autor
- BATTISTI, Anuar, O Diaconato Permanente no Documento
de Aparecida, n. 54 (2009/3), pp. 47-58
- BENEDET, Ronaldo, Fraternidade e segurança – Mensagem,
n. 52 (2009/1), pp. 171-172
- BESEN, José Artulino, São João Vianney, o Vigário do Bom
Deus, n. 53 (2009/2), pp. 21-36
- BESEN, José Artulino, Perfis de presbíteros missionários em
Santa Catarina, n. 53 (2009/2), pp. 101-117
- BITTENCOURT, Joel Marcolino, MANZATTO, Antônio;
PASSOS, J. Décio; e VILLAC, Sylvia, “De esperança em
esperança” (recensão), n. 54 (2009/3), pp. 166-170
- CARRANZA, Brenda, O Brasil, fundamentalista?, n. 52
(2009/1), pp. 147-166
- COSTA, Odélcio Calligaris Gomes da, A mística do Diaconato
Permanente, n. 54 (2009/3), pp. 71-84
- DAL’BO, Paulo, Ano Sacerdotal e a formação dos seminaristas,
n. 53 (2009/2), pp. 61-72
- DE LUCA, Clésio, Objetivo e dinâmica da Campanha da
Fraternidade de 2009, n. 52 (2009/1), pp. 21-26
- DE LUCA, Clésio, Um programa de rádio a serviço da
Segurança, n. 52 (2009/1), pp. 167-169
- DREHER, Martin Norberto, SOUZA, Rogério Luís de, e OTTO,
Clarícia (Orgs.), “Faces do Catolicismo” (recensão), n. 53
(2009/2), pp. 173-177
- DEBATIN, Osmar, A espiritualidade do Presbítero, n. 53
(2009/2), pp. 49-60
- FARIAS, Esmeraldo Barreto de, O ministério presbiteral: dom
de Deus a serviço da edificação do seu Povo, n. 53 (2009/2),
pp. 135-150
- FRANCISCO, Manoel João, Os ministérios em Santo
Agostinho, n. 53 (2009/2), pp. 73-100
- GOEDERT, Valter Maurício, O Diaconato Permanente e o
Mistério de Cristo, n. 54 (2009/3), pp. 11-46
178
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Índice Geral
- HOFFMANN, Marcos Érico, e ZANELLI, José Carlos,
Possibilidades e limitações das aprendizagens na prisão, n.
52 (2009/1), pp. 101-114
- HUMMES, Cláudio, O Ano Sacerdotal – Carta, n. 53 (2009/2),
pp. 165-166
- IAROCHEVSKI, Ederson, BOFF, Leonardo, “Virtudes para
outro mundo possível: comer e beber juntos e viver em paz”
(recensão), n. 53 (2009/2), pp. 178-183
- JUNKES, Lauro, MARCON, Cornélio Angelo, “Alice no poder
de Asclépio, entre óvulos, embriões e fetos” (recensão), n. 54
(2009/3), pp. 157-160
- LIMA, Reginaldo de, Ano Sacerdotal – junho de 2009 a junho
de 2010, n. 53 (2009/2), pp. 09-20
- LOOZ, Márcio José, Fraternidade e segurança pública: “A
paz é fruto da justiça” (Is 32,17), n. 52 (2009/1), pp. 11-20
- LORASCHI, Celso, Os Doze e os Sete: uma abordagem de At
6,1-7, n. 54 (2009/3), pp. 133-146
- PEREIRA, Ney Brasil, Não-retaliação, perdão, amor dos
inimigos: três salutares desafios do Evan­gelho, n. 52 (2009/1),
pp. 27-38
- PEREIRA, Ney Brasil, Povo Sacerdotal, n. 53 (2009/2), pp.
37-47
- PEREIRA, Ney Brasil, Hino do Ano Sacerdotal – Hino e
Comentário, n. 53 (2009/2), pp. 167-171
- PEREIRA, Ney Brasil, “Bíblia Sagrada Almeida Século XXI, Antigo
e Novo Testamento (recensão), n. 54 (2009/3), pp. 147-156
- PEREIRA, Reginaldo, Aparecida: a bem-aventurança do
discipulado, n. 52 (2009/1), pp. 133-146
- PEREIRA, Reginaldo, Igreja Povo de Deus: o Sacerdócio
comum dos fiéis na vida da Igreja, n. 53 (2009/2), pp. 151-164
- RAMADA PIENDIBENE, Daniel, O Diaconato Permanente:
vigência pastoral e fundamentos teológicos, n. 54 (2009/3),
pp. 85-112
- RIBEIRO, Célio, Segurança pública a partir do sermão da
Sexagésima, n. 52 (2009/1), pp. 39-56
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
179
Índice Geral
- ROSA, Alexandre Matos, e SCHUH, Sara Maria Lemos, Do
cárcere à liberdade: Quando a esperança vence a exclusão,
n. 52 (2009/1), pp. 115-120
- SÁVIO, Joel, LA DUE, William J., “O guia trinitário para a
Escatologia” (recensão), n. 54 (2009/3), pp. 161-165
- SCHAUFFERT, Fred Harry, O comportamento social ante a
segurança pública, n. 52 (2009/1), pp. 57-70
- SCHAUFFERT, Fred Harry, Mulher, vítima de violência: o
resgate da dignidade, n. 52 (2009/1), pp. 71-84
- SILVEIRA, André Luís da, e SCHNEIDER, Rodrigo Raiser,
Construindo Políticas Públicas de Segurança: uma análise
criminológica brasileira, n. 52 (2009/1), pp. 85-100
- STADELMANN, SJ, Luís, Confiança em Deus na crise, n. 52
(2009/1), pp. 121-132
- STADELMANN, SJ, Luís, O sacerdócio do reino messiânico
(Sl 110), n. 53 (2009/2), pp. 119-133
- STADELMANN, SJ, Luís, Roteiro de atividades pastorais
na Bíblia: Livros Sapienciais do AT e Diáconos no NT, n. 54
(2009/3), pp. 113-132
180
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Resumo Estatístico ITESC
ÍNDICE GERAL dos números 55, 56 e 57
(2010/1, 2 e 3)
a) Índice geral dos 3 números monográficos
– No. 55 (2010/1): CF Ecumênica– 2010:
Economia e Vida
- CONIC, Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, Campanha da
Fraternidade 2010 Ecumênica, pp. 11-16
- BARBOSA, Luís Alberto, Economia e Vida, pp. 17-24
- RIBEIRO, Antônio Lopes, Campanha da Fraternidade: uma
ação ecumênica conjunta em prol da Vida, pp. 25-40
- FAVARIN, Roque, Economia Solidária na região do
Contestado, em Santa Catarina, pp. 41-66
- STADELMANN, SJ, Luís, Desequilíbrios no sistema
econômico: a parábola do administrador (Lc 16,1-13), pp.
67-78
- LIMA, Anderson de Oliveira, Os justos e os profetas:
designações para os judeu-cristãos no evangelho de Mateus,
pp. 79-92
- SCHMIDT, Ervino, A Comissão Nacional Católico-Luterana.
Retrospectiva e Desafios, pp. 93-102
- SOUZA, Anderson Jankus de, Neopentecostalismo e marketing
religioso: uma análise das técnicas de merchandising em
instituições religiosas brasileiras, pp. 103-122
- RIBEIRO, Antônio Lopes, O Ensino Religioso na pósmodernidade, pp. 123-140
- CRUZ, Terezinha Mota, Simpósio sobre Ecumenismo.
Ecumenismo na Pastoral. Exigências da realidade sócioeclesial, pp. 141-152
- PEREIRA, Ney Brasil, MOLINARI, Paola (org.), “Música
brasileira na Liturgia II”, pp. 155-160
Encontros Teológicos nº 51
Ano 23 / número 3 / 2008
181
Índice Geral
– No. 56 (2010/2): Igreja e Sociedade
- STADELMANN, SJ, Luís, Separação entre o Povo Eleito e o
Estado de Israel, pp. 11-26
- VICENTE, Vilmar Adelino, A propósito do Ano Sacerdotal,
pp. 27-42
- DORNELAS, Sidnei Marcos, Igreja e mobilidade humana:
exigências, desafios, dimensão do ser e agir eclesial, pp. 4356
- GUERTECHIN, SJ, Thierry Linard, Vida política e igreja. O
direito-dever do eleitor cidadão, pp. 57-74
- SILVA, Márcio Bolda da, A práxis moral de Jesus e os
diferentes estigmatizados, pp. 75-100
- BRAGA, Aroldo, Igreja e Cultura, pp. 101-118
- DIETRICH, Luiz José, Igreja e Sociedade: entre profecia e
legitimação, pp. 119-132
- GOEDERT, David Bruno, Acordo Brasil – Santa Sé. Relações
tuteladas pelo direito, pp. 133-166
- PEREIRA, Ney Brasil, A invocação de Deus na liturgia: “Deus
todo-poderoso”? ou, antes, simplesmente, “Pai”?, pp. 167170
- PEREIRA, Ney Brasil, “Costela”, ou “lado” de Adão, em Gn
2,21-22? Um texto de João Crisóstomo, pp. 171-175
- SILVA, Wellington Cristiano da, ANDRADE, Bárbara, “Pecado
original... ou graça do perdão?” (recensão), pp. 177-186
– No. 57 (2010/3): O projeto pastoral de Aparecida
- GODOY, Manoel, O projeto pastoral na América latina e no
Documento de Aparecida, pp. 11-28
- MIRANDA, SJ, Mário de França, As mudanças socioculturais
e a Igreja no Brasil, pp. 29-48
- DORNELAS, Sidnei Marco, O método das Santas Missões
Populares a serviço da missão Continental? Questionamentos
sobre suas possibilidades e incongruências, pp. 49-66
182
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Índice Geral
- CARDOSO, Maria Teresa de Freitas, A perspectiva ecumênica
do Documento de Aparecida, pp. 67-80
- NERY, FSC, Irmão, Catequese Iniciática segundo Aparecida,
pp. 81-94
- BOMBONATO, FSP, Vera Ivanise, Vida religiosa consagrada:
rosto misericordioso e compassivo de Deus no mundo, pp. 95110
- COUTINHO, Sérgio Ricardo, Conversão pastoral e renovação
missionária a partir das CEBs, pp. 111-122
- DORNELAS, Nelito Nonato, A presença da Igreja Católica
no Brasil e suas implicações sociopolíticas, pp. 123-142
- DIAS, Geraldo Martins, Conferência de Aparecida, um sim às
novas tecnologias da comunicação, pp. 143-162
- SILVA, Márcio Bolda da, Ética religiosa e pós-modernidade.
Fidelidade, um parâmetro fragilizado, pp. 163-174
- PEREIRA, Ney Brasil, TREVIJANO ETCHEVERRIA, Ramón,
“A Bíblia no cristianismo antigo. Pré-nicenos, Gnósticos,
Apócrifos” (recensão), pp. 175-181
- PEREIRA, Ney Brasil, JUNGMANN, SJ, Josef Andreas,
“Missarum Sollemnia. Origens, liturgia, história e teologia
da Missa Romana”, pp. 182-186
b) INDICE GERAL dos três números monográficos
de 2010, por Autor
- BARBOSA, Luís Alberto, Economia e Vida, n. 55 (2010/1),
pp. 17-24
- BOMBONATO, FSP, Vera Ivanise, Vida religiosa consagrada:
rosto misericordioso e compassivo de Deus no mundo, n. 57
(2010/3), pp. 95-110
- BRAGA, Aroldo, Igreja e Cultura, n. 56 (2010/2), pp. 101118
- CARDOSO, Maria Teresa de Freitas, A perspectiva ecumênica
do Documento de Aparecida, n. 57 (2010/3), pp. 67-80
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
183
Índice Geral
- CONIC, Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, Campanha da
Fraternidade 2010 Ecumênica, n. 55 (2010/1), pp. 11-16
- COUTINHO, Sérgio Ricardo, Conversão pastoral e renovação
missionária a partir das CEBs, n. 57 (2010/3), pp. 111-122
- CRUZ, Terezinha Mota, Simpósio sobre Ecumenismo.
Ecumenismo na Pastoral. Exigências da realidade sócioeclesial, n. 55 (2010/1), pp. 141-152
- DIAS, Geraldo Martins, Conferência de Aparecida, um sim às
novas tecnologias da comunicação, n. 57 (2010/3), pp. 143162
- DIETRICH, Luiz José, Igreja e Sociedade: entre profecia e
legitimação, n. 56 (2010/2), pp. 119-132
- DORNELAS, Nelito Nonato, A presença da Igreja Católica
no Brasil e suas implicações sociopolíticas, n. 57 (2010/3), pp.
123-142
- DORNELAS, Sidnei Marco, Igreja e mobilidade humana:
exigências, desafios, dimensão do ser e agir eclesial, n. 56
(2010/2), pp. 43-56
- DORNELAS, Sidnei Marco, O método das Santas Missões
Populares a serviço da missão Continental? Questionamentos
sobre suas possibilidades e incongruências, n. 57 (2010/3), pp.
49-66
- FAVARIN, Roque, Economia Solidária na região do
Contestado, em Santa Catarina, n. 55 (2010/1), pp. 41-66
- GODOY, Manoel, O projeto pastoral na América latina e no
Documento de Aparecida, n. 57 (2010/3), pp. 11-28
- GOEDERT, David Bruno, Acordo Brasil-Santa Sé. Relações
tuteladas pelo direito, n. 56 (2010/2),pp. 133-166
- GUERTECHIN, SJ, Thierry Linard, Vida política e igreja. O
direito-dever do eleitor cidadão, n. 56 (2010/2), pp. 57-74
- LIMA, Anderson de Oliveira, Os justos e os profetas:
designações para os judeu-cristãos no evangelho de Mateus,
n. 55 (2010/1), pp. 79-92
- MIRANDA, SJ, Mário de França, As mudanças socioculturais
e a Igreja no Brasil, n. 57 (2010/3),pp. 29-48
184
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Índice Geral
- NERY, FSC, Irmão, Catequese Iniciática segundo Aparecida,
n. 57 (2010/3), pp. 81-94
- PEREIRA, Ney Brasil, MOLINARI, Paola (org.), “Música
brasileira na Liturgia II”, n. 55 (2010/1), pp. 155-160
- PEREIRA, Ney Brasil, A invocação de Deus na liturgia:
“Deus todo-poderoso”? ou, antes, simplesmente, “Pai”?, n.
56 (2010/2), pp. 167-170
- PEREIRA, Ney Brasil, “Costela”, ou “lado” de Adão, em Gn
2,21-22? Um texto de João Crisóstomo, n. 56 (2010/2), pp.
171-175
- PEREIRA, Ney Brasil, TREVIJANO ETCHEVERRIA, Ramón,
“A Bíblia no cristianismo antigo. Pré-nicenos, Gnósticos,
Apócrifos” (recensão), n. 57 (2010/3), pp. 175-181
- PEREIRA, Ney Brasil, JUNGMANN, SJ, Josef Andreas,
“Missarum Sollemnia. Origens, liturgia, história e teologia
da Missa Romana”, n. 57 (2010/3), pp. 182-186
- RIBEIRO, Antônio Lopes, O Ensino Religioso na pósmodernidade, n. 55 (2010/1), pp. 123-140
- SILVA, Márcio Bolda da, A práxis moral de Jesus e os
diferentes estigmatizados, n. 56 (2010/2), pp. 75-100
- SILVA, Márcio Bolda da, Ética religiosa e pós-modernidade.
Fidelidade, um parâmetro fragilizado, n. 57 (2010/3), pp. 163174
- SILVA, Wellington Cristiano da, ANDRADE, Bárbara,
“Pecado original... ou graça do perdão?” (recensão), n. 56
(2010/2), pp. 177-186
- SOUZA, Anderson Jankus de, Neopentecostalismo e marketing
religioso: uma análise das técnicas de merchandising em
instituições religiosas brasileiras, n. 55 (2010/1),pp. 103122
- SCHMIDT, Ervino, A Comissão Nacional Católico-Luterana.
Retrospectiva e Desafios, n. 55 (2010/1)pp. 93-102
- STADELMANN, SJ, Luís, Desequilíbrios no sistema
econômico: a parábola do administrador (Lc 16,1-13), n. 55
(2010/1), pp. 67-78
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
185
Índice Geral
- STADELMANN, SJ, Luís, Separação entre o Povo Eleito e o
Estado de Israel, n. 56 (2010/2), pp. 11-26
- VICENTE, Vilmar Adelino, A propósito do Ano Sacerdotal, n.
56 (2010/2), pp. 27-42
186
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Encontros Teológicos – 25 anos
REVISTA “ENCONTROS TEOLÓGICOS”
1986 – 25 ANOS – 2011
Títulos dos 58 números monográficos
1986, n. 1 (1986/1): O Leigo na Igreja
n. 2 (1986/2): Planejamento Pastoral do Regional Sul IV –
Contribuições
1987, n. 3 (1987/1): A Mulher, ontem e hoje
1988, n. 4 (1988/1): No Ano Mariano, Maria
n. 5 (1988/2): Comunicação e Evangelização
1989, n. 6 (1989/1): Religiosidade Popular em Santa Catarina
n. 7 (1989/2): Experiências Pastorais em Santa Catarina
1990, n. 8 (1990/1): A Mulher, na Igreja e na Sociedade
n. 9 (1990/2): O Trabalho
1991,n. 10 (1991/1): A visita do Papa à Igreja que está em Santa
Catarina
n. 11 (1991/2): Os Jovens e a Juventude
1992,n. 12 (1992/1): Evangelização da América Latina – 500 anos
e †Pe. Paulo Bratti – 10 anos
n. 13 (1992/2): Fraternidade e Moradia – CF 1993
1993, n. 14 (1993/1): Santo Domingo – o Documento
e ITESC – 20 anos
n. 15 (1993/2): Fraternidade e Família – CF 1994
1994, n. 16 (1994/1): Política e Igreja e Centenário de Dom Jaime
de Barros Câmara
n. 17 (1994/2): Fraternidade e Excluídos – CF 1995
1995, n. 18 (1995/1): A Era do Espírito
n. 19 (1995/2): Fraternidade e Política – CF 1996
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
187
Encontros Teológicos – 25 anos
1996, n. 20 (1996/1): Espiritualidade e Espiritualidades
n. 21 (1996/2): Fraternidade e Encarcerados – CF 1997
1997, n. 22 (1997/1): Cristo, Fé e Batismo
n. 23 (1997/2): Fraternidade e Educação – CF 1998
1998, n. 24 (1998/1): Espírito Santo, Esperança e Crisma
n. 25 (1998/2): Fraternidade e Desempregados – CF 1999
1999, n. 26 (1999/1): Deus Pai, Caridade e Reconciliação
n. 27 (1999/2): CF 2000 Ecumênica: Por um Milênio sem
exclusões
2000, n. 28 (2000/1): Trindade, Eucaristia, Jubileu
n. 29 (2000/2): CF 2001: Vida, sim; drogas, não!
2001, n. 30 (2001/1): Ser Igreja no novo Milênio
n. 31 (2001/2): CF 2002: Fraternidade e Povos indígenas
2002, n. 32 (2002/1): CNBB: 50 anos de serviço à Evangelização
no Brasil
n. 33 (2002/2): Concílio Vaticano II: 40 anos depois
2003, n. 34 (2003/1): CF 2003: Fraternidade e Pessoas Idosas
n. 35 (2003/2): Ética e Teologia
n. 36 (2003/3): ITESC – 30 anos
2004,n. 37 (2004/1): CF 2004: Fraternidade e Água
n. 38 (2004/2): O escândalo da Fome
n. 39 (2004/3): Lumen Gentium – 40 anos
Pessoa, Comunidade, Sociedade
2005, n. 40 (2005/1): CF 2005 Ecumênica: Solidariedade e Paz
n. 41 (2005/2): A Eucaristia: Ele está no meio de nós
n. 42 (2005/3): Gaudium et Spes – 40 anos
2006, n. 43 (2006/1): CF 2006: Fraternidade e Pessoas
com deficiência
n. 44 (2006/2): XV Congresso Eucarístico Nacional
– maio de 2006
n. 45 (2006/3): Conferência Geral do Episcopado Latino
Americano e Caribenho
188
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
Aparecida – preparação
Encontros Teológicos – 25 anos
2007, n. 46 (2007/1): CF 2007: Amazônia, Vida e Missão nesse chão
n. 47 (2007/2): Espiritualidade
n. 48 (2007/3): A Igreja em Santa Catarina
2008, n. 49 (2008/1): CF 2008: Fraternidade e Defesa da Vida
n. 50 (2008/2): A Igreja em Santa Catarina – II
n. 51 (2008/3): A Igreja no Documento de Aparecida
2009, n. 52 (2009/1): CF 2009: Fraternidade e Segurança Pública
n. 53 (2009/2): Ano Sacerdotal: 2009-2010
n. 54 (2009/3): Diaconato Permanente
2010, n. 55 (2010/1): CF 2010 Ecumênica: Economia e Vida
n. 56 (2010/2): Igreja e Sociedade
n. 57 (2010/3): O Projeto Pastoral de Aparecida
2011, n. 58 (2011/1): CF 2011: Fraternidade e a Vida no Planeta
Encontros Teológicos nº 58
Ano 26 / número 1 / 2011
189
(Faça uma cópia, caso não queira recortar esta página da revista!)