COMO O REGISTRO ESCRITO E O REGISTRO ORAL SE

Transcrição

COMO O REGISTRO ESCRITO E O REGISTRO ORAL SE
ILICEIA IRENE KREFER MICHALZECHEN
COMO O REGISTRO ESCRITO E O REGISTRO ORAL SE
APRESENTAM NA OBRA NINETEEN EIGHTY-FOUR E SUA
IMPORTÂNCIA PARA O RESGATE DA MEMÓRIA CULTURAL
Monografia apresentada como requisito
parcial para obtenção de grau de
especialista em Ensino de Línguas
Estrangeiras Modernas, pelo Centro
Federal de Educação Tecnológica do
Paraná – CEFET.
Orientadora: Professora Claudia
Beatriz Monte Jorge Martins
CURITIBA
2005
A todos os literatos dedico o meu maior
apreço pelo interesse e dedicação com que
tratam das questões literárias.
ii
Preciso agradecer:
a Deus;
a João e a João Luis;
e às zelosas professoras Claudia e Regina.
iii
SUMÁRIO
RESUMO
v
ABSTRACT
vi
1 INTRODUÇÃO
1
2 REVISÃO DA LITERATURA
5
2.1 RESUMO DA OBRA NINETEEN EIGHTY-FOUR
5
2.2 O REGISTRO ESCRITO E O REGISTRO ORAL
7
2.3 A IMPORTÂNCIA DO LIVRO PARA A MEMÓRIA CULTURAL DA
HUMANIDADE
12
3 ANÁLISE TEÓRICA DA OBRA
16
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
25
REFERÊNCIAS
29
iv
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo analisar a obra de George ORWELL (1955)
Nineteen Eighty-Four para constatar como o registro escrito e o registro oral se
apresentam. Também será verificada a importância do livro para o resgate da memória
cultural da humanidade. Pretende-se com esta análise mostrar como a veracidade dos
registros é importante e como estes podem ser adulterados trazendo prejuízos à
humanidade. O trabalho tem por base estudos feitos por autores e críticos do tema em
questão. Alguns desses autores consideram o registro escrito mais importante que o
oral, enquanto outros consideram o registro oral mais importante que o escrito.
Conclui-se, todavia, que os dois registros são importantes para o desenvolvimento do
gênero humano, assim como é de extrema importância a sua preservação. A
veracidade dos registros pode influir diretamente no futuro das pessoas. A sua
adulteração pode provocar sérios danos à natureza humana. No referente à questão do
livro e de sua importância para o resgate da memória cultural, Nineteen Eighty-Four
mostra que ele desempenha o papel de auxiliador na construção do saber de um
indivíduo e na sua capacidade de formar opiniões críticas.
Palavras-chave: registro escrito; registro oral; memória cultural; veracidade dos
registros; a importância do livro.
v
ABSTRACT
The objective of the present work is to analyse George ORWELL’s (1955) work,
Nineteen Eighty-Four, to verify how the written and oral registers are presented in it. It
also verifies the importance of the book for the recovery of the cultural heritage of
humanity. This analysis intends to show how important the veracity of registers is and
how they can be adulterated and cause damage to society. This work is based on
studies conducted by authors and critics of the topic in question. Some of these authors
consider the written register more important than the oral register while others
consider the oral register more important than the written register. The conclusion
reached is that both kinds of register are important for the development and
preservation of humankind. The veracity of registers can have a significant influence
on people’s future and their adulteration can cause serious damage to human nature.
As to the question of the book, Nineteen Eighty-Four shows that it performs the role of
auxiliary in the construction of a person’s knowledge and in his ability to form a
critical point of view.
Key-words: written register; oral register; cultural heritage; veracity of register; the
importance of books.
vi
1
INTRODUÇÃO
Antes de iniciar este trabalho, será feita uma breve apresentação do termo
literatura e de sua definição, para então entrar no mérito da questão à que a presente
monografia se destina. Este termo será definido de acordo com Roland BARTHES
(1974) que afirma que a palavra ‘literatura’ é bastante recente, existindo no plano
terminológico apenas a partir do final do século XVIII, pois antes desta época falavase de “letras”, ou seja, de “belas artes”, sendo assim, prefere situá-la “no quadro da
socialidade”. O autor considera que isso é muito importante porque “a literatura não é
um objecto intemporal, um valor intemporal, mas um conjunto de práticas e de valores
situados numa dada sociedade.” BARTHES (1974, p. 13) ainda acrescenta que:
O que há de interessante na literatura não é propriamente o facto de um romance reflectir
uma realidade social; o carácter específico de uma obra literária, de um romance, por
exemplo, é praticar aquilo a que se podia chamar uma mímesis das linguagens, uma espécie
de imitação geral das linguagens. O que faz com que, quando a literatura, o romance, se
apresentam como escrita literária, é finalmente a escrita literária anterior que copiam.
Estar ciente da importância da literatura e de sua significação para a memória
cultural da sociedade viabiliza a apresentação desta monografia. O objetivo geral deste
trabalho é fazer uma análise da obra Nineteen Eighty-Four (1984), de George
ORWELL (1955), para verificar como a questão do registro oral e escrito se apresenta.
Para que este objetivo seja atingido será definido o que é o registro escrito e o registro
oral. Também será verificada a questão do livro em si e de sua importância para o
desenvolvimento da sociedade e sua vital importância para a memória cultural da
humanidade, apontando como sua ausência pode influir no desenvolver do pensamento
da sociedade, tendo-se em vista que um livro não precisa necessariamente ser
impresso, ele pode estar registrado na memória das pessoas e, assim, ser passado de
geração a geração através da oralidade (CHEVALIER & GEERBRANT, 2002). Além
disso, será mostrada a importância da veracidade dos registros em Nineteen EightyFour e quais os prejuízos que a adulteração destes registros ocasionam nesta obra. O
tema será embasado em obras de autores e críticos de literatura em geral. Haverá uma
2
seleção de citações, acompanhada de embasamento teórico de obras de outros autores
condizentes com o tema a ser trabalhado. Os aspectos do tema em questão serão
apontados fazendo-se ver que a obra não é apenas uma mera ficção. Nineteen EightyFour, ao ser analisada por autores como CARTER e MCRAE (2001), SILVINO
(2002) e SENA (1963), não têm por menção a questão a que o tema da presente
monografia se propõe, mas os referidos autores fornecem embasamento teórico a
respeito do que a obra trata.
Em Nineteen Eighty-Four, os livros, assim como tudo o que se refere ao
registro escrito (documentos, revistas etc) são adulterados. O passado é mudado
constantemente, de acordo com o que mais aprouver, em defesa do Partido do “Grande
Irmão” (Big Brother, como era chamado). Confissões são forjadas para incriminar
pessoas que tentam se rebelar contra o modo de procedência do governo, livros
literários, porta de entrada da cultura, são destruídos para que as pessoas não tenham
acesso a eles. Após o processo de reescritura, os originais são colocados em um tubo
pneumático para serem destruídos através do fogo.
Quanto ao registro oral, este se apresenta nos momentos em que o
protagonista Winston narra para sua namorada Júlia, fatos e acontecimentos originais
relatados em um livro que ele está lendo, e que fazem parte de um passado que ele já
tinha conhecimento, mas que é reforçado em sua mente através de sua leitura e de sua
transposição pela oralidade. Há também momentos em que Winston conta a Júlia fatos
que recorda de seu passado, comparando-os com a época atual vivida por eles. Apesar
de Júlia não parecer muito interessada no que Winston conta sobre o livro, ela também
conta fatos de seu passado. Ela deixa claro que não se importa muito com o passado,
pois é de uma geração mais nova que a de Winston, mesmo assim está engajada na
campanha pró-liberdade fazendo parte dos proles, pessoas que vivem isoladas e se
manifestam contra o Partido.
Na obra também ocorre um processo de alienação das pessoas que se tornam
mais vulneráveis à manipulação dos que detém o poder. As pessoas por não terem
acesso à veracidade dos fatos, sofrem com a repressão a que são submetidas. Embora o
3
objetivo da obra de ORWELL (1955) não seja falar da importância do livro, isto surge
com força no decorrer da estória, assim como acontece com os registros escrito e oral,
que se fazem presentes na obra devido à sua adulteração e supressão dos originais.
Este ato de destruição dos documentos originais feito pelo Partido do Big Brother, tem
verossimilhança com atos ocorridos durante o regime totalitarista vigente no período
de 1948, e se faz presente em toda a obra Nineteen Eighty-Four.
O interesse por essa questão do registro surgiu após uma leitura mais
detalhada da obra, na qual pode se verificar a grande predominância dos registros
escrito e oral. Quanto ao aspecto referente ao livro e sua importância para a cultura da
sociedade, este vem de encontro com o objetivo geral do trabalho, pois ao se tratar de
registros não se poderia deixar de apontar um dos principais veículos que comportam o
registro escrito. Em referência ao registro oral considera-se que este é essencial para a
difusão da memória cultural, se não o fosse o que poderia se dizer a respeito das
línguas ágrafas?
As inquietações que moveram a pesquisa atravessam as inter-relações entre a
literatura de ficção e a realidade cultural através de informações coletadas em livros
especializados no tema da pesquisa, bem como trechos da obra a ser analisada. Neste
estudo será feito uso de pesquisa descritiva, interagindo com obras críticas e literárias,
a fim de buscar o tema em questão a que a presente monografia se destina.
Considera-se importante a escolha deste tema por julgar relevante sua
contribuição para o ensino de literatura estrangeira, bem como para o aproveitamento
no meio acadêmico e científico. A pesquisa trará para as discussões da atualidade
fenômenos ainda dispersos nas idéias de professores e alunos de literatura estrangeira e
de outras áreas afins. Introduzir este enfoque no estudo de literatura estrangeira pode
colaborar com o aprendizado dos alunos e pode convidar outros pesquisadores a
desenvolverem futuras pesquisas para aprofundar o tema elaborado.
O presente trabalho será organizado em três partes. Na primeira parte,
Revisão da Literatura, será feito um resumo da obra seguido de comentários feitos
pelos autores CARTER e MCRAE (2001), SILVINO (2002) e SENA (1963), que
4
expõe seu pensamento a respeito da obra de ORWELL (1955). Neste capítulo também
será dada uma definição do que é o registro escrito e o registro oral através dos autores
LANGACKER (1972), BARTHES (1971), CHEVALIER & GHEERBRANT (2002),
BENJAMIN (1987) e CHARTIER (2001), e será apresentada a importância do livro
para a cultura da sociedade em geral, de acordo com o pensamento de autores como
CHEVALIER & GHEERBRANT (2002), ALMEIDA (2001), BORGES (1985),
CALVINO (1993), SCHOPENHAUER (1993), PINTO (1998), ARROJO (1999),
DEUTSCH (2000) e BUENO (2004). Na segunda parte, Análise da Obra, será feita a
análise a que o presente tema desta monografia se destina. Ainda serão mostrados,
através da obra, a importância da veracidade dos registros e os prejuízos que sua
adulteração pode trazer à sociedade. O embasamento, neste capítulo, será dado através
dos teóricos SILVINO (2002), CALVINO (1993), CHEVALIER & GHEERBRANT
(2002), ARROJO (1999), PINTO (1998), CHARTIER (2001), DEUTSCH (2000) e
LEOPARDI (apud ARROJO, 1999). Na terceira parte, Considerações Finais, será feita
a conclusão do trabalho evidenciando a importância da pesquisa e da análise da obra
em relação ao tema escolhido. Também serão dadas sugestões de novas pesquisas de
trabalho visando a exploração do tema proposto.
5
2. REVISÃO DA LITERATURA
Em princípio será feito um breve resumo da obra Nineteen Eighty-Four, para
propiciar um melhor entendimento em relação ao tema abordado. O resumo virá
seguido de breves comentários feitos por alguns autores que expõem seu pensamento a
respeito desta obra. Ainda, neste capítulo primeiro, será definido o que é o registro
escrito e o registro oral e será apresentada a importância do livro para a memória
cultural da humanidade.
2.1 RESUMO DA OBRA NINETEEN EIGHTY-FOUR
A obra de George ORWELL (1955) (pseudônimo de Eric Arthur Blair,
segundo Jorge de SENA (1963)) Nineteen Eighty-Four, datada de 1955 e com sua
primeira edição em 1949, traz uma história crítica com intenção política. Um novo
idioma criado para substituir o inglês e denominado novilíngua é inserido pelo Partido
que obriga os cidadãos a utilizá-lo. Este novo idioma tem seus vocábulos reduzidos
fundindo idéias para formar palavras reduzidas e com vários significados. Não só as
palavras são reduzidas, mas também a capacidade de questionamento das pessoas.
Tanto os livros, quanto os jornais e todos os meios de informação são reescritos, de
modo que o Partido seja sempre beneficiado. Este pretende inculcar na mente dos
cidadãos só aquilo que é de seu próprio interesse. A população tem seu pensamento e
todos seus atos controlados por um aparelho tecnológico chamado telescreen (teletela),
tornando-se mais vulnerável. Winston, personagem principal da história, consegue
burlar o controle da teletela e passa a anotar suas idéias em um livro em branco. Ele
trabalha no Ministério da Verdade fazendo alterações nos registros escritos de acordo
com as ordens do Partido. Não só o registro escrito é adulterado, mas também o
registro oral quando as pessoas são proibidas de falar acerca de fatos reais ocorridos no
passado e que no presente foram modificados em seu sentido. Além deste ministério
há também o Ministério da Paz, encarregado de se ocupar da guerra; o da Fartura,
6
auxiliar das atividades econômicas; e o Ministério do Amor, cujo nome é um
paradoxo, responsável em manter a lei e a ordem. Este é o mais temível de todos, pois
além de ser um local intransponível pelos cidadãos comuns devido ao seu forte aparato
de segurança, também é o local onde os que se rebelam contra o Partido são
terrivelmente torturados.
ORWELL (1955) expõe em sua obra um suposto futuro em que o
estalinismo leva o mundo a uma evolução histórica distorcida. O Partido estabelece
uma novíssima ordem mundial dividindo o mundo em três continentes auto-suficientes
que estão em guerra permanente e estável. BUENO (2004) afirma que a obra é uma
distopia1 em que se procura restabelecer uma sociedade com antagonismos de classes,
como se fosse um socialismo às avessas, porém com uma classe dominante melhor
preparada para se estabelecer permanentemente no poder (BUENO, 2004). A obra faz
menções a Stalin e Trotsky, através de personagens como o “Grande Irmão” e
Goldstein respectivamente. O Partido do “Grande Irmão” possui três slogans que são o
seu lema: “war is peace; freedom is slavery; ignorance is strength.” (ORWELL, 1955,
p. 8)
CARTER e MCRAE (2001) descrevem a obra de ORWELL (1955) como
futurista em que o sistema político tem controle total sobre as pessoas. O poder
ameaçador deste sistema pode ser visto nesta frase que está exposta em todos os
lugares públicos: “Big Brother is Watching You”. ORWELL (1955, p. 5)
Escrito no pós-guerra, o livro de Orwell descreve uma visão pessimista de
um futuro sombrio, como afirma Leonardo SILVINO (2002) em seu artigo “George
Orwell e o mundo de 2084”. SILVINO (2002) ainda diz que o autor fez uma inversão
na data de 1948 para 1984 no título da obra para não assustar os leitores, pois neste
período vigorava um totalitarismo real e não imaginário como o da obra de ficção.
Segundo SILVINO (2002), Winston é uma crítica à imprensa. Ao trabalhar para o
1
Segundo BUENO (2004), distopia é uma utopia às avessas. O indivíduo se encontra cada
vez mais sufocado pelo sistema e anulado pela sua própria espécie.
7
Ministério da Verdade, Winston desempenha a função de alterar o passado. Entretanto,
ele passa a ter atitudes contrárias ao Partido e faz anotações de suas idéias em um
diário. Este diário é um livro em branco, sem nenhum tipo de anotação, e que aos
poucos vai sendo preenchido com frases que buscam o passado e a verdade dos fatos.
Jorge de SENA (1963), entretanto, faz uma crítica à obra dizendo que esta
foi recebida pelos leitores com os maiores equívocos. O autor ainda considera que
Nineteen Eighty-Four é uma utopia alucinante e horrorosa que trata de um mundo
futuro dominado pela tirania do Partido do Big Brother e pela técnica de suprimir
fatos, documentos e idéias, que são adequados à nova realidade. SENA (1963, p. 419),
embora já tenha feito críticas construtivas a respeito de outros trabalhos de Orwell,
retrata Nineteen Eighty-Four como sendo um “livro volumoso, denso, asfixiante,
inexorável, é uma obra terrível”.
Considera-se que o julgamento de SENA (1963) em respeito à obra de
Orwell seja um tanto exagerado. O autor de Nineteen Eighty-Four procurou deixar
registrada em sua obra uma mensagem a leitores de várias épocas, alertando sobre os
intensos problemas que as pessoas poderiam vir a sofrer, em um futuro próximo, ao se
deixarem oprimir. A falta de vontade em lutar contra desvelos impostos por opressores
(como a supressão de documentos, fatos e idéias) e a falta de esperança de um futuro
mais promissor, torna as pessoas vulneráveis a manipulação por subordinantes dotados
de poderio, além de causar a sua alienação. Durante a primeira e segunda guerras
mundiais, as pessoas se preocupavam mais em viver o momento presente, elas não
tinham perspectivas futuras devido ao momento conflitante pelo qual estavam
passando. Como a obra foi escrita em época de pós-guerra, supõe-se que muitas
pessoas deste período não se importavam em zelar pela liberdade de expressão e de
opinião tornando-se submissas ao poderio do regime vigorante.
2.2
O REGISTRO ESCRITO E O REGISTRO ORAL
Por volta do ano 3.000 a.C. e no Oriente Médio, desenvolveu-se a arte da
8
escrita. Ela possivelmente se originou com os sumérios, conforme afirma
LANGACKER (1972), difundindo-se logo em seguida. Já o sistema de escrita egípcio
teve influência do sumeriano para se desenvolver. Compunha-se em uma parte de
escrita de palavras e outra de sílabas e, a partir deste sistema é que surgiram outros,
usados pelos semíticos do ocidente. Tanto o hebraico, quanto o aramaico e o fenício
usavam o sistema silábico, mas é através dos gregos antigos que surgiu a escrita
alfabética, que se tornou mais precisa que a de sinais silábicos. Os sinais vocálicos
foram acrescentados para eximir a ambigüidade que a escrita possuía quando era feita
por meio de sinais silábicos (LANGACKER, 1972).
Antes de a escrita ter sido inventada, a humanidade utilizava a linguagem
oral para se comunicar, segundo afirma LANGACKER (1972). E como ela surgiu? De
acordo com o autor, a técnica da escrita surgiu da arte pictórica, apesar de haver
diferença entre as duas. A escrita é representada pela língua, ela faz uma combinação
entre a representação gráfica e a fala, enquanto que a representação pictórica é direta e
feita por meio de desenhos. Como a transmissão de mensagens por meio do sistema
pictórico muitas vezes era complicada – em frases que contêm informações longas
torna-se dificultoso conseguir expressar tudo apenas através de desenhos – a
representação através da língua, ou seja, pela escrita, surge quando desenhos
convencionais, ou sinais, passam a designar palavras e não apenas idéias. É claro que
no sistema de escrita tudo o que é dito pode ser registrado, mas não há ainda nenhum
sistema como este que possa apontar de maneira satisfatória a entonação, que só pode
ser representada pela oralidade, nem mesmo os gestos podem ser representados pela
escrita (LANGACKER, 1972).
LANGACKER (1972, p. 66), ao discorrer sobre a escrita (registro escrito)
diz que, “A língua é a fala e a competência lingüística subjacente à fala. A escrita não
é mais do que uma representação gráfica secundária da fala, a qual goza de certos
privilégios. Uma mensagem escrita é relativamente permanente, enquanto que a fala é
totalmente efêmera. Uma vez emitida, uma mensagem oral se perde para sempre
(embora as técnicas de gravação estejam até certo ponto modificando esta situação)”
9
(LANGACKER, 1972). Percebe-se que o autor dá mais crédito à escrita por esta ser
mais duradoura do que a oralidade a qual, devido à sua transitoriedade, ele coloca em
segundo plano.
O autor ainda vai além no que diz respeito ao registro escrito ao acrescentar
que “[...] uma mensagem escrita pode ser conservada e posteriormente consultada.
Fatos e idéias transpostos para a escrita podem ser preservados sem tornar-se uma
sobrecarga para a memória.” (p. 67) Ele ainda considera que um grande número de
pessoas que vivam em lugares e épocas diferentes pode ter acesso às mensagens
escritas, além de que o registro escrito facilita a distribuição de mensagens entre as
pessoas e que essa distribuição feita através da oralidade seria um processo dificultoso,
pois os mensageiros teriam de decorar mensagens longas e percorrer caminhos
extensos, como viajar ao redor do mundo, para apresentá-las por meio da oralidade.
LANGACKER (1972) ainda afirma que o registro escrito, além de facilitar a sua
transmissão, é uma forma eficaz de se preservar mensagens, que oralmente poderiam
vir a se perder com o passar do tempo.
A mesma idéia em relação à escrita também é apresentada por BARTHES
(1971, p. 26) ao afirmar que “as palavras têm uma memória segunda que se prolonga
misteriosamente em meio às significações novas. A escritura é precisamente esse
compromisso entre uma liberdade e uma lembrança.” O autor ainda faz mais
acréscimos a respeito do registro escrito dizendo que este faz com que ocorra um
surgimento do passado através de sua realização. BARTHES (1971) afirma que o
registro escrito se assemelha a um elemento químico que se apresenta, em princípio,
de maneira clara, inofensiva e indiferente, mas que pode mudar com o passar do tempo
quando este passa a mostrar, aos poucos, todo um passado que estava suspenso e uma
criptografia que vai se tornando cada vez mais densa.
BARTHES (1971), ainda reforça seu posicionamento a respeito dos
registros. O autor deixa evidente que a escritura é fechada e sólida, diversa da
linguagem oral, que mesmo sendo formal ou coloquial, possui intervalos, sendo
flexível e desordenada. BARTHES (1971, p. 31) considera que:
10
Todas as escrituras apresentam um caráter de fechamento que é estranho à linguagem
falada. A escritura não é nenhum instrumento de comunicação, não é um caminho aberto
por onde passaria uma só intenção de linguagem. Toda uma desordem se ecoa através da
fala, dando-lhe o movimento devorado que mantém essa mesma desordem em estado de
eterno adiamento. Inversamente, a escritura é uma linguagem endurecida que vive de si
mesma e não tem em absoluto a missão de confiar à sua própria duração uma seqüência
móvel de aproximações, mas, ao contrário, de impor, pela unidade e pela sombra de seus
signos, a imagem de uma fala construída muito antes de ser inventada.
Segundo BARTHES (1971, p. 31) “O que opõe a escritura à fala, é que a
primeira
parece
[grifo
do
autor]
sempre
simbólica,
introvertida,
voltada
ostensivamente para uma vertente secreta da linguagem, ao passo que a segunda não
passa de uma duração de signos vazios, dos quais só o movimento é significativo.”
Entretanto, no que concerne a importância do registro oral e do registro
escrito, as palavras de CHEVALIER & GHEERBRANT (2002, p. 552) definem a
linguagem como sendo “símbolo de um ser inteligente: indivíduo, etnia, nação.” Os
autores consideram que a linguagem compreende “o sentido exato de língua falada ou
escrita, idioma, que é uma das inumeráveis formas de linguagem e um dos
componentes de uma estrutura mental e social” e ainda acrescentam que “o
conhecimento de sua linguagem permite o acesso à intimidade de uma pessoa e de um
grupo.” Para CHEVALIER & GHEERBRANT (2002) o importante é a linguagem,
seja ela escrita ou oral.
CHEVALIER & GHEERBRANT (2002), afirmam que os celtas possuíam
escrita e isso é provado pelos documentos existentes e que falam sobre o mundo celta
da Antiguidade. Mas, diferentemente do comportamento das sociedades modernas, os
celtas não davam valor absoluto de arquivo para os documentos escritos, nem mesmo
os valorizavam quanto ao ensino através destes. Eles consideravam que o registro
escrito não é passível de alteração, ficando definitivamente fixado, todavia, o saber
transmitido através da oralidade pode renovar-se a cada geração. A importância do
registro oral também se faz presente através dos grandes mestres como Sócrates, Buda,
Jesus Cristo estes, não deixaram escritos e mesmo assim se perpetuaram
(CHEVALIER & GHEERBRANT, 2002).
11
Entretanto, para complementar seu raciocínio sobre a importância da
linguagem escrita, LANGACKER (1972) assegura que há uma enorme dívida da
sociedade moderna para com a escrita, e a civilização tecnológica contemporânea só
conseguiu ter uma existência semelhante à atual devido às suas habilidades em fazer a
documentação e preservação de mensagens lingüísticas. Segundo o autor, se
desaparecessem as representações escritas da língua (revistas, jornais, livros, etc.) tudo
viraria um caos, pois o conhecimento e a cultura, preservados através do registro
escrito, em grande parte seriam eliminados, haveria uma desorganização do
pensamento devido ao fato de que nossa mente não comportaria todo esse
conhecimento que teria de ser realizado nela. LANGACKER (1972) afirma que a
tecnologia responsável pelos meios de comunicação eletrônica não existiria se o
homem não tivesse antes aprendido a arte de escrever, para poder, através desta arte,
acumular seus conhecimentos técnicos e científicos.
BENJAMIN (1987) considera que o fim da narrativa oral ocorreu com o
surgimento do romance. Ele afirma que o narrador representa a experiência própria de
forma coletiva, enquanto que o romancista trabalha com o indivíduo isolado que é
incapaz de falar de sua experiência de forma exemplar. Para BENJAMIN (1987) o
livro, na modernidade, se transforma para muitas pessoas em veículo para troca de
experiências, de contato com o mundo ou de fuga dele, embora atualmente este
veículo, como afirma o autor, esteja perdendo pouco a pouco esse papel e forma
tradicionais para os avanços tecnológicos.
A escrita, portanto, exerce um forte poder sobre as pessoas. Roger
CHARTIER (2001) faz um relato sobre as grandes escritas epigráficas, que se vêem na
Roma antiga e que apesar de seu esquecimento durante a Idade Média, expressam
claramente o poder nas monarquias da época moderna (século XVI a XVIII). Estas
inscrições são muito interessantes pelo fato de não poderem ser lidas pela maioria do
povo uma vez que estão inscritas em latim e também por se acharem colocadas a uma
altura que o olhar normal não alcança. Para CHARTIER (2001, p. 24), o fato de que
estas escritas epigráficas não possam ser decifradas não é importante e sim o poder que
12
elas exercem, ou seja, elas “tornam visível o poder e delimitam um território marcado,
apropriado pelo poder por meio da escrita.” CHARTIER (2001) afirma que, de acordo
com os produtores de texto, o texto é dotado de ordem, disciplina e coação,
transmitidos no ato de sua leitura, enquanto que a escrita encontra uma forma de fuga
da ordem patriarcal, matrimonial ou familiar.
Alguns autores, portanto, como LANGACKER (1972), BARTHES (2001) e
CHARTIER (2001) consideram que o registro escrito é mais importante que o registro
oral, enquanto que para CHEVALIER & GHEERBRANT (2002) o registro oral é
mais importante que o escrito. De qualquer forma, a relevância desses registros fica
provada através dos referidos autores e também pelo fato de que os registros “oral e
escrito” são formas complementares de comunicação e de preservação histórica e
cultural.
2.3 A IMPORTÂNCIA DO LIVRO PARA A MEMÓRIA CULTURAL DA
HUMANIDADE
“Símbolo do conhecimento em geral, e da Literatura em particular, a imagem
do livro é cara ao imaginário ocidental”, segundo Marco Antônio de ALMEIDA
(2001, p. 05), que considera também que, além da simples manifestação do prazer e da
estima pela vasta instrução que a leitura proporciona, existe algo mais importante que
é a “tematização constante do livro” e que segundo o autor, essa tematização é tida
como uma imitação das preocupações de cada época relacionada com a experiência
humana e o conhecimento.
CHEVALIER & GHEERBRANT (2002, p. 555) em sua definição sobre o
livro dizem que, “O livro é sobretudo, se passamos a um grau mais elevado, o símbolo
do universo [...] Se o universo é um livro, é que o livro é a Revelação e, portanto, por
extensão, a manifestação.” Sobre esta questão não se pode deixar de mencionar a
Bíblia, o Corão, os Vedas, livros que transmitem a palavra sagrada e que, para muitos,
são a revelação da existência de um Ser Supremo (CHEVALIER & GHEERBRANT,
13
2002). BORGES (1985), ao considerar o livro como uma libertação das consciências
de cada ser humano, afirma que para os povos antigos a oralidade era mais importante
que a escrita devido ao caráter vivo e fugaz que aquela apresenta. Os povos antigos,
portanto, não cultuavam o livro que, segundo eles, era apenas o substituto da palavra
oral. Quanto à noção de livro sagrado, como a Bíblia, os Vedas, o Corão, esta foi
introduzida pelos orientais segundo afirmação de BORGES (1985), o qual acredita que
embora o conceito de livro sagrado tenha acabado, ele ainda é possuidor de uma certa
santidade que deve ser mantida a todo custo.
Durante a leitura de um livro, muitas vezes tem-se a sensação de já ter lido
ou ouvido sobre o que o tema trata em algum momento da vida. O pensamento, de se
saber de antemão o que os livros dizem, vai de encontro à afirmação de Ítalo
CALVINO (1993, p. 12), quando este recomenda a leitura de livros clássicos, “o
clássico não necessariamente nos ensina algo que não sabíamos; às vezes descobrimos
nele algo que sempre soubéramos (ou acreditávamos saber) mas desconhecíamos que
ele o dissera primeiro (ou que de algum modo se liga a ele de maneira particular).”
Mesmo quando já se tem conhecimento do que um livro trata, a sensação de surpresa
de se ler o que já se sabe é gratificante por se descobrir de onde este saber se originou,
assim como a sua analogia e pertinência.
Em continuidade ao pensamento de CALVINO (1993), em relação aos
clássicos Arthur SCHOPENHAUER (1993, p. 45) conclui que:
[...] Não há maior deleite para o espírito que a leitura dos antigos clássicos: tão logo
tomamos um deles, nem que seja por meia hora, nos sentimos refrescados, aliviados,
purificados, elevados e fortalecidos; exatamente como se tivéssemos bebido de uma fresca
fonte. [...] Se algo sei é que se, tal como agora se ameaça, o estudo das línguas antigas
fosse abandonado, surgiria uma literatura feita de escritos tão bárbaros, superficiais e sem
valor, como nunca antes existiu.
Considerando este posicionamento de SCHOPENHAUER (1993) a respeito
dos clássicos, percebe-se o quanto o autor valoriza este tipo de literatura além de
valorizar o estudo das línguas antigas, que segundo ele, permite que os escritos
mantenham sua pureza e valor.
14
Clássicos ou não, BORGES (1985) faz algumas considerações a respeito do
ato de ler, ao afirmar o envolvimento dos sentidos no desempenho da leitura
acompanhado de uma intimidade com o livro. Essa relação íntima se dá através do tato
ao folhear-se o livro, passar a mão sobre a encadernação e as figuras. Do olfato, no
prazer de sentir o cheiro do papel, da cola, da tinta. Da audição, pelo gosto de ler em
voz alta determinadas passagens da obra. Também do paladar quando se umedece a
ponta dos dedos com a língua no intuito de facilitar o seu folhear. E, por último, da
forma mais absoluta que é a da visão.
Enquanto CALVINO (1993) e SCHOPENHAUER (1993) apontam a
importância dos clássicos para a memória cultural, BORGES (1985) opera arranjos e
investidas em seus textos com o intuito de melhorá-los, de acordo com a afirmação de
Júlio Pimentel PINTO (1998, p. 182) e que diz o seguinte: “seus livros são
continuamente reescritos [grifo do autor], visando a novas edições, justificadas pela
vontade de excluir determinados trabalhos, julgados indesejáveis, ou incluir outros,
produzindo uma nova versão essencialmente distinta das formas anteriores do livro.”
BORGES (1985) busca a perfeição para suas obras, lapidando-as ele julga que a cada
nova edição elas poderão passar ao leitor uma nova versão, mais elaborada que a
anterior, portanto melhor.
Esta afirmação de PINTO (1998) em referência à reescritura dos livros, a que
Borges se submete com tanta precisão, é reafirmada por ARROJO (1999), quando a
autora, ao se referir ao texto, opta por considerá-lo como um “palimpsesto”.
Palimpsesto vem do grego palímpsestos (raspado novamente) e que se refere
principalmente ao pergaminho, que devido à sua escassez, era raspado e reutilizado. O
termo palimpsesto também se refere às muitas leituras e interpretações que um texto
pode ter.
Livros reescritos ou clássicos só terão sua devida importância se forem
mantidos vivos para a preservação da memória cultural, afirma Hulton DEUTSCH
(2000). Para o autor, a crença na superioridade genética das pessoas nórdicas, aliada a
uma tradição de orgulho romanesco do racionalismo, liberalismo e democracia,
15
estimulou o nazismo alemão à queima de livros rotulados “judeu-marxistas” e “antigermânicos”, e que, em maio de 1933 e em Berlin, foram arremessados a uma enorme
fogueira por estudantes alemães e nazistas.
Ainda sobre a importância cultural que o livro apresenta, BORGES (1985, p.
11) deixa seu juízo definitivo a respeito do livro, “Se lemos um livro antigo é como se
lêssemos durante todo o tempo que transcorreu entre o dia em que foi escrito e nós.
Por isso convém manter o culto ao livro.” O autor afirma que mesmo que o livro
contenha erros e não concordemos com as opiniões do autor em sua obra, ele conserva
algo de sagrado e de divino pelo simples desejo de se encontrar nele a felicidade e a
sabedoria que tanto o ser humano procura.
Considera-se que o livro busca registrar a memória e o pensamento das
pessoas, assim como os seus avanços. Embora nem tudo o que esteja escrito em um
livro seja a mais pura verdade, a sua destruição ocasionará um rompimento com o
passado e com tudo o que estava preso a ele. Mas a verdade não está escrita
unicamente nos livros. O saber humano pode estar arquivado na memória das pessoas
como se fosse um livro, para mais tarde ser transmitido via oral. Mas, o mais
importante de tudo acerca dos livros é a preservação do saber humano e a condução
deste saber em benefício das pessoas.
16
3.
ANÁLISE TEÓRICA DA OBRA
Neste capítulo será feita a análise teórica de Nineteen Eighty-Four. Tal
análise pretende mostrar como a questão do registro escrito e do registro oral se
apresentam na obra e como o livro é importante para a memória cultural. Além disso,
será discutida a importância da veracidade dos registros e os prejuízos que sua
adulteração pode trazer à sociedade.
Nineteen Eighty-Four se apresenta em três partes, sendo elas divididas por
capítulos e a questão dos registros escrito e oral é recorrente em toda a obra. Por
exemplo, o personagem Winston, com seu diário em mãos, questiona-se sobre o fato
de estar escrevendo. Para quem estaria escrevendo? Seria para o futuro ou para o
passado? “How could you make appeal to the future when not a trace of you, not even
an anonymous word scribbled on a piece of paper, could physically survive?”
(ORWELL, 1955, p. 31) Valeria a pena todo esse esforço sendo que a qualquer
momento poderia ser aniquilado, tanto ele próprio quanto os seus escritos? Winston
vive em um regime totalitário, numa sociedade reprimida e, mesmo sabendo que isto
não será nada fácil, ele tenta resistir à opressão deixando esta frase registrada em seu
livro: “To the future or to the past, to a time when thought is free, when men are
different from one another and do not live alone – to a time when truth exists and what
is done cannot be undone: From the age of uniformity, from the age of solitude, from
the age of Big Brother, from the age of doublethink – greetings!” (ORWELL, 1955, p.
31) Duplipensar (Doublethink), segundo SILVINO (2002), significa a capacidade de
guardar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias e aceitar ambas.
No primeiro fragmento da obra, ORWELL (1955) procura demonstrar que o
ser humano precisa manter perspectivas em relação ao seu futuro e que isso só será
possível quando as pessoas puderem deixar seus pensamentos registrados para a
posteridade. Já no segundo fragmento, o autor deixa evidente sua preocupação com a
veracidade dos registros e no quanto sua adulteração pode vir a prejudicar o futuro das
pessoas; devido à poda da liberdade de pensamento e de expressão, as pessoas acabam
17
se isolando e se tornando muito parecidas umas às outras, pensando e agindo todas da
mesma maneira. Isto está relacionado com um dos lemas do Partido do “Grande
Irmão”, “ignorância é força”, em que se percebe a manipulação dos registros escritos e
orais. O Partido busca omitir a verdade dos fatos, através de um lema invertido no qual
seria mais acertado dizer “sabedoria é força”. A ignorância de um povo está aliada ao
poder de repressão de uma minoria sobre uma maioria.
SILVINO (2002) comenta a obra de ORWELL (1955) dizendo que o autor
projeta o futuro numa crítica à falta de opção no presente. Na ficção o cidadão que
reagisse cometia crimidéia, bastava apenas um pensamento ou um ato suspeito em
frente à teletela ou em frente aos próprios filhos que, incentivados pelo Partido,
denunciavam os pais suspeitos. O indivíduo que cometesse crimidéia passava a ser
alvo fácil do Ministério do Amor e era vigiado pela Polícia do Pensamento. Este
indivíduo tornava-se impessoa passando a não mais existir, por desaparecer e ter todos
os seus registros apagados. Isso aconteceu com Winston, quando passou a ter atitudes
contrárias ao Partido anotando em um livro suas idéias e que mais tarde, ao ser
descoberto, sofreu vários tipos de tortura até se submeter totalmente ao Partido.
Winston, apesar de sua situação de oprimido em relação ao poder do Partido,
busca de alguma maneira a descoberta do passado para fazer uma conexão entre esse
passado e o presente em que se encontra. Embora tenha algumas lembranças vagas de
sua infância e de como aconteciam as coisas nesta época, sente que sua memória está
debilitada devido às manipulações imputadas pelo Partido que está no poder. Mesmo
diante de tantas dificuldades como, a vigilância da teletela, a falta de alguém em quem
possa confiar suas idéias, o medo de ser traído, mesmo assim, ele procura de alguma
forma transpor estes obstáculos passando a confiar em O’Brien que lhe empresta um
livro, o qual é um registro original do passado. Winston ao ler a obra, passa por uma
série de sensações que até então não havia sentido.
As sensações pelas quais o personagem Winston passa a sentir quando está
lendo o livro assemelham-se à afirmação que CALVINO (1993) faz a respeito da
importância da leitura dos clássicos em referência ao prazer de ler uma obra e
18
descobrir que o que está registrado nela já seja do conhecimento de muitas pessoas, e
mesmo assim essa leitura não deixa de ser uma surpresa agradável, pois se descobre
como esse conhecimento que já se tinha de antemão se originou e isso reforça a
importância de registro escrito na manutenção de sua autenticidade. A obra de
ORWELL (1955, p. 205) apresenta este aspecto através do processo de leitura feito
por Winston. O livro é um documento original, não sofreu o processo de reescritura a
que todas as outras obras e documentos sofrem quando passam pelo Ministério da
Verdade e a sensação descrita pelo personagem ao ler é a seguinte:
The book fascinated him, or more exactly it reassured him. In a sense it told him nothing
that was new, but that was part of the attraction. It said what he would have said, if it had
been possible for him to set his scattered thoughts in order. It was the product of a mind
similar to his own, but enormously more powerful, more systematic, less fearridden. The
best books, he perceived, are those that tell you what you know already.
A preocupação de ORWELL (1955) não é somente com o registro escrito,
mas também com o registro oral. Nineteen Eighty-Four trata da questão do registro
oral em determinadas passagens da obra em que o protagonista Winston se pronuncia,
em pensamento, sobre o fato de que ele mesmo poderia falar sobre o que estava escrito
no livro que estava lendo, porém isto não seria possível devido à sua dificuldade de
ordenar as idéias. Mas ele o faz em determinados momentos. Um deles acontece
quando passa para Júlia, sua namorada, tudo o que lera no livro emprestado por
O’Brien através da oralidade. Winston, ao relatar o livro, acaba por gravar em sua
memória os acontecimentos da obra. Isso ocorre no momento em que Júlia pergunta se
ele recebera o livro que estava esperando. Ele afirma que sim e diz em seguida: “‘You
must read it’, he said. ‘You too. All members of the Brotherhood have to read it.’ ‘You
read it’, she said with her eyes shut. ‘Read it aloud. That’s the best way. Then you can
explain it to me as you go.’” (ORWELL, 1955, p. 206)
A oralidade, defendida por CHEVALIER & GHEERBRANT (2002), de que
através dela ocorre uma renovação do saber, pode estar relacionada ao desejo de Júlia
em relação à leitura do livro. Ela prefere ter acesso à escrita do livro através da
audição, possivelmente a transmissão oral feita por Winston facilitaria seu
19
entendimento sobre a mensagem a que o livro se destina a passar, além de que uma
explicação seguida da leitura acaba por possibilitar a ambos uma interpretação
restaurada da obra. Ler o livro e explicar em seguida faria com que Winston contasse a
Júlia, com suas próprias palavras, o que entendera dos escritos.
ORWELL (1955, p. 254) não faz distinção entre registro escrito e registro
oral no que se refere à sua importância para o conhecimento e manutenção da memória
cultural, em Nineteen Eighty-Four. O autor deixa evidente que os dois registros são
importantes, desde que não sejam controlados. Observe-se como aparece o aspecto do
poder de controle do Partido neste fragmento da obra:
[...] Does the past exist concretely, in space? Is there somewhere or other a place, a world
of solid objects, where the past is still happening?
No.
Then where does the past exist, if at all?
In records. It is written down.
In records. And - ?
In the mind. In human memories.
In memory. Very well, then. We the Party, control all records, and we control all
memories.
Then we control the past, do we not?
Se o passado existe na memória das pessoas é porque ele não precisa
necessariamente estar escrito, ele pode ser passado de geração a geração através da
oralidade. Porém, na obra, o Partido controla o passado e, conseqüentemente, a
memória das pessoas. Sendo assim, não há meios de se transmitir informações através
da oralidade sem burlar as normas impostas pelo Big Brother e esta é uma empreitada
praticamente impossível de ser realizada dentro das condições apresentadas. Winston,
em um de seus momentos de reflexão sobre suas condições de vida, sem projetar
20
perspectivas para o futuro devido à falta de liberdade de expressão, pensa a respeito do
que é um registro sem a prova concreta da escrita. Veja-se neste trecho o que ele pensa
a respeito, “The past, he reflected, had not merely been altered, it had been actually
destroyed. For how could you establish even the most obvious fact when there existed
no record outside your own memory?” (ORWELL, 1955, p. 39)
A destruição dos registros escritos, após terem sido reescritos de maneira a
não comprometer o Partido, é feita pelo próprio Winston. Este trecho da obra
apresenta o momento em que Winston procede de maneira a destruir provas originais:
As soon as Winston had dealt with each of the messages, he clipped his speakwritten
corrections to the appropriate copy of the Times [grifo do autor] and pushed them into the
pneumatic tube. Then, with a movement which was as nearly as possible unconscious, he
crumpled up the original message and any notes that he himself had made, and dropped
them into the memory hole to be devoured by the flames. (ORWELL, 1955, p. 43)
Embora Winston proceda desta maneira em relação aos registros, ele já está
ciente de que seu modo de agir não é correto, porém necessário devido à sua situação
de prostrado.
Em Nineteen Eighty-Four a reescrita dos livros tem a intenção de evitar que
as pessoas tenham acesso a fatos verídicos que venham a depor contra o Partido.
Winston reunia e classificava as correções que eram consideradas necessárias a um
determinado número do Times para em seguida reimprimir. O número original era
destruído, sendo substituído pelo exemplar reescrito que era arquivado em seu lugar. O
processo de alteração contínua era aplicado a jornais, livros, revistas, periódicos,
folhetos, cartazes, filmes etc. enfim, a toda espécie de registro literário ou
documentação dotada de significado político ou ideológico e que pusesse em risco a
credibilidade do partido. Esse processo de atualização do passado se dava
constantemente, minuto a minuto, não deixando vestígios de sua adulteração. Percebese neste fragmento da obra de ORWELL (1955) uma comparação com a reescrita de
BORGES (1985), porém de forma diversa da que este autor se propõe fazer ao
reescrever seus livros, “All history was a palimpsest, scraped clean and re-inscribed
exactly as often as was necessary. In no case would it have been possible, once the
21
deed was done, to prove that any falsification had taken place. [...] Books, also, were
recalled and rewritten again and again, and were invariably reissued without any
admission that any alteration had been made.” (ORWELL, 1955, p. 43)
Percebe-se que, além da reescrita dos livros, neste trecho de Nineteen EightyFour a destruição da memória cultural, que embora seja fictícia, e a forma como ela se
apresenta, pode vir de encontro à realidade atual. O autor faz uma previsão para um
futuro não muito distante do nosso, em que, língua e literatura passarão por um
processo de transformação de modo a não deixar vestígios do passado. Observe-se:
[...] But 2050 – earlier, probably – all real knowledge of Oldspeak will have disappeared.
The whole literature of the past will have been destroyed. Chaucer, Shakespeare, Milton,
Byron – they’ll exist only in Newspeak versions, not merely changed into something
different, but actually changed into something contradictory of what they used to be. Even
the literature of the Party will change. Even the slogans will change. How could you have a
slogan like ‘freedom is slavery’ when the concept of freedom has been abolished? The
whole climate of thought, will be different. In fact there will be [grifo do autor] no thought,
as we understand it now. (ORWELL, 1955, p. 56)
Entretanto, como dito anteriormente, ao comparar a técnica de reescrita a que
BORGES (1985) se propõe com o que é apresentado em Nineteen Eighty-Four,
percebe-se que nem sempre a reescrita de livros tem a intenção de destruir o passado.
ARROJO (1999), ao tratar sobre a obra de Borges, afirma que o autor reescreve suas
próprias obras de modo a que elas se tornem perfeitas. BORGES (1985) utiliza o
processo de reescritura de suas obras, mas isto, diferentemente da forma como
Winston era obrigado a proceder, não interfere no contexto geral a que as obras se
propõem. Ele apenas faz isso com o intuito de aperfeiçoá-las, como afirma Júlio
Pimentel PINTO (1998), enquanto que o personagem de Winston reescreve os
documentos visando alterá-los, mudando completamente seu significado. Constata-se
na obra de ORWELL (1955, p. 218) o quanto a alteração do passado pode influir na
memória cultural:
The aceleration of the past is necessary for two reasons, one of which is subsidiary and, so
to speak, precautionary. The subsidiary reason is that the Party member, like the
proletarian, tolerates present-day conditions partly because he has no standards of
comparison. He must be cut off from the past, just as he must be cut off from foreign
countries, because it is necessary for him to believe that he is better off than his ancestors
22
and that the average level of material comfort is constantly rising. But by far the more
important reason for the readjustment of the past is the need to safeguard the infallibility of
the Party. It is not merely that speechs, statistics and records of every kind must be
constantly brought up to date in order to show that the predictions of the Party were in all
cases right. It is also that no change in doctrine or in political alignment can ever be
admitted. For to change one’s mind, or even one’s policy, is a confession of weakness. [...]
Thus history is continously rewritten. This day-to-day falsifications of the past, carried out
by the Ministry of Truth, is a necessary to the stability of the régime as the work of
repression and espionage carried out by the Ministry of Love.
Mas a questão da destruição da memória cultural em Nineteen Eighty-Four,
está em conformidade com a afirmação de CHARTIER (2001), quando este fala sobre
as grandes escritas epigráficas e do poder que elas exerciam sobre as pessoas. A
falsificação do passado é feita no intuito de manter a segurança do Partido, o poder que
ele exerce sobre as pessoas não pode, de forma alguma, ser destruído por erros
cometidos no passado e que venham a comprometer sua estabilidade. Assim como as
escritas epigráficas da Roma antiga expressavam o poder das monarquias, conforme
CHARTIER (2001), as pessoas, mesmo não conseguindo ler os escritos por não terem
acesso visual ou não entenderem mais o latim, respeitavam o poder emanado por estas
escritas. Sendo assim, o Partido do Big Brother ao fazer alterações nos documentos da
maneira que bem entender, demonstra seu poder de força sobre estas pessoas, que
mesmo em dúvida em relação à sua idoneidade, acabam por aceitar o que está
registrado.
A memória cultural também é destruída através do fogo. DEUSTCH (2000)
refere-se ao fato do nazismo alemão propiciar a queima de livros rotulados “judeumarxistas” e “anti-germânicos”. Quando um livro é queimado uma parte da história da
humanidade queima junto com ele. BUENO (2004) refere-se à importância da cultura
quando faz menção ao desaparecimento de algumas línguas e dialetos devido ao
progresso da globalização. Em Nineteen Eighty-Four, além da queima de livros, tudo o
que se refere a eles é eliminado, até mesmo o memorial. Não se deve ter recordações
de nada. As memórias devem ser apagadas, as pessoas que morrem devem ser
esquecidas. No trecho a seguir, percebe-se a destruição da memória cultural no
momento em que Winston está conversando com O’Brien a respeito do dicionário de
23
Novilíngua (Newspeak) que este está ajudando a montar:
The Eleventh Edition is the definitive edition, he said. We’re getting the language into its
final shape – the shape it’s going to have when nobody speaks anything else. When we’ve
finished with it, people like you will have to learn it all over again. You think, I dare say,
that our chief job is inventing new words. But not a bit of it! We’re destroying words –
scores of them, hundreds of them, every day. We’re cutting the language down to the bone.
The Eleventh Edition won’t contain a single word that will become obsolete before the
year 2050. (ORWELL, 1955, p. 54)
Segundo SILVINO (2002), a novilíngua foi o idioma que substituiu o inglês.
Esse novo idioma consiste em reduzir a quantidade de vocábulos fundindo idéias num
conjunto reduzido de palavras. Imbom, por exemplo, substitui perfeitamente a palavra
Mal. Logo, decora-se apenas as palavras e seus sufixos e prefixos. A capacidade de
questionar diminui na mesma proporção da quantidade de palavras. A cada edição do
dicionário, o número de vocábulos diminuía. E assim as pessoas ficavam mais
vulneráveis. A destruição das palavras na versão novilíngua, além de fazer com que as
pessoas falem o menos possível, faz com que elas pensem pouco também. Sendo
assim elas passam a não ter mais capacidade de questionar devido ao seu vocabulário
reduzido (SILVINO, 2002).
Há ainda outro comentário em respeito a novilíngua apresentado por O’Brien
em Nineteen Eighty-Four, e que define melhor a que ela se propõe em relação à falta
de expressão das pessoas em um futuro próximo:
It’s a beautiful thing, the destruction of words. [...] Don’t you see that the whole aim of
Newspeak is to narrow the range of thought? In the end we shall make thoughtcrime
literally impossible, because there will be no words in which to express it. Every concept
that can ever be needed will be expressed by exactly one [grifo do autor] word, with its
meaning rigidly defined and all its subsidiary meanings rubbed out and forgotten.
(ORWELL, 1955, p. 55)
Destruir palavras é destruir o pensamento das pessoas. A veracidade dos
registros e sua manutenção possibilitam às pessoas diferenciarem o que está certo do
que está errado. Quando não se possui acesso à informações verídicas ou estas
informações são insuficientes para comprovar algo, os indivíduos tornam-se ignorantes
e essa ignorância trará prejuízos ao seu desenvolvimento cognitivo e cultural,
24
alienando-os. A forma como Nineteen Eighty-Four apresenta esse aspecto da
destruição da cultura das pessoas pode ser representado por Giacomo LEOPARDI
(apud ARROJO, 1999, p. 29) quando este fala sobre a liberdade de pensamento. Ele
diz que “as idéias estão contidas e praticamente engastadas nas palavras como pedras
preciosas num anel. Elas se incorporam às palavras como a alma ao corpo, de tal modo
que constituem um todo.” Para o autor, as idéias são inseparáveis das palavras, pois se
elas se separarem delas não serão mais as mesmas. Ela ainda faz uma comparação
entre palavras e idéias com o corpo e a alma dizendo que se as idéias se separarem das
palavras elas simplesmente “escapam ao nosso intelecto e ao nosso poder de
compreensão; tornando-se irreconhecíveis, exatamente o que aconteceria à nossa alma
se se separasse de nosso corpo.” (LEOPARDI, apud ARROJO, 1999)
A menção de LEOPARDI (apud ARROJO, 1999) a respeito da associação
entre idéias e palavras e entre alma e corpo, pode ser aliada ao pensamento de
BORGES (1985) sobre a importância que o livro tem para a preservação da memória e
da imaginação das pessoas e que é feita com o registro das idéias através das palavras.
Para BORGES (1985) o livro é um objeto de consideração, admiração e desejo, não só
por parte dos literatos, mas também por parte dos simples leitores que, através da
leitura, têm acesso à sua transcrição.
A seguir serão feitas as considerações finais do trabalho, a fim de deixar
evidente a importância da pesquisa visando projetar novos estudos, novas perspectivas
de trabalho para as várias áreas do conhecimento.
25
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conclui-se que, apesar de se tratar de uma obra de ficção, Nineteen EightyFour apresenta vários aspectos que condizem com a realidade. O livro assume o papel
de apresentar ao leitor a forma como o totalitarismo, por exemplo, pode alterar e
manipular o comportamento das pessoas. Dotado do poder de opressão que exerce
sobre as pessoas, o Partido do “Grande Irmão” é o único a ter acesso à veracidade dos
registros, os quais ele pode forjar da maneira como bem entender, fazendo com que os
fatos registrados estejam sempre a seu favor, bem como os cidadãos sejam sempre
aliados ao Partido, mesmo contra sua vontade.
Considera-se que a obra de ORWELL (1955), embora ficcional, seja um
alerta contra a força que os partidos políticos detém quando estão no poder. Os
partidos políticos são capazes de manipular o povo que se torna vulnerável aos seus
discursos persuasivos acreditando que tudo o que for prometido será cumprido.
Embora muitos dos discursos sejam registrados pela televisão, os eleitores têm
memória curta e elegem sempre os mesmos políticos que já passaram pelo poder e não
fizeram nada em benefício do povo.
O fato de que as pessoas devem ter acesso à educação é mais do que
evidente, mas isso não é do interesse dos governantes. Um povo instruído é capaz de
auxiliar na liderança de seu país para evitar abusos dos dirigentes políticos que
queiram tirar proveito de determinadas situações em seu próprio benefício. Além
disso, um povo dotado de educação intelectual torna-se mais crítico ao eleger seus
representantes, buscando fazer melhores escolhas, assim como se torna mais apto para
expurgar governantes que não estejam agindo em prol da sociedade.
Em Nineteen Eighty-Four, ORWELL (1955) faz uma crítica ao poder de
domínio que o Partido do Big Brother tem sobre as pessoas. Esta crítica não se reduz
somente ao estado de opressão vivido por estas pessoas devido ao regime totalitarista,
mas o autor também quer mostrar que uma das formas mais eficazes de se manipular o
pensamento de um indivíduo é omitindo a verdade dos fatos. O lema do Partido
26
“ignorância é força” pode ter várias representações, dentre elas o fato de que as
pessoas que não pensam trabalham mais e sem questionar; também pode se referir à
força que o Partido vai conquistar cada vez mais através da ignorância de seu povo.
Mas, considerando-se o aspecto da educação intelectual, os indivíduos que a detém
estarão mais alertas em relação a tudo que os rodeia como, por exemplo, evitar a
tirania de ditadores que desejem exercer suas funções de poder em prejuízo da
humanidade.
O ato de destruir documentos originais para evitar que as pessoas tenham
acesso a provas concretas sobre procedimentos ilegais, assim como destruir a memória
cultural de um povo, destrói também o pensamento do indivíduo tornando-o alienado a
tudo o que diz respeito à sua cidadania e à sua liberdade. Considera-se que o livro é
um aliado importante na construção do saber de um indivíduo. Através dele conseguese assegurar a memória cultural de um povo. Além disso, o livro auxilia no
desenvolvimento da capacidade de formar opiniões críticas. Os livros sempre
exerceram, além do fascínio, um poder muito forte sobre as pessoas. Essa força se dá
devido ao fato de que um livro tem registrado em suas páginas todo um passado que
ficou pendente, mas que se for consultado passa a ter vida novamente.
Já a respeito do processo de reescritura, isto dependerá de como o
procedimento ocorre. Para BORGES (1985) este processo se dá como um
aperfeiçoamento da obra. É uma forma de incluir palavras melhor elaboradas para que
haja um entendimento mais apropriado do leitor. Em Nineteen Eighty-Four, o
procedimento se dá de maneira diversa, a reescritura é tida como uma adulteração dos
registros com o propósito de modificar seu sentido. A intenção da reescritura, na obra,
é evitar que as pessoas tenham acesso a erros cometidos no passado pelo Partido do
“Grande Irmão” e que venham a trazer prejuízos à sua atuação de poder sobre os
cidadãos.
Além de o registro escrito ser importante, o registro oral também é dotado de
extrema relevância. O aprendizado obtido por gerações anteriores à nossa é de
inestimável valor. Pais, avós, tios, por muitas vezes deixam gravada sua mensagem
27
oral para filhos, netos, sobrinhos, que jamais a esquecem e que, possivelmente,
passarão adiante para suas futuras gerações. Sócrates deixou-nos um legado de
informações que atualmente são utilizadas de várias formas. Embora ele mesmo não
tivesse nada registrado, pois sua palavra era oral, PLATÃO (1957), um de seus
seguidores, deixou registrado, embora de maneira poética, tudo o que seu mestre havia
lhe ensinando. Além de Sócrates há outras personalidades como Cristo, que transmitiu
sua palavra oral e que mais tarde foi registrada por seus discípulos através da Bíblia.
Não se pode deixar de considerar também os ensinamentos orais deixados pelos
índios, principalmente sobre a utilização de várias ervas medicinais e de seu uso
adequado para curar várias enfermidades.
Embora o posicionamento de SENA (1963) a respeito da obra de ORWELL
(1955) não tenha sido muito positivo, quando este retratou Nineteen Eighty-Four como
um livro denso e volumoso, o que se deve levar em conta é que a contribuição dos
teóricos consultados permitiu a elaboração da proposta de trabalho lançada nas
considerações iniciais. Não se pode deixar também de dizer que a mensagem que
ORWELL (1955) deixou em sua obra foi a de um futuro realmente sombrio.
Certamente o autor teve o intuito de fazer com que os leitores pensem um pouco a
respeito de como as pessoas se deixam manipular facilmente.
Para evidenciar melhor a importância dos registros e de como este aspecto
pode ser melhor explorado por futuros pesquisadores, sugere-se fazer um trabalho
comparativo entre o livro de ORWELL (1955) e o filme de Michael Radford para
verificar como o registro é trabalhado nestas duas formas de apresentação da obra
Nineteen Eighty-Four, a escrita e a fílmica. Outra sugestão de trabalho seria a de
comparar Nineteen Eighty-Four e Fahrenheit 451, obra de Ray BRADBURY (1997) a
qual trata sobre a importância do livro que nesta obra aparece nas duas formas de
registro, escrito ou oral. E, por fim, tomando-se por base a questão dos avanços
tecnológicos que estão presentes na atualidade e no cotidiano das pessoas, propõe-se
verificar a interferência destes avanços tecnológicos na escrita e na oralidade fazendo
um paralelo com a obra de ORWELL (1955) para constatar o quanto isto pode afetar
28
na propagação da memória cultural dos povos.
Considera-se, portanto, que a elaboração deste trabalho foi compensadora,
pois além de propiciar à pesquisadora a oportunidade de buscar elementos que
comprovem o tema a que se propôs analisar, também lhe proporcionou uma gama
maior de conhecimento ampliando seu horizonte de informações.
29
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Marco Antônio de. O Personagem livro. Artigo, 2001. Disponível em:
<http://www.escritoriodolivro.org.br/leitura/marco.html> Acesso em: 12 mar. 2005.
ARROJO, Rosemary. Oficina de Tradução – A Teoria na Prática. São Paulo: Ática,
1999.
BARTHES, Roland. O Grau Zero da Escritura. São Paulo: Cultrix, 1971.
BENJAMIN, Walter. “Guarda-livros juramentado” In Obras Escolhidas vol. IIRua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1987.
BORGES, Jorge Luís. “O Livro”. In Cinco Visões Pessoais. Brasília: UNB, 1985.
BUENO, Fernando Radin. Caos, complexidade e 1984. Artigo, 2004. Disponível em:
<http://www.duplipensar.net/george-orwell/2004-09-caos-1984.html> Acesso em: 5
fev. 2005.
CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
CARTER, Ronald; MCRAE, John. The Penguin Guide to Literature
London: Penguin English, 2001.
English.
CHARTIER, Roger. Cultura escrita, Literatura e História. Porto Alegre: Artmed,
2001.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alan. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro:
José Olympio, 2002.
DEUTSCH, Hulton. In Microsoft® Encarta® Encyclopedia 2000. © 1993-1999
Microsoft Corporation. All rights reserved. Artigo "Bonfire of "Anti-German" Books".
LANGACKER, R. A linguagem e sua estrutura. Rio de Janeiro: Vozes, 1972.
ORWELL, George. Nineteen Eighty-Four. London: Secker & Warburg, 1955.
PINTO, Julio Pimentel. Uma memória do mundo: ficção, memória e história em
Jorge Luís Borges. São Paulo: Estação Liberdade, 1998.
SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre Livros e Leitura. Porto Alegre: Paraula, 1993.
SENA, Jorge de. A Literatura Inglesa. São Paulo: Edipe, 1963.
SILVINO, Leonardo. George Orwell e o mundo de 2084. Artigo, 2002. Disponível
em: <http://www.economiabr.net/colunas/silvino/01orwell.shtml?id602> Acesso em 4
fev. 2005.

Documentos relacionados

1 GEORGE ORWELL -1984 por Moisés Neto

1 GEORGE ORWELL -1984 por Moisés Neto GEORGE ORWELL -1984 por Moisés Neto

Leia mais

a reconstrução ficional da história em 1984 de george orwell

a reconstrução ficional da história em 1984 de george orwell A insatisfação com os resultados da busca pela verdade em seu íntimo leva Winston a se dirigir ao único lugar onde respostas podem ser encontradas: o bairro das classes proletárias (ou simplesmente...

Leia mais