avoznecess á ria - Ayrton`s Biblical Page

Transcrição

avoznecess á ria - Ayrton`s Biblical Page
AIRTON JOSÉ DA SILVA
A VOZ NECESSÁRIA
Encontro com os profetas do século VIII a.C.
BRODOWSKI
2011
2
Este livro foi publicado pela Paulus em 1998: A voz necessária: encontro com os
profetas do século VIII a.C. São Paulo: Paulus, 1998, 144 p. - ISBN 8534910634.
Em 30 de julho de 2009 recebi o seguinte comunicado da editora Paulus:
Comunicamos com a presente que a obra supracitada está com estoque zerado e sairá
de nosso catálogo de publicações, retornando os direitos autorais da obra ao AUTOR.
Assinado: Zolferino Tonon - Diretor Editorial Multimedial.
O texto aqui publicado é o mesmo da edição impressa. Apenas os textos que tratam do
contexto histórico, o texto bíblico, as notas de rodapé e a bibliografia foram atualizados.
Sobre o autor, confira http://airtonjo.com/ e http://blog.airtonjo.com/ onde há também
e-mail para contatos.
O texto pode ser baixado e utilizado para fins educacionais e não comerciais. Sua
reprodução na Internet é proibida.
Copyright © 2011 Airton José da Silva. Todos os direitos reservados.
Brodowski, 19 de outubro de 2011
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Tão estranho é o sonho de um profeta,
que parece ser outro
a sonhar em seu lugar.
(Inspirado em G. BACHELARD,
A poética do devaneio).
4
Para
Benjamim e Emanuel,
companheiros de estudo
na Serra da Piedade - MG
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ÍNDICE
APRESENTAÇÃO
INTRODUÇÃO
1. A ORIGEM DO MOVIMENTO PROFÉTICO
1.1. A sociedade tribal israelita
1.2. A monarquia tributária israelita
2. O TEOR DO DISCURSO PROFÉTICO
2.1. A denúncia da idolatria
2.2. A função do discurso profético
2.3. Os deslocamentos pós-exílicos
3. EU OUVI OS CLAMORES DE MEU POVO: O PROFETA AMÓS
3.1. As visões simbólicas
3.2. O "milagre" israelita: a época de Amós
3.3. O que sabemos sobre Amós
3.4. Os oráculos contra as nações
3.5. Amós clama por justiça
3.6. Palavras e ameaças contra Israel
4. OSEIAS: O POVO AFASTOU-SE DE IAHWEH
4.1. Exemplificando a infidelidade
4.2. A Assíria vem aí: para Israel é o fim
4.3. Onde está a raiz do mal?
4.4. Oseias exige fidelidade a Iahweh
4.5. Volta, Israel, a Iahweh, teu Deus
5. ISAÍAS: É PRECISO CONFIAR EM IAHWEH
5.1. Na época de Joatão: 739-734 a.C.
5.2. Na época de Acaz: 734/3-716 a.C.
5.3. Na época de Ezequias: 716/15-699/8 a.C.
5.4. As releituras de Isaías
5.5. Um dia não haverá mais opressão
6. MIQUEIAS DENUNCIA A TEOLOGIA DA OPRESSÃO
6.1. O livro e seu autor
6.2. A teofania e suas consequências (1,2-5,14)
6.3. O processo de Iahweh contra seu povo (6,1-7,20)
CONCLUSÃO
CRONOLOGIA
VOCABULÁRIO
BIBLIOGRAFIA
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APRESENTAÇÃO
"Com seus passos lentos,
enfrentando os ventos
quando sopram noutra direção,
toda Mãe Igreja
pede que tu sejas
companheira de libertação"
(Santa Mãe Maria, J. A. S.)
Esta estrofe de J. Acácio Santana que, sintomaticamente, vem sendo esquecida
nos mais conhecidos folhetos litúrgicos, mostra bem a atualidade deste livro do Airton. A
falta de mística, ou a força da inércia que faz esquecer a utopia, reforça violentamente a
instituição e esta passa a se substituir ao Projeto. Aí desaparece o lugar da Profecia. É
quando os ventos "sopram noutra direção". Mas é justamente então que a Profecia se
faz indispensável.
Os profetas do século VIII a.C., Amós, Oseias, Isaías e Miqueias, são os
primeiros dos chamados classicamente de "profetas escritores". São eles que rompem o
silêncio imposto pela unanimidade salomônica. Aliás, já dizia o pranteado Stanislaw
Ponte-Preta: "Toda unanimidade é burra". Agora Deus começa a falar novamente. O
ciclo iniciado por esses quatro, porém, vai terminar no pós-exílio. Então Deus estará
novamente reduzido ao silêncio, pois a Lei resolve tudo, e a Profecia terá de buscar
refúgio na Apocalíptica.
Os profetas não são sociólogos no moderno sentido da palavra. Não cabe a eles
apontar a solução cabal para os problemas da sociedade. São a voz de Iahweh, o Deus
companheiro, expressando a indignação dos pobres frente à miséria, à exploração e à
mistificação que tapeia os pequenos com o discurso religioso. "Quem aguenta ficar
calado?" já se perguntava Amós.
O feliz leitor encontrará neste livro uma breve e densa análise do fenômeno
profético. Que é a Profecia em qualquer lugar e circunstância? Qual a sua postura - aí já
estamos falando dos profetas do AT - diante de uma proposta de vida e felicidade e a
instituição que, pretendendo encarnar essa proposta, a corrompe e desvirtua
totalmente? No nosso caso essa instituição era a Monarquia e a proposta se chamava
Aliança de Iahweh.
Depois é deixar-se conduzir pelo autor através da vida desses homens
extraordinários e dos livros que têm o seu nome.
O leitor terá de ter três olhos: um no livro do Airton, outro na Bíblia (ler todas as
passagens citadas) e o terceiro na vida pessoal e coletiva, sociopolítico-econômica e
eclesial.
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Leitor, este livro vai ajudá-lo a seguir, na comparação de C. Mesters, os dois fios,
a Bíblia e a vida, que irão acender a luz que está dentro de você. E teremos, então,
mais um dos indispensáveis profetas de nosso tempo.
José Luiz G. do Prado
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INTRODUÇÃO
Se perguntarmos a qualquer pessoa qual é o sentido mais comum da palavra
profeta, ela poderá nos dizer que o profeta é um adivinho, aquele que sabe prever o
futuro, o que diz a coisa antes de ela acontecer.
Por que o profeta pode predizer o futuro? Porque ele tem alguma iluminação ou
revelação divina e sobrenatural. Assim o profeta conhece e revela a nós, pobres mortais
comuns, os acontecimentos e planos futuros, ocultos e misteriosos.
Também vamos encontrar pessoas que poderão definir o profeta como um
homem corajoso que denuncia situações injustas. Como aquele que aponta os
responsáveis pelas desgraças que atingem os inocentes, vítimas da violência
institucional e pessoal. Possivelmente estas mesmas pessoas poderão sublinhar que o
profeta é um porta-voz da esperança, ao multiplicar seus apelos e intensificar sua luta
por um mundo mais justo e humano.
Enfim, as definições irão se multiplicando. Mas poderão, afinal de contas, ser
reduzidas a três posições fundamentais:
 ou o profeta é alguém que prediz o futuro
 ou é aquela pessoa que possui o conhecimento de coisas ocultas
 ou é um porta-voz de uma mensagem de denúncia (e anúncio) diante de situações
presentes determinadas e conhecidas.
Posso adiantar que a etimologia da palavra "profeta", de origem grega (o
substantivo profêtês é formado pelo prefixo pro associado ao verbo fêmi = dizer, falar),
passada para o português através do latim (propheta), permite as três leituras acima:
 o profeta é alguém que possui a capacidade de pre-dizer algo, já que o prefixo latino
prae, neste caso, significa “antes”: assim entenderam-no os Padres da Igreja,
enquanto a cultura grega desconhecia este sentido até o século II d.C.
 ou o profeta é aquele que manifesta ou pro-fere (do latim pro-ferre) coisas ocultas,
noção que vem quase sempre associada à primeira
 ou, ainda, o profeta é um porta-voz, aquele que pro-clama (em latim o verbo é
proclamare) uma mensagem em nome de outrem. Este é o uso corrente do termo nos
clássicos gregos, para quem o profeta é um arauto.
Isto no grego. Pois acontece que a palavra hebraica original, na Bíblia, que foi
traduzida pelo grego profêtês, é nâbhî'. E nâbhî' significa aquele que anuncia ou aquele
que proclama a mensagem de outrem.
O profeta, no sentido bíblico original, é, portanto, um arauto, um porta voz de
alguém que lhe confia uma mensagem, que autoriza sua comunicação e garante sua
veracidade.
Assim se vê Isaías quando fala de sua vocação: "Em seguida ouvi a voz do
Senhor que dizia: ‘Quem hei de enviar? Quem irá por nós?’ ao que respondi: ‘Eis-me
aqui, envia-me a mim’. Ele me disse: ‘Vai e dize a este povo...’” (Is 6,8-9a). Jeremias,
por sua vez, lembra a confirmação de sua missão: “Mas Iahweh me disse: Não digas:
‘Eu sou ainda uma criança!’ Porque a quem eu te enviar, irás, e o que eu te ordenar,
falarás” (Jr 1,7). E Ezequiel reflete sobre sua vocação: “Com efeito, ele [Iahweh] me
disse: ‘Filho do homem, vou enviar-te aos israelitas (...) Envio-te a eles para que lhes
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digas (...) Transmitir-lhes-ás as minhas palavras, quer escutem, quer não escutem...
(Ez 2,3a.4b.7a).
A referência do profeta ao futuro não provém, entretanto, apenas de confusão
etimológica. Tem causas históricas, sociais, ideológicas... Está ligada a um modelo de
sociedade e a um padrão de pensamento que imprimem à palavra e à função tal
significação. Como herdeiros do pensamento grego, temos uma visão da realidade em
que predomina o raciocínio idealista - no sentido filosófico - segundo o qual a verdade
não só precede o acontecimento como também está situada no mundo das ideias,
caracterizando-se, assim, como supra-temporal e a-histórica. Deste modo, o profeta
nada ou quase nada tem a dizer ao seu tempo, já que ele tem que se voltar é para o
futuro, onde está o “verdadeiro” mundo real.
Entretanto, qual é o problema? Por que esta leitura tradicional do sentido da
profecia está sendo questionada? Por que estamos perguntando quem é o profeta, que
tipo de discurso ele faz e qual é a sua função? Tudo isto já não está respondido?
Obviamente, estas questões nascem não dos profetas e de seus textos, mas de
nosso contexto, de nossa situação.
Situação que pode ser caracterizada como de urgência, e que pede
posicionamento definido e decisivo. Situação que é a de um subcontinente latinoamericano, onde começamos a perceber que somos as vítimas e não os heróis da
civilização ocidental.
O despertar das consciências para a realidade do mundo subdesenvolvido em
que vivemos e sua relação de dependência para com o mundo desenvolvido já
acontece há alguns anos, vem da década de sessenta, e tem se solidificado.
Esta conscientização é simultânea ao desenvolvimento das ciências humanas,
oferecendo-nos novos recursos teóricos para a compreensão das sociedades, da
história, das ideologias, das relações econômicas. No atual processo de globalização da
economia, as instituições financeiras e os grandes grupos econômicos e políticos dos
países mais desenvolvidos implantam uma nova divisão internacional do trabalho,
reservando-nos o papel de fornecedores de produtos primários e manufaturados de
tecnologias de baixo impacto. É assim que governos de sociedades periféricas como a
nossa adotam políticas econômicas neoliberais que excluem grandes massas da
população da possibilidade de uma vida digna.
Os cristãos que vivem este processo exigem uma nova leitura do texto bíblico,
ponto de referência de nossa fé, pois as tradicionais abordagens que eram feitas até
então mostraram-se insuficientes para responder a problemas tão prementes. Novos
caminhos começam a ser percorridos, novas releituras são sussurradas, novos sentidos
são garimpados no velho texto da Escritura.
É o cristão diante do conflito, da violência institucionalizada e impune, da
negação dos valores evangélicos e humanos mais elementares. Somos nós buscando
um sentido para o "ser cristão" aqui e agora. Daí, o novo olhar lançado sobre as fontes
de nossa fé, sobre os acontecimentos fundadores contidos na Bíblia.
Contudo, o caminho é longo e tortuoso. Ler um texto que tem uma idade de dois
a três mil anos não é brincadeira. Por isso pergunto: há ferramentas adequadas para tal
serviço? Quais são e como devemos usá-las?
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Há ferramentas adequadas sim. Os conhecimentos da história, da arqueologia,
da antropologia, da linguística e de tantas outras ciências estão hoje à nossa disposição
para escavarmos o sentido dos textos bíblicos. Podemos dizer, até com certo orgulho,
que conhecemos hoje o mundo bíblico melhor do que aqueles que nele viveram.
Assim é que para conseguirmos uma compreensão maior dos profetas de Israel,
proponho a seguinte caminhada:
1. No primeiro capítulo, um olhar sobre a origem do movimento profético em Israel,
originado das contradições da sociedade monárquica tributária.
2. Em seguida, uma análise do discurso profético. Discurso de teor teológico que
denuncia a ruptura da aliança como a idolatria que substitui Iahweh por Baal, pelo
Poder e pela Riqueza. O objetivo desta denúncia é o restabelecimento da aliança
javista.
3. No terceiro capítulo, faremos uma leitura do conhecido profeta do século VIII a.C.,
camponês originário de Técua, o pastor e vaqueiro Amós.
4. No quarto capítulo será oferecido um roteiro de leitura de outro profeta do século VIII
a.C., Oseias, que atuou em Samaria um pouco depois de Amós e viu a decadência e
derrota de seu país, o reino de Israel.
5. No quinto capítulo o assunto é Isaías, o célebre profeta de Jerusalém, o grande
poeta e defensor arguto dos marginalizados de Judá. Seus oráculos ficaram tão
célebres que seu livro sofreu várias releituras e acréscimos.
6. Contemporâneo de Isaías, o profeta Miqueias, feroz defensor dos oprimidos judaítas,
será nosso guia no sexto capítulo. Através da leitura destes quatro profetas do
século VIII a.C., poderemos compreender mais claramente a atuação e a mensagem
dos profetas em geral.
Para terminar, uma cronologia do século VIII a.C. e um vocabulário dos termos
mais importantes ajudarão também o interessado na leitura dos profetas.
A escolha destes quatro profetas do século VIII a.C. se deve exatamente ao que
diz o título: a necessidade de escutarmos sempre estas vozes. Mas, por que apenas
estas quatro vozes? Porque tão variado é o mundo profético de Israel - em tempo,
circunstâncias e características dos diferentes grupos e indivíduos - que, para
exemplificá-lo, dado as limitações do texto, é preciso reduzir o seu campo a apenas
poucas vozes. Mas, garantem os séculos que as ouviram: vozes representativas.
Agradeço ao meu amigo e colega da FTCR da PUC-Campinas, Luiz Roberto
Benedetti, Doutor em Sociologia da Religião pela USP, que, em repetidas discussões e
através de sua tese, desanuviou um pouco minhas ideias sobre a função social dos
discursos religiosos. E não posso deixar de mencionar Rita de Cassia da Silva, que
diligentemente me ajudou na revisão do texto.
Os textos bíblicos transcritos são da Bíblia de Jerusalém. Nova edição, revista e
a
ampliada. São Paulo: Paulus, 2002 [2 impressão, 2003].
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A Bíblia Hebraica utilizada foi a de ELLIGER, K. ; RUDOLPH, W. (eds.) Biblia
Hebraica Stuttgartensia. 5. ed. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, [1967/1977], 1997.
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1. A ORIGEM DO MOVIMENTO PROFÉTICO
"Eis que estás destruído, Israel,
pois só em mim está o teu auxílio.
Onde está, pois, o teu rei para que te salve
em todas as tuas cidades,
e os teus juízes a quem dizias;
'Dá-me um rei e um príncipe'?
Eu te dou um rei em minha ira,
eu o retomo em meu furor" (Os 13,9-11).
Uma coisa chama a nossa atenção: os grandes profetas aparecem com a
sociedade monárquica e desaparecem pouco a pouco com o fim da monarquia. Isto
parece ser significativo. Que relação existe entre profetismo e monarquia em Israel?
Minha hipótese é a seguinte: os grandes profetas surgem a partir das
contradições da sociedade monárquica tributária e nela encontram sua função,
evoluindo para novas formas de manifestação após o fim da monarquia.
Claro que sabemos da existência de grupos proféticos extáticos antes da
monarquia, dos quais falarei brevemente. Entretanto, estou falando aqui dos profetas
clássicos, às vezes ditos "políticos", que atuam individualmente e de forma consciente.
Para ilustrar minha hipótese, farei dois passos:


no primeiro, uma breve descrição da organização social anterior à monarquia, a
sociedade tribal israelita
no segundo, passarei à sociedade monárquica para destacar as rupturas existentes
entre as duas formas de organização social.
1.1. A sociedade tribal israelita
Durante muito tempo os especialistas acreditaram que o Israel primitivo surgira
exclusivamente do seminomadismo, tendo se sedentarizado só após a ocupação da
terra de Canaã, em seguida ao êxodo do Egito, guiado por Moisés.
Israel teria invadido a terra de Canaã, vindo da Transjordânia, aí pelo final do
século XII a.C. As tribos lutaram unidas e, fazendo uma campanha militar em três fases,
dirigidas ao centro, sul e norte da região, ocuparam todo o país, destruindo seus
habitantes, no espaço de uns 25 anos. Esta é a visão de Js 1-12 e a que dominou no
mundo judaico. Há uma síntese desta visão em Js 10,40ss:
"Assim Josué conquistou toda a terra, a saber: a montanha, o
Negueb, a planície e as encostas, com todos os seus reis. Não
deixou nenhum sobrevivente e votou todo ser vivo ao anátema,
conforme havia ordenado Iahweh, o Deus de Israel; Josué os
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destruiu desde Cades Barne até Gaza, e toda a terra de Gósen
até Gabaon. Todos esses reis, com suas terras, Josué os tomou
de uma só vez, porquanto Iahweh, Deus de Israel, combatia por
Israel. Finalmente Josué, com todo Israel, voltou ao acampamento
de Guilgal" (Js 10,40-43).
Hoje, após estudos mais aprofundados e maiores conhecimentos arqueológicos,
antropológicos, etnológicos e sociológicos, a hipótese do nomadismo pastoril e de uma
origem israelita totalmente externa a Canaã devem ser reavaliadas.
Alguns especialistas acreditam que Israel se formou a partir de um movimento de
rebelião de grupos marginalizados cananeus, especialmente camponeses, contra o
domínio e a exploração tributária das cidades-estado da região. É a tese da
"retribalização" ou da "revolta", formulada por G. E. Mendenhall [1962] e desenvolvida
por N. K. Gottwald [1979]1.
Aproximando o conceito de hebreu ao de habiru/hapiru, e utilizando as cartas de
Tell el-Amarna, George E. Mendenhall procura demonstrar que ninguém podia nascer
hebreu já que este termo indica uma situação de ruptura de pessoas e/ou grupos com a
fortemente estratificada sociedade das cidades cananeias. E conclui: "Não houve uma
real conquista da Palestina. O que aconteceu pode ser sumariado, do ponto de vista de
um historiador interessado somente nos processos sociopolíticos, como uma revolta
camponesa contra a espessa rede de cidades-estado cananeias".
Estes camponeses revoltados contra o domínio das cidades cananeias se
organizam e conquistam a Palestina, diz Mendenhall, "porque uma motivação e um
movimento religioso criou uma solidariedade entre um grande grupo de unidades sociais
preexistentes, tornando-os capazes de desafiar e vencer o complexo mal estruturado de
cidades que dominavam a Palestina e a Síria no final da Idade do Bronze"2. Esta
motivação religiosa é a fé javista que transcende a religião tribal, e que funciona como
um poderoso mecanismo de coesão social, muito acima de fatores sociais e políticos...
Por isso a tradição da aliança é tão importante na tradição bíblica, pois esta é o símbolo
formal através da qual a solidariedade era tornada funcional.
A ênfase na mesma herança tribal, através dos patriarcas, e na identificação de
Iahweh com o "deus dos pais", pode ser creditada à teologia dos autores da época da
monarquia e do pós-exílio que deram motivações políticas a uma unidade que foi criada
pelo fator religioso.
1.
Cf. o artigo de George Mendenhall - publicado originalmente em Biblical Archaeologist 25, p.
66-87, 1962 - em CARTER, C. E. ; MEYERS, C. L. (eds.) Community, Identity and Ideology: Social
Sciences Approaches to the Hebrew Bible. Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 1996, p. 152-169. Cf.
GOTTWALD, N. K. Introdução socioliterária à Bíblia Hebraica. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1997, p. 251276; Idem, As tribos de Iahweh: Uma sociologia da religião de Israel liberto 1250-1050 a.C. 2. ed. São
Paulo: Paulus, 2004, p. 247-350. Cf. esta e outras hipóteses em <http://airtonjo.com/site1/historia9.htm>. O problema das origens de Israel é um dos mais complexos que se pode enfrentar na área. Por isso
existem muitas hipóteses a respeito.
2
. MENDENHALL, G. E. The Hebrew Conquest of Palestine. In: CARTER, C. E. ; MEYERS, C.
L. (eds.) Community, Identity and Ideology, p. 158-159.
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Alguns anos mais tarde, Norman K. Gottwald publicou seu polêmico livro The
Tribes of Yahweh: A Sociology of the Religion of Liberated Israel, 1250-1050 B.C.E.
Maryknoll, New York: Orbis Books, 1979 no qual retoma a tese de G. Mendenhall e
avança por quase mil páginas em favor de uma revolta camponesa ou processo de
retribalização que explicaria as origens de Israel.
Gottwald propõe um modelo social para o Israel primitivo que segue as seguintes
linhas: "O Israel primitivo era um agrupamento de povos cananeus rebeldes e
dissidentes, que lentamente se ajuntavam e se firmavam caracterizando-se por uma
forma antiestatal de organização social com liderança descentralizada. Esse desligar-se
da forma de organização social da cidade-estado tomou a forma de um movimento de
'retribalização' entre agricultores e pastores organizados em famílias ampliadas
economicamente autossuficientes com acesso igual aos recursos básicos. A religião de
Israel, que tinha seus fundamentos intelectuais e cultuais na religião do antigo Oriente
Médio cananeu, era idiossincrática e mutável, ou seja, um ser divino integrado existia
para um integrado e igualitário povo estruturado. Israel tornou-se aquele segmento de
Canaã que se separou soberanamente de outro segmento de Canaã envolvendo-se na
'política de base' dos habitantes dos povoados organizados de forma tribal contra uma
'política de elite' das hierarquizadas cidades estados" 3.
Assim, Gottwald vê o tribalismo israelita como uma forma escolhida por pessoas
que rejeitaram conscientemente a centralização do poder cananeu e se organizaram em
um sistema descentralizado, onde as funções políticas ou eram partilhadas por vários
membros do grupo ou assumiam um caráter temporário. O tribalismo israelita foi uma
revolução social consciente, uma guerra civil, se quisermos, que dividiu e opôs grupos
que previamente viviam organizados em cidades-estado cananeias. E Gottwald termina
seu texto dizendo que o modelo da retribalização levanta uma série de questões para
posterior pesquisa e reflexão teórica.
O contexto histórico que apoia a tese de Gottwald é o seguinte:
Os hicsos, um conjunto de povos asiáticos, liderados por hurritas, vindos do
norte, conquistam o Egito por volta de 1670 a.C. e o dominam durante um século. Sua
capital é Avaris.
Mas os hicsos foram expulsos por Amósis (1580-1558 a.C.), faraó da décima
oitava dinastia, que transformou o Egito na maior potência mundial da época. A capital
voltou a Tebas. Tutmosis III, também da décima oitava dinastia, levou o Egito ao auge
de seu poder, estendendo seu domínio até o Eufrates.
À XVIII dinastia pertencem ainda: Amenófis IV (1372-1354 a.C.) - também
conhecido como Akhenaton, o faraó do culto a Aton -, que construiu nova capital,
Akhetaton, arqueologicamente conhecida como El-Amarna; Tutankhamon, que é o
último faraó desta dinastia e que volta ao antigo culto a Amon e traz a capital de novo
para Tebas.
A XIX dinastia teve alguns nomes famosos, como Ramsés II, o faraó do êxodo, e
Merneptah, seu filho, que cita Israel em estela de 1220 a.C. Ramsés II foi quem fez a
aliança de paz com os hititas, após uma guerra de resultado duvidoso, deixando um
3
. GOTTWALD, N. K. Domain Assumptions and Societal Models in the Study of Pre-Monarchic
Israel. In: CARTER, C. E. ; MEYERS, C. L. (eds.) Community, Identity and Ideology, p. 174-175.
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vazio político na Palestina. Sob a XX dinastia, a última do reino novo, o Egito vai
progressivamente perdendo toda a sua influência na Ásia.
Pois quando os hicsos invadiram o Egito, ocuparam também a região de Canaã,
estabelecendo bases em Jericó e Siquém. Eles introduziram na Palestina o uso do
carro de combate, modificando todas as táticas de guerra então em uso. Os povos
locais, cananeus, tiveram que reforçar então a defesa de suas cidades e abrigar em seu
interior os grupos mais atacados pelos invasores.
Para rechaçar os hicsos, os egípcios da XVIII dinastia davam condições de
defesa à Palestina, uma espécie de "feudo" seu: interesses estratégicos e comerciais
(como produtos da Fenícia e rotas caravaneiras) levaram o Egito a estabelecer
guarnições na Palestina e a cobrar tributo dos senhores, príncipes das cidades-estado
cananeias.
As populações de baixa condição, vivendo ao abrigo das cidades e de seus
exércitos locais, estava assim submetida ao príncipe cananeu, que dependia do faraó
egípcio. A espoliação se dava, deste modo, em dois níveis.
Quando o controle egípcio era menor, as cidades cananeias diminuíam ou
interrompiam o pagamento do tributo e procuravam aumentar seus domínios a expensas
de seus vizinhos e rivais. Mas a liberdade das cidades não era repassada para a
população marginalizada.
Assim é descrita a situação da região nas cartas de Tell el-Amarna, escritas
pelos governantes das cidades cananeias à corte egípcia de Amen-hotep III e de seu
filho Amenófis IV. São 377 cartas escritas em acádico vulgar, com muitos cananeísmos,
descobertas a partir de 1887.
Nos conflitos entre as cidades cananeias, seus governantes se acusam, nas
cartas, da ajuda, feita pelo inimigo, aos hapirus: estes estariam conquistando cidades
em Canaã e provocando revoltas. Os hapirus revoltavam-se contra seus opressores
cananeus e libertavam-se de seu controle.
Segundo a maioria dos especialistas, o nome hapiru indicaria, mais do que um
povo específico, uma classe de pessoas, sem levar em conta a sua origem étnica ou
geográfica. A palavra habiru, em acádico, cuja forma mais autêntica é 'apiru, em
ugarítico, poderia significar desde "os que recebem ração" até "poeirentos" ou "homens
do território", conforme a língua que se escolhe para identificar a raiz 'apr, seja uma
língua semítica do oeste ou o acádico. Em suma, acredita-se que os hapirus formassem
grupos variados de pessoas provenientes de várias etnias, espalhados por todo o
Crescente Fértil, que se colocavam a serviço de reis, cidades ou Estados. Faziam desde
trabalhos de reconstrução de cidades até guerra, como mercenários, ou pastoreio de
rebanhos4.
A nova sociedade que se criou fundamentava-se na solidariedade das relações
de parentesco: a família ampliada, de estrutura patriarcal, a chamada "casa do pai",
beth-'âbh, era a unidade fundamental. Compreendendo até cinco gerações, era esta
4
. Cf. BRIEND, J. (org.) Israel e Judá: textos do Antigo Oriente Médio. 2. ed. São Paulo: Paulus,
1997, p. 24-33.
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família economicamente autônoma, governada pelo patriarca, líder masculino mais
velho do grupo.
Vivendo em aldeias e dedicando-se basicamente à agricultura de subsistência e
a atividades pastoris - é provável que o pastoreio ocupe não mais de 10% da população
-, as famílias se agrupavam em associações protetoras que poderíamos chamar, talvez,
de clã, em hebraico, a mishpâhâh.
"A associação protetora é um agrupamento de famílias ampliadas (beth-'âbhoth)
que moram nas mesmas aldeias ou nas aldeias vizinhas, nas cercanias rurais, ou numa
seção de um estabelecimento mais amplo, que proporciona auxílio mútuo
socioeconômico às suas famílias componentes, que contribui com cotas de tropas para
o recrutamento tribal, e que serve, indiretamente, sozinha ou de comum acordo com
outras mishpâhoth vizinhas, para fornecer uma comunidade jurídica local" 5.
Segundo Hans G. Kippenberg, citando R. Pattai e E. Meyer, a mishpâhâh:
 é um grupo de descendência patrilinear, ou seja, a linha de descendência corre de
pai para filho
 é unidade de convocação do exército tribal: cada clã fornece determinado número de
combatentes nas guerras tribais de resistência e conquista
 caracteriza-se pela residência comum de seus membros
 transmite o direito de posse por herança: a terra, os rebanhos, enfim, a propriedade é
comunal e não pode ser vendida, mas deve ser mantida em poder do grupo através
da herança de pai para filho
 é formada de famílias ampliadas
 seus membros têm responsabilidade mútua, como o levirato, a ge'ulla etc, gerando
uma solidariedade de sangue muito coesa
 tem regras específicas de casamento, com preferência pelo casamento entre primos
patrilineares e com a obrigatoriedade do dote
 é responsável pelas festas cultuais e pela preservação da memória coletiva
 integra, em circunstâncias específicas, uma tribo 6.
A associação de diversos clãs formava uma unidade mais complexa que
designamos normalmente por tribo, em hebraico shêbhet ou matteh.
Vários fatores levavam à formação de uma tribo. Entre eles, destaco:




migrações conjuntas de vários grupos e famílias
lutas contra cidades-estado cananeias ou contra a liga filisteia
proximidade de moradia e/ou características geográficas favoráveis
ocupações agrícolas ou pastoris conjuntas etc.
5.
GOTTWALD, N. K. As tribos de Iahweh, p. 348. Gottwald recusa a categoria de clã para esta
organização, argumentando que o clã é sempre exógamo (seus membros casam-se fora, com componentes
de outro clã), enquanto que a organização israelita é endógama (casam-se seus componentes dentro do
mesmo grupo).
6.
Cf. KIPPENBERG, H. G. Religião e formação de classes na antiga Judeia: estudo
sociorreligioso sobre a relação entre tradição e evolução social. São Paulo: Paulus, 1997, p. 22-28. Há um
resumo deste livro em <http://blog.airtonjo.com/2007/07/religio-e-formao-de-classes-na-antiga.html>.
17
Pode-se verificar, portanto, que a relação de parentesco, base desta organização
social, não é de descendência de sangue apenas. O parentesco é político, é uma
função social que cimenta a solidariedade entre os membros de um grupo.
A tribo, segundo N. K. Gottwald, "é uma associação autônoma de famílias
ampliadas segmentadas (beth-'âbhoth) agrupadas em associações protetoras
(mishpâhoth) de aldeias/vizinhança, constando em média de aproximadamente 50 por
tribo, entrelaçando-se funcionalmente através do casamento entre si, das práticas de
auxílio mútuo, da adoração comum e do recrutamento de tropas" 7.
É preciso lembrar, finalmente, que a religião exerce papel fundamental nesta
estrutura social. É o javismo que legitima e consagra a ordem tribal solidária em
oposição ao baalismo da sociedade tributária.
É muito difícil falar de teologia e de conceitos teológicos nesta época, não
porque sejam impossíveis, mas porque só os conhecemos através de escritos
posteriores, todos da época monárquica ou mesmo pós-exílica. Sabendo disso,
entretanto, podemos afirmar que, teologicamente, as relações sociais e religiosas da
sociedade tribal podem ser ditas como uma relação de aliança (berîth), que caracteriza,
na prática do direito (mishpât), da justiça (tsedhâqâh), e da fidelidade/solidariedade
(hesedh), a busca do shalôm, que é a prosperidade, a paz, a felicidade.
Isto explica definitivamente as origens de Israel? De modo algum. Muitos autores
procuraram avançar a partir e além de Mendenhall e Gottwald.
Como nos lembra R. K. Gnuse, as descobertas arqueológicas dos últimos anos
encorajaram os pesquisadores na elaboração de novas maneiras de compreender as
origens de Israel. As escavações de localidades tais como Ai, Khirbert Raddana, Shiloh,
Tel Quiri, Bet Gala, Izbet Sarta, Tel Qasileh, Tel Isdar, Dan, Arad, Tel Masos, BeerSheba, Har Adir, Horvart Harashim, Tel Beit Mirsim, Sasa, Giloh, Horvat ‘Avot, Tel enNasbeh, Beth-Zur e Tel el-Fûl, deixaram os arqueólogos impressionados com a
continuidade existente entre as cidades cananeias das planícies e os povoados
israelitas das colinas. A continuidade está presente sobretudo na cerâmica, nas técnicas
agrícolas, nas construções e nas ferramentas 8.
O crescente consenso entre os arqueólogos é de que a distinção entre cananeus
e israelitas no primeiro período do assentamento na terra é cada vez mais difícil de ser
feita, pois estes parecem constituir um só povo. As diferenças entre os dois aparecem
apenas mais tarde. Por isso, os arqueólogos começam a falar cada vez mais do
processo de formação de Israel como um processo pacífico e gradual, a partir da
transformação de parte da sociedade cananeia. “A teoria sugere que, de alguma
maneira, cananeus gradualmente tornaram-se israelitas, acompanhando transformações
políticas e sociais no começo da Idade do Bronze”9.
7.
GOTTWALD, N. K. As tribos de Iahweh, p. 347.
8
. Cf. GNUSE, R. K. No Other Gods: Emergent Monotheism in Israel. Sheffield: Sheffield
Academic Press, 1997, p. 32-61. Cf. também FRITZ, V. Die Entstehung Israels im 12. Und 11. Jahrhundert
v. Chr. Stuttgart: Kohlhammer, 1996, p. 104-121, onde os vários modelos são descritos e analisados.
9
. Idem, ibidem, p. 33.
18
Os defensores deste ponto de vista argumentam com o declínio cultural ocorrido
no Bronze Antigo, com a deterioração da vida urbana causada pelas campanhas
militares egípcias, com a crescente tributação, e, talvez, com mudanças climáticas. Mas
o processo de evolução pacífica de onde surgiu Israel é descrito de maneira diferente
pelos especialistas, de modo que R. K. Gnuse prefere classificar as teorias em quatro
categorias, que são:




Retirada pacífica
Nomadismo interno
Transição ou transformação pacífica
Amálgama pacífico
Retirada pacífica
Como defensores de uma retirada pacífica de grupos cananeus das planícies
para as regiões montanhosas, R. K. Gnuse cita especialmente Joseph Callaway, David
Hopkins, Frank Frick, James Flanagan, Gösta Ahlström e Carol Meyers10.
Joseph Callaway foi um dos primeiros a observar nas escavações de Ai e
Khirbet Raddana, no território de Efraim, que os habitantes destas pequenas localidades
situadas nas montanhas usavam as mesmas técnicas dos cananeus na agricultura, na
fabricação de ferramentas, na perfuração de cisternas, na construção de casas e de
terraços para a retenção da água da chuva. Isto implica uma continuidade cultural com
os cananeus das cidades situadas nos vales e sugere que as pessoas se deslocaram
para Ai e Raddana para fugir de possíveis conflitos nos vales. Entre 1200 e 900 a.C. o
número de povoados nas montanhas passou de 23 para 114, o que sugere uma
significativa retirada.
David Hopkins, por sua vez, em uma avaliação detalhada da agricultura na
região montanhosa da Palestina na Idade do Ferro I (1200-900 a.C.), observou que o
desenvolvimento social aconteceu junto com a intensificação do cultivo da terra. Para
Hopkins, estas pessoas desenvolveram um sistema de colaboração ao nível de clã e de
famílias, o que lhes permitia uma integração de culturas agrícolas com a criação de
animais, evitando, deste modo, os desastres comuns a que uma monocultura estava
sujeita nestas regiões tão instáveis, especialmente em recursos hídricos. Hopkins
valorizou mais o sistema cooperativo baseado no parentesco do que o uso de técnicas
como terraços, cisternas e o uso do ferro para explicar o sucesso destes assentamentos
agrícolas. Para Hopkins, diferentes unidades clânicas e tribais israelitas devem ter
surgido a partir de diferentes atividades agrícolas.
Frank Frick acredita que os assentamentos israelitas surgiram após um colapso
das cidades cananeias. Esta nova sociedade teria então evoluído de uma 'sociedade
10
. Cf. CALLAWAY, J. Village Subsistence at Ai and Raddana in Iron Age I. In: THOMPSON,
H. (ed.) The Answers Lie Below: Essays in Honor of Lawrence Edmund Toombs. Lanham: University Press
of America, 1984; HOPKINS, D. The Highlands of Canaan: Agricultural Life in the Early Iron Age.
Sheffield: Sheffield Phoenix Press, 2010 [a reprint of the 1985 edition]; FRICK, F. The Formation of the
State in Ancient Israel: A Survey of Models and Theories. Decatur, Georgia: Almond Press, 1985;
FLANAGAN, J. David’s Social Drama: a Hologram of Israel’s Early Iron Age. Decatur, Georgia: Almond
Press, 1988; AHLSTRÖM, G. The History of Ancient Palestine. Minneapolis: Fortress Press: 1993;
MEYERS, C. Discovering Eve: Ancient Israelite Women in Context. New York: Oxford University Press,
1988.
19
segmentária' (época dos Juízes) para uma 'sociedade com chefia' (Saul) e, finalmente,
para o 'Estado' (Davi).
James Flanagan também acredita que o Israel pré-davídico surgiu da
movimentação de grupos sedentários que deixaram os vales para uma organização
mais descentralizada nas montanhas e na Transjordânia, onde eles se dedicaram à
agricultura e ao pastoreio.
Gösta Ahlström, entretanto, foi quem desenvolveu mais amplamente este
modelo de uma retirada pacífica em vários de seus escritos. Ele trabalha a continuidade
entre israelitas e cananeus, evidente na cultura material, e busca reler os textos bíblicos
dentro desta lógica. O próprio nome do povo, 'Israel', reflete esta lógica, já que
construído com o nome de El, divindade cananeia. Ahlström contesta a tese de Gottwald
de uma 'retribalização' ocorrida nas montanhas, já que sua estrutura social de base
familiar não corresponde, segundo ele, ao tipo nômade. Nenhuma 'revolta' de
camponeses pode ser documentada. Os recursos tecnológicos menores, igualmente,
não indicam a chegada de um grupo de pessoas vindas de fora da terra, mas sim a
escassez de recursos da área dos assentamentos. Talvez um grupo tenha vindo de
Edom e se juntado a estes camponeses, trazendo com eles o culto a Iahweh.
Carol Meyers defende que Israel surgiu nas montanhas após uma violenta praga
que devastou os vales. Teria havido um declínio de até 80% da população dos vales, e
cidades podem ter sido queimadas para evitar contágio. Nas montanhas, o crescimento
populacional - de 23 para 114 povoados - exigiu mais alimento, levando à intensificação
da agricultura, agora possível pela construção de cisternas e terraços e isto produziu, no
final, Israel.
Nomadismo interno
Defensores do nomadismo interno são C. H. J. de Geus, Volkmar Fritz e Israel
Finkelstein11. Embora admitindo a continuidade entre israelitas e cananeus, estes
especialistas defendem uma origem pastoril para os primeiros.
C. H. J. de Geus, antigo defensor das teorias de Mendenhall e Gottwald, propõe
que os israelitas eram etnicamente unidos, morando nas montanhas e usando
categorias tribais. Eles seriam os hapiru das cartas de Tell el-Amarna, vivendo nas áreas
intermediárias entre as cidades e com elas interagindo, experimentando, por isso, uma
'simbiose cultural'. Eles estavam na região há séculos e pertenciam à cultura amorita
siro-palestina do Bronze Médio. Quando as cidades sofreram um colapso eles
expandiram seu controle.
Volkmar Fritz, antes defensor da ideia de infiltração pacífica de Albrecht Alt, ao
escavar no norte do Negev, percebe que a cultura israelita viveu um longo período em
contato com a cultura cananeia e deslocou um pouco sua perspectiva. A casa israelita
11
. Cf. DE GEUS, C. H. J. The Tribes of Israel: an Investigation into Some of the Presuppositions
of Martin Noth’s Amphictyony Hypothesis. Amsterdam: Van Gorcum, 1976; FRITZ, V. Die Entstehung
Israels im 12. und 11. Jahrhundert v. Chr. Sttutgart: Kohlhammer, 1996; FINKELSTEIN, I. The
Archaeology of the Israelite Settlement. Jerusalem: Israel Exploration Society, 1988; FINKELSTEIN, I. ;
SILBERMAN, N. A. The Bible Unearthed: Archaeology's New Vision of Ancient Israel and the Origin of
Its Sacred Texts. New York: The Free Press, 2001. Em português: A Bíblia não tinha razão. São Paulo: A
Girafa, 2003. Resenha do livro em <http://airtonjo.com/site1/resenha-6.htm>.
20
de quatro cômodos significa uma evolução da arquitetura cananeia e a sua familiaridade
com a criação de animais domésticos e seus trabalhos em metal e cerâmica mostram
que eles não eram verdadeiros nômades, mas que estavam em contato comercial com
as culturas das cidades da região. Para Fritz, porém, a arquitetura diferenciada dos
povoados israelitas nas montanhas mostra que eles não saíram simplesmente das
cidades das planícies, mas que foram proto-israelitas, que, vindos de fora, antes de se
sedentarizarem, entraram em contato simbiótico com as culturas citadinas. Ou seja: eles
estavam culturalmente próximos dos cananeus, mas eram etnicamente diferentes e
trouxeram consigo suas próprias estruturas sociais e sua cultura material. Eles seriam os
hapiru ou os shasu dos textos egípcios, que eventualmente deram origem a Israel, Moab
e Edom.
Israel Finkelstein é o principal defensor da ideia do 'nomadismo interno'. Talvez
resumindo excessivamente seu matizado pensamento, eu diria que, para Finkelstein, os
israelitas eram 'nômades internos', gente que vivia na Palestina, por toda a Idade do
Bronze, na proximidade das cidades. Com o declínio destas, estes pastores se
dedicaram também à agricultura para conseguir cereais e outros alimentos não mais
oferecidos pelas cidades. Eles teriam se assentado em grande número na região
montanhosa de Efraim e, a partir dali, se espalhado, como defendia Alt, para o norte e
para o sul da região. O aumento populacional posterior colocou-os em conflito com
populações das planícies até que se chegou à unificação davídica.
Transição ou transformação pacífica
Entre os proponentes de uma transição ou transformação pacífica se destacam
Niels Peter Lemche, William Stiebing, R. Drews, Robert Coote & Keith Whitelam e
Rainer Albertz12.
Niels Peter Lemche, um dos mais brilhantes 'minimalistas' da Escola de
Copenhague, acredita que muito pouco pode ser dito das origens de Israel antes do
século X a.C. a não ser a percepção de um processo gradual de aumento da população
nas montanhas da Palestina. Lemche, assim como outros minimalistas, questiona o uso
da Bíblia Hebraica na reconstrução da História de Israel, já que esta é um produto pósexílico, possivelmente da época helenística. Na verdade, diz Lemche, não há época
patriarcal, êxodo, juízes, monarquia unida... Lemche expõe a sua visão no livro de 1998,
The Israelites in History and Tradition, p. 74, ao mesmo tempo em que procura superá-la
com uma nova proposta nas páginas 75-77.
Diz Lemche que o modelo 'evolucionário' por ele defendido na obra de 1988,
Ancient Israel: A New History of Israelite Society pressupõe que o aumento dos
12.
Cf. LEMCHE, N. P. Early Israel: Anthropological and Historical Studies on the Israelite
Society Before the Monarchy. Leiden: Brill, 1985; Ancient Israel: A New History of Israelite Society.
Sheffield: Sheffield Academic Press, [1988], 1995; The Canaanites and Their Land: The Tradition of the
Canaanites. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1991; Die Vorgeschichte Israels. Von den Anfängen bis
zum Ausgang des 13. Jahrhunderts v.Chr. Stuttgart: Kohlhammer, 1996; The Israelites in History and
Tradition. Louisville, Kentucky: Westminster John Knox, 1998; STIEBING, W. Out of the Desert?
Archaeology and the Conquest Narratives. Buffalo: Prometheus, 1989; DREWS, R. The End of the Bronze
Age: Changes in Warfare and the Catastrophe ca. 1200 B.C. Princeton: Princeton University Press, 1993;
COOTE, R. ; WHITELAM, K. The Emergence of Early Israel in Historical Perspective. Sheffield:
Sheffield Phoenix Press, [1987] 2010; ALBERTZ, R. A History of Israelite Religion in the Old Testament
Period. 2 vols. Philadelphia: Westminster Press, 1994.
21
assentamentos tenha sido uma consequência natural da deterioração das condições de
vida das cidades da Palestina durante a última parte do Bronze Recente, até cerca de
1200 a.C. Segundo esta explicação, diferenças étnicas só apareceram com o passar do
tempo, motivadas por interesses econômicos, políticos, regionais e religiosos diferentes,
levando os habitantes dos povoados a se agrupar em grupos de parentesco, linhagens
e, no final do processo, em tribos.
Entretanto Lemche vê problemas nesta proposta, pois ela pressupõe um vazio
de poder egípcio na região e a consequente decadência das cidades, provocada pela
perda das rendas do comércio internacional, no conturbado enfrentamento de grandes
potências no século XIII a.C. Entretanto, o que hoje se sabe é que a ausência egípcia
na região não coincide com o aparecimento dos povoados na região montanhosa da
Palestina. Daí, que o afastamento desta população, saindo das cidades pode ter sido
causado não pela ausência, mas pelo aumento da pressão egípcia sobre as mesmas,
em sua exigência de mais tributos e mais trabalho forçado. Assim o Egito compensava
as perdas do comércio internacional.
Mas esta proposta não inclui a participação dos nômades na formação desta
nova sociedade, e a presença de elementos nômades nestes assentamentos deve ser
considerada. Então, por que não creditar à política egípcia o processo de criação de
assentamentos sem fortificações, por um lado, e por outro, a fixação dos migrantes,
consolidando o poder do império na região? Pois, deste modo, o Egito transferia parte
da população de cidades, agora improdutivas, para novas regiões e garantia os seus
rendimentos na região.
William Stiebing, por outro lado, coloca as mudanças climáticas ocorridas na
região do Mediterrâneo entre 1250 e 1200 a.C. como fator fundamental para explicar o
declínio da cultura urbana da Grécia Micênica à Palestina. Afugentados pela seca, os
sobreviventes da fome que se abateu sobre as cidades foram para as montanhas.
Condições climáticas mais favoráveis por volta do ano 1000 a.C. possibilitaram o
aumento desta população e à criação do Estado. Israel, portanto, surgiu não pelo
simples deslocamento de determinados grupos, mas pelo crescimento populacional
tornado possível pelas condições climáticas favoráveis à agricultura.
Robert Drews defende que os 'povos do mar' que invadem a região não eram
simples migrantes, mas mercenários treinados e com armamento superior aos dos
exércitos locais. Daí o massacre das cidades e o aumento populacional dos habitantes
das montanhas, com mudanças, inclusive, em seu comportamento ético, agora mais
igualitário. Ele dá pouca importância aos fatores climáticos na explicação dos
acontecimentos.
Robert Coote & Keith Whitelam veem as origens de Israel como parte de um
processo de integração milenar entre as regiões das cidades e as regiões das
montanhas. Processo que pode ser chamado de 'realinhamento' ou 'transformação',
pois nos períodos de prosperidade as regiões das montanhas providenciavam recursos
para as cidades dos vales, enquanto que nos momentos das crises elas absorviam as
populações que deixavam tais cidades. No surgimento de Israel o colapso do comércio
foi o fator mais significativo, segundo estes autores, pois colocou em crise a
sobrevivência das cidades e exigiu dos povoados das montanhas uma forma mais
eficaz de colaboração e cooperação para a sobrevivência, levando a um aumento
populacional significativo. Com o desenvolvimento destas regiões o comércio foi
recuperado, promovendo mais tarde o aparecimento do Estado.
22
Rainer Albertz faz uma espécie de síntese de várias escolas, indo de Albright a
Lemche, não propondo uma teoria específica. Albertz fala de 'digressão', processo pelo
qual o colapso do comércio internacional forçou os habitantes das cidades a se
deslocarem para os povoados das montanhas e aí se desenvolverem. Para tais
comunidades o grupo do êxodo trouxe as ideias do deus Iahweh.
Amálgama pacífico
Finalmente, a ideia de um amálgama pacífico de diferentes grupos nas regiões
montanhosas da Palestina para explicar as origens de Israel tem como defensores
especialistas como Baruch Halpern, William Dever, Thomas Thompson e Donald
Redford. A opinião de R. K. Gnuse, que aqui se alinha, é de que este grupo de
pesquisadores prevalecerá sobre os outros, por considerar melhor os pressupostos
teóricos do debate atual13.
Baruch Halpern foi um dos primeiros a descrever o processo de assentamento
como uma complexa interação de diferentes grupos nas montanhas: poucos habitantes
dos vales, muitos habitantes da região montanhosa, um grupo vindo do Egito com a
experiência do êxodo, grupos vindos da Síria... O grupo do Egito trouxe Iahweh,
enquanto o grupo sírio, de agricultores despossuídos, trouxe a circuncisão e a proibição
da criação do porco e criou o nome 'Israel' no século XIII a.C. Todos estes grupos foram
reunidos pela necessidade de manter rotas de comércio abertas com a ausência do
Egito na região. Progressivamente controlaram também as planícies, levando ao
surgimento da monarquia. Halpern sublinha ainda que o Israel histórico não é o Israel da
Bíblia Hebraica, mas foi o Israel histórico que produziu o Israel bíblico.
William Dever já foi simpatizante do modelo da revolta de Gottwald, das
propostas de Coote & Whitelam e do modelo de simbiose de Fritz. Hoje ele vê o
surgimento de Israel entre as populações que praticavam a agricultura na Palestina e
rejeita a dicotomia cananeu/israelita, dizendo que a distinção entre urbano e rural
explica as diferenças, que são funcionais e não étnicas. Para Dever Israel se formou de
refugiados das cidades, 'bandidos sociais' (social bandits), alguns revolucionários, uns
poucos nômades, mas, principalmente, cananeus saídos das cidades. Na região das
montanhas eles progressivamente criaram uma identidade que os diferenciou dos
cananeus das planícies.
Thomas L. Thompson, um dos mais polêmicos 'minimalistas' é ferrenho
defensor de uma História da Palestina escrita somente a partir dos dados arqueológicos
e crítico de qualquer história e arqueologia bíblicas. Thompson observa que a população
da Palestina permaneceu inalterada durante milênios, movendo-se os grupos entre as
cidades das planícies e os povoados das montanhas segundo as estratégias de
sobrevivência exigidas pelas mudanças climáticas, principal fator de transformação
social e política da região. A população das montanhas era formada por nativos da
região, que se misturaram com gente que veio das planícies, pastores de outras áreas e
imigrantes da Síria, Anatólia e do Egeu. A unidade política de Israel só aparece na
13
. Cf. HALPERN, B. The Emergence of Israel in Canaan. Chico, CA: Scholar Press, 1983;
DEVER, W. Recent Archaeological Discoveries and Biblical Research. Seattle: University of Washington
Press, 1990; THOMPSON, T. L. Early History of the Israelite People from the Written and Archaeological
Sources. 2. ed. Leiden: Brill, [1992] 1994; The Mythic Past: Biblical Archaeology and the Myth of Israel.
New York: Basic Books, 1999; REDFORD, D. Egypt, Canaan and Israel in Ancient Times. Princeton:
Princeton University Press, 1992.
23
época das interferências assírias na região, no século VIII a.C., no que diz respeito a
Samaria, e no século VII a.C., quando Jerusalém, após a destruição de Lakish por
Senaquerib, torna-se líder da região sul, como cidade cliente da Assíria. Toda a 'estória
bíblica' do império davídico-salomônico e dos reinos divididos de Israel e Judá é, para
Thompson, pura ficção pós-exílica.
Por fim, Donald Redford, egiptólogo, defende que existe uma diferença entre os
habitantes das planícies e os habitantes das montanhas. Ele sugere que o núcleo da
população nas montanhas era formado por pastores que se sedentarizaram, mas que
pastores shasu vindos de Edom, e trazendo consigo o culto a Iahweh, também ali se
assentaram, dando início ao futuro Israel, para ele, distinto dos cananeus.
Como concluímos?
Que embora ainda não haja consenso quanto à maneira como surgiu Israel, já se
impôs a ideia de que Israel emergiu, de alguma maneira, de dentro de Canaã e que a
arqueologia é a melhor ferramenta para mostrar como isso aconteceu 14.
Entretanto, dizem os teóricos que analisam as sociedades de tipo tributário
(também chamadas asiáticas porque mais frequentes naquele continente), como a que
existe em Israel durante a monarquia, que uma sociedade tribal de tipo patriarcal como
esta já representa uma forma de transição da comunidade primitiva para a sociedade de
classes. As contradições da sociedade tribal aumentam progressivamente até
provocarem o aparecimento do Estado, que inicialmente é uma função (de defesa, de
obras etc), mas que passa a ser uma exploração.
Da economia de auto-subsistência, através do desenvolvimento das forças
produtivas, passa-se a uma economia tribo-patriarcal baseada em certa hierarquização
que permite a acumulação para determinadas camadas: há os privilégios dos homens
sobre as mulheres, do primogênito sobre seus irmãos, das tribos líderes sobre as outras
tribos etc. É um embrião de divisão de classes, anterior ao Estado, detectável em Israel
já no período dos juízes15.
Pois é justamente nesta época que aparecem, em Israel, grupos de homens que
profetizavam ao som de instrumentos musicais e danças. Entravam em transe ou êxtase
- daí falarmos de “profetismo extático” - e pronunciavam oráculos (1Sm 10,5-13). Parece
que além de atenderem a consultas específicas, eles incitavam a população contra os
inimigos e exortavam-na a combater a guerra santa de Iahweh. Samuel, de alguma
maneira, estaria ligado a este movimento, já que, segundo alguns pesquisadores, a
14
. Recomendo, neste ponto, algumas leituras, como: MORGENSZTERN, I. ; RAGOBERT, T. A
Bíblia e seu tempo - um olhar arqueológico sobre o Antigo Testamento. 2 DVDs. Documentário baseado no
livro The Bible Unearthed, de Israel Finkelstein e Neil Asher Silberman. São Paulo: História Viva - Duetto
Editorial, 2007. Mais informações em <http://blog.airtonjo.com/2008/01/biblia-e-seu-tempo-emdvd.html>; DA SILVA, A. J. A história de Israel no debate atual. Em <http://airtonjo.com/site1/historiade-israel.htm>; DA SILVA, A. J. Pode uma ‘história de Israel’ ser escrita? Observando o debate atual
sobre a história de Israel. Em <http://airtonjo.com/site1/minimalistas.htm>; LIVERANI, M. Para além
da Bíblia: História antiga de Israel. São Paulo: Loyola/Paulus, 2008.
15.
Cf. FIORAVANTE, E. Do modo de produção asiático ao modo de produção capitalista. In:
GEBRAN, Ph. (org.) Conceito de modo de produção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 131-155;
CARDOSO, C. F. S. (org.) Modo de produção asiático: Nova visita a um velho conceito. Rio de Janeiro:
Campus, 1990.
24
missão profética era uma continuação da missão dos juízes carismáticos. Mas sua
origem e função continuam incertas, assim como pouco sabemos sobre a continuidade
ou ruptura destes profetas com os profetas clássicos da época monárquica.
1.2. A monarquia tributária israelita
A estrutura tribal foi sofrendo, deste modo, com o tempo, profundas
modificações, levando à formação do Estado monárquico16.
O Estado reativou as formas tributárias antes combatidas e minou
progressivamente as características solidárias de Israel. O Estado tributário restabeleceu
a oposição cidade x campo, recolhendo o excedente da produção camponesa para
sustentar as estruturas administrativas, militares, comerciais e religiosas.
Além do tributo cobrado, a população camponesa se vê sujeita ao trabalho
forçado grátis para o Estado, a chamada corveia, cada vez que o governo necessita de
mão-de-obra intensiva para a construção de obras públicas.
Pouco a pouco, parcela substancial do que era produzido foi sendo acumulado
por quem tinha poder e não trabalhava a terra. Criou-se uma classe poderosa que
violava, cada vez mais, as antigas leis tribais da solidariedade. Os camponeses foram
se empobrecendo, chegando a perder as suas terras de herança, seus meios de
sobrevivência e até a sua liberdade. O enfraquecimento dos laços familiares e tribais era
irreversível.
Assim, o Estado tributário que inicialmente nascera com funções públicas de
organização e defesa passa, pouco a pouco, a ser um autêntico poder de classe (a
classe que se constitui nele) para manter e aumentar a exploração. É bom lembrar que
o Estado é consequência da exploração de classe, ele não é a sua causa. O
despotismo do governo é também uma consequência da formação de classes.
O produto do trabalho transforma-se em mercadoria. Floresce o comércio interno
e externo. Este último é monopólio do Estado, que exporta produtos básicos e importa
produtos de luxo. A acumulação é evidente. A exploração do trabalho, violenta. Quem
quiser, poder conferir dois importantes textos bíblicos que denunciam este tipo de
sociedade. São 1Sm 8,10-18 e Jz 9,7-15.
1Sm 8,11-17 diz:
"Este será o direito do rei que reinará sobre vós: ele convocará os
vossos filhos e os encarregará dos seus carros de guerra e de sua
cavalaria e os fará correr à frente do seu carro; e os nomeará
chefes de mil e chefes de cinquenta, e os fará lavrar a terra dele e
ceifar a sua seara, fabricar as suas armas de guerra e as peças de
seus carros. Ele tomará as vossas filhas para perfumistas,
cozinheiras e padeiras. Tomará os vossos campos, as vossas
vinhas, os vossos melhores olivais, e os dará aos seus servos.
Das vossas sementes e das vossas vinhas ele cobrará o dízimo,
16
. Para o debate sobre o surgimento do Estado no antigo Israel, recomendo DA SILVA, A. J. Os
governos de Saul, Davi e Salomão. Em <http://airtonjo.com/site1/historia-12.htm>; Idem, A origem dos
antigos Estados israelitas. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 78, p. 18-31, 2003.
25
que destinará aos seus eunucos e aos seus servos. Os melhores
dentre vossos servos e vossas servas, e de vossos adolescentes,
bem como vossos jumentos, ele os tomará para o seu serviço.
Exigirá o dízimo dos vossos rebanhos, e vós mesmos vos tornareis
seus servos".
Neste Estado tributário o papel da religião é, também, muito importante. Sua
ideologia é, poderíamos dizer, parafraseando conceitos nossos das décadas de 60 e 70
do século XX, uma "Teologia de Segurança Nacional".
O rei governa como privilegiado representante de Iahweh. Legitima seus atos
através do culto celebrado no Templo de Jerusalém e dos profetas oficiais sustentados
pela corte. Iahweh mesmo, antes livre e soberano, segundo a concepção tribal,
encontra-se, de certa forma, "prisioneiro" do rei. Pois o rei, em geral, se associa
politicamente ao Sumo Sacerdote (o termo ainda não é usado nesta época, mas a
função de sacerdote chefe já é bem definida). Este é, por sua vez, o único israelita que
tem acesso imediato, no Santo dos Santos, a Iahweh, segundo a teologia então
desenvolvida. Por sinal, a teologia em voga é elaborada por representantes desta nova
ordem e, sem dúvida, defende seus interesses.
Dito de outro modo: na monarquia, as categorias ideológicas refletem o
econômico de maneira invertida. As relações econômicas não são mais determinadas
pela solidariedade tribal, mas por uma apropriação do excedente pela corte. Entretanto,
o discurso teológico javista permanece, ocultando o processo real. Na verdade, a
aliança, que antes era feita entre Iahweh e o povo, passa a ser a aliança de Iahweh com
a dinastia davídica.
A administração da justiça, antes tribal, agora é reformulada. Concentra-se o
poder nas mãos do rei e de seus ministros. O rigor ético do javismo vai sendo afrouxado
para permitir a exploração, o desmando, a injustiça.
Se Iahweh é um Deus tão exigente, o Estado favorece o culto a outros deuses,
menos rigorosos. Prolifera a idolatria. Torna-se prática comum para amplos setores da
população. Os cultos aos deuses cananeus da fertilidade e a celebração dos ciclos da
natureza influenciam profundamente a religiosidade camponesa.
Para os que se apropriam do produto do trabalho dos outros é uma maravilha:
quanto mais o camponês cultuar os deuses protetores da natureza e da terra cultivada,
tentando garantir e aumentar sua produção, tanto mais o tributo cresce.
Em outras palavras, podemos dizer que a organização tributária se caracteriza
pela unidade Estado-comunidades e pelo antagonismo aristocracia-campesinato.
A unidade Estado-comunidades gera a imagem do cosmos como um universo
unitário, garantido pela função técnica do Estado (agricultura planejada, administração,
guerra etc). Isto prova para a população a existência de uma ligação forte e definitiva
entre o rei e a divindade, chegando a função do Estado a tornar-se preceito ético para o
povo.
Ocorre a transferência de atributos cósmicos para a esfera política e de atributos
políticos para a esfera cósmica: a abundância material existe graças ao soberano.
26
Existe uma unidade entre a divindade, o déspota, as funções jurídico-políticas do
Estado, o funcionamento do cosmos e a fertilidade da terra.
O antagonismo aristocracia x campesinato, por outro lado, existe porque a
relação entre os dois grupos é tributária e é uma relação de exploração.
Este antagonismo gera uma crítica da opressão: os camponeses ou seus
representantes intelectuais protestam contra as injustiças a que são submetidos e contra
a corrupção e o luxo da classe dominante, dona absoluta do poder. Mas também
protestam contra a concepção oficial da divindade enquanto associada à exploração:
isto é feito através da crítica e da condenação da idolatria cultual - cultos naturistas
alienantes e cultos oficiais formais, mascarando a exploração - e política - aliança com
as grandes potências e dependência de seus interesses 17.
17.
Cf. BANU, I. La formación social "asiática" en la perspectiva de la filosofia oriental antigua.
In: BARTRA, R. (ed.) El modo de producción asiático. 3. ed. Mexico: Era, 1975, p. 297-316.
27
2. O TEOR DO DISCURSO PROFÉTICO
"Ai dos que juntam casa a casa,
dos que acrescentam campo a campo
até que não haja mais espaço disponível,
até serem eles os únicos moradores da terra"
(Is 5,8).
Nestes momentos de crise aparecem os profetas. Aliás, profetas surgem apenas
quando as condições sociais o requerem. Por isso são frequentemente encontrados em
sociedades que sofrem rápidas e drásticas mudanças. A instabilidade gerada leva à
insatisfação, que produz o agente do sagrado com uma mensagem de ameaça e
castigo para os agentes e beneficiários das mudanças e de salvação e esperança para
aqueles que padecem as mudanças. Quanto mais se deterioram as condições sociais
mais eles se multiplicam e mais ferozmente atuam 1.
Sua origem nem sempre é determinante: Elias, Amós e Miqueias, por exemplo,
são camponeses. Já Isaías, Oseias, Habacuc e outros vivem nas capitais. Por outro
lado, Jeremias e Ezequiel são sacerdotes, enquanto outros são leigos.
Seu discurso é dirigido à classe dominante que constitui o próprio Estado e ao
povo de Israel em geral. Aos responsáveis pelas instituições do Estado, os profetas
sempre dirigem duras críticas, denunciando a ruptura das relações da aliança javista. Ao
povo em geral, às vezes, só a um "resto" fiel, os profetas anunciam a intervenção de
Iahweh, tanto para punir os ímpios por sua iniquidade, como para recompensar os justos
por sua fidelidade.
R. R. Wilson distingue duas vertentes na profecia israelita: a vertente efraimita
e a vertente judaíta.
Os profetas efraimitas, apoiados socialmente pelo grupo levítico, sempre
atuaram na periferia da sociedade, denunciando o poder monárquico como destruidor
das estruturas sociais javistas. Sua visão é a de que o profeta é o único intermediário
legítimo entre Iahweh e Israel. Visão esta bem assentada na teologia do Deuteronômio,
de origem levítica (cf. Dt 18). O seu modelo de profeta: Moisés.
Já a profecia judaíta tinha função de manutenção da ordem social central.
Quando Isaías, por exemplo, profeta judaíta da ordem social central, prega a conversão
e a reforma é para preservar a ordem davídica que se fragmentava sob governos
incompetentes ou corruptos. Daí que sua articulação teológica se fundava em Davi e em
Sião2.
1
. Cf. WILSON, R. R. Profecia e sociedade no antigo Israel. 2. ed. revista. São Paulo: Targumim/
Paulus, 2006, p. 47-52.
2
. Cf. WILSON, R. R. o. c., p. 348-357.
28
2.1. A denúncia da idolatria
Como os profetas falam em nome de Iahweh e baseados em sua fé, posso dizer
que o seu discurso é de teor teológico. E que consiste na denúncia da ruptura da berîth
(aliança) Iahweh-Israel, vista como idolatria, em três níveis da realidade:
 idolatria religiosa
: Iahweh-Baal
 idolatria política
: Iahweh-Poder
 idolatria econômica
: Iahweh-Riqueza3.
A idolatria religiosa consiste na substituição de Iahweh por Baal, deus
cananeu da natureza, ou pelos deuses cósmicos de outros países.
Desde suas origens, esta foi uma das formas dominantes de desagregação dos
valores javistas, manifestada especialmente no momento cultual. Se Iahweh é o Deus
dos oprimidos que se organizam, Baal é o deus dos reis (cananeus, depois israelitas)
que oprimem.
Esta dura realidade pode ser vista, por exemplo, no episódio, muito significativo,
da vinha de Nabot, em 1Rs 21. O rei Acab se apossa da vinha de Nabot, seguindo a
justiça dos reis cananeus e de seu deus Baal. Mas Iahweh é quem protegia o direito de
Nabot, proibindo o poderoso de tomar a herança do pobre. Neste caso será o profeta
Elias o porta-voz de Iahweh4 .
As práticas rituais da fertilidade, nas quais se cultuavam Baal e outros deuses
ligados à natureza, tiveram enorme difusão entre os israelitas Os cultos da fertilidade
têm sua origem na descoberta da agricultura. Foi a mulher a primeira agricultora, ainda
na época neolítica, entre 9.000 e 7.000 a.C. Associou-se o processo de fertilidade da
terra, vista como uma divindade, com a fertilidade da mulher que a cultivava. Com o
tempo os agricultores passaram a celebrar rituais sexuais nos seus cultos, e o ritmo
cíclico da vegetação é explicado através de dramas mitológicos bem elaborados. A
natureza morre periodicamente porque morre um deus. Que, após várias peripécias,
renasce, trazendo consigo o novo florescimento agrícola. Em Israel este deus é Baal.
Baal é um jovem deus, filho de El, que é o pai de todos os deuses do panteão
ugarítico, mas também é conhecido como filho de Dagan. Baal significa “senhor”. É
chamado igualmente de Hadad ou Haddu e considerado como “Cavalgador das
Nuvens”, “Príncipe”, “Senhor da Terra”, “Poderoso”, “Soberano”.
Diz o mito da Luta entre Baal e Môt que Môt (deus da morte e da esterilidade) se
sente prejudicado pela vitória de Baal (deus da chuva e da fertilidade) sobre Yam (deus
do mar), vitória que afeta seu poder. Baal declara sua submissão e é intimado por Môt a
descer por sua goela, sendo, assim, morto. É que no mundo subterrâneo de Môt
ninguém é capaz de resistir ao seu poder.
El, o pai de Baal, lamenta profundamente a morte do “Senhor da Terra”:
3
. Cf. SICRE, J. L. Los dioses olvidados: Poder y riqueza en los profetas preexílicos. Madrid:
Cristiandad, 1979; SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas I-II. 2. ed. São Paulo: Paulus, 20022004.
4
. Cf. VELOSO DA SILVA, M. A., Elias. O juízo sobre a monarquia ou a desfeita de Baal. 3. ed.
Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 4, p. 33-40, 1987.
29
“Chegamos junto de Baal, ele estava caído por terra.
Baal, o muito Poderoso, estava morto
o Príncipe, Senhor da Terra, tinha perecido.
Então El, o Misericordioso de grande coração,
desce de seu trono, assenta-se no escabelo
e do escabelo vai assentar-se na terra.
Espalha sobre sua cabeça a cinza do luto,
sobre seu crânio, a poeira da aflição.
cobre seus rins com um saco,
golpeia sua pele com uma pedra,
corta com uma navalha suas duas tranças,
lacera três vezes suas faces e seu queixo (...)
Eleva sua voz e exclama:
‘Baal morreu! Que vai ser do povo?
O filho de Dagan morreu! Que vai ser da multidão?’”
Mas Anat, deusa do amor, da fecundidade e da guerra, companheira de Baal, vai
à sua procura, resgata seu corpo e enfrenta Môt, matando-o.
“Os dias passaram
os dias tornaram-se meses;
Anat, a Donzela, o procurou.
Como o coração da vaca por seu bezerro,
como o coração da ovelha por seu cordeiro,
assim batia o coração de Anat por Baal.
Agarrou o divino Môt,
com uma faca o partiu,
com um ancinho o limpou,
no fogo o queimou,
com pedras de moinho o triturou,
no campo o espalhou,
sua carne os pássaros comeram,
seus pedaços as aves devoraram
a carne à carne foi convidada”.
Com a morte de Môt, Baal revive e isto provoca grande alegria:
“Está vivo Baal, o Vitorioso (...)
que os céus chovam azeite
que as torrentes fluam com mel (...)
Alegrou-se El, o Misericordioso de grande coração, apoiou seus
pés no escabelo
iluminou-se seu semblante e começou a rir”.
E, finalmente, os campos ressequidos voltam a receber a chuva que os fertiliza,
porque Baal, o Senhor da Terra, está vivo 5 .
5
. Os mitos de Ugarit podem ser lidos em DEL OLMO LETE, G. Mitos y leyendas de Canaan
según la tradición de Ugarit. Madrid: Institución San Jeronimo/Ediciones Cristiandad, 1981. Ugarit ou
30
Com o advento da monarquia, os cultos da fertilidade passaram a ser utilizados
pelos donos do poder, reis e funcionários civis e religiosos, como modo de controlar os
camponeses. O Estado vivia do tributo imposto aos camponeses e o governo estimulava
as práticas da fertilidade para que se produzisse mais e se arrecadasse mais. A
disparidade social crescia, na medida em que mais e mais riquezas eram, assim,
transferidas dos camponeses para as mãos da classe dominante.
O processo é sutil e poderoso. O produto do trabalho coletivo é apropriado por
uma minoria, transformado em mercadoria, divinizado e oferecido aos camponeses
como seu senhor. As mercadorias vão se tornando, deste modo, seres animados que
subjugam e alienam os homens, reduzidos à condição de objeto.
É M. Schwantes quem observa: "Os ídolos dependem das mãos. São os objetos
criados por quem trabalha e produz: bezerro, ouro, fertilidade, automóvel. Ao se
tornarem ídolos estes objetos tornam-se nossos sujeitos, guias, patrões. Ídolos são os
objetos feitos pelas mãos que são feitos sujeitos de quem os produziu. Somente a
dominação de quem trabalha, somente a escravização do trabalhador, através da força
das armas e das ideias, torna possível que os produtos de suas mãos possam virar em
sujeitos de sua vida"6 .
Oseias denunciou sistematicamente a idolatria religiosa. Como no seguinte texto:
"Meu povo consulta o seu pedaço de madeira
e o seu bastão faz-lhe revelações;
porque um espírito de prostituição os desviou,
eles se prostituíram, afastando-se de seu Deus.
Nos cimos das montanhas oferecem sacrifícios,
e sobre as colinas queimam incenso,
debaixo do carvalho, do choupo e do terebinto,
pois a sua sombra é boa" (Os 4,12-13).
Ou neste outro:
"Quando Efraim falava, era o terror,
ele era sublime em Israel,
mas tornou-se culpado por causa de Baal e morreu.
E agora continuam pecando:
eles constroem para si uma imagem de metal fundido,
com sua prata, ídolos de acordo com sua habilidade:
tudo isso não é senão obra de um artesão!" (Os 13,1-2a).
Também o profeta Isaías denuncia as práticas idolátricas nos seguintes termos:
Ras-Shamra é uma antiga cidade semítica da região da Síria, que atingiu seu apogeu entre 1500 e 1100 a.C.
Todos os textos encontrados a partir de 1929 pertencem a esta época. Sobre Ugarit, cf.
<http://airtonjo.com/site1/historia-7.htm>.
6
. SCHWANTES, M. Teologia do Antigo Testamento. Anotações. São Leopoldo: Comissão de
Publicações da Faculdade de Teologia da IECLB, 1986, p. 123.
31
"Com efeito, tu rejeitaste o teu povo, a casa de Jacó,
porque ele desde tempos antigos está cheio de adivinhos, como
/os filisteus,
no seu meio há muitos filhos de estrangeiros.
Sua terra está cheia de prata e de ouro:
não há fim para seus tesouros;
Sua terra está cheia de cavalos:
não há fim para seus carros;
Sua terra está cheia de ídolos,
e adoram a obra de suas mãos,
aquilo que seus dedos fizeram" (Is 2,6-8).
A idolatria política, substituição de Iahweh pelo Poder, assume várias formas
ao longo da história da monarquia. Como as seguintes:





a difusão de práticas idolátricas cultuais por conveniência política
a divinização do rei ou do Estado, para manter o "status quo" político
o culto à própria sabedoria política
o culto ao poderio militar
o culto aos grandes impérios, com os quais Israel faz alianças políticas 7.
Israel, especialmente após a divisão dos reinos em 931 a.C., era uma nação
pequena entre grandes potências. Israel se viu sempre tentado a praticar uma política
de alianças com os grandes impérios da Mesopotâmia ou com o Egito. Isto quase
sempre o levou a desastrosa dependência estrangeira. O povo acabava penalizado pelo
tributo cobrado pela nação estrangeira e muitos governos se sustentavam no poder sem
qualquer legitimidade. Amparados nas alianças estrangeiras, permaneciam
indefinidamente no poder, contrariando os interesses de seu povo e de seu país.
O profeta Oseias aborda frequentemente o problema da idolatria política. Por
exemplo:
"Efraim mistura-se com os povos,
Efraim é uma fogaça que não foi virada.
Os estrangeiros devoram o seu vigor,
mas ele não se dá conta!
Até mesmo os cabelos brancos se espalham nele,
mas ele não se dá conta.
Efraim é como uma pomba ingênua, sem inteligência,
pedem auxílio ao Egito, vão à Assíria" (Os 7,8-9.11).
Ou Os 12,2:
"Efraim alimenta-se de vento
e corre o dia inteiro atrás do vento do oriente;
7
. Cf. SICRE DIAZ, J. L. Los dioses olvidados, p. 23-27.
32
ele multiplica mentira e violência.
Eles concluem um pacto com a Assíria
e levam óleo para o Egito".
Também o profeta Isaías denuncia as alianças estrangeiras. Como em Is 30,1-2:
"Ai dos filhos rebeldes
- oráculo de Iahweh eles fazem projetos, mas não vindos de mim!
Eles formam alianças, mas não sugeridas pelo meu espírito,
que acumulam pecado sobre pecado!
Eles partem para descer ao Egito,
sem me consultar,
buscando a proteção do faraó,
procurando abrigo à sombra do Egito".
Is 31,1 aborda o mesmo tema:
"Ai dos que descem ao Egito, à busca de socorro.
Procuram apoiar-se em cavalos,
põem a sua confiança nos carros, porque são muitos,
e nos cavaleiros, porque são de grande força,
mas não voltam os olhares para o Santo de Israel,
não buscam Iahweh".
A idolatria econômica é a substituição de Iahweh pela Riqueza. O dinheiro (e
tudo o que tem valor), a ganância, o suborno recebido pelo juiz e a segurança obtida
através da riqueza são algumas de suas manifestações.
Os profetas condenam violentamente o enriquecimento obtido com a exploração
alheia, a concentração das riquezas nas mãos de poucos e o consequente
empobrecimento da maioria da população, a administração fraudulenta da justiça e a
impunidade dos que tudo podem comprar.
No século VIII a.C., Amós, Isaías e Miqueias condenam a idolatria econômica.
Por exemplo:
"Ouvi isto, vós que esmagais o indigente
e quereis eliminar os pobres da terra,
vós que dizeis: 'Quando passará a lua nova,
para que possamos vender o grão,
e o sábado, para que possamos vender o trigo,
para diminuirmos o efá, aumentarmos o siclo
e falsificarmos as balanças enganadoras,
para comprarmos o fraco com dinheiro
e o indigente por um par de sandálias,
para vendermos os restos do trigo?'" (Am 8,4-6).
"Ai dos que juntam casa a casa
33
dos que acrescentam campo a campo
até que não haja mais espaço disponível,
até serem eles os únicos moradores da terra" (Is 5,8).
"Ai daqueles que planejam iniquidade
e que tramam o mal em seus leitos!
Ao amanhecer, eles o praticam,
porque está no poder de sua mão.
Se cobiçam campos, eles os roubam,
se casas, eles as tomam;
oprimem o varão e a sua casa,
o homem e sua herança" (Mq 2,1-2).
2.2. A função do discurso profético
O que pretendem os profetas, afinal de contas?
Em última instância, a recuperação dos valores do javismo, ou, se quisermos, a
restauração da aliança javista.
Os profetas percebem a inadequação existente entre o discurso teológico oficial,
que continua a ser javista, e o funcionamento das instituições, que rompem os laços do
javismo.
Os profetas conhecem o mau funcionamento do Estado tributário, mas seu
discurso tem limites claros: eles não percebem o mal da própria existência da relação
tributária.
Exatamente porque fazem um discurso teológico (o único possível naquele
momento histórico), os profetas têm que ficar na aparência da estrutura social e não
podem atingir o seu núcleo estrutural, que é econômico.
Como porta-vozes dos camponeses que estão sendo espoliados pela cobrança
do tributo, os profetas querem reconquistar direitos perdidos e não adquirir direitos
novos.
Por isso, quase nunca encontramos nos profetas, mesmo nos mais radicais,
propostas políticas concretas para uma nova sociedade. Suas projeções são
generalizantes e utópicas, seu modelo é a passada sociedade tribal sem divisão
acentuada de classes, seus instrumentos são as tradições populares da fé javista e sua
autoridade é a força da palavra de Iahweh codificada nas relações sociais pré-estatais.
Várias tentativas têm sido feitas pelos sociólogos e antropólogos para identificar
o papel social do profeta. L. R. Benedetti, analisando a Igreja no Brasil atual e seu
discurso profético, expõe algumas delas 8 .
8
. Cf. BENEDETTI, L. R. Templo, Praça, Coração: A articulação do campo religioso católico.
São Paulo: Humanitas/USP/FAPESP, 2000.
34
Em primeiro lugar, ele cita a concepção de M. Weber: profeta seria um indivíduo
carismático, inovador, que se opõe ao sacerdote. É a clássica oposição carisma x
instituição que preside esta colocação.
“Por ‘profeta’ queremos entender aqui o portador de um carisma pessoal, o qual,
em virtude de sua missão, anuncia uma doutrina religiosa ou um mandado divino (...). O
decisivo para nós é a vocação ‘pessoal’. Esta é que distingue o profeta do sacerdote.
Primeiro e sobretudo porque o segundo reclama autoridade por estar a serviço de uma
tradição sagrada, e o primeiro, ao contrário, em virtude de sua revelação pessoal ou de
seu carisma. Não é casual o fato de que, com pouquíssimas exceções, nenhum profeta
procedeu do sacerdócio. Os mestres de salvação hindus em regra não são brâmanes,
os israelitas não são sacerdotes e somente Zaratustra talvez proceda da aristocracia
sacerdotal. Em oposição ao profeta, o sacerdote distribui bens de salvação em virtude
de seu cargo”19.
Não sendo profissional, um traço característico da profecia é a gratuidade,
segundo Weber: “Muitas vezes, tanto a adivinhação quanto a terapêutica e a consulta
mágica são exercidas ‘profissionalmente’. Assim o era, por exemplo, pelos numerosos
‘profetas’ (nabi, nebî’îm) mencionados no Antigo Testamento, especialmente nas
Crônicas e nos livros proféticos. Mas é precisamente destes que se distingue o profeta,
no sentido que aqui lhe damos, por um critério puramente econômico: pelo caráter
gratuito de sua profecia. Amós rejeita com ira a denominação nabi. E a mesma
diferença existe também em relação aos sacerdotes. O profeta típico propaga a ‘ideia’
por ela mesma e não - pelo menos não de modo perceptível e de fora regulada - por
uma remuneração”20.
A visão weberiana de carisma se insere no contexto de sua preocupação em
refutar posições reducionistas dentro do marxismo. Para Weber, observa Peter Berger,
as “ideias religiosas têm uma eficácia histórica própria e não podem ser simplesmente
entendidas como um ‘reflexo’ ou mesmo como uma ‘função’ de alguns processos sociais
subjacentes (...) O carisma representa a erupção súbita, para dentro da história, de
forças bem novas, muitas vezes vinculadas a ideias bem novas. Longe de serem
‘reflexos’ ou ‘funções’ de processos sociais já existentes, as forças carismáticas agem
poderosamente sobre processos preexistentes e, em verdade, geram novos
processos”21.
Outro aspecto enfaticamente defendido por M. Weber é o de que os profetas
israelitas jamais foram representantes dos camponeses oprimidos pelo sistema
monárquico instalado nas cidades, sistema que lhes impunha pagamento extorsivo de
tributos e trabalhos forçados em obras públicas. Sua mensagem e seus motivos eram
19.
WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva, vol. I.
Brasília: Editora da UnB, 1991, p. 303.
20.
Idem, ibidem, p. 304. Cf. também WEBER, M. Ancient Judaism. New York: Free Press, 1967,
p. 90-117;267-335. Os ensaios desta obra são de 1917-1919. Aqui Weber insiste repetidamente na figura do
profeta como um carismático solitário que, heroicamente, luta contra a corrente institucional. Enfatiza,
igualmente, suas visões e audições, que o fazem viver um estado quase doentio de ansiedade e tensão
emocional.
21.
Cf. BERGER, P. Carisma e inovação religiosa: a localização social da profecia israelita. In
VV.AA. Profetismo. São Leopoldo: Sinodal, 1985, p. 86-106. O artigo original, em inglês, é de 1963.
35
estritamente religiosos. A sua compreensão do carisma como estritamente pessoal
obrigava-o a essa conclusão.
Benedetti, entretanto, faz duas críticas a Weber:
 ele psicologiza a explicação sociológica, na medida em que coloca apenas nas
qualidades do indivíduo a chave de sua atuação profética. E onde ficam os
interesses sociais?
 por outro lado, ele pensa que os profetas israelitas sempre estiveram em oposição ao
sacerdócio... mas havia profetas junto aos sacerdotes, templos, reis... havia o profeta
do poder central...
Peter Berger, por sua vez, analisa a profecia e defende a ideia de que o carisma
profético surge dentro das instituições tradicionais e não em uma situação de
marginalidade social. Explicando a concepção weberiana de carisma, Berger supõe
ultrapassá-la quando diz: “Em verdade chegamos a ver que o profeta emerge de um
cargo tradicionalmente definido, exercendo a sua atividade carismática em termos deste
cargo, mas que ele foi levado para além de sua tradicional definição pela sua
mensagem religiosa”22.
Com efeito, percorrendo pesquisa profética deste século - nos anos 50 e 60 era
moda discutir a relação profeta/culto - Berger acredita que os profetas estavam de
algum modo ligados a funções cultuais 23. E conclui que, embora o carisma seja
“eventualmente a característica de indivíduos socialmente marginais”, ele “também pode
ser um traço de indivíduos situados no centro da estrutura institucional em questão, um
poder de ‘radicalização’ a partir de dentro, em vez de um desafio oriundo de fora” 24.
A crítica que se pode fazer a Berger é de que sua leitura é funcionalista, ao
salientar o caráter inovador e profético da instituição sem considerar suas contradições
internas. A propósito desta análise de Berger observa R. R. Wilson: "O que quer que se
pense das conclusões de Berger, infelizmente ele comete um erro corrente no uso que
faz da documentação fora de sua disciplina: admite consenso [na relação do profeta
com o culto] em outro campo acadêmico onde de fato não existe nenhum" 25 .
Outro teórico que analisa a profecia é Pierre Bourdieu. Ele faz do profeta o
mediador dos interesses dos leigos, no interior do campo religioso, em oposição ao
sacerdote, que media interesses de outros grupos. O poder do profeta baseia-se na
força do grupo que mobiliza por meio de sua aptidão para simbolizar em uma conduta
exemplar e/ou em um discurso (quase) sistemático, os interesses propriamente
religiosos de leigos que ocupam uma determinada posição na estrutura social (...) O
profeta traz ao nível do discurso ou da conduta exemplar representações, sentimentos e
aspirações que já existiam antes dele embora de modo implícito, semiconsciente ou
22.
Idem, ibidem, p. 105.
23.
Cf., sobre a questão, SCHÖKEL, L. A/SICRE DIAZ, J. L. Profetas I. Isaías, Jeremias. 2. ed.
São Paulo: Paulus, 2004, p. 38-41. Eles concluem na p. 41: "O profetismo cúltico é hipótese de trabalho;
esclarece alguns pontos e obscurece outros. Em se tratando de Israel, esta hipótese não está demonstrada. Da
existência de profetas cúlticos não se deduz o ministério cúltico dos profetas’’.
24.
25
BERGER, P. o. c., p. 106.
. WILSON, R. R. o. c., p. 15.
36
inconsciente. Em suma, realiza através de seu discurso e de sua pessoa, como falas
exemplares, o encontro de um significante e de um significado preexistentes”, explica
Bourdieu26.
Benedetti, entretanto, defende a hipótese de que "a sacerdotalização ocorre na
medida em que uma instituição religiosa adquire força e prestígio políticos, componentes
que acompanham a transformação de uma mensagem 'subversiva' em componente da
ordem social"27 .
Ora, quando acontece uma crise de hegemonia da instituição, o prestígio e a
força da própria instituição geram uma atitude profética contra a ordem que a ameaça.
Há um movimento de "volta às origens", de recuperação das "opções autênticas".
Portanto, é nas brechas do discurso oficial que se gera a profecia. Na medida em
que se aprofunda a distância entre o discurso oficial, os princípios fundamentais e a
prática cotidiana, o profetismo interfere para corrigir o defeito.
Neste sentido, "o profeta é com frequência o que leva o discurso às últimas
consequências. Nisso ele reconhece e legitima a instituição" 28. Só que ele particulariza e
radicaliza um discurso que, normalmente, fica em declarações gerais de princípios, sem
afetar a prática de ninguém... daí o incômodo que gera, com a consequente repressão.
Com o tempo, porém, a radicalidade de seu discurso vai sendo anulada pela cooptação.
Mas para além de tudo isso, é preciso reconhecer que os profetas conseguiram
criar e perenizar, nas mais adversas condições, mais um forte elo da luta do homem
contra a sua exploração e alienação. Programa que alguns deles chegam a identificar
com o "conhecer a Iahweh", o que, na verdade, significa ter intimidade com Deus.
Sem descanso, eles proclamam que uma nação assim dividida, como estava a
israelita, encontraria um dia o seu fim. E eles estavam certos. As contradições
cresceram e levaram à destruição o reino de Israel em 722 a.C. e o reino de Judá em
586 a.C. Alguns profetas e teólogos da época viram o exílio como um anti-êxodo. O
povo libertado do Egito volta à servidão, agora na Assíria e na Babilônia.
2.3. Os deslocamentos pós-exílicos
Na passagem da profecia pré-exílica para a pós-exílica, observamos alguns
deslocamentos temáticos, como:


da crítica da opressão interna (claro que sempre associada à externa, mas aquela
vindo em primeiro plano), os profetas passam à crítica da opressão externa
da crítica da manipulação de Iahweh para dominar, passam à crítica ao ceticismo
quanto à ação de Iahweh
26.
BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 92.
27
. BENEDETTI, L. R. o. c., p. 450 [na edição fotocopiada da tese, de 1988, antes da publicação].
28
. Idem, ibidem, p. 451.
37

da esperança de uma monarquia javista justa deslocam-se os seus apelos para a
organização de um governo sacerdotal de unidade ao redor do Templo, o que
possibilitaria a reconstrução do país.
Também no pós-exílio observamos uma mudança de perspectiva quanto ao
futuro da nação: frustrada a esperança de um governo sacerdotal eficaz e justo, os
profetas começam a pedir a intervenção decisiva e definitiva de Iahweh, no "dia" de sua
manifestação. Neste sentido, observamos o deslocamento seguinte: Rei - Sacerdote Messias.
O profetismo morre ao ser absorvido e cooptado pela instituição, que tem seu
pilar pós-exílico no sacerdócio. Segundo M. Weber, em toda grande religião ou Igreja o
discurso dissidente profético é cooptado pela instituição que o mata, ou contorna, ou
assume29 .
Em Israel, ao se solidificar o poder sacerdotal no Templo pós-exílico e a Lei na
Sinagoga, desaparece pouco a pouco a função profética. Para a Torá (Lei) escrita, o
profeta acaba sendo desnecessário e perigoso.
Mas como permanecem as contradições de uma sociedade dividida, agora entre
uma aristocracia helenizante e um campesinato javista tradicional, nasce o protesto
apocalíptico, com redobrado vigor. A apocalíptica é filha da profecia e crescerá nos anos
de crise do confronto com o helenismo, entre 200 a.C. e 100 d.C. 30.
29
. WILSON, R. R. o. c., p. 353-357, coloca assim a questão: com a derrota de Judá e a destruição
de Jerusalém, os profetas que defendiam a perenidade Davi/Sião foram também derrotados. Venceu a
vertente efraimita. É quando a visão Dt/Dtr começa a se tornar generalizada. A reconstrução pós-exílica,
por outro lado, levou à necessidade de um compromisso entre as duas vertentes, a judaíta (sadoquita) e a
efraimita (deuteronomista). O Templo continua sadoquita, mas a interpretação da tradição (literária) bíblica
será deuteronomista... e os levitas são integrados ao culto, em posições secundárias, entretanto. Mas este
mesmo compromisso levou à falência da profecia, na medida em que os profetas pós-exílicos falharam nas
suas propostas. E falharam porque, no pós-exílio, a profecia periférica, representante da realidade
camponesa, desaparece, vigorando apenas a profecia do poder central...
30
. Para a apocalíptica, cf. COLLINS, J. J. A imaginação apocalíptica: Uma introdução à
literatura apocalíptica judaica. São Paulo: Paulus, 2010; DA SILVA, A. J. Apocalíptica: Busca de um
Tempo sem Fronteiras. Em <http://airtonjo.com/site1/apocaliptica.htm>; PAUL, A. O que é o
Intertestamento. São Paulo: Paulus, 1981.
38
3. EU OUVI OS CLAMORES DE MEU POVO: O PROFETA AMÓS
"Odiai o mal e amai o bem,
estabelecei o direito à porta;
talvez Iahweh, Deus dos Exércitos,
tenha compaixão
do resto de José" (Am 5,15).
Vamos começar a leitura dos 9 capítulos do livro de Amós lá pelo meio, nas
chamadas visões simbólicas (capítulos 7-9), porque elas nos darão a chave que abrirá o
mundo deste importante profeta.
Definida a sua orientação profética, é necessário, no segundo momento deste
roteiro, verificarmos o contexto em que viveu Amós e que rumos vivia Israel sob o
governo de Jeroboão II.
Já no terceiro item reuniremos tudo o que sabemos sobre Amós, desde a sua
origem e profissão até o local de sua atuação profética e as circunstâncias de sua
expulsão do santuário de Betel, onde pregava.
No quarto passo podemos olhar os chamados "oráculos contra as nações",
palavras do profeta contra reinos e povos vizinhos, denunciando as barbaridades
cometidas por seus exércitos e por seus líderes políticos. Na verdade, este é o assunto
que começa o livro de Amós (capítulos 1-2).
Chegados a este ponto, é a hora de algumas observações gerais sobre o livro e
sobre a pregação de Amós.
Finalmente, a abordagem dos oráculos centrais de Amós, suas "palavras e
ameaças contra Israel", que ocupam os capítulos 3 a 6 de seu livro.
3.1. As visões simbólicas
Muitos especialistas acreditam que para se captar bem a mensagem de Amós
devemos começar sua leitura pelas cinco visões simbólicas, narradas em Am 7,1-3; 7,46; 7,7-9; 8,1-3; 9,1-4. Isto porque estas visões constituiriam os sinais que o profeta
percebe no cotidiano da vida e que simbolizam a situação da nação israelita. O que
acaba determinando sua decisão de anunciar o castigo e a ruína do país, dizem
alguns1.
1
. Cf. SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas II. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 984985. Outros autores, entretanto, afirmam que as visões aconteceram após o início de sua pregação, e tentam
reconstruir cronologicamente a evolução de sua pregação e de seu pensamento. Outros, ainda, colocam as
visões após a atividade profética de Amós, quando ele teria voltado para Judá.
39
Quer dizer: de certo modo, as visões preenchem, em Amós, o mesmo papel dos
textos de vocação em Isaías, Jeremias ou Ezequiel.
"Trata-se de uma trajetória vocacional. Amós percorre todo um caminho
visionário. As próprias visões deixam entrever isso, com bastante nitidez. A visão dos
gafanhotos (cf. 7,1-3) cabe no início do ano agrícola. A da seca (cf. 7,4-6), em pleno
verão. A do cesto (cf. 8,1-3), dá-se no outono. Estas visões cobrem, no mínimo, meio
ano. Talvez seja o período em que Amós é preparado, de modo incisivo, para seu
ministério", observa M. Schwantes2.
Amós nestes episódios via, quem sabe, coisas absolutamente normais, do
cotidiano - exceto o último episódio, o da queda do santuário -, mas de um ponto de
vista novo, profético, tornando-as símbolo da realidade maior, mais significativa 3.
Agora, vamos ler as visões.
A primeira visão (7,1-3) fala de uma praga de gafanhotos que destrói as
plantações dos camponeses. E isto depois do corte do feno para o pagamento do tributo
ao palácio. Amós apela a Iahweh, argumentando que os camponeses são frágeis
demais para sofrer tal ameaça de fome. E Iahweh revoga o castigo.
"Assim me fez ver o Senhor Iahweh:
Ele produzia gafanhotos,
quando começava a crescer o feno tardio,
é o feno tardio, depois da ceifa do rei.
E quando acabaram de devorar toda a erva da terra,
eu disse: ' Senhor Iahweh, perdoa, eu te peço!
Como poderá Jacó subsistir?
Ele é tão pequeno!'
Então Iahweh compadeceu-se:
'Isto não acontecerá', disse Iahweh" (Am 7, 1-3).
A segunda visão (7,4-6) mostra um fogo terrível que consome até as fontes
subterrâneas de água. A ameaça agora, para os camponeses de Israel, é de grande
seca. De novo Amós apela a Iahweh e a praga é suspensa.
2
. SCHWANTES, M. A terra não pode suportar suas palavras (Am 7,10): reflexão e estudo sobre
Amós. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 38 [cf. também as páginas 183-203]; cf. Idem, Jacó é pequeno. Visões
em Amós 7-9. 2. ed. RIBLA, Petrópolis/São Paulo/São Leopoldo, n. 1, p. 81-92, 1990.
3
. "O profeta é um vidente na medida em que ele, em todas as coisas, mediante estas e acima
destas, vê Iahweh, Deus de Israel e Senhor do mundo, operando e no ato de vir", diz FUEGLISTER, N.
Arrebatados por Iahweh: anunciadores da palavra. História e estrutura do profetismo em Israel. In
SCHREINER, J. (ed.) Palavra e Mensagem. São Paulo: Paulus, 1978, p. 196. C. MESTERS observa no seu
Deus, ondes estás? 5. ed. Belo Horizonte: Vega, 1976, p. 48, que na medida em que o profeta vive integrado
na vida do povo, tudo o que ele vê o faz lembrar-se da situação de injustiça em que vive o povo. "São os
fatos que começam a falar. Tudo se torna apelo. Assim, pouco a pouco, cresce uma consciência em Amós.
Já MAILLOT, A. ; LELIÈVRE, A. Atualidade de Miqueias: Um grande "profeta menor". São Paulo:
Paulus, 1980, p. 26, garantem que "é este ver em profundidade, este ver, que ultrapassa o acidental e atinge
o essencial, que os profetas sentiram como uma 'visão'".
40
"Assim me fez ver o Senhor Iahweh:
O Senhor Iahweh intentava um processo pelo fogo:
este devorou o grande abismo,
depois devorou o campo.
Eu disse: 'Senhor Iahweh, para, eu te peço!
Como poderá Jacó subsistir?
Ele é tão pequeno!'
Iahweh compadeceu-se:
'Também isto não acontecerá',
disse o Senhor Iahweh" (Am 7,4-6)
Estas duas visões se parecem muito na sua estrutura e no seu conteúdo.
Formam um par. Mostram a realidade do campo na época de Amós, as ameaças que
sofrem os pequenos camponeses e a atitude de Iahweh. Se há fome e sede no campo,
a culpa não é de Iahweh, vem de outros mecanismos, sociais, provavelmente. Estas
duas visões apontam o nível de consciência profética de Amós no que se refere ao
campo.
A terceira visão (7,7-9) apresenta um quadro "sui generis": Iahweh segura um
fio de prumo e verifica o alinhamento de um muro. O muro simboliza Israel, que está
torto e deverá ser demolido para ser realinhado. Desta vez Amós não intercede e a
certeza do castigo torna-se mais forte.
"Assim me fez ver:
Eis que o Senhor estava de pé sobre um muro de chumbo
e tinha em sua mão um fio de prumo.
E Iahweh me disse: 'Que vês, Amós?'
Eu disse: 'Um fio de prumo'.
O Senhor disse: 'Eis que porei um fio de prumo
no meio de meu povo, Israel,
não tornarei a perdoá-lo.
Os lugares altos de Isaac serão devastados,
os santuários de Israel serão arrasados
e eu me levantarei com a espada contra a casa de Jeroboão'"
(Am 7,7-9)
A quarta visão (8,1-3) apresenta uma semelhança sonora entre "frutos
maduros" (qayits) e "fim" (qets), simbolizando, na visão do cesto de frutos maduros, o
fim de Israel. Também desta vez não há intercessão do profeta.
"Assim me fez ver o Senhor Iahweh:
Eis um cesto de frutos maduros!
E ele disse: 'Que vês, Amós?'
Eu disse: 'Um cesto de frutos maduros!'
E Iahweh me disse:
'Israel, meu povo, está maduro para seu fim,
não tornarei mais a perdoá-lo.
Os cantos do palácio serão gemidos naquele dia.
- Oráculo do Senhor Iahweh Numerosos serão os cadáveres,
lançados em todos lugares. Silêncio!'" (Am 8,1-3).
41
Estas duas visões, formam outro par. Avançam em relação às duas primeiras,
chamando a atenção para a gravidade da situação e para a proximidade do fim de
Israel. Tratam de realidades urbanas: aí sofrerão a cidade, os santuários, o palácio.
Para este grupo não há intercessão de Amós. É uma realidade corrupta que não tem
conserto. Isto é bem comprovado até mesmo pela inserção, entre as visões, por parte
dos discípulos do profeta, do episódio do confronto entre Amós e o sacerdote Amasias
de Betel, em 7,10-17.
"Ao incluírem a confrontação com Amasias (cf. 7,10-17) entre a terceira (cf. 7,79) e a quarta (cf. 8,1-3) visão, os redatores exemplificam numa cena o antagonismo
entre a profecia que vem do campo e o sacerdócio amarrado aos interesses do Estado
e de seu templo oficial", observa M. Schwantes4 .
A quinta visão (9,1-4) marca o ápice deste ciclo de visões. Desta vez é o próprio
Iahweh quem atua. E de modo dramático. De pé sobre o altar dos sacrifícios - portanto,
diante do santuário - ele bate nos capitéis, provocando um terremoto que destrói o
santuário e mata as pessoas que ali estão. Não há possibilidade de fuga, garante o
texto: a destruição atingirá com certeza Israel. Diz o começo da visão:
"Vi o Senhor, que estava de pé junto ao altar
e ele disse: 'Bate no capitel para que tremam os umbrais!
Quebra-os na cabeça deles todos:
o que sobrar deles, eu os matarei à espada;
nenhum deles poderá fugir,
nenhum deles poderá escapar!'" (Am 9,1).
É o ponto máximo do ciclo visionário. O próprio Iahweh se volta contra o local no
qual se lhe presta culto. É porque o santuário (de Betel) traiu seu papel de conduzir o
povo a Iahweh e à vida. Tornou-se lugar de culto vazio e formal, amparando e ocultando
as múltiplas opressões e injustiças que se cometem no país.
3.2. O "milagre" israelita: a época de Amós
Sabemos que Amós atuou em Betel, situado no reino do norte ou Israel, na
época do governo de Jeroboão II (782/1-753 a.C.):
"Palavras de Amós, um dos pastores [BJ, edição de 2002:
criadores] de Técua. O que ele viu contra Israel, no tempo de
Ozias, rei de Judá, e no tempo de Jeroboão, filho de Joás, rei de
Israel, dois anos antes do terremoto" (Am 1,1).
4
. SCHWANTES, M. A terra não pode suportar suas palavras, p. 39. Sobre as visões, cf. também
KIRST, N. Amós. Textos selecionados. 2. ed. São Leopoldo: Comissão de Publicações da Faculdade de
Teologia da IECLB, 1983, p. 41-92.
42
É de fundamental importância que conheçamos esta época, para situar bem o
profeta no seu contexto. É o passo que proponho agora ao leitor.
O general Jeú, em 841 a.C., apoiado por Damasco e, talvez, pelo profeta Eliseu,
derrubou a dinastia de Omri e iniciou uma nova fase em Israel, fundando a mais
duradoura dinastia que teve o país: cinco reis que governaram durante 88 anos:





Jeú
Joacaz
Joás
Jeroboão II
Zacarias
: 841-813 a.C.
: 813-797 a.C.
: 797-782 a.C.
: 782/1-753 a.C.
: 753 a.C. (6 meses)5.
Mas, durante o reinado de Jeú e de seus sucessores, as pressões externas
foram muitas. A política de alianças da dinastia dos omridas foi naturalmente destruída
pelo violento golpe de Estado do general Jeú em 841 a.C.(cf. a visão deuteronomista da
época em 2Rs 9-10)6.
Desfeita a aliança militar e comercial fenícia, Israel só poderia fraquejar. Além de
contar com as intrigas internas e os naturais abalos provocados por expurgo tão feroz,
fatos que também fizeram o país atravessar um período de crise.
A pressão maior sobre Israel veio de Damasco. Nesta capital síria Ben-Adad II
fora assassinado por um militar chamado Hazael, em 843 a.C. Este, após enfrentar, em
841 a.C., uma perigosa invasão assíria de seu território, à qual resistiu, voltou-se contra
Israel. Tomou o Galaad, avançou pela Palestina afora até Gat e ameaçou Jerusalém,
obrigando seu rei, Joás, a lhe pagar tributo (2Rs 12,17ss), assim como fizera com Jeú e
com os reis de Tiro e de Sídon.
Hazael tornou-se senhor da região, enquanto Israel perdera toda a Transjordânia
e grande parte da costa mediterrânea.
Joacaz (813-797 a.C.), sucessor de Jeú, acabou também vassalo de Damasco,
pagando pesado tributo. Hazael deixou-lhe uma força militar irrisória: cinquenta
cavaleiros, dez carros de combate e dez mil soldados de infantaria 7.
Para percebermos a decadência que isto significava, basta a verificação de que
na famosa batalha de Karkar, travada por uma coalizão siro-palestina, em 853 a.C.,
contra a Assíria, o rei Acab sozinho mobilizara dois mil carros de guerra.
5
. Há várias cronologias possíveis para o período dos reis. Estou seguindo a de PAVLOVSKY, V.
; VOGT, E. Die Jahre der Könige von Juda und Israel. Biblica, Roma, n. 45, p. 321-347, 1964.
6
. Cf. uma análise da época em LIVERANI, M. Para além da Bíblia: História antiga de Israel.
São Paulo: Loyola/Paulus, 2008, p. 148-154.
7
. Este o momento adequado para se ler algo sobre a Inscrição ou Estela de Tel Dan. Cf., sobre
isso, <http://airtonjo.com/site1/historia-12.htm> e
<http://airtonjo.com/site1/historia-de-israel3.htm>.
43
Mas Israel conheceu dias melhores. E isto aconteceu quando um novo rei,
Adadnirari III, assumiu o poder na Assíria. Logo que tomou nas mãos o destino do reino,
ele se empenhou em submeter novamente os reinos arameus da Síria.
A partir de 806 a.C. Adadnirari III submeteu Hatti, na Síria do norte, Amurru, na
Síria central, Tiro, Sídon, Edom, a Filisteia e Israel. Todos estes reinos pagaram tributos,
mas Damasco sofreu mais: violentamente aniquilada pelos assírios, perdeu todo o seu
poder de agressão aos vizinhos8.
Logo em seguida também a Assíria enfrentou um período de convulsões
internas, além de ter que conter a expansão de um novo reino, Urartu, que se tornou
rapidamente a primeira potência oriental, e não mais interferiu na região do
Mediterrâneo até 745 a.C.
E então, livres de pressões superiores, os dois reinos, Israel e Judá, começaram
a sua expansão.
Joás (797-782 a.C.) começou a recuperação de Israel. Retomou as cidades
perdidas por seu pai Joacaz, expulsando os arameus de seu território e dominando seu
vizinho Judá (2Rs 14,1-14), com a derrota de Amasias em Bet-Sames.
Atacou Jerusalém, saqueou-a, derrubou parte de suas muralhas e levou reféns.
Mas não quis ocupar Judá. Amasias ficou no poder, mas logo foi assassinado por seus
compatriotas. Seu filho Azarias - conhecido também por Ozias - foi colocado no trono.
Quando reinou Jeroboão II (782/1-753 a.C.), Israel alcançou seu apogeu. Foi
este rei uma grande figura militar, expandindo o território em direção ao norte (cf. 2Rs
14,23-29). Parece que submeteu a Síria ao seu poder, inclusive as regiões da
Transjordânia e o sul até Moab.
O seu contemporâneo Ozias, de Judá - agora em paz com Israel - participou
plenamente deste programa de agressão. Reorganizou as defesas de Jerusalém e o
exército, criando novas táticas de guerra. Controlou Edom e as rotas comerciais árabes,
reabriu o porto de Esion-Géber, dominou o Negueb e a região filisteia.
Com a expansão, veio de braço dado a prosperidade.
O controle das rotas comerciais desde a Fenícia até a Arábia foi fundamental
para o desenvolvimento dos dois reinos. Em Samaria, os arqueólogos encontraram as
provas da riqueza de Israel nos esplêndidos edifícios então construídos. E no sul a
densidade populacional do Negueb foi sem precedentes9.
Mas, se olhada menos superficialmente, a situação de Israel não resultava tão
brilhante assim para toda a população.
8
. "O adversário mais importante, o mari' de Aram, isto é, 'senhor' de Aram, Ben Hadad (BenHadad III, sucessor de Hazael) cercado em sua capital, terminaria por submeter-se, e foi no palácio de
Damasco que o vencedor veio receber seu tributo", anotam GARELLI, P. ; NIKIPROWETZKY, V. O
Oriente Próximo Asiático II. São Paulo: Pioneira/Edusp, 1982, p. 80.
9
. Cf. LIVERANI, M. Para além da Bíblia: História antiga de Israel, p. 160-167.
44
O sistema administrativo adotado por Jeroboão foi aquele mesmo próspero e
problemático de qualquer Estado tributário: provocou a concentração da renda nas
mãos de poucos privilegiados com o consequente empobrecimento de significativas
camadas da população.
Criaram-se extremos de riqueza e de pobreza. Os pequenos agricultores viam-se
nas mãos de seus credores e chegavam à escravidão para pagar suas dívidas. Os
tribunais, bem pagos por quem podia, decidiam sempre a favor dos ricos.
À desintegração social somou-se a religiosa. Apesar de celebrada a aliança com
Iahweh, perdeu-se o sentido da obrigação do povo para com ele, ficando só o sentido
das promessas irreversíveis, que fizeram de Israel um grande país. Os sacerdotes? O
culto era estatal e vivia amarrado à ordem vigente.
3.3. O que sabemos sobre Amós
Am 1,1 serve de título ao livro. Em boa parte este versículo é posterior ao tempo
de atividade do profeta. Parte foi escrita por discípulos seus, parte vem da época do
exílio ou pós-exílio e é redação da escola deuteronomista 10 .
Aqui aprendemos que Amós - abreviação de Amasias, "Iahweh carregou",
"Iahweh protegeu" - era natural de Técua, povoado situado ao sul de Jerusalém, a
menos de 20 km da capital de Judá.
Aprendemos também que ele era pastor. Só fica a dúvida se era pequeno
proprietário ou apenas empregado. Trataremos disso ao falarmos de Am 7,10-17.
Segundo o título, ele atuou na época de Jeroboão II (782/1-753 a.C.), rei de
Israel, e de Ozias (767-739 a.C.), rei de Judá.
Além disso, "dois anos antes do terremoto". Em escavações realizadas em
Hazor, cidade israelita situada a 5 km do lago de Hule (hoje drenado por Israel, porque
produtor de malária), foram encontrados sinais de um terremoto (rachaduras nos muros
etc), da primeira metade do século VIII a.C., ou seja, da época de Jeroboão II. O mesmo
terremoto deixou sinais também em Samaria.
Deve ter sido uma grande catástrofe, pois vários séculos mais tarde Zacarias
(cerca de 350 a.C.) ainda o nomeia: "Fugireis assim como fugistes por causa do
terremoto nos dias de Ozias, rei de Judá" (Zc 14,5).
Assim, podemos estabelecer uma data aproximada para a atuação de Amós: aí
pelo ano de 760 a.C.11
10
. O título original, da época de Amós, seria apenas: "Palavras de Amós de Técua". O primeiro
acréscimo, feito por discípulos, pouco depois da atuação de Amós, diz: "O que ele viu contra Israel, dois
anos antes do terremoto". O segundo acréscimo diz: "Um dos pastores (de ovelhas), nos dias de Ozias, rei
de Judá, e nos dias de Jeroboão, filho de Joás, rei de Israel". Este acréscimo deve ter sido feito por
redatores deuteronomistas após a queda de Jerusalém em 586 a.C. Cf. KIRST, N. Amós, p. 24-31.
45
Am 7,10-17 narra o episódio da expulsão de Amós, por Amasias, do santuário
de Betel. É um texto em prosa, escrito provavelmente por discípulos do profeta de
Técua. E nos dá várias informações sobre Amós.
Confirmando o título, Amós aparece atuando durante o reinado de Jeroboão II. E
em seu santuário real, Betel. Segundo alguns, após ter atuado em Samaria (cf. 3,9-4,3),
pois já era personagem conhecido na corte 12 e também porque ele deve ter voltado para
Judá após este episódio, que encerraria sua carreira profética.
A acusação do sacerdote chefe de Betel, Amasias, contra Amós, é muito grave:
subversão. Ele está conspirando contra o rei em seu santuário.
"Então Amasias, sacerdote de Betel, mandou dizer a Jeroboão, rei
de Israel: 'Amós conspira contra ti, no seio da casa de Israel; a
terra não pode mais suportar todas as suas palavras. Porque
assim disse Amós: 'Jeroboão morrerá pela espada e Israel será
deportado para longe de sua terra'" (Am 7,10-11).
E Jeroboão sabe muito bem o que significa uma conspiração profética. Afinal ele
é descendente de Jeú, que assumira o poder por meio de uma conspiração menos de
um século antes (2Rs 9,1-13).
Am 7,14b nos informa: "Eu sou vaqueiro e cultivador de sicômoros". E o v. 15a
diz: "Mas Iahweh tirou-me de junto do rebanho".
O sicômoro (Ficus sycomorus; em hebraico, schiqmah) é uma árvore da família
da figueira. O seu fruto, comestível, se parece com o figo. Só crescia nas regiões
baixas, porque precisa de calor, não existindo, portanto, em Técua, que está a 825
metros de altitude. Era comum na região marítima e no vale do Jordão. As frutas devem
ser arranhadas com a unha ou com um objeto de metal antes de amadurecerem para
que fiquem doces. Talvez fosse esse o serviço de Amós.
Somadas as informações, parece que Amós dedicava-se a três atividades: ele
era vaqueiro, pastor (de rebanho miúdo) e cultivador de sicômoros. Não se sabe se as
três ao mesmo tempo, ou se fora apenas pastor em Técua e agora em Betel era
vaqueiro e cultivador de sicômoros.
A discussão que aqui aparece é sobre sua posição socioeconômica: seria Amós
um pequeno proprietário, dono dos rebanhos de ovelhas e vacas que pastoreava ou era
apenas um assalariado? Os autores se dividem. Uma solução definitiva não é
possível13.
11
. Am 8,9 faz provável referência a um eclipse solar, quando diz: "Acontecerá naquele dia oráculo do Senhor Iahweh - que eu farei o sol declinar em pleno meio- dia e escurecerei a terra em um dia
de luz". Realmente ocorreu um eclipse em 763 a.C., comprovam os astrônomos.
12
. "O v. 10b pressupõe que Amós seja conhecido em Samaria, na corte. Não é preciso explicar
quem é o tal de Amós. Basta citar o seu nome e os funcionários da corte já saberão de quem se trata", diz
KIRST, N. Amós, p. 103.
13
. Cf. várias opiniões em SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas II, p. 983.
46
Outra coisa importante: Amós recusa, segundo este texto, o título de profeta. Ou
porque não aceita ser assimilado aos profetas profissionais da corte e do templo (então
a tradução do v. 14a seria: "Não sou um profeta, nem filho de profeta"); ou porque
antes, em Técua, não fosse profeta como agora o é em Betel (neste caso a tradução do
v. 14a deveria ser: "Não era um profeta, nem filho de profeta")14 .
De qualquer maneira, Amós deixa claro que se está em Betel é porque foi
convocado por Iahweh, não é por interesse próprio e nem mandado por alguém do sul.
Também em 3,3-6.8 Amós fala da "necessidade da profecia": se Iahweh convoca
alguém, não há como escapar:
"Um leão rugiu: quem não temerá?
O Senhor Iahweh falou: quem não profetizará?" (Am 3,8).
Interessante é que o próprio Amasias, mesmo denunciando Amós ao rei,
reconhece no homem de Técua um profeta e um vidente:
"Amasias disse então a Amós: 'Vidente, vai, foge para a terra de
Judá; come lá o teu pão e profetiza lá. Mas em Betel não podes
mais profetizar, porque é santuário do rei, um templo do reino'"
(Am 7,12-13).
Sabe, portanto, que suas duras palavras são palavras de Iahweh. Só que não
pode aceitá-las no santuário real, porque são contra os interesses do governo de
Jeroboão II.
Finalmente, há o problema da duração da atividade profética de Amós. Nada
sabemos de concreto. Alguns exegetas chegam a limitar a sua atuação a um discurso
de apenas vinte ou trinta minutos, mas "o mais provável é que ele pregasse durante
algumas semanas ou meses e em diversos lugares: Betel, Samaria, Guilgal. Até que
esbarra com a oposição dos dirigentes"15.
3.4. Os oráculos contra as nações
Em Am 1,3-2,16 temos uma série de oráculos contra as nações vizinhas de
Israel e um oráculo dirigido ao próprio Israel.
Estes oráculos contra os vizinhos são bastante comuns nos profetas. São
ocasionados pelas relações nem sempre amistosas entre Israel e o os países limítrofes
e querem demonstrar a soberania de Iahweh sobre todos os povos e a sua proteção
especial para Israel.
14
. Cf. a discussão sobre a tradução no passado ou no presente em KIRST, N. Amós, p. 113-116.
15
. SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas II, p. 983-984.
47
O esquema dos oráculos é rigoroso: sentença - crime - castigo. E o anúncio é
feito em várias direções: Damasco, a nordeste; Gaza, no poente; Tiro, a noroeste;
Edom, a sudeste e Amon e Moab no nascente.
Alguns comentaristas de Amós supõem que tais oráculos tenham sido ditos
numa mesma ocasião, resultando daí uma típica dramatização oriental. Os ouvintes
judeus e, especialmente, israelitas, que escutam Amós, ficam contentes com estes
oráculos dirigidos a seus vizinhos e inimigos.
Vira-se o profeta para o sul e acusa Judá: isto alegra muito os ouvintes de Israel
do norte, pois a rivalidade entre os dois países permanece. Completa-se, com este, o
número sete. Completou-se a série, assunto encerrado.
Mas para surpresa geral, volta-se o profeta contra Israel e proclama um oitavo
oráculo. E tão extenso, fazendo dos outros apenas prelúdios seus. Deixa mudos os
ouvintes, de boca aberta 16.
Sem dúvida, há a possibilidade de que tais oráculos tenham sido pronunciados
em ocasiões diversas. Portanto, a ordem presente aqui no livro seria obra de um redator
e a dramaticidade pensada acima não passaria de pura imaginação. Além do que,
muitos autores consideram os oráculos contra Edom, Tiro e Judá como adições
posteriores17.
É importante salientar que Amós aponta, nestes oráculos, basicamente a
crueldade da guerra e consequente escravização de populações inteiras. O exército,
como avalista da espoliação, é o alvo central de Amós.
A estrutura do oráculo contra Israel difere bastante da estrutura comum dos
outros: não se afirma Iahweh como senhor supremo e juiz da história, julgando do alto
os crimes internacionais. Aqui, Iahweh é a parte ofendida e apresenta queixa contra o
ofensor, provando sua própria inocência e a culpa de Israel. Assim, Iahweh pode
exercer seu direito de vingança, segundo os códigos israelitas. A base da acusação é a
existência de um compromisso mútuo, uma aliança que foi rompida por Israel.
J. L. Sicre, analisando este oráculo, aponta em Israel sete crimes 18:
1. "vendem o justo (tsaddîq) por dinheiro": desprezo ao devedor
2. "o indigente ('ebyôn) por um par de sandálias": escravização por dívidas ridículas
3. "esmagam sobre o pó da terra a cabeça dos fracos (dallîm)": humilhação/opressão
dos pobres
4. "tornam torto o caminho dos pobres ('anawim)": desprezo pelos humildes
5. "um homem e seu pai vão à mesma jovem": opressão dos fracos (das
empregadas/escravas)
6. "se estendem sobre vestes penhoradas, ao lado de qualquer altar": falta de
misericórdia nos empréstimos
16
. Cf., para esta hipótese, SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L., o. c., p. 991-992.
17
. Cf. SCHWANTES, M. A terra não pode mais suportar suas palavras, p. 63ss.
18
. Cf. SICRE, J. L. A justiça social nos profetas. São Paulo: Paulus, 1990, p. 129-147. A
interpretação destes versículos é bastante problemática. Há várias possibilidades de tradução e de leitura dos
problemas apresentados.
48
7. "bebem vinho daqueles que estão sujeitos a multas, na casa de seu deus": mau uso
dos impostos (ou multas).
Amós, com os termos tsaddîq (justo), 'ebyôn (indigente), dal (fraco) e 'anaw
(pobre), designa as principais vítimas da opressão na sua época. Sob estes termos
Amós aponta o pequeno camponês, pobre, com o mínimo para sobreviver e que corre
sério risco de perder casa, terra e liberdade com a política expansionista de Jeroboão II.
É em sua defesa que Amós vai profetizar.
3.5. Amós clama por justiça
Vamos fazer aqui algumas observações gerais sobre o livro e sobre a pregação
de Amós. Depois passaremos aos seus oráculos centrais.
O material que compõe o livro de Amós foi organizado por seus redatores
seguindo o princípio das palavras de ligação e obedecendo à temática tratada :
Am 1,3
1,6
1.9
1,11
1,13
2,1
2,4
2,6
: Assim falou Iahweh... a Damasco
: "
"
"
a Gaza
: "
"
"
a Tiro
: "
"
"
a Edom
: "
"
"
a Amon
: "
"
"
a Moab
: "
"
"
a Judá
: "
"
"
a Israel
Am 3,1
4,1
5,1
: Ouvi esta palavra
: "
"
"
: "
"
"
Am 5,7
5,18
6,1
: Ai daqueles
: "
"
: "
"
Am 7,1
7,4
7,7
: Assim me fez ver o Senhor Iahweh
: "
"
" " " "
"
: Assim me fez ver
Am 7,10-17: Amós é expulso de Betel
8,1
: Assim de fez ver o Senhor Iahweh
Am 8,4
: Ouvi isto
Am 9,1
: Vi o Senhor
Agora podemos dividir o livro de Amós assim:
49
Título, local, data
1. Oráculos contra as nações
2. Palavras e ameaças contra Israel
3. Visões simbólicas e dados biográficos
: 1,1-2
: 1,3-2,16
: 3,1-6,14
: 7,1-9,15
Falemos, rapidamente, da autenticidade do livro 19 . Embora haja muita
discussão, os autores admitem que a maior parte do livro procede de Amós. É o caso de
pelo menos cinco dos oito oráculos contra as nações, do ciclo anti-Samaria (3,3-4,3),
das visões simbólicas e outros.
Discípulos do profeta, pouco tempo depois de sua atuação, acrescentaram textos
tais como 7,10-17; 8,4-14; 9,8-10 etc.
Am 8,4-7, por exemplo, diz o seguinte:
"Ouvi isto, vós que esmagais o indigente
e quereis eliminar os pobres da terra,
vós que dizeis: 'Quando passará a lua nova,
para que possamos vender o grão,
e o sábado, para que possamos vender o trigo,
para diminuirmos o efá, aumentarmos o siclo
e falsificarmos as balanças enganadoras,
para comprarmos o fraco com dinheiro
e o indigente por um par de sandálias e
para vendermos o resto do trigo?'
Iahweh jurou pelo orgulho de Jacó:
Não esquecerei jamais nenhuma de suas ações".
Adições posteriores foram feitas ao livro. Algumas na época de Josias, quando
este rei destruiu o santuário de Betel, pouco mais de um século após o tempo de Amós.
Como 1,2;4,6-13;5,6-9;9,5-6.
Am 1,2 diz o seguinte:
"Ele disse:
Iahweh rugirá de Sião,
de Jerusalém levantará a sua voz,
e murcharão as pastagens dos pastores
e secará o cimo do Carmelo".
Outras foram feitas pelos teólogos deuteronomistas após a queda de Jerusalém
em 586 a.C. Seriam deuteronomistas 1,9-12;2,4--5.10-12;5,25-26 etc.
Am 2,10-12, adição deuteronomista, diz o seguinte:
19
. Cf. WOLFF, H. W. La Hora de Amós. Salamanca: Sígueme, 1984, p. 185-200; SCHÖKEL, L.
A. ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas II, p. 988-989; KIRST, N. Amós, p. 21-23; CARROLL R., M. D. Amos The Prophet and His Oracles: Research on the Book of Amos. Louisville: Westminster John Knox, 2002.
50
"E eu vos fiz subir da terra do Egito
e vos conduzi pelo deserto, durante quarenta anos,
para tomar posse da terra do amorreu!
Suscitei de vossos filhos, profetas,
e de vossos jovens, nazireus!
Não foi, realmente, assim, israelitas?
Oráculo de Iahweh.
Mas vós fizestes os nazireus beber vinho
e ordenaste aos profetas:
'Não profetizeis'".
Finalmente, no pós-exílio foi feita uma releitura escatológica de Amós. Pertence
a esta época o oráculo final do livro, 9,11-15, que modera a dura crítica do profeta
através de uma promessa de restauração de Israel.
Am 9,14-15 garante esta restauração após a experiência do exílio:
"Mudarei o destino de meu povo, Israel;
eles reconstruirão as cidades devastadas e as habitarão,
plantarão vinhas e beberão o seu vinho,
cultivarão pomares e comerão os seus frutos.
Eu os plantarei em sua terra
e não serão mais arrancados de sua terra, que eu lhes dei,
disse Iahweh teu Deus".
Quanto ao teor de sua pregação , observa-se com facilidade que Amós fala de
castigo de ponta a ponta. Para ele o fim de Israel é apenas uma questão de tempo. Um
ataque inimigo punirá a nação.
Am 3,11 fala do ataque inimigo:
"Por isso assim falou o Senhor Iahweh:
Um inimigo cercará a terra,
arrancará de ti o teu poder,
e os teus palácios serão saqueados".
Por quê? Porque Israel comete crimes, sendo os principais:




o luxo das classes altas
a injustiça dos ricos contra os pobres
o falso culto a Iahweh
a falsa segurança religiosa.
Alguns exemplos da denúncia destes crimes:
"Eles estão deitados em leitos de marfim,
estendidos em seus divãs,
51
comem cordeiros do rebanho
e novilhos do curral,
improvisam ao som da harpa,
como Davi, inventam para si instrumentos de música,
bebem crateras de vinho
e se ungem com o melhor dos óleos,
mas não se preocupam com a ruína de José" (Am 6,4-6).
"Por isso: porque oprimis o fraco
e tomais dele um imposto de trigo,
construístes casas de cantaria,
mas não as habitareis;
plantastes vinhas esplêndidas,
mas não bebereis o seu vinho.
Pois eu conheço vossos inúmeros delitos
e vossos enormes pecados!
Eles hostilizam o justo, aceitam suborno,
e repelem os indigentes à porta" (Am 5,11-12).
"Eu odeio, eu desprezo as vossas festas
e não gosto de vossas reuniões.
Porque, se me ofereceis holocaustos...,
não me agradam as vossas oferendas
e não olho para o sacrifício de vossos animais cevados.
Afasta de mim o ruído de teus cantos,
eu não posso ouvir o som de tuas harpas!
Que o direito corra como a água
e a justiça como um rio caudaloso!"(Am 5,21-24).
Como escapar?
É necessário procurar Iahweh, para viver. Que não é procurar os santuários, mas
é procurar o bem e odiar o mal. Então, talvez Iahweh tenha compaixão e salve um resto
de Israel, aquele fiel (Am 5,4-7.14-15).
3.6. Palavras e ameaças contra israel
Já falamos dos oprimidos. Mas quem são os opressores, segundo Amós?
São os que vivem em palácios e acumulam (3,10), são as senhoras da alta
sociedade (4,1), são os que constroem boas casas e plantam excelentes vinhas (5,11),
são os que aceitam suborno na administração da justiça (5,12), são os que vivem no
luxo e na boa vida (6,4-6), são os que controlam o comércio (8,4-6).
Enfim, "Amós, como outros profetas após ele, identifica os opressores com os
que detêm o poder econômico, político e judicial" 20 .
20
. Cf. SICRE, J. L. A justiça social nos profetas, p. 200. SCHWANTES, M. A terra não pode
suportar suas palavras, p. 59-76 diz que os opressores de Israel, segundo Amós, são: os sacerdotes
(Templo), os juízes, os senhores de escravos, o exército, os cidadãos (cidade).
52
Esta realidade aparece claramente no bloco central dos oráculos de Amós,
composto por três palavras e três ameaças contra Israel (3,1-6,14).
Complementam estas denúncias os oráculos de 8,4-14. Vamos exemplificar com alguns
textos o que Amós pregou após as visões simbólicas e antes de ser expulso de Betel.
Em Am 3,9-15 as nações (filisteus ou assírios e egípcios) são convidadas a
assistirem, como num teatro, a injustiça que reina em Samaria, capital do reino do norte.
Os vv. 9-10 dizem o seguinte:
"Proclamai nos palácios de Azoto
e nos palácios da terra do Egito;
dizei: reuni-vos nas montanhas de Samaria,
e vede as numerosas desordens em seu seio,
as violências em seu meio!
Não sabem agir com retidão,
- oráculo de Iahweh aqueles que amontoam opressão e rapina em seus palácios".
No v. 11 o inimigo mencionado é a Assíria que no tempo de Amós já era uma
grande nuvem negra no horizonte de Israel. E a tempestade viria realmente em 722 a.C.
O v. 12 vai descrever, com imagens pastoris, a destruição cruel por que passará
Samaria: será despedaçada como uma ovelha pelo leão.
No v. 14 a ameaça é contra o santuário de Betel, que era um santuário estatal. O
santuário será punido por causa da idolatria cultual. Os cornos do altar eram seus quatro
cantos que imitavam a forma de chifres e onde se podia pedir asilo político (1Rs 1,50).
Mas até mesmo esta última possibilidade de refúgio será destruída.
No v. 15 é condenada a riqueza dos grandes de Israel, contrária ao espírito da
aliança:
"Eu abaterei a casa de inverno com a casa de verão,
as casas de marfim serão destruídas,
e muitas casas desaparecerão,
oráculo de Iahweh".
Em Am 4,1-13 as mulheres de Samaria, que incitavam seus maridos (=
senhores) a explorar o pobre, são chamadas ironicamente de "vacas de Basã". Esta era
um planície fértil, famosa por suas vacas e pastagens.
O v. 1 diz:
"Ouvi esta palavra, vacas de Basã,
que estais sobre o monte de Samaria,
que oprimis os fracos, esmagais os indigentes
53
e dizeis aos vossos maridos:
'Trazei-nos o que beber!'".
O v. 2 descreve a população sendo levada pendurada em anzóis, ou ganchos,
como se fazia com os animais mortos. O v. 3 refere-se às brechas abertas nos muros de
Samaria pelos inimigos, por onde as mulheres da capital fugirão.
Observe-se o contraste entre a riqueza e o luxo, descritas no v. 1, com a
situação de desespero e destruição da guerra contra a Assíria.
Nos vv. 4-5 Amós se lança contra os santuários de Betel e Guilgal. O culto é
realizado como fim em si mesmo e não como oferta a Iahweh. Caíram no puro ritualismo
que agrada a eles mesmos, mas não a Iahweh:
"Entrai em Betel e pecai!
Em Guilgal, e multiplicai os pecados!
Oferecei, pela manhã, os vossos sacrifícios,
e ao terceiro dia os vossos dízimos!
Queimai pão fermentado como sacrifício de louvor,
proclamai vossas oferendas voluntárias, anunciai-as,
porque é assim que gostais, israelitas,
oráculo do Senhor Iahweh".
Nos vv. 6-12 são descritos os castigos que Iahweh lançava periodicamente ao
povo para que abrisse os olhos e se arrependesse: fome, seca, pragas na agricultura,
peste e terremoto (como em Sodoma e Gomorra). Fenômenos vistos pelo profeta como
provocados diretamente por Iahweh, para alertar o povo e puni-lo.
Em Am 6,1-14 estamos frente à terceira ameaça. Ameaça dirigida aos ricos que
esbanjam luxo e confiam em suas riquezas, fruto da espoliação da população israelita.
Descrevendo os destinatários da ameaça, o texto vai fazendo a sua denúncia.
Através da pergunta retórica do v. 2 percebe o leitor todo o alcance da denúncia contra
a autoconfiança e o orgulho dos poderosos em Israel. No final, a sentença de Iahweh é
correspondente à gravidade do crime cometido.
"Sim, eis que vou suscitar contra vós, casa de Israel,
- oráculo de Iahweh, Deus dos Exércitos uma nação que vos oprimirá
desde a entrada de Emat até a torrente da Arabá" (Am 6,14).
Podemos terminar este roteiro lembrando que o tema central de Amós é o fim de
Israel, porque os ricos oprimem os pobres, os poderosos deturpam a justiça (tsedhâqâh)
e o direito (mishpât), subornam os juízes nos tribunais e cometem muitas outras
barbaridades. E ainda por cima vão aos santuários e ali oferecem custosos sacrifícios e
participam de grandes celebrações, ocultando a opressão que se comete
sistematicamente.
54
Gostaria de lembrar aqui um pequeno trecho do documento "Eu ouvi os
clamores de meu povo", elaborado pelos bispos e superiores religiosos do Nordeste
brasileiro em 06.05.1973 e que, a meu ver, continua atualíssimo:
"As estruturas econômica e social em vigor no Brasil são
edificadas sobre a opressão e a injustiça, que provêm de uma
situação de capitalismo dependente dos grandes centros
internacionais do poder. Dentro de nosso país, pequenas minorias,
cúmplices do capitalismo internacional, e a seu serviço,
empenham-se, através de todos os meios possíveis, por preservar
uma situação criada em seu favor. Instalou-se, com isto, uma
conjuntura que não é humana e que, pelo mesmo fato, não é
cristã".
4. OSEIAS: O POVO AFASTOU-SE DE IAHWEH
55
"Eu te desposarei a mim para sempre,
eu te desposarei a mim na justiça e no direito,
no amor e na ternura.
Eu te desposarei a mim na fidelidade
e conhecerás a Iahweh" (Os 2,21-22).
Após a morte de Jeroboão II, em 753 a.C., Israel do norte entrou em grande
crise: pressão assíria constante e golpes internos com sangrentos assassinatos tornamse a característica fundamental destes últimos 30 anos do reino de Samaria, época em
que atuou Oseias.
Sem legitimidade perante o povo, a maioria dos reis abandonou o javismo e se
apoiou em crescente baalização, medida necessária para quem estava submetido a
determinações do grande império assírio e que, por isso, precisava explorar duplamente
os camponeses com o recolhimento exorbitante do tributo para sustentar as elites
internas e as exigências do império.
Vamos, neste capítulo, abordar, em primeiro lugar, o programa profético de
Oseias e sua compreensão da realidade de Israel, tão bem definidos nos 3 primeiros
capítulos de seu livro.
Em seguida, um olhar sobre a situação da época, para depois verificarmos a
parte central do livro, onde Oseias apresenta detalhadamente os mecanismos idolátricos
que proliferam no país.
No quarto momento, uma síntese do pensamento de Oseias e, finalmente,
veremos seu apelo de volta ao javismo como forma de salvar o país. O que,
infelizmente, não aconteceu, pois Israel foi destruído em 722 a.C. pelos assírios e quem
sobreviveu nunca mais voltou do exílio.
4.1. Exemplificando a infidelidade
A primeira parte do livro, Os 1,1-3,5, é muito discutida. Não se sabe se estes
capítulos iniciais falam de uma experiência real do profeta, que teria se casado, de fato,
com uma prostituta, ou se temos aqui apenas uma parábola. Parece que os elementos
do texto são insuficientes para uma decisão definitiva.
Mesmo que tenha sido uma experiência vivida por Oseias, permanece um
problema: ou Gomer, mulher de Oseias, era uma prostituta sagrada, mulher dedicada
aos cultos da fertilidade; ou era uma mulher comum, que mais tarde foi infiel a Oseias,
deixando-o; ou não seria, até mesmo, nem uma coisa nem outra, sendo a história toda
uma incorreta interpretação dos discípulos do profeta, que teriam escrito estes três
primeiros capítulos do livro1 .
O interessante é que este início de Oseias já coloca programaticamente, através
do simbolismo do matrimônio - mesmo que tenha sido real ele é elevado aqui à
categoria de símbolo -, todo o arcabouço semântico que organiza o livro: em um polo
. Cf. SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas II, p. 889 acreditam que “‘Gomer não era
prostituta, no entanto ela foi infiel ao marido e o abandonou’’.
1
56
estão o amor, a união e a fecundidade, no outro comandam o desvio, a ruptura e a
morte. E com todas as gradações possíveis entre os dois polos opostos, como no
movimento de um pêndulo. É aí que se move Israel.
O programa de um texto profético, em geral, aparece na narrativa da vocação do
profeta. Aqui, aparece todo em Os 1,2-9.
"Estamos tentados a chamar esta seção de 'abertura' da obra, porque a resume
ou contém em germe, antecipando seus temas principais" 2 .
Afinal, o capítulo primeiro conta como Oseias casou-se com uma mulher
dedicada à prostituição, de nome Gomer, filha de Diblaim, e teve com ela três filhos.
Seus nomes são símbolos da situação de Israel. O primeiro filho recebe o nome
de "Yzreel", uma alusão ao local da chacina operada pelo general Jeú contra a dinastia
de Omri, na planície de Jezrael. A segunda filha chama-se "Não-Amada", porque Iahweh
não mais amará a casa (= governo) de Israel. E o terceiro filho tem o nome de "Nãomeu-povo", porque a aliança Iahweh-Israel foi rompida.
“Disse Iahweh a Oseias: ‘Vai, toma para ti uma mulher que se
entrega à prostituição (‘êsheth zenûnîm) e filhos da prostituição
(weyaldê zenûnîm), porque a terra se prostituiu (kî zânoh thizneh
hâ’ârets) constantemente, afastando-se de Iahweh’. Ele foi e
tomou Gomer, filha de Deblaim...” (Os 1,2-3a).
Os três primeiros capítulos de Oseias estão organizados, segundo especialistas,
da seguinte forma:
A) 1,2-9: o casamento de Oseias
B) 2,1-3: os filhos e seus nomes
C) 2,4-17: a mulher = o povo
B') 2,18-25: os filhos e seus nomes
A') 3,1-5: o casamento de Oseias3.
O poema central, 2,4-17, começa com uma acusação do esposo contra a esposa
infiel. Acusação feita pelos seus próprios filhos: a esposa é Israel, os filhos são os
israelitas. Ironicamente, os filhos estão tão implicados quanto sua mãe...
"Processai vossa mãe, processai.
Porque ela não é minha esposa,
e eu não sou seu esposo.
Que ela afaste de seu rosto as suas prostituições
e de entre os seios seus adultérios.
Senão eu a despirei completamente,
Deixá-la-ei como no dia de seu nascimento,
torná-la-ei semelhante a um deserto,
transformá-la-ei numa terra seca,
2
3
. Idem, ibidem, p. 897.
. Cf. Idem, ibidem, p. 893; BUSS, M. J. The Prophetic Word of Hosea. A Morphological Study.
Berlin: Alfred Töpelmann, 1969.
57
fá-la-ei morrer de sede.
Não amarei seus filhos,
porque são filhos da prostituição" (Os 2,4-6).
Após várias ameaças e castigos, o marido vai de novo conquistar sua esposa. É
um símbolo de Iahweh que vai reconquistar Israel, afastando-o dos cultos dos baalim e
reconstituindo a sua prosperidade e sua paz. Enfim, a aliança será refeita e
permanecerá (Os 2,16-25)4 . Esta é a linguagem do profeta:
“Por isso, eis que, eu mesmo, a seduzirei,
conduzi-la-ei ao deserto
e falar-lhe-ei ao coração” (Os 2,16)
“Farei em favor deles, naquele dia, um pacto
com os animais do campo, com as aves do céu e com os répteis
da terra.
Exterminarei da face da terra o arco, a espada e a guerra;
fá-los-ei repousar em segurança.
Eu te desposarei a mim para sempre
eu te desposarei a mim na justiça e no direito,
no amor e na ternura.
Eu te desposarei a mim na fidelidade
e conhecerás a Iahweh” (Os 2,20-22).
Observamos aqui grande concentração dos conceitos fundamentais da profecia:
justiça (tsedheq), direito (mishpât), solidariedade/amor (hesedh), fidelidade (‘emûnâh) e
e
conhecimento de Deus (da’at ‘ lohîm).
4.2. A Assíria vem aí: para Israel é o fim
Agora é hora de dar uma olhada na situação política e social da época de Oseias
para entendermos porque o profeta está falando tanto da infidelidade de Israel.
Ao tratarmos de Amós, vimos como, sob Jeroboão II, Israel vivera um período de
grande prosperidade. Com a morte de Jeroboão II desabou tudo. Se durante o seu
reinado a situação do povo não era nada boa, agora tudo piorou. A corrupção interna
era enorme e as pressões e ameaças externas terríveis. De 753 a 722 a.C. seis reis de
sucederam no trono de Samaria, abalado por assassinatos e golpes sangrentos.
A Assíria passou a constituir-se na grande ameaça internacional a partir da
política expansionista do rei Tiglat-Pileser III, inaugurada em 745 a.C5.
4
. Na verdade, o poema é de uma dramaticidade impressionante. "Se supormos que o poema
responde a experiência viva do profeta, mister se faz pensar em homem fortemente apaixonado, que, quando
a esposa o trai, tenta livrar-se do amor a fim de não sofrer, e não o consegue. A paz seria esquecer, e o amor
não o permite", comentam SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. o. c., p. 902.
5
. Para saber mais sobre Tiglat-Pileser III e seu governo, cf. GARELLI, P. ; NIKIPROWETZKY,
V. O Oriente Próximo Asiático: impérios Mesopotâmicos-Israel. São Paulo: Pioneira-Edusp, 1982, p. 8796.
58
Em pouco tempo Israel já era tributário da Assíria. Foi estabelecido um imposto
per capita que atingiu cerca de 60 mil proprietários de terras e penalizou demasiado a
população.
Aí começaram os golpes de Estado em Israel. As alianças com a Assíria ou
contra a Assíria se sucediam. E pior: o rei Pecah, de Israel, fez um acordo com o
governo de Damasco e ambos decidiram invadir Judá para jogar o reino do sul numa
coalizão anti-assíria. É a chamada guerra siro-efraimita, desencadeada em 734 a.C. É o
começo do fim.
Judá pediu o auxílio da Assíria e Tiglat-Pileser III acabou por conquistar três
quartos de Israel, reduzindo o país a quase nada.
Poucos anos depois, em 722 a.C., Samaria foi destruída pelas tropas assírias de
Salmanasar V e Sargão II, pondo fim ao reino do norte que congregava a maior parte
das tribos israelitas. Conforme os anais de Sargão II, foram deportados para a
Mesopotâmia e a Média 27.290 samaritanos 6.
O território de Israel foi anexado ao império assírio e para lá foram levados
deportados da Babilônia e da Síria. Com eles chegaram outros costumes e outros
deuses. Foi o fim definitivo do reino do norte.
“Depois, o rei da Assíria invadiu toda a terra e pôs cerco a
Samaria durante três anos. No nono ano de Oseias, o rei da
Assíria tomou Samaria e deportou Israel para a Assíria,
estabelecendo-o em Hala e às margens do Habor, rio de Gozã
[norte da Mesopotâmia] e nas cidades dos medos (...) O rei da
Assíria mandou vir gente de Babilônia, de Cuta [situada ao norte
de Babilônia], de Ava [provavelmente na Síria], de Emat [na Síria]
e de Sefarvaim [?], e estabeleceu-os nas cidades de Samaria, em
lugar dos israelitas; tomaram posse de Samaria e fixaram-se em
suas cidades” (2Rs 17,5-6.24).
E em um texto assírio Sargão II informa: “Aumentei a cidade de Samaria e a fiz
maior do que antes; fiz vir para ela gente dos países que eu tinha conquistado com
minhas próprias mãos”. Segundo os Anais deste rei, para Samaria ele transferiu
sobreviventes das tribos árabes rebeldes de Tamud, Ibadidi, Marsimanu e Haiapa 7.
4.3. Onde está a raiz do mal?
6
. Cf. PRITCHARD, J. B. (ed.) Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament (=
ANET). 3. ed. Princeton: Princeton University Press, 1969, p. 284-285; FUCHS, A. Die Inschriften Sargons
II. aus Khorsabad. Göttingen: Cuvillier, 1994, p. 313-314. Cf. ainda FINKELSTEIN, I. ; SILBERMAN, N.
A. A Bíblia não tinha razão. São Paulo: A Girafa, 2003, p. 304-307.
7
287.
. Cf. PRITCHARD, J. B. (ed.) Ancient Near Eastern Texts relating to the Old Testament, p. 284-
59
Olhemos agora os capítulos 4-11 de Oseias para percebermos o seu
discernimento profético frente à situação acima descrita, pois foi naquela época que ele
viveu.
Nos capítulos 4-11 assumem posição fundamental os verbos de movimento.
Segundo Oseias, o comportamento dominante cria em Israel uma situação de
distanciamento entre Iahweh e o povo de Israel. O povo se recusa vir a Iahweh, não
quer procurá-lo. Mesmo quando o procura, procura mal. Por outro lado, Iahweh se retira,
ou melhor, visita Israel para castigá-lo.
O tema do movimento pode ser organizado em quatro seções, que é também
um processo (rîbh) em quatro tempos:
* 4,1-5,7
* 5,8-7,16
* 8,1-14
* 9,1-11,11
: Israel não volta para Iahweh: é a constatação da impenitência
: Israel volta, mas volta mal: é a constatação da falsa penitência
: como castigo, o povo irá para o Egito: é o rompimento da aliança,
pelo bezerro de ouro e pela monarquia sem fidelidade a Iahweh
: as etapas deste exílio são: a expulsão da terra - o Egito - a volta
à terra: é o anúncio da cura que consiste em novo êxodo para
Israel8.
O pequeno bloco de Os 4,1-3 é muito interessante para se entender a
perspectiva global do profeta, porque serve de introdução a toda a seção.
"Ouvi a palavra de Iahweh, israelitas,
pois Iahweh abrirá um processo contra os habitantes da terra,
porque não há fidelidade (‘emeth) nem solidariedade (hesedh),
nem conhecimento de Deus (da'at 'elohîm) na terra.
Mas perjúrio e mentira, assassínio e roubo,
adultério e violência,
e o sangue derramado soma-se ao sangue derramado.
Por isso a terra se lamentará, desfalecerão todos os seus
habitantes
e desaparecerão os animais dos campos, as aves dos céus
e até os peixes do mar" (Os 4,1-3).
Temos aqui três categorias negativas superpostas:



a falta de conhecimento de Deus (da'at 'elohîm), que se manifesta como ausência
de fidelidade ('emeth) e solidariedade (hesedh)
as desordens sociais, causadas pela falta de conhecimento: perjúrio, mentira,
assassínio, roubo, adultério, homicídio
a morte, com a desagregação do universo. Os animais, os pássaros e os peixes
desaparecem. O homem fenece.
Portanto, segundo Oseias, a raiz mais profunda do mal é a falta de
conhecimento de Deus. Que não é conhecimento intelectual ou cultual. É a experiência
ou vivência do javismo que está em jogo. Oseias está dizendo que o problema em Israel
8.
Cf. LACK, R. Osée 4-14. Études de structure. Roma: Curso do Pontifício Instituto Bíblico,
1974-75, p. 13.
60
é que não há mais espaço para os valores do javismo e isso causa a desagregação da
sociedade.
A partir desta verificação, o profeta passa a acusar os responsáveis por esta
constatada desagregação.
Em Os 4,4-10 o processo é contra os sacerdotes. Sua culpa: recusam-se eles a
ser mediadores do autêntico conhecimento de Iahweh, tornando-se meros executores
de ritos vazios e mais: ritos dos cultos da fertilidade. Cúmplices seus são também os
profetas, talvez os profetas oficiais da corte.
Não bastará aos sacerdotes a luz do dia, como não bastarão aos profetas seus
sonhos ou visões: fracassarão.
"Sim, que ninguém abra um processo e que ninguém julgue!
Pois, na realidade, o meu processo é contra ti, ó sacerdote!
Tropeçarás de dia,
e contigo tropeçará, de noite, também o profeta;
farei perecer a tua mãe.
Meu povo será destruído por falta de conhecimento.
Porque tu rejeitaste o conhecimento,
eu te rejeitarei do meu sacerdócio;
porque esqueceste o ensinamento de teu Deus,
eu também me esquecerei dos teus filhos" (Os 4,4-6).
Em Os 4,11-19 a acusação passa do sacerdote para a população e dos templos
para os "lugares altos" dos cultos idolátricos. O tema é o mesmo: a prostituição cultual.
A raiz zânah, "prostituir-se", aparece 7 vezes no texto 9 .
A imagem matrimonial continua a ser usada por Oseias. Assim, Israel, ao cultuar
outros deuses, está cometendo adultério e prostituição. E o profeta pondera: "Um povo
que não tem entendimento caminha para a perdição" (Os 4,14b).
No v. 12 observamos a crítica às práticas divinatórias que utilizavam objetos
sagrados de madeira. A adivinhação, assim como o exorcismo, servia, em todos os
países de cultura agrária do Crescente Fértil, para preservar ou libertar o homem das
influências do mal e garantir o seu futuro.
A adivinhação era a mais elevada das ciências, a ciência "das coisas ocultas,
dos mistérios dos céus e da terra", como diziam os babilônios. O especialista consultava
a vontade divina, através de sonhos, de visões, de fenômenos atmosféricos ou
astronômicos e das tábuas do destino. Enfim, através de um ritual sagrado que supunha
o uso de objetos também sagrados .
9
. O vocábulo zanah é usado 95 vezes no AT. Desta raiz deriva taznût, "fornicação" (22 vezes,
sendo usado só em Ez 16 e 23), zenûnîm, "prostituição" (11 vezes), zenût, "prostituição" (9 vezes) e zônâh,
"prostituta". Todos estes termos indicam, indiferentemente, a prostituição sagrada ou cultual e a idolatria.
Encontramos ainda o vocábulo qadêsh (pl. qedêshim, fem. qedêshah e seu pl. qedeshôt), derivado do verbo
qadash, "santificar", "ser santo", para indicar o homem ou a mulher que se prostitui no culto aos deuses da
fertilidade (Dt 23,18;1Rs14,24;15,12).
61
"No decurso de sua formação os adivinhos iniciavam-se nos ritos fundamentais
cujo conhecimento era interdito ao comum dos mortais (...) O segredo não era de ordem
conceitual e sim ritual: residia na disposição de certo número de gestos e palavras, que
adquiriam eficácia particular para o oficiante, em virtude dessa mesma disposição" 10.
Os métodos divinatórios são variados: chuva, trovão, direção do relâmpago e
terremotos deram origem às hemerologias (textos que listam os dias fastos e nefastos),
calendários e menológios (descrição dos meses). Extremamente apreciada era a
hepatoscopia (exame das entranhas, especialmente do fígado, de animais sacrificados),
assim como a lecanomancia (observação de lagos e tanques ou do som de objetos ao
caírem na água).
Ésquilo, poeta trágico grego que viveu de 525 a 426 a.C., elenca, em Prometeu
Acorrentado, os vários tipos de adivinhações: "Elucidei-lhes todos os gêneros de
adivinhações: fui o primeiro a distinguir, entre os sonhos, as visões reveladoras da
verdade; expliquei-lhes os prognósticos difíceis, bem como os prognósticos fortuitos ou
transitórios. Interpretei precisamente o voo das aves de rapina, bem como os augúrios,
felizes ou sinistros, que provêm de outros animais; fiz ver quando reina entre eles o
ódio, ou a concórdia e a união: enfim, o que pode haver nas entranhas das vítimas, de
agradável aos deuses, no aspecto e na cor; na beleza das formas do fel e do fígado.
Estendendo sobre o fogo, num envoltório de gordura, as partes internas e os membros
dos animais, iniciei os mortais numa ciência difícil, dando-lhes a conhecer signos até
então ignotos"11 .
Em Os 5,1-7 o profeta constata, com pesar, a situação a que chegou Israel (a
referência a Judá é um acréscimo posterior). Não há meio de Israel voltar para Iahweh:
"Suas obras não lhe permitem voltar para o seu Deus,
pois um espírito de prostituição está em seu seio
e eles não conhecem a Iahweh.
O orgulho de Israel testemunha contra ele,
Israel e Efraim tropeçam em sua iniquidade" (Os 5,4-5a).
O profeta vai mostrar, em seguida, que o arrependimento dos israelitas é falso.
Palavras bonitas, mas que evocam os símbolos do renascimento cósmico dos baalim
cananeus, dos quais se acreditava renascessem como a natureza em seus ciclos.
Em Os 6,1-6, por exemplo, o profeta denuncia que Israel espera a vinda de
Iahweh como um fenômeno cíclico, como acontece com a natureza. Oseias, porém,
afirma o contrário, lembrando a ação histórica de Iahweh, exigindo a solidariedade e o
conhecimento de Deus e não simplesmente ritos vazios (holocaustos e sacrifícios).
10
. GARELLI, P. ; NIKIPROWETZKY, V. O Oriente Próximo Asiático II, p. 152. Cf. ampla
descrição dos métodos divinatórios em SICRE, J. L. Profetismo em Israel: o profeta, os profetas, a
mensagem. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 27-64.
11
. ÉSQUILO, Prometeu Acorrentado. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d, p. 123. Cf. o texto grego
original ou a sua tradução para o inglês, disponível online, na Perseus Digital Library, em
<http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3atext%3a1999.01.0009>. Em português, o
texto online de Prometeu Acorrentado pode ser encontrado em vários sites. Experimente, por exemplo,
<http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/prometeu.pdf>.
62
"Que te farei, Efraim?
Que te farei, Judá?
O vosso amor (hesedh) é como a nuvem da manhã,
como o orvalho que cedo desaparece.
Por isso eu os feri por intermédio dos profetas,
matei-os pelas palavras de minha boca,
e meu julgamento (mishpât) surgirá como a luz.
Porque é amor (hesedh) que eu quero e não sacrifício,
conhecimento de Deus (da'at 'elohîm) mais do que holocaustos"
(Os 6,4-6).
Em Os 7,3-7 o profeta de Samaria ataca, com amargura, a situação golpista que
viveu Israel naqueles anos. Vários reis se sucediam no trono, assassinando seus
antecessores, sendo por sua vez assassinados... O princípio da legitimidade da
sucessão dinástica nem era lembrado. Valia era o jogo do poder, da força, dos
interesses.
Houve 4 golpes de Estado (golpistas: Salum, Menahem, Pecah e Oseias) e 4
assassinatos (assassinados: Zacarias, Salum, Pecahia e Pecah):
 Zacarias, filho de Jeroboão II, governou 6 meses (753 a.C.) e foi assassinado
 Salum, filho de Jabes, governou 1 mês (753/2 a.C.): foi assassinado
 Menahem, filho de Gadi, (753/2-742 a.C.), que matou Salum, já teria começado a
pagar tributo à Assíria: "Menahem pagou a Pul (= Tiglat-Pileser III) mil talentos de
prata para que o apoiasse e consolidasse o poder real em suas mãos", diz 2Rs
15,19.
 Pecahia, filho de Menahem, reinou de 743/1 a 740 a.C. e foi assassinado
 Pecah, filho de Romelias, governou de 740/39 a 731 a.C.
 Oseias, filho de Ela, assassinou Pecah e foi o último rei de Samaria, de 731 a 722
a.C.
É por isso que diz Oseias:
"No dia de nosso rei,
os chefes adoecem pelo calor do vinho,
e ele estende a sua mão aos petulantes quando se aproximam.
Seu coração é como um forno em suas insídias,
a noite inteira dorme a sua ira,
pela manhã ela arde como uma fogueira.
Todos eles estão quentes como um forno,
devoram seus juízes.
Todos os seus reis caíram.
Não há entre eles quem me invoque!" (Os 7,5-7).
Os 8,1-14 descreve o castigo preparado por Iahweh para Israel: uma nova "ida
para o Egito", que, na verdade, é agora a Assíria. É a quebra da aliança pela prática da
idolatria cultual no sacrifício ao bezerro de ouro e pela idolatria política, na manutenção
de uma monarquia infiel.
"Eles instituíram reis sem o meu consentimento,
escolheram príncipes, mas eu não tive conhecimento (...)
63
Eles me oferecem em sacrifício ofertas assadas,
eles comem sua carne,
mas Iahweh não os aceitará.
Agora ele se lembrará de suas faltas
e castigará os seus pecados;
eles voltarão ao Egito.
Israel esqueceu aquele que o fez
e construiu palácios" (Os 8,4a.13-14a).
Mas Oseias ainda tem esperança. Em 11,1-11 o profeta fala do amor de Iahweh
por Israel e da recusa deste em ser amado. Fala das ações de Iahweh em seu benefício
e de sua ingratidão. Lembra, entretanto, que Iahweh é um Deus e não um homem e, se
Israel quiser, Iahweh pode perdoá-lo.
4.4. Oseias exige fidelidade a Iahweh
Contemporâneo de Amós, parece que Oseias atuou durante os últimos dias de
Jeroboão II e durante o governo dos 6 reis que o sucederam. Ao que tudo indica, Oseias
não viu a queda de Samaria em 722 a.C., pois não faz qualquer menção ao grande
desastre. Portanto, podemos supor que atuou em Samaria de 755 a 725 a.C ., mais
ou menos, trinta anos de atividade profética.
Pouco se sabe sobre a sua vida, a menos que os capítulos 1-3 sejam
biográficos. Sua pátria, de qualquer maneira, era o reino de Efraim. Aliás, dos chamados
"profetas clássicos", ele é o único nortista. Nota-se também na sua mensagem uma
aproximação muito grande com a linha deuteronômica. Parece, com efeito, que Oseias
pertencia ao grupo profético-levítico de oposição à monarquia nortista e que escreveu o
Deuteronômio12.
Oseias tem uma mensagem coincidente, em parte, com a de Amós. Denuncia a
corrupção e as injustiças (4,1-2) e critica o formalismo do culto (6,4-6;8,11.13). Mas a
sua época era mais crítica do que a de Amós 13.
É, talvez, por isso, que na pregação de Oseias alguns aspectos novos se
manifestem.
Em primeiro lugar, a crítica e a condenação da idolatria, cultual e política. Os
ritos da fertilidade, a adoração dos baalim e a sacralização da natureza em geral deviam
estar em pleno florescimento na sua época, a julgar pela intensidade de sua crítica.
12
. "Comum é a posição reservada, quase de rejeição, frente à monarquia. Ambos estão
interessados em cultivar as velhas tradições de Iahweh e se opõem acerbamente a uma crescente
cananeização do culto e da vida. Nesta 'oposição' uniram-se já na segunda metade do século oitavo o
movimento levítico e profético", esclarece HOMBURG, K. Introdução ao Antigo Testamento. 2. ed. São
Leopoldo: Sinodal, 1976, p. 153.
13
. Cf. LIVERANI, M. Para além da Bíblia: História antiga de Israel. São Paulo: Loyola/Paulus,
2008, p. 185ss.
64
Oseias ataca o aspecto cultual (4,12b-13;7,14b;9,1 etc), mas não se prende
somente a tal problema. Há a outra vertente, muito importante: a idolatria política.
Segundo Oseias, no momento da crise, Israel acabou absolutizando e
divinizando os grandes poderes políticos, representados pelo Egito e pela Assíria. Só
eles seriam capazes de salvar. E onde fica Iahweh?
"Efraim é como uma pomba ingênua, sem inteligência,
pedem auxílio ao Egito, vão à Assíria.
Enquanto vão, lanço sobre eles a minha rede,
eu os abato como pássaros do céu,
desde que ouvi dizer de sua reunião" (Os 7,11-12).
Em segundo lugar, há em Oseias uma visão crítica do passado. Para o profeta
do norte, toda a história passada do povo israelita é uma história de transgressão e
rebeldia e não uma "história de salvação". A partir de Os 9,10 o profeta faz uma análise
da história passada de seu povo. Análise severa, já que, para Oseias, Israel não tem
muito o que celebrar de um passado que não foi de glória e nem de sucesso, mas um
tempo marcado por históricas infidelidades ao seu projeto como nação e às suas
relações com Iahweh. Acumulam-se as transgressões à aliança, os crimes e os
mesquinhos interesses de uma nação que já começou muito mal.
E ele dá um passo de gigante na compreensão da função do Estado
monárquico, tributário e absolutista, enquanto defensor de uma classe dominante contra
a maioria da população, espoliada e marginalizada. Oseias afirma que a monarquia é
fruto da ira de Iahweh. Vamos ler Os 13,9-11:
"É tua destruição,
pois só em mim está o teu auxílio.
Onde está, pois, o teu rei para que te salve
em todas as tuas cidades,
e os teus juízes a quem dizias:
'Dá-me um rei e um príncipe'?
Eu te dou um rei em minha ira,
eu o retomo em meu furor".
A terceira novidade é a respeito da atitude de Iahweh para com Israel.
Em relação à mulher do profeta, em 2,4-25, Iahweh adota três atitudes, símbolo
perfeito de sua atitude em relação a Israel:



uma série de obstáculos lhe são colocados, para que não vá procurar os seus
amantes e volte para o seu marido (vv.8-9)
Iahweh vai castigá-la pública e duramente (vv. 10-15)
mas ela será perdoada por puro amor, dando sequência a uma nova lua-de-mel e a
um novo presente de casamento, para que se restaure a intimidade e seja como um
novo matrimônio (vv.16-25).
65
Provavelmente, Oseias, observando os acontecimentos e o efeito de sua
pregação, passou pelas três etapas:

inicialmente, ele não pensa em um castigo total, mas em punições passageiras para
Israel, provocando, assim a conversão (5,15). Tudo resulta, porém, inútil (6,11b7,1a;7,16a), pois a conversão verificada é falsa, apenas aparente (5,5b-6,6)

em um segundo momento o castigo torna-se inevitável. E o profeta prega para Israel
a conhecida sequência de invasão-ruína-morte e exílio, como fizera seu
contemporâneo do sul, Amós

entretanto, surpresa geral: a última palavra de Iahweh é de perdão e não de
perdição. Conversa a atitudes típicas da relação pai-filho [alguns dizem: mãe-filho],
que aparece com clareza no capítulo 11 do livro. Iahweh ama, chama, ensina a
andar, cura, atrai, inclina-se para dar de comer: ações que exprimem o carinhoso e
atento cuidado do pai com um filho pequeno e frágil. Israel, por sua vez, se afasta,
não o compreende e confia mais nos amigos do que no pai: típica descrição da
rebeldia destruidora por que passava a nação e sua classe dirigente. Segundo a lei
israelita, tal filho, com tal comportamento, deve morrer (Dt 21,18-21). É então que
Israel pede socorro, pois o castigo paterno está iminente (vv. 5b-6): não a Iahweh,
mas a Baal. Nada consegue, diga-se de passagem (v. 7). Quando, finalmente, não
há mais saída, Iahweh luta consigo mesmo e a misericórdia vence a cólera (vv. 8-9).
Iahweh admite perdoar Israel14.
"Como poderia eu abandonar-te, ó Efraim,
entregar-te, ó Israel?
Como poderia eu abandonar-te como a Adama,
tratar-te como a Seboim?
Meu coração se contorce dentro de mim,
minhas entranhas comovem-se.
Não executarei o ardor de minha ira,
não tornarei a destruir Efraim,
porque eu sou um Deus e não um homem,
eu sou santo no meio de ti,
não retornarei com furor" (Os 11,8-9).
Observamos por isso três temas em Oseias que permanecem como típicos de
sua pregação, de sua linguagem e de sua teologia, encontrando muitos admiradores e
seguidores:
 as relações entre Iahweh e Israel são ditas pela imagem do matrimônio. Tema
retomado por Jeremias, Ezequiel e Dêutero-Isaías
 a imagem paterna para dizer a relação Iahweh-povo, como relação pai-filho, com o
predomínio da misericórdia e do perdão paternos, apesar da rebeldia do filho.
Imagem usada igualmente por Jeremias (31,18-20)
 finalmente, a noção de que Iahweh prefere o amor sincero aos sacrifícios cultuais,
que está em Os 6,6.
14
. Cf. SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas II, p. 891.
66
O livro de Oseias divide-se claramente em dois blocos: capítulos 1-3 e
capítulos 4-14. Este último pode ser ainda subdividido em capítulos 4-11 e capítulos 1214, pois ambos começam por um rîbh (= processo): 4,1 e 12,3; e terminam com uma
promessa de salvação: 11,8-11 e 14,2-9. Falarei, então, de três partes:
1)Os 1-3
2) Os 4-11
3) Os 12-14.
4.5. Volta, Israel, a Iahweh, teu Deus
Nos capítulos 12-14, última parte do livro, o profeta vai, mais uma vez, abordar o
tema da idolatria religiosa e política de Israel 15 .
Oseias critica, novamente, o passado de Israel. Mostra, através da lembrança de
Jacó (= Israel), que a sua história já começou muito mal (12,3-9). Oseias lembra que
Efraim foi uma tribo importante, mas que hoje perdeu o rumo. Jeroboão I, efraimita, foi o
criador do reino, mas cometeu um crime irreparável: colocou os touros nos santuários de
Dan e Betel, touros idolátricos, diz Oseias (13,1-11).
Finalmente, o profeta convoca Israel: volta a Iahweh, teu Deus. O profeta
convida à conversão
"Volta, Israel a Iahweh, teu Deus,
pois tropeçaste em tua falta" (Os 14,2).
ditando ao réu arrependido o discurso
"Tomai convosco palavras
e voltai a Iahweh;
dizei-lhe: 'Perdoa toda culpa,
aceita o que é bom.
Em lugar de touros
nós queremos oferecer nossos lábios.
A Assíria não nos salvará,
não montaremos a cavalo
e não diremos mais 'Nosso Deus'
à obra de nossas mãos,
porque é em ti que o órfão encontra misericórdia'" (Os 14,3-4).
seguindo-se o perdão de Iahweh
"Eu curarei a sua apostasia,
eu os amarei com generosidade,
pois a minha ira afastou-se dele" (Os 14,5).
15
. Cf. SICRE, J. L. Los dioses olvidados, p. 46-50.
67
e o miraculoso florescer de Efraim
"Eu serei como o orvalho para Israel,
ele florescerá como o lírio,
lançará suas raízes como o Líbano;
seus galhos se espalharão,
seu esplendor será como o da oliveira
e seu perfume como o do Líbano" (Os 14, 6-7).
5. ISAÍAS: É PRECISO CONFIAR EM IAHWEH
68
“Ai dos que ao mal chamam bem e ao bem mal,
dos que transformam as trevas em luz e a luz em trevas,
dos que mudam o amargo em doce e o doce em amargo!
Ai dos que são sábios a seus próprios olhos
e inteligentes na sua própria opinião!” (Is 5,20-21).
O livro de Isaías tem 66 capítulos, dos quais menos de 20 pertencem ao profeta
do século VIII a.C., que viveu em Jerusalém e atuou sob os reis Joatão, Acaz e
Ezequias.
Isaías 1-39 constitui o primeiro bloco de profecias. Aí boa parte dos oráculos é de
Isaías. Durante o exílio foram produzidos os capítulos 40-55 por um profeta anônimo
que viveu na Babilônia. É chamado de Dêutero-Isaías pelos especialistas atuais. Após o
exílio, durante o século VI a.C., foram escritos os oráculos de Is 56-66, provenientes,
talvez, de vários profetas da época da reconstrução de Judá na época persa.
Assim, o livro original de Isaías acabou se transformando numa coletânea de
oráculos de épocas bem diferentes. A redação final desta obra deve ter acontecido por
volta de 400 a.C., ou mais tarde ainda. Mesmo os capítulos atribuídos ao profeta Isaías,
do século VIII a.C., foram relidos na perspectiva pós-exílica.
É como diz J. Severino Croatto: "Esta constatação leva a uma conclusão
importante: o horizonte de leitura do livro total de Isaías, e também de 1-39, é pósexílico, por ocasião da dominação persa, da luta pela sobrevivência da comunidade
judaica, da desonestidade da classe dirigente de Jerusalém, dos conflitos com os
samaritanos etc"1.
Neste roteiro, que abordará somente Is 1-39, veremos a atuação de Isaías
em três momentos:
 na época de Joatão
: 739-734 a.C.
 na época de Acaz
: 734/3-716 a.C.
 na época de Ezequias
: 716/15-699/8 a.C.
Depois olharei os acréscimos feitos a Is 1-39 e, por fim, tentarei uma síntese do
pensamento do profeta.
5.1. Na época de Joatão: 739-734 a.C.
A esta época pertencem quase todos os oráculos de Is 1,2-6,13. São textos
que se referem às condições internas de Judá e, às vezes, de Samaria. São o anúncio e
a motivação global de um julgamento que está para se abater sobre o país. Comentarei
alguns deles.
1
. CROATTO, J. S. Isaías. Vol I: 1-39. O profeta da justiça e da fidelidade. Petrópolis/São
Paulo/São Leopoldo: Vozes/Metodista/Sinodal, 1989, p. 12-13.
69
Em Is 1,2-3 são invocados os céus e a terra (v.2). Para o destinatário judaíta
esta invocação levava a uma certeza: vai começar uma acusação. Esta invocação é
feita em um gênero literário específico (rîbh = processo) e tem, além disso, um valor
simbólico. A ruptura da aliança é apresentada ao universo. Os céus e a terra não só
testemunham como sofrem com o processo de ruptura: representam a ordem das
coisas, violada pela culpa de Israel.
"Ouvi, ó céus, presta atenção, ó terra, porque Iahweh está falando:
Criei filhos e os fiz crescer,
mas eles se rebelaram contra mim" (Is 1,2).
Em seguida é apresentado o amor de Iahweh para com o povo: como um pai que
cria e dá tudo a seus filhos. E estes se revoltam contra tal pai, colocando-se em
condição inferior à de animais domésticos, como o burro e o boi.
"O boi conhece o seu dono,
e o jumento, a manjedoura de seu senhor,
mas Israel é incapaz de conhecer,
meu povo não é capaz de entender" (Is 1,3).
Em Is 1,10-20 Judá, e especialmente Jerusalém, é comparada a Sodoma e
Gomorra, símbolos de transgressão e destruição2. O profeta lança-se contra o culto
vazio e formal, sem correspondência na vida real. É um dos textos mais violentos de
todo o profetismo contra o culto.
"Que me importam os vossos inúmeros sacrifícios?, diz Iahweh.
Estou farto de holocaustos de carneiros e da gordura de bezerros
[cevados;
no sangue de touros, de cordeiros e de bodes não tenho prazer.
Quando vindes à minha presença
quem vos pediu que pisásseis os meus átrios?
Basta de trazer-me oferendas vãs:
elas são para mim incenso abominável.
Lua nova, sábado e assembleia,
não posso suportar falsidade e solenidade!" (Is 1,11-13).
Em seguida, o profeta exorta o povo a deixar o mal e procurar o caminho do
bem. A alternativa passa pela decisão humana, pois Iahweh, de sua parte, é
benevolente e pode perdoar as culpas, caso haja conversão. Do contrário, o castigo
será inevitável. Castigo através da espada, símbolo da guerra.
"Lavai-vos, purificai-vos!
Tirai da minha vista vossas más ações!
Cessai de praticar o mal,
aprendei a fazer o bem!
2
. "A metáfora de Sodoma e Gomorra, para falar de Jerusalém, se concentra no v. 10 nos chefes e
governantes. O paralelo 'príncipes/povo' demonstra que a acusação é dirigida contra os que dirigem o povo,
prevenindo-nos contra uma frequente generalização do 'povo' de Israel pecador", alerta-nos CROATTO, J.
S. Isaías. Vol I: 1-39, p. 34.
70
Buscai o direito (mishpât), corrigi o opressor!
Fazei justiça ao órfão, defendei a causa da viúva!" (Is 1,16-17).
Is 1,21-26 é um lamento fúnebre, uma qiná. Normalmente entoado sobre o
defunto, aqui é usado para um morto-vivo, Jerusalém prostituída ao mal. A cidade é
personificada na imagem de uma prostituta: vendeu-se à injustiça. Qual é essa
injustiça? A corrupção pelo dinheiro e do dinheiro na qual caíram seus dirigentes.
Corrompida pelo dinheiro, a cidade será purificada, como o metal, pelo fogo, tornandose, novamente, a cidade da justiça.
Os vv. 21-23 contêm um lamento/repreensão sobre a cidade prostituída:
"Como se transformou em prostituta (zônâh) a cidade fiel?
Sião, onde prevalecia o direito (mishpât), onde habitava a justiça (tsedheq),
mas agora povoada de assassinos" (Is 1,21).
Em seguida, seus líderes são chamados de rebeldes e companheiros de ladrões
que correm atrás de subornos não cumprindo, portanto, seu dever de proteger o órfão e
a viúva (v. 23).
O v. 24a anuncia, então, solenemente, a punição de Iahweh, enquanto os
versículos seguintes mostram a purificação pela qual passará a cidade, tornando-se,
novamente a cidade da justiça:
"Quando isso se der, então sim,
te chamarão Cidade da Justiça (tsedheq)
e Cidade Fiel" (Is 1,26) 3.
Nos capítulos 2-3 Isaías prega a necessidade de uma grande operação de
limpeza no país. Tudo o que enche Judá de injustiça deve ser retirado: adivinhos, prata,
ouro, imensos tesouros, ídolos e assim por diante.
Is 2,6-22 trabalha com a oposição alto/baixo para sublinhar a transcendência de
Iahweh e criticar a situação em que vive o país. Duas coisas, segundo o profeta, se
opõem à transcendência de Iahweh: os ídolos e o orgulho humano. E têm ambos uma
só raiz: a ganância do homem em possuir (bens e orgulho), o que o conduz à idolatria.
Os vv. 6-8 descrevem um mundo fechado em si mesmo, onde os homens se
curvam diante dos ídolos fabricados por eles mesmos em ouro e prata (v. 8) e creem na
força de suas riquezas e no poderio de seus exércitos (v. 7), importando costumes
estrangeiros proibidos em Israel (v. 6).
"Sua terra está cheia de prata e de ouro: não há fim para seus tesouros;
sua terra está cheia de cavalos: não há fim para seus carros,
3
. Na estrutura sonora e verbal do poema aparece claramente a desfiguração da justiça até o v. 23 e
a reviravolta que se opera a partir do v. 24, reconstruindo a justiça desfeita. Para uma análise estilística do
poema, cf. LACK, R. La symbolique du livre d'Isaie: Essai sur l’image littéraire comme élément de
structuration. Rome: Biblical Institute Press, 1973, p. 164-171.
71
sua terra está cheia de ídolos,
e adoram a obra de suas mãos,
aquilo que seus dedos fizeram" (Is 2,7-8).
Isaías acredita que o homem será expulso deste ambiente, será humilhado até o
pó da terra, em condições infra-humanas (vv. 9-11). E nos vv. 12-17 lemos que no "dia
de Iahweh" todas as obras das quais os homens se orgulham, quer sejam da natureza
(cedros, carvalhos, montanhas, colinas), quer sejam aquelas produzidas por suas mãos
(como torres altas, muralhas, navios de grande porte, embarcações de luxo), serão
condenadas por Iahweh, cabendo, por último, ao homem ser diretamente humilhado.
"O orgulho do homem será humilhado,
a altivez dos varões se abaterá,
e só Iahweh será exaltado naquele dia" (Is 2,17).
E o que fará o homem? Os vv. 18-22 concluem que, naquele dia, só lhe restará
tentar esconder-se de Iahweh nos abismos, nas tocas, onde for possível, como bicho
apavorado.
Em Is 5,1-7 encontramos o belíssimo cântico da vinha. É um poema lírico de
grande beleza, uma espécie de "canção de amor", segundo alguns; uma "parábola",
segundo outros; ou, ainda, uma "canção de colheita", cantada durante a colheita da uva.
Canta-se o amor não-correspondido de um noivo, tendo o profeta assumido, no
caso, o papel de "amigo do noivo", uma pessoa de confiança que resolvia qualquer
problema porventura surgido entre o casal.
O cântico desdobra no seu simbolismo o amor de Iahweh (o agricultor) pelo povo
de Israel (a vinha), preparado com todo o cuidado e carinho, mas revelado infiel a
Iahweh.
No v. 7b, através de belíssimo jogo de palavras, descreve-se a situação judaíta:
"Deles esperava o direito (mishpât),
mas o que produziram foi a transgressão (mishpâh);
esperava a justiça (tsedhâqâh),
mas o que apareceu foram gritos de desespero (tse'âqâh)4.
Is 5,8-24 desenvolve as denúncias e ameaças esboçadas no cântico da vinha,
através de seis "ais". São ameaçados os ricos e latifundiários que concentram sempre
mais propriedades, explorando a maioria dos camponeses:
"Ai dos que juntam casa a casa,
4
. "Trata-se de um poema lírico: um dos fragmentos mais puramente líricos de Isaías", diz
SCHÖKEL, L. A. Estudios de poética hebrea. Barcelona: Juan Flores, 1963, p. 96-97. GONZAGA DO
PRADO, J. L. Traduzir: interpretar ou re-criar? Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 32, p. 92, 1991, propõe a
seguinte tradução do v. 7: "Parece que vocês não ouviram bem o que ele queria: 'Esperava o direito, aí o
despeito, a justiça, aí a cobiça!'".
72
dos que acrescentam campo a campo até que não haja mais espaço
[disponível,
até serem eles os únicos moradores da terra" (Is 5,8).
São atacados os que vivem em bacanais e grandes festas custeadas pelo
dinheiro dos pobres por eles explorados:
"Seus banquetes se reduzem a cítaras e harpas, tamborins e flautas,
e vinho para as suas bebedeiras.
Mas para os feitos de Iahweh não têm um olhar sequer,
eles não veem a obra das suas mãos" (Is 5,12).
São denunciados os que invertem os valores do javismo, que exploram o povo,
negando justiça, e que se fazem grandes e importantes vivendo em banquetes e
coquetéis:
"Ai dos que ao mal chamam bem e ao bem mal,
dos que transformam as trevas em luz e a luz em trevas,
dos que mudam o amargo em doce e o doce em amargo!
Ai dos que são sábios a seus próprios olhos
e inteligentes na sua própria opinião!
Ai dos que são fortes para beber vinho
e dos que são valentes para misturar bebidas,
que absolvem o ímpio mediante suborno
e negam ao justo sua justiça" (Is,5,20-23).
Is 6,1-13 é o texto que narra a vocação de Isaías. O profeta é preparado para a
sua missão através de uma visão de Iahweh, no Templo, descrito segundo os traços de
um rei oriental. Diz o texto que isto ocorreu no ano da morte do rei Ozias, ou seja, em
740/39 a.C., segundo a cronologia que estamos usando 5
É possível que este texto não se refira à vocação de Isaías de um modo geral,
mas seja uma preparação para uma missão específica na vida do profeta. De qualquer
maneira, como em todo texto de vocação, o relato foi escrito muito tempo depois do
fato6. Isto possibilitou ao profeta refletir sobre o sentido de sua missão e aqui,
especificamente, sobre o insucesso de sua pregação. Sua função foi de fato, reflete
Isaías, pregar o fim e a morte de Judá.
Até quando o profeta deve ser o porta-voz de Iahweh?
"Até que as cidades fiquem desertas, por falta de habitantes, e as
casas vazias, por falta de moradores; até que o solo se reduza a ermo,
5
. Segundo outra cronologia, Ozias teria morrido em 736 a.C., embora não governasse desde 756
a.C., pois estava atacado pela lepra. Cf. SCHWANTES, M. Isaías: Textos selecionados. São Leopoldo:
Comissão de Publicações da Faculdade de Teologia da IECLB, 1979, p. 25-27.
6
. Como Is 6,1-13 está muito ligado aos capítulos 7-12, que tratam da guerra siro-efraimita, a
redação deste texto supõe a atividade do profeta durante a época de Acaz (734/3-716 a.C.).
73
a desolação; até que Iahweh remova para longe seus homens e no
seio da terra reine uma grande solidão", reflete o profeta em Is 6,11127 .
5.2. Na época de Acaz: 734/3-716 a.C.
A ameaça conjunta das forças israelitas do norte e das forças sírias em 734 a.C.
levou Judá a invocar o auxílio assírio. Deu resultado, mas, para ter esta proteção, Judá
perdeu toda a sua independência.
Entre outras coisas, Judá viu-se obrigado a reconhecer os deuses assírios. Acaz
teve que apresentar-se a Tiglat-Pileser III, rei da Assíria, para prestar-lhe obediência e
render homenagem aos deuses assírios. Uma cópia do altar sobre o qual Acaz
sacrificou aos deuses assírios foi, em seguida, instalada no Templo de Jerusalém, ao
lado do altar de Iahweh ali existente. É o que conta 2Rs 16,10-16.
A situação econômica tornou-se péssima. Judá perdera as províncias que lhe
pagavam tributos. Além disso, o tributo pago à Assíria foi tal que Acaz teve que entregar
parte de seu tesouro e muitas coisas valiosas do Templo. E aumentar, naturalmente, o
imposto pago pelo povo.
E a injustiça correu solta, como denunciam os profetas da época. A religião
oficial era mantida pelo Estado e não o denunciava. Pelo contrário, encobria as
injustiças com cultos faustosos e vazios, sem correspondência na vida de todo dia.
Havia, contudo, uma esperança. Que se chamava Ezequias, e era filho de Acaz.
Ainda criança, Ezequias foi associado ao trono, em 728/7 a.C.
Isto porque ensinava-se em Judá que Iahweh elegera Sião como lugar
privilegiado e fizera à dinastia davídica a promessa de permanência eterna no poder. Se
um rei não fosse bem sucedido no governo, o problema poderia ser resolvido com o rei
seguinte. Acaz estava indo muito mal, mas Ezequias era uma esperança de dias
melhores8.
É no contexto da guerra siro-efraimita (734-732 a.C.) e da consequente
dependência assíria que devemos ler os oráculos deste período. Is 7,1-12,6 é, na sua
quase totalidade, desta época. Por causa de 7,14 convencionou-se chamar este bloco
de "Livro do Emanuel".
Tematicamente, os textos falam de invasões ou ataques, de libertações ou
proteções e de ameaças e promessas. Estes seis capítulos são organizados pelo
redator do livro a partir de três princípios 9:
7
. "Isaías entrou em choque com todo mundo: lutou contra o rei, os funcionários, às vezes contra
os sacerdotes e, com eles, contra toda a sua sabedoria. Tentou fazê-los ver, ouvir, compreender. Mas eles
deixaram de lado os planos de Deus, as promessas da dinastia, para seguirem seus próprios planos. É por
isso que Isaías declara com frequência: 'Israel não sabe, meu povo não entende'", comenta ASURMENDI, J.
M. Isaías 1-39. São Paulo: Paulus, 1980, p. 33.
8
. Cf. <http://airtonjo.com/site1/historia-14.htm>.
9
. Cf. SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas I, p. 145-147.
74



os sinais, como o do menino que vai nascer, em 7,14-15
o binômio invasão/libertação (7,1/716; 7,18-21/7,22; 8,5-8/8,9-10; 8,23b/9,1-6)
o significado de nomes próprios, como o do filho de Isaías chamado Maer-Salal
Haz-Baz, "Pronto-saque-próxima-pilhagem" em 8,1-4, que anuncia o saque de
Damasco e de Samaria pela Assíria e a libertação de Judá na guerra siroefraimita; ou seu outro filho Sear-Iasub, "Um resto voltará" (7,3) que é um
anúncio de esperança; e até mesmo o nome de Isaías (= Iahweh é salvação),
conforme diz 8,18: "Eis que eu e os filhos que Iahweh me deu nos tornamos, em
Israel, sinais ('othôth) e presságios (môphethîm) da parte de Iahweh dos
Exércitos, que habita no monte Sião".
Is 7,1-9 relata o encontro de Isaías com Acaz, às vésperas da guerra siroefraimita, em 734 ou 733 a.C. Os reis de Damasco e de Samaria planejam invadir Judá
para depor Acaz e no seu lugar colocar um rei não-davídico - o filho de Tabeel - que
envolveria o país na coalizão anti-assíria.
Isaías vai ao encontro de Acaz acompanhado por seu filho Sear-Iasub (Um-restovoltará), indicação ou sinal de esperança frente à crítica situação que se desenha. Acaz
está cuidando das defesas de Jerusalém.
Segundo Isaías, a dinastia davídica está ameaçada por dois fatores: os planos
inimigos e o medo do rei. Os planos inimigos fracassarão, o temor e as alianças políticas
farão o rei de Judá fracassar. O que dá estabilidade é a fé a confiança em Iahweh 10. O
que Isaías diz a Acaz, segundo os vv. 4-9 do capítulo 7, é o seguinte:
"Toma as tuas precauções, mas conserva a calma e não tenhas medo
nem vacile o teu coração diante desses dois tições fumegantes, isto é,
por causa da cólera de Rason, de Aram, e do filho de Romelias, pois
Aram, Efraim e o filho de Romelias tramaram o mal contra ti, dizendo:
'Subamos contra Judá e provoquemos a cisão e a divisão em seu seio
em nosso benefício e estabeleçamos como rei sobre ele o filho de
Tabeel'.
Assim diz o Senhor Iahweh:
Tal não se realizará, tal não há de suceder,
porque a cabeça de Aram é Damasco, e a cabeça de Damasco é
[Rason; (...)
A cabeça de Efraim é Samaria e a cabeça de Samaria é o filho de
[Romelias.
Se não o crerdes, não vos mantereis firmes".
Parece faltar alguma coisa ao texto. Há várias propostas:
"e a cabeça de Jerusalém é Iahweh"
ou
"e a cabeça de Jerusalém é a casa de Davi"
ou
"mas a cabeça de Judá é Jerusalém
e a cabeça de Jerusalém é o filho de Davi".
10
. Cf. SCHÖKEL, L. A ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas I, p. 147.
75
Is 7,10-17 relata novo encontro de Isaías com Acaz, desta vez, talvez, no
palácio, no qual o profeta oferece ao rei um sinal de que tudo se arranjará diante da
ameaça siro-efraimita.
Com a recusa do rei em pedir um sinal a Iahweh, Isaías muda de tom e relata a
Acaz que Iahweh, por própria iniciativa, dar-lhe-á um sinal.
Que consiste no seguinte: a jovem mulher ('almâh) dará à luz um filho, seu nome
será Emanuel (Deus-conosco) e ele comerá coalhada e mel até que chegue ao uso da
razão. Até lá Samaria e Damasco serão destruídas.
"Pois sabei que o Senhor mesmo vos dará um sinal ('ôth):
Eis que a jovem está grávida (hinnêh hâ'almâh hârâh)
e dará à luz um filho
e dar-lhe-á o nome de Emanuel ('immânû 'êl).
Ele se alimentará de coalhada e de mel
até que saiba rejeitar o mal e escolher o bem.
Com efeito, antes que o menino saiba rejeitar o mal e escolher o bem,
a terra, por cujos dois reis tu te apavoras, ficará reduzida a ermo"
(Is 7,14-16).
Os LXX, na sua versão grega da Bíblia, traduziram 'almâh por parthénos (=
virgem). Mt usou a versão dos LXX (cf. Mt 1,23): "Idoù he parténos (= a virgem) en gastrì
hécsei (= conceberá) kai técsetai hyón...". Entretanto, a palavra hebraica para designar
virgem é bethûlâh. A palavra 'almâh significa uma jovem mulher, virgem ou não. Em
muitos casos designa uma mulher jovem já casada. Além do que esta jovem é uma
pessoa concreta, conhecida e, provavelmente, presente na ocasião, porque o texto diz:
"Eis aqui (hinnêh) a jovem...".
"À luz do contexto do oráculo e dos textos siro-cananeus bem anteriores, parece
que se pode determinar: essa que é chamada 'almâh é muito provavelmente a jovem
rainha, talvez designada assim antes do nascimento do primeiro filho"11.
É bem provável que o menino seja Ezequias, filho de Acaz. Isaías falou a Acaz
nos primeiros meses de 733 a.C., e Ezequias teria nascido no inverno de 733-32 a.C.
O nascimento do menino garante, desta maneira, a continuidade da dinastia
davídica, atualizando a promessa e resumindo a aliança de Iahweh com o povo através
de seu nome, Emanuel ('immânû 'el), que evoca fórmula frequente no AT,
especialmente no deuteronomista:
 Dt 20,4
: "Porque Iahweh vosso Deus marcha convosco"
 Js 1,9
: " Porque Iahweh teu Deus está contigo"
e
 Jz 6,13
: "Se Iahweh está conosco (w yêsh Yhwh 'immânû)"
 1Sm 20,13 : "E que Iahweh esteja contigo"
 2 Sm 5,10 : "Davi ia crescendo, e Iahweh, Deus dos Exércitos, estava com ele".
11
. A. VANEL, citado em ASURMENDI, J. M. Isaías 1-39, p. 66. Cf. também CROATTO, S. S.
Isaías. Vol I: 1-39, p. 65; SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas I, p. 150.
76
Por outro lado, o sinal não seria, segundo alguns, de salvação, mas de castigo.
Acaz é rejeitado porque não confia em Iahweh. O alimento do menino, do mesmo modo,
supõe um período de devastação e miséria em Judá, como consequência da política
filo-assíria de Acaz12. É mais provável, entretanto, que seja um alimento de tempos de
abundância, como sugerem as passagens de Ex 3,8.17 e 2Sm 17,29.
Em Is 8,1-4 o profeta recebe a ordem de escrever numa prancheta o nome
Maer-Salal Has-Baz (= Pronto-saque-próxima-pilhagem). E quando nasce mais um filho,
será este o seu nome. A situação é a mesma no capítulo 7, ou seja, a guerra siroefraimita. O nome do menino quer simbolizar a destruição rápida dos inimigos de Judá.
Is 8,11-15 traz uma peça autobiográfica. Trata-se da conduta do profeta
distanciada da conduta da classe dirigente de Jerusalém. Enquanto esta busca soluções
nas alianças políticas e em consultas a espíritos e adivinhos, o profeta confiará só em
Iahweh para que sua atitude seja exemplar. O profeta é, pela distância dos dirigentes,
um oráculo vivo de reprovação da conduta nacional 13 .
"Eis que eu e os filhos que Iahweh me deu
nos tornamos, em Israel, sinais e presságios
da parte de Iahweh dos Exércitos, que habita no monte Sião"
(Is 8,18).
Is 8,23b-9,6 é um belíssimo poema, todo construído segundo um esquema
ternário14 . Assim:
v. 23b: humilhação/glória: Zabulon
Neftali
Galileia
v. 1: trevas/luz: andar
habitar
v. 2: tristeza/alegria: colheita (paz)
despojos (guerra)
v. 3: opressão/libertação: jugo
canga
bastão
v. 4: guerra/paz: bota
veste
v. 5a: desespero/esperança: um menino nasceu
um filho nos foi dado
v. 5b: liderança
12
. Cf. CROATTO, J. S. o. c., p. 65-66; SCHWANTES, M. Isaías, p. 123-128. SCHWANTES lê
esta profecia de Isaías como ruptura e condenação da dinastia davídica.
13.
"Deus lhe recomenda tomar distância 'deste povo'. É a terceira vez que aparece esta designação
depreciativa da classe dirigente de Jerusalém (cf. 6,9;8,6)", explica CROATTO, J. S. o. c. p. 70.
14
. Cf. SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas I, p. 159.
77
v. 5c: competência: Conselheiro-maravilhoso: sabedoria na administração
Deus-forte: capacidade bélica
Pai-eterno: zelo pela prosperidade do povo
Príncipe-da-paz: preocupação com a felicidade do povo
v. 6: permanência: domínio multiplicado
paz perpétua
casa de Davi: direito e justiça.
Os verbos estão no hifil, forma causativa do verbo hebraico. Isto indica que é
Iahweh quem faz tudo isso que o poema descreve.
O v. 23b está em prosa e nos coloca no ambiente adequado, enquanto traça a
situação histórica. As três regiões mencionadas, Zabulon (caminho do mar), Neftali (o
Além do Jordão) e Galileia (o distrito das nações) são as conquistadas, entre 734 e 732
a.C., por Tiglat-Pileser III a Israel. Iahweh humilhou estas terras, diz o profeta, Iahweh as
cobrirá de glória. E o povo, que vivia em trevas e na tristeza, viverá na luz e na alegria.
Esta alegria enorme é causada pelo fim da opressão - o jugo, a canga e o bastão
do opressor foram quebrados -, pelo fim da guerra (a bota e a veste militares foram
queimadas) e pelo nascimento de um menino em Judá:
"Porque um menino nos nasceu, um filho nos foi dado,
ele recebeu o poder sobre seus ombros, e lhe foi dado este nome:
Conselheiro-maravilhoso (peleh yô'ts),
Deus-forte ('el gibôr),
a
Pai-eterno (' bhî'adh)
Príncipe-da-paz (sar shâlôm)" (Is 9,5).
Este versículo marca o ápice do poema. Começa com "palavras curtas, não para
maior rapidez, mas para serem pronunciadas lentamente, enchendo, com seu pequeno
volume, uma medida rítmica maior - como o menino em sua pequenez. A sonoridade é
toda cheia de aliterações e sons suaves, para o saborear da pronúncia lenta: kî yeledh
yulladh lânû bên nitan lânû ["Porque um menino nos nasceu, um filho nos foi dado"].
Contraste curioso: o verso menor é o mais importante do poema", observa L. A.
Schökel15.
Este menino é, sem dúvida, um personagem da casa real. Confirmam-no os
quatro títulos que lhe são atribuídos. Títulos muito discutidos, onde alguns vêem
características sobre-humanas e messiânicas. Mas que na realidade parecem caber
bem ao reis segundo a mentalidade da época: a sabedoria do rei na administração
aparece no título de Conselheiro, sua capacidade militar em Deus-forte, enquanto que o
zelo pela prosperidade do povo o caracteriza como Pai, expressando Príncipe-da-paz
sua preocupação com a felicidade do povo. Estes títulos ficam mais claros se traduzidos
assim: "Milagre de Conselheiro, Guerreiro divino, Chefe perpétuo, Príncipe da Paz"16.
15
. SCHÖKEL, L. A. Estudios de poética hebrea, p. 395.
16
. SCHÖKEL, L. A. ; MATEOS, J. Nueva Bíblia Española. Madrid: Cristiandad, 1993.
78
O v. 6 esclarece ser o menino da "casa de Davi" e caracteriza as suas ações:
e
governará com direito (mishpât) e justiça (ts dâqâh).
Quem é o personagem de que fala o profeta?
A maioria dos especialistas acredita tratar-se de Ezequias, o filho de Acaz. Tratase, talvez, de seu nascimento, anunciado em 7,10-17. Ezequias nasceu no inverno de
733/32 a.C., portanto, logo após o início da guerra siro-efraimita que começara na
primavera17 .
Is 10,1-4 traz uma ameaça aos juízes injustos que abusam de seu cargo para
oprimir e saquear os desvalidos: os fracos: dallîm, os pobres: 'aniyyîm (cf. Am 2,7: "Eles
esmagam sobre o pó da terra a cabeça dos fracos [dallîm] e tornam torto o caminho dos
pobres ['anâwîm]"), as viúvas e os órfãos. Um dia encontrar-se-ão com uma instância
superior, juiz divino.
Ex 22,21, no "Código da Aliança", ordena: "Não afligireis a nenhuma viúva ou
órfão. Se o afligires e ele clamar a mim escutarei o seu clamor; minha ira se acenderá e
vos farei perecer pela espada: vossas mulheres ficarão viúvas e vossos filhos órfãos".
Em Is 11,1-9 o ponto de referência do profeta, assim como em 7,1-17 e 8,23b9,6, continua sendo um rei da época, descendente de Davi, como todos os reis de Judá,
que salvaria o país da catástrofe iminente.
O texto é organizado do seguinte modo:
v. 1: um personagem régio (referência a Jessé, pai de Davi)
1a: "um ramo sairá do tronco de Jessé"
1b: "um rebento brotará das suas raízes"
v. 2: as qualidades do personagem
terá o espírito de Iahweh (rûah Yhwh)
espírito de sabedoria (hokhmâh)
e de discernimento (bhînâh)
espírito de conselho ('êtsâh)
e
e de fortaleza (g bhûrâh)
espírito de conhecimento (da'ath)
e de temor de Iahweh (yir'ath Yhwh)
vv. 3b-5: a atuação do personagem
3b: "não julgará segundo a aparência"
"não dará sentença apenas por ouvir dizer"
4a: "julgará os fracos (dallîm) com justiça (tsedheq)
com equidade pronunciará sentença em favor dos pobres da terra
('anâwîm)"
4b: "ferirá a terra com o bastão de sua boca"
"matará o ímpio com o sopro de seus lábios"
5 : "a justiça (tsedheq) será o cinto dos seus lombos"
"a fidelidade ('emûnâh) o cinto dos seus rins".
17
. Assim LACK, R. La symbolique du livre d'Isaie, p. 49. Outros acreditam que o texto se refere
à entronização de Ezequias em 728/7 a.C. Assim ASURMENDI, J. M. Isaías 1-29, p. 70.
79
vv. 6-8: instauração de uma nova realidade
(são elencados sete pares: sete animais selvagens
sete "animais" domésticos: seis animais e uma
criança)
1. lobo
+
cordeiro
2. leopardo
+
cabrito
3. bezerro
+
leãozinho + novilho gordo + menino pequeno
4. vaca
+
urso (e suas crias)
5. leão
+
boi
6. criança de peito +
áspide
7. criança pequena +
víbora
v. 9: conclusão
ninguém fará mal nem destruição em Jerusalém
porque haverá conhecimento de Iahweh (da'ath Yhwh) em Israel.
L. A. Schökel observa que o poema possui grande regularidade e transmite uma
paz impressionante, pois todos os verbos obedecem às normas estritas da gramática
hebraica, o sujeito é quase sempre a terceira pessoa do singular, o paralelismo dos
versos é regular e as imagens usadas não são espalhafatosas, mas exprimem
tranquilidade, num movimento lento e sossegado.
Os verbos que se referem aos animais, por exemplo, como morar, deitar, andar,
guiar, pastar, brincar, transpiram paz, transmitindo o sentido do tempo de prosperidade
e paz anunciado pelo profeta.
As imagens usadas no poema são simples, o que permite o reforço da ideia
apresentada (paz e prosperidade), sem necessidade de identificações alegóricas, do
tipo "leão significa isto, urso significa aquilo...". O mundo da natureza aparece no ramo,
no florescimento, no vento (rûah = espírito, sopro, vento), em rimas cruzadas lembrando
os quatro pontos cardeais, enquanto que os animais, reunindo os selvagens e os
domésticos em pares específicos e o menino que harmoniza tão bem com o quadro
simples e pastoril descrito, compõem o poema.
O personagem esperado, fiel a Iahweh, vai instaurar um reino de justiça, onde o
pobre e o oprimido serão protegidos contra a prepotência dos poderosos. Justiça e paz
que são simbolizadas, no poema, pela convivência harmoniosa de animais selvagens e
domésticos18.
A identificação deste personagem da família davídica é problemática. Alguns
acreditam que o poema trata da utopia profética de Isaías por ocasião da coroação de
Ezequias como rei em 716/15 a.C. 19. Outros defendem que se Ezequias fora o objeto da
esperança de Isaías de tirar o país da crise, como aparece em 7,1-17 e 8,23b-9,6,
18
19
. Cf. SCHÖKEL, L. A. Estudios de poética hebrea, p. 396-404.
. Assim ASURMENDI, J. Isaías 1-39, p. 74-77. Asurmendi é partidário da tese de que não há
textos messiânicos no livro do proto-Isaías, pois "o messianismo supõe a falência da instituição régia e uma
intervenção divina que a ultrapassa. Seria de estranhar que um homem tão ligado à instituição, para quem a
ideologia régia é tão central, tenha pensado numa mudança tão radical" (p. 76).
80
agora, decepcionado com sua política pró-egípcia que acaba provocando a invasão do
assírio Senaquerib, pensa em alguém que no futuro possa resgatar Israel 20.
Is 28,1-4 deve ter sido proferido pouco antes da queda de Samaria (722 a.C.),
cidade à qual é endereçada. O profeta denuncia a orgulhosa capital do reino do norte,
cujos habitantes se embebedam e se coroam, como a cidade coroada por suas
muralhas (v. 1), mas que não percebe a aproximação de uma terrível tempestade, a
destruidora Assíria (v. 2). Samaria será engolida como um figo temporão e os
samaritanos esmagados como uma coroa calcada aos pés (vv. 3-4).
"Sim, a orgulhosa coroa dos bêbados de Efraim
será calcada aos pés,
bem como a flor murcha do seu magnífico esplendor
que está no cume do vale da fertilidade.
É como um figo temporão:
quem o vê, devora-o mal o tem na mão" (Is 28,3-4).
L. A. Schökel lembra o paralelismo destes versículos com o capítulo 10: "A
Assíria é um gigante sobre-humano, que muda as fronteiras com a força de sua mão e
derruba os príncipes, que toma os reinos com facilidade, como quem colhe ovos
abandonados em um ninho. Aqui, a Assíria (que não é mencionada) é como uma
tempestade, como um gigante que derruba muralhas e toma uma cidade facilmente,
como quem colhe um figo temporão"21.
5.3. Na época de Ezequias: 716/15-699/8 a.C.
Após tomar posse como rei, com a morte de seu pai Acaz, Ezequias manteve-se
fora das rebeliões anti-assírias, insufladas pelo Egito, que explodiam a todo momento na
região. E aproveitou a situação de pouca vigilância assíria para fazer uma reforma em
Judá.
Um dos alvos da reforma teria sido a ruptura com práticas cultuais não-javistas
dos agricultores. Entre outras coisas, teria abolido os lugares altos (bâmôt), quebrado as
estelas (matsêbôt), cortado o poste sagrado (‘asherâh). Até mesmo do Templo de
Jerusalém Ezequias teria retirado símbolos dos cultos da fertilidade, como uma serpente
de bronze. É o que nos conta 2Rs 18,4, embora aqui a OHDtr tente apresentar uma
justificativa para a presença desta serpente de bronze no Templo (“que Moisés havia
feito, pois os israelitas até então ofereciam-lhe incenso” – cf. Nm 21,8-9).
Entretanto, há autores, como Finkelstein/Silberman e Liverani, que apresentam
uma perspectiva um pouco diferente: a "reforma" de Ezequias não teria sido a
restauração de uma estrutura desmantelada ao longo do tempo, mas uma inovação. A
idolatria dos judaítas não foi um abandono de seu anterior monoteísmo, pois esta era a
forma como a população de Judá tinha praticado seu culto por centenas de anos. A
reforma sinaliza na direção da transformação de Iahweh de Deus nacional, convivendo
com os deuses regionais, em Deus exclusivo.
20
. Cf. esta posição em SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas I, p. 169-172.
21
. SCHÖKEL, L. A. Estudios de poética hebrea, p. 494.
81
A destruição de Samaria levou refugiados de Israel para Jerusalém, pois novas
estruturas foram construídas, como bairros novos, ampliação de muralhas e o túnel que
levava as águas da fonte Gihon para o reservatório de Siloé. Sobre este último feito
testemunham 2Rs 20,20 e a Inscrição de Siloé, que celebra o encontro das duas turmas
de escavadores.
O fato é que Jerusalém superou seu antigo isolamento e, ancorada na política
assíria, cresceu de 5 para 60 hectares e de cerca de 1000 para algo em torno de 15 mil
habitantes. E em Judá, no final do século VIII a.C., podem ser contados cerca de 300
assentamentos e uma população de uns 120 mil habitantes. A fortaleza de Lakish, na
Shefelá, se desenvolveu extraordinariamente. Outros fortalezas foram construídas na
mesma região. Surge portanto, só agora, uma elite judaíta e se formam as estruturas de
um verdadeiro Estado.
Enquanto isso, na Assíria, Senaquerib subiu ao trono em 705 a.C. e
imediatamente teve que enfrentar nova revolta na Babilônia. Todas as províncias do
oeste então se levantaram. Acreditavam ter chegado o momento da libertação. O Egito
prometeu ajuda, mais uma vez. A coalizão integrava Tiro, com outras cidades fenícias;
Ascalon e Ekron, com algumas cidades filisteias; Moab, Edom e Amon; e Ezequias, de
Judá, entrou como um dos líderes da revolta. Fortificou suas defesas e preparou-se
cuidadosamente para esperar a Assíria. Senaquerib não se fez de rogado e já em 701
a.C. ele começou por Tiro, vencendo-a. Logo os reis de Biblos, Arvad, Ashdod, Moab,
Edom e Amon se entregaram e pagaram tributo a Senaquerib. Somente Ascalon e
Ekron, juntamente com Judá, resistiram. Senaquerib tomou primeiro Ascalon. Os
egípcios tentaram socorrer Ekron e foram derrotados. E foi a vez de Judá. Senaquerib
tomou 46 cidades fortificadas em Judá e cercou Jerusalém.
Testemunhos arqueológicos da devastação foram encontrados em várias
escavações por todo o território. Especialmente significativos são a representação
assíria da tomada de Lakish encontrada no palácio de Senaquerib em Nínive - hoje está
no British Museum - e a escavação, feita pelos britânicos na década de 30 e por David
Ussishkin, da Universidade de Tel Aviv, na década de 70 do século XX, da poderosa
fortaleza, esta que era a segunda mais importante cidade do reino e protegia a entrada
de Judá.
Entretanto, por motivos ainda hoje desconhecidos, talvez uma peste, Senaquerib
levantou o cerco de Jerusalém e retornou à Assíria. A cidade voltou a respirar, no último
minuto, mas teve que pagar forte tributo aos assírios. Não se sabe porque Jerusalém se
salvou. 2Rs 19,35-37 diz que o Anjo de Iahweh atacou o acampamento assírio. Existe
uma notícia de Heródoto, História II,141, segundo a qual num confronto com os egípcios
os exércitos de Senaquerib foram atacados por ratos (peste bubônica?). Talvez
Senaquerib tenha partido por causa de alguma rebelião na Mesopotâmia. Ou ainda: há
autores que pensam que Jerusalém nem precisou ser sitiada para ser vencida. Nos
Anais de Senaquerib se diz o seguinte:
"Quanto a Ezequias do país de Judá, que não se tinha submetido ao meu
jugo, sitiei e conquistei 46 cidades que lhe pertenciam (...) Quanto a ele,
encerrei-o em Jerusalém, sua cidade real, como um pássaro na gaiola...".
Outra questão é se teria havido uma segunda campanha de Senaquerib na
Palestina. De qualquer maneira, segundo os Anais de Senaquerib, o tributo pago por
Ezequias ao rei assírio foi significativo:
82
"Quanto a ele, Ezequias, meu esplendor terrível de soberano o confundiu e
ele enviou atrás de mim, em Nínive, minha cidade senhorial, os irregulares e
os soldados de elite que ele tinha como tropa auxiliar, com 30 talentos de
ouro, 800 talentos de prata, antimônio escolhido, grandes blocos de
cornalina, leitos de marfim, poltronas de marfim, peles de elefante, marfim,
ébano, buxo, toda sorte de coisas, um pesado tesouro, e suas filhas,
mulheres de seu palácio, cantores, cantoras; e despachou um mensageiro
seu a cavalo para entregar o tributo e fazer ato de submissão" 22.
Informação que concorda, em termos gerais, com a de 2Rs 18,13-16:
"No décimo quarto ano do rei Ezequias, Senaquerib, rei da Assíria, subiu
contra todas as cidades fortificadas de Judá e apoderou-se delas. Então
Ezequias, rei de Judá, mandou esta mensagem ao rei da Assíria, em Laquis:
'Cometi um erro! Retira-te de mim e aceitarei as condições que me
impuseres'. O rei da Assíria exigiu de Ezequias, rei de Judá, trezentos
talentos de prata e trinta talentos de ouro, e Ezequias entregou toda a prata
que se achava no Templo de Iahweh e nos tesouros do palácio real. Então
Ezequias mandou retirar o revestimento dos batentes e dos umbrais das
portas do santuário de Iahweh, que... rei de Judá, havia revestido de metal, e
o entregou ao rei da Assíria".
Manassés, filho e sucessor de Ezequias, para o Deuteronomista, é o oposto do
pai: governou 55 anos como o pior rei de Judá, especialmente por ter restaurado os
cultos não-javistas. Por que teria Manassés feito isto? Acreditam Finkelstein e Silberman
que a reorganização do território de Judá, agora sob a sombra da Assíria, implicou em
alianças com lideranças clânicas que exigiram a volta aos cultos dos deuses da terra.
Não foi a "maldade" de Manassés que implodiu o javismo, mas as suas necessidades
econômicas é que trouxeram de volta o pluralismo cultual.
Colaborando com a Assíria e deslocando a população judaíta para outras
regiões, depois de perder a fértil Shefelá, Manassés, como a arqueologia pode
comprovar, desenvolveu significativa produção e exportação de óleo de oliva e explorou
as rotas de comércio por onde passavam as caravanas que iam e vinham entre a Assíria
e a Arábia. Importante, neste sentido, foram as escavações das instalações para a
fabricação do óleo de oliva em Tel Miqne (= Ekron) - as maiores existentes em todo o
Oriente Médio naquela época - e dos ossos de camelos adultos em Tell Jemmeh, uma
localidade vizinha a Gaza.
Is 1,4-9 apresenta a situação de Judá após a derrota sofrida em 701 a.C. Mas o
profeta mostra que isto aconteceu porque todo o país estava tomado pela corrupção. O
v. 4 apresenta, por exemplo, quatro denominações para Judá em ordem crescente de
intimidade com Iahweh, enquanto os qualificativos mostram uma ordem crescente de
mal, incompatível com a condição de filhos conferida pouco antes. As consequências da
22
. BRIEND, J. (org.) Israel e Judá: Textos do Antigo Oriente Médio, p. 76. Sobre a reforma de
Ezequias, a invasão de Senaquerib e o governo de Manassés, cf. FINKELSTEIN, I. ; SILBERMAN, N. A. A
Bíblia não tinha razão, p. 318-364; LIVERANI, M. Para além da Bíblia: História antiga de Israel, p. 195209; DA SILVA, A. J. O Contexto da Obra Histórica Deuteronomista. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 88,
p. 11-27, 2005.
83
corrupção são apresentadas nos vv. 5-9, sob a imagem de um escravo flagelado por
seu senhor.
O movimento da corrupção é do interior para o exterior: primeiro, ela atinge a
cabeça e o coração (v. 5),em seguida atinge a superfície do corpo, provocando feridas,
furúnculos e tumores (v. 6), para, depois do corpo, alcançar o ambiente humano, o país,
as cidades e o solo, diz o v. 7.
O movimento de exteriorização da corrupção completa-se no v. 8 com a
personificação de Jerusalém, vista como "a filha de Sião". Três imagens de refúgio são
apresentadas: a choça na vinha, o telheiro no pepinal, a cidade sitiada:
"A filha de Sião foi deixada só,
como choça em vinha,
como telheiro em pepinal,
como cidade sitiada" (Is 1,8).
Em Is 18,1-7 o profeta de Jerusalém denuncia, provavelmente, uma embaixada
enviada pelos etíopes, então senhores do Egito, para propor uma coalizão anti-assíria.
Isaías afirma que os destinos do mundo são decididos por Iahweh e não pelo Egito, em
quem não se deve confiar:
"Ai da terra dos grilos alados,
situada além dos rios de Cuch!
Que envia mensageiros pelo mar
em barcos de papiro, sobre as águas" (Is 18,2a).
Neste mesmo contexto podemos ler Is 19,1-15, onde o profeta, contrário a
qualquer aliança com o Egito para acabar com a ameaça assíria, denuncia a fraqueza
do país do Nilo neste momento: guerra civil, um cruel tirano, falência da economia
baseada no Nilo, fracasso da tradicional sabedoria egípcia... Estes são os argumentos
de nosso profeta para evitar que Ezequias caia na tentação egípcia. E ele conclui de
forma proverbial:
"Nenhum empreendimento conseguirá realizar o Egito,
seja obra da cabeça ou da cauda, da palma ou do junco" (Is 19,15).
Is 22,1-14 protesta contra a alegre comemoração feita em Jerusalém após a
retirada dos exércitos de Senaquerib em 701 a.C. A alegria está fora de lugar, segundo
Isaías, porque o perigo assírio permanece. Iahweh convoca a cidade à penitência e não
aos banquetes, porque ela foi derrotada vergonhosamente e não há motivo para festa.
"Que tens tu, afinal, que todos os teus habitantes sobem aos telhados
cheios de júbilo, cidade ruidosa, cidade vibrante?
Os teus trespassados não foram trespassados à espada,
nem foram mortos na guerra.
Os teus comandantes fugiram todos juntos,
sem arcos, foram capturados,
todos juntos foram capturados;
eles tinham fugido para longe.
84
Diante disso, eu disse:
'Desviai de mim os vossos olhos, que eu choro amargamente;
não insistais em consolar-me
da ruína sofrida pela filha do meu povo'" (Is 22,1b-4).
Is 28,1-33,24 forma uma coleção de oráculos que tratam, com poucas
exceções, da política de Ezequias entre 705 e 701 a.C. Ezequias conduz a nação a
alianças militares com o Egito na esperança de se livrar do jugo da Assíria governada
por Senaquerib. Isaías, como na época da guerra siro-efraimita, denuncia o caráter
ilusório destas alianças e garante que só Iahweh pode defender o país e fazer justiça ao
seu povo.
Este bloco representa o trabalho de um redator pós-exílico que elaborou um
esquema orgânico, onde se alternam oráculos de ameaças e promessas. A linha central
de pensamento é a seguinte 23:
 os homens pretendem realizar seus planos sem contar com Iahweh:
28,1-4;32,9-14
: levam vida boa sem perceberem a desgraça iminente
30,1-7;31,1-6
: fazem aliança com o Egito
28,14-15.18-19
: chegam até mesmo a pactuar-se com os poderes ocultos
da morte
 Iahweh quer guiá-los através da palavra profética, entretanto:
28,7-13;30,8-17
: a palavra profética é rejeitada
28,18-22;29,1-12
: Iahweh, então, castiga-os duramente
29,14;30,16-17
: Iahweh provoca a falência de seus planos
30,18-33;31,4-9;32,1-5: mas Iahweh vencerá o inimigo, julgará o povo e criará
um novo reino
Is 28,7-13 é um oráculo que deve ser datado às vésperas da campanha de
Senaquerib contra Judá em 701 a.C. Isaías narra uma cena de embriaguez, com uma
descrição brilhante da confusão dos sacerdotes e profetas frente à situação. No início
da cena, no v. 8a, o realismo do poema alcança o seu ápice através dos três alef (letra
hebraica que tem som gutural e é transliterada por um ') imitando o som do vômito dos
bêbados:
"Com efeito, todas as suas mesas
estão cheia de vômito e de imundície (mal e'û qî' tso'âh)".
Em seguida, há um diálogo entre Isaías e os bêbados, no qual estes
ridicularizam o profeta, imitando uma fala infantil sem sentido. Eles, que não querem
ouvir o profeta, dizem:
"A quem ensinará ele o conhecimento?
A quem fará ele entender o que foi dito?
A crianças apenas desmamadas, apenas tiradas do seio,
quando diz: tsaw lâtsâw tsaw lâtsâw
qaw lâqâw qaw lâqâw
ze'êr shâm ze'êr shâm" (Is 28,9-10).
23
. Cf. SCHÖKEL, L. A ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas I, p. 222-224.
85
O profeta responde à provocação de maneira irônica e cruel, ameaçando-os com
outro balbucio, só que em uma língua estranha, a dos assírios. A resposta do profeta
soaria mais ou menos assim: "Está certo, é assim mesmo que Iahweh falará a vocês,
mas através da Assíria que vem aí...".
Em Is 28,14-15.18-19 o profeta denuncia as alianças com o Egito para o
enfrentamento com a Assíria como uma aliança com a morte: as imagens conduzemnos a um mundo tenebroso de sheol e morte, apresentados aqui como poderes
personificados:
"A vossa aliança com a morte será rompida,
o vosso pacto com o sheol não subsistirá.
Quanto ao flagelo destruidor, ao passar,
ele vos calcará aos pés" (Is 28,18).
Is 29,1-8 é um poema muito bom, com grande dinâmica. Iahweh declara-se, na
primeira pessoa (vv. 1-4), sitiador da cidade de Ariel, que é Jerusalém. Talvez o termo
Ariel venha de har'el ou 'ari'eyl, nome "dado por Ezequiel à parte superior do altar, o
forno, onde se queimavam as vítimas: isto exprimiria o caráter sagrado da cidade" 24.
Este oráculo deve estar relacionado com o cerco de 701 a.C. Pois quando é crítica a
situação da cidade, Iahweh manifesta-se, desbaratando o inimigo que desaparece como
um pesadelo (vv.5-8).
Em Is 30,1-5 o profeta ameaça aqueles que confiam nas alianças com o Egito e
abandonam Iahweh, cometendo idolatria política25. Isaías demonstra que assim Judá
fracassará. O contexto histórico continua sendo a crescente ameaça de Senaquerib a
partir de 705 a.C. e as negociações de Judá para formar uma coalizão anti-assíria.
"Com efeito, os seus príncipes estiveram em Soã [= Tânis, no Egito],
os seus embaixadores chegaram até Hanes [= Anúsis, Heracleópolis Magna,
no Egito].
Todos se desmoralizam por causa de um povo [= os egípcios]
que não os pode socorrer,
que não pode trazer-lhes ajuda nem proveito,
mas antes, vergonha e opróbrio" (Is 30,4-5).
Is 30,6-7 é igualmente um poema contra o envio de uma embaixada de Ezequias
ao Egito através do Negueb. O deserto, povoado por leões e serpentes "terra de penúria
e aflição", é descrito com extremo realismo. Os judeus levam ao governo egípcio
presentes sobre jumentos e camelos, levam presentes "a um povo que não lhes pode
valer", pois "o auxílio do Egito é inútil e vão".
Is 30,11-17 é chamado por muitos de "testamento de Isaías" por causa da ordem
dada por Iahweh ao profeta no v. 8:
24
. BÍBLIA DE JERUSALÉM, Is 29, nota d.
25
. Cf. SICRE, J. L. Los dioses olvidados, p. 55-59.
86
"Vai agora e escreve-o em uma tabuinha,
grava-o em um livro
que se conserve para dias futuros,
para todo o sempre".
Na verdade, o profeta vai escrever suas denúncias, repetidas mas não ouvidas
por seus contemporâneos. Só o futuro lhe dará razão (vv. 8-11). Entretanto, Isaías
alerta: este comportamento cego da nação vai levá-la à destruição, como uma muralha
rachada que desmorona de repente ou um vaso de barro despedaçado com violência
(vv. 12-14). A confiança de Judá está em seus inúteis exércitos e isto a destruirá, pois
só a confiança em Iahweh garantiria sua sobrevivência na crise que se aproxima (vv. 1517).
Is 31,1-3 retoma o tema da aliança com o Egito, denunciando-a como ilusória:
seus numerosos carros de guerra e sua cavalaria poderosa não podem ajudar: Judá
traiu Iahweh e não tem saída.
"Pois o egípcio é homem e não deus,
seus cavalos são carne e não espírito.
Quando Iahweh estender a mão,
Aquele que socorre tropeçará e o socorrido cairá,
e perecerão ambos juntos" (Is 31,3).
Embora pareça não ter mais nenhuma perspectiva, o profeta ainda sonha: Is
31,4-9 descreve a proteção de Iahweh para Jerusalém como um leão que defende sua
presa dos pastores, como aves que voam e vigiam: "Então a Assíria cairá à espada,
mas não de homem; por uma espada, mas não de mortal, ela será devorada" (v. 8a).
5.4. As releituras de Isaías
Muitos dos oráculos de Is 1-39 são bem posteriores à época do profeta. São
acréscimos, adaptações a contextos novos, releituras das profecias do grande Isaías do
século VIII a.C.
Os capítulos 13-23, por exemplo, são só parcialmente de Isaías, pois muitos
de seus oráculos refletem uma situação de exílio ou pós-exílio26.
Is 13,1-22 é um lamento fúnebre (qiná) contra a Babilônia, do final do exílio.
Segundo o texto, Babilônia será destruída pelos medos. Os exércitos são terríveis, a
catástrofe é imensa, a crueldade não tem limites:
"Todo aquele que for encontrado será trespassado,
26
. "O texto atual de Isaías 1-39, seja como unidade fechada ou como parte de 1-66, deve ser lido
na perspectiva pós-exílica (...) É a chave situacional para ler todo o 'livro' de Isaías. Esta 'posição' do leitor é
fundamental para compreender este texto como uma obra e não como um aglomerado de oráculos", reitera
CROATTO, J. S. Isaías. Vol I: 1-39, p. 14.
87
todo aquele que for pego cairá à espada.
Tuas crianças serão despedaçadas sob seus olhos,
suas casas serão saqueadas e suas mulheres violentadas (...)
Os arcos prostrarão os meninos;
eles não terão pena das criancinhas,
seus olhos não pouparão os filhinhos.
Assim Babilônia, a pérola dentre os reinos,
o adorno e o orgulho dos caldeus,
será como Sodoma e como Gomorra
que foram reduzidas a ruína por Deus" (Is 13,15-16.18-19).
Is 14,3-23 é uma sátira (mashal) extremamente bem construída sobre a morte
do rei da Babilônia, provavelmente Nabucodonosor.
Na sátira começam falando os israelitas libertados do jugo opressor, da
arrogância e da impiedade "daquele que feria os povos com furor", que perseguia as
nações sem que ninguém o pudesse deter. Com a sua queda, "o mundo inteiro repousa,
está tranquilo", todos estão muito alegres (vv. 5-9).
No sheol falam os mortos, excepcionalmente despertos, dirigindo-se ao poderoso
rei babilônico com extrema ironia:
"Então, também tu foste abatido como nós,
acabaste igual a nós.
O teu fausto foi precipitado no sheol,
juntamente com a música de tuas harpas" (vv. 10-11a).
A condição do rei morto não é nada privilegiada, como era em vida, segundo a
observação dos habitantes do sheol, pois "sob o teu corpo os vermes formam como um
colchão, os bichos te cobrem como um cobertor" (v. 11b). Logo este rei, ironiza o
poema, que dizia ser superior a todos, que colocaria o seu trono acima das estrelas, que
tornar-se-ia semelhante ao Altíssimo. Hoje quem te vê diz: "Porventura é este o homem
que fazia temer a terra, que abalava reinos? Que reduziu o mundo a um deserto,
arrasou-lhe as cidades e nunca permitiu que os seus prisioneiros voltassem para a sua
pátria?" (vv. 16b-17). E o pior: o rei não terá nem sepultura nem sucessores, conclui o
poema, para que nunca mais se nomeie "esta raça de malvados".
Is 19, 16-25 é um trecho em prosa sobre a conversão do Egito. Certamente
posterior ao exílio, pois supõe uma instalação judaica no Egito e prega uma
reconciliação entre Assíria, Egito e Israel.
Is 21,1-10 é um oráculo pós-exílico sobre a queda da Babilônia por obra dos
medos e persas, em 538 a.C. Um vigia, o próprio profeta, anuncia a chegada de
"homens em caravanas e cavaleiros aos pares" para concluir: "Caiu, caiu Babilônia! E
todas as imagens dos seus deuses ele [Iahweh] as despedaçou no chão!"
Is 24,1-27,13 contém capítulos apocalípticos ou proto-apocalípticos,
anunciando já a literatura que aparecerá em Daniel e no livro etiópico de Henoc, entre
88
outros27 . Estes capítulos tratam da luta de Iahweh contra os inimigos e da vitória final
do povo de Israel. Aqui se fala muito da "terra" e da "cidade". É a realidade do império
persa, onde a "terra" indica seu extenso domínio e a "cidade" sua poderosa capital. Só
que ambos são ampliados e tomados como símbolos da opressão imperialista, para
qualquer época. A data mais provável destes oráculos deve se situar entre 500 e 400
a.C.
Is 34,1-35,10 mostra como Iahweh combate as nações estrangeiras,
destruindo totalmente seus territórios, e como o povo eleito recebe as bênçãos divinas.
Do mesmo gênero de Is 24,1-27,13, também estes oráculos podem ser datados por
volta do século V a.C.
Is 36,1-39,8 são capítulos copiados dos livros dos Reis para completar as
tradições, reunidas pelos redatores, sobre Isaías. A data da redação final é pós-exílica.
Compõem-se os capítulos de três episódios principais: a invasão de Senaquerib e sua
embaixada (36-37), a doença e a cura de Ezequias (38) e a embaixada do rei MerodacBaladã, da Babilônia (39).
5.5. Um dia não existirá mais opressão
Para a compreensão da mensagem de Isaías é preciso salientar seus dois
grandes temas: a questão social, especialmente durante seus primeiros anos de
atividade; e a questão política, forte a partir do governo de Acaz e dos acontecimentos
que cercaram a guerra siro-efraimita28 .
Na questão social notamos profunda semelhança entre Isaías e Amós. Talvez
os oráculos do pastor de Técua já fossem conhecidos em Jerusalém na época de
Isaías. Afinal, são quase contemporâneos: Amós é de 760 a.C. e Isaías de 740 a.C. A
problemática social era a mesma para ambos, embora Amós fosse um camponês e
Isaías um homem culto ligado à corte.
Isaías ataca os grupos dominantes da sociedade: autoridades, magistrados,
latifundiários, políticos. É duro e irônico com as damas da classe alta de Jerusalém,
como em Is 3,16-24.
"Disse Iahweh:
Visto que as filhas de Sião estão emproadas
e andam de pescoço erguido e com olhos cobiçosos,
visto que caminham a passos miúdos, fazendo tilintar as argolas dos
[pés,
o Senhor cobrirá de tinha a cabeça das filhas de Sião,
Iahweh lhes desnudará a fronte" (Is 3,16-17).
27
. Cf. KAISER, O. Isaiah 13-39. 2. ed. London: SCM Press, 1980, p. 173-179; CROATTO, J. S.
o. c., p. 147-149.
28
. Cf. SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas I, p. 109-111.
89
Defende, com paixão, órfãos, viúvas, oprimidos, o povo explorado e
desgovernado pelos governantes. Denuncia igualmente a máscara da religião que
encobre a injustiça.
Por outro lado, sua posição política depende das tradições sobre a eleição
divina de Jerusalém e da dinastia davídica. Iahweh está comprometido com a cidade e
com a descendência de Davi. É preciso que o povo confie em Iahweh e mantenha a
calma mesmo nos piores momentos. Nada de recorrer, portanto, a auxílios estrangeiros,
quer venham do Egito, quer venham da Assíria. O contrário da fé é o temor, é o medo
que se manifesta quando Judá busca segurança no poder das armas e das alianças
políticas.
O que pretendia Isaías com a sua pregação?
Isaías quer que o homem de sua época restabeleça o equilíbrio perdido na sua
relação com Iahweh. O homem de seu tempo se colocara no cume de um panteão
terreno, dominando e decidindo tudo segundo mesquinhos interesses, sem exigências
éticas de justiça e de solidariedade. Como diz Is 2,12-17:
"Porque haverá um dia de Iahweh dos Exércitos
contra tudo o que é orgulhoso e altivo,
contra tudo o que se exalta, para que seja humilhado;
contra todos os cedros do Líbano, altaneiros e elevados,
e contra todos os carvalhos de Basã;
contra todos os montes altaneiros
e contra todos os outeiros elevados;
contra toda a torre alta
e contra toda a muralha fortificada
contra todos os navios de Társis
e contra tudo o que parece precioso.
O orgulho do homem será humilhado,
a altivez dos varões se abaterá,
e só Iahweh será exaltado naquele dia".
Isaías percebe Iahweh como soberano, glorioso, santo. E o homem, em geral,
na sua condição humana e, concretamente, o seu povo, os seus contemporâneos, como
impuros e fracos, como aparece no texto de sua vocação no capítulo 6.
Se Israel não aceitar Iahweh como decisivo, então Iahweh o fará à força: virá o
"dia de Iahweh" e a arrogância humana será despedaçada.
6. MIQUEIAS DENUNCIA A TEOLOGIA DA OPRESSÃO
"Foi-te anunciado, ó homem, o que é bom,
90
e o que Iahweh exige de ti:
nada mais do que praticar o direito
gostar da solidariedade
e caminhar humildemente com o teu Deus"
(Mq 6,8).
Contemporâneo de Isaías, o profeta Miqueias é um camponês vindo da região
fortemente militarizada que confinava com a planície filisteia. Atuou durante os anos que
se seguiram à guerra siro-efraimita, ainda no governo de Acaz, e durante a reforma de
seu filho Ezequias, até a grande derrota de Judá e o castigo imposto ao país pela
Assíria.
Corajoso em sua postura de denúncia aberta e forte dos desmandos articulados
pelos governos e pela classe dominante escorada no Estado, Miqueias é, ao mesmo
tempo, e por isso, um grande defensor dos camponeses e dos direitos dos oprimidos de
seu tempo.
Uma de suas características mais marcantes é a denúncia da teologia oficial que
se elaborava em Jerusalém para sustentar a opressão que garantia a riqueza da corte
mesmo quando o país estava em grande crise e a maior parte da população passava
necessidades. Sua discussão com seus colegas profetas que se prestam a esse papel
de falar o que interessa às autoridades de turno é uma das marcas características
desse grande profeta de Morasti-Gat.
No primeiro momento discutirei as questões gerais acerca do livro e do
personagem. No segundo, a primeira parte do livro, os capítulos 1-5. E, finalmente, os
dois capítulos finais, Mq 6-7. É um livro pequeno, mas de forte densidade e de grande
atualidade.
6.1. O livro e seu autor
Um dos primeiros problemas que se apresentam ao leitor de Miqueias é o da
autoria do livro. Parece, à primeira vista, que boa parte do livro não pode ser do
profeta de Morasti-Gat.
Isto porque sua pregação é de feroz denúncia da opressão e da teologia que a
sustenta. Tal é a característica dos capítulos 1-3. Por outro lado, os capítulos 4-5 estão
recheados de benevolentes promessas, o que não se coaduna com o tom dos três
primeiros. Ainda: os capítulos 6-7 parecem ser de Miqueias, mas o livro termina, talvez,
com um oráculo sobre Samaria, coisa estranha para um profeta judaíta.
Comparemos, por exemplo, Mq 3,9-12 com Mq 4,8, onde o destino de Jerusalém
aparece de duas formas claramente contrastantes:
"Ouvi, pois, isto, chefes da casa de Jacó
e dirigentes da casa de Israel,
vós que execrais a justiça,
que torceis o que é direito,
vós que edificais Sião com o sangue
e Jerusalém com injustiça!
Seus chefes julgam por suborno,
91
seus sacerdotes decidem por salário
e seus profetas vaticinam por dinheiro.
E eles se apoiam em Iahweh, dizendo:
'Não está Iahweh em nosso meio?
Não virá sobre nós a desgraça!'
Por isso, por culpa vossa,
Sião será arada como um campo,
Jerusalém se tornará um lugar de ruínas,
e a montanha do Templo, um cerro de brenhas!" (Mq 3,9-12).
"E tu, Torre do Rebanho,
Ofel da filha de Sião,
em ti entrará a autoridade antiga,
a realeza da filha de Jerusalém" (Mq 4,8).
O que dizem os especialistas?
Dizem que Mq 1-3 é de Miqueias, mas que os capítulos 4-5 pertenceriam a
outros autores que teriam somado suas profecias de salvação ao livro de Miqueias. E
que os capítulos 6 e 7 seriam apenas parcialmente de Miqueias1.
Mas há outra solução possível. Que resolve especialmente o problema dos
capítulos 4-5. Podemos ler estes capítulos como um aceso debate entre Miqueias e
outros profetas, contemporâneos seus, mas que defendem posições opostas às
suas. Nós hoje os chamamos de falsos profetas. Miqueias, por sua vez, denuncia sua
teologia como sustentáculo da injustiça que se praticava em Jerusalém. Aqueles textos
que parecem contrariar a pregação de Miqueias seriam, na verdade, as palavras dos
falsos profetas.
E é até possível que os capítulos 6-7 pertençam a um Dêutero-Miqueias, um
anônimo profeta samaritano que teria existido nos últimos anos do reino do norte. Assim
se explicariam as características nortistas desses dois capítulos. Por outro lado, nada
impede que o próprio Miqueias tenha pregado a respeito de Samaria às vésperas de
sua destruição. Era lição adequada a Jerusalém, que corria os mesmos riscos 2.
Como Mq 6,16, que fala do exemplo de Samaria:
"Tu observas as leis de Omri,
todas as práticas da casa de Acab.
Vós vos conduzis segundo seus princípios,
para que eu faça de ti um objeto de estupor,
de teus habitantes uma zombaria,
e que carregueis o opróbrio dos povos".
1
. Cf. ZENGER, E. et al. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2003, p. 508-511.
2
. Cf. SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas II, p. 1064-1066.
92
Agora, sobre o profeta. Diz o v. 1 que Miqueias3 é natural de Morasti-Gat, aldeia
situada na Shefelá, próxima à cidade de Gat, a cerca de 50 km a sudoeste de Jerusalém.
Para entendermos certas colocações de Miqueias é bom lembrarmos que sua
aldeia ficava numa região altamente militarizada, coalhada de fortalezas: em um círculo
de dez quilômetros encontramos Azeca, Soco, Odolam, Maresa e Lakish4 .
Parece que Miqueias era um camponês, dado que sua aversão pelas cidades,
especialmente por Jerusalém, se manifesta a todo momento. E também porque ele
denuncia os latifundiários de seu tempo com toda a dureza 5. E não gosta dos
comerciantes. Diz Mq 6,10-12, por exemplo:
"Posso suportar uma medida falsa
- tesouros iníquos um efá diminuído, abominável?
Posso considerar quites as balanças falsas
uma bolsa de pesos falsificados?
Ela, cujos ricos estão cheios de violência,
e cujos habitantes proferem a mentira.
Sua língua é mentirosa em sua boca".
Deve ter atuado em Jerusalém, especialmente no tempo de Ezequias (716/15699/98 a.C.) Diz o título do livro que ele profetizou desde a época de Joatão (740/39734 a.C.), passando por Acaz (734/3-716 a.C.) e Ezequias. Como ele se refere a
Samaria, de um lado, e à invasão de Senaquerib, de outro, devemos colocar como data
possível os anos de 727 a 701 a.C.
Quanto à divisão do livro, a maior parte dos autores indica quatro seções,
alternando-se ameaças e promessas:
1-3
: ameaças
4-5
: promessas
6,1-7,7
: ameaças
7,8-20
: promessas.
3
. Miqueias, em hebraico Mîkâh, é uma abreviação de Mîkâ'el (quem é como El?) ou de Mîkâyâhû
(quem é como Iahweh?). No v. 1 ele é chamado de "Miqueias, o morastita".
4
. "A presença de militares e funcionários reais devia ser frequente na região e, pelo que diz
Miqueias, não muito benéfica. Além dos impostos, é provável que requisitassem trabalhadores para
conduzi-los a Jerusalém (cf. 3,10). Latifundismo, impostos, roubo a mão armada, trabalhos forçados: este é
o ambiente que cerca o profeta", comenta SICRE, J. L. Profetismo em Israel, p. 276.
5
. "Não se enganaria muito quem o colocasse entre os simples, vítimas das injustiças sociais, uma
vez que ele mostra certa agressividade em relação às autoridades políticas, judiciais, militares e religiosas de
Jerusalém (c. 3), em relação aos comerciantes (6,10-12), aos especuladores fundiários e aos usurários de
tempos de guerra (2,1-5.8-9)", comentam MAILLOT, A. ; LELIÈVRE, A. Atualidade de Miqueias: Um
grande "profeta menor". São Paulo: Paulus, 1980, p. 14.
93
L. A. Schökel e J. L. Sicre Diaz6 preferem falar de dois atos apenas: no primeiro
é descrita uma teofania e suas consequências (1-5), enquanto que no segundo aparece
o julgamento de Iahweh contra Israel (6-7).
Com efeito, Mq 1,2-4, quando fala da manifestação de Iahweh, diz o seguinte:
"Ouvi, povos todos,
presta atenção, terra, e o que a habita!
Que Iahweh seja testemunha contra vós,
o Senhor saiu de seu santo Templo!
Porque eis que Iahweh sai de seu lugar santo,
ele desce e pisa sobre os cumes da terra.
Debaixo dele os montes se derretem
e os vales se desfazem
como a cera junto do fogo,
como a água derramada em uma encosta".
Já Mq 6,1-2, abrindo o segundo ato, traz um processo de Iahweh contra Israel:
"Ouvi, pois, o que diz Iahweh:
'Levanta-te, abre um processo diante das montanhas,
e que as colinas ouçam a tua voz!'
Ouvi, montanhas, o processo de Iahweh,
E vós, inabaláveis fundamentos da terra,
porque Iahweh está em processo com o seu povo,
e contra Israel ele pleiteia".
Todo o conteúdo do livro de Miqueias pode ser sintetizado como segue:
Mq 1-5: a teofania e suas consequências
Cap. 1: o profeta anuncia e denuncia generalidades
1,1
: título
1,2-7 : anúncio de uma grande teofania
motivo: crimes de Jacó (norte) e de Judá (sul)
consequência: o castigo imediato de Samaria
1,8-16 : uma elegia por Judá
motivo: uma catástrofe que afetou norte e sul
ocasião da catástrofe: passada (a invasão de Senaquerib)?
futura?
motor da catástrofe: Iahweh que julga o seu povo
Cap. 2-3: o profeta passa à denúncia de pecados concretos
2,1-5 : ai (ameaça) contra os ricos
motivo: porque tomam as casas dos pobres
2,6-11 : resultado: discussão entre Miqueias e seus adversários
por quê? acreditam os adversários que nenhum mal lhes virá
2,12-13: uma promessa de salvação
6
. Cf. SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. o. c., p. 1066-1070.
94
autor: muitos acreditam ser um autor posterior que tentou
suavizar a ameaça anterior. Mas podem ser palavras
dos falsos profetas
3,1-4 : nova ameaça contra as autoridades
3,5-8 : disputa entre Miqueias e os falsos profetas
3,9-12 : novo ataque às autoridades civis e religiosas
anúncio de um terrível castigo para Jerusalém
Cap. 4-5: em discussão, a salvação (= restauração do país)
desenvolvimento: vários autores? assim pensa a maioria
outros acreditam ser uma discussão entre Miqueias e os falsos
profetas
1. Quando será a salvação?
Para Miqueias é coisa futura, dos "últimos dias", e não "agora",
como dizem os falsos profetas. É preciso primeiro passar por
uma purificação. Então Jerusalém será restaurada.
2. De onde virá a salvação?
Para Miqueias a salvação virá de Belém, lugar do povo. Para os
falsos profetas virá de Jerusalém, lugar do poder
3. Em que consistirá a salvação?
Miqueias diz que será a restauração para todos os povos. Os
falsos profetas: será boa para os judeus, mas será destruição
para os estrangeiros.
Mq 6-7: o processo de Iahweh contra seu povo
6,1-5
6,6-7
6,8-9a
6,9b-16
7,1-7
7,8-20
: convocação da natureza para que assista à querela de Iahweh
contra seu povo
: o culto, somente através do qual ocorre a Israel agradar a
Iahweh, é rechaçado
: o caminho certo passa pela justiça e pela lealdade
: duro ataque à cidade, onde faltam exatamente a justiça e a
lealdade, pois se enriqueceu à custa de injustiças
: com o desaparecimento da lealdade, ninguém pode confiar
em ninguém, nem nos mais íntimos. O único jeito é confiar
em Iahweh e esperar a sua intervenção salvífica
: reconhecimento da culpa e reconciliação.
6.2. A teofania e suas consequências (1,2-5,14)
Em Mq 1,2-7 o profeta descreve uma poderosa manifestação de Iahweh,
seguida pela acusação a Israel e a Judá, provocando o castigo imediato de Samaria. Diz
Miqueias que "o Senhor saiu de seu santo Templo" para manifestar-se contra Israel (v.
2).
A. Maillot e A. Lelièvre comentam a propósito: "Há aqui uma preposição muito
interessante. Comumente se dizia que o Senhor estava no Templo. Mas a preposição
empregada aqui por Miqueias não deixa o Senhor ficar encerrado no Templo. Ela
sublinha que Deus sai do Templo não para abandoná-lo, mas para agir fora. É um tema
95
de Miqueias: o Deus-do-Templo, da liturgia, é também o Deus-de-fora-do-Templo e do
cotidiano"7 .
Apesar da violência que isto representa, Miqueias acusa o próprio Templo de
Jerusalém de praticar cultos idolátricos, ao falar dos "lugares altos" (segundo o texto
hebraico, porque o texto da LXX muda para "o pecado da casa de Judá"), expressão
que se refere aos locais de prática dos cultos da fertilidade.
"Tudo isso por causa do crime de Jacó,
por causa dos pecados da casa de Israel
Qual é o crime de Jacó?
Não é Samaria?
Quais são os lugares altos de Judá?
Não é Jerusalém?" (Mq 1,5).
Em Mq 1,8-16 o profeta canta uma elegia (= cântico fúnebre) por Judá,
descrevendo uma invasão militar, patrocinada por Iahweh, para castigar o povo. Tratase provavelmente da invasão assíria de 701 a.C., quando Senaquerib destruiu 46
cidades fortificadas de Judá. Interessante é o jogo de palavras, feito pelo poeta, com o
e
sentido dos nomes das cidades e o seu destino, do tipo: b ghath 'al tagîdhû = em Gat
não anuncieis... Das doze cidades mencionadas conhecemos sete, situadas a sudoeste
de Jerusalém: Gat, Saanã, Lakish, Morasti-Gat, Bet-Aczib, Maresa e Odolam.
Mq 2,1-5 acusa os que têm poder, porque espoliam os mais fracos do que eles.
Miqueias promete-lhes um castigo sob a forma de um exílio. O profeta critica sobretudo
a perversão do comércio da terra, absurdo sob o ponto de vista da solidariedade tribal.
Para Miqueias a estrutura absolutista da monarquia israelita comete um evidente abuso
de poder, um crime, ao possibilitar que seus beneficiários transformem a terra, doada a
todos por Iahweh, para o sustento cotidiano, em terra de negócio, para acumulação e
lucro.
"Ai daqueles que planejam iniquidade
e que tramam o mal em seu leitos!
Ao amanhecer, eles o praticam,
porque está no poder de sua mão.
Se cobiçam campos, eles os roubam,
se casas, eles as tomam;
oprimem o varão e sua casa,
o homem e sua herança" (Mq 2,1-2).
O verbo "cobiçar", usado por Miqueias, é hâmad: este verbo não indica apenas
um desejo que não se concretiza, mas a maquinação para realizar um plano. Além do
que cobiçar é a ação daqueles que possuem recursos para tomar posse de bens alheios
pública e impunemente. É o mesmo verbo usado em Ex 20,12, uma das palavras do
decálogo: "Não cobiçarás a casa do teu próximo...".
7
. MAILLOT, A. ; LELIÈVRE, A. Atualidade de Miqueias, p. 41.
96
É bom a gente observar que as pessoas acusadas por Miqueias não são os
"marginais" da sociedade israelita. São pessoas honradas e respeitadas. Estão, no
momento, muito bem.
Contudo, a ameaça do castigo (vv. 3-5) tem a sua razão de ser. "Antes de tudo,
deve-se dizer que um país no qual a injustiça social chegou a tal ponto, que se
encontram, de um lado, alguns poucos grandes proprietários e, do outro, uma incontável
multidão de pobres mais ou menos escravos, pode ter certeza de perder a guerra, se ela
vier", observam A. Maillot e A. Lelièvre 8.
Além da miséria e enfraquecimento inevitáveis nestes casos, ocorre um
agravante: faltaria ao soldado israelita, recrutado entre os camponeses empobrecidos,
qualquer motivação para a luta. Afinal, os camponeses nada têm para defender de um
inimigo externo, pois já perderam tudo para os exploradores internos...
Em 2,6-11 temos uma discussão entre Miqueias e seus adversários, os profetas
do poder. No início do oráculo vem citado o discurso deles (vv. 6-7), vindo, em seguida,
a resposta de Miqueias que os acusa de despojar os mais fracos (vv. 8-11).
Segundo os profetas contrários a Miqueias, não há o que temer, já que os filhos
de Jacó (= os israelitas) são abençoados (Gn 49), além do que, Iahweh, que não
esmorece no cumprimento de suas promessas, continua a agir com benevolência.
Mas o argumento de Miqueias é o seguinte: "Estes profetas com suas mentiras
se dedicam a despojar mulheres, crianças e viajantes, enquanto participam de festas
despreocupadas: eles fazem boa companhia aos poderosos, utilizando a mentira em
lugar do poder"9.
E no v. 11, finalmente, Miqueias traça o perfil do falso profeta. Jogando com o
termo rûah, que significa tanto "vento" como "espírito", diz nosso profeta que seus
adversários, que tanto reivindicam o espírito, acabam mesmo é correndo atrás do vento.
Mq 2,12-13 traz a típica mensagem da teologia oficial de Jerusalém no tempo
de Miqueias. São palavras dos adversários de nosso profeta o que devemos ler aqui.
São os falsos profetas em ação. Seus temas: a reunificação, o Senhor como pastor do
povo, o rei.
Em Mq 3,1- 4 o profeta repreende o comportamento dos chefes de Israel: são
as autoridades civis como o rei, os funcionários dos escalões superiores e os juízes, os
"cabeças" (ro'shîm), em hebraico. A metáfora usada pelo profeta é de uma crueza
espantosa:
"E eu digo:
Ouvi, pois, chefes da casa de Jacó
e dirigentes da casa de Israel!
Por acaso não cabe a vós conhecer o direito (mishpât),
a vós que odiais o bem e amais o mal,
8
. MAILLOT, A. ; LELIÈVRE, A. Atualidade de Miqueias, p. 59-60.
9
. SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas II, p. 1080.
97
que lhes arrancais a pele, e a carne de seus ossos?
Aqueles que comeram a carne de meu povo,
arrancaram-lhe a pele,
quebraram-lhe os ossos,
cortaram-no como carne na panela
e como vianda dentro do caldeirão,
então eles clamarão a Iahweh,
e ele não lhes responderá.
Ele lhes esconderá a sua face naquele tempo,
porque os seus atos foram maus!" (Mq 3,1-4).
Mq 3,5-8 traz nova discussão entre Miqueias e os falsos profetas que, devendo
ser guias do povo, entretanto, desviam-no. Miqueias carrega na denúncia dos profetas
que vaticinam por comida.
"Assim disse Iahweh aos profetas
que seduzem o meu povo:
Àqueles que, se têm algo para morder em seus dentes,
proclamam: 'Paz'.
Mas a quem não lhes põe nada na boca
eles declaram a guerra!" (Mq 3,5).
Mq 3,9-12 é um ataque à corrupção das classes dirigentes: magistrados,
chefes, sacerdotes, profetas, gente de Jerusalém que acredita estar Iahweh com eles,
defendendo-os. Entretanto:
"Seus chefes (ro'shîm) julgam por suborno
seus sacerdotes decidem por salário
e seus profetas vaticinam por dinheiro" (Mq 3,11a).
Estes dirigentes, na verdade, estão edificando "Sião com sangue e Jerusalém
com injustiça". Mas o v. 12 destrói tal ilusão: "Por culpa vossa, Sião será arada como um
campo, Jerusalém se tornará lugar de ruínas, e a montanha do Templo, cerro de
brenhas".
Em 4,1-4 Miqueias canta o futuro, quando, em uma peregrinação geral,
convergirão toda as nações, vizinhas e distantes, para o louvor de Iahweh e em busca
de seu ensinamento e de sua proteção, para o monte Sião. Já em Mq 4,5 os falsos
profetas mantêm uma estreita visão da história, contra o universalismo de Miqueias:
cada povo segue seu deus, Israel segue Iahweh. Os outros povos não virão, dizem eles.
Em 4,6-7 Miqueias retoma o tema anterior, somando-lhe algo novo: os exilados
israelitas retornam à sua pátria.
Em Mq 4,8-9 os falsos profetas exaltam a grandeza de Jerusalém, chamando-a
de "Torre do Rebanho". Afirmam que Jerusalém não deve temer o inimigo, pois sua
tradição de poder é antiga e inabalável. Mas em Mq 4,10 o nosso profeta retruca que a
hora do exílio e do sofrimento está chegando.
98
Em Mq 4,11-13 os falsos profetas acreditam na vitória de Judá sobre os seus
temíveis adversários, os já, nesta época, ameaçadores assírios. Porém Mq 4,14 rebate:
nada de falsas ilusões, que o tempo é mau para Jerusalém e Judá, diz o profeta de
Morasti-Gat.
Em 5,1-3 Miqueias retoma a esperança de uma recuperação de Judá, mas só a
partir das origens humildes da dinastia davídica, originária de Belém. Recusa-se o
profeta a admitir uma saída da crise contando com as forças reinantes no momento:
"E tu, Belém-Éfrata,
pequena entre os clãs de Judá,
de ti sairá para mim
aquele que governará Israel" (Mq 5,1).
Os falsos profetas, entretanto, retrucam, em Mq 5,4-5, que a paz será
conquistada com a guerra e a vitória de Judá sobre a Assíria.
Em Mq 5,6 o profeta fala do "resto" de Jacó (= Israel) em meio às nações como
uma bênção de Iahweh, de maneira pacífica, construtiva. Já os falsos profetas, em Mq
5,7-8, falam de Israel em meio aos outros povos como um leão entre animais selvagens
e ovelhas, destruidor e feroz.
Finalmente, em Mq 5,9-14, nosso profeta traz um oráculo sobre o aniquilamento
da idolatria, sob suas diversas formas, em Israel: são aniquilados os cavalos e os carros
de guerra, as fortalezas e as cidades, os adivinhos, as estelas, as estátuas e os postes
sagrados. É um oráculo muito semelhante ao de Is 2,7-8.
Observamos que Miqueias faz desfilar diante de nós as vítimas da exploração de
seu tempo. Ele vê a sociedade dividida entre os donos de terra, as autoridades civis e
militares, os juízes, os sacerdotes e os falsos profetas, de um lado; e, do outro lado, o
"meu povo", o povo de Iahweh, vítima da opressão. É então que Miqueias denuncia a
"teologia da opressão" que se elabora em Jerusalém e que serve para ocultar e/ou
legitimar as injustiças10.
6.3. O processo de Iahweh contra seu povo (6,1-7,20)
Em Mq 6,1-8 o profeta anuncia que Iahweh iniciará um processo contra Israel.
Convoca as montanhas, as colinas e os "fundamentos da terra" como testemunhas.
Iahweh enumera os benefícios feitos por ele a Israel: acontecimentos que vão desde o
êxodo do Egito até a chegada a Guilgal. Israel tenta, porém, reparar a sua culpa através
de um faustoso e exagerado sacrifício de animais e de cereais, chegando ao ponto de
pensar no sacrifício do primogênito. O v. 8, entretanto, célebre passagem, joga toda a
teologia israelita por terra quando o profeta exige:
"Foi-te anunciado, ó homem, o que é bom,
e o que Iahweh exige de ti:
nada mais do que praticar o direito (mishpât)
10
. Cf. SICRE, J. L. A justiça social nos profetas, p. 416-425.
99
gostar da solidariedade (hesedh)
e caminhar humildemente com o teu Deus".
Este versículo resume o pensamento dos outros três grandes profetas do século
VIII a.C.:
 Amós, na sua exigência de direito e justiça
 Oseias, na sua exigência de solidariedade
 Isaías, na sua exigência de fé e obediência 11.
Em Mq 6,9-16 há uma acusação contra Jerusalém (ou Samaria, segundo
outros), pois ela abriga pessoas que se enriquecem injustamente, fraudando pesos e
medidas, além de praticarem a violência e a falsidade.
Em Mq 7,1-7 o profeta fala sobre a sua situação. Frente à deslealdade reinante,
despeja Miqueias sobre os leitores a sua infelicidade e angústia: está só no meio dos
homens, só conta com Iahweh.
"O fiel desapareceu da terra,
não há justo entre as pessoas!
Todos estão à espreita para derramar o sangue,
Eles cercam cada qual seu irmão com a rede.
Suas mãos são para o mal,
para fazer o bem, o príncipe (sar) exige,
assim como o juiz (shophêt), uma gratificação,
o grande expressa a própria cupidez (...)
Não confieis no próximo,
não ponhais a vossa confiança em amigo;
diante daquela que dorme em teu seio,
guarda-te de abrir a tua boca.
Porque o filho insulta o pai,
a filha levanta-se contra a sua mãe,
a nora contra a sua sogra,
os inimigos do homem são as pessoas de sua casa"
(Mq 7,2-3.5-6).
Mq 7,8-20 conta como Jerusalém sofreu nas mãos dos inimigos, mas
reconheceu a sua culpa, está envergonhada e será recuperada por Iahweh que a
perdoa. É um texto pós-exílico este, segundo a opinião da maioria dos autores, quando
se deu a reconstrução da cidade. Oráculos acrescentados pelos copistas às duras
críticas de Miqueias, arranjando um final feliz...
11.
"Se se tratasse de resumir de modo lapidar a mensagem do AT, esta passagem seria uma das
que entrariam na concorrência. Porque ela diz tudo ou quase tudo", observam MAILLOT, A. ; LELIÈVRE,
A. o. c., p. 140.
100
CONCLUSÃO
101
Para que o leitor possa ter uma visão de conjunto do tema, retomo, nesta
conclusão, os aspectos mais importantes desenvolvidos ao longo do texto. Os números
correspondem aos itens apresentados nos capítulos.
1.1. A sociedade tribal israelita era baseada nas relações de parentesco, criando
fortes vínculos sociais entres seus membros e exigindo solidariedade mútua de modo
muito rigoroso.
1.2. Já a organização monárquica baseava-se na centralização do poder nas
mãos do governante dinástico, recriando a oposição cidade x campo e minando a
solidariedade antes estabelecida pela retribalização israelita. A relação agora é de
exploração do Estado sobre os camponeses, exploração que inclui desde a apropriação
do excedente dos produtos da terra até o trabalho compulsório. A ética javista vai sendo
progressivamente abandonada e a baalização é incentivada pela classe dominante.
2.1. Quando se aprofunda a crise do javismo e os camponeses estão sendo
duramente explorados, surgem os profetas. Denunciam a ruptura das relações de
solidariedade, apontando o comportamento dominante como idolátrico e despótico.
2.2. Os profetas percebem a inadequação existente entre o javismo que se diz
praticar em Israel e as ações sociais reais anti-javistas que de fato predominam.
Denunciam o mau funcionamento das instituições do Estado monárquico e pregam uma
recuperação dos valores do javismo para salvar o país.
2.3. No pós-exílio, os profetas acabam por pactuar com a nova ordem construída
em torno do Templo e por isso caminham para a falência e o descrédito. Além de o
poder sacerdotal se solidificar no Templo, a Lei escrita (Torá) passa a ser interpretada
por especialistas, tornando o discurso profético desnecessário e perigoso. No seu lugar
desenvolve-se o discurso apocalíptico, quase uma espécie de profecia escrita.
3.1. Um dos mais clássicos exemplos de atuação profética é o do camponês
Amós que, progressivamente, se inquieta com a situação reinante e parte para o
protesto. As chamadas "visões simbólicas" de seu livro apresentam esta maturação
vocacional do pastor de Técua.
3.2. A época em que atuou Amós é a da aparente prosperidade criada pelo
governo de Jeroboão II em Israel. O Estado alargou suas fronteiras geográficas,
políticas e comerciais e aprofundou a divisão campo/cidade, típica do regime tributário.
O javismo foi sendo abandonado, outros deuses e outros valores foram sendo
incorporados e desenvolvidos, legitimando a exploração dos camponeses.
3.3. Pastor, vaqueiro e cultivador de sicômoros, homem rude e simples, Amós
era de Técua, cidade de Judá, mas por alguma razão acabou indo pregar em Betel no
reino do norte e, talvez, em Samaria, a capital, até ser expulso do santuário por
contrariar os interesses reais. Deve ter atuado por volta de 760 a.C.
3.4. Dirigindo-se aos seus ouvintes do norte, Amós acusa-os de espoliar o
pequeno camponês, que está perdendo sua herança e sua liberdade. Olhando ao redor
de Israel, Amós vê uma série de crimes e desmandos cometidos por reinos e cidades
vizinhas. Mas vê em Israel um processo mais acelerado de despotismo e o denuncia
com todas as letras.
102
3.5. O seu livro passou por repetidos processos redacionais, feitos por seus
discípulos e por teólogos deuteronomistas posteriores à sua época. A redação definitiva
do livro tomou forma só após o exílio babilônico.
3.6. O núcleo do livro de Amós é composto por uma série de palavras e ameaças
contra Israel. O profeta denuncia o luxo dos ricos, sua costumeira prática da injustiça
contra os pobres, o falso culto prestado a Iahweh e a falsa segurança religiosa que seus
ouvintes imaginam possuir. Conclama os israelitas à prática do bem para que possam
salvar um resto do país que caminha rapidamente para a ruína.
4.1. O profeta Oseias, quase contemporâneo de Amós, parte de uma aparente
experiência pessoal - um casamento desastrado - para denunciar a ruptura da fidelidade
israelita à aliança javista e a procura dos ídolos que se generaliza no Israel de sua
época.
4.2. Vivendo numa época de grande instabilidade política, Oseias assiste durante
sua vida a sucessivos golpes de Estado e à crescente e desastrosa interferência assíria
na região, que acaba por destruir Samaria em 722 a.C.
4.3. Observando os acontecimentos de sua época, Oseias aponta a falta de
apego à ética javista como problema central e definitivo em Israel. Os responsáveis pela
desagregação social, membros da elite dominante, são devidamente denunciados por
Oseias.
4.4. Natural do norte, Oseias parece que atuou em Samaria de 755 a 725 a.C.
Apesar da crítica social e da veemente condenação da idolatria, Oseias vislumbra uma
possibilidade de saída da crise, pois crê na misericórdia de Iahweh que não abandonará
o seu povo. Neste ponto, Oseias pecou pelo otimismo exagerado, porque o reino do
norte conheceu seu fim definitivo poucos anos após o término de sua pregação.
4.5. Oseias apela, no final de seu livro, de várias maneiras e com imagens
poéticas de grande sensibilidade, à volta ao javismo, para que Efraim possa se salvar.
5.1. Isaías de Jerusalém é contemporâneo de Oseias e de Miqueias. Sua
pregação obteve tamanha fama que seu livro foi sendo aumentado pelo acréscimo de
oráculos de outros profetas do exílio e do pós-exílio, transformando-o na mais clássica
das obras proféticas. Entretanto, apenas cerca de 20 capítulos, de um total de 66,
pertencem ao profeta Isaías, que atuou entre 740 e 701 a.C. Nos primeiros anos de sua
atuação, Isaías denuncia o afastamento do javismo que leva Judá à idolatria, à soberba
e ao despotismo dos grandes que avançam sobre a herança dos pobres. Comparando o
seu país a uma vinha que não produziu uvas boas, em clássico e charmoso poema,
Isaías percebe o risco que corre o seu povo se não se converter a Iahweh.
5.2. Isaías foi um observador privilegiado dos conflitos gerados na região pela
intervenção assíria. Durante o governo de Acaz, quando se desencadeia a guerra siroefraimita, Isaías faz constantes apelos ao jovem rei para que confie mais em Iahweh e
menos nas perigosas alianças com a potência hegemônica da região. Isaías vê uma
saída no futuro rei, o menino Ezequias, que poderá reconduzir Judá aos caminhos da
solidariedade javista.
5.3. Quando assume o governo, Ezequias, de fato, promove uma reforma
bastante interessante. Mas comete o erro de se levantar contra o poderio assírio de
Senaquerib, que arrasa o país em 701 a.C. e, por pouco, não toma Jerusalém.
103
Engajado em todo este processo, nesta época Isaías denuncia a falsa confiança de
Jerusalém nas alianças com o Egito e na esperada derrota assíria. Isaías percebe que
Judá fracassará, como de fato fracassou, transformando-se num joguete de grandes
potências e escusos interesses.
5.4. Muitos oráculos do livro, mesmo dentro dos 39 primeiros capítulos,
pertencem a uma releitura pós-exílica de Isaías. Vários capítulos desta releitura
apresentam forte coloração apocalíptica, devendo ser datados aí pelos anos 400 a.C.
5.5. Talvez Isaías tenha conhecido a pregação de Amós, tal sua semelhança
com o pastor de Técua no que toca à questão social. Mas Isaías crê no futuro de
Jerusalém, pois Iahweh garantiu a Davi um poder eterno. Iahweh está comprometido
com a cidade e salvará o seu povo, conduzindo-o a um reino de paz onde, um dia, não
haverá mais opressão.
6.1. Na mesma época em que Isaías pregava em Jerusalém surgiu ali outro
importante profeta, originário de Morasti-Gat, situada na região limítrofe com os filisteus.
O seu livro, de sete capítulos, parece ser um debate constante com falsos profetas que
discordam de suas severas palavras de julgamento para Judá.
6.2. Miqueias, na sua franca linguagem camponesa, denuncia duramente as
autoridades de Jerusalém como responsáveis pela crise imensa porque passa o país, já
que não existe a mínima preocupação de exercer a justiça e respeitar o direito do pobre
que é, na sua expressão, colocado na panela e cozinhado pelos poderosos de turno.
Daí a discussão com seus adversários que, a serviço do poder, desmentem o profeta
morastita e procuram constantemente reafirmar que não há razão para preocupação,
pois tudo corre bem. Miqueias faz verdadeira cruzada contra esta "teologia da opressão".
6.3. Resumindo o pensamento profético de sua época, Miqueias ataca o falso
discurso javista celebrado no culto faustoso e exige a prática do direito e da
solidariedade javista como o único caminho que poderá salvar o seu povo e o seu país.
CRONOLOGIA DO SÉCULO VIII A.C.
104
797-782
796-767
753-745
782/1-753
ca. 760
767-739
755-725
753 (6 meses)
753/2 (1 mês)
753/2-742
745-727
742/1-740
740/39-731
740-701
739--734
734/3-716
734-733
727-701
731-722
726-722
722
721-705
716/15-699/98
716/15
711
705-681
701
VOCABULÁRIO
: Joás, rei de Israel
: Amasias, rei de Judá
: enfraquecimento da Assíria
: Jeroboão II, rei de Israel
: o profeta Amós
: Ozias, rei de Judá
: o profeta Oseias
: Zacarias, rei de Israel
: Salum, rei de Israel
: Menahem, rei de Israel
: Tiglat-Pileser III, rei da Assíria
: Pecahia, rei de Israel
: Pecah, rei de Israel
: o profeta Isaías
: Joatão, rei de Judá
: Acaz, rei de Judá
: guerra siro-efraimita
: o profeta Miqueias
: Oseias, rei de Israel
: Salmanasar V, rei da Assíria
: tomada de Samaria pelos assírios
: Sargão II, rei da Assíria
: Ezequias, rei de Judá
: reforma de Ezequias
: Sargão II toma Azoto
: Senaquerib, rei da Assíria
: invasão de Judá por Senaquerib
105
Aliança
Berîth, traduzido por "aliança", é uma relação de solidariedade que se estabelece
entre duas pessoas, dois grupos ou entre homens e divindades.
Uma berîth supõe obrigações e sua observância leva ao bem-estar, à paz, à
felicidade (shalôm). A violação das normas da berîth implica em penalidades
específicas, que pode ser até a destruição do povo que as descumpriu.
Assim vê Israel a sua relação com Iahweh. A aliança Iahweh-Israel garante ao
povo paz e prosperidade na terra em que habita. Mas exige um comportamento de
justiça, direito e fidelidade. A violação destas normas javistas pode conduzir Israel à
ruína, perda da terra e dispersão do povo.
Os profetas abordam constantemente esta relação, exigindo a prática da
solidariedade e ameaçando com a punição de Iahweh os responsáveis pelos
descaminhos do povo de Israel.
Amon
Amon, em hebraico 'ammôn ou bhenê 'ammôn (= filhos de Amon), é uma tribo
aramaica que se estabeleceu na Transjordânia, na região superior do rio Jaboc, aí pelo
século XIII a.C. Sua capital era Rabá-Amon, a atual Amã, capital da Jordânia. Os limites
de seu território não são bem definidos e Amon foi o mais fraco dos reinos
transjordânicos.
Segundo Gn 19,30-38, os amonitas eram descendentes de um certo Ben-Ami,
filho de Ló, tradição que atesta sua origem aramaica.
Cultuavam os amonitas o deus Moloc (ou Melek), a quem se sacrificavam
crianças. Amon esteve frequentemente submetido a Israel, de quem sempre foi inimigo.
Nos profetas, Amon e mencionado em Am 1,13-15; Sf 2,8-11; Jr 9,25; 49,1-6; Ez
21,33-37; 25,1-7 etc. Em todas estas passagens Amon é ameaçado pelos profetas com
a punição exercida por Iahweh.
Apocalíptica
O termo vem do grego apocalýptein, que significa "revelar", "desvendar". A
apocalíptica é um gênero literário e uma corrente de pensamento que floresceu entre os
judeus durante uns três ou quatro séculos, a partir do século II a.C.
A apocalíptica é filha da profecia e, tal como a mãe, é extremamente combativa.
Surgiu como uma reação judaica típica ao influente racionalismo grego que se
espalhava na Palestina durante o domínio selêucida. Sua maior efervescência se dá nos
momentos das graves crises enfrentadas pelos judeus a partir da intervenção selêucida,
ou seja: durante a revolta dos Macabeus ( séc. II a.C.), a partir da intervenção romana
(séc. I a.C.) e durante as rebeliões judaicas contra Roma (séculos I e II d.C.).
106
Os grupos apocalípticos acreditavam serem eles os detentores de uma
"revelação" e de uma "sabedoria" divina especial sobre os mistérios da história, o
cosmos, o mundo celeste e o destino dos indivíduos no fim dos tempos, ocultada à
razão humana.
O livro de Daniel, escrito em 164 a.C., é uma das mais antigas obras
apocalípticas que conhecemos. A maior parte da literatura apocalíptica é, hoje,
classificada como apócrifa.
Aram
Os arameus constituem um povo semita nômade que a partir do deserto siroarábico invadiu a Alta Mesopotâmia e a Síria, talvez por volta do século XII a.C., ou
mesmo antes. Conforme Dt 26,5 o próprio Jacó era um arameu.
Os arameus nunca formaram uma unidade política, sendo a Síria sede de pelo
menos cinco reinos arameus, segundo o AT. O reino de Damasco era pequeno, mas
depois que Davi conquistou todos os outros, Damasco se impôs como principal,
dominando todo o território sírio. Esteve frequentemente em conflito com Israel, sendo
aniquilado pelos assírios um pouco antes de Israel do norte. A partir do domínio persa a
língua aramaica tornou-se dominante em toda a região siro-palestina, sendo falada
também pelos judeus pós-exílicos.
Am 1,3-5 e Is 8,1-4;17,1-3, entre outros textos proféticos, referem-se a
Damasco, ameaçando-a violentamente.
Assíria
A Assíria, em hebraico 'ashshûr, situava-se na Alta Mesopotâmia. Assur é também o nome de um deus nacional e de uma de suas capitais (outra famosa é Nínive).
Os assírios são semitas do noroeste, mesclados, porém, com hurritas e acádios.
Destes últimos os assírios herdaram a língua, a cultura e a religião.
Embora sua história possa ser acompanhada desde o século XX a.C., somente a
partir de 1100 a.C. os assírios conseguiram sua independência. A partir desta época
eles construíram um poderoso império, fortemente militarizado, que dominou, em várias
ocasiões, a Mesopotâmia, a Síria e a Palestina.
O reino de Israel foi destruído pelos assírios em 722 a.C. e o reino de Judá viveu
mais de um século sob sua dependência.
A Assíria é citada pelos profetas Isaías, Oseias, Miqueias, Sofonias, Jeremias,
Naum e Ezequiel. É vista como o grande inimigo, ameaça constante e instrumento de
Iahweh para castigar Israel.
Baal
107
Baal significa "senhor" e é o nome dado na região siro-palestina a várias
divindades da natureza (no plural, baalim). Baal é também chamado de Hadad, "filho de
Dagan", "Príncipe, Senhor da Terra", "Poderoso" etc. Baal é o deus da fertilidade e da
guerra.
Filho de El, segundo os mitos da região, Baal morre e renasce a cada ano,
simbolizando a morte e o renascimento cíclico da vegetação, garantido assim as
colheitas.
Os camponeses cananeus e israelitas eram fortemente apegados ao culto de
Baal e de outras divindades da fertilidade tais como Aserá e Astarté. Nas festas
celebrava-se o mito do deus, com as devidas encenações. E aí representavam
importante papel as práticas sexuais, associadas à fertilidade, função exercida pelas
hieródulas ou "prostitutas sagradas".
Os profetas combatem o baalismo sistematicamente. Especialmente sua
instrumentalização por parte dos governantes, que usavam a devoção popular para
controlar e explorar os camponeses israelitas.
Babilônia
O território babilônico ocupava a Baixa Mesopotâmia e sua história começa no III
milênio a.C. Os babilônios são, no começo, os acádios depois de absorverem os
sumérios. Sua capital era Babel (= Babilônia), nome que significa "porta de deus".
Da época do predomínio amorita, semitas do oeste, temos o rei Hammurabi
(1792-1750 a.C.), do qual sobreviveu o célebre Código de Hammurabi, coletânea de leis
através da qual podemos conhecer a estrutura social da época.
O reino neobabilônico (626-538 a.C.), controlado pelos caldeus, desenvolveu seu
domínio sobre boa parte do Antigo Oriente Médio. Nabucodonosor, célebre rei, conquistou Jerusalém e a destruiu, exilando os judeus em 586 a.C. Em 538 a.C. Ciro conquistou
a cidade de Babel, transformando Babilônia em província persa.
Os profetas Jeremias, Ezequiel e Dêutero-Isaías (Is 40-55) viveram na época do
confronto de Judá com a Babilônia e consequente exílio. Babilônia é repetidamente
mencionada por eles.
Betel
Betel, em hebraico bêt-'el = "casa de Deus", é o nome de antigo e célebre
santuário cananeu, depois israelita. Situado no território de Efraim, segundo Js 16,2, ou
Benjamim, segundo Js 18,22, Betel ficava à beira da estrada que ia de Jerusalém a
Siquém, cerca de 20 km ao norte da capital judaíta.
A cidade de Betel chamava-se Luza, mas os israelitas, ao se apropriarem da
região, passaram a chamá-la com o nome do santuário. Betel e seu santuário estão
ligados às tradições sobre Abraão (Gn 12,8;13,3-4) e, especialmente, Jacó (Gn 28,1022).
108
Após a fundação do reino de Israel, em 931 a.C., Betel foi transformado em
santuário nacional pelo rei Jeroboão I, que aí instalou a imagem de um touro, pedestal
para Iahweh, diz o deuteronomista (1Rs 12,26-33).
O profeta Amós pregou em Betel, de onde foi expulso por ordem real, na época
de Jeroboão II (782/1-753 a.C.).
Corveia
Com o termo corveia, de origem francesa, tomado de empréstimo ao mundo
feudal europeu, designa-se o trabalho forçado grátis para o Estado, normalmente
utilizado em todo o Antigo Oriente Médio. Em hebraico usam-se os termos siblâh, sebhel
ou mas (= trabalho forçado).
A corveia distingue-se da escravidão: além de ser feita para um soberano ou
Estado e não para particulares, a corveia é um serviço temporário, normalmente
executado por pessoas livres no período da entressafra ou segundo a necessidade. O
que não exclui do regime de corveia os prisioneiros de guerra e os povos dominados
pelo país em questão.
A "escravidão" dos hebreus no Egito é um típica corveia (Ex 1). Ao se libertar do
poder opressor do faraó, Israel não deveria nunca mais se submeter à corveia. Mas,
desde Salomão, segundo o deuteronomista, o trabalho compulsório foi organizado em
Israel para a construção de obras públicas (1Rs 5,27;11,28). A instalação do regime de
corvéia foi uma das causas da separação do reino do norte após a morte de Salomão,
sempre segundo o deuteronomista. Mas os reis seguintes continuaram a usá-la.
O profeta Jeremias criticou duramente o rei Joaquim por fazer "o seu próximo
trabalhar de graça" (Jr 22,13). Dt 24,14-15 exige o pagamento diário do salário do
pobre, "seja ele um dos teus irmãos ou um estrangeiro que mora em tua terra, em tua
cidade".
Culto
Culto, em hebraico 'abhodhâh (= serviço), é a forma tradicional segundo a qual o
crente procura relacionar-se com a divindade através de rituais, em geral, pré-fixados. O
culto normalmente é uma expressão comunitária e possui seus agentes especializados,
os sacerdotes; além de tender a se estabelecer em locais específicos dedicados à
divindade, os templos.
O culto israelita é uma celebração dos acontecimentos mais importantes
ocorridos na vida do povo, vistos, sob a ótica da fé, como as obras de Iahweh em
benefício de Israel. Segundo o conceito da aliança Deus-povo, o culto só tem sentido
quando é, de fato, a celebração daquilo que é vivido no cotidiano e ordenado pela ética
javista.
É difícil descrever o culto em Israel, porque houve uma evolução gradual de suas
formas, enquanto que o AT descreve apenas a situação já mais avançada do pós-exílio.
109
É preciso chamar a atenção para as três grandes festas anuais ou peregrinações
(hag), que segundo a legislação sacerdotal (Lv 23) são:
 a festa da Páscoa, a ser celebrada no dia 14 de Nisan (março/abril); e a festa dos
Ázimos, a partir de 15 de Nisan, com uma semana de duração
 a festa das Semanas, celebrada 50 dias após a festa dos Ázimos
 a festa dos Tabernáculos, que começava no dia 15 de Tishri (set./out.) com uma
duração de sete dias, terminando com um dia solene de descanso.
No pós-exílio são estabelecidas também as festas do Yom Kippur (Dia da
Expiação), celebrada no dia 10 de Tishri; a festa da Hannuka ou Dedicação, celebrada a
partir de 14 de dezembro de 164 a.C. para comemorar a purificação do Templo na
época dos Macabeus; e a festa dos Purim (= sortes), celebrada nos dias 14 e 15 de
Adar (fev./março).
Há também o sábado, dia de repouso e oração; a lua nova, o ano novo etc.
Os sacrifícios são de diversos tipos e incluem produtos do rebanho (animais) e
do solo (vegetais). Lv 1-7 descreve o holocausto, o sacrifício de comunhão, os
sacrifícios expiatórios, as oferendas vegetais, os pães da presença e as oferendas de
perfumes.
Embora os profetas não fossem contra o culto em si, a maioria deles criticou o
uso mistificado que dele se fazia. Dizem os profetas (Am 5,21-27; Is 1,10-20; Mq 6,1-8;
Jr 7,1-15) que de nada resolve a prática ritual dos sacrifícios quando não existe vivência
real da ética javista. O culto, por si mesmo, não garante a relação do povo com Iahweh,
mas sim a observância das normas da aliança. No lugar do culto os profetas exigem a
prática do direito, da justiça, da solidariedade.
Além do que, as grandes festas e o fausto e brilho do culto eram utilizados como
eficazes narcóticos pelos governantes para desviar a atenção do povo da trágica
situação em que o despotismo e a corrupção tinham jogado o país. Os profetas
consideram criminosa tal atitude cultual.
Praticavam-se em Israel também os cultos da fertilidade, em "lugares altos", aos
deuses da natureza, tais como Baal e Astarté. Quando era forte a influência estrangeira,
costumava difundir-se o culto aos astros, rituais típicos da Assíria, Babilônia e Egito.
Deuteronômio
O Deuteronômio (do grego deuteronómion, "segunda lei") é uma obra composta
em várias fases. Esta é uma das reconstruções possíveis de sua trajetória:
1. O código original (Dt 12-26) foi escrito no norte de Israel, na primeira metade do
século VIII a.C., nos círculos fiéis ao javismo, provavelmente os levitas (os profetas
estavam também ligados ao projeto javista). Ou talvez o código tenha sido elaborado
em Judá, na época de Ezequias, pelos levitas fugidos do norte com a queda de
Samaria em 722 a.C.
2. Após chegar a Jerusalém, o Dt sofreu uma primeira revisão, na época de Ezequias.
A parte jurídica foi revestida de uma roupagem parenética e exortativa e
acrescentou-se-lhe uma moldura narrativa (Dt 4,44-9,6;10,12-11,32;27,9-10;28,1-
110
68). Com o fracasso da política reformista de Ezequias, o livro foi guardado no
Templo e "esquecido".
3. "Encontrado" sob Josias, em 622 a.C., o Dt foi elevado à categoria de lei oficial do
Estado. Sofreu nova revisão, reforçando o seu estilo parenético e inserindo o tom
belicista, típico dos levitas que pregavam uma guerra santa para reconstituir o
exército desfalcado com a derrota de 701 a.C.
4. Na época do exílio, o livro é novamente reformulado pelos redatores
deuteronomistas, que lhe acrescentam Dt 1,1-4,43; 9,7-10,11; 28,69; 29,1-30,20. É
então que o livro passa a ser considerado como um discurso de despedida de
Moisés.
5. No pós-exílio o livro ainda sofreu acréscimos, tais como Dt 27,1-8; 31,1-13;32,1-43
etc
A ideia mestra que rege o Dt é a de eleição (bahar), exigindo a comunhão de
Israel com Iahweh como centro da vida nacional.
Direito
Mishpât, normalmente traduzido por "direito", vem da raiz shâpat, que significa
"governar" e "julgar". Mishpât designa o "julgamento", tanto no sentido de "veredicto"
quanto no sentido de "processo". Mishpât é o conjunto do direito.
Mishpât ultrapassou este uso jurídico, sendo utilizado no sentido religioso e ético.
Iahweh é visto como legislador e como parte legal, comprometido pela aliança com o
seu povo. Iahweh está atento às relações sociais de seu povo e também o guia na
guerra contra outros povos. Como chefe do povo, Iahweh é também o seu juiz.
Daí que mishpât não pode ser compreendido segundo a categoria romana de lei.
O termo indica relação. Ele regula as relações de uma sociedade, sendo uma reta
ordem que se deve procurar, porque existe uma aliança Iahweh-Israel com
determinações concretas.
Os profetas conclamam Israel a procurar o direito. E acusam as autoridades de
desviar o povo e destruir tanto o direito como a justiça (tsedhâqâh), termo que vem
muitas vezes ligado a mishpât. Parece que nos profetas o uso de mishpât é mais
frequente para se referir à prática da justiça nos tribunais.
Edom
Edom é o país ocupado por um povo semita do deserto siro-arábico aí pelo
século XIII a.C. O país está localizado na Transjordânia, ao sul do mar Morto, em um
planalto de 1600 metros de altitude, 110 km de comprimento e 25 km de largura. Seu
limite ao norte é o rio Zared, ao sul o golfo de Áqaba. Sua capital foi Sela ou Bosra.
Segundo a tradição bíblica, os edomitas eram irmãos dos israelitas, pois Esaú,
irmão de Jacó, é identificado com Edom (Gn 36). A língua edomita era, sem dúvida,
semelhante ao hebraico e ao moabita.
111
Edom esteve frequentemente em conflito com Israel, que ambicionava as suas
rotas para chegar ao mar e às ricas minas da região.
Nas épocas grega e romana os edomitas são conhecidos como idumeus e
Herodes Magno, um idumeu, governará Israel durante 34 anos.
Os profetas fazem violentas ameaças a Edom, como Am 1,11-12; Jr 49,7-22; Ez
25,12-14 e outros.
Egito
Egito vem do grego Aigyptos, da forma egípcia ht-k3-pth (= casa de Ptah), um
dos nomes da cidade de Mênfis. Os egípcios chamavam o seu país de km.t (leia-se
khemi), que significa "terra negra", por causa da cor do solo fertilizado pelo Nilo. A Bíblia
o chama de mitsrayim a maior parte das vezes.
Berço de uma grande civilização, uma das mais importantes da antiguidade, sua
ligação com Israel é evidente. Desde a sujeição dos hebreus ao trabalho forçado até a
influência administrativa e cultural durante a monarquia e as várias alianças e conflitos
ao longo da história. Cumpre lembrar que a região de Canaã, antes da formação de
Israel, era tradicionalmente dependente do Egito.
O Egito vivia do Nilo. Seu vale fértil tem uma largura de 5 a 25 km, sendo que as
águas do rio sobem de 5 a 7 metros na época das cheias. O Nilo percorre uns 2500 km
de território egípcio.
A história do Egito é tradicionalmente dividida em dinastias, sendo que a primeira
dinastia situa-se no século XXX a.C., quando o primeiro faraó, um certo Narmer, unificou
o Alto e o Baixo Egito. Sua primeira capital foi Mênfis.
Estrangeiro
Há três categorias de estrangeiros no AT:
 o zâr é o estranho, o estrangeiro, o de outra família ou povo e, com frequência, o
inimigo
 o nokhrî é o estrangeiro em trânsito, residente temporário em Israel
 o ger é o estrangeiro residente, é aquele que se estabeleceu no país
definitivamente. São antigos habitantes não assimilados, imigrantes ou refugiados.
Podem participar da comunidade religiosa desde que cumpram os preceitos da lei
israelita.
O Código da Aliança, em Ex 22,20;23,9, estabelece que o ger não deve ser
oprimido, até mesmo porque Israel foi ger no Egito, fato que não deve ser esquecido. O
Código Deuteronômico (Dt 14,28-29;24,14-22) reforça a proteção ao estrangeiro
residente, categoria que aumentou muito com a chegada dos refugiados do reino do
norte após 722 a.C.
112
O estrangeiro (ger) necessita de proteção porque não possui todos os direitos
civis. Especialmente na questão da propriedade da terra, que é sempre israelita. Daí
que ele se vê obrigado a alugar a sua força de trabalho. Está na mesma situação do
órfão e da viúva.
Profetas como Jr 7,6;22,3; Ez 22,7.29; Zc 7,10; Ml 3,5 defendem o direito do
estrangeiro, sempre colocado ao lado do órfão e da viúva.
Exílio
Com o termo "exílio", em hebraico gôlâh (= deportação, desterro, dispersão), em
grego diasporá, indica-se o costume inaugurado pelos assírios de transferir a população
vencida de seu território para outro, estrangeiro, como meio de impedir a sua
reorganização após a retirada dos exércitos vencedores.
Em 722 a.C. os assírios exilaram os israelitas do norte. Porém, o exílio mais
famoso, o exílio típico, foi o de Judá, quando, em 597 a.C. e em 586 a.C.,
Nabucodonosor deportou cerca de 20 mil judeus para a Babilônia.
Neste exílio babilônico, que durou 48 anos, os judeus em parte se adaptaram à
nova realidade e nunca mais voltaram; em parte mantiveram sua identidade e sua fé
javista, retornando ao país na época persa e reconstruindo Jerusalém.
Lá no exílio babilônico apareceram dois importantes profetas, que ajudaram o
povo a superar a crise da derrota e a se reorganizar para voltar à terra. Ezequiel, um
deportado de 597 a.C.; e o Dêutero-Isaías (Is 40-55), de quem nada sabemos, a não ser
que é um grande profeta.
Falsos profetas
Ao longo do AT aparecem muitos profetas que chamamos de "falsos", em
oposição à minoria de profetas reconhecidos como "autênticos" ou "verdadeiros".
Porém, as categorias de verdade/falsidade não aparecem nos textos bíblicos. Os
profetas que chamamos de "falsos" estavam, em geral, ligados à corte ou ao Templo e
defendiam o sistema explorador do Estado tributário.
Estes profetas profetizam por dinheiro (Mq 3,11), são mentirosos (Jr 5,31;14,14),
anunciam o que lhes convém (Mq 3,5), fortalecem as mãos dos perversos (Jr 23,14) etc.
Assim são eles avaliados, especialmente por Jeremias, Miqueias e Ezequiel.
O critério estabelecido por Dt 18,21-22 para se distinguir o verdadeiro do falso
profeta (a realização da profecia) é insuficiente. O tempo e a história resolveram o
problema, mas para os seus contemporâneos não era fácil decidir quem estava com a
razão. Todos, verdadeiros e falsos, falavam em nome de Iahweh. A maior ou menor
coerência histórico-social dos profetas é que acabou decidindo sobre o valor de sua
profecia.
113
Filisteus
Filisteus, em hebraico pelishtîm, são indo-europeus, parte dos "povos do mar"
que, expulsos da região da Grécia pela invasão dórica no século XII a.C., tentaram
invadir o Egito, mas foram vencidos pelo faraó Ramsés III.
Os filisteus, originários de Caftor (Creta?), estabeleceram-se, então, numa faixa
costeira no sul da Palestina, formando uma confederação de cinco cidades: Gaza,
Ascalon, Azoto, Gat e Acaron. A planície filisteia tem de 7 a 15 km de largura, onde
eram cultivados o trigo e a oliveira. Por ali passava a estrada que ia do Egito para a
Síria.
Portadores de armas de ferro e, talvez, premidos pela chegada de novos
imigrantes, os filisteus quase conseguiram o domínio do território de Israel na época prémonárquica. Foram vencidos, segundo a Bíblia, por Davi.
Na época grega foram rapidamente helenizados e, mais tarde, incorporados ao
império romano. A Palestina deve a eles o seu nome.
Os profetas falam várias vezes dos filisteus, em geral ameaçando-os, como Am
1,6-8 e Jr 47,1-7.
Gêneros proféticos
Gênero literário é a forma concreta de uma comunicação oral ou escrita que
estabelece uma relação entre a realidade e a expressão dessa realidade.
É de máxima importância, para a correta interpretação de um texto, que o leitor
saiba em que forma literária ele lhe fala. Só assim se pode saber como ele lhe comunica
a realidade.
Na Bíblia, verdadeira biblioteca, são muitos os gêneros literários. É preciso
descobri-los, descrevê-los, determinar a intenção de sua linguagem e seu contexto vital
(em alemão, seu Sitz im Leben).
Os profetas, homens da palavra, usam inúmeros gêneros literários para transmitir
a sua mensagem. Como falam em nome de Iahweh, o gênero profético mais típico é o
oráculo, palavra que indica um pronunciamento de Iahweh feito a Israel através da boca
do profeta.
Mas o oráculo profético pode ser de ameaça, quando anuncia uma desgraça aos
seus ouvintes (Am 7,16-17); pode ser de salvação, quando prega uma saída para a
crise vivida (Is 8,23b-9,6); pode ser de exortação, quando o profeta pede aos ouvintes
para tomarem uma atitude (Is 1,10-20) etc.
Os profetas usam também os gêneros literários da visão (Am 7,1-9), da vocação
(Jr 1,4-19), da ação simbólica (Ez 4,1-17), além de inúmeros cânticos (de amor, de
escárnio, fúnebre), hinos, processos etc.
Jerusalém
114
Jerusalém, em hebraico yerûshâlaim, é nome derivado do cananeu urusalim (=
cidade do deus Salém). Situada a 760 metros acima do nível do Mediterrâneo, a 52 km
deste mar e a 22 km do Jordão, a cidade foi fundada por grupos cananeus por volta do
ano 3000 a.C.
Conquistada por Davi aos jebuseus no início de seu governo, transformou-se na
capital de seu reino e, após a ruptura de 931 a.C., era a capital davídica de Judá.
Foi destruída pelo babilônio Nabucodonosor em 586 a.C., reconstruída no pósexílio, destruída pelo general romano Tito em 70 d.C., reconstruída por Adriano e assim
por diante.
Cidade santa para judeus, cristãos e muçulmanos, Jerusalém é ainda hoje
disputada por judeus e palestinos.
A maioria dos profetas viveu e atuou em Jerusalém e, obviamente, dela eles
falam constantemente. Citada às vezes como Sião, nome de uma de suas colinas,
Jerusalém aparece nos profetas como a morada de Iahweh, a cidade eterna de Davi,
esperança e glória do povo de Israel; mas também como a sede de um governo corrupto
e despótico que explora os camponeses e engana o povo com faustosos sacrifícios e
grandes festas no seu Templo.
Justiça
Tsedhâqâh ou tsedheq, normalmente traduzido por "justiça", vem de tsâdhaq que
significa "ser justificado", "declarar justificado", "fazer justiça", "justificar".
Tsedhâqâh/tsedheq designa a justiça que se exerce no tribunal, mas também a
atitude interna de justiça que torna possível o exercício do mishpât (direito).
Igualmente relacionada com a aliança, a justiça é atitude característica de
Iahweh na relação com o seu povo e, em contrapartida, atitude exigida de seu povo nas
suas relações sociais.
Os profetas clamam por justiça a todo momento, associando muitas vezes o
conceito de tsedhâqâh/tsedheq ao de mishpât, como em Am 5,7.24;6,12; Is 5,7; Jr
22,3.15; Ez 18,5.19.21.27 etc.
Levita
A origem dos levitas é controvertida, do mesmo modo que a etimologia da
palavra hebraica levî, que pode ser um nome próprio (Levi: Gn 29,34) como também
um ofício (os levitas: Dt 17,9.18).
De algum modo, os levitas tornaram-se sacerdotes em Israel. E, pelo menos a
partir de determinado período, eram distintos dos sacerdotes de Jerusalém (Ez 44,1031). É possível que fossem sacerdotes dos santuários espalhados pelo reino do norte.
Depois de 722 a.C. agruparam-se em Jerusalém e após a reforma de Josias passaram
a exercer funções secundárias no Templo.
115
Aqui o que nos interessa é que foram os levitas os prováveis autores do
Deuteronômio.
E, ao que tudo indica, eles estavam extremamente próximos dos profetas, pois
seus projetos de sociedade são muito semelhantes. Ambos pregam a restauração dos
valores javistas, reforçam a ideia de aliança e lutam contra a desintegração social
reinante.
Moab
Moab está situado na Transjordânia entre os vales dos rios Zared e Arnon,
porém levava frequentemente sua fronteira ao norte do Arnon. Seu território principal
está situado em um planalto de 1200 metros de altitude.
Os moabitas são semitas e parentes dos israelitas. Sua língua é muito parecida
com o hebraico. A tradição bíblica supõe o parentesco dos moabitas com os israelitas,
através do caso contado em Gn 19,30-38. Os moabitas ocuparam o território no século
XIII a.C.
Antes de Israel adotar a monarquia como forma de governo, Moab já o fizera.
Seu deus principal era Kemosh, ao qual se ofereciam, às vezes, sacrifícios humanos
(2Rs 3,27).
Moab entrou em conflito com Israel várias vezes. Dominado por Davi, Moab
libertou-se após 931 a.C. Por isso os profetas fazem duras ameaças aos moabitas,
como em Am 2,1-3 e Jr 48,1-47.
Pós-exílio
Em 538 a.C. Ciro, o persa, concedeu a anistia aos judaítas exilados pela
Babilônia. Durante os anos seguintes eles foram voltando para a terra, conseguindo, em
515 a.C., inaugurar o novo Templo, comandados por Zorobabel, e no século seguinte
reconstruir Jerusalém na época de Esdras e Neemias.
Reorganizados em Jerusalém e arredores, os judeus acabaram chefiados por um
governo sacerdotal, por sua vez sempre submisso a uma potência estrangeira. Com o
tempo alargaram as fronteiras do país.
O domínio persa durou até 332 a.C. Depois vieram os gregos (332-63 a.C.) e em
seguida os romanos (63 a.C.) Em 70 d.C. os judeus foram derrotados pelos romanos e
Jerusalém destruída.
Cerceados em sua autonomia política, os judeus desenvolveram as estruturas
religiosas e sociais do judaísmo, cujos pilares eram o Templo (sacrifício) e a Sinagoga
(Lei). É uma época de grande produção literária e de muitos conflitos externos e
internos.
Os profetas pós-exílicos ajudaram na reconstrução do país (Ageu, Zacarias 1-8),
criticaram as novas estruturas de opressão que então se criavam (Trito-Isaías) e
116
desenvolveram expectativas apocalípticas (os apocalipses de Isaías, Zacarias 9-14,
Malaquias, Joel).
Sacerdote
O sacerdócio em Israel era hereditário, passava de pai para filho e se mantinha,
portanto, no âmbito de determinadas famílias.
Com o estabelecimento da monarquia e, especialmente, com a construção do
Templo de Jerusalém por Salomão, o Estado passa a controlar cada vez mais a classe
sacerdotal. Os santuários tornaram-se propriedade do Estado e, portanto, os sacerdotes
participavam muito de perto das decisões políticas que o governo tomava.
Como os sacerdotes se calam diante das inúmeras injustiças cometidas contra
os camponeses israelitas, os profetas atacam-nos violentamente.
Por exemplo: Oseias acusa os sacerdotes porque rejeitam os valores do javismo
(Os 4,4-10) e se transformam em assassinos (Os 6,9); Jeremias denuncia sua
colaboração com a injustiça (Jr 8,8-12) e Miqueias aponta a sua ganância (Mq 3,9-12).
Samaria
Samaria, em hebraico shômerôn, talvez "a guardiã", foi a cidade fundada pelo rei
Omri no século IX a.C. para ser a capital do reino de Israel.
Tomada pelos assírios em 722 a.C., Samaria foi repovoada por colonos
estrangeiros, o que levou, mais tarde, à exclusão dos samaritanos da comunidade
judaica por não serem mais de sangue puro israelita.
Foi capital da região sob o domínio persa, helenizada após a conquista grega e
fortificada e restaurada por Herodes Magno, que mudou o seu nome para Sebaste.
Alguns profetas viveram ou passaram por Samaria, como Oseias e Amós. Vale a
pena destacar os oráculos de Amós contra o luxo e a opressão que reinavam em
Samaria (Am 3,9-12;4,1-3) e os oráculos de Oseias contra o golpismo e a idolatria que
ali se praticavam (Os 8,4-7).
Solidariedade
Solidariedade, em hebraico hesedh, é uma relação que se cria entre duas partes
que estabelecem um acordo mútuo, uma aliança (berîth).
É por isso que hesedh pode ser entendida como amor, benevolência,
solidariedade. Pode ser uma relação que acontece entre parentes, amigos, hospedeiros
e hóspedes ou entre dois grupos tribais diferentes que fazem um pacto.
117
Hesedh é também a relação que se estabelece entre Iahweh e Israel a partir da
aliança. É a fidelidade do homem ao pacto, mas é também a benevolência de Deus em
favor de seu povo.
Hesedh aparece nos profetas, às vezes ao lado de mishpât (direito) e de tsedhâqâh (justiça), para expressar a vivência do javismo dentro do ideal da aliança. Como
em Os 2,21;10,12;12,7 ou Jr 9,23;31,3.
Tributo
Em Israel pagava-se um tributo ao santuário. Este tributo é constituído pelo
dízimo (Lv 27,30-33; Dt 14,22-29), que tem várias finalidades, pelas primícias (Dt 26,111) etc.
Pagava-se tributo também à corte para a manutenção das estruturas do Estado,
tais como funcionários, exército, obras públicas etc. 1Sm 8,11-18 descreve a prática
tributária da monarquia israelita.
Quando dominado por potências estrangeiras, Israel pagava-lhes igualmente um
tributo (Esd 4,20; 1Mc 10,29), que variava na forma e na quantidade ao longo do tempo.
O Estado tributário foi alvo dos ataques proféticos que viam o desmando, a
corrupção e a violência serem praticadas pela corte e seus associados. Os camponeses
israelitas eram os maiores prejudicados pelo sistema tributário.
118
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