avoznecess á ria - Ayrton`s Biblical Page
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AIRTON JOSÉ DA SILVA A VOZ NECESSÁRIA Encontro com os profetas do século VIII a.C. BRODOWSKI 2011 2 Este livro foi publicado pela Paulus em 1998: A voz necessária: encontro com os profetas do século VIII a.C. São Paulo: Paulus, 1998, 144 p. - ISBN 8534910634. Em 30 de julho de 2009 recebi o seguinte comunicado da editora Paulus: Comunicamos com a presente que a obra supracitada está com estoque zerado e sairá de nosso catálogo de publicações, retornando os direitos autorais da obra ao AUTOR. Assinado: Zolferino Tonon - Diretor Editorial Multimedial. O texto aqui publicado é o mesmo da edição impressa. Apenas os textos que tratam do contexto histórico, o texto bíblico, as notas de rodapé e a bibliografia foram atualizados. Sobre o autor, confira http://airtonjo.com/ e http://blog.airtonjo.com/ onde há também e-mail para contatos. O texto pode ser baixado e utilizado para fins educacionais e não comerciais. Sua reprodução na Internet é proibida. Copyright © 2011 Airton José da Silva. Todos os direitos reservados. Brodowski, 19 de outubro de 2011 3 Tão estranho é o sonho de um profeta, que parece ser outro a sonhar em seu lugar. (Inspirado em G. BACHELARD, A poética do devaneio). 4 Para Benjamim e Emanuel, companheiros de estudo na Serra da Piedade - MG 5 ÍNDICE APRESENTAÇÃO INTRODUÇÃO 1. A ORIGEM DO MOVIMENTO PROFÉTICO 1.1. A sociedade tribal israelita 1.2. A monarquia tributária israelita 2. O TEOR DO DISCURSO PROFÉTICO 2.1. A denúncia da idolatria 2.2. A função do discurso profético 2.3. Os deslocamentos pós-exílicos 3. EU OUVI OS CLAMORES DE MEU POVO: O PROFETA AMÓS 3.1. As visões simbólicas 3.2. O "milagre" israelita: a época de Amós 3.3. O que sabemos sobre Amós 3.4. Os oráculos contra as nações 3.5. Amós clama por justiça 3.6. Palavras e ameaças contra Israel 4. OSEIAS: O POVO AFASTOU-SE DE IAHWEH 4.1. Exemplificando a infidelidade 4.2. A Assíria vem aí: para Israel é o fim 4.3. Onde está a raiz do mal? 4.4. Oseias exige fidelidade a Iahweh 4.5. Volta, Israel, a Iahweh, teu Deus 5. ISAÍAS: É PRECISO CONFIAR EM IAHWEH 5.1. Na época de Joatão: 739-734 a.C. 5.2. Na época de Acaz: 734/3-716 a.C. 5.3. Na época de Ezequias: 716/15-699/8 a.C. 5.4. As releituras de Isaías 5.5. Um dia não haverá mais opressão 6. MIQUEIAS DENUNCIA A TEOLOGIA DA OPRESSÃO 6.1. O livro e seu autor 6.2. A teofania e suas consequências (1,2-5,14) 6.3. O processo de Iahweh contra seu povo (6,1-7,20) CONCLUSÃO CRONOLOGIA VOCABULÁRIO BIBLIOGRAFIA 6 APRESENTAÇÃO "Com seus passos lentos, enfrentando os ventos quando sopram noutra direção, toda Mãe Igreja pede que tu sejas companheira de libertação" (Santa Mãe Maria, J. A. S.) Esta estrofe de J. Acácio Santana que, sintomaticamente, vem sendo esquecida nos mais conhecidos folhetos litúrgicos, mostra bem a atualidade deste livro do Airton. A falta de mística, ou a força da inércia que faz esquecer a utopia, reforça violentamente a instituição e esta passa a se substituir ao Projeto. Aí desaparece o lugar da Profecia. É quando os ventos "sopram noutra direção". Mas é justamente então que a Profecia se faz indispensável. Os profetas do século VIII a.C., Amós, Oseias, Isaías e Miqueias, são os primeiros dos chamados classicamente de "profetas escritores". São eles que rompem o silêncio imposto pela unanimidade salomônica. Aliás, já dizia o pranteado Stanislaw Ponte-Preta: "Toda unanimidade é burra". Agora Deus começa a falar novamente. O ciclo iniciado por esses quatro, porém, vai terminar no pós-exílio. Então Deus estará novamente reduzido ao silêncio, pois a Lei resolve tudo, e a Profecia terá de buscar refúgio na Apocalíptica. Os profetas não são sociólogos no moderno sentido da palavra. Não cabe a eles apontar a solução cabal para os problemas da sociedade. São a voz de Iahweh, o Deus companheiro, expressando a indignação dos pobres frente à miséria, à exploração e à mistificação que tapeia os pequenos com o discurso religioso. "Quem aguenta ficar calado?" já se perguntava Amós. O feliz leitor encontrará neste livro uma breve e densa análise do fenômeno profético. Que é a Profecia em qualquer lugar e circunstância? Qual a sua postura - aí já estamos falando dos profetas do AT - diante de uma proposta de vida e felicidade e a instituição que, pretendendo encarnar essa proposta, a corrompe e desvirtua totalmente? No nosso caso essa instituição era a Monarquia e a proposta se chamava Aliança de Iahweh. Depois é deixar-se conduzir pelo autor através da vida desses homens extraordinários e dos livros que têm o seu nome. O leitor terá de ter três olhos: um no livro do Airton, outro na Bíblia (ler todas as passagens citadas) e o terceiro na vida pessoal e coletiva, sociopolítico-econômica e eclesial. 7 Leitor, este livro vai ajudá-lo a seguir, na comparação de C. Mesters, os dois fios, a Bíblia e a vida, que irão acender a luz que está dentro de você. E teremos, então, mais um dos indispensáveis profetas de nosso tempo. José Luiz G. do Prado 8 INTRODUÇÃO Se perguntarmos a qualquer pessoa qual é o sentido mais comum da palavra profeta, ela poderá nos dizer que o profeta é um adivinho, aquele que sabe prever o futuro, o que diz a coisa antes de ela acontecer. Por que o profeta pode predizer o futuro? Porque ele tem alguma iluminação ou revelação divina e sobrenatural. Assim o profeta conhece e revela a nós, pobres mortais comuns, os acontecimentos e planos futuros, ocultos e misteriosos. Também vamos encontrar pessoas que poderão definir o profeta como um homem corajoso que denuncia situações injustas. Como aquele que aponta os responsáveis pelas desgraças que atingem os inocentes, vítimas da violência institucional e pessoal. Possivelmente estas mesmas pessoas poderão sublinhar que o profeta é um porta-voz da esperança, ao multiplicar seus apelos e intensificar sua luta por um mundo mais justo e humano. Enfim, as definições irão se multiplicando. Mas poderão, afinal de contas, ser reduzidas a três posições fundamentais: ou o profeta é alguém que prediz o futuro ou é aquela pessoa que possui o conhecimento de coisas ocultas ou é um porta-voz de uma mensagem de denúncia (e anúncio) diante de situações presentes determinadas e conhecidas. Posso adiantar que a etimologia da palavra "profeta", de origem grega (o substantivo profêtês é formado pelo prefixo pro associado ao verbo fêmi = dizer, falar), passada para o português através do latim (propheta), permite as três leituras acima: o profeta é alguém que possui a capacidade de pre-dizer algo, já que o prefixo latino prae, neste caso, significa “antes”: assim entenderam-no os Padres da Igreja, enquanto a cultura grega desconhecia este sentido até o século II d.C. ou o profeta é aquele que manifesta ou pro-fere (do latim pro-ferre) coisas ocultas, noção que vem quase sempre associada à primeira ou, ainda, o profeta é um porta-voz, aquele que pro-clama (em latim o verbo é proclamare) uma mensagem em nome de outrem. Este é o uso corrente do termo nos clássicos gregos, para quem o profeta é um arauto. Isto no grego. Pois acontece que a palavra hebraica original, na Bíblia, que foi traduzida pelo grego profêtês, é nâbhî'. E nâbhî' significa aquele que anuncia ou aquele que proclama a mensagem de outrem. O profeta, no sentido bíblico original, é, portanto, um arauto, um porta voz de alguém que lhe confia uma mensagem, que autoriza sua comunicação e garante sua veracidade. Assim se vê Isaías quando fala de sua vocação: "Em seguida ouvi a voz do Senhor que dizia: ‘Quem hei de enviar? Quem irá por nós?’ ao que respondi: ‘Eis-me aqui, envia-me a mim’. Ele me disse: ‘Vai e dize a este povo...’” (Is 6,8-9a). Jeremias, por sua vez, lembra a confirmação de sua missão: “Mas Iahweh me disse: Não digas: ‘Eu sou ainda uma criança!’ Porque a quem eu te enviar, irás, e o que eu te ordenar, falarás” (Jr 1,7). E Ezequiel reflete sobre sua vocação: “Com efeito, ele [Iahweh] me disse: ‘Filho do homem, vou enviar-te aos israelitas (...) Envio-te a eles para que lhes 9 digas (...) Transmitir-lhes-ás as minhas palavras, quer escutem, quer não escutem... (Ez 2,3a.4b.7a). A referência do profeta ao futuro não provém, entretanto, apenas de confusão etimológica. Tem causas históricas, sociais, ideológicas... Está ligada a um modelo de sociedade e a um padrão de pensamento que imprimem à palavra e à função tal significação. Como herdeiros do pensamento grego, temos uma visão da realidade em que predomina o raciocínio idealista - no sentido filosófico - segundo o qual a verdade não só precede o acontecimento como também está situada no mundo das ideias, caracterizando-se, assim, como supra-temporal e a-histórica. Deste modo, o profeta nada ou quase nada tem a dizer ao seu tempo, já que ele tem que se voltar é para o futuro, onde está o “verdadeiro” mundo real. Entretanto, qual é o problema? Por que esta leitura tradicional do sentido da profecia está sendo questionada? Por que estamos perguntando quem é o profeta, que tipo de discurso ele faz e qual é a sua função? Tudo isto já não está respondido? Obviamente, estas questões nascem não dos profetas e de seus textos, mas de nosso contexto, de nossa situação. Situação que pode ser caracterizada como de urgência, e que pede posicionamento definido e decisivo. Situação que é a de um subcontinente latinoamericano, onde começamos a perceber que somos as vítimas e não os heróis da civilização ocidental. O despertar das consciências para a realidade do mundo subdesenvolvido em que vivemos e sua relação de dependência para com o mundo desenvolvido já acontece há alguns anos, vem da década de sessenta, e tem se solidificado. Esta conscientização é simultânea ao desenvolvimento das ciências humanas, oferecendo-nos novos recursos teóricos para a compreensão das sociedades, da história, das ideologias, das relações econômicas. No atual processo de globalização da economia, as instituições financeiras e os grandes grupos econômicos e políticos dos países mais desenvolvidos implantam uma nova divisão internacional do trabalho, reservando-nos o papel de fornecedores de produtos primários e manufaturados de tecnologias de baixo impacto. É assim que governos de sociedades periféricas como a nossa adotam políticas econômicas neoliberais que excluem grandes massas da população da possibilidade de uma vida digna. Os cristãos que vivem este processo exigem uma nova leitura do texto bíblico, ponto de referência de nossa fé, pois as tradicionais abordagens que eram feitas até então mostraram-se insuficientes para responder a problemas tão prementes. Novos caminhos começam a ser percorridos, novas releituras são sussurradas, novos sentidos são garimpados no velho texto da Escritura. É o cristão diante do conflito, da violência institucionalizada e impune, da negação dos valores evangélicos e humanos mais elementares. Somos nós buscando um sentido para o "ser cristão" aqui e agora. Daí, o novo olhar lançado sobre as fontes de nossa fé, sobre os acontecimentos fundadores contidos na Bíblia. Contudo, o caminho é longo e tortuoso. Ler um texto que tem uma idade de dois a três mil anos não é brincadeira. Por isso pergunto: há ferramentas adequadas para tal serviço? Quais são e como devemos usá-las? 10 Há ferramentas adequadas sim. Os conhecimentos da história, da arqueologia, da antropologia, da linguística e de tantas outras ciências estão hoje à nossa disposição para escavarmos o sentido dos textos bíblicos. Podemos dizer, até com certo orgulho, que conhecemos hoje o mundo bíblico melhor do que aqueles que nele viveram. Assim é que para conseguirmos uma compreensão maior dos profetas de Israel, proponho a seguinte caminhada: 1. No primeiro capítulo, um olhar sobre a origem do movimento profético em Israel, originado das contradições da sociedade monárquica tributária. 2. Em seguida, uma análise do discurso profético. Discurso de teor teológico que denuncia a ruptura da aliança como a idolatria que substitui Iahweh por Baal, pelo Poder e pela Riqueza. O objetivo desta denúncia é o restabelecimento da aliança javista. 3. No terceiro capítulo, faremos uma leitura do conhecido profeta do século VIII a.C., camponês originário de Técua, o pastor e vaqueiro Amós. 4. No quarto capítulo será oferecido um roteiro de leitura de outro profeta do século VIII a.C., Oseias, que atuou em Samaria um pouco depois de Amós e viu a decadência e derrota de seu país, o reino de Israel. 5. No quinto capítulo o assunto é Isaías, o célebre profeta de Jerusalém, o grande poeta e defensor arguto dos marginalizados de Judá. Seus oráculos ficaram tão célebres que seu livro sofreu várias releituras e acréscimos. 6. Contemporâneo de Isaías, o profeta Miqueias, feroz defensor dos oprimidos judaítas, será nosso guia no sexto capítulo. Através da leitura destes quatro profetas do século VIII a.C., poderemos compreender mais claramente a atuação e a mensagem dos profetas em geral. Para terminar, uma cronologia do século VIII a.C. e um vocabulário dos termos mais importantes ajudarão também o interessado na leitura dos profetas. A escolha destes quatro profetas do século VIII a.C. se deve exatamente ao que diz o título: a necessidade de escutarmos sempre estas vozes. Mas, por que apenas estas quatro vozes? Porque tão variado é o mundo profético de Israel - em tempo, circunstâncias e características dos diferentes grupos e indivíduos - que, para exemplificá-lo, dado as limitações do texto, é preciso reduzir o seu campo a apenas poucas vozes. Mas, garantem os séculos que as ouviram: vozes representativas. Agradeço ao meu amigo e colega da FTCR da PUC-Campinas, Luiz Roberto Benedetti, Doutor em Sociologia da Religião pela USP, que, em repetidas discussões e através de sua tese, desanuviou um pouco minhas ideias sobre a função social dos discursos religiosos. E não posso deixar de mencionar Rita de Cassia da Silva, que diligentemente me ajudou na revisão do texto. Os textos bíblicos transcritos são da Bíblia de Jerusalém. Nova edição, revista e a ampliada. São Paulo: Paulus, 2002 [2 impressão, 2003]. 11 A Bíblia Hebraica utilizada foi a de ELLIGER, K. ; RUDOLPH, W. (eds.) Biblia Hebraica Stuttgartensia. 5. ed. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, [1967/1977], 1997. 12 1. A ORIGEM DO MOVIMENTO PROFÉTICO "Eis que estás destruído, Israel, pois só em mim está o teu auxílio. Onde está, pois, o teu rei para que te salve em todas as tuas cidades, e os teus juízes a quem dizias; 'Dá-me um rei e um príncipe'? Eu te dou um rei em minha ira, eu o retomo em meu furor" (Os 13,9-11). Uma coisa chama a nossa atenção: os grandes profetas aparecem com a sociedade monárquica e desaparecem pouco a pouco com o fim da monarquia. Isto parece ser significativo. Que relação existe entre profetismo e monarquia em Israel? Minha hipótese é a seguinte: os grandes profetas surgem a partir das contradições da sociedade monárquica tributária e nela encontram sua função, evoluindo para novas formas de manifestação após o fim da monarquia. Claro que sabemos da existência de grupos proféticos extáticos antes da monarquia, dos quais falarei brevemente. Entretanto, estou falando aqui dos profetas clássicos, às vezes ditos "políticos", que atuam individualmente e de forma consciente. Para ilustrar minha hipótese, farei dois passos: no primeiro, uma breve descrição da organização social anterior à monarquia, a sociedade tribal israelita no segundo, passarei à sociedade monárquica para destacar as rupturas existentes entre as duas formas de organização social. 1.1. A sociedade tribal israelita Durante muito tempo os especialistas acreditaram que o Israel primitivo surgira exclusivamente do seminomadismo, tendo se sedentarizado só após a ocupação da terra de Canaã, em seguida ao êxodo do Egito, guiado por Moisés. Israel teria invadido a terra de Canaã, vindo da Transjordânia, aí pelo final do século XII a.C. As tribos lutaram unidas e, fazendo uma campanha militar em três fases, dirigidas ao centro, sul e norte da região, ocuparam todo o país, destruindo seus habitantes, no espaço de uns 25 anos. Esta é a visão de Js 1-12 e a que dominou no mundo judaico. Há uma síntese desta visão em Js 10,40ss: "Assim Josué conquistou toda a terra, a saber: a montanha, o Negueb, a planície e as encostas, com todos os seus reis. Não deixou nenhum sobrevivente e votou todo ser vivo ao anátema, conforme havia ordenado Iahweh, o Deus de Israel; Josué os 13 destruiu desde Cades Barne até Gaza, e toda a terra de Gósen até Gabaon. Todos esses reis, com suas terras, Josué os tomou de uma só vez, porquanto Iahweh, Deus de Israel, combatia por Israel. Finalmente Josué, com todo Israel, voltou ao acampamento de Guilgal" (Js 10,40-43). Hoje, após estudos mais aprofundados e maiores conhecimentos arqueológicos, antropológicos, etnológicos e sociológicos, a hipótese do nomadismo pastoril e de uma origem israelita totalmente externa a Canaã devem ser reavaliadas. Alguns especialistas acreditam que Israel se formou a partir de um movimento de rebelião de grupos marginalizados cananeus, especialmente camponeses, contra o domínio e a exploração tributária das cidades-estado da região. É a tese da "retribalização" ou da "revolta", formulada por G. E. Mendenhall [1962] e desenvolvida por N. K. Gottwald [1979]1. Aproximando o conceito de hebreu ao de habiru/hapiru, e utilizando as cartas de Tell el-Amarna, George E. Mendenhall procura demonstrar que ninguém podia nascer hebreu já que este termo indica uma situação de ruptura de pessoas e/ou grupos com a fortemente estratificada sociedade das cidades cananeias. E conclui: "Não houve uma real conquista da Palestina. O que aconteceu pode ser sumariado, do ponto de vista de um historiador interessado somente nos processos sociopolíticos, como uma revolta camponesa contra a espessa rede de cidades-estado cananeias". Estes camponeses revoltados contra o domínio das cidades cananeias se organizam e conquistam a Palestina, diz Mendenhall, "porque uma motivação e um movimento religioso criou uma solidariedade entre um grande grupo de unidades sociais preexistentes, tornando-os capazes de desafiar e vencer o complexo mal estruturado de cidades que dominavam a Palestina e a Síria no final da Idade do Bronze"2. Esta motivação religiosa é a fé javista que transcende a religião tribal, e que funciona como um poderoso mecanismo de coesão social, muito acima de fatores sociais e políticos... Por isso a tradição da aliança é tão importante na tradição bíblica, pois esta é o símbolo formal através da qual a solidariedade era tornada funcional. A ênfase na mesma herança tribal, através dos patriarcas, e na identificação de Iahweh com o "deus dos pais", pode ser creditada à teologia dos autores da época da monarquia e do pós-exílio que deram motivações políticas a uma unidade que foi criada pelo fator religioso. 1. Cf. o artigo de George Mendenhall - publicado originalmente em Biblical Archaeologist 25, p. 66-87, 1962 - em CARTER, C. E. ; MEYERS, C. L. (eds.) Community, Identity and Ideology: Social Sciences Approaches to the Hebrew Bible. Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 1996, p. 152-169. Cf. GOTTWALD, N. K. Introdução socioliterária à Bíblia Hebraica. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1997, p. 251276; Idem, As tribos de Iahweh: Uma sociologia da religião de Israel liberto 1250-1050 a.C. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2004, p. 247-350. Cf. esta e outras hipóteses em <http://airtonjo.com/site1/historia9.htm>. O problema das origens de Israel é um dos mais complexos que se pode enfrentar na área. Por isso existem muitas hipóteses a respeito. 2 . MENDENHALL, G. E. The Hebrew Conquest of Palestine. In: CARTER, C. E. ; MEYERS, C. L. (eds.) Community, Identity and Ideology, p. 158-159. 14 Alguns anos mais tarde, Norman K. Gottwald publicou seu polêmico livro The Tribes of Yahweh: A Sociology of the Religion of Liberated Israel, 1250-1050 B.C.E. Maryknoll, New York: Orbis Books, 1979 no qual retoma a tese de G. Mendenhall e avança por quase mil páginas em favor de uma revolta camponesa ou processo de retribalização que explicaria as origens de Israel. Gottwald propõe um modelo social para o Israel primitivo que segue as seguintes linhas: "O Israel primitivo era um agrupamento de povos cananeus rebeldes e dissidentes, que lentamente se ajuntavam e se firmavam caracterizando-se por uma forma antiestatal de organização social com liderança descentralizada. Esse desligar-se da forma de organização social da cidade-estado tomou a forma de um movimento de 'retribalização' entre agricultores e pastores organizados em famílias ampliadas economicamente autossuficientes com acesso igual aos recursos básicos. A religião de Israel, que tinha seus fundamentos intelectuais e cultuais na religião do antigo Oriente Médio cananeu, era idiossincrática e mutável, ou seja, um ser divino integrado existia para um integrado e igualitário povo estruturado. Israel tornou-se aquele segmento de Canaã que se separou soberanamente de outro segmento de Canaã envolvendo-se na 'política de base' dos habitantes dos povoados organizados de forma tribal contra uma 'política de elite' das hierarquizadas cidades estados" 3. Assim, Gottwald vê o tribalismo israelita como uma forma escolhida por pessoas que rejeitaram conscientemente a centralização do poder cananeu e se organizaram em um sistema descentralizado, onde as funções políticas ou eram partilhadas por vários membros do grupo ou assumiam um caráter temporário. O tribalismo israelita foi uma revolução social consciente, uma guerra civil, se quisermos, que dividiu e opôs grupos que previamente viviam organizados em cidades-estado cananeias. E Gottwald termina seu texto dizendo que o modelo da retribalização levanta uma série de questões para posterior pesquisa e reflexão teórica. O contexto histórico que apoia a tese de Gottwald é o seguinte: Os hicsos, um conjunto de povos asiáticos, liderados por hurritas, vindos do norte, conquistam o Egito por volta de 1670 a.C. e o dominam durante um século. Sua capital é Avaris. Mas os hicsos foram expulsos por Amósis (1580-1558 a.C.), faraó da décima oitava dinastia, que transformou o Egito na maior potência mundial da época. A capital voltou a Tebas. Tutmosis III, também da décima oitava dinastia, levou o Egito ao auge de seu poder, estendendo seu domínio até o Eufrates. À XVIII dinastia pertencem ainda: Amenófis IV (1372-1354 a.C.) - também conhecido como Akhenaton, o faraó do culto a Aton -, que construiu nova capital, Akhetaton, arqueologicamente conhecida como El-Amarna; Tutankhamon, que é o último faraó desta dinastia e que volta ao antigo culto a Amon e traz a capital de novo para Tebas. A XIX dinastia teve alguns nomes famosos, como Ramsés II, o faraó do êxodo, e Merneptah, seu filho, que cita Israel em estela de 1220 a.C. Ramsés II foi quem fez a aliança de paz com os hititas, após uma guerra de resultado duvidoso, deixando um 3 . GOTTWALD, N. K. Domain Assumptions and Societal Models in the Study of Pre-Monarchic Israel. In: CARTER, C. E. ; MEYERS, C. L. (eds.) Community, Identity and Ideology, p. 174-175. 15 vazio político na Palestina. Sob a XX dinastia, a última do reino novo, o Egito vai progressivamente perdendo toda a sua influência na Ásia. Pois quando os hicsos invadiram o Egito, ocuparam também a região de Canaã, estabelecendo bases em Jericó e Siquém. Eles introduziram na Palestina o uso do carro de combate, modificando todas as táticas de guerra então em uso. Os povos locais, cananeus, tiveram que reforçar então a defesa de suas cidades e abrigar em seu interior os grupos mais atacados pelos invasores. Para rechaçar os hicsos, os egípcios da XVIII dinastia davam condições de defesa à Palestina, uma espécie de "feudo" seu: interesses estratégicos e comerciais (como produtos da Fenícia e rotas caravaneiras) levaram o Egito a estabelecer guarnições na Palestina e a cobrar tributo dos senhores, príncipes das cidades-estado cananeias. As populações de baixa condição, vivendo ao abrigo das cidades e de seus exércitos locais, estava assim submetida ao príncipe cananeu, que dependia do faraó egípcio. A espoliação se dava, deste modo, em dois níveis. Quando o controle egípcio era menor, as cidades cananeias diminuíam ou interrompiam o pagamento do tributo e procuravam aumentar seus domínios a expensas de seus vizinhos e rivais. Mas a liberdade das cidades não era repassada para a população marginalizada. Assim é descrita a situação da região nas cartas de Tell el-Amarna, escritas pelos governantes das cidades cananeias à corte egípcia de Amen-hotep III e de seu filho Amenófis IV. São 377 cartas escritas em acádico vulgar, com muitos cananeísmos, descobertas a partir de 1887. Nos conflitos entre as cidades cananeias, seus governantes se acusam, nas cartas, da ajuda, feita pelo inimigo, aos hapirus: estes estariam conquistando cidades em Canaã e provocando revoltas. Os hapirus revoltavam-se contra seus opressores cananeus e libertavam-se de seu controle. Segundo a maioria dos especialistas, o nome hapiru indicaria, mais do que um povo específico, uma classe de pessoas, sem levar em conta a sua origem étnica ou geográfica. A palavra habiru, em acádico, cuja forma mais autêntica é 'apiru, em ugarítico, poderia significar desde "os que recebem ração" até "poeirentos" ou "homens do território", conforme a língua que se escolhe para identificar a raiz 'apr, seja uma língua semítica do oeste ou o acádico. Em suma, acredita-se que os hapirus formassem grupos variados de pessoas provenientes de várias etnias, espalhados por todo o Crescente Fértil, que se colocavam a serviço de reis, cidades ou Estados. Faziam desde trabalhos de reconstrução de cidades até guerra, como mercenários, ou pastoreio de rebanhos4. A nova sociedade que se criou fundamentava-se na solidariedade das relações de parentesco: a família ampliada, de estrutura patriarcal, a chamada "casa do pai", beth-'âbh, era a unidade fundamental. Compreendendo até cinco gerações, era esta 4 . Cf. BRIEND, J. (org.) Israel e Judá: textos do Antigo Oriente Médio. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1997, p. 24-33. 16 família economicamente autônoma, governada pelo patriarca, líder masculino mais velho do grupo. Vivendo em aldeias e dedicando-se basicamente à agricultura de subsistência e a atividades pastoris - é provável que o pastoreio ocupe não mais de 10% da população -, as famílias se agrupavam em associações protetoras que poderíamos chamar, talvez, de clã, em hebraico, a mishpâhâh. "A associação protetora é um agrupamento de famílias ampliadas (beth-'âbhoth) que moram nas mesmas aldeias ou nas aldeias vizinhas, nas cercanias rurais, ou numa seção de um estabelecimento mais amplo, que proporciona auxílio mútuo socioeconômico às suas famílias componentes, que contribui com cotas de tropas para o recrutamento tribal, e que serve, indiretamente, sozinha ou de comum acordo com outras mishpâhoth vizinhas, para fornecer uma comunidade jurídica local" 5. Segundo Hans G. Kippenberg, citando R. Pattai e E. Meyer, a mishpâhâh: é um grupo de descendência patrilinear, ou seja, a linha de descendência corre de pai para filho é unidade de convocação do exército tribal: cada clã fornece determinado número de combatentes nas guerras tribais de resistência e conquista caracteriza-se pela residência comum de seus membros transmite o direito de posse por herança: a terra, os rebanhos, enfim, a propriedade é comunal e não pode ser vendida, mas deve ser mantida em poder do grupo através da herança de pai para filho é formada de famílias ampliadas seus membros têm responsabilidade mútua, como o levirato, a ge'ulla etc, gerando uma solidariedade de sangue muito coesa tem regras específicas de casamento, com preferência pelo casamento entre primos patrilineares e com a obrigatoriedade do dote é responsável pelas festas cultuais e pela preservação da memória coletiva integra, em circunstâncias específicas, uma tribo 6. A associação de diversos clãs formava uma unidade mais complexa que designamos normalmente por tribo, em hebraico shêbhet ou matteh. Vários fatores levavam à formação de uma tribo. Entre eles, destaco: migrações conjuntas de vários grupos e famílias lutas contra cidades-estado cananeias ou contra a liga filisteia proximidade de moradia e/ou características geográficas favoráveis ocupações agrícolas ou pastoris conjuntas etc. 5. GOTTWALD, N. K. As tribos de Iahweh, p. 348. Gottwald recusa a categoria de clã para esta organização, argumentando que o clã é sempre exógamo (seus membros casam-se fora, com componentes de outro clã), enquanto que a organização israelita é endógama (casam-se seus componentes dentro do mesmo grupo). 6. Cf. KIPPENBERG, H. G. Religião e formação de classes na antiga Judeia: estudo sociorreligioso sobre a relação entre tradição e evolução social. São Paulo: Paulus, 1997, p. 22-28. Há um resumo deste livro em <http://blog.airtonjo.com/2007/07/religio-e-formao-de-classes-na-antiga.html>. 17 Pode-se verificar, portanto, que a relação de parentesco, base desta organização social, não é de descendência de sangue apenas. O parentesco é político, é uma função social que cimenta a solidariedade entre os membros de um grupo. A tribo, segundo N. K. Gottwald, "é uma associação autônoma de famílias ampliadas segmentadas (beth-'âbhoth) agrupadas em associações protetoras (mishpâhoth) de aldeias/vizinhança, constando em média de aproximadamente 50 por tribo, entrelaçando-se funcionalmente através do casamento entre si, das práticas de auxílio mútuo, da adoração comum e do recrutamento de tropas" 7. É preciso lembrar, finalmente, que a religião exerce papel fundamental nesta estrutura social. É o javismo que legitima e consagra a ordem tribal solidária em oposição ao baalismo da sociedade tributária. É muito difícil falar de teologia e de conceitos teológicos nesta época, não porque sejam impossíveis, mas porque só os conhecemos através de escritos posteriores, todos da época monárquica ou mesmo pós-exílica. Sabendo disso, entretanto, podemos afirmar que, teologicamente, as relações sociais e religiosas da sociedade tribal podem ser ditas como uma relação de aliança (berîth), que caracteriza, na prática do direito (mishpât), da justiça (tsedhâqâh), e da fidelidade/solidariedade (hesedh), a busca do shalôm, que é a prosperidade, a paz, a felicidade. Isto explica definitivamente as origens de Israel? De modo algum. Muitos autores procuraram avançar a partir e além de Mendenhall e Gottwald. Como nos lembra R. K. Gnuse, as descobertas arqueológicas dos últimos anos encorajaram os pesquisadores na elaboração de novas maneiras de compreender as origens de Israel. As escavações de localidades tais como Ai, Khirbert Raddana, Shiloh, Tel Quiri, Bet Gala, Izbet Sarta, Tel Qasileh, Tel Isdar, Dan, Arad, Tel Masos, BeerSheba, Har Adir, Horvart Harashim, Tel Beit Mirsim, Sasa, Giloh, Horvat ‘Avot, Tel enNasbeh, Beth-Zur e Tel el-Fûl, deixaram os arqueólogos impressionados com a continuidade existente entre as cidades cananeias das planícies e os povoados israelitas das colinas. A continuidade está presente sobretudo na cerâmica, nas técnicas agrícolas, nas construções e nas ferramentas 8. O crescente consenso entre os arqueólogos é de que a distinção entre cananeus e israelitas no primeiro período do assentamento na terra é cada vez mais difícil de ser feita, pois estes parecem constituir um só povo. As diferenças entre os dois aparecem apenas mais tarde. Por isso, os arqueólogos começam a falar cada vez mais do processo de formação de Israel como um processo pacífico e gradual, a partir da transformação de parte da sociedade cananeia. “A teoria sugere que, de alguma maneira, cananeus gradualmente tornaram-se israelitas, acompanhando transformações políticas e sociais no começo da Idade do Bronze”9. 7. GOTTWALD, N. K. As tribos de Iahweh, p. 347. 8 . Cf. GNUSE, R. K. No Other Gods: Emergent Monotheism in Israel. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1997, p. 32-61. Cf. também FRITZ, V. Die Entstehung Israels im 12. Und 11. Jahrhundert v. Chr. Stuttgart: Kohlhammer, 1996, p. 104-121, onde os vários modelos são descritos e analisados. 9 . Idem, ibidem, p. 33. 18 Os defensores deste ponto de vista argumentam com o declínio cultural ocorrido no Bronze Antigo, com a deterioração da vida urbana causada pelas campanhas militares egípcias, com a crescente tributação, e, talvez, com mudanças climáticas. Mas o processo de evolução pacífica de onde surgiu Israel é descrito de maneira diferente pelos especialistas, de modo que R. K. Gnuse prefere classificar as teorias em quatro categorias, que são: Retirada pacífica Nomadismo interno Transição ou transformação pacífica Amálgama pacífico Retirada pacífica Como defensores de uma retirada pacífica de grupos cananeus das planícies para as regiões montanhosas, R. K. Gnuse cita especialmente Joseph Callaway, David Hopkins, Frank Frick, James Flanagan, Gösta Ahlström e Carol Meyers10. Joseph Callaway foi um dos primeiros a observar nas escavações de Ai e Khirbet Raddana, no território de Efraim, que os habitantes destas pequenas localidades situadas nas montanhas usavam as mesmas técnicas dos cananeus na agricultura, na fabricação de ferramentas, na perfuração de cisternas, na construção de casas e de terraços para a retenção da água da chuva. Isto implica uma continuidade cultural com os cananeus das cidades situadas nos vales e sugere que as pessoas se deslocaram para Ai e Raddana para fugir de possíveis conflitos nos vales. Entre 1200 e 900 a.C. o número de povoados nas montanhas passou de 23 para 114, o que sugere uma significativa retirada. David Hopkins, por sua vez, em uma avaliação detalhada da agricultura na região montanhosa da Palestina na Idade do Ferro I (1200-900 a.C.), observou que o desenvolvimento social aconteceu junto com a intensificação do cultivo da terra. Para Hopkins, estas pessoas desenvolveram um sistema de colaboração ao nível de clã e de famílias, o que lhes permitia uma integração de culturas agrícolas com a criação de animais, evitando, deste modo, os desastres comuns a que uma monocultura estava sujeita nestas regiões tão instáveis, especialmente em recursos hídricos. Hopkins valorizou mais o sistema cooperativo baseado no parentesco do que o uso de técnicas como terraços, cisternas e o uso do ferro para explicar o sucesso destes assentamentos agrícolas. Para Hopkins, diferentes unidades clânicas e tribais israelitas devem ter surgido a partir de diferentes atividades agrícolas. Frank Frick acredita que os assentamentos israelitas surgiram após um colapso das cidades cananeias. Esta nova sociedade teria então evoluído de uma 'sociedade 10 . Cf. CALLAWAY, J. Village Subsistence at Ai and Raddana in Iron Age I. In: THOMPSON, H. (ed.) The Answers Lie Below: Essays in Honor of Lawrence Edmund Toombs. Lanham: University Press of America, 1984; HOPKINS, D. The Highlands of Canaan: Agricultural Life in the Early Iron Age. Sheffield: Sheffield Phoenix Press, 2010 [a reprint of the 1985 edition]; FRICK, F. The Formation of the State in Ancient Israel: A Survey of Models and Theories. Decatur, Georgia: Almond Press, 1985; FLANAGAN, J. David’s Social Drama: a Hologram of Israel’s Early Iron Age. Decatur, Georgia: Almond Press, 1988; AHLSTRÖM, G. The History of Ancient Palestine. Minneapolis: Fortress Press: 1993; MEYERS, C. Discovering Eve: Ancient Israelite Women in Context. New York: Oxford University Press, 1988. 19 segmentária' (época dos Juízes) para uma 'sociedade com chefia' (Saul) e, finalmente, para o 'Estado' (Davi). James Flanagan também acredita que o Israel pré-davídico surgiu da movimentação de grupos sedentários que deixaram os vales para uma organização mais descentralizada nas montanhas e na Transjordânia, onde eles se dedicaram à agricultura e ao pastoreio. Gösta Ahlström, entretanto, foi quem desenvolveu mais amplamente este modelo de uma retirada pacífica em vários de seus escritos. Ele trabalha a continuidade entre israelitas e cananeus, evidente na cultura material, e busca reler os textos bíblicos dentro desta lógica. O próprio nome do povo, 'Israel', reflete esta lógica, já que construído com o nome de El, divindade cananeia. Ahlström contesta a tese de Gottwald de uma 'retribalização' ocorrida nas montanhas, já que sua estrutura social de base familiar não corresponde, segundo ele, ao tipo nômade. Nenhuma 'revolta' de camponeses pode ser documentada. Os recursos tecnológicos menores, igualmente, não indicam a chegada de um grupo de pessoas vindas de fora da terra, mas sim a escassez de recursos da área dos assentamentos. Talvez um grupo tenha vindo de Edom e se juntado a estes camponeses, trazendo com eles o culto a Iahweh. Carol Meyers defende que Israel surgiu nas montanhas após uma violenta praga que devastou os vales. Teria havido um declínio de até 80% da população dos vales, e cidades podem ter sido queimadas para evitar contágio. Nas montanhas, o crescimento populacional - de 23 para 114 povoados - exigiu mais alimento, levando à intensificação da agricultura, agora possível pela construção de cisternas e terraços e isto produziu, no final, Israel. Nomadismo interno Defensores do nomadismo interno são C. H. J. de Geus, Volkmar Fritz e Israel Finkelstein11. Embora admitindo a continuidade entre israelitas e cananeus, estes especialistas defendem uma origem pastoril para os primeiros. C. H. J. de Geus, antigo defensor das teorias de Mendenhall e Gottwald, propõe que os israelitas eram etnicamente unidos, morando nas montanhas e usando categorias tribais. Eles seriam os hapiru das cartas de Tell el-Amarna, vivendo nas áreas intermediárias entre as cidades e com elas interagindo, experimentando, por isso, uma 'simbiose cultural'. Eles estavam na região há séculos e pertenciam à cultura amorita siro-palestina do Bronze Médio. Quando as cidades sofreram um colapso eles expandiram seu controle. Volkmar Fritz, antes defensor da ideia de infiltração pacífica de Albrecht Alt, ao escavar no norte do Negev, percebe que a cultura israelita viveu um longo período em contato com a cultura cananeia e deslocou um pouco sua perspectiva. A casa israelita 11 . Cf. DE GEUS, C. H. J. The Tribes of Israel: an Investigation into Some of the Presuppositions of Martin Noth’s Amphictyony Hypothesis. Amsterdam: Van Gorcum, 1976; FRITZ, V. Die Entstehung Israels im 12. und 11. Jahrhundert v. Chr. Sttutgart: Kohlhammer, 1996; FINKELSTEIN, I. The Archaeology of the Israelite Settlement. Jerusalem: Israel Exploration Society, 1988; FINKELSTEIN, I. ; SILBERMAN, N. A. The Bible Unearthed: Archaeology's New Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts. New York: The Free Press, 2001. Em português: A Bíblia não tinha razão. São Paulo: A Girafa, 2003. Resenha do livro em <http://airtonjo.com/site1/resenha-6.htm>. 20 de quatro cômodos significa uma evolução da arquitetura cananeia e a sua familiaridade com a criação de animais domésticos e seus trabalhos em metal e cerâmica mostram que eles não eram verdadeiros nômades, mas que estavam em contato comercial com as culturas das cidades da região. Para Fritz, porém, a arquitetura diferenciada dos povoados israelitas nas montanhas mostra que eles não saíram simplesmente das cidades das planícies, mas que foram proto-israelitas, que, vindos de fora, antes de se sedentarizarem, entraram em contato simbiótico com as culturas citadinas. Ou seja: eles estavam culturalmente próximos dos cananeus, mas eram etnicamente diferentes e trouxeram consigo suas próprias estruturas sociais e sua cultura material. Eles seriam os hapiru ou os shasu dos textos egípcios, que eventualmente deram origem a Israel, Moab e Edom. Israel Finkelstein é o principal defensor da ideia do 'nomadismo interno'. Talvez resumindo excessivamente seu matizado pensamento, eu diria que, para Finkelstein, os israelitas eram 'nômades internos', gente que vivia na Palestina, por toda a Idade do Bronze, na proximidade das cidades. Com o declínio destas, estes pastores se dedicaram também à agricultura para conseguir cereais e outros alimentos não mais oferecidos pelas cidades. Eles teriam se assentado em grande número na região montanhosa de Efraim e, a partir dali, se espalhado, como defendia Alt, para o norte e para o sul da região. O aumento populacional posterior colocou-os em conflito com populações das planícies até que se chegou à unificação davídica. Transição ou transformação pacífica Entre os proponentes de uma transição ou transformação pacífica se destacam Niels Peter Lemche, William Stiebing, R. Drews, Robert Coote & Keith Whitelam e Rainer Albertz12. Niels Peter Lemche, um dos mais brilhantes 'minimalistas' da Escola de Copenhague, acredita que muito pouco pode ser dito das origens de Israel antes do século X a.C. a não ser a percepção de um processo gradual de aumento da população nas montanhas da Palestina. Lemche, assim como outros minimalistas, questiona o uso da Bíblia Hebraica na reconstrução da História de Israel, já que esta é um produto pósexílico, possivelmente da época helenística. Na verdade, diz Lemche, não há época patriarcal, êxodo, juízes, monarquia unida... Lemche expõe a sua visão no livro de 1998, The Israelites in History and Tradition, p. 74, ao mesmo tempo em que procura superá-la com uma nova proposta nas páginas 75-77. Diz Lemche que o modelo 'evolucionário' por ele defendido na obra de 1988, Ancient Israel: A New History of Israelite Society pressupõe que o aumento dos 12. Cf. LEMCHE, N. P. Early Israel: Anthropological and Historical Studies on the Israelite Society Before the Monarchy. Leiden: Brill, 1985; Ancient Israel: A New History of Israelite Society. Sheffield: Sheffield Academic Press, [1988], 1995; The Canaanites and Their Land: The Tradition of the Canaanites. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1991; Die Vorgeschichte Israels. Von den Anfängen bis zum Ausgang des 13. Jahrhunderts v.Chr. Stuttgart: Kohlhammer, 1996; The Israelites in History and Tradition. Louisville, Kentucky: Westminster John Knox, 1998; STIEBING, W. Out of the Desert? Archaeology and the Conquest Narratives. Buffalo: Prometheus, 1989; DREWS, R. The End of the Bronze Age: Changes in Warfare and the Catastrophe ca. 1200 B.C. Princeton: Princeton University Press, 1993; COOTE, R. ; WHITELAM, K. The Emergence of Early Israel in Historical Perspective. Sheffield: Sheffield Phoenix Press, [1987] 2010; ALBERTZ, R. A History of Israelite Religion in the Old Testament Period. 2 vols. Philadelphia: Westminster Press, 1994. 21 assentamentos tenha sido uma consequência natural da deterioração das condições de vida das cidades da Palestina durante a última parte do Bronze Recente, até cerca de 1200 a.C. Segundo esta explicação, diferenças étnicas só apareceram com o passar do tempo, motivadas por interesses econômicos, políticos, regionais e religiosos diferentes, levando os habitantes dos povoados a se agrupar em grupos de parentesco, linhagens e, no final do processo, em tribos. Entretanto Lemche vê problemas nesta proposta, pois ela pressupõe um vazio de poder egípcio na região e a consequente decadência das cidades, provocada pela perda das rendas do comércio internacional, no conturbado enfrentamento de grandes potências no século XIII a.C. Entretanto, o que hoje se sabe é que a ausência egípcia na região não coincide com o aparecimento dos povoados na região montanhosa da Palestina. Daí, que o afastamento desta população, saindo das cidades pode ter sido causado não pela ausência, mas pelo aumento da pressão egípcia sobre as mesmas, em sua exigência de mais tributos e mais trabalho forçado. Assim o Egito compensava as perdas do comércio internacional. Mas esta proposta não inclui a participação dos nômades na formação desta nova sociedade, e a presença de elementos nômades nestes assentamentos deve ser considerada. Então, por que não creditar à política egípcia o processo de criação de assentamentos sem fortificações, por um lado, e por outro, a fixação dos migrantes, consolidando o poder do império na região? Pois, deste modo, o Egito transferia parte da população de cidades, agora improdutivas, para novas regiões e garantia os seus rendimentos na região. William Stiebing, por outro lado, coloca as mudanças climáticas ocorridas na região do Mediterrâneo entre 1250 e 1200 a.C. como fator fundamental para explicar o declínio da cultura urbana da Grécia Micênica à Palestina. Afugentados pela seca, os sobreviventes da fome que se abateu sobre as cidades foram para as montanhas. Condições climáticas mais favoráveis por volta do ano 1000 a.C. possibilitaram o aumento desta população e à criação do Estado. Israel, portanto, surgiu não pelo simples deslocamento de determinados grupos, mas pelo crescimento populacional tornado possível pelas condições climáticas favoráveis à agricultura. Robert Drews defende que os 'povos do mar' que invadem a região não eram simples migrantes, mas mercenários treinados e com armamento superior aos dos exércitos locais. Daí o massacre das cidades e o aumento populacional dos habitantes das montanhas, com mudanças, inclusive, em seu comportamento ético, agora mais igualitário. Ele dá pouca importância aos fatores climáticos na explicação dos acontecimentos. Robert Coote & Keith Whitelam veem as origens de Israel como parte de um processo de integração milenar entre as regiões das cidades e as regiões das montanhas. Processo que pode ser chamado de 'realinhamento' ou 'transformação', pois nos períodos de prosperidade as regiões das montanhas providenciavam recursos para as cidades dos vales, enquanto que nos momentos das crises elas absorviam as populações que deixavam tais cidades. No surgimento de Israel o colapso do comércio foi o fator mais significativo, segundo estes autores, pois colocou em crise a sobrevivência das cidades e exigiu dos povoados das montanhas uma forma mais eficaz de colaboração e cooperação para a sobrevivência, levando a um aumento populacional significativo. Com o desenvolvimento destas regiões o comércio foi recuperado, promovendo mais tarde o aparecimento do Estado. 22 Rainer Albertz faz uma espécie de síntese de várias escolas, indo de Albright a Lemche, não propondo uma teoria específica. Albertz fala de 'digressão', processo pelo qual o colapso do comércio internacional forçou os habitantes das cidades a se deslocarem para os povoados das montanhas e aí se desenvolverem. Para tais comunidades o grupo do êxodo trouxe as ideias do deus Iahweh. Amálgama pacífico Finalmente, a ideia de um amálgama pacífico de diferentes grupos nas regiões montanhosas da Palestina para explicar as origens de Israel tem como defensores especialistas como Baruch Halpern, William Dever, Thomas Thompson e Donald Redford. A opinião de R. K. Gnuse, que aqui se alinha, é de que este grupo de pesquisadores prevalecerá sobre os outros, por considerar melhor os pressupostos teóricos do debate atual13. Baruch Halpern foi um dos primeiros a descrever o processo de assentamento como uma complexa interação de diferentes grupos nas montanhas: poucos habitantes dos vales, muitos habitantes da região montanhosa, um grupo vindo do Egito com a experiência do êxodo, grupos vindos da Síria... O grupo do Egito trouxe Iahweh, enquanto o grupo sírio, de agricultores despossuídos, trouxe a circuncisão e a proibição da criação do porco e criou o nome 'Israel' no século XIII a.C. Todos estes grupos foram reunidos pela necessidade de manter rotas de comércio abertas com a ausência do Egito na região. Progressivamente controlaram também as planícies, levando ao surgimento da monarquia. Halpern sublinha ainda que o Israel histórico não é o Israel da Bíblia Hebraica, mas foi o Israel histórico que produziu o Israel bíblico. William Dever já foi simpatizante do modelo da revolta de Gottwald, das propostas de Coote & Whitelam e do modelo de simbiose de Fritz. Hoje ele vê o surgimento de Israel entre as populações que praticavam a agricultura na Palestina e rejeita a dicotomia cananeu/israelita, dizendo que a distinção entre urbano e rural explica as diferenças, que são funcionais e não étnicas. Para Dever Israel se formou de refugiados das cidades, 'bandidos sociais' (social bandits), alguns revolucionários, uns poucos nômades, mas, principalmente, cananeus saídos das cidades. Na região das montanhas eles progressivamente criaram uma identidade que os diferenciou dos cananeus das planícies. Thomas L. Thompson, um dos mais polêmicos 'minimalistas' é ferrenho defensor de uma História da Palestina escrita somente a partir dos dados arqueológicos e crítico de qualquer história e arqueologia bíblicas. Thompson observa que a população da Palestina permaneceu inalterada durante milênios, movendo-se os grupos entre as cidades das planícies e os povoados das montanhas segundo as estratégias de sobrevivência exigidas pelas mudanças climáticas, principal fator de transformação social e política da região. A população das montanhas era formada por nativos da região, que se misturaram com gente que veio das planícies, pastores de outras áreas e imigrantes da Síria, Anatólia e do Egeu. A unidade política de Israel só aparece na 13 . Cf. HALPERN, B. The Emergence of Israel in Canaan. Chico, CA: Scholar Press, 1983; DEVER, W. Recent Archaeological Discoveries and Biblical Research. Seattle: University of Washington Press, 1990; THOMPSON, T. L. Early History of the Israelite People from the Written and Archaeological Sources. 2. ed. Leiden: Brill, [1992] 1994; The Mythic Past: Biblical Archaeology and the Myth of Israel. New York: Basic Books, 1999; REDFORD, D. Egypt, Canaan and Israel in Ancient Times. Princeton: Princeton University Press, 1992. 23 época das interferências assírias na região, no século VIII a.C., no que diz respeito a Samaria, e no século VII a.C., quando Jerusalém, após a destruição de Lakish por Senaquerib, torna-se líder da região sul, como cidade cliente da Assíria. Toda a 'estória bíblica' do império davídico-salomônico e dos reinos divididos de Israel e Judá é, para Thompson, pura ficção pós-exílica. Por fim, Donald Redford, egiptólogo, defende que existe uma diferença entre os habitantes das planícies e os habitantes das montanhas. Ele sugere que o núcleo da população nas montanhas era formado por pastores que se sedentarizaram, mas que pastores shasu vindos de Edom, e trazendo consigo o culto a Iahweh, também ali se assentaram, dando início ao futuro Israel, para ele, distinto dos cananeus. Como concluímos? Que embora ainda não haja consenso quanto à maneira como surgiu Israel, já se impôs a ideia de que Israel emergiu, de alguma maneira, de dentro de Canaã e que a arqueologia é a melhor ferramenta para mostrar como isso aconteceu 14. Entretanto, dizem os teóricos que analisam as sociedades de tipo tributário (também chamadas asiáticas porque mais frequentes naquele continente), como a que existe em Israel durante a monarquia, que uma sociedade tribal de tipo patriarcal como esta já representa uma forma de transição da comunidade primitiva para a sociedade de classes. As contradições da sociedade tribal aumentam progressivamente até provocarem o aparecimento do Estado, que inicialmente é uma função (de defesa, de obras etc), mas que passa a ser uma exploração. Da economia de auto-subsistência, através do desenvolvimento das forças produtivas, passa-se a uma economia tribo-patriarcal baseada em certa hierarquização que permite a acumulação para determinadas camadas: há os privilégios dos homens sobre as mulheres, do primogênito sobre seus irmãos, das tribos líderes sobre as outras tribos etc. É um embrião de divisão de classes, anterior ao Estado, detectável em Israel já no período dos juízes15. Pois é justamente nesta época que aparecem, em Israel, grupos de homens que profetizavam ao som de instrumentos musicais e danças. Entravam em transe ou êxtase - daí falarmos de “profetismo extático” - e pronunciavam oráculos (1Sm 10,5-13). Parece que além de atenderem a consultas específicas, eles incitavam a população contra os inimigos e exortavam-na a combater a guerra santa de Iahweh. Samuel, de alguma maneira, estaria ligado a este movimento, já que, segundo alguns pesquisadores, a 14 . Recomendo, neste ponto, algumas leituras, como: MORGENSZTERN, I. ; RAGOBERT, T. A Bíblia e seu tempo - um olhar arqueológico sobre o Antigo Testamento. 2 DVDs. Documentário baseado no livro The Bible Unearthed, de Israel Finkelstein e Neil Asher Silberman. São Paulo: História Viva - Duetto Editorial, 2007. Mais informações em <http://blog.airtonjo.com/2008/01/biblia-e-seu-tempo-emdvd.html>; DA SILVA, A. J. A história de Israel no debate atual. Em <http://airtonjo.com/site1/historiade-israel.htm>; DA SILVA, A. J. Pode uma ‘história de Israel’ ser escrita? Observando o debate atual sobre a história de Israel. Em <http://airtonjo.com/site1/minimalistas.htm>; LIVERANI, M. Para além da Bíblia: História antiga de Israel. São Paulo: Loyola/Paulus, 2008. 15. Cf. FIORAVANTE, E. Do modo de produção asiático ao modo de produção capitalista. In: GEBRAN, Ph. (org.) Conceito de modo de produção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 131-155; CARDOSO, C. F. S. (org.) Modo de produção asiático: Nova visita a um velho conceito. Rio de Janeiro: Campus, 1990. 24 missão profética era uma continuação da missão dos juízes carismáticos. Mas sua origem e função continuam incertas, assim como pouco sabemos sobre a continuidade ou ruptura destes profetas com os profetas clássicos da época monárquica. 1.2. A monarquia tributária israelita A estrutura tribal foi sofrendo, deste modo, com o tempo, profundas modificações, levando à formação do Estado monárquico16. O Estado reativou as formas tributárias antes combatidas e minou progressivamente as características solidárias de Israel. O Estado tributário restabeleceu a oposição cidade x campo, recolhendo o excedente da produção camponesa para sustentar as estruturas administrativas, militares, comerciais e religiosas. Além do tributo cobrado, a população camponesa se vê sujeita ao trabalho forçado grátis para o Estado, a chamada corveia, cada vez que o governo necessita de mão-de-obra intensiva para a construção de obras públicas. Pouco a pouco, parcela substancial do que era produzido foi sendo acumulado por quem tinha poder e não trabalhava a terra. Criou-se uma classe poderosa que violava, cada vez mais, as antigas leis tribais da solidariedade. Os camponeses foram se empobrecendo, chegando a perder as suas terras de herança, seus meios de sobrevivência e até a sua liberdade. O enfraquecimento dos laços familiares e tribais era irreversível. Assim, o Estado tributário que inicialmente nascera com funções públicas de organização e defesa passa, pouco a pouco, a ser um autêntico poder de classe (a classe que se constitui nele) para manter e aumentar a exploração. É bom lembrar que o Estado é consequência da exploração de classe, ele não é a sua causa. O despotismo do governo é também uma consequência da formação de classes. O produto do trabalho transforma-se em mercadoria. Floresce o comércio interno e externo. Este último é monopólio do Estado, que exporta produtos básicos e importa produtos de luxo. A acumulação é evidente. A exploração do trabalho, violenta. Quem quiser, poder conferir dois importantes textos bíblicos que denunciam este tipo de sociedade. São 1Sm 8,10-18 e Jz 9,7-15. 1Sm 8,11-17 diz: "Este será o direito do rei que reinará sobre vós: ele convocará os vossos filhos e os encarregará dos seus carros de guerra e de sua cavalaria e os fará correr à frente do seu carro; e os nomeará chefes de mil e chefes de cinquenta, e os fará lavrar a terra dele e ceifar a sua seara, fabricar as suas armas de guerra e as peças de seus carros. Ele tomará as vossas filhas para perfumistas, cozinheiras e padeiras. Tomará os vossos campos, as vossas vinhas, os vossos melhores olivais, e os dará aos seus servos. Das vossas sementes e das vossas vinhas ele cobrará o dízimo, 16 . Para o debate sobre o surgimento do Estado no antigo Israel, recomendo DA SILVA, A. J. Os governos de Saul, Davi e Salomão. Em <http://airtonjo.com/site1/historia-12.htm>; Idem, A origem dos antigos Estados israelitas. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 78, p. 18-31, 2003. 25 que destinará aos seus eunucos e aos seus servos. Os melhores dentre vossos servos e vossas servas, e de vossos adolescentes, bem como vossos jumentos, ele os tomará para o seu serviço. Exigirá o dízimo dos vossos rebanhos, e vós mesmos vos tornareis seus servos". Neste Estado tributário o papel da religião é, também, muito importante. Sua ideologia é, poderíamos dizer, parafraseando conceitos nossos das décadas de 60 e 70 do século XX, uma "Teologia de Segurança Nacional". O rei governa como privilegiado representante de Iahweh. Legitima seus atos através do culto celebrado no Templo de Jerusalém e dos profetas oficiais sustentados pela corte. Iahweh mesmo, antes livre e soberano, segundo a concepção tribal, encontra-se, de certa forma, "prisioneiro" do rei. Pois o rei, em geral, se associa politicamente ao Sumo Sacerdote (o termo ainda não é usado nesta época, mas a função de sacerdote chefe já é bem definida). Este é, por sua vez, o único israelita que tem acesso imediato, no Santo dos Santos, a Iahweh, segundo a teologia então desenvolvida. Por sinal, a teologia em voga é elaborada por representantes desta nova ordem e, sem dúvida, defende seus interesses. Dito de outro modo: na monarquia, as categorias ideológicas refletem o econômico de maneira invertida. As relações econômicas não são mais determinadas pela solidariedade tribal, mas por uma apropriação do excedente pela corte. Entretanto, o discurso teológico javista permanece, ocultando o processo real. Na verdade, a aliança, que antes era feita entre Iahweh e o povo, passa a ser a aliança de Iahweh com a dinastia davídica. A administração da justiça, antes tribal, agora é reformulada. Concentra-se o poder nas mãos do rei e de seus ministros. O rigor ético do javismo vai sendo afrouxado para permitir a exploração, o desmando, a injustiça. Se Iahweh é um Deus tão exigente, o Estado favorece o culto a outros deuses, menos rigorosos. Prolifera a idolatria. Torna-se prática comum para amplos setores da população. Os cultos aos deuses cananeus da fertilidade e a celebração dos ciclos da natureza influenciam profundamente a religiosidade camponesa. Para os que se apropriam do produto do trabalho dos outros é uma maravilha: quanto mais o camponês cultuar os deuses protetores da natureza e da terra cultivada, tentando garantir e aumentar sua produção, tanto mais o tributo cresce. Em outras palavras, podemos dizer que a organização tributária se caracteriza pela unidade Estado-comunidades e pelo antagonismo aristocracia-campesinato. A unidade Estado-comunidades gera a imagem do cosmos como um universo unitário, garantido pela função técnica do Estado (agricultura planejada, administração, guerra etc). Isto prova para a população a existência de uma ligação forte e definitiva entre o rei e a divindade, chegando a função do Estado a tornar-se preceito ético para o povo. Ocorre a transferência de atributos cósmicos para a esfera política e de atributos políticos para a esfera cósmica: a abundância material existe graças ao soberano. 26 Existe uma unidade entre a divindade, o déspota, as funções jurídico-políticas do Estado, o funcionamento do cosmos e a fertilidade da terra. O antagonismo aristocracia x campesinato, por outro lado, existe porque a relação entre os dois grupos é tributária e é uma relação de exploração. Este antagonismo gera uma crítica da opressão: os camponeses ou seus representantes intelectuais protestam contra as injustiças a que são submetidos e contra a corrupção e o luxo da classe dominante, dona absoluta do poder. Mas também protestam contra a concepção oficial da divindade enquanto associada à exploração: isto é feito através da crítica e da condenação da idolatria cultual - cultos naturistas alienantes e cultos oficiais formais, mascarando a exploração - e política - aliança com as grandes potências e dependência de seus interesses 17. 17. Cf. BANU, I. La formación social "asiática" en la perspectiva de la filosofia oriental antigua. In: BARTRA, R. (ed.) El modo de producción asiático. 3. ed. Mexico: Era, 1975, p. 297-316. 27 2. O TEOR DO DISCURSO PROFÉTICO "Ai dos que juntam casa a casa, dos que acrescentam campo a campo até que não haja mais espaço disponível, até serem eles os únicos moradores da terra" (Is 5,8). Nestes momentos de crise aparecem os profetas. Aliás, profetas surgem apenas quando as condições sociais o requerem. Por isso são frequentemente encontrados em sociedades que sofrem rápidas e drásticas mudanças. A instabilidade gerada leva à insatisfação, que produz o agente do sagrado com uma mensagem de ameaça e castigo para os agentes e beneficiários das mudanças e de salvação e esperança para aqueles que padecem as mudanças. Quanto mais se deterioram as condições sociais mais eles se multiplicam e mais ferozmente atuam 1. Sua origem nem sempre é determinante: Elias, Amós e Miqueias, por exemplo, são camponeses. Já Isaías, Oseias, Habacuc e outros vivem nas capitais. Por outro lado, Jeremias e Ezequiel são sacerdotes, enquanto outros são leigos. Seu discurso é dirigido à classe dominante que constitui o próprio Estado e ao povo de Israel em geral. Aos responsáveis pelas instituições do Estado, os profetas sempre dirigem duras críticas, denunciando a ruptura das relações da aliança javista. Ao povo em geral, às vezes, só a um "resto" fiel, os profetas anunciam a intervenção de Iahweh, tanto para punir os ímpios por sua iniquidade, como para recompensar os justos por sua fidelidade. R. R. Wilson distingue duas vertentes na profecia israelita: a vertente efraimita e a vertente judaíta. Os profetas efraimitas, apoiados socialmente pelo grupo levítico, sempre atuaram na periferia da sociedade, denunciando o poder monárquico como destruidor das estruturas sociais javistas. Sua visão é a de que o profeta é o único intermediário legítimo entre Iahweh e Israel. Visão esta bem assentada na teologia do Deuteronômio, de origem levítica (cf. Dt 18). O seu modelo de profeta: Moisés. Já a profecia judaíta tinha função de manutenção da ordem social central. Quando Isaías, por exemplo, profeta judaíta da ordem social central, prega a conversão e a reforma é para preservar a ordem davídica que se fragmentava sob governos incompetentes ou corruptos. Daí que sua articulação teológica se fundava em Davi e em Sião2. 1 . Cf. WILSON, R. R. Profecia e sociedade no antigo Israel. 2. ed. revista. São Paulo: Targumim/ Paulus, 2006, p. 47-52. 2 . Cf. WILSON, R. R. o. c., p. 348-357. 28 2.1. A denúncia da idolatria Como os profetas falam em nome de Iahweh e baseados em sua fé, posso dizer que o seu discurso é de teor teológico. E que consiste na denúncia da ruptura da berîth (aliança) Iahweh-Israel, vista como idolatria, em três níveis da realidade: idolatria religiosa : Iahweh-Baal idolatria política : Iahweh-Poder idolatria econômica : Iahweh-Riqueza3. A idolatria religiosa consiste na substituição de Iahweh por Baal, deus cananeu da natureza, ou pelos deuses cósmicos de outros países. Desde suas origens, esta foi uma das formas dominantes de desagregação dos valores javistas, manifestada especialmente no momento cultual. Se Iahweh é o Deus dos oprimidos que se organizam, Baal é o deus dos reis (cananeus, depois israelitas) que oprimem. Esta dura realidade pode ser vista, por exemplo, no episódio, muito significativo, da vinha de Nabot, em 1Rs 21. O rei Acab se apossa da vinha de Nabot, seguindo a justiça dos reis cananeus e de seu deus Baal. Mas Iahweh é quem protegia o direito de Nabot, proibindo o poderoso de tomar a herança do pobre. Neste caso será o profeta Elias o porta-voz de Iahweh4 . As práticas rituais da fertilidade, nas quais se cultuavam Baal e outros deuses ligados à natureza, tiveram enorme difusão entre os israelitas Os cultos da fertilidade têm sua origem na descoberta da agricultura. Foi a mulher a primeira agricultora, ainda na época neolítica, entre 9.000 e 7.000 a.C. Associou-se o processo de fertilidade da terra, vista como uma divindade, com a fertilidade da mulher que a cultivava. Com o tempo os agricultores passaram a celebrar rituais sexuais nos seus cultos, e o ritmo cíclico da vegetação é explicado através de dramas mitológicos bem elaborados. A natureza morre periodicamente porque morre um deus. Que, após várias peripécias, renasce, trazendo consigo o novo florescimento agrícola. Em Israel este deus é Baal. Baal é um jovem deus, filho de El, que é o pai de todos os deuses do panteão ugarítico, mas também é conhecido como filho de Dagan. Baal significa “senhor”. É chamado igualmente de Hadad ou Haddu e considerado como “Cavalgador das Nuvens”, “Príncipe”, “Senhor da Terra”, “Poderoso”, “Soberano”. Diz o mito da Luta entre Baal e Môt que Môt (deus da morte e da esterilidade) se sente prejudicado pela vitória de Baal (deus da chuva e da fertilidade) sobre Yam (deus do mar), vitória que afeta seu poder. Baal declara sua submissão e é intimado por Môt a descer por sua goela, sendo, assim, morto. É que no mundo subterrâneo de Môt ninguém é capaz de resistir ao seu poder. El, o pai de Baal, lamenta profundamente a morte do “Senhor da Terra”: 3 . Cf. SICRE, J. L. Los dioses olvidados: Poder y riqueza en los profetas preexílicos. Madrid: Cristiandad, 1979; SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas I-II. 2. ed. São Paulo: Paulus, 20022004. 4 . Cf. VELOSO DA SILVA, M. A., Elias. O juízo sobre a monarquia ou a desfeita de Baal. 3. ed. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 4, p. 33-40, 1987. 29 “Chegamos junto de Baal, ele estava caído por terra. Baal, o muito Poderoso, estava morto o Príncipe, Senhor da Terra, tinha perecido. Então El, o Misericordioso de grande coração, desce de seu trono, assenta-se no escabelo e do escabelo vai assentar-se na terra. Espalha sobre sua cabeça a cinza do luto, sobre seu crânio, a poeira da aflição. cobre seus rins com um saco, golpeia sua pele com uma pedra, corta com uma navalha suas duas tranças, lacera três vezes suas faces e seu queixo (...) Eleva sua voz e exclama: ‘Baal morreu! Que vai ser do povo? O filho de Dagan morreu! Que vai ser da multidão?’” Mas Anat, deusa do amor, da fecundidade e da guerra, companheira de Baal, vai à sua procura, resgata seu corpo e enfrenta Môt, matando-o. “Os dias passaram os dias tornaram-se meses; Anat, a Donzela, o procurou. Como o coração da vaca por seu bezerro, como o coração da ovelha por seu cordeiro, assim batia o coração de Anat por Baal. Agarrou o divino Môt, com uma faca o partiu, com um ancinho o limpou, no fogo o queimou, com pedras de moinho o triturou, no campo o espalhou, sua carne os pássaros comeram, seus pedaços as aves devoraram a carne à carne foi convidada”. Com a morte de Môt, Baal revive e isto provoca grande alegria: “Está vivo Baal, o Vitorioso (...) que os céus chovam azeite que as torrentes fluam com mel (...) Alegrou-se El, o Misericordioso de grande coração, apoiou seus pés no escabelo iluminou-se seu semblante e começou a rir”. E, finalmente, os campos ressequidos voltam a receber a chuva que os fertiliza, porque Baal, o Senhor da Terra, está vivo 5 . 5 . Os mitos de Ugarit podem ser lidos em DEL OLMO LETE, G. Mitos y leyendas de Canaan según la tradición de Ugarit. Madrid: Institución San Jeronimo/Ediciones Cristiandad, 1981. Ugarit ou 30 Com o advento da monarquia, os cultos da fertilidade passaram a ser utilizados pelos donos do poder, reis e funcionários civis e religiosos, como modo de controlar os camponeses. O Estado vivia do tributo imposto aos camponeses e o governo estimulava as práticas da fertilidade para que se produzisse mais e se arrecadasse mais. A disparidade social crescia, na medida em que mais e mais riquezas eram, assim, transferidas dos camponeses para as mãos da classe dominante. O processo é sutil e poderoso. O produto do trabalho coletivo é apropriado por uma minoria, transformado em mercadoria, divinizado e oferecido aos camponeses como seu senhor. As mercadorias vão se tornando, deste modo, seres animados que subjugam e alienam os homens, reduzidos à condição de objeto. É M. Schwantes quem observa: "Os ídolos dependem das mãos. São os objetos criados por quem trabalha e produz: bezerro, ouro, fertilidade, automóvel. Ao se tornarem ídolos estes objetos tornam-se nossos sujeitos, guias, patrões. Ídolos são os objetos feitos pelas mãos que são feitos sujeitos de quem os produziu. Somente a dominação de quem trabalha, somente a escravização do trabalhador, através da força das armas e das ideias, torna possível que os produtos de suas mãos possam virar em sujeitos de sua vida"6 . Oseias denunciou sistematicamente a idolatria religiosa. Como no seguinte texto: "Meu povo consulta o seu pedaço de madeira e o seu bastão faz-lhe revelações; porque um espírito de prostituição os desviou, eles se prostituíram, afastando-se de seu Deus. Nos cimos das montanhas oferecem sacrifícios, e sobre as colinas queimam incenso, debaixo do carvalho, do choupo e do terebinto, pois a sua sombra é boa" (Os 4,12-13). Ou neste outro: "Quando Efraim falava, era o terror, ele era sublime em Israel, mas tornou-se culpado por causa de Baal e morreu. E agora continuam pecando: eles constroem para si uma imagem de metal fundido, com sua prata, ídolos de acordo com sua habilidade: tudo isso não é senão obra de um artesão!" (Os 13,1-2a). Também o profeta Isaías denuncia as práticas idolátricas nos seguintes termos: Ras-Shamra é uma antiga cidade semítica da região da Síria, que atingiu seu apogeu entre 1500 e 1100 a.C. Todos os textos encontrados a partir de 1929 pertencem a esta época. Sobre Ugarit, cf. <http://airtonjo.com/site1/historia-7.htm>. 6 . SCHWANTES, M. Teologia do Antigo Testamento. Anotações. São Leopoldo: Comissão de Publicações da Faculdade de Teologia da IECLB, 1986, p. 123. 31 "Com efeito, tu rejeitaste o teu povo, a casa de Jacó, porque ele desde tempos antigos está cheio de adivinhos, como /os filisteus, no seu meio há muitos filhos de estrangeiros. Sua terra está cheia de prata e de ouro: não há fim para seus tesouros; Sua terra está cheia de cavalos: não há fim para seus carros; Sua terra está cheia de ídolos, e adoram a obra de suas mãos, aquilo que seus dedos fizeram" (Is 2,6-8). A idolatria política, substituição de Iahweh pelo Poder, assume várias formas ao longo da história da monarquia. Como as seguintes: a difusão de práticas idolátricas cultuais por conveniência política a divinização do rei ou do Estado, para manter o "status quo" político o culto à própria sabedoria política o culto ao poderio militar o culto aos grandes impérios, com os quais Israel faz alianças políticas 7. Israel, especialmente após a divisão dos reinos em 931 a.C., era uma nação pequena entre grandes potências. Israel se viu sempre tentado a praticar uma política de alianças com os grandes impérios da Mesopotâmia ou com o Egito. Isto quase sempre o levou a desastrosa dependência estrangeira. O povo acabava penalizado pelo tributo cobrado pela nação estrangeira e muitos governos se sustentavam no poder sem qualquer legitimidade. Amparados nas alianças estrangeiras, permaneciam indefinidamente no poder, contrariando os interesses de seu povo e de seu país. O profeta Oseias aborda frequentemente o problema da idolatria política. Por exemplo: "Efraim mistura-se com os povos, Efraim é uma fogaça que não foi virada. Os estrangeiros devoram o seu vigor, mas ele não se dá conta! Até mesmo os cabelos brancos se espalham nele, mas ele não se dá conta. Efraim é como uma pomba ingênua, sem inteligência, pedem auxílio ao Egito, vão à Assíria" (Os 7,8-9.11). Ou Os 12,2: "Efraim alimenta-se de vento e corre o dia inteiro atrás do vento do oriente; 7 . Cf. SICRE DIAZ, J. L. Los dioses olvidados, p. 23-27. 32 ele multiplica mentira e violência. Eles concluem um pacto com a Assíria e levam óleo para o Egito". Também o profeta Isaías denuncia as alianças estrangeiras. Como em Is 30,1-2: "Ai dos filhos rebeldes - oráculo de Iahweh eles fazem projetos, mas não vindos de mim! Eles formam alianças, mas não sugeridas pelo meu espírito, que acumulam pecado sobre pecado! Eles partem para descer ao Egito, sem me consultar, buscando a proteção do faraó, procurando abrigo à sombra do Egito". Is 31,1 aborda o mesmo tema: "Ai dos que descem ao Egito, à busca de socorro. Procuram apoiar-se em cavalos, põem a sua confiança nos carros, porque são muitos, e nos cavaleiros, porque são de grande força, mas não voltam os olhares para o Santo de Israel, não buscam Iahweh". A idolatria econômica é a substituição de Iahweh pela Riqueza. O dinheiro (e tudo o que tem valor), a ganância, o suborno recebido pelo juiz e a segurança obtida através da riqueza são algumas de suas manifestações. Os profetas condenam violentamente o enriquecimento obtido com a exploração alheia, a concentração das riquezas nas mãos de poucos e o consequente empobrecimento da maioria da população, a administração fraudulenta da justiça e a impunidade dos que tudo podem comprar. No século VIII a.C., Amós, Isaías e Miqueias condenam a idolatria econômica. Por exemplo: "Ouvi isto, vós que esmagais o indigente e quereis eliminar os pobres da terra, vós que dizeis: 'Quando passará a lua nova, para que possamos vender o grão, e o sábado, para que possamos vender o trigo, para diminuirmos o efá, aumentarmos o siclo e falsificarmos as balanças enganadoras, para comprarmos o fraco com dinheiro e o indigente por um par de sandálias, para vendermos os restos do trigo?'" (Am 8,4-6). "Ai dos que juntam casa a casa 33 dos que acrescentam campo a campo até que não haja mais espaço disponível, até serem eles os únicos moradores da terra" (Is 5,8). "Ai daqueles que planejam iniquidade e que tramam o mal em seus leitos! Ao amanhecer, eles o praticam, porque está no poder de sua mão. Se cobiçam campos, eles os roubam, se casas, eles as tomam; oprimem o varão e a sua casa, o homem e sua herança" (Mq 2,1-2). 2.2. A função do discurso profético O que pretendem os profetas, afinal de contas? Em última instância, a recuperação dos valores do javismo, ou, se quisermos, a restauração da aliança javista. Os profetas percebem a inadequação existente entre o discurso teológico oficial, que continua a ser javista, e o funcionamento das instituições, que rompem os laços do javismo. Os profetas conhecem o mau funcionamento do Estado tributário, mas seu discurso tem limites claros: eles não percebem o mal da própria existência da relação tributária. Exatamente porque fazem um discurso teológico (o único possível naquele momento histórico), os profetas têm que ficar na aparência da estrutura social e não podem atingir o seu núcleo estrutural, que é econômico. Como porta-vozes dos camponeses que estão sendo espoliados pela cobrança do tributo, os profetas querem reconquistar direitos perdidos e não adquirir direitos novos. Por isso, quase nunca encontramos nos profetas, mesmo nos mais radicais, propostas políticas concretas para uma nova sociedade. Suas projeções são generalizantes e utópicas, seu modelo é a passada sociedade tribal sem divisão acentuada de classes, seus instrumentos são as tradições populares da fé javista e sua autoridade é a força da palavra de Iahweh codificada nas relações sociais pré-estatais. Várias tentativas têm sido feitas pelos sociólogos e antropólogos para identificar o papel social do profeta. L. R. Benedetti, analisando a Igreja no Brasil atual e seu discurso profético, expõe algumas delas 8 . 8 . Cf. BENEDETTI, L. R. Templo, Praça, Coração: A articulação do campo religioso católico. São Paulo: Humanitas/USP/FAPESP, 2000. 34 Em primeiro lugar, ele cita a concepção de M. Weber: profeta seria um indivíduo carismático, inovador, que se opõe ao sacerdote. É a clássica oposição carisma x instituição que preside esta colocação. “Por ‘profeta’ queremos entender aqui o portador de um carisma pessoal, o qual, em virtude de sua missão, anuncia uma doutrina religiosa ou um mandado divino (...). O decisivo para nós é a vocação ‘pessoal’. Esta é que distingue o profeta do sacerdote. Primeiro e sobretudo porque o segundo reclama autoridade por estar a serviço de uma tradição sagrada, e o primeiro, ao contrário, em virtude de sua revelação pessoal ou de seu carisma. Não é casual o fato de que, com pouquíssimas exceções, nenhum profeta procedeu do sacerdócio. Os mestres de salvação hindus em regra não são brâmanes, os israelitas não são sacerdotes e somente Zaratustra talvez proceda da aristocracia sacerdotal. Em oposição ao profeta, o sacerdote distribui bens de salvação em virtude de seu cargo”19. Não sendo profissional, um traço característico da profecia é a gratuidade, segundo Weber: “Muitas vezes, tanto a adivinhação quanto a terapêutica e a consulta mágica são exercidas ‘profissionalmente’. Assim o era, por exemplo, pelos numerosos ‘profetas’ (nabi, nebî’îm) mencionados no Antigo Testamento, especialmente nas Crônicas e nos livros proféticos. Mas é precisamente destes que se distingue o profeta, no sentido que aqui lhe damos, por um critério puramente econômico: pelo caráter gratuito de sua profecia. Amós rejeita com ira a denominação nabi. E a mesma diferença existe também em relação aos sacerdotes. O profeta típico propaga a ‘ideia’ por ela mesma e não - pelo menos não de modo perceptível e de fora regulada - por uma remuneração”20. A visão weberiana de carisma se insere no contexto de sua preocupação em refutar posições reducionistas dentro do marxismo. Para Weber, observa Peter Berger, as “ideias religiosas têm uma eficácia histórica própria e não podem ser simplesmente entendidas como um ‘reflexo’ ou mesmo como uma ‘função’ de alguns processos sociais subjacentes (...) O carisma representa a erupção súbita, para dentro da história, de forças bem novas, muitas vezes vinculadas a ideias bem novas. Longe de serem ‘reflexos’ ou ‘funções’ de processos sociais já existentes, as forças carismáticas agem poderosamente sobre processos preexistentes e, em verdade, geram novos processos”21. Outro aspecto enfaticamente defendido por M. Weber é o de que os profetas israelitas jamais foram representantes dos camponeses oprimidos pelo sistema monárquico instalado nas cidades, sistema que lhes impunha pagamento extorsivo de tributos e trabalhos forçados em obras públicas. Sua mensagem e seus motivos eram 19. WEBER, M. Economia e sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva, vol. I. Brasília: Editora da UnB, 1991, p. 303. 20. Idem, ibidem, p. 304. Cf. também WEBER, M. Ancient Judaism. New York: Free Press, 1967, p. 90-117;267-335. Os ensaios desta obra são de 1917-1919. Aqui Weber insiste repetidamente na figura do profeta como um carismático solitário que, heroicamente, luta contra a corrente institucional. Enfatiza, igualmente, suas visões e audições, que o fazem viver um estado quase doentio de ansiedade e tensão emocional. 21. Cf. BERGER, P. Carisma e inovação religiosa: a localização social da profecia israelita. In VV.AA. Profetismo. São Leopoldo: Sinodal, 1985, p. 86-106. O artigo original, em inglês, é de 1963. 35 estritamente religiosos. A sua compreensão do carisma como estritamente pessoal obrigava-o a essa conclusão. Benedetti, entretanto, faz duas críticas a Weber: ele psicologiza a explicação sociológica, na medida em que coloca apenas nas qualidades do indivíduo a chave de sua atuação profética. E onde ficam os interesses sociais? por outro lado, ele pensa que os profetas israelitas sempre estiveram em oposição ao sacerdócio... mas havia profetas junto aos sacerdotes, templos, reis... havia o profeta do poder central... Peter Berger, por sua vez, analisa a profecia e defende a ideia de que o carisma profético surge dentro das instituições tradicionais e não em uma situação de marginalidade social. Explicando a concepção weberiana de carisma, Berger supõe ultrapassá-la quando diz: “Em verdade chegamos a ver que o profeta emerge de um cargo tradicionalmente definido, exercendo a sua atividade carismática em termos deste cargo, mas que ele foi levado para além de sua tradicional definição pela sua mensagem religiosa”22. Com efeito, percorrendo pesquisa profética deste século - nos anos 50 e 60 era moda discutir a relação profeta/culto - Berger acredita que os profetas estavam de algum modo ligados a funções cultuais 23. E conclui que, embora o carisma seja “eventualmente a característica de indivíduos socialmente marginais”, ele “também pode ser um traço de indivíduos situados no centro da estrutura institucional em questão, um poder de ‘radicalização’ a partir de dentro, em vez de um desafio oriundo de fora” 24. A crítica que se pode fazer a Berger é de que sua leitura é funcionalista, ao salientar o caráter inovador e profético da instituição sem considerar suas contradições internas. A propósito desta análise de Berger observa R. R. Wilson: "O que quer que se pense das conclusões de Berger, infelizmente ele comete um erro corrente no uso que faz da documentação fora de sua disciplina: admite consenso [na relação do profeta com o culto] em outro campo acadêmico onde de fato não existe nenhum" 25 . Outro teórico que analisa a profecia é Pierre Bourdieu. Ele faz do profeta o mediador dos interesses dos leigos, no interior do campo religioso, em oposição ao sacerdote, que media interesses de outros grupos. O poder do profeta baseia-se na força do grupo que mobiliza por meio de sua aptidão para simbolizar em uma conduta exemplar e/ou em um discurso (quase) sistemático, os interesses propriamente religiosos de leigos que ocupam uma determinada posição na estrutura social (...) O profeta traz ao nível do discurso ou da conduta exemplar representações, sentimentos e aspirações que já existiam antes dele embora de modo implícito, semiconsciente ou 22. Idem, ibidem, p. 105. 23. Cf., sobre a questão, SCHÖKEL, L. A/SICRE DIAZ, J. L. Profetas I. Isaías, Jeremias. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2004, p. 38-41. Eles concluem na p. 41: "O profetismo cúltico é hipótese de trabalho; esclarece alguns pontos e obscurece outros. Em se tratando de Israel, esta hipótese não está demonstrada. Da existência de profetas cúlticos não se deduz o ministério cúltico dos profetas’’. 24. 25 BERGER, P. o. c., p. 106. . WILSON, R. R. o. c., p. 15. 36 inconsciente. Em suma, realiza através de seu discurso e de sua pessoa, como falas exemplares, o encontro de um significante e de um significado preexistentes”, explica Bourdieu26. Benedetti, entretanto, defende a hipótese de que "a sacerdotalização ocorre na medida em que uma instituição religiosa adquire força e prestígio políticos, componentes que acompanham a transformação de uma mensagem 'subversiva' em componente da ordem social"27 . Ora, quando acontece uma crise de hegemonia da instituição, o prestígio e a força da própria instituição geram uma atitude profética contra a ordem que a ameaça. Há um movimento de "volta às origens", de recuperação das "opções autênticas". Portanto, é nas brechas do discurso oficial que se gera a profecia. Na medida em que se aprofunda a distância entre o discurso oficial, os princípios fundamentais e a prática cotidiana, o profetismo interfere para corrigir o defeito. Neste sentido, "o profeta é com frequência o que leva o discurso às últimas consequências. Nisso ele reconhece e legitima a instituição" 28. Só que ele particulariza e radicaliza um discurso que, normalmente, fica em declarações gerais de princípios, sem afetar a prática de ninguém... daí o incômodo que gera, com a consequente repressão. Com o tempo, porém, a radicalidade de seu discurso vai sendo anulada pela cooptação. Mas para além de tudo isso, é preciso reconhecer que os profetas conseguiram criar e perenizar, nas mais adversas condições, mais um forte elo da luta do homem contra a sua exploração e alienação. Programa que alguns deles chegam a identificar com o "conhecer a Iahweh", o que, na verdade, significa ter intimidade com Deus. Sem descanso, eles proclamam que uma nação assim dividida, como estava a israelita, encontraria um dia o seu fim. E eles estavam certos. As contradições cresceram e levaram à destruição o reino de Israel em 722 a.C. e o reino de Judá em 586 a.C. Alguns profetas e teólogos da época viram o exílio como um anti-êxodo. O povo libertado do Egito volta à servidão, agora na Assíria e na Babilônia. 2.3. Os deslocamentos pós-exílicos Na passagem da profecia pré-exílica para a pós-exílica, observamos alguns deslocamentos temáticos, como: da crítica da opressão interna (claro que sempre associada à externa, mas aquela vindo em primeiro plano), os profetas passam à crítica da opressão externa da crítica da manipulação de Iahweh para dominar, passam à crítica ao ceticismo quanto à ação de Iahweh 26. BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 92. 27 . BENEDETTI, L. R. o. c., p. 450 [na edição fotocopiada da tese, de 1988, antes da publicação]. 28 . Idem, ibidem, p. 451. 37 da esperança de uma monarquia javista justa deslocam-se os seus apelos para a organização de um governo sacerdotal de unidade ao redor do Templo, o que possibilitaria a reconstrução do país. Também no pós-exílio observamos uma mudança de perspectiva quanto ao futuro da nação: frustrada a esperança de um governo sacerdotal eficaz e justo, os profetas começam a pedir a intervenção decisiva e definitiva de Iahweh, no "dia" de sua manifestação. Neste sentido, observamos o deslocamento seguinte: Rei - Sacerdote Messias. O profetismo morre ao ser absorvido e cooptado pela instituição, que tem seu pilar pós-exílico no sacerdócio. Segundo M. Weber, em toda grande religião ou Igreja o discurso dissidente profético é cooptado pela instituição que o mata, ou contorna, ou assume29 . Em Israel, ao se solidificar o poder sacerdotal no Templo pós-exílico e a Lei na Sinagoga, desaparece pouco a pouco a função profética. Para a Torá (Lei) escrita, o profeta acaba sendo desnecessário e perigoso. Mas como permanecem as contradições de uma sociedade dividida, agora entre uma aristocracia helenizante e um campesinato javista tradicional, nasce o protesto apocalíptico, com redobrado vigor. A apocalíptica é filha da profecia e crescerá nos anos de crise do confronto com o helenismo, entre 200 a.C. e 100 d.C. 30. 29 . WILSON, R. R. o. c., p. 353-357, coloca assim a questão: com a derrota de Judá e a destruição de Jerusalém, os profetas que defendiam a perenidade Davi/Sião foram também derrotados. Venceu a vertente efraimita. É quando a visão Dt/Dtr começa a se tornar generalizada. A reconstrução pós-exílica, por outro lado, levou à necessidade de um compromisso entre as duas vertentes, a judaíta (sadoquita) e a efraimita (deuteronomista). O Templo continua sadoquita, mas a interpretação da tradição (literária) bíblica será deuteronomista... e os levitas são integrados ao culto, em posições secundárias, entretanto. Mas este mesmo compromisso levou à falência da profecia, na medida em que os profetas pós-exílicos falharam nas suas propostas. E falharam porque, no pós-exílio, a profecia periférica, representante da realidade camponesa, desaparece, vigorando apenas a profecia do poder central... 30 . Para a apocalíptica, cf. COLLINS, J. J. A imaginação apocalíptica: Uma introdução à literatura apocalíptica judaica. São Paulo: Paulus, 2010; DA SILVA, A. J. Apocalíptica: Busca de um Tempo sem Fronteiras. Em <http://airtonjo.com/site1/apocaliptica.htm>; PAUL, A. O que é o Intertestamento. São Paulo: Paulus, 1981. 38 3. EU OUVI OS CLAMORES DE MEU POVO: O PROFETA AMÓS "Odiai o mal e amai o bem, estabelecei o direito à porta; talvez Iahweh, Deus dos Exércitos, tenha compaixão do resto de José" (Am 5,15). Vamos começar a leitura dos 9 capítulos do livro de Amós lá pelo meio, nas chamadas visões simbólicas (capítulos 7-9), porque elas nos darão a chave que abrirá o mundo deste importante profeta. Definida a sua orientação profética, é necessário, no segundo momento deste roteiro, verificarmos o contexto em que viveu Amós e que rumos vivia Israel sob o governo de Jeroboão II. Já no terceiro item reuniremos tudo o que sabemos sobre Amós, desde a sua origem e profissão até o local de sua atuação profética e as circunstâncias de sua expulsão do santuário de Betel, onde pregava. No quarto passo podemos olhar os chamados "oráculos contra as nações", palavras do profeta contra reinos e povos vizinhos, denunciando as barbaridades cometidas por seus exércitos e por seus líderes políticos. Na verdade, este é o assunto que começa o livro de Amós (capítulos 1-2). Chegados a este ponto, é a hora de algumas observações gerais sobre o livro e sobre a pregação de Amós. Finalmente, a abordagem dos oráculos centrais de Amós, suas "palavras e ameaças contra Israel", que ocupam os capítulos 3 a 6 de seu livro. 3.1. As visões simbólicas Muitos especialistas acreditam que para se captar bem a mensagem de Amós devemos começar sua leitura pelas cinco visões simbólicas, narradas em Am 7,1-3; 7,46; 7,7-9; 8,1-3; 9,1-4. Isto porque estas visões constituiriam os sinais que o profeta percebe no cotidiano da vida e que simbolizam a situação da nação israelita. O que acaba determinando sua decisão de anunciar o castigo e a ruína do país, dizem alguns1. 1 . Cf. SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas II. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 984985. Outros autores, entretanto, afirmam que as visões aconteceram após o início de sua pregação, e tentam reconstruir cronologicamente a evolução de sua pregação e de seu pensamento. Outros, ainda, colocam as visões após a atividade profética de Amós, quando ele teria voltado para Judá. 39 Quer dizer: de certo modo, as visões preenchem, em Amós, o mesmo papel dos textos de vocação em Isaías, Jeremias ou Ezequiel. "Trata-se de uma trajetória vocacional. Amós percorre todo um caminho visionário. As próprias visões deixam entrever isso, com bastante nitidez. A visão dos gafanhotos (cf. 7,1-3) cabe no início do ano agrícola. A da seca (cf. 7,4-6), em pleno verão. A do cesto (cf. 8,1-3), dá-se no outono. Estas visões cobrem, no mínimo, meio ano. Talvez seja o período em que Amós é preparado, de modo incisivo, para seu ministério", observa M. Schwantes2. Amós nestes episódios via, quem sabe, coisas absolutamente normais, do cotidiano - exceto o último episódio, o da queda do santuário -, mas de um ponto de vista novo, profético, tornando-as símbolo da realidade maior, mais significativa 3. Agora, vamos ler as visões. A primeira visão (7,1-3) fala de uma praga de gafanhotos que destrói as plantações dos camponeses. E isto depois do corte do feno para o pagamento do tributo ao palácio. Amós apela a Iahweh, argumentando que os camponeses são frágeis demais para sofrer tal ameaça de fome. E Iahweh revoga o castigo. "Assim me fez ver o Senhor Iahweh: Ele produzia gafanhotos, quando começava a crescer o feno tardio, é o feno tardio, depois da ceifa do rei. E quando acabaram de devorar toda a erva da terra, eu disse: ' Senhor Iahweh, perdoa, eu te peço! Como poderá Jacó subsistir? Ele é tão pequeno!' Então Iahweh compadeceu-se: 'Isto não acontecerá', disse Iahweh" (Am 7, 1-3). A segunda visão (7,4-6) mostra um fogo terrível que consome até as fontes subterrâneas de água. A ameaça agora, para os camponeses de Israel, é de grande seca. De novo Amós apela a Iahweh e a praga é suspensa. 2 . SCHWANTES, M. A terra não pode suportar suas palavras (Am 7,10): reflexão e estudo sobre Amós. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 38 [cf. também as páginas 183-203]; cf. Idem, Jacó é pequeno. Visões em Amós 7-9. 2. ed. RIBLA, Petrópolis/São Paulo/São Leopoldo, n. 1, p. 81-92, 1990. 3 . "O profeta é um vidente na medida em que ele, em todas as coisas, mediante estas e acima destas, vê Iahweh, Deus de Israel e Senhor do mundo, operando e no ato de vir", diz FUEGLISTER, N. Arrebatados por Iahweh: anunciadores da palavra. História e estrutura do profetismo em Israel. In SCHREINER, J. (ed.) Palavra e Mensagem. São Paulo: Paulus, 1978, p. 196. C. MESTERS observa no seu Deus, ondes estás? 5. ed. Belo Horizonte: Vega, 1976, p. 48, que na medida em que o profeta vive integrado na vida do povo, tudo o que ele vê o faz lembrar-se da situação de injustiça em que vive o povo. "São os fatos que começam a falar. Tudo se torna apelo. Assim, pouco a pouco, cresce uma consciência em Amós. Já MAILLOT, A. ; LELIÈVRE, A. Atualidade de Miqueias: Um grande "profeta menor". São Paulo: Paulus, 1980, p. 26, garantem que "é este ver em profundidade, este ver, que ultrapassa o acidental e atinge o essencial, que os profetas sentiram como uma 'visão'". 40 "Assim me fez ver o Senhor Iahweh: O Senhor Iahweh intentava um processo pelo fogo: este devorou o grande abismo, depois devorou o campo. Eu disse: 'Senhor Iahweh, para, eu te peço! Como poderá Jacó subsistir? Ele é tão pequeno!' Iahweh compadeceu-se: 'Também isto não acontecerá', disse o Senhor Iahweh" (Am 7,4-6) Estas duas visões se parecem muito na sua estrutura e no seu conteúdo. Formam um par. Mostram a realidade do campo na época de Amós, as ameaças que sofrem os pequenos camponeses e a atitude de Iahweh. Se há fome e sede no campo, a culpa não é de Iahweh, vem de outros mecanismos, sociais, provavelmente. Estas duas visões apontam o nível de consciência profética de Amós no que se refere ao campo. A terceira visão (7,7-9) apresenta um quadro "sui generis": Iahweh segura um fio de prumo e verifica o alinhamento de um muro. O muro simboliza Israel, que está torto e deverá ser demolido para ser realinhado. Desta vez Amós não intercede e a certeza do castigo torna-se mais forte. "Assim me fez ver: Eis que o Senhor estava de pé sobre um muro de chumbo e tinha em sua mão um fio de prumo. E Iahweh me disse: 'Que vês, Amós?' Eu disse: 'Um fio de prumo'. O Senhor disse: 'Eis que porei um fio de prumo no meio de meu povo, Israel, não tornarei a perdoá-lo. Os lugares altos de Isaac serão devastados, os santuários de Israel serão arrasados e eu me levantarei com a espada contra a casa de Jeroboão'" (Am 7,7-9) A quarta visão (8,1-3) apresenta uma semelhança sonora entre "frutos maduros" (qayits) e "fim" (qets), simbolizando, na visão do cesto de frutos maduros, o fim de Israel. Também desta vez não há intercessão do profeta. "Assim me fez ver o Senhor Iahweh: Eis um cesto de frutos maduros! E ele disse: 'Que vês, Amós?' Eu disse: 'Um cesto de frutos maduros!' E Iahweh me disse: 'Israel, meu povo, está maduro para seu fim, não tornarei mais a perdoá-lo. Os cantos do palácio serão gemidos naquele dia. - Oráculo do Senhor Iahweh Numerosos serão os cadáveres, lançados em todos lugares. Silêncio!'" (Am 8,1-3). 41 Estas duas visões, formam outro par. Avançam em relação às duas primeiras, chamando a atenção para a gravidade da situação e para a proximidade do fim de Israel. Tratam de realidades urbanas: aí sofrerão a cidade, os santuários, o palácio. Para este grupo não há intercessão de Amós. É uma realidade corrupta que não tem conserto. Isto é bem comprovado até mesmo pela inserção, entre as visões, por parte dos discípulos do profeta, do episódio do confronto entre Amós e o sacerdote Amasias de Betel, em 7,10-17. "Ao incluírem a confrontação com Amasias (cf. 7,10-17) entre a terceira (cf. 7,79) e a quarta (cf. 8,1-3) visão, os redatores exemplificam numa cena o antagonismo entre a profecia que vem do campo e o sacerdócio amarrado aos interesses do Estado e de seu templo oficial", observa M. Schwantes4 . A quinta visão (9,1-4) marca o ápice deste ciclo de visões. Desta vez é o próprio Iahweh quem atua. E de modo dramático. De pé sobre o altar dos sacrifícios - portanto, diante do santuário - ele bate nos capitéis, provocando um terremoto que destrói o santuário e mata as pessoas que ali estão. Não há possibilidade de fuga, garante o texto: a destruição atingirá com certeza Israel. Diz o começo da visão: "Vi o Senhor, que estava de pé junto ao altar e ele disse: 'Bate no capitel para que tremam os umbrais! Quebra-os na cabeça deles todos: o que sobrar deles, eu os matarei à espada; nenhum deles poderá fugir, nenhum deles poderá escapar!'" (Am 9,1). É o ponto máximo do ciclo visionário. O próprio Iahweh se volta contra o local no qual se lhe presta culto. É porque o santuário (de Betel) traiu seu papel de conduzir o povo a Iahweh e à vida. Tornou-se lugar de culto vazio e formal, amparando e ocultando as múltiplas opressões e injustiças que se cometem no país. 3.2. O "milagre" israelita: a época de Amós Sabemos que Amós atuou em Betel, situado no reino do norte ou Israel, na época do governo de Jeroboão II (782/1-753 a.C.): "Palavras de Amós, um dos pastores [BJ, edição de 2002: criadores] de Técua. O que ele viu contra Israel, no tempo de Ozias, rei de Judá, e no tempo de Jeroboão, filho de Joás, rei de Israel, dois anos antes do terremoto" (Am 1,1). 4 . SCHWANTES, M. A terra não pode suportar suas palavras, p. 39. Sobre as visões, cf. também KIRST, N. Amós. Textos selecionados. 2. ed. São Leopoldo: Comissão de Publicações da Faculdade de Teologia da IECLB, 1983, p. 41-92. 42 É de fundamental importância que conheçamos esta época, para situar bem o profeta no seu contexto. É o passo que proponho agora ao leitor. O general Jeú, em 841 a.C., apoiado por Damasco e, talvez, pelo profeta Eliseu, derrubou a dinastia de Omri e iniciou uma nova fase em Israel, fundando a mais duradoura dinastia que teve o país: cinco reis que governaram durante 88 anos: Jeú Joacaz Joás Jeroboão II Zacarias : 841-813 a.C. : 813-797 a.C. : 797-782 a.C. : 782/1-753 a.C. : 753 a.C. (6 meses)5. Mas, durante o reinado de Jeú e de seus sucessores, as pressões externas foram muitas. A política de alianças da dinastia dos omridas foi naturalmente destruída pelo violento golpe de Estado do general Jeú em 841 a.C.(cf. a visão deuteronomista da época em 2Rs 9-10)6. Desfeita a aliança militar e comercial fenícia, Israel só poderia fraquejar. Além de contar com as intrigas internas e os naturais abalos provocados por expurgo tão feroz, fatos que também fizeram o país atravessar um período de crise. A pressão maior sobre Israel veio de Damasco. Nesta capital síria Ben-Adad II fora assassinado por um militar chamado Hazael, em 843 a.C. Este, após enfrentar, em 841 a.C., uma perigosa invasão assíria de seu território, à qual resistiu, voltou-se contra Israel. Tomou o Galaad, avançou pela Palestina afora até Gat e ameaçou Jerusalém, obrigando seu rei, Joás, a lhe pagar tributo (2Rs 12,17ss), assim como fizera com Jeú e com os reis de Tiro e de Sídon. Hazael tornou-se senhor da região, enquanto Israel perdera toda a Transjordânia e grande parte da costa mediterrânea. Joacaz (813-797 a.C.), sucessor de Jeú, acabou também vassalo de Damasco, pagando pesado tributo. Hazael deixou-lhe uma força militar irrisória: cinquenta cavaleiros, dez carros de combate e dez mil soldados de infantaria 7. Para percebermos a decadência que isto significava, basta a verificação de que na famosa batalha de Karkar, travada por uma coalizão siro-palestina, em 853 a.C., contra a Assíria, o rei Acab sozinho mobilizara dois mil carros de guerra. 5 . Há várias cronologias possíveis para o período dos reis. Estou seguindo a de PAVLOVSKY, V. ; VOGT, E. Die Jahre der Könige von Juda und Israel. Biblica, Roma, n. 45, p. 321-347, 1964. 6 . Cf. uma análise da época em LIVERANI, M. Para além da Bíblia: História antiga de Israel. São Paulo: Loyola/Paulus, 2008, p. 148-154. 7 . Este o momento adequado para se ler algo sobre a Inscrição ou Estela de Tel Dan. Cf., sobre isso, <http://airtonjo.com/site1/historia-12.htm> e <http://airtonjo.com/site1/historia-de-israel3.htm>. 43 Mas Israel conheceu dias melhores. E isto aconteceu quando um novo rei, Adadnirari III, assumiu o poder na Assíria. Logo que tomou nas mãos o destino do reino, ele se empenhou em submeter novamente os reinos arameus da Síria. A partir de 806 a.C. Adadnirari III submeteu Hatti, na Síria do norte, Amurru, na Síria central, Tiro, Sídon, Edom, a Filisteia e Israel. Todos estes reinos pagaram tributos, mas Damasco sofreu mais: violentamente aniquilada pelos assírios, perdeu todo o seu poder de agressão aos vizinhos8. Logo em seguida também a Assíria enfrentou um período de convulsões internas, além de ter que conter a expansão de um novo reino, Urartu, que se tornou rapidamente a primeira potência oriental, e não mais interferiu na região do Mediterrâneo até 745 a.C. E então, livres de pressões superiores, os dois reinos, Israel e Judá, começaram a sua expansão. Joás (797-782 a.C.) começou a recuperação de Israel. Retomou as cidades perdidas por seu pai Joacaz, expulsando os arameus de seu território e dominando seu vizinho Judá (2Rs 14,1-14), com a derrota de Amasias em Bet-Sames. Atacou Jerusalém, saqueou-a, derrubou parte de suas muralhas e levou reféns. Mas não quis ocupar Judá. Amasias ficou no poder, mas logo foi assassinado por seus compatriotas. Seu filho Azarias - conhecido também por Ozias - foi colocado no trono. Quando reinou Jeroboão II (782/1-753 a.C.), Israel alcançou seu apogeu. Foi este rei uma grande figura militar, expandindo o território em direção ao norte (cf. 2Rs 14,23-29). Parece que submeteu a Síria ao seu poder, inclusive as regiões da Transjordânia e o sul até Moab. O seu contemporâneo Ozias, de Judá - agora em paz com Israel - participou plenamente deste programa de agressão. Reorganizou as defesas de Jerusalém e o exército, criando novas táticas de guerra. Controlou Edom e as rotas comerciais árabes, reabriu o porto de Esion-Géber, dominou o Negueb e a região filisteia. Com a expansão, veio de braço dado a prosperidade. O controle das rotas comerciais desde a Fenícia até a Arábia foi fundamental para o desenvolvimento dos dois reinos. Em Samaria, os arqueólogos encontraram as provas da riqueza de Israel nos esplêndidos edifícios então construídos. E no sul a densidade populacional do Negueb foi sem precedentes9. Mas, se olhada menos superficialmente, a situação de Israel não resultava tão brilhante assim para toda a população. 8 . "O adversário mais importante, o mari' de Aram, isto é, 'senhor' de Aram, Ben Hadad (BenHadad III, sucessor de Hazael) cercado em sua capital, terminaria por submeter-se, e foi no palácio de Damasco que o vencedor veio receber seu tributo", anotam GARELLI, P. ; NIKIPROWETZKY, V. O Oriente Próximo Asiático II. São Paulo: Pioneira/Edusp, 1982, p. 80. 9 . Cf. LIVERANI, M. Para além da Bíblia: História antiga de Israel, p. 160-167. 44 O sistema administrativo adotado por Jeroboão foi aquele mesmo próspero e problemático de qualquer Estado tributário: provocou a concentração da renda nas mãos de poucos privilegiados com o consequente empobrecimento de significativas camadas da população. Criaram-se extremos de riqueza e de pobreza. Os pequenos agricultores viam-se nas mãos de seus credores e chegavam à escravidão para pagar suas dívidas. Os tribunais, bem pagos por quem podia, decidiam sempre a favor dos ricos. À desintegração social somou-se a religiosa. Apesar de celebrada a aliança com Iahweh, perdeu-se o sentido da obrigação do povo para com ele, ficando só o sentido das promessas irreversíveis, que fizeram de Israel um grande país. Os sacerdotes? O culto era estatal e vivia amarrado à ordem vigente. 3.3. O que sabemos sobre Amós Am 1,1 serve de título ao livro. Em boa parte este versículo é posterior ao tempo de atividade do profeta. Parte foi escrita por discípulos seus, parte vem da época do exílio ou pós-exílio e é redação da escola deuteronomista 10 . Aqui aprendemos que Amós - abreviação de Amasias, "Iahweh carregou", "Iahweh protegeu" - era natural de Técua, povoado situado ao sul de Jerusalém, a menos de 20 km da capital de Judá. Aprendemos também que ele era pastor. Só fica a dúvida se era pequeno proprietário ou apenas empregado. Trataremos disso ao falarmos de Am 7,10-17. Segundo o título, ele atuou na época de Jeroboão II (782/1-753 a.C.), rei de Israel, e de Ozias (767-739 a.C.), rei de Judá. Além disso, "dois anos antes do terremoto". Em escavações realizadas em Hazor, cidade israelita situada a 5 km do lago de Hule (hoje drenado por Israel, porque produtor de malária), foram encontrados sinais de um terremoto (rachaduras nos muros etc), da primeira metade do século VIII a.C., ou seja, da época de Jeroboão II. O mesmo terremoto deixou sinais também em Samaria. Deve ter sido uma grande catástrofe, pois vários séculos mais tarde Zacarias (cerca de 350 a.C.) ainda o nomeia: "Fugireis assim como fugistes por causa do terremoto nos dias de Ozias, rei de Judá" (Zc 14,5). Assim, podemos estabelecer uma data aproximada para a atuação de Amós: aí pelo ano de 760 a.C.11 10 . O título original, da época de Amós, seria apenas: "Palavras de Amós de Técua". O primeiro acréscimo, feito por discípulos, pouco depois da atuação de Amós, diz: "O que ele viu contra Israel, dois anos antes do terremoto". O segundo acréscimo diz: "Um dos pastores (de ovelhas), nos dias de Ozias, rei de Judá, e nos dias de Jeroboão, filho de Joás, rei de Israel". Este acréscimo deve ter sido feito por redatores deuteronomistas após a queda de Jerusalém em 586 a.C. Cf. KIRST, N. Amós, p. 24-31. 45 Am 7,10-17 narra o episódio da expulsão de Amós, por Amasias, do santuário de Betel. É um texto em prosa, escrito provavelmente por discípulos do profeta de Técua. E nos dá várias informações sobre Amós. Confirmando o título, Amós aparece atuando durante o reinado de Jeroboão II. E em seu santuário real, Betel. Segundo alguns, após ter atuado em Samaria (cf. 3,9-4,3), pois já era personagem conhecido na corte 12 e também porque ele deve ter voltado para Judá após este episódio, que encerraria sua carreira profética. A acusação do sacerdote chefe de Betel, Amasias, contra Amós, é muito grave: subversão. Ele está conspirando contra o rei em seu santuário. "Então Amasias, sacerdote de Betel, mandou dizer a Jeroboão, rei de Israel: 'Amós conspira contra ti, no seio da casa de Israel; a terra não pode mais suportar todas as suas palavras. Porque assim disse Amós: 'Jeroboão morrerá pela espada e Israel será deportado para longe de sua terra'" (Am 7,10-11). E Jeroboão sabe muito bem o que significa uma conspiração profética. Afinal ele é descendente de Jeú, que assumira o poder por meio de uma conspiração menos de um século antes (2Rs 9,1-13). Am 7,14b nos informa: "Eu sou vaqueiro e cultivador de sicômoros". E o v. 15a diz: "Mas Iahweh tirou-me de junto do rebanho". O sicômoro (Ficus sycomorus; em hebraico, schiqmah) é uma árvore da família da figueira. O seu fruto, comestível, se parece com o figo. Só crescia nas regiões baixas, porque precisa de calor, não existindo, portanto, em Técua, que está a 825 metros de altitude. Era comum na região marítima e no vale do Jordão. As frutas devem ser arranhadas com a unha ou com um objeto de metal antes de amadurecerem para que fiquem doces. Talvez fosse esse o serviço de Amós. Somadas as informações, parece que Amós dedicava-se a três atividades: ele era vaqueiro, pastor (de rebanho miúdo) e cultivador de sicômoros. Não se sabe se as três ao mesmo tempo, ou se fora apenas pastor em Técua e agora em Betel era vaqueiro e cultivador de sicômoros. A discussão que aqui aparece é sobre sua posição socioeconômica: seria Amós um pequeno proprietário, dono dos rebanhos de ovelhas e vacas que pastoreava ou era apenas um assalariado? Os autores se dividem. Uma solução definitiva não é possível13. 11 . Am 8,9 faz provável referência a um eclipse solar, quando diz: "Acontecerá naquele dia oráculo do Senhor Iahweh - que eu farei o sol declinar em pleno meio- dia e escurecerei a terra em um dia de luz". Realmente ocorreu um eclipse em 763 a.C., comprovam os astrônomos. 12 . "O v. 10b pressupõe que Amós seja conhecido em Samaria, na corte. Não é preciso explicar quem é o tal de Amós. Basta citar o seu nome e os funcionários da corte já saberão de quem se trata", diz KIRST, N. Amós, p. 103. 13 . Cf. várias opiniões em SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas II, p. 983. 46 Outra coisa importante: Amós recusa, segundo este texto, o título de profeta. Ou porque não aceita ser assimilado aos profetas profissionais da corte e do templo (então a tradução do v. 14a seria: "Não sou um profeta, nem filho de profeta"); ou porque antes, em Técua, não fosse profeta como agora o é em Betel (neste caso a tradução do v. 14a deveria ser: "Não era um profeta, nem filho de profeta")14 . De qualquer maneira, Amós deixa claro que se está em Betel é porque foi convocado por Iahweh, não é por interesse próprio e nem mandado por alguém do sul. Também em 3,3-6.8 Amós fala da "necessidade da profecia": se Iahweh convoca alguém, não há como escapar: "Um leão rugiu: quem não temerá? O Senhor Iahweh falou: quem não profetizará?" (Am 3,8). Interessante é que o próprio Amasias, mesmo denunciando Amós ao rei, reconhece no homem de Técua um profeta e um vidente: "Amasias disse então a Amós: 'Vidente, vai, foge para a terra de Judá; come lá o teu pão e profetiza lá. Mas em Betel não podes mais profetizar, porque é santuário do rei, um templo do reino'" (Am 7,12-13). Sabe, portanto, que suas duras palavras são palavras de Iahweh. Só que não pode aceitá-las no santuário real, porque são contra os interesses do governo de Jeroboão II. Finalmente, há o problema da duração da atividade profética de Amós. Nada sabemos de concreto. Alguns exegetas chegam a limitar a sua atuação a um discurso de apenas vinte ou trinta minutos, mas "o mais provável é que ele pregasse durante algumas semanas ou meses e em diversos lugares: Betel, Samaria, Guilgal. Até que esbarra com a oposição dos dirigentes"15. 3.4. Os oráculos contra as nações Em Am 1,3-2,16 temos uma série de oráculos contra as nações vizinhas de Israel e um oráculo dirigido ao próprio Israel. Estes oráculos contra os vizinhos são bastante comuns nos profetas. São ocasionados pelas relações nem sempre amistosas entre Israel e o os países limítrofes e querem demonstrar a soberania de Iahweh sobre todos os povos e a sua proteção especial para Israel. 14 . Cf. a discussão sobre a tradução no passado ou no presente em KIRST, N. Amós, p. 113-116. 15 . SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas II, p. 983-984. 47 O esquema dos oráculos é rigoroso: sentença - crime - castigo. E o anúncio é feito em várias direções: Damasco, a nordeste; Gaza, no poente; Tiro, a noroeste; Edom, a sudeste e Amon e Moab no nascente. Alguns comentaristas de Amós supõem que tais oráculos tenham sido ditos numa mesma ocasião, resultando daí uma típica dramatização oriental. Os ouvintes judeus e, especialmente, israelitas, que escutam Amós, ficam contentes com estes oráculos dirigidos a seus vizinhos e inimigos. Vira-se o profeta para o sul e acusa Judá: isto alegra muito os ouvintes de Israel do norte, pois a rivalidade entre os dois países permanece. Completa-se, com este, o número sete. Completou-se a série, assunto encerrado. Mas para surpresa geral, volta-se o profeta contra Israel e proclama um oitavo oráculo. E tão extenso, fazendo dos outros apenas prelúdios seus. Deixa mudos os ouvintes, de boca aberta 16. Sem dúvida, há a possibilidade de que tais oráculos tenham sido pronunciados em ocasiões diversas. Portanto, a ordem presente aqui no livro seria obra de um redator e a dramaticidade pensada acima não passaria de pura imaginação. Além do que, muitos autores consideram os oráculos contra Edom, Tiro e Judá como adições posteriores17. É importante salientar que Amós aponta, nestes oráculos, basicamente a crueldade da guerra e consequente escravização de populações inteiras. O exército, como avalista da espoliação, é o alvo central de Amós. A estrutura do oráculo contra Israel difere bastante da estrutura comum dos outros: não se afirma Iahweh como senhor supremo e juiz da história, julgando do alto os crimes internacionais. Aqui, Iahweh é a parte ofendida e apresenta queixa contra o ofensor, provando sua própria inocência e a culpa de Israel. Assim, Iahweh pode exercer seu direito de vingança, segundo os códigos israelitas. A base da acusação é a existência de um compromisso mútuo, uma aliança que foi rompida por Israel. J. L. Sicre, analisando este oráculo, aponta em Israel sete crimes 18: 1. "vendem o justo (tsaddîq) por dinheiro": desprezo ao devedor 2. "o indigente ('ebyôn) por um par de sandálias": escravização por dívidas ridículas 3. "esmagam sobre o pó da terra a cabeça dos fracos (dallîm)": humilhação/opressão dos pobres 4. "tornam torto o caminho dos pobres ('anawim)": desprezo pelos humildes 5. "um homem e seu pai vão à mesma jovem": opressão dos fracos (das empregadas/escravas) 6. "se estendem sobre vestes penhoradas, ao lado de qualquer altar": falta de misericórdia nos empréstimos 16 . Cf., para esta hipótese, SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L., o. c., p. 991-992. 17 . Cf. SCHWANTES, M. A terra não pode mais suportar suas palavras, p. 63ss. 18 . Cf. SICRE, J. L. A justiça social nos profetas. São Paulo: Paulus, 1990, p. 129-147. A interpretação destes versículos é bastante problemática. Há várias possibilidades de tradução e de leitura dos problemas apresentados. 48 7. "bebem vinho daqueles que estão sujeitos a multas, na casa de seu deus": mau uso dos impostos (ou multas). Amós, com os termos tsaddîq (justo), 'ebyôn (indigente), dal (fraco) e 'anaw (pobre), designa as principais vítimas da opressão na sua época. Sob estes termos Amós aponta o pequeno camponês, pobre, com o mínimo para sobreviver e que corre sério risco de perder casa, terra e liberdade com a política expansionista de Jeroboão II. É em sua defesa que Amós vai profetizar. 3.5. Amós clama por justiça Vamos fazer aqui algumas observações gerais sobre o livro e sobre a pregação de Amós. Depois passaremos aos seus oráculos centrais. O material que compõe o livro de Amós foi organizado por seus redatores seguindo o princípio das palavras de ligação e obedecendo à temática tratada : Am 1,3 1,6 1.9 1,11 1,13 2,1 2,4 2,6 : Assim falou Iahweh... a Damasco : " " " a Gaza : " " " a Tiro : " " " a Edom : " " " a Amon : " " " a Moab : " " " a Judá : " " " a Israel Am 3,1 4,1 5,1 : Ouvi esta palavra : " " " : " " " Am 5,7 5,18 6,1 : Ai daqueles : " " : " " Am 7,1 7,4 7,7 : Assim me fez ver o Senhor Iahweh : " " " " " " " : Assim me fez ver Am 7,10-17: Amós é expulso de Betel 8,1 : Assim de fez ver o Senhor Iahweh Am 8,4 : Ouvi isto Am 9,1 : Vi o Senhor Agora podemos dividir o livro de Amós assim: 49 Título, local, data 1. Oráculos contra as nações 2. Palavras e ameaças contra Israel 3. Visões simbólicas e dados biográficos : 1,1-2 : 1,3-2,16 : 3,1-6,14 : 7,1-9,15 Falemos, rapidamente, da autenticidade do livro 19 . Embora haja muita discussão, os autores admitem que a maior parte do livro procede de Amós. É o caso de pelo menos cinco dos oito oráculos contra as nações, do ciclo anti-Samaria (3,3-4,3), das visões simbólicas e outros. Discípulos do profeta, pouco tempo depois de sua atuação, acrescentaram textos tais como 7,10-17; 8,4-14; 9,8-10 etc. Am 8,4-7, por exemplo, diz o seguinte: "Ouvi isto, vós que esmagais o indigente e quereis eliminar os pobres da terra, vós que dizeis: 'Quando passará a lua nova, para que possamos vender o grão, e o sábado, para que possamos vender o trigo, para diminuirmos o efá, aumentarmos o siclo e falsificarmos as balanças enganadoras, para comprarmos o fraco com dinheiro e o indigente por um par de sandálias e para vendermos o resto do trigo?' Iahweh jurou pelo orgulho de Jacó: Não esquecerei jamais nenhuma de suas ações". Adições posteriores foram feitas ao livro. Algumas na época de Josias, quando este rei destruiu o santuário de Betel, pouco mais de um século após o tempo de Amós. Como 1,2;4,6-13;5,6-9;9,5-6. Am 1,2 diz o seguinte: "Ele disse: Iahweh rugirá de Sião, de Jerusalém levantará a sua voz, e murcharão as pastagens dos pastores e secará o cimo do Carmelo". Outras foram feitas pelos teólogos deuteronomistas após a queda de Jerusalém em 586 a.C. Seriam deuteronomistas 1,9-12;2,4--5.10-12;5,25-26 etc. Am 2,10-12, adição deuteronomista, diz o seguinte: 19 . Cf. WOLFF, H. W. La Hora de Amós. Salamanca: Sígueme, 1984, p. 185-200; SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas II, p. 988-989; KIRST, N. Amós, p. 21-23; CARROLL R., M. D. Amos The Prophet and His Oracles: Research on the Book of Amos. Louisville: Westminster John Knox, 2002. 50 "E eu vos fiz subir da terra do Egito e vos conduzi pelo deserto, durante quarenta anos, para tomar posse da terra do amorreu! Suscitei de vossos filhos, profetas, e de vossos jovens, nazireus! Não foi, realmente, assim, israelitas? Oráculo de Iahweh. Mas vós fizestes os nazireus beber vinho e ordenaste aos profetas: 'Não profetizeis'". Finalmente, no pós-exílio foi feita uma releitura escatológica de Amós. Pertence a esta época o oráculo final do livro, 9,11-15, que modera a dura crítica do profeta através de uma promessa de restauração de Israel. Am 9,14-15 garante esta restauração após a experiência do exílio: "Mudarei o destino de meu povo, Israel; eles reconstruirão as cidades devastadas e as habitarão, plantarão vinhas e beberão o seu vinho, cultivarão pomares e comerão os seus frutos. Eu os plantarei em sua terra e não serão mais arrancados de sua terra, que eu lhes dei, disse Iahweh teu Deus". Quanto ao teor de sua pregação , observa-se com facilidade que Amós fala de castigo de ponta a ponta. Para ele o fim de Israel é apenas uma questão de tempo. Um ataque inimigo punirá a nação. Am 3,11 fala do ataque inimigo: "Por isso assim falou o Senhor Iahweh: Um inimigo cercará a terra, arrancará de ti o teu poder, e os teus palácios serão saqueados". Por quê? Porque Israel comete crimes, sendo os principais: o luxo das classes altas a injustiça dos ricos contra os pobres o falso culto a Iahweh a falsa segurança religiosa. Alguns exemplos da denúncia destes crimes: "Eles estão deitados em leitos de marfim, estendidos em seus divãs, 51 comem cordeiros do rebanho e novilhos do curral, improvisam ao som da harpa, como Davi, inventam para si instrumentos de música, bebem crateras de vinho e se ungem com o melhor dos óleos, mas não se preocupam com a ruína de José" (Am 6,4-6). "Por isso: porque oprimis o fraco e tomais dele um imposto de trigo, construístes casas de cantaria, mas não as habitareis; plantastes vinhas esplêndidas, mas não bebereis o seu vinho. Pois eu conheço vossos inúmeros delitos e vossos enormes pecados! Eles hostilizam o justo, aceitam suborno, e repelem os indigentes à porta" (Am 5,11-12). "Eu odeio, eu desprezo as vossas festas e não gosto de vossas reuniões. Porque, se me ofereceis holocaustos..., não me agradam as vossas oferendas e não olho para o sacrifício de vossos animais cevados. Afasta de mim o ruído de teus cantos, eu não posso ouvir o som de tuas harpas! Que o direito corra como a água e a justiça como um rio caudaloso!"(Am 5,21-24). Como escapar? É necessário procurar Iahweh, para viver. Que não é procurar os santuários, mas é procurar o bem e odiar o mal. Então, talvez Iahweh tenha compaixão e salve um resto de Israel, aquele fiel (Am 5,4-7.14-15). 3.6. Palavras e ameaças contra israel Já falamos dos oprimidos. Mas quem são os opressores, segundo Amós? São os que vivem em palácios e acumulam (3,10), são as senhoras da alta sociedade (4,1), são os que constroem boas casas e plantam excelentes vinhas (5,11), são os que aceitam suborno na administração da justiça (5,12), são os que vivem no luxo e na boa vida (6,4-6), são os que controlam o comércio (8,4-6). Enfim, "Amós, como outros profetas após ele, identifica os opressores com os que detêm o poder econômico, político e judicial" 20 . 20 . Cf. SICRE, J. L. A justiça social nos profetas, p. 200. SCHWANTES, M. A terra não pode suportar suas palavras, p. 59-76 diz que os opressores de Israel, segundo Amós, são: os sacerdotes (Templo), os juízes, os senhores de escravos, o exército, os cidadãos (cidade). 52 Esta realidade aparece claramente no bloco central dos oráculos de Amós, composto por três palavras e três ameaças contra Israel (3,1-6,14). Complementam estas denúncias os oráculos de 8,4-14. Vamos exemplificar com alguns textos o que Amós pregou após as visões simbólicas e antes de ser expulso de Betel. Em Am 3,9-15 as nações (filisteus ou assírios e egípcios) são convidadas a assistirem, como num teatro, a injustiça que reina em Samaria, capital do reino do norte. Os vv. 9-10 dizem o seguinte: "Proclamai nos palácios de Azoto e nos palácios da terra do Egito; dizei: reuni-vos nas montanhas de Samaria, e vede as numerosas desordens em seu seio, as violências em seu meio! Não sabem agir com retidão, - oráculo de Iahweh aqueles que amontoam opressão e rapina em seus palácios". No v. 11 o inimigo mencionado é a Assíria que no tempo de Amós já era uma grande nuvem negra no horizonte de Israel. E a tempestade viria realmente em 722 a.C. O v. 12 vai descrever, com imagens pastoris, a destruição cruel por que passará Samaria: será despedaçada como uma ovelha pelo leão. No v. 14 a ameaça é contra o santuário de Betel, que era um santuário estatal. O santuário será punido por causa da idolatria cultual. Os cornos do altar eram seus quatro cantos que imitavam a forma de chifres e onde se podia pedir asilo político (1Rs 1,50). Mas até mesmo esta última possibilidade de refúgio será destruída. No v. 15 é condenada a riqueza dos grandes de Israel, contrária ao espírito da aliança: "Eu abaterei a casa de inverno com a casa de verão, as casas de marfim serão destruídas, e muitas casas desaparecerão, oráculo de Iahweh". Em Am 4,1-13 as mulheres de Samaria, que incitavam seus maridos (= senhores) a explorar o pobre, são chamadas ironicamente de "vacas de Basã". Esta era um planície fértil, famosa por suas vacas e pastagens. O v. 1 diz: "Ouvi esta palavra, vacas de Basã, que estais sobre o monte de Samaria, que oprimis os fracos, esmagais os indigentes 53 e dizeis aos vossos maridos: 'Trazei-nos o que beber!'". O v. 2 descreve a população sendo levada pendurada em anzóis, ou ganchos, como se fazia com os animais mortos. O v. 3 refere-se às brechas abertas nos muros de Samaria pelos inimigos, por onde as mulheres da capital fugirão. Observe-se o contraste entre a riqueza e o luxo, descritas no v. 1, com a situação de desespero e destruição da guerra contra a Assíria. Nos vv. 4-5 Amós se lança contra os santuários de Betel e Guilgal. O culto é realizado como fim em si mesmo e não como oferta a Iahweh. Caíram no puro ritualismo que agrada a eles mesmos, mas não a Iahweh: "Entrai em Betel e pecai! Em Guilgal, e multiplicai os pecados! Oferecei, pela manhã, os vossos sacrifícios, e ao terceiro dia os vossos dízimos! Queimai pão fermentado como sacrifício de louvor, proclamai vossas oferendas voluntárias, anunciai-as, porque é assim que gostais, israelitas, oráculo do Senhor Iahweh". Nos vv. 6-12 são descritos os castigos que Iahweh lançava periodicamente ao povo para que abrisse os olhos e se arrependesse: fome, seca, pragas na agricultura, peste e terremoto (como em Sodoma e Gomorra). Fenômenos vistos pelo profeta como provocados diretamente por Iahweh, para alertar o povo e puni-lo. Em Am 6,1-14 estamos frente à terceira ameaça. Ameaça dirigida aos ricos que esbanjam luxo e confiam em suas riquezas, fruto da espoliação da população israelita. Descrevendo os destinatários da ameaça, o texto vai fazendo a sua denúncia. Através da pergunta retórica do v. 2 percebe o leitor todo o alcance da denúncia contra a autoconfiança e o orgulho dos poderosos em Israel. No final, a sentença de Iahweh é correspondente à gravidade do crime cometido. "Sim, eis que vou suscitar contra vós, casa de Israel, - oráculo de Iahweh, Deus dos Exércitos uma nação que vos oprimirá desde a entrada de Emat até a torrente da Arabá" (Am 6,14). Podemos terminar este roteiro lembrando que o tema central de Amós é o fim de Israel, porque os ricos oprimem os pobres, os poderosos deturpam a justiça (tsedhâqâh) e o direito (mishpât), subornam os juízes nos tribunais e cometem muitas outras barbaridades. E ainda por cima vão aos santuários e ali oferecem custosos sacrifícios e participam de grandes celebrações, ocultando a opressão que se comete sistematicamente. 54 Gostaria de lembrar aqui um pequeno trecho do documento "Eu ouvi os clamores de meu povo", elaborado pelos bispos e superiores religiosos do Nordeste brasileiro em 06.05.1973 e que, a meu ver, continua atualíssimo: "As estruturas econômica e social em vigor no Brasil são edificadas sobre a opressão e a injustiça, que provêm de uma situação de capitalismo dependente dos grandes centros internacionais do poder. Dentro de nosso país, pequenas minorias, cúmplices do capitalismo internacional, e a seu serviço, empenham-se, através de todos os meios possíveis, por preservar uma situação criada em seu favor. Instalou-se, com isto, uma conjuntura que não é humana e que, pelo mesmo fato, não é cristã". 4. OSEIAS: O POVO AFASTOU-SE DE IAHWEH 55 "Eu te desposarei a mim para sempre, eu te desposarei a mim na justiça e no direito, no amor e na ternura. Eu te desposarei a mim na fidelidade e conhecerás a Iahweh" (Os 2,21-22). Após a morte de Jeroboão II, em 753 a.C., Israel do norte entrou em grande crise: pressão assíria constante e golpes internos com sangrentos assassinatos tornamse a característica fundamental destes últimos 30 anos do reino de Samaria, época em que atuou Oseias. Sem legitimidade perante o povo, a maioria dos reis abandonou o javismo e se apoiou em crescente baalização, medida necessária para quem estava submetido a determinações do grande império assírio e que, por isso, precisava explorar duplamente os camponeses com o recolhimento exorbitante do tributo para sustentar as elites internas e as exigências do império. Vamos, neste capítulo, abordar, em primeiro lugar, o programa profético de Oseias e sua compreensão da realidade de Israel, tão bem definidos nos 3 primeiros capítulos de seu livro. Em seguida, um olhar sobre a situação da época, para depois verificarmos a parte central do livro, onde Oseias apresenta detalhadamente os mecanismos idolátricos que proliferam no país. No quarto momento, uma síntese do pensamento de Oseias e, finalmente, veremos seu apelo de volta ao javismo como forma de salvar o país. O que, infelizmente, não aconteceu, pois Israel foi destruído em 722 a.C. pelos assírios e quem sobreviveu nunca mais voltou do exílio. 4.1. Exemplificando a infidelidade A primeira parte do livro, Os 1,1-3,5, é muito discutida. Não se sabe se estes capítulos iniciais falam de uma experiência real do profeta, que teria se casado, de fato, com uma prostituta, ou se temos aqui apenas uma parábola. Parece que os elementos do texto são insuficientes para uma decisão definitiva. Mesmo que tenha sido uma experiência vivida por Oseias, permanece um problema: ou Gomer, mulher de Oseias, era uma prostituta sagrada, mulher dedicada aos cultos da fertilidade; ou era uma mulher comum, que mais tarde foi infiel a Oseias, deixando-o; ou não seria, até mesmo, nem uma coisa nem outra, sendo a história toda uma incorreta interpretação dos discípulos do profeta, que teriam escrito estes três primeiros capítulos do livro1 . O interessante é que este início de Oseias já coloca programaticamente, através do simbolismo do matrimônio - mesmo que tenha sido real ele é elevado aqui à categoria de símbolo -, todo o arcabouço semântico que organiza o livro: em um polo . Cf. SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas II, p. 889 acreditam que “‘Gomer não era prostituta, no entanto ela foi infiel ao marido e o abandonou’’. 1 56 estão o amor, a união e a fecundidade, no outro comandam o desvio, a ruptura e a morte. E com todas as gradações possíveis entre os dois polos opostos, como no movimento de um pêndulo. É aí que se move Israel. O programa de um texto profético, em geral, aparece na narrativa da vocação do profeta. Aqui, aparece todo em Os 1,2-9. "Estamos tentados a chamar esta seção de 'abertura' da obra, porque a resume ou contém em germe, antecipando seus temas principais" 2 . Afinal, o capítulo primeiro conta como Oseias casou-se com uma mulher dedicada à prostituição, de nome Gomer, filha de Diblaim, e teve com ela três filhos. Seus nomes são símbolos da situação de Israel. O primeiro filho recebe o nome de "Yzreel", uma alusão ao local da chacina operada pelo general Jeú contra a dinastia de Omri, na planície de Jezrael. A segunda filha chama-se "Não-Amada", porque Iahweh não mais amará a casa (= governo) de Israel. E o terceiro filho tem o nome de "Nãomeu-povo", porque a aliança Iahweh-Israel foi rompida. “Disse Iahweh a Oseias: ‘Vai, toma para ti uma mulher que se entrega à prostituição (‘êsheth zenûnîm) e filhos da prostituição (weyaldê zenûnîm), porque a terra se prostituiu (kî zânoh thizneh hâ’ârets) constantemente, afastando-se de Iahweh’. Ele foi e tomou Gomer, filha de Deblaim...” (Os 1,2-3a). Os três primeiros capítulos de Oseias estão organizados, segundo especialistas, da seguinte forma: A) 1,2-9: o casamento de Oseias B) 2,1-3: os filhos e seus nomes C) 2,4-17: a mulher = o povo B') 2,18-25: os filhos e seus nomes A') 3,1-5: o casamento de Oseias3. O poema central, 2,4-17, começa com uma acusação do esposo contra a esposa infiel. Acusação feita pelos seus próprios filhos: a esposa é Israel, os filhos são os israelitas. Ironicamente, os filhos estão tão implicados quanto sua mãe... "Processai vossa mãe, processai. Porque ela não é minha esposa, e eu não sou seu esposo. Que ela afaste de seu rosto as suas prostituições e de entre os seios seus adultérios. Senão eu a despirei completamente, Deixá-la-ei como no dia de seu nascimento, torná-la-ei semelhante a um deserto, transformá-la-ei numa terra seca, 2 3 . Idem, ibidem, p. 897. . Cf. Idem, ibidem, p. 893; BUSS, M. J. The Prophetic Word of Hosea. A Morphological Study. Berlin: Alfred Töpelmann, 1969. 57 fá-la-ei morrer de sede. Não amarei seus filhos, porque são filhos da prostituição" (Os 2,4-6). Após várias ameaças e castigos, o marido vai de novo conquistar sua esposa. É um símbolo de Iahweh que vai reconquistar Israel, afastando-o dos cultos dos baalim e reconstituindo a sua prosperidade e sua paz. Enfim, a aliança será refeita e permanecerá (Os 2,16-25)4 . Esta é a linguagem do profeta: “Por isso, eis que, eu mesmo, a seduzirei, conduzi-la-ei ao deserto e falar-lhe-ei ao coração” (Os 2,16) “Farei em favor deles, naquele dia, um pacto com os animais do campo, com as aves do céu e com os répteis da terra. Exterminarei da face da terra o arco, a espada e a guerra; fá-los-ei repousar em segurança. Eu te desposarei a mim para sempre eu te desposarei a mim na justiça e no direito, no amor e na ternura. Eu te desposarei a mim na fidelidade e conhecerás a Iahweh” (Os 2,20-22). Observamos aqui grande concentração dos conceitos fundamentais da profecia: justiça (tsedheq), direito (mishpât), solidariedade/amor (hesedh), fidelidade (‘emûnâh) e e conhecimento de Deus (da’at ‘ lohîm). 4.2. A Assíria vem aí: para Israel é o fim Agora é hora de dar uma olhada na situação política e social da época de Oseias para entendermos porque o profeta está falando tanto da infidelidade de Israel. Ao tratarmos de Amós, vimos como, sob Jeroboão II, Israel vivera um período de grande prosperidade. Com a morte de Jeroboão II desabou tudo. Se durante o seu reinado a situação do povo não era nada boa, agora tudo piorou. A corrupção interna era enorme e as pressões e ameaças externas terríveis. De 753 a 722 a.C. seis reis de sucederam no trono de Samaria, abalado por assassinatos e golpes sangrentos. A Assíria passou a constituir-se na grande ameaça internacional a partir da política expansionista do rei Tiglat-Pileser III, inaugurada em 745 a.C5. 4 . Na verdade, o poema é de uma dramaticidade impressionante. "Se supormos que o poema responde a experiência viva do profeta, mister se faz pensar em homem fortemente apaixonado, que, quando a esposa o trai, tenta livrar-se do amor a fim de não sofrer, e não o consegue. A paz seria esquecer, e o amor não o permite", comentam SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. o. c., p. 902. 5 . Para saber mais sobre Tiglat-Pileser III e seu governo, cf. GARELLI, P. ; NIKIPROWETZKY, V. O Oriente Próximo Asiático: impérios Mesopotâmicos-Israel. São Paulo: Pioneira-Edusp, 1982, p. 8796. 58 Em pouco tempo Israel já era tributário da Assíria. Foi estabelecido um imposto per capita que atingiu cerca de 60 mil proprietários de terras e penalizou demasiado a população. Aí começaram os golpes de Estado em Israel. As alianças com a Assíria ou contra a Assíria se sucediam. E pior: o rei Pecah, de Israel, fez um acordo com o governo de Damasco e ambos decidiram invadir Judá para jogar o reino do sul numa coalizão anti-assíria. É a chamada guerra siro-efraimita, desencadeada em 734 a.C. É o começo do fim. Judá pediu o auxílio da Assíria e Tiglat-Pileser III acabou por conquistar três quartos de Israel, reduzindo o país a quase nada. Poucos anos depois, em 722 a.C., Samaria foi destruída pelas tropas assírias de Salmanasar V e Sargão II, pondo fim ao reino do norte que congregava a maior parte das tribos israelitas. Conforme os anais de Sargão II, foram deportados para a Mesopotâmia e a Média 27.290 samaritanos 6. O território de Israel foi anexado ao império assírio e para lá foram levados deportados da Babilônia e da Síria. Com eles chegaram outros costumes e outros deuses. Foi o fim definitivo do reino do norte. “Depois, o rei da Assíria invadiu toda a terra e pôs cerco a Samaria durante três anos. No nono ano de Oseias, o rei da Assíria tomou Samaria e deportou Israel para a Assíria, estabelecendo-o em Hala e às margens do Habor, rio de Gozã [norte da Mesopotâmia] e nas cidades dos medos (...) O rei da Assíria mandou vir gente de Babilônia, de Cuta [situada ao norte de Babilônia], de Ava [provavelmente na Síria], de Emat [na Síria] e de Sefarvaim [?], e estabeleceu-os nas cidades de Samaria, em lugar dos israelitas; tomaram posse de Samaria e fixaram-se em suas cidades” (2Rs 17,5-6.24). E em um texto assírio Sargão II informa: “Aumentei a cidade de Samaria e a fiz maior do que antes; fiz vir para ela gente dos países que eu tinha conquistado com minhas próprias mãos”. Segundo os Anais deste rei, para Samaria ele transferiu sobreviventes das tribos árabes rebeldes de Tamud, Ibadidi, Marsimanu e Haiapa 7. 4.3. Onde está a raiz do mal? 6 . Cf. PRITCHARD, J. B. (ed.) Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament (= ANET). 3. ed. Princeton: Princeton University Press, 1969, p. 284-285; FUCHS, A. Die Inschriften Sargons II. aus Khorsabad. Göttingen: Cuvillier, 1994, p. 313-314. Cf. ainda FINKELSTEIN, I. ; SILBERMAN, N. A. A Bíblia não tinha razão. São Paulo: A Girafa, 2003, p. 304-307. 7 287. . Cf. PRITCHARD, J. B. (ed.) Ancient Near Eastern Texts relating to the Old Testament, p. 284- 59 Olhemos agora os capítulos 4-11 de Oseias para percebermos o seu discernimento profético frente à situação acima descrita, pois foi naquela época que ele viveu. Nos capítulos 4-11 assumem posição fundamental os verbos de movimento. Segundo Oseias, o comportamento dominante cria em Israel uma situação de distanciamento entre Iahweh e o povo de Israel. O povo se recusa vir a Iahweh, não quer procurá-lo. Mesmo quando o procura, procura mal. Por outro lado, Iahweh se retira, ou melhor, visita Israel para castigá-lo. O tema do movimento pode ser organizado em quatro seções, que é também um processo (rîbh) em quatro tempos: * 4,1-5,7 * 5,8-7,16 * 8,1-14 * 9,1-11,11 : Israel não volta para Iahweh: é a constatação da impenitência : Israel volta, mas volta mal: é a constatação da falsa penitência : como castigo, o povo irá para o Egito: é o rompimento da aliança, pelo bezerro de ouro e pela monarquia sem fidelidade a Iahweh : as etapas deste exílio são: a expulsão da terra - o Egito - a volta à terra: é o anúncio da cura que consiste em novo êxodo para Israel8. O pequeno bloco de Os 4,1-3 é muito interessante para se entender a perspectiva global do profeta, porque serve de introdução a toda a seção. "Ouvi a palavra de Iahweh, israelitas, pois Iahweh abrirá um processo contra os habitantes da terra, porque não há fidelidade (‘emeth) nem solidariedade (hesedh), nem conhecimento de Deus (da'at 'elohîm) na terra. Mas perjúrio e mentira, assassínio e roubo, adultério e violência, e o sangue derramado soma-se ao sangue derramado. Por isso a terra se lamentará, desfalecerão todos os seus habitantes e desaparecerão os animais dos campos, as aves dos céus e até os peixes do mar" (Os 4,1-3). Temos aqui três categorias negativas superpostas: a falta de conhecimento de Deus (da'at 'elohîm), que se manifesta como ausência de fidelidade ('emeth) e solidariedade (hesedh) as desordens sociais, causadas pela falta de conhecimento: perjúrio, mentira, assassínio, roubo, adultério, homicídio a morte, com a desagregação do universo. Os animais, os pássaros e os peixes desaparecem. O homem fenece. Portanto, segundo Oseias, a raiz mais profunda do mal é a falta de conhecimento de Deus. Que não é conhecimento intelectual ou cultual. É a experiência ou vivência do javismo que está em jogo. Oseias está dizendo que o problema em Israel 8. Cf. LACK, R. Osée 4-14. Études de structure. Roma: Curso do Pontifício Instituto Bíblico, 1974-75, p. 13. 60 é que não há mais espaço para os valores do javismo e isso causa a desagregação da sociedade. A partir desta verificação, o profeta passa a acusar os responsáveis por esta constatada desagregação. Em Os 4,4-10 o processo é contra os sacerdotes. Sua culpa: recusam-se eles a ser mediadores do autêntico conhecimento de Iahweh, tornando-se meros executores de ritos vazios e mais: ritos dos cultos da fertilidade. Cúmplices seus são também os profetas, talvez os profetas oficiais da corte. Não bastará aos sacerdotes a luz do dia, como não bastarão aos profetas seus sonhos ou visões: fracassarão. "Sim, que ninguém abra um processo e que ninguém julgue! Pois, na realidade, o meu processo é contra ti, ó sacerdote! Tropeçarás de dia, e contigo tropeçará, de noite, também o profeta; farei perecer a tua mãe. Meu povo será destruído por falta de conhecimento. Porque tu rejeitaste o conhecimento, eu te rejeitarei do meu sacerdócio; porque esqueceste o ensinamento de teu Deus, eu também me esquecerei dos teus filhos" (Os 4,4-6). Em Os 4,11-19 a acusação passa do sacerdote para a população e dos templos para os "lugares altos" dos cultos idolátricos. O tema é o mesmo: a prostituição cultual. A raiz zânah, "prostituir-se", aparece 7 vezes no texto 9 . A imagem matrimonial continua a ser usada por Oseias. Assim, Israel, ao cultuar outros deuses, está cometendo adultério e prostituição. E o profeta pondera: "Um povo que não tem entendimento caminha para a perdição" (Os 4,14b). No v. 12 observamos a crítica às práticas divinatórias que utilizavam objetos sagrados de madeira. A adivinhação, assim como o exorcismo, servia, em todos os países de cultura agrária do Crescente Fértil, para preservar ou libertar o homem das influências do mal e garantir o seu futuro. A adivinhação era a mais elevada das ciências, a ciência "das coisas ocultas, dos mistérios dos céus e da terra", como diziam os babilônios. O especialista consultava a vontade divina, através de sonhos, de visões, de fenômenos atmosféricos ou astronômicos e das tábuas do destino. Enfim, através de um ritual sagrado que supunha o uso de objetos também sagrados . 9 . O vocábulo zanah é usado 95 vezes no AT. Desta raiz deriva taznût, "fornicação" (22 vezes, sendo usado só em Ez 16 e 23), zenûnîm, "prostituição" (11 vezes), zenût, "prostituição" (9 vezes) e zônâh, "prostituta". Todos estes termos indicam, indiferentemente, a prostituição sagrada ou cultual e a idolatria. Encontramos ainda o vocábulo qadêsh (pl. qedêshim, fem. qedêshah e seu pl. qedeshôt), derivado do verbo qadash, "santificar", "ser santo", para indicar o homem ou a mulher que se prostitui no culto aos deuses da fertilidade (Dt 23,18;1Rs14,24;15,12). 61 "No decurso de sua formação os adivinhos iniciavam-se nos ritos fundamentais cujo conhecimento era interdito ao comum dos mortais (...) O segredo não era de ordem conceitual e sim ritual: residia na disposição de certo número de gestos e palavras, que adquiriam eficácia particular para o oficiante, em virtude dessa mesma disposição" 10. Os métodos divinatórios são variados: chuva, trovão, direção do relâmpago e terremotos deram origem às hemerologias (textos que listam os dias fastos e nefastos), calendários e menológios (descrição dos meses). Extremamente apreciada era a hepatoscopia (exame das entranhas, especialmente do fígado, de animais sacrificados), assim como a lecanomancia (observação de lagos e tanques ou do som de objetos ao caírem na água). Ésquilo, poeta trágico grego que viveu de 525 a 426 a.C., elenca, em Prometeu Acorrentado, os vários tipos de adivinhações: "Elucidei-lhes todos os gêneros de adivinhações: fui o primeiro a distinguir, entre os sonhos, as visões reveladoras da verdade; expliquei-lhes os prognósticos difíceis, bem como os prognósticos fortuitos ou transitórios. Interpretei precisamente o voo das aves de rapina, bem como os augúrios, felizes ou sinistros, que provêm de outros animais; fiz ver quando reina entre eles o ódio, ou a concórdia e a união: enfim, o que pode haver nas entranhas das vítimas, de agradável aos deuses, no aspecto e na cor; na beleza das formas do fel e do fígado. Estendendo sobre o fogo, num envoltório de gordura, as partes internas e os membros dos animais, iniciei os mortais numa ciência difícil, dando-lhes a conhecer signos até então ignotos"11 . Em Os 5,1-7 o profeta constata, com pesar, a situação a que chegou Israel (a referência a Judá é um acréscimo posterior). Não há meio de Israel voltar para Iahweh: "Suas obras não lhe permitem voltar para o seu Deus, pois um espírito de prostituição está em seu seio e eles não conhecem a Iahweh. O orgulho de Israel testemunha contra ele, Israel e Efraim tropeçam em sua iniquidade" (Os 5,4-5a). O profeta vai mostrar, em seguida, que o arrependimento dos israelitas é falso. Palavras bonitas, mas que evocam os símbolos do renascimento cósmico dos baalim cananeus, dos quais se acreditava renascessem como a natureza em seus ciclos. Em Os 6,1-6, por exemplo, o profeta denuncia que Israel espera a vinda de Iahweh como um fenômeno cíclico, como acontece com a natureza. Oseias, porém, afirma o contrário, lembrando a ação histórica de Iahweh, exigindo a solidariedade e o conhecimento de Deus e não simplesmente ritos vazios (holocaustos e sacrifícios). 10 . GARELLI, P. ; NIKIPROWETZKY, V. O Oriente Próximo Asiático II, p. 152. Cf. ampla descrição dos métodos divinatórios em SICRE, J. L. Profetismo em Israel: o profeta, os profetas, a mensagem. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 27-64. 11 . ÉSQUILO, Prometeu Acorrentado. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d, p. 123. Cf. o texto grego original ou a sua tradução para o inglês, disponível online, na Perseus Digital Library, em <http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3atext%3a1999.01.0009>. Em português, o texto online de Prometeu Acorrentado pode ser encontrado em vários sites. Experimente, por exemplo, <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/prometeu.pdf>. 62 "Que te farei, Efraim? Que te farei, Judá? O vosso amor (hesedh) é como a nuvem da manhã, como o orvalho que cedo desaparece. Por isso eu os feri por intermédio dos profetas, matei-os pelas palavras de minha boca, e meu julgamento (mishpât) surgirá como a luz. Porque é amor (hesedh) que eu quero e não sacrifício, conhecimento de Deus (da'at 'elohîm) mais do que holocaustos" (Os 6,4-6). Em Os 7,3-7 o profeta de Samaria ataca, com amargura, a situação golpista que viveu Israel naqueles anos. Vários reis se sucediam no trono, assassinando seus antecessores, sendo por sua vez assassinados... O princípio da legitimidade da sucessão dinástica nem era lembrado. Valia era o jogo do poder, da força, dos interesses. Houve 4 golpes de Estado (golpistas: Salum, Menahem, Pecah e Oseias) e 4 assassinatos (assassinados: Zacarias, Salum, Pecahia e Pecah): Zacarias, filho de Jeroboão II, governou 6 meses (753 a.C.) e foi assassinado Salum, filho de Jabes, governou 1 mês (753/2 a.C.): foi assassinado Menahem, filho de Gadi, (753/2-742 a.C.), que matou Salum, já teria começado a pagar tributo à Assíria: "Menahem pagou a Pul (= Tiglat-Pileser III) mil talentos de prata para que o apoiasse e consolidasse o poder real em suas mãos", diz 2Rs 15,19. Pecahia, filho de Menahem, reinou de 743/1 a 740 a.C. e foi assassinado Pecah, filho de Romelias, governou de 740/39 a 731 a.C. Oseias, filho de Ela, assassinou Pecah e foi o último rei de Samaria, de 731 a 722 a.C. É por isso que diz Oseias: "No dia de nosso rei, os chefes adoecem pelo calor do vinho, e ele estende a sua mão aos petulantes quando se aproximam. Seu coração é como um forno em suas insídias, a noite inteira dorme a sua ira, pela manhã ela arde como uma fogueira. Todos eles estão quentes como um forno, devoram seus juízes. Todos os seus reis caíram. Não há entre eles quem me invoque!" (Os 7,5-7). Os 8,1-14 descreve o castigo preparado por Iahweh para Israel: uma nova "ida para o Egito", que, na verdade, é agora a Assíria. É a quebra da aliança pela prática da idolatria cultual no sacrifício ao bezerro de ouro e pela idolatria política, na manutenção de uma monarquia infiel. "Eles instituíram reis sem o meu consentimento, escolheram príncipes, mas eu não tive conhecimento (...) 63 Eles me oferecem em sacrifício ofertas assadas, eles comem sua carne, mas Iahweh não os aceitará. Agora ele se lembrará de suas faltas e castigará os seus pecados; eles voltarão ao Egito. Israel esqueceu aquele que o fez e construiu palácios" (Os 8,4a.13-14a). Mas Oseias ainda tem esperança. Em 11,1-11 o profeta fala do amor de Iahweh por Israel e da recusa deste em ser amado. Fala das ações de Iahweh em seu benefício e de sua ingratidão. Lembra, entretanto, que Iahweh é um Deus e não um homem e, se Israel quiser, Iahweh pode perdoá-lo. 4.4. Oseias exige fidelidade a Iahweh Contemporâneo de Amós, parece que Oseias atuou durante os últimos dias de Jeroboão II e durante o governo dos 6 reis que o sucederam. Ao que tudo indica, Oseias não viu a queda de Samaria em 722 a.C., pois não faz qualquer menção ao grande desastre. Portanto, podemos supor que atuou em Samaria de 755 a 725 a.C ., mais ou menos, trinta anos de atividade profética. Pouco se sabe sobre a sua vida, a menos que os capítulos 1-3 sejam biográficos. Sua pátria, de qualquer maneira, era o reino de Efraim. Aliás, dos chamados "profetas clássicos", ele é o único nortista. Nota-se também na sua mensagem uma aproximação muito grande com a linha deuteronômica. Parece, com efeito, que Oseias pertencia ao grupo profético-levítico de oposição à monarquia nortista e que escreveu o Deuteronômio12. Oseias tem uma mensagem coincidente, em parte, com a de Amós. Denuncia a corrupção e as injustiças (4,1-2) e critica o formalismo do culto (6,4-6;8,11.13). Mas a sua época era mais crítica do que a de Amós 13. É, talvez, por isso, que na pregação de Oseias alguns aspectos novos se manifestem. Em primeiro lugar, a crítica e a condenação da idolatria, cultual e política. Os ritos da fertilidade, a adoração dos baalim e a sacralização da natureza em geral deviam estar em pleno florescimento na sua época, a julgar pela intensidade de sua crítica. 12 . "Comum é a posição reservada, quase de rejeição, frente à monarquia. Ambos estão interessados em cultivar as velhas tradições de Iahweh e se opõem acerbamente a uma crescente cananeização do culto e da vida. Nesta 'oposição' uniram-se já na segunda metade do século oitavo o movimento levítico e profético", esclarece HOMBURG, K. Introdução ao Antigo Testamento. 2. ed. São Leopoldo: Sinodal, 1976, p. 153. 13 . Cf. LIVERANI, M. Para além da Bíblia: História antiga de Israel. São Paulo: Loyola/Paulus, 2008, p. 185ss. 64 Oseias ataca o aspecto cultual (4,12b-13;7,14b;9,1 etc), mas não se prende somente a tal problema. Há a outra vertente, muito importante: a idolatria política. Segundo Oseias, no momento da crise, Israel acabou absolutizando e divinizando os grandes poderes políticos, representados pelo Egito e pela Assíria. Só eles seriam capazes de salvar. E onde fica Iahweh? "Efraim é como uma pomba ingênua, sem inteligência, pedem auxílio ao Egito, vão à Assíria. Enquanto vão, lanço sobre eles a minha rede, eu os abato como pássaros do céu, desde que ouvi dizer de sua reunião" (Os 7,11-12). Em segundo lugar, há em Oseias uma visão crítica do passado. Para o profeta do norte, toda a história passada do povo israelita é uma história de transgressão e rebeldia e não uma "história de salvação". A partir de Os 9,10 o profeta faz uma análise da história passada de seu povo. Análise severa, já que, para Oseias, Israel não tem muito o que celebrar de um passado que não foi de glória e nem de sucesso, mas um tempo marcado por históricas infidelidades ao seu projeto como nação e às suas relações com Iahweh. Acumulam-se as transgressões à aliança, os crimes e os mesquinhos interesses de uma nação que já começou muito mal. E ele dá um passo de gigante na compreensão da função do Estado monárquico, tributário e absolutista, enquanto defensor de uma classe dominante contra a maioria da população, espoliada e marginalizada. Oseias afirma que a monarquia é fruto da ira de Iahweh. Vamos ler Os 13,9-11: "É tua destruição, pois só em mim está o teu auxílio. Onde está, pois, o teu rei para que te salve em todas as tuas cidades, e os teus juízes a quem dizias: 'Dá-me um rei e um príncipe'? Eu te dou um rei em minha ira, eu o retomo em meu furor". A terceira novidade é a respeito da atitude de Iahweh para com Israel. Em relação à mulher do profeta, em 2,4-25, Iahweh adota três atitudes, símbolo perfeito de sua atitude em relação a Israel: uma série de obstáculos lhe são colocados, para que não vá procurar os seus amantes e volte para o seu marido (vv.8-9) Iahweh vai castigá-la pública e duramente (vv. 10-15) mas ela será perdoada por puro amor, dando sequência a uma nova lua-de-mel e a um novo presente de casamento, para que se restaure a intimidade e seja como um novo matrimônio (vv.16-25). 65 Provavelmente, Oseias, observando os acontecimentos e o efeito de sua pregação, passou pelas três etapas: inicialmente, ele não pensa em um castigo total, mas em punições passageiras para Israel, provocando, assim a conversão (5,15). Tudo resulta, porém, inútil (6,11b7,1a;7,16a), pois a conversão verificada é falsa, apenas aparente (5,5b-6,6) em um segundo momento o castigo torna-se inevitável. E o profeta prega para Israel a conhecida sequência de invasão-ruína-morte e exílio, como fizera seu contemporâneo do sul, Amós entretanto, surpresa geral: a última palavra de Iahweh é de perdão e não de perdição. Conversa a atitudes típicas da relação pai-filho [alguns dizem: mãe-filho], que aparece com clareza no capítulo 11 do livro. Iahweh ama, chama, ensina a andar, cura, atrai, inclina-se para dar de comer: ações que exprimem o carinhoso e atento cuidado do pai com um filho pequeno e frágil. Israel, por sua vez, se afasta, não o compreende e confia mais nos amigos do que no pai: típica descrição da rebeldia destruidora por que passava a nação e sua classe dirigente. Segundo a lei israelita, tal filho, com tal comportamento, deve morrer (Dt 21,18-21). É então que Israel pede socorro, pois o castigo paterno está iminente (vv. 5b-6): não a Iahweh, mas a Baal. Nada consegue, diga-se de passagem (v. 7). Quando, finalmente, não há mais saída, Iahweh luta consigo mesmo e a misericórdia vence a cólera (vv. 8-9). Iahweh admite perdoar Israel14. "Como poderia eu abandonar-te, ó Efraim, entregar-te, ó Israel? Como poderia eu abandonar-te como a Adama, tratar-te como a Seboim? Meu coração se contorce dentro de mim, minhas entranhas comovem-se. Não executarei o ardor de minha ira, não tornarei a destruir Efraim, porque eu sou um Deus e não um homem, eu sou santo no meio de ti, não retornarei com furor" (Os 11,8-9). Observamos por isso três temas em Oseias que permanecem como típicos de sua pregação, de sua linguagem e de sua teologia, encontrando muitos admiradores e seguidores: as relações entre Iahweh e Israel são ditas pela imagem do matrimônio. Tema retomado por Jeremias, Ezequiel e Dêutero-Isaías a imagem paterna para dizer a relação Iahweh-povo, como relação pai-filho, com o predomínio da misericórdia e do perdão paternos, apesar da rebeldia do filho. Imagem usada igualmente por Jeremias (31,18-20) finalmente, a noção de que Iahweh prefere o amor sincero aos sacrifícios cultuais, que está em Os 6,6. 14 . Cf. SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas II, p. 891. 66 O livro de Oseias divide-se claramente em dois blocos: capítulos 1-3 e capítulos 4-14. Este último pode ser ainda subdividido em capítulos 4-11 e capítulos 1214, pois ambos começam por um rîbh (= processo): 4,1 e 12,3; e terminam com uma promessa de salvação: 11,8-11 e 14,2-9. Falarei, então, de três partes: 1)Os 1-3 2) Os 4-11 3) Os 12-14. 4.5. Volta, Israel, a Iahweh, teu Deus Nos capítulos 12-14, última parte do livro, o profeta vai, mais uma vez, abordar o tema da idolatria religiosa e política de Israel 15 . Oseias critica, novamente, o passado de Israel. Mostra, através da lembrança de Jacó (= Israel), que a sua história já começou muito mal (12,3-9). Oseias lembra que Efraim foi uma tribo importante, mas que hoje perdeu o rumo. Jeroboão I, efraimita, foi o criador do reino, mas cometeu um crime irreparável: colocou os touros nos santuários de Dan e Betel, touros idolátricos, diz Oseias (13,1-11). Finalmente, o profeta convoca Israel: volta a Iahweh, teu Deus. O profeta convida à conversão "Volta, Israel a Iahweh, teu Deus, pois tropeçaste em tua falta" (Os 14,2). ditando ao réu arrependido o discurso "Tomai convosco palavras e voltai a Iahweh; dizei-lhe: 'Perdoa toda culpa, aceita o que é bom. Em lugar de touros nós queremos oferecer nossos lábios. A Assíria não nos salvará, não montaremos a cavalo e não diremos mais 'Nosso Deus' à obra de nossas mãos, porque é em ti que o órfão encontra misericórdia'" (Os 14,3-4). seguindo-se o perdão de Iahweh "Eu curarei a sua apostasia, eu os amarei com generosidade, pois a minha ira afastou-se dele" (Os 14,5). 15 . Cf. SICRE, J. L. Los dioses olvidados, p. 46-50. 67 e o miraculoso florescer de Efraim "Eu serei como o orvalho para Israel, ele florescerá como o lírio, lançará suas raízes como o Líbano; seus galhos se espalharão, seu esplendor será como o da oliveira e seu perfume como o do Líbano" (Os 14, 6-7). 5. ISAÍAS: É PRECISO CONFIAR EM IAHWEH 68 “Ai dos que ao mal chamam bem e ao bem mal, dos que transformam as trevas em luz e a luz em trevas, dos que mudam o amargo em doce e o doce em amargo! Ai dos que são sábios a seus próprios olhos e inteligentes na sua própria opinião!” (Is 5,20-21). O livro de Isaías tem 66 capítulos, dos quais menos de 20 pertencem ao profeta do século VIII a.C., que viveu em Jerusalém e atuou sob os reis Joatão, Acaz e Ezequias. Isaías 1-39 constitui o primeiro bloco de profecias. Aí boa parte dos oráculos é de Isaías. Durante o exílio foram produzidos os capítulos 40-55 por um profeta anônimo que viveu na Babilônia. É chamado de Dêutero-Isaías pelos especialistas atuais. Após o exílio, durante o século VI a.C., foram escritos os oráculos de Is 56-66, provenientes, talvez, de vários profetas da época da reconstrução de Judá na época persa. Assim, o livro original de Isaías acabou se transformando numa coletânea de oráculos de épocas bem diferentes. A redação final desta obra deve ter acontecido por volta de 400 a.C., ou mais tarde ainda. Mesmo os capítulos atribuídos ao profeta Isaías, do século VIII a.C., foram relidos na perspectiva pós-exílica. É como diz J. Severino Croatto: "Esta constatação leva a uma conclusão importante: o horizonte de leitura do livro total de Isaías, e também de 1-39, é pósexílico, por ocasião da dominação persa, da luta pela sobrevivência da comunidade judaica, da desonestidade da classe dirigente de Jerusalém, dos conflitos com os samaritanos etc"1. Neste roteiro, que abordará somente Is 1-39, veremos a atuação de Isaías em três momentos: na época de Joatão : 739-734 a.C. na época de Acaz : 734/3-716 a.C. na época de Ezequias : 716/15-699/8 a.C. Depois olharei os acréscimos feitos a Is 1-39 e, por fim, tentarei uma síntese do pensamento do profeta. 5.1. Na época de Joatão: 739-734 a.C. A esta época pertencem quase todos os oráculos de Is 1,2-6,13. São textos que se referem às condições internas de Judá e, às vezes, de Samaria. São o anúncio e a motivação global de um julgamento que está para se abater sobre o país. Comentarei alguns deles. 1 . CROATTO, J. S. Isaías. Vol I: 1-39. O profeta da justiça e da fidelidade. Petrópolis/São Paulo/São Leopoldo: Vozes/Metodista/Sinodal, 1989, p. 12-13. 69 Em Is 1,2-3 são invocados os céus e a terra (v.2). Para o destinatário judaíta esta invocação levava a uma certeza: vai começar uma acusação. Esta invocação é feita em um gênero literário específico (rîbh = processo) e tem, além disso, um valor simbólico. A ruptura da aliança é apresentada ao universo. Os céus e a terra não só testemunham como sofrem com o processo de ruptura: representam a ordem das coisas, violada pela culpa de Israel. "Ouvi, ó céus, presta atenção, ó terra, porque Iahweh está falando: Criei filhos e os fiz crescer, mas eles se rebelaram contra mim" (Is 1,2). Em seguida é apresentado o amor de Iahweh para com o povo: como um pai que cria e dá tudo a seus filhos. E estes se revoltam contra tal pai, colocando-se em condição inferior à de animais domésticos, como o burro e o boi. "O boi conhece o seu dono, e o jumento, a manjedoura de seu senhor, mas Israel é incapaz de conhecer, meu povo não é capaz de entender" (Is 1,3). Em Is 1,10-20 Judá, e especialmente Jerusalém, é comparada a Sodoma e Gomorra, símbolos de transgressão e destruição2. O profeta lança-se contra o culto vazio e formal, sem correspondência na vida real. É um dos textos mais violentos de todo o profetismo contra o culto. "Que me importam os vossos inúmeros sacrifícios?, diz Iahweh. Estou farto de holocaustos de carneiros e da gordura de bezerros [cevados; no sangue de touros, de cordeiros e de bodes não tenho prazer. Quando vindes à minha presença quem vos pediu que pisásseis os meus átrios? Basta de trazer-me oferendas vãs: elas são para mim incenso abominável. Lua nova, sábado e assembleia, não posso suportar falsidade e solenidade!" (Is 1,11-13). Em seguida, o profeta exorta o povo a deixar o mal e procurar o caminho do bem. A alternativa passa pela decisão humana, pois Iahweh, de sua parte, é benevolente e pode perdoar as culpas, caso haja conversão. Do contrário, o castigo será inevitável. Castigo através da espada, símbolo da guerra. "Lavai-vos, purificai-vos! Tirai da minha vista vossas más ações! Cessai de praticar o mal, aprendei a fazer o bem! 2 . "A metáfora de Sodoma e Gomorra, para falar de Jerusalém, se concentra no v. 10 nos chefes e governantes. O paralelo 'príncipes/povo' demonstra que a acusação é dirigida contra os que dirigem o povo, prevenindo-nos contra uma frequente generalização do 'povo' de Israel pecador", alerta-nos CROATTO, J. S. Isaías. Vol I: 1-39, p. 34. 70 Buscai o direito (mishpât), corrigi o opressor! Fazei justiça ao órfão, defendei a causa da viúva!" (Is 1,16-17). Is 1,21-26 é um lamento fúnebre, uma qiná. Normalmente entoado sobre o defunto, aqui é usado para um morto-vivo, Jerusalém prostituída ao mal. A cidade é personificada na imagem de uma prostituta: vendeu-se à injustiça. Qual é essa injustiça? A corrupção pelo dinheiro e do dinheiro na qual caíram seus dirigentes. Corrompida pelo dinheiro, a cidade será purificada, como o metal, pelo fogo, tornandose, novamente, a cidade da justiça. Os vv. 21-23 contêm um lamento/repreensão sobre a cidade prostituída: "Como se transformou em prostituta (zônâh) a cidade fiel? Sião, onde prevalecia o direito (mishpât), onde habitava a justiça (tsedheq), mas agora povoada de assassinos" (Is 1,21). Em seguida, seus líderes são chamados de rebeldes e companheiros de ladrões que correm atrás de subornos não cumprindo, portanto, seu dever de proteger o órfão e a viúva (v. 23). O v. 24a anuncia, então, solenemente, a punição de Iahweh, enquanto os versículos seguintes mostram a purificação pela qual passará a cidade, tornando-se, novamente a cidade da justiça: "Quando isso se der, então sim, te chamarão Cidade da Justiça (tsedheq) e Cidade Fiel" (Is 1,26) 3. Nos capítulos 2-3 Isaías prega a necessidade de uma grande operação de limpeza no país. Tudo o que enche Judá de injustiça deve ser retirado: adivinhos, prata, ouro, imensos tesouros, ídolos e assim por diante. Is 2,6-22 trabalha com a oposição alto/baixo para sublinhar a transcendência de Iahweh e criticar a situação em que vive o país. Duas coisas, segundo o profeta, se opõem à transcendência de Iahweh: os ídolos e o orgulho humano. E têm ambos uma só raiz: a ganância do homem em possuir (bens e orgulho), o que o conduz à idolatria. Os vv. 6-8 descrevem um mundo fechado em si mesmo, onde os homens se curvam diante dos ídolos fabricados por eles mesmos em ouro e prata (v. 8) e creem na força de suas riquezas e no poderio de seus exércitos (v. 7), importando costumes estrangeiros proibidos em Israel (v. 6). "Sua terra está cheia de prata e de ouro: não há fim para seus tesouros; sua terra está cheia de cavalos: não há fim para seus carros, 3 . Na estrutura sonora e verbal do poema aparece claramente a desfiguração da justiça até o v. 23 e a reviravolta que se opera a partir do v. 24, reconstruindo a justiça desfeita. Para uma análise estilística do poema, cf. LACK, R. La symbolique du livre d'Isaie: Essai sur l’image littéraire comme élément de structuration. Rome: Biblical Institute Press, 1973, p. 164-171. 71 sua terra está cheia de ídolos, e adoram a obra de suas mãos, aquilo que seus dedos fizeram" (Is 2,7-8). Isaías acredita que o homem será expulso deste ambiente, será humilhado até o pó da terra, em condições infra-humanas (vv. 9-11). E nos vv. 12-17 lemos que no "dia de Iahweh" todas as obras das quais os homens se orgulham, quer sejam da natureza (cedros, carvalhos, montanhas, colinas), quer sejam aquelas produzidas por suas mãos (como torres altas, muralhas, navios de grande porte, embarcações de luxo), serão condenadas por Iahweh, cabendo, por último, ao homem ser diretamente humilhado. "O orgulho do homem será humilhado, a altivez dos varões se abaterá, e só Iahweh será exaltado naquele dia" (Is 2,17). E o que fará o homem? Os vv. 18-22 concluem que, naquele dia, só lhe restará tentar esconder-se de Iahweh nos abismos, nas tocas, onde for possível, como bicho apavorado. Em Is 5,1-7 encontramos o belíssimo cântico da vinha. É um poema lírico de grande beleza, uma espécie de "canção de amor", segundo alguns; uma "parábola", segundo outros; ou, ainda, uma "canção de colheita", cantada durante a colheita da uva. Canta-se o amor não-correspondido de um noivo, tendo o profeta assumido, no caso, o papel de "amigo do noivo", uma pessoa de confiança que resolvia qualquer problema porventura surgido entre o casal. O cântico desdobra no seu simbolismo o amor de Iahweh (o agricultor) pelo povo de Israel (a vinha), preparado com todo o cuidado e carinho, mas revelado infiel a Iahweh. No v. 7b, através de belíssimo jogo de palavras, descreve-se a situação judaíta: "Deles esperava o direito (mishpât), mas o que produziram foi a transgressão (mishpâh); esperava a justiça (tsedhâqâh), mas o que apareceu foram gritos de desespero (tse'âqâh)4. Is 5,8-24 desenvolve as denúncias e ameaças esboçadas no cântico da vinha, através de seis "ais". São ameaçados os ricos e latifundiários que concentram sempre mais propriedades, explorando a maioria dos camponeses: "Ai dos que juntam casa a casa, 4 . "Trata-se de um poema lírico: um dos fragmentos mais puramente líricos de Isaías", diz SCHÖKEL, L. A. Estudios de poética hebrea. Barcelona: Juan Flores, 1963, p. 96-97. GONZAGA DO PRADO, J. L. Traduzir: interpretar ou re-criar? Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 32, p. 92, 1991, propõe a seguinte tradução do v. 7: "Parece que vocês não ouviram bem o que ele queria: 'Esperava o direito, aí o despeito, a justiça, aí a cobiça!'". 72 dos que acrescentam campo a campo até que não haja mais espaço [disponível, até serem eles os únicos moradores da terra" (Is 5,8). São atacados os que vivem em bacanais e grandes festas custeadas pelo dinheiro dos pobres por eles explorados: "Seus banquetes se reduzem a cítaras e harpas, tamborins e flautas, e vinho para as suas bebedeiras. Mas para os feitos de Iahweh não têm um olhar sequer, eles não veem a obra das suas mãos" (Is 5,12). São denunciados os que invertem os valores do javismo, que exploram o povo, negando justiça, e que se fazem grandes e importantes vivendo em banquetes e coquetéis: "Ai dos que ao mal chamam bem e ao bem mal, dos que transformam as trevas em luz e a luz em trevas, dos que mudam o amargo em doce e o doce em amargo! Ai dos que são sábios a seus próprios olhos e inteligentes na sua própria opinião! Ai dos que são fortes para beber vinho e dos que são valentes para misturar bebidas, que absolvem o ímpio mediante suborno e negam ao justo sua justiça" (Is,5,20-23). Is 6,1-13 é o texto que narra a vocação de Isaías. O profeta é preparado para a sua missão através de uma visão de Iahweh, no Templo, descrito segundo os traços de um rei oriental. Diz o texto que isto ocorreu no ano da morte do rei Ozias, ou seja, em 740/39 a.C., segundo a cronologia que estamos usando 5 É possível que este texto não se refira à vocação de Isaías de um modo geral, mas seja uma preparação para uma missão específica na vida do profeta. De qualquer maneira, como em todo texto de vocação, o relato foi escrito muito tempo depois do fato6. Isto possibilitou ao profeta refletir sobre o sentido de sua missão e aqui, especificamente, sobre o insucesso de sua pregação. Sua função foi de fato, reflete Isaías, pregar o fim e a morte de Judá. Até quando o profeta deve ser o porta-voz de Iahweh? "Até que as cidades fiquem desertas, por falta de habitantes, e as casas vazias, por falta de moradores; até que o solo se reduza a ermo, 5 . Segundo outra cronologia, Ozias teria morrido em 736 a.C., embora não governasse desde 756 a.C., pois estava atacado pela lepra. Cf. SCHWANTES, M. Isaías: Textos selecionados. São Leopoldo: Comissão de Publicações da Faculdade de Teologia da IECLB, 1979, p. 25-27. 6 . Como Is 6,1-13 está muito ligado aos capítulos 7-12, que tratam da guerra siro-efraimita, a redação deste texto supõe a atividade do profeta durante a época de Acaz (734/3-716 a.C.). 73 a desolação; até que Iahweh remova para longe seus homens e no seio da terra reine uma grande solidão", reflete o profeta em Is 6,11127 . 5.2. Na época de Acaz: 734/3-716 a.C. A ameaça conjunta das forças israelitas do norte e das forças sírias em 734 a.C. levou Judá a invocar o auxílio assírio. Deu resultado, mas, para ter esta proteção, Judá perdeu toda a sua independência. Entre outras coisas, Judá viu-se obrigado a reconhecer os deuses assírios. Acaz teve que apresentar-se a Tiglat-Pileser III, rei da Assíria, para prestar-lhe obediência e render homenagem aos deuses assírios. Uma cópia do altar sobre o qual Acaz sacrificou aos deuses assírios foi, em seguida, instalada no Templo de Jerusalém, ao lado do altar de Iahweh ali existente. É o que conta 2Rs 16,10-16. A situação econômica tornou-se péssima. Judá perdera as províncias que lhe pagavam tributos. Além disso, o tributo pago à Assíria foi tal que Acaz teve que entregar parte de seu tesouro e muitas coisas valiosas do Templo. E aumentar, naturalmente, o imposto pago pelo povo. E a injustiça correu solta, como denunciam os profetas da época. A religião oficial era mantida pelo Estado e não o denunciava. Pelo contrário, encobria as injustiças com cultos faustosos e vazios, sem correspondência na vida de todo dia. Havia, contudo, uma esperança. Que se chamava Ezequias, e era filho de Acaz. Ainda criança, Ezequias foi associado ao trono, em 728/7 a.C. Isto porque ensinava-se em Judá que Iahweh elegera Sião como lugar privilegiado e fizera à dinastia davídica a promessa de permanência eterna no poder. Se um rei não fosse bem sucedido no governo, o problema poderia ser resolvido com o rei seguinte. Acaz estava indo muito mal, mas Ezequias era uma esperança de dias melhores8. É no contexto da guerra siro-efraimita (734-732 a.C.) e da consequente dependência assíria que devemos ler os oráculos deste período. Is 7,1-12,6 é, na sua quase totalidade, desta época. Por causa de 7,14 convencionou-se chamar este bloco de "Livro do Emanuel". Tematicamente, os textos falam de invasões ou ataques, de libertações ou proteções e de ameaças e promessas. Estes seis capítulos são organizados pelo redator do livro a partir de três princípios 9: 7 . "Isaías entrou em choque com todo mundo: lutou contra o rei, os funcionários, às vezes contra os sacerdotes e, com eles, contra toda a sua sabedoria. Tentou fazê-los ver, ouvir, compreender. Mas eles deixaram de lado os planos de Deus, as promessas da dinastia, para seguirem seus próprios planos. É por isso que Isaías declara com frequência: 'Israel não sabe, meu povo não entende'", comenta ASURMENDI, J. M. Isaías 1-39. São Paulo: Paulus, 1980, p. 33. 8 . Cf. <http://airtonjo.com/site1/historia-14.htm>. 9 . Cf. SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas I, p. 145-147. 74 os sinais, como o do menino que vai nascer, em 7,14-15 o binômio invasão/libertação (7,1/716; 7,18-21/7,22; 8,5-8/8,9-10; 8,23b/9,1-6) o significado de nomes próprios, como o do filho de Isaías chamado Maer-Salal Haz-Baz, "Pronto-saque-próxima-pilhagem" em 8,1-4, que anuncia o saque de Damasco e de Samaria pela Assíria e a libertação de Judá na guerra siroefraimita; ou seu outro filho Sear-Iasub, "Um resto voltará" (7,3) que é um anúncio de esperança; e até mesmo o nome de Isaías (= Iahweh é salvação), conforme diz 8,18: "Eis que eu e os filhos que Iahweh me deu nos tornamos, em Israel, sinais ('othôth) e presságios (môphethîm) da parte de Iahweh dos Exércitos, que habita no monte Sião". Is 7,1-9 relata o encontro de Isaías com Acaz, às vésperas da guerra siroefraimita, em 734 ou 733 a.C. Os reis de Damasco e de Samaria planejam invadir Judá para depor Acaz e no seu lugar colocar um rei não-davídico - o filho de Tabeel - que envolveria o país na coalizão anti-assíria. Isaías vai ao encontro de Acaz acompanhado por seu filho Sear-Iasub (Um-restovoltará), indicação ou sinal de esperança frente à crítica situação que se desenha. Acaz está cuidando das defesas de Jerusalém. Segundo Isaías, a dinastia davídica está ameaçada por dois fatores: os planos inimigos e o medo do rei. Os planos inimigos fracassarão, o temor e as alianças políticas farão o rei de Judá fracassar. O que dá estabilidade é a fé a confiança em Iahweh 10. O que Isaías diz a Acaz, segundo os vv. 4-9 do capítulo 7, é o seguinte: "Toma as tuas precauções, mas conserva a calma e não tenhas medo nem vacile o teu coração diante desses dois tições fumegantes, isto é, por causa da cólera de Rason, de Aram, e do filho de Romelias, pois Aram, Efraim e o filho de Romelias tramaram o mal contra ti, dizendo: 'Subamos contra Judá e provoquemos a cisão e a divisão em seu seio em nosso benefício e estabeleçamos como rei sobre ele o filho de Tabeel'. Assim diz o Senhor Iahweh: Tal não se realizará, tal não há de suceder, porque a cabeça de Aram é Damasco, e a cabeça de Damasco é [Rason; (...) A cabeça de Efraim é Samaria e a cabeça de Samaria é o filho de [Romelias. Se não o crerdes, não vos mantereis firmes". Parece faltar alguma coisa ao texto. Há várias propostas: "e a cabeça de Jerusalém é Iahweh" ou "e a cabeça de Jerusalém é a casa de Davi" ou "mas a cabeça de Judá é Jerusalém e a cabeça de Jerusalém é o filho de Davi". 10 . Cf. SCHÖKEL, L. A ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas I, p. 147. 75 Is 7,10-17 relata novo encontro de Isaías com Acaz, desta vez, talvez, no palácio, no qual o profeta oferece ao rei um sinal de que tudo se arranjará diante da ameaça siro-efraimita. Com a recusa do rei em pedir um sinal a Iahweh, Isaías muda de tom e relata a Acaz que Iahweh, por própria iniciativa, dar-lhe-á um sinal. Que consiste no seguinte: a jovem mulher ('almâh) dará à luz um filho, seu nome será Emanuel (Deus-conosco) e ele comerá coalhada e mel até que chegue ao uso da razão. Até lá Samaria e Damasco serão destruídas. "Pois sabei que o Senhor mesmo vos dará um sinal ('ôth): Eis que a jovem está grávida (hinnêh hâ'almâh hârâh) e dará à luz um filho e dar-lhe-á o nome de Emanuel ('immânû 'êl). Ele se alimentará de coalhada e de mel até que saiba rejeitar o mal e escolher o bem. Com efeito, antes que o menino saiba rejeitar o mal e escolher o bem, a terra, por cujos dois reis tu te apavoras, ficará reduzida a ermo" (Is 7,14-16). Os LXX, na sua versão grega da Bíblia, traduziram 'almâh por parthénos (= virgem). Mt usou a versão dos LXX (cf. Mt 1,23): "Idoù he parténos (= a virgem) en gastrì hécsei (= conceberá) kai técsetai hyón...". Entretanto, a palavra hebraica para designar virgem é bethûlâh. A palavra 'almâh significa uma jovem mulher, virgem ou não. Em muitos casos designa uma mulher jovem já casada. Além do que esta jovem é uma pessoa concreta, conhecida e, provavelmente, presente na ocasião, porque o texto diz: "Eis aqui (hinnêh) a jovem...". "À luz do contexto do oráculo e dos textos siro-cananeus bem anteriores, parece que se pode determinar: essa que é chamada 'almâh é muito provavelmente a jovem rainha, talvez designada assim antes do nascimento do primeiro filho"11. É bem provável que o menino seja Ezequias, filho de Acaz. Isaías falou a Acaz nos primeiros meses de 733 a.C., e Ezequias teria nascido no inverno de 733-32 a.C. O nascimento do menino garante, desta maneira, a continuidade da dinastia davídica, atualizando a promessa e resumindo a aliança de Iahweh com o povo através de seu nome, Emanuel ('immânû 'el), que evoca fórmula frequente no AT, especialmente no deuteronomista: Dt 20,4 : "Porque Iahweh vosso Deus marcha convosco" Js 1,9 : " Porque Iahweh teu Deus está contigo" e Jz 6,13 : "Se Iahweh está conosco (w yêsh Yhwh 'immânû)" 1Sm 20,13 : "E que Iahweh esteja contigo" 2 Sm 5,10 : "Davi ia crescendo, e Iahweh, Deus dos Exércitos, estava com ele". 11 . A. VANEL, citado em ASURMENDI, J. M. Isaías 1-39, p. 66. Cf. também CROATTO, S. S. Isaías. Vol I: 1-39, p. 65; SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas I, p. 150. 76 Por outro lado, o sinal não seria, segundo alguns, de salvação, mas de castigo. Acaz é rejeitado porque não confia em Iahweh. O alimento do menino, do mesmo modo, supõe um período de devastação e miséria em Judá, como consequência da política filo-assíria de Acaz12. É mais provável, entretanto, que seja um alimento de tempos de abundância, como sugerem as passagens de Ex 3,8.17 e 2Sm 17,29. Em Is 8,1-4 o profeta recebe a ordem de escrever numa prancheta o nome Maer-Salal Has-Baz (= Pronto-saque-próxima-pilhagem). E quando nasce mais um filho, será este o seu nome. A situação é a mesma no capítulo 7, ou seja, a guerra siroefraimita. O nome do menino quer simbolizar a destruição rápida dos inimigos de Judá. Is 8,11-15 traz uma peça autobiográfica. Trata-se da conduta do profeta distanciada da conduta da classe dirigente de Jerusalém. Enquanto esta busca soluções nas alianças políticas e em consultas a espíritos e adivinhos, o profeta confiará só em Iahweh para que sua atitude seja exemplar. O profeta é, pela distância dos dirigentes, um oráculo vivo de reprovação da conduta nacional 13 . "Eis que eu e os filhos que Iahweh me deu nos tornamos, em Israel, sinais e presságios da parte de Iahweh dos Exércitos, que habita no monte Sião" (Is 8,18). Is 8,23b-9,6 é um belíssimo poema, todo construído segundo um esquema ternário14 . Assim: v. 23b: humilhação/glória: Zabulon Neftali Galileia v. 1: trevas/luz: andar habitar v. 2: tristeza/alegria: colheita (paz) despojos (guerra) v. 3: opressão/libertação: jugo canga bastão v. 4: guerra/paz: bota veste v. 5a: desespero/esperança: um menino nasceu um filho nos foi dado v. 5b: liderança 12 . Cf. CROATTO, J. S. o. c., p. 65-66; SCHWANTES, M. Isaías, p. 123-128. SCHWANTES lê esta profecia de Isaías como ruptura e condenação da dinastia davídica. 13. "Deus lhe recomenda tomar distância 'deste povo'. É a terceira vez que aparece esta designação depreciativa da classe dirigente de Jerusalém (cf. 6,9;8,6)", explica CROATTO, J. S. o. c. p. 70. 14 . Cf. SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas I, p. 159. 77 v. 5c: competência: Conselheiro-maravilhoso: sabedoria na administração Deus-forte: capacidade bélica Pai-eterno: zelo pela prosperidade do povo Príncipe-da-paz: preocupação com a felicidade do povo v. 6: permanência: domínio multiplicado paz perpétua casa de Davi: direito e justiça. Os verbos estão no hifil, forma causativa do verbo hebraico. Isto indica que é Iahweh quem faz tudo isso que o poema descreve. O v. 23b está em prosa e nos coloca no ambiente adequado, enquanto traça a situação histórica. As três regiões mencionadas, Zabulon (caminho do mar), Neftali (o Além do Jordão) e Galileia (o distrito das nações) são as conquistadas, entre 734 e 732 a.C., por Tiglat-Pileser III a Israel. Iahweh humilhou estas terras, diz o profeta, Iahweh as cobrirá de glória. E o povo, que vivia em trevas e na tristeza, viverá na luz e na alegria. Esta alegria enorme é causada pelo fim da opressão - o jugo, a canga e o bastão do opressor foram quebrados -, pelo fim da guerra (a bota e a veste militares foram queimadas) e pelo nascimento de um menino em Judá: "Porque um menino nos nasceu, um filho nos foi dado, ele recebeu o poder sobre seus ombros, e lhe foi dado este nome: Conselheiro-maravilhoso (peleh yô'ts), Deus-forte ('el gibôr), a Pai-eterno (' bhî'adh) Príncipe-da-paz (sar shâlôm)" (Is 9,5). Este versículo marca o ápice do poema. Começa com "palavras curtas, não para maior rapidez, mas para serem pronunciadas lentamente, enchendo, com seu pequeno volume, uma medida rítmica maior - como o menino em sua pequenez. A sonoridade é toda cheia de aliterações e sons suaves, para o saborear da pronúncia lenta: kî yeledh yulladh lânû bên nitan lânû ["Porque um menino nos nasceu, um filho nos foi dado"]. Contraste curioso: o verso menor é o mais importante do poema", observa L. A. Schökel15. Este menino é, sem dúvida, um personagem da casa real. Confirmam-no os quatro títulos que lhe são atribuídos. Títulos muito discutidos, onde alguns vêem características sobre-humanas e messiânicas. Mas que na realidade parecem caber bem ao reis segundo a mentalidade da época: a sabedoria do rei na administração aparece no título de Conselheiro, sua capacidade militar em Deus-forte, enquanto que o zelo pela prosperidade do povo o caracteriza como Pai, expressando Príncipe-da-paz sua preocupação com a felicidade do povo. Estes títulos ficam mais claros se traduzidos assim: "Milagre de Conselheiro, Guerreiro divino, Chefe perpétuo, Príncipe da Paz"16. 15 . SCHÖKEL, L. A. Estudios de poética hebrea, p. 395. 16 . SCHÖKEL, L. A. ; MATEOS, J. Nueva Bíblia Española. Madrid: Cristiandad, 1993. 78 O v. 6 esclarece ser o menino da "casa de Davi" e caracteriza as suas ações: e governará com direito (mishpât) e justiça (ts dâqâh). Quem é o personagem de que fala o profeta? A maioria dos especialistas acredita tratar-se de Ezequias, o filho de Acaz. Tratase, talvez, de seu nascimento, anunciado em 7,10-17. Ezequias nasceu no inverno de 733/32 a.C., portanto, logo após o início da guerra siro-efraimita que começara na primavera17 . Is 10,1-4 traz uma ameaça aos juízes injustos que abusam de seu cargo para oprimir e saquear os desvalidos: os fracos: dallîm, os pobres: 'aniyyîm (cf. Am 2,7: "Eles esmagam sobre o pó da terra a cabeça dos fracos [dallîm] e tornam torto o caminho dos pobres ['anâwîm]"), as viúvas e os órfãos. Um dia encontrar-se-ão com uma instância superior, juiz divino. Ex 22,21, no "Código da Aliança", ordena: "Não afligireis a nenhuma viúva ou órfão. Se o afligires e ele clamar a mim escutarei o seu clamor; minha ira se acenderá e vos farei perecer pela espada: vossas mulheres ficarão viúvas e vossos filhos órfãos". Em Is 11,1-9 o ponto de referência do profeta, assim como em 7,1-17 e 8,23b9,6, continua sendo um rei da época, descendente de Davi, como todos os reis de Judá, que salvaria o país da catástrofe iminente. O texto é organizado do seguinte modo: v. 1: um personagem régio (referência a Jessé, pai de Davi) 1a: "um ramo sairá do tronco de Jessé" 1b: "um rebento brotará das suas raízes" v. 2: as qualidades do personagem terá o espírito de Iahweh (rûah Yhwh) espírito de sabedoria (hokhmâh) e de discernimento (bhînâh) espírito de conselho ('êtsâh) e e de fortaleza (g bhûrâh) espírito de conhecimento (da'ath) e de temor de Iahweh (yir'ath Yhwh) vv. 3b-5: a atuação do personagem 3b: "não julgará segundo a aparência" "não dará sentença apenas por ouvir dizer" 4a: "julgará os fracos (dallîm) com justiça (tsedheq) com equidade pronunciará sentença em favor dos pobres da terra ('anâwîm)" 4b: "ferirá a terra com o bastão de sua boca" "matará o ímpio com o sopro de seus lábios" 5 : "a justiça (tsedheq) será o cinto dos seus lombos" "a fidelidade ('emûnâh) o cinto dos seus rins". 17 . Assim LACK, R. La symbolique du livre d'Isaie, p. 49. Outros acreditam que o texto se refere à entronização de Ezequias em 728/7 a.C. Assim ASURMENDI, J. M. Isaías 1-29, p. 70. 79 vv. 6-8: instauração de uma nova realidade (são elencados sete pares: sete animais selvagens sete "animais" domésticos: seis animais e uma criança) 1. lobo + cordeiro 2. leopardo + cabrito 3. bezerro + leãozinho + novilho gordo + menino pequeno 4. vaca + urso (e suas crias) 5. leão + boi 6. criança de peito + áspide 7. criança pequena + víbora v. 9: conclusão ninguém fará mal nem destruição em Jerusalém porque haverá conhecimento de Iahweh (da'ath Yhwh) em Israel. L. A. Schökel observa que o poema possui grande regularidade e transmite uma paz impressionante, pois todos os verbos obedecem às normas estritas da gramática hebraica, o sujeito é quase sempre a terceira pessoa do singular, o paralelismo dos versos é regular e as imagens usadas não são espalhafatosas, mas exprimem tranquilidade, num movimento lento e sossegado. Os verbos que se referem aos animais, por exemplo, como morar, deitar, andar, guiar, pastar, brincar, transpiram paz, transmitindo o sentido do tempo de prosperidade e paz anunciado pelo profeta. As imagens usadas no poema são simples, o que permite o reforço da ideia apresentada (paz e prosperidade), sem necessidade de identificações alegóricas, do tipo "leão significa isto, urso significa aquilo...". O mundo da natureza aparece no ramo, no florescimento, no vento (rûah = espírito, sopro, vento), em rimas cruzadas lembrando os quatro pontos cardeais, enquanto que os animais, reunindo os selvagens e os domésticos em pares específicos e o menino que harmoniza tão bem com o quadro simples e pastoril descrito, compõem o poema. O personagem esperado, fiel a Iahweh, vai instaurar um reino de justiça, onde o pobre e o oprimido serão protegidos contra a prepotência dos poderosos. Justiça e paz que são simbolizadas, no poema, pela convivência harmoniosa de animais selvagens e domésticos18. A identificação deste personagem da família davídica é problemática. Alguns acreditam que o poema trata da utopia profética de Isaías por ocasião da coroação de Ezequias como rei em 716/15 a.C. 19. Outros defendem que se Ezequias fora o objeto da esperança de Isaías de tirar o país da crise, como aparece em 7,1-17 e 8,23b-9,6, 18 19 . Cf. SCHÖKEL, L. A. Estudios de poética hebrea, p. 396-404. . Assim ASURMENDI, J. Isaías 1-39, p. 74-77. Asurmendi é partidário da tese de que não há textos messiânicos no livro do proto-Isaías, pois "o messianismo supõe a falência da instituição régia e uma intervenção divina que a ultrapassa. Seria de estranhar que um homem tão ligado à instituição, para quem a ideologia régia é tão central, tenha pensado numa mudança tão radical" (p. 76). 80 agora, decepcionado com sua política pró-egípcia que acaba provocando a invasão do assírio Senaquerib, pensa em alguém que no futuro possa resgatar Israel 20. Is 28,1-4 deve ter sido proferido pouco antes da queda de Samaria (722 a.C.), cidade à qual é endereçada. O profeta denuncia a orgulhosa capital do reino do norte, cujos habitantes se embebedam e se coroam, como a cidade coroada por suas muralhas (v. 1), mas que não percebe a aproximação de uma terrível tempestade, a destruidora Assíria (v. 2). Samaria será engolida como um figo temporão e os samaritanos esmagados como uma coroa calcada aos pés (vv. 3-4). "Sim, a orgulhosa coroa dos bêbados de Efraim será calcada aos pés, bem como a flor murcha do seu magnífico esplendor que está no cume do vale da fertilidade. É como um figo temporão: quem o vê, devora-o mal o tem na mão" (Is 28,3-4). L. A. Schökel lembra o paralelismo destes versículos com o capítulo 10: "A Assíria é um gigante sobre-humano, que muda as fronteiras com a força de sua mão e derruba os príncipes, que toma os reinos com facilidade, como quem colhe ovos abandonados em um ninho. Aqui, a Assíria (que não é mencionada) é como uma tempestade, como um gigante que derruba muralhas e toma uma cidade facilmente, como quem colhe um figo temporão"21. 5.3. Na época de Ezequias: 716/15-699/8 a.C. Após tomar posse como rei, com a morte de seu pai Acaz, Ezequias manteve-se fora das rebeliões anti-assírias, insufladas pelo Egito, que explodiam a todo momento na região. E aproveitou a situação de pouca vigilância assíria para fazer uma reforma em Judá. Um dos alvos da reforma teria sido a ruptura com práticas cultuais não-javistas dos agricultores. Entre outras coisas, teria abolido os lugares altos (bâmôt), quebrado as estelas (matsêbôt), cortado o poste sagrado (‘asherâh). Até mesmo do Templo de Jerusalém Ezequias teria retirado símbolos dos cultos da fertilidade, como uma serpente de bronze. É o que nos conta 2Rs 18,4, embora aqui a OHDtr tente apresentar uma justificativa para a presença desta serpente de bronze no Templo (“que Moisés havia feito, pois os israelitas até então ofereciam-lhe incenso” – cf. Nm 21,8-9). Entretanto, há autores, como Finkelstein/Silberman e Liverani, que apresentam uma perspectiva um pouco diferente: a "reforma" de Ezequias não teria sido a restauração de uma estrutura desmantelada ao longo do tempo, mas uma inovação. A idolatria dos judaítas não foi um abandono de seu anterior monoteísmo, pois esta era a forma como a população de Judá tinha praticado seu culto por centenas de anos. A reforma sinaliza na direção da transformação de Iahweh de Deus nacional, convivendo com os deuses regionais, em Deus exclusivo. 20 . Cf. esta posição em SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas I, p. 169-172. 21 . SCHÖKEL, L. A. Estudios de poética hebrea, p. 494. 81 A destruição de Samaria levou refugiados de Israel para Jerusalém, pois novas estruturas foram construídas, como bairros novos, ampliação de muralhas e o túnel que levava as águas da fonte Gihon para o reservatório de Siloé. Sobre este último feito testemunham 2Rs 20,20 e a Inscrição de Siloé, que celebra o encontro das duas turmas de escavadores. O fato é que Jerusalém superou seu antigo isolamento e, ancorada na política assíria, cresceu de 5 para 60 hectares e de cerca de 1000 para algo em torno de 15 mil habitantes. E em Judá, no final do século VIII a.C., podem ser contados cerca de 300 assentamentos e uma população de uns 120 mil habitantes. A fortaleza de Lakish, na Shefelá, se desenvolveu extraordinariamente. Outros fortalezas foram construídas na mesma região. Surge portanto, só agora, uma elite judaíta e se formam as estruturas de um verdadeiro Estado. Enquanto isso, na Assíria, Senaquerib subiu ao trono em 705 a.C. e imediatamente teve que enfrentar nova revolta na Babilônia. Todas as províncias do oeste então se levantaram. Acreditavam ter chegado o momento da libertação. O Egito prometeu ajuda, mais uma vez. A coalizão integrava Tiro, com outras cidades fenícias; Ascalon e Ekron, com algumas cidades filisteias; Moab, Edom e Amon; e Ezequias, de Judá, entrou como um dos líderes da revolta. Fortificou suas defesas e preparou-se cuidadosamente para esperar a Assíria. Senaquerib não se fez de rogado e já em 701 a.C. ele começou por Tiro, vencendo-a. Logo os reis de Biblos, Arvad, Ashdod, Moab, Edom e Amon se entregaram e pagaram tributo a Senaquerib. Somente Ascalon e Ekron, juntamente com Judá, resistiram. Senaquerib tomou primeiro Ascalon. Os egípcios tentaram socorrer Ekron e foram derrotados. E foi a vez de Judá. Senaquerib tomou 46 cidades fortificadas em Judá e cercou Jerusalém. Testemunhos arqueológicos da devastação foram encontrados em várias escavações por todo o território. Especialmente significativos são a representação assíria da tomada de Lakish encontrada no palácio de Senaquerib em Nínive - hoje está no British Museum - e a escavação, feita pelos britânicos na década de 30 e por David Ussishkin, da Universidade de Tel Aviv, na década de 70 do século XX, da poderosa fortaleza, esta que era a segunda mais importante cidade do reino e protegia a entrada de Judá. Entretanto, por motivos ainda hoje desconhecidos, talvez uma peste, Senaquerib levantou o cerco de Jerusalém e retornou à Assíria. A cidade voltou a respirar, no último minuto, mas teve que pagar forte tributo aos assírios. Não se sabe porque Jerusalém se salvou. 2Rs 19,35-37 diz que o Anjo de Iahweh atacou o acampamento assírio. Existe uma notícia de Heródoto, História II,141, segundo a qual num confronto com os egípcios os exércitos de Senaquerib foram atacados por ratos (peste bubônica?). Talvez Senaquerib tenha partido por causa de alguma rebelião na Mesopotâmia. Ou ainda: há autores que pensam que Jerusalém nem precisou ser sitiada para ser vencida. Nos Anais de Senaquerib se diz o seguinte: "Quanto a Ezequias do país de Judá, que não se tinha submetido ao meu jugo, sitiei e conquistei 46 cidades que lhe pertenciam (...) Quanto a ele, encerrei-o em Jerusalém, sua cidade real, como um pássaro na gaiola...". Outra questão é se teria havido uma segunda campanha de Senaquerib na Palestina. De qualquer maneira, segundo os Anais de Senaquerib, o tributo pago por Ezequias ao rei assírio foi significativo: 82 "Quanto a ele, Ezequias, meu esplendor terrível de soberano o confundiu e ele enviou atrás de mim, em Nínive, minha cidade senhorial, os irregulares e os soldados de elite que ele tinha como tropa auxiliar, com 30 talentos de ouro, 800 talentos de prata, antimônio escolhido, grandes blocos de cornalina, leitos de marfim, poltronas de marfim, peles de elefante, marfim, ébano, buxo, toda sorte de coisas, um pesado tesouro, e suas filhas, mulheres de seu palácio, cantores, cantoras; e despachou um mensageiro seu a cavalo para entregar o tributo e fazer ato de submissão" 22. Informação que concorda, em termos gerais, com a de 2Rs 18,13-16: "No décimo quarto ano do rei Ezequias, Senaquerib, rei da Assíria, subiu contra todas as cidades fortificadas de Judá e apoderou-se delas. Então Ezequias, rei de Judá, mandou esta mensagem ao rei da Assíria, em Laquis: 'Cometi um erro! Retira-te de mim e aceitarei as condições que me impuseres'. O rei da Assíria exigiu de Ezequias, rei de Judá, trezentos talentos de prata e trinta talentos de ouro, e Ezequias entregou toda a prata que se achava no Templo de Iahweh e nos tesouros do palácio real. Então Ezequias mandou retirar o revestimento dos batentes e dos umbrais das portas do santuário de Iahweh, que... rei de Judá, havia revestido de metal, e o entregou ao rei da Assíria". Manassés, filho e sucessor de Ezequias, para o Deuteronomista, é o oposto do pai: governou 55 anos como o pior rei de Judá, especialmente por ter restaurado os cultos não-javistas. Por que teria Manassés feito isto? Acreditam Finkelstein e Silberman que a reorganização do território de Judá, agora sob a sombra da Assíria, implicou em alianças com lideranças clânicas que exigiram a volta aos cultos dos deuses da terra. Não foi a "maldade" de Manassés que implodiu o javismo, mas as suas necessidades econômicas é que trouxeram de volta o pluralismo cultual. Colaborando com a Assíria e deslocando a população judaíta para outras regiões, depois de perder a fértil Shefelá, Manassés, como a arqueologia pode comprovar, desenvolveu significativa produção e exportação de óleo de oliva e explorou as rotas de comércio por onde passavam as caravanas que iam e vinham entre a Assíria e a Arábia. Importante, neste sentido, foram as escavações das instalações para a fabricação do óleo de oliva em Tel Miqne (= Ekron) - as maiores existentes em todo o Oriente Médio naquela época - e dos ossos de camelos adultos em Tell Jemmeh, uma localidade vizinha a Gaza. Is 1,4-9 apresenta a situação de Judá após a derrota sofrida em 701 a.C. Mas o profeta mostra que isto aconteceu porque todo o país estava tomado pela corrupção. O v. 4 apresenta, por exemplo, quatro denominações para Judá em ordem crescente de intimidade com Iahweh, enquanto os qualificativos mostram uma ordem crescente de mal, incompatível com a condição de filhos conferida pouco antes. As consequências da 22 . BRIEND, J. (org.) Israel e Judá: Textos do Antigo Oriente Médio, p. 76. Sobre a reforma de Ezequias, a invasão de Senaquerib e o governo de Manassés, cf. FINKELSTEIN, I. ; SILBERMAN, N. A. A Bíblia não tinha razão, p. 318-364; LIVERANI, M. Para além da Bíblia: História antiga de Israel, p. 195209; DA SILVA, A. J. O Contexto da Obra Histórica Deuteronomista. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 88, p. 11-27, 2005. 83 corrupção são apresentadas nos vv. 5-9, sob a imagem de um escravo flagelado por seu senhor. O movimento da corrupção é do interior para o exterior: primeiro, ela atinge a cabeça e o coração (v. 5),em seguida atinge a superfície do corpo, provocando feridas, furúnculos e tumores (v. 6), para, depois do corpo, alcançar o ambiente humano, o país, as cidades e o solo, diz o v. 7. O movimento de exteriorização da corrupção completa-se no v. 8 com a personificação de Jerusalém, vista como "a filha de Sião". Três imagens de refúgio são apresentadas: a choça na vinha, o telheiro no pepinal, a cidade sitiada: "A filha de Sião foi deixada só, como choça em vinha, como telheiro em pepinal, como cidade sitiada" (Is 1,8). Em Is 18,1-7 o profeta de Jerusalém denuncia, provavelmente, uma embaixada enviada pelos etíopes, então senhores do Egito, para propor uma coalizão anti-assíria. Isaías afirma que os destinos do mundo são decididos por Iahweh e não pelo Egito, em quem não se deve confiar: "Ai da terra dos grilos alados, situada além dos rios de Cuch! Que envia mensageiros pelo mar em barcos de papiro, sobre as águas" (Is 18,2a). Neste mesmo contexto podemos ler Is 19,1-15, onde o profeta, contrário a qualquer aliança com o Egito para acabar com a ameaça assíria, denuncia a fraqueza do país do Nilo neste momento: guerra civil, um cruel tirano, falência da economia baseada no Nilo, fracasso da tradicional sabedoria egípcia... Estes são os argumentos de nosso profeta para evitar que Ezequias caia na tentação egípcia. E ele conclui de forma proverbial: "Nenhum empreendimento conseguirá realizar o Egito, seja obra da cabeça ou da cauda, da palma ou do junco" (Is 19,15). Is 22,1-14 protesta contra a alegre comemoração feita em Jerusalém após a retirada dos exércitos de Senaquerib em 701 a.C. A alegria está fora de lugar, segundo Isaías, porque o perigo assírio permanece. Iahweh convoca a cidade à penitência e não aos banquetes, porque ela foi derrotada vergonhosamente e não há motivo para festa. "Que tens tu, afinal, que todos os teus habitantes sobem aos telhados cheios de júbilo, cidade ruidosa, cidade vibrante? Os teus trespassados não foram trespassados à espada, nem foram mortos na guerra. Os teus comandantes fugiram todos juntos, sem arcos, foram capturados, todos juntos foram capturados; eles tinham fugido para longe. 84 Diante disso, eu disse: 'Desviai de mim os vossos olhos, que eu choro amargamente; não insistais em consolar-me da ruína sofrida pela filha do meu povo'" (Is 22,1b-4). Is 28,1-33,24 forma uma coleção de oráculos que tratam, com poucas exceções, da política de Ezequias entre 705 e 701 a.C. Ezequias conduz a nação a alianças militares com o Egito na esperança de se livrar do jugo da Assíria governada por Senaquerib. Isaías, como na época da guerra siro-efraimita, denuncia o caráter ilusório destas alianças e garante que só Iahweh pode defender o país e fazer justiça ao seu povo. Este bloco representa o trabalho de um redator pós-exílico que elaborou um esquema orgânico, onde se alternam oráculos de ameaças e promessas. A linha central de pensamento é a seguinte 23: os homens pretendem realizar seus planos sem contar com Iahweh: 28,1-4;32,9-14 : levam vida boa sem perceberem a desgraça iminente 30,1-7;31,1-6 : fazem aliança com o Egito 28,14-15.18-19 : chegam até mesmo a pactuar-se com os poderes ocultos da morte Iahweh quer guiá-los através da palavra profética, entretanto: 28,7-13;30,8-17 : a palavra profética é rejeitada 28,18-22;29,1-12 : Iahweh, então, castiga-os duramente 29,14;30,16-17 : Iahweh provoca a falência de seus planos 30,18-33;31,4-9;32,1-5: mas Iahweh vencerá o inimigo, julgará o povo e criará um novo reino Is 28,7-13 é um oráculo que deve ser datado às vésperas da campanha de Senaquerib contra Judá em 701 a.C. Isaías narra uma cena de embriaguez, com uma descrição brilhante da confusão dos sacerdotes e profetas frente à situação. No início da cena, no v. 8a, o realismo do poema alcança o seu ápice através dos três alef (letra hebraica que tem som gutural e é transliterada por um ') imitando o som do vômito dos bêbados: "Com efeito, todas as suas mesas estão cheia de vômito e de imundície (mal e'û qî' tso'âh)". Em seguida, há um diálogo entre Isaías e os bêbados, no qual estes ridicularizam o profeta, imitando uma fala infantil sem sentido. Eles, que não querem ouvir o profeta, dizem: "A quem ensinará ele o conhecimento? A quem fará ele entender o que foi dito? A crianças apenas desmamadas, apenas tiradas do seio, quando diz: tsaw lâtsâw tsaw lâtsâw qaw lâqâw qaw lâqâw ze'êr shâm ze'êr shâm" (Is 28,9-10). 23 . Cf. SCHÖKEL, L. A ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas I, p. 222-224. 85 O profeta responde à provocação de maneira irônica e cruel, ameaçando-os com outro balbucio, só que em uma língua estranha, a dos assírios. A resposta do profeta soaria mais ou menos assim: "Está certo, é assim mesmo que Iahweh falará a vocês, mas através da Assíria que vem aí...". Em Is 28,14-15.18-19 o profeta denuncia as alianças com o Egito para o enfrentamento com a Assíria como uma aliança com a morte: as imagens conduzemnos a um mundo tenebroso de sheol e morte, apresentados aqui como poderes personificados: "A vossa aliança com a morte será rompida, o vosso pacto com o sheol não subsistirá. Quanto ao flagelo destruidor, ao passar, ele vos calcará aos pés" (Is 28,18). Is 29,1-8 é um poema muito bom, com grande dinâmica. Iahweh declara-se, na primeira pessoa (vv. 1-4), sitiador da cidade de Ariel, que é Jerusalém. Talvez o termo Ariel venha de har'el ou 'ari'eyl, nome "dado por Ezequiel à parte superior do altar, o forno, onde se queimavam as vítimas: isto exprimiria o caráter sagrado da cidade" 24. Este oráculo deve estar relacionado com o cerco de 701 a.C. Pois quando é crítica a situação da cidade, Iahweh manifesta-se, desbaratando o inimigo que desaparece como um pesadelo (vv.5-8). Em Is 30,1-5 o profeta ameaça aqueles que confiam nas alianças com o Egito e abandonam Iahweh, cometendo idolatria política25. Isaías demonstra que assim Judá fracassará. O contexto histórico continua sendo a crescente ameaça de Senaquerib a partir de 705 a.C. e as negociações de Judá para formar uma coalizão anti-assíria. "Com efeito, os seus príncipes estiveram em Soã [= Tânis, no Egito], os seus embaixadores chegaram até Hanes [= Anúsis, Heracleópolis Magna, no Egito]. Todos se desmoralizam por causa de um povo [= os egípcios] que não os pode socorrer, que não pode trazer-lhes ajuda nem proveito, mas antes, vergonha e opróbrio" (Is 30,4-5). Is 30,6-7 é igualmente um poema contra o envio de uma embaixada de Ezequias ao Egito através do Negueb. O deserto, povoado por leões e serpentes "terra de penúria e aflição", é descrito com extremo realismo. Os judeus levam ao governo egípcio presentes sobre jumentos e camelos, levam presentes "a um povo que não lhes pode valer", pois "o auxílio do Egito é inútil e vão". Is 30,11-17 é chamado por muitos de "testamento de Isaías" por causa da ordem dada por Iahweh ao profeta no v. 8: 24 . BÍBLIA DE JERUSALÉM, Is 29, nota d. 25 . Cf. SICRE, J. L. Los dioses olvidados, p. 55-59. 86 "Vai agora e escreve-o em uma tabuinha, grava-o em um livro que se conserve para dias futuros, para todo o sempre". Na verdade, o profeta vai escrever suas denúncias, repetidas mas não ouvidas por seus contemporâneos. Só o futuro lhe dará razão (vv. 8-11). Entretanto, Isaías alerta: este comportamento cego da nação vai levá-la à destruição, como uma muralha rachada que desmorona de repente ou um vaso de barro despedaçado com violência (vv. 12-14). A confiança de Judá está em seus inúteis exércitos e isto a destruirá, pois só a confiança em Iahweh garantiria sua sobrevivência na crise que se aproxima (vv. 1517). Is 31,1-3 retoma o tema da aliança com o Egito, denunciando-a como ilusória: seus numerosos carros de guerra e sua cavalaria poderosa não podem ajudar: Judá traiu Iahweh e não tem saída. "Pois o egípcio é homem e não deus, seus cavalos são carne e não espírito. Quando Iahweh estender a mão, Aquele que socorre tropeçará e o socorrido cairá, e perecerão ambos juntos" (Is 31,3). Embora pareça não ter mais nenhuma perspectiva, o profeta ainda sonha: Is 31,4-9 descreve a proteção de Iahweh para Jerusalém como um leão que defende sua presa dos pastores, como aves que voam e vigiam: "Então a Assíria cairá à espada, mas não de homem; por uma espada, mas não de mortal, ela será devorada" (v. 8a). 5.4. As releituras de Isaías Muitos dos oráculos de Is 1-39 são bem posteriores à época do profeta. São acréscimos, adaptações a contextos novos, releituras das profecias do grande Isaías do século VIII a.C. Os capítulos 13-23, por exemplo, são só parcialmente de Isaías, pois muitos de seus oráculos refletem uma situação de exílio ou pós-exílio26. Is 13,1-22 é um lamento fúnebre (qiná) contra a Babilônia, do final do exílio. Segundo o texto, Babilônia será destruída pelos medos. Os exércitos são terríveis, a catástrofe é imensa, a crueldade não tem limites: "Todo aquele que for encontrado será trespassado, 26 . "O texto atual de Isaías 1-39, seja como unidade fechada ou como parte de 1-66, deve ser lido na perspectiva pós-exílica (...) É a chave situacional para ler todo o 'livro' de Isaías. Esta 'posição' do leitor é fundamental para compreender este texto como uma obra e não como um aglomerado de oráculos", reitera CROATTO, J. S. Isaías. Vol I: 1-39, p. 14. 87 todo aquele que for pego cairá à espada. Tuas crianças serão despedaçadas sob seus olhos, suas casas serão saqueadas e suas mulheres violentadas (...) Os arcos prostrarão os meninos; eles não terão pena das criancinhas, seus olhos não pouparão os filhinhos. Assim Babilônia, a pérola dentre os reinos, o adorno e o orgulho dos caldeus, será como Sodoma e como Gomorra que foram reduzidas a ruína por Deus" (Is 13,15-16.18-19). Is 14,3-23 é uma sátira (mashal) extremamente bem construída sobre a morte do rei da Babilônia, provavelmente Nabucodonosor. Na sátira começam falando os israelitas libertados do jugo opressor, da arrogância e da impiedade "daquele que feria os povos com furor", que perseguia as nações sem que ninguém o pudesse deter. Com a sua queda, "o mundo inteiro repousa, está tranquilo", todos estão muito alegres (vv. 5-9). No sheol falam os mortos, excepcionalmente despertos, dirigindo-se ao poderoso rei babilônico com extrema ironia: "Então, também tu foste abatido como nós, acabaste igual a nós. O teu fausto foi precipitado no sheol, juntamente com a música de tuas harpas" (vv. 10-11a). A condição do rei morto não é nada privilegiada, como era em vida, segundo a observação dos habitantes do sheol, pois "sob o teu corpo os vermes formam como um colchão, os bichos te cobrem como um cobertor" (v. 11b). Logo este rei, ironiza o poema, que dizia ser superior a todos, que colocaria o seu trono acima das estrelas, que tornar-se-ia semelhante ao Altíssimo. Hoje quem te vê diz: "Porventura é este o homem que fazia temer a terra, que abalava reinos? Que reduziu o mundo a um deserto, arrasou-lhe as cidades e nunca permitiu que os seus prisioneiros voltassem para a sua pátria?" (vv. 16b-17). E o pior: o rei não terá nem sepultura nem sucessores, conclui o poema, para que nunca mais se nomeie "esta raça de malvados". Is 19, 16-25 é um trecho em prosa sobre a conversão do Egito. Certamente posterior ao exílio, pois supõe uma instalação judaica no Egito e prega uma reconciliação entre Assíria, Egito e Israel. Is 21,1-10 é um oráculo pós-exílico sobre a queda da Babilônia por obra dos medos e persas, em 538 a.C. Um vigia, o próprio profeta, anuncia a chegada de "homens em caravanas e cavaleiros aos pares" para concluir: "Caiu, caiu Babilônia! E todas as imagens dos seus deuses ele [Iahweh] as despedaçou no chão!" Is 24,1-27,13 contém capítulos apocalípticos ou proto-apocalípticos, anunciando já a literatura que aparecerá em Daniel e no livro etiópico de Henoc, entre 88 outros27 . Estes capítulos tratam da luta de Iahweh contra os inimigos e da vitória final do povo de Israel. Aqui se fala muito da "terra" e da "cidade". É a realidade do império persa, onde a "terra" indica seu extenso domínio e a "cidade" sua poderosa capital. Só que ambos são ampliados e tomados como símbolos da opressão imperialista, para qualquer época. A data mais provável destes oráculos deve se situar entre 500 e 400 a.C. Is 34,1-35,10 mostra como Iahweh combate as nações estrangeiras, destruindo totalmente seus territórios, e como o povo eleito recebe as bênçãos divinas. Do mesmo gênero de Is 24,1-27,13, também estes oráculos podem ser datados por volta do século V a.C. Is 36,1-39,8 são capítulos copiados dos livros dos Reis para completar as tradições, reunidas pelos redatores, sobre Isaías. A data da redação final é pós-exílica. Compõem-se os capítulos de três episódios principais: a invasão de Senaquerib e sua embaixada (36-37), a doença e a cura de Ezequias (38) e a embaixada do rei MerodacBaladã, da Babilônia (39). 5.5. Um dia não existirá mais opressão Para a compreensão da mensagem de Isaías é preciso salientar seus dois grandes temas: a questão social, especialmente durante seus primeiros anos de atividade; e a questão política, forte a partir do governo de Acaz e dos acontecimentos que cercaram a guerra siro-efraimita28 . Na questão social notamos profunda semelhança entre Isaías e Amós. Talvez os oráculos do pastor de Técua já fossem conhecidos em Jerusalém na época de Isaías. Afinal, são quase contemporâneos: Amós é de 760 a.C. e Isaías de 740 a.C. A problemática social era a mesma para ambos, embora Amós fosse um camponês e Isaías um homem culto ligado à corte. Isaías ataca os grupos dominantes da sociedade: autoridades, magistrados, latifundiários, políticos. É duro e irônico com as damas da classe alta de Jerusalém, como em Is 3,16-24. "Disse Iahweh: Visto que as filhas de Sião estão emproadas e andam de pescoço erguido e com olhos cobiçosos, visto que caminham a passos miúdos, fazendo tilintar as argolas dos [pés, o Senhor cobrirá de tinha a cabeça das filhas de Sião, Iahweh lhes desnudará a fronte" (Is 3,16-17). 27 . Cf. KAISER, O. Isaiah 13-39. 2. ed. London: SCM Press, 1980, p. 173-179; CROATTO, J. S. o. c., p. 147-149. 28 . Cf. SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas I, p. 109-111. 89 Defende, com paixão, órfãos, viúvas, oprimidos, o povo explorado e desgovernado pelos governantes. Denuncia igualmente a máscara da religião que encobre a injustiça. Por outro lado, sua posição política depende das tradições sobre a eleição divina de Jerusalém e da dinastia davídica. Iahweh está comprometido com a cidade e com a descendência de Davi. É preciso que o povo confie em Iahweh e mantenha a calma mesmo nos piores momentos. Nada de recorrer, portanto, a auxílios estrangeiros, quer venham do Egito, quer venham da Assíria. O contrário da fé é o temor, é o medo que se manifesta quando Judá busca segurança no poder das armas e das alianças políticas. O que pretendia Isaías com a sua pregação? Isaías quer que o homem de sua época restabeleça o equilíbrio perdido na sua relação com Iahweh. O homem de seu tempo se colocara no cume de um panteão terreno, dominando e decidindo tudo segundo mesquinhos interesses, sem exigências éticas de justiça e de solidariedade. Como diz Is 2,12-17: "Porque haverá um dia de Iahweh dos Exércitos contra tudo o que é orgulhoso e altivo, contra tudo o que se exalta, para que seja humilhado; contra todos os cedros do Líbano, altaneiros e elevados, e contra todos os carvalhos de Basã; contra todos os montes altaneiros e contra todos os outeiros elevados; contra toda a torre alta e contra toda a muralha fortificada contra todos os navios de Társis e contra tudo o que parece precioso. O orgulho do homem será humilhado, a altivez dos varões se abaterá, e só Iahweh será exaltado naquele dia". Isaías percebe Iahweh como soberano, glorioso, santo. E o homem, em geral, na sua condição humana e, concretamente, o seu povo, os seus contemporâneos, como impuros e fracos, como aparece no texto de sua vocação no capítulo 6. Se Israel não aceitar Iahweh como decisivo, então Iahweh o fará à força: virá o "dia de Iahweh" e a arrogância humana será despedaçada. 6. MIQUEIAS DENUNCIA A TEOLOGIA DA OPRESSÃO "Foi-te anunciado, ó homem, o que é bom, 90 e o que Iahweh exige de ti: nada mais do que praticar o direito gostar da solidariedade e caminhar humildemente com o teu Deus" (Mq 6,8). Contemporâneo de Isaías, o profeta Miqueias é um camponês vindo da região fortemente militarizada que confinava com a planície filisteia. Atuou durante os anos que se seguiram à guerra siro-efraimita, ainda no governo de Acaz, e durante a reforma de seu filho Ezequias, até a grande derrota de Judá e o castigo imposto ao país pela Assíria. Corajoso em sua postura de denúncia aberta e forte dos desmandos articulados pelos governos e pela classe dominante escorada no Estado, Miqueias é, ao mesmo tempo, e por isso, um grande defensor dos camponeses e dos direitos dos oprimidos de seu tempo. Uma de suas características mais marcantes é a denúncia da teologia oficial que se elaborava em Jerusalém para sustentar a opressão que garantia a riqueza da corte mesmo quando o país estava em grande crise e a maior parte da população passava necessidades. Sua discussão com seus colegas profetas que se prestam a esse papel de falar o que interessa às autoridades de turno é uma das marcas características desse grande profeta de Morasti-Gat. No primeiro momento discutirei as questões gerais acerca do livro e do personagem. No segundo, a primeira parte do livro, os capítulos 1-5. E, finalmente, os dois capítulos finais, Mq 6-7. É um livro pequeno, mas de forte densidade e de grande atualidade. 6.1. O livro e seu autor Um dos primeiros problemas que se apresentam ao leitor de Miqueias é o da autoria do livro. Parece, à primeira vista, que boa parte do livro não pode ser do profeta de Morasti-Gat. Isto porque sua pregação é de feroz denúncia da opressão e da teologia que a sustenta. Tal é a característica dos capítulos 1-3. Por outro lado, os capítulos 4-5 estão recheados de benevolentes promessas, o que não se coaduna com o tom dos três primeiros. Ainda: os capítulos 6-7 parecem ser de Miqueias, mas o livro termina, talvez, com um oráculo sobre Samaria, coisa estranha para um profeta judaíta. Comparemos, por exemplo, Mq 3,9-12 com Mq 4,8, onde o destino de Jerusalém aparece de duas formas claramente contrastantes: "Ouvi, pois, isto, chefes da casa de Jacó e dirigentes da casa de Israel, vós que execrais a justiça, que torceis o que é direito, vós que edificais Sião com o sangue e Jerusalém com injustiça! Seus chefes julgam por suborno, 91 seus sacerdotes decidem por salário e seus profetas vaticinam por dinheiro. E eles se apoiam em Iahweh, dizendo: 'Não está Iahweh em nosso meio? Não virá sobre nós a desgraça!' Por isso, por culpa vossa, Sião será arada como um campo, Jerusalém se tornará um lugar de ruínas, e a montanha do Templo, um cerro de brenhas!" (Mq 3,9-12). "E tu, Torre do Rebanho, Ofel da filha de Sião, em ti entrará a autoridade antiga, a realeza da filha de Jerusalém" (Mq 4,8). O que dizem os especialistas? Dizem que Mq 1-3 é de Miqueias, mas que os capítulos 4-5 pertenceriam a outros autores que teriam somado suas profecias de salvação ao livro de Miqueias. E que os capítulos 6 e 7 seriam apenas parcialmente de Miqueias1. Mas há outra solução possível. Que resolve especialmente o problema dos capítulos 4-5. Podemos ler estes capítulos como um aceso debate entre Miqueias e outros profetas, contemporâneos seus, mas que defendem posições opostas às suas. Nós hoje os chamamos de falsos profetas. Miqueias, por sua vez, denuncia sua teologia como sustentáculo da injustiça que se praticava em Jerusalém. Aqueles textos que parecem contrariar a pregação de Miqueias seriam, na verdade, as palavras dos falsos profetas. E é até possível que os capítulos 6-7 pertençam a um Dêutero-Miqueias, um anônimo profeta samaritano que teria existido nos últimos anos do reino do norte. Assim se explicariam as características nortistas desses dois capítulos. Por outro lado, nada impede que o próprio Miqueias tenha pregado a respeito de Samaria às vésperas de sua destruição. Era lição adequada a Jerusalém, que corria os mesmos riscos 2. Como Mq 6,16, que fala do exemplo de Samaria: "Tu observas as leis de Omri, todas as práticas da casa de Acab. Vós vos conduzis segundo seus princípios, para que eu faça de ti um objeto de estupor, de teus habitantes uma zombaria, e que carregueis o opróbrio dos povos". 1 . Cf. ZENGER, E. et al. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2003, p. 508-511. 2 . Cf. SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas II, p. 1064-1066. 92 Agora, sobre o profeta. Diz o v. 1 que Miqueias3 é natural de Morasti-Gat, aldeia situada na Shefelá, próxima à cidade de Gat, a cerca de 50 km a sudoeste de Jerusalém. Para entendermos certas colocações de Miqueias é bom lembrarmos que sua aldeia ficava numa região altamente militarizada, coalhada de fortalezas: em um círculo de dez quilômetros encontramos Azeca, Soco, Odolam, Maresa e Lakish4 . Parece que Miqueias era um camponês, dado que sua aversão pelas cidades, especialmente por Jerusalém, se manifesta a todo momento. E também porque ele denuncia os latifundiários de seu tempo com toda a dureza 5. E não gosta dos comerciantes. Diz Mq 6,10-12, por exemplo: "Posso suportar uma medida falsa - tesouros iníquos um efá diminuído, abominável? Posso considerar quites as balanças falsas uma bolsa de pesos falsificados? Ela, cujos ricos estão cheios de violência, e cujos habitantes proferem a mentira. Sua língua é mentirosa em sua boca". Deve ter atuado em Jerusalém, especialmente no tempo de Ezequias (716/15699/98 a.C.) Diz o título do livro que ele profetizou desde a época de Joatão (740/39734 a.C.), passando por Acaz (734/3-716 a.C.) e Ezequias. Como ele se refere a Samaria, de um lado, e à invasão de Senaquerib, de outro, devemos colocar como data possível os anos de 727 a 701 a.C. Quanto à divisão do livro, a maior parte dos autores indica quatro seções, alternando-se ameaças e promessas: 1-3 : ameaças 4-5 : promessas 6,1-7,7 : ameaças 7,8-20 : promessas. 3 . Miqueias, em hebraico Mîkâh, é uma abreviação de Mîkâ'el (quem é como El?) ou de Mîkâyâhû (quem é como Iahweh?). No v. 1 ele é chamado de "Miqueias, o morastita". 4 . "A presença de militares e funcionários reais devia ser frequente na região e, pelo que diz Miqueias, não muito benéfica. Além dos impostos, é provável que requisitassem trabalhadores para conduzi-los a Jerusalém (cf. 3,10). Latifundismo, impostos, roubo a mão armada, trabalhos forçados: este é o ambiente que cerca o profeta", comenta SICRE, J. L. Profetismo em Israel, p. 276. 5 . "Não se enganaria muito quem o colocasse entre os simples, vítimas das injustiças sociais, uma vez que ele mostra certa agressividade em relação às autoridades políticas, judiciais, militares e religiosas de Jerusalém (c. 3), em relação aos comerciantes (6,10-12), aos especuladores fundiários e aos usurários de tempos de guerra (2,1-5.8-9)", comentam MAILLOT, A. ; LELIÈVRE, A. Atualidade de Miqueias: Um grande "profeta menor". São Paulo: Paulus, 1980, p. 14. 93 L. A. Schökel e J. L. Sicre Diaz6 preferem falar de dois atos apenas: no primeiro é descrita uma teofania e suas consequências (1-5), enquanto que no segundo aparece o julgamento de Iahweh contra Israel (6-7). Com efeito, Mq 1,2-4, quando fala da manifestação de Iahweh, diz o seguinte: "Ouvi, povos todos, presta atenção, terra, e o que a habita! Que Iahweh seja testemunha contra vós, o Senhor saiu de seu santo Templo! Porque eis que Iahweh sai de seu lugar santo, ele desce e pisa sobre os cumes da terra. Debaixo dele os montes se derretem e os vales se desfazem como a cera junto do fogo, como a água derramada em uma encosta". Já Mq 6,1-2, abrindo o segundo ato, traz um processo de Iahweh contra Israel: "Ouvi, pois, o que diz Iahweh: 'Levanta-te, abre um processo diante das montanhas, e que as colinas ouçam a tua voz!' Ouvi, montanhas, o processo de Iahweh, E vós, inabaláveis fundamentos da terra, porque Iahweh está em processo com o seu povo, e contra Israel ele pleiteia". Todo o conteúdo do livro de Miqueias pode ser sintetizado como segue: Mq 1-5: a teofania e suas consequências Cap. 1: o profeta anuncia e denuncia generalidades 1,1 : título 1,2-7 : anúncio de uma grande teofania motivo: crimes de Jacó (norte) e de Judá (sul) consequência: o castigo imediato de Samaria 1,8-16 : uma elegia por Judá motivo: uma catástrofe que afetou norte e sul ocasião da catástrofe: passada (a invasão de Senaquerib)? futura? motor da catástrofe: Iahweh que julga o seu povo Cap. 2-3: o profeta passa à denúncia de pecados concretos 2,1-5 : ai (ameaça) contra os ricos motivo: porque tomam as casas dos pobres 2,6-11 : resultado: discussão entre Miqueias e seus adversários por quê? acreditam os adversários que nenhum mal lhes virá 2,12-13: uma promessa de salvação 6 . Cf. SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. o. c., p. 1066-1070. 94 autor: muitos acreditam ser um autor posterior que tentou suavizar a ameaça anterior. Mas podem ser palavras dos falsos profetas 3,1-4 : nova ameaça contra as autoridades 3,5-8 : disputa entre Miqueias e os falsos profetas 3,9-12 : novo ataque às autoridades civis e religiosas anúncio de um terrível castigo para Jerusalém Cap. 4-5: em discussão, a salvação (= restauração do país) desenvolvimento: vários autores? assim pensa a maioria outros acreditam ser uma discussão entre Miqueias e os falsos profetas 1. Quando será a salvação? Para Miqueias é coisa futura, dos "últimos dias", e não "agora", como dizem os falsos profetas. É preciso primeiro passar por uma purificação. Então Jerusalém será restaurada. 2. De onde virá a salvação? Para Miqueias a salvação virá de Belém, lugar do povo. Para os falsos profetas virá de Jerusalém, lugar do poder 3. Em que consistirá a salvação? Miqueias diz que será a restauração para todos os povos. Os falsos profetas: será boa para os judeus, mas será destruição para os estrangeiros. Mq 6-7: o processo de Iahweh contra seu povo 6,1-5 6,6-7 6,8-9a 6,9b-16 7,1-7 7,8-20 : convocação da natureza para que assista à querela de Iahweh contra seu povo : o culto, somente através do qual ocorre a Israel agradar a Iahweh, é rechaçado : o caminho certo passa pela justiça e pela lealdade : duro ataque à cidade, onde faltam exatamente a justiça e a lealdade, pois se enriqueceu à custa de injustiças : com o desaparecimento da lealdade, ninguém pode confiar em ninguém, nem nos mais íntimos. O único jeito é confiar em Iahweh e esperar a sua intervenção salvífica : reconhecimento da culpa e reconciliação. 6.2. A teofania e suas consequências (1,2-5,14) Em Mq 1,2-7 o profeta descreve uma poderosa manifestação de Iahweh, seguida pela acusação a Israel e a Judá, provocando o castigo imediato de Samaria. Diz Miqueias que "o Senhor saiu de seu santo Templo" para manifestar-se contra Israel (v. 2). A. Maillot e A. Lelièvre comentam a propósito: "Há aqui uma preposição muito interessante. Comumente se dizia que o Senhor estava no Templo. Mas a preposição empregada aqui por Miqueias não deixa o Senhor ficar encerrado no Templo. Ela sublinha que Deus sai do Templo não para abandoná-lo, mas para agir fora. É um tema 95 de Miqueias: o Deus-do-Templo, da liturgia, é também o Deus-de-fora-do-Templo e do cotidiano"7 . Apesar da violência que isto representa, Miqueias acusa o próprio Templo de Jerusalém de praticar cultos idolátricos, ao falar dos "lugares altos" (segundo o texto hebraico, porque o texto da LXX muda para "o pecado da casa de Judá"), expressão que se refere aos locais de prática dos cultos da fertilidade. "Tudo isso por causa do crime de Jacó, por causa dos pecados da casa de Israel Qual é o crime de Jacó? Não é Samaria? Quais são os lugares altos de Judá? Não é Jerusalém?" (Mq 1,5). Em Mq 1,8-16 o profeta canta uma elegia (= cântico fúnebre) por Judá, descrevendo uma invasão militar, patrocinada por Iahweh, para castigar o povo. Tratase provavelmente da invasão assíria de 701 a.C., quando Senaquerib destruiu 46 cidades fortificadas de Judá. Interessante é o jogo de palavras, feito pelo poeta, com o e sentido dos nomes das cidades e o seu destino, do tipo: b ghath 'al tagîdhû = em Gat não anuncieis... Das doze cidades mencionadas conhecemos sete, situadas a sudoeste de Jerusalém: Gat, Saanã, Lakish, Morasti-Gat, Bet-Aczib, Maresa e Odolam. Mq 2,1-5 acusa os que têm poder, porque espoliam os mais fracos do que eles. Miqueias promete-lhes um castigo sob a forma de um exílio. O profeta critica sobretudo a perversão do comércio da terra, absurdo sob o ponto de vista da solidariedade tribal. Para Miqueias a estrutura absolutista da monarquia israelita comete um evidente abuso de poder, um crime, ao possibilitar que seus beneficiários transformem a terra, doada a todos por Iahweh, para o sustento cotidiano, em terra de negócio, para acumulação e lucro. "Ai daqueles que planejam iniquidade e que tramam o mal em seu leitos! Ao amanhecer, eles o praticam, porque está no poder de sua mão. Se cobiçam campos, eles os roubam, se casas, eles as tomam; oprimem o varão e sua casa, o homem e sua herança" (Mq 2,1-2). O verbo "cobiçar", usado por Miqueias, é hâmad: este verbo não indica apenas um desejo que não se concretiza, mas a maquinação para realizar um plano. Além do que cobiçar é a ação daqueles que possuem recursos para tomar posse de bens alheios pública e impunemente. É o mesmo verbo usado em Ex 20,12, uma das palavras do decálogo: "Não cobiçarás a casa do teu próximo...". 7 . MAILLOT, A. ; LELIÈVRE, A. Atualidade de Miqueias, p. 41. 96 É bom a gente observar que as pessoas acusadas por Miqueias não são os "marginais" da sociedade israelita. São pessoas honradas e respeitadas. Estão, no momento, muito bem. Contudo, a ameaça do castigo (vv. 3-5) tem a sua razão de ser. "Antes de tudo, deve-se dizer que um país no qual a injustiça social chegou a tal ponto, que se encontram, de um lado, alguns poucos grandes proprietários e, do outro, uma incontável multidão de pobres mais ou menos escravos, pode ter certeza de perder a guerra, se ela vier", observam A. Maillot e A. Lelièvre 8. Além da miséria e enfraquecimento inevitáveis nestes casos, ocorre um agravante: faltaria ao soldado israelita, recrutado entre os camponeses empobrecidos, qualquer motivação para a luta. Afinal, os camponeses nada têm para defender de um inimigo externo, pois já perderam tudo para os exploradores internos... Em 2,6-11 temos uma discussão entre Miqueias e seus adversários, os profetas do poder. No início do oráculo vem citado o discurso deles (vv. 6-7), vindo, em seguida, a resposta de Miqueias que os acusa de despojar os mais fracos (vv. 8-11). Segundo os profetas contrários a Miqueias, não há o que temer, já que os filhos de Jacó (= os israelitas) são abençoados (Gn 49), além do que, Iahweh, que não esmorece no cumprimento de suas promessas, continua a agir com benevolência. Mas o argumento de Miqueias é o seguinte: "Estes profetas com suas mentiras se dedicam a despojar mulheres, crianças e viajantes, enquanto participam de festas despreocupadas: eles fazem boa companhia aos poderosos, utilizando a mentira em lugar do poder"9. E no v. 11, finalmente, Miqueias traça o perfil do falso profeta. Jogando com o termo rûah, que significa tanto "vento" como "espírito", diz nosso profeta que seus adversários, que tanto reivindicam o espírito, acabam mesmo é correndo atrás do vento. Mq 2,12-13 traz a típica mensagem da teologia oficial de Jerusalém no tempo de Miqueias. São palavras dos adversários de nosso profeta o que devemos ler aqui. São os falsos profetas em ação. Seus temas: a reunificação, o Senhor como pastor do povo, o rei. Em Mq 3,1- 4 o profeta repreende o comportamento dos chefes de Israel: são as autoridades civis como o rei, os funcionários dos escalões superiores e os juízes, os "cabeças" (ro'shîm), em hebraico. A metáfora usada pelo profeta é de uma crueza espantosa: "E eu digo: Ouvi, pois, chefes da casa de Jacó e dirigentes da casa de Israel! Por acaso não cabe a vós conhecer o direito (mishpât), a vós que odiais o bem e amais o mal, 8 . MAILLOT, A. ; LELIÈVRE, A. Atualidade de Miqueias, p. 59-60. 9 . SCHÖKEL, L. A. ; SICRE DIAZ, J. L. Profetas II, p. 1080. 97 que lhes arrancais a pele, e a carne de seus ossos? Aqueles que comeram a carne de meu povo, arrancaram-lhe a pele, quebraram-lhe os ossos, cortaram-no como carne na panela e como vianda dentro do caldeirão, então eles clamarão a Iahweh, e ele não lhes responderá. Ele lhes esconderá a sua face naquele tempo, porque os seus atos foram maus!" (Mq 3,1-4). Mq 3,5-8 traz nova discussão entre Miqueias e os falsos profetas que, devendo ser guias do povo, entretanto, desviam-no. Miqueias carrega na denúncia dos profetas que vaticinam por comida. "Assim disse Iahweh aos profetas que seduzem o meu povo: Àqueles que, se têm algo para morder em seus dentes, proclamam: 'Paz'. Mas a quem não lhes põe nada na boca eles declaram a guerra!" (Mq 3,5). Mq 3,9-12 é um ataque à corrupção das classes dirigentes: magistrados, chefes, sacerdotes, profetas, gente de Jerusalém que acredita estar Iahweh com eles, defendendo-os. Entretanto: "Seus chefes (ro'shîm) julgam por suborno seus sacerdotes decidem por salário e seus profetas vaticinam por dinheiro" (Mq 3,11a). Estes dirigentes, na verdade, estão edificando "Sião com sangue e Jerusalém com injustiça". Mas o v. 12 destrói tal ilusão: "Por culpa vossa, Sião será arada como um campo, Jerusalém se tornará lugar de ruínas, e a montanha do Templo, cerro de brenhas". Em 4,1-4 Miqueias canta o futuro, quando, em uma peregrinação geral, convergirão toda as nações, vizinhas e distantes, para o louvor de Iahweh e em busca de seu ensinamento e de sua proteção, para o monte Sião. Já em Mq 4,5 os falsos profetas mantêm uma estreita visão da história, contra o universalismo de Miqueias: cada povo segue seu deus, Israel segue Iahweh. Os outros povos não virão, dizem eles. Em 4,6-7 Miqueias retoma o tema anterior, somando-lhe algo novo: os exilados israelitas retornam à sua pátria. Em Mq 4,8-9 os falsos profetas exaltam a grandeza de Jerusalém, chamando-a de "Torre do Rebanho". Afirmam que Jerusalém não deve temer o inimigo, pois sua tradição de poder é antiga e inabalável. Mas em Mq 4,10 o nosso profeta retruca que a hora do exílio e do sofrimento está chegando. 98 Em Mq 4,11-13 os falsos profetas acreditam na vitória de Judá sobre os seus temíveis adversários, os já, nesta época, ameaçadores assírios. Porém Mq 4,14 rebate: nada de falsas ilusões, que o tempo é mau para Jerusalém e Judá, diz o profeta de Morasti-Gat. Em 5,1-3 Miqueias retoma a esperança de uma recuperação de Judá, mas só a partir das origens humildes da dinastia davídica, originária de Belém. Recusa-se o profeta a admitir uma saída da crise contando com as forças reinantes no momento: "E tu, Belém-Éfrata, pequena entre os clãs de Judá, de ti sairá para mim aquele que governará Israel" (Mq 5,1). Os falsos profetas, entretanto, retrucam, em Mq 5,4-5, que a paz será conquistada com a guerra e a vitória de Judá sobre a Assíria. Em Mq 5,6 o profeta fala do "resto" de Jacó (= Israel) em meio às nações como uma bênção de Iahweh, de maneira pacífica, construtiva. Já os falsos profetas, em Mq 5,7-8, falam de Israel em meio aos outros povos como um leão entre animais selvagens e ovelhas, destruidor e feroz. Finalmente, em Mq 5,9-14, nosso profeta traz um oráculo sobre o aniquilamento da idolatria, sob suas diversas formas, em Israel: são aniquilados os cavalos e os carros de guerra, as fortalezas e as cidades, os adivinhos, as estelas, as estátuas e os postes sagrados. É um oráculo muito semelhante ao de Is 2,7-8. Observamos que Miqueias faz desfilar diante de nós as vítimas da exploração de seu tempo. Ele vê a sociedade dividida entre os donos de terra, as autoridades civis e militares, os juízes, os sacerdotes e os falsos profetas, de um lado; e, do outro lado, o "meu povo", o povo de Iahweh, vítima da opressão. É então que Miqueias denuncia a "teologia da opressão" que se elabora em Jerusalém e que serve para ocultar e/ou legitimar as injustiças10. 6.3. O processo de Iahweh contra seu povo (6,1-7,20) Em Mq 6,1-8 o profeta anuncia que Iahweh iniciará um processo contra Israel. Convoca as montanhas, as colinas e os "fundamentos da terra" como testemunhas. Iahweh enumera os benefícios feitos por ele a Israel: acontecimentos que vão desde o êxodo do Egito até a chegada a Guilgal. Israel tenta, porém, reparar a sua culpa através de um faustoso e exagerado sacrifício de animais e de cereais, chegando ao ponto de pensar no sacrifício do primogênito. O v. 8, entretanto, célebre passagem, joga toda a teologia israelita por terra quando o profeta exige: "Foi-te anunciado, ó homem, o que é bom, e o que Iahweh exige de ti: nada mais do que praticar o direito (mishpât) 10 . Cf. SICRE, J. L. A justiça social nos profetas, p. 416-425. 99 gostar da solidariedade (hesedh) e caminhar humildemente com o teu Deus". Este versículo resume o pensamento dos outros três grandes profetas do século VIII a.C.: Amós, na sua exigência de direito e justiça Oseias, na sua exigência de solidariedade Isaías, na sua exigência de fé e obediência 11. Em Mq 6,9-16 há uma acusação contra Jerusalém (ou Samaria, segundo outros), pois ela abriga pessoas que se enriquecem injustamente, fraudando pesos e medidas, além de praticarem a violência e a falsidade. Em Mq 7,1-7 o profeta fala sobre a sua situação. Frente à deslealdade reinante, despeja Miqueias sobre os leitores a sua infelicidade e angústia: está só no meio dos homens, só conta com Iahweh. "O fiel desapareceu da terra, não há justo entre as pessoas! Todos estão à espreita para derramar o sangue, Eles cercam cada qual seu irmão com a rede. Suas mãos são para o mal, para fazer o bem, o príncipe (sar) exige, assim como o juiz (shophêt), uma gratificação, o grande expressa a própria cupidez (...) Não confieis no próximo, não ponhais a vossa confiança em amigo; diante daquela que dorme em teu seio, guarda-te de abrir a tua boca. Porque o filho insulta o pai, a filha levanta-se contra a sua mãe, a nora contra a sua sogra, os inimigos do homem são as pessoas de sua casa" (Mq 7,2-3.5-6). Mq 7,8-20 conta como Jerusalém sofreu nas mãos dos inimigos, mas reconheceu a sua culpa, está envergonhada e será recuperada por Iahweh que a perdoa. É um texto pós-exílico este, segundo a opinião da maioria dos autores, quando se deu a reconstrução da cidade. Oráculos acrescentados pelos copistas às duras críticas de Miqueias, arranjando um final feliz... 11. "Se se tratasse de resumir de modo lapidar a mensagem do AT, esta passagem seria uma das que entrariam na concorrência. Porque ela diz tudo ou quase tudo", observam MAILLOT, A. ; LELIÈVRE, A. o. c., p. 140. 100 CONCLUSÃO 101 Para que o leitor possa ter uma visão de conjunto do tema, retomo, nesta conclusão, os aspectos mais importantes desenvolvidos ao longo do texto. Os números correspondem aos itens apresentados nos capítulos. 1.1. A sociedade tribal israelita era baseada nas relações de parentesco, criando fortes vínculos sociais entres seus membros e exigindo solidariedade mútua de modo muito rigoroso. 1.2. Já a organização monárquica baseava-se na centralização do poder nas mãos do governante dinástico, recriando a oposição cidade x campo e minando a solidariedade antes estabelecida pela retribalização israelita. A relação agora é de exploração do Estado sobre os camponeses, exploração que inclui desde a apropriação do excedente dos produtos da terra até o trabalho compulsório. A ética javista vai sendo progressivamente abandonada e a baalização é incentivada pela classe dominante. 2.1. Quando se aprofunda a crise do javismo e os camponeses estão sendo duramente explorados, surgem os profetas. Denunciam a ruptura das relações de solidariedade, apontando o comportamento dominante como idolátrico e despótico. 2.2. Os profetas percebem a inadequação existente entre o javismo que se diz praticar em Israel e as ações sociais reais anti-javistas que de fato predominam. Denunciam o mau funcionamento das instituições do Estado monárquico e pregam uma recuperação dos valores do javismo para salvar o país. 2.3. No pós-exílio, os profetas acabam por pactuar com a nova ordem construída em torno do Templo e por isso caminham para a falência e o descrédito. Além de o poder sacerdotal se solidificar no Templo, a Lei escrita (Torá) passa a ser interpretada por especialistas, tornando o discurso profético desnecessário e perigoso. No seu lugar desenvolve-se o discurso apocalíptico, quase uma espécie de profecia escrita. 3.1. Um dos mais clássicos exemplos de atuação profética é o do camponês Amós que, progressivamente, se inquieta com a situação reinante e parte para o protesto. As chamadas "visões simbólicas" de seu livro apresentam esta maturação vocacional do pastor de Técua. 3.2. A época em que atuou Amós é a da aparente prosperidade criada pelo governo de Jeroboão II em Israel. O Estado alargou suas fronteiras geográficas, políticas e comerciais e aprofundou a divisão campo/cidade, típica do regime tributário. O javismo foi sendo abandonado, outros deuses e outros valores foram sendo incorporados e desenvolvidos, legitimando a exploração dos camponeses. 3.3. Pastor, vaqueiro e cultivador de sicômoros, homem rude e simples, Amós era de Técua, cidade de Judá, mas por alguma razão acabou indo pregar em Betel no reino do norte e, talvez, em Samaria, a capital, até ser expulso do santuário por contrariar os interesses reais. Deve ter atuado por volta de 760 a.C. 3.4. Dirigindo-se aos seus ouvintes do norte, Amós acusa-os de espoliar o pequeno camponês, que está perdendo sua herança e sua liberdade. Olhando ao redor de Israel, Amós vê uma série de crimes e desmandos cometidos por reinos e cidades vizinhas. Mas vê em Israel um processo mais acelerado de despotismo e o denuncia com todas as letras. 102 3.5. O seu livro passou por repetidos processos redacionais, feitos por seus discípulos e por teólogos deuteronomistas posteriores à sua época. A redação definitiva do livro tomou forma só após o exílio babilônico. 3.6. O núcleo do livro de Amós é composto por uma série de palavras e ameaças contra Israel. O profeta denuncia o luxo dos ricos, sua costumeira prática da injustiça contra os pobres, o falso culto prestado a Iahweh e a falsa segurança religiosa que seus ouvintes imaginam possuir. Conclama os israelitas à prática do bem para que possam salvar um resto do país que caminha rapidamente para a ruína. 4.1. O profeta Oseias, quase contemporâneo de Amós, parte de uma aparente experiência pessoal - um casamento desastrado - para denunciar a ruptura da fidelidade israelita à aliança javista e a procura dos ídolos que se generaliza no Israel de sua época. 4.2. Vivendo numa época de grande instabilidade política, Oseias assiste durante sua vida a sucessivos golpes de Estado e à crescente e desastrosa interferência assíria na região, que acaba por destruir Samaria em 722 a.C. 4.3. Observando os acontecimentos de sua época, Oseias aponta a falta de apego à ética javista como problema central e definitivo em Israel. Os responsáveis pela desagregação social, membros da elite dominante, são devidamente denunciados por Oseias. 4.4. Natural do norte, Oseias parece que atuou em Samaria de 755 a 725 a.C. Apesar da crítica social e da veemente condenação da idolatria, Oseias vislumbra uma possibilidade de saída da crise, pois crê na misericórdia de Iahweh que não abandonará o seu povo. Neste ponto, Oseias pecou pelo otimismo exagerado, porque o reino do norte conheceu seu fim definitivo poucos anos após o término de sua pregação. 4.5. Oseias apela, no final de seu livro, de várias maneiras e com imagens poéticas de grande sensibilidade, à volta ao javismo, para que Efraim possa se salvar. 5.1. Isaías de Jerusalém é contemporâneo de Oseias e de Miqueias. Sua pregação obteve tamanha fama que seu livro foi sendo aumentado pelo acréscimo de oráculos de outros profetas do exílio e do pós-exílio, transformando-o na mais clássica das obras proféticas. Entretanto, apenas cerca de 20 capítulos, de um total de 66, pertencem ao profeta Isaías, que atuou entre 740 e 701 a.C. Nos primeiros anos de sua atuação, Isaías denuncia o afastamento do javismo que leva Judá à idolatria, à soberba e ao despotismo dos grandes que avançam sobre a herança dos pobres. Comparando o seu país a uma vinha que não produziu uvas boas, em clássico e charmoso poema, Isaías percebe o risco que corre o seu povo se não se converter a Iahweh. 5.2. Isaías foi um observador privilegiado dos conflitos gerados na região pela intervenção assíria. Durante o governo de Acaz, quando se desencadeia a guerra siroefraimita, Isaías faz constantes apelos ao jovem rei para que confie mais em Iahweh e menos nas perigosas alianças com a potência hegemônica da região. Isaías vê uma saída no futuro rei, o menino Ezequias, que poderá reconduzir Judá aos caminhos da solidariedade javista. 5.3. Quando assume o governo, Ezequias, de fato, promove uma reforma bastante interessante. Mas comete o erro de se levantar contra o poderio assírio de Senaquerib, que arrasa o país em 701 a.C. e, por pouco, não toma Jerusalém. 103 Engajado em todo este processo, nesta época Isaías denuncia a falsa confiança de Jerusalém nas alianças com o Egito e na esperada derrota assíria. Isaías percebe que Judá fracassará, como de fato fracassou, transformando-se num joguete de grandes potências e escusos interesses. 5.4. Muitos oráculos do livro, mesmo dentro dos 39 primeiros capítulos, pertencem a uma releitura pós-exílica de Isaías. Vários capítulos desta releitura apresentam forte coloração apocalíptica, devendo ser datados aí pelos anos 400 a.C. 5.5. Talvez Isaías tenha conhecido a pregação de Amós, tal sua semelhança com o pastor de Técua no que toca à questão social. Mas Isaías crê no futuro de Jerusalém, pois Iahweh garantiu a Davi um poder eterno. Iahweh está comprometido com a cidade e salvará o seu povo, conduzindo-o a um reino de paz onde, um dia, não haverá mais opressão. 6.1. Na mesma época em que Isaías pregava em Jerusalém surgiu ali outro importante profeta, originário de Morasti-Gat, situada na região limítrofe com os filisteus. O seu livro, de sete capítulos, parece ser um debate constante com falsos profetas que discordam de suas severas palavras de julgamento para Judá. 6.2. Miqueias, na sua franca linguagem camponesa, denuncia duramente as autoridades de Jerusalém como responsáveis pela crise imensa porque passa o país, já que não existe a mínima preocupação de exercer a justiça e respeitar o direito do pobre que é, na sua expressão, colocado na panela e cozinhado pelos poderosos de turno. Daí a discussão com seus adversários que, a serviço do poder, desmentem o profeta morastita e procuram constantemente reafirmar que não há razão para preocupação, pois tudo corre bem. Miqueias faz verdadeira cruzada contra esta "teologia da opressão". 6.3. Resumindo o pensamento profético de sua época, Miqueias ataca o falso discurso javista celebrado no culto faustoso e exige a prática do direito e da solidariedade javista como o único caminho que poderá salvar o seu povo e o seu país. CRONOLOGIA DO SÉCULO VIII A.C. 104 797-782 796-767 753-745 782/1-753 ca. 760 767-739 755-725 753 (6 meses) 753/2 (1 mês) 753/2-742 745-727 742/1-740 740/39-731 740-701 739--734 734/3-716 734-733 727-701 731-722 726-722 722 721-705 716/15-699/98 716/15 711 705-681 701 VOCABULÁRIO : Joás, rei de Israel : Amasias, rei de Judá : enfraquecimento da Assíria : Jeroboão II, rei de Israel : o profeta Amós : Ozias, rei de Judá : o profeta Oseias : Zacarias, rei de Israel : Salum, rei de Israel : Menahem, rei de Israel : Tiglat-Pileser III, rei da Assíria : Pecahia, rei de Israel : Pecah, rei de Israel : o profeta Isaías : Joatão, rei de Judá : Acaz, rei de Judá : guerra siro-efraimita : o profeta Miqueias : Oseias, rei de Israel : Salmanasar V, rei da Assíria : tomada de Samaria pelos assírios : Sargão II, rei da Assíria : Ezequias, rei de Judá : reforma de Ezequias : Sargão II toma Azoto : Senaquerib, rei da Assíria : invasão de Judá por Senaquerib 105 Aliança Berîth, traduzido por "aliança", é uma relação de solidariedade que se estabelece entre duas pessoas, dois grupos ou entre homens e divindades. Uma berîth supõe obrigações e sua observância leva ao bem-estar, à paz, à felicidade (shalôm). A violação das normas da berîth implica em penalidades específicas, que pode ser até a destruição do povo que as descumpriu. Assim vê Israel a sua relação com Iahweh. A aliança Iahweh-Israel garante ao povo paz e prosperidade na terra em que habita. Mas exige um comportamento de justiça, direito e fidelidade. A violação destas normas javistas pode conduzir Israel à ruína, perda da terra e dispersão do povo. Os profetas abordam constantemente esta relação, exigindo a prática da solidariedade e ameaçando com a punição de Iahweh os responsáveis pelos descaminhos do povo de Israel. Amon Amon, em hebraico 'ammôn ou bhenê 'ammôn (= filhos de Amon), é uma tribo aramaica que se estabeleceu na Transjordânia, na região superior do rio Jaboc, aí pelo século XIII a.C. Sua capital era Rabá-Amon, a atual Amã, capital da Jordânia. Os limites de seu território não são bem definidos e Amon foi o mais fraco dos reinos transjordânicos. Segundo Gn 19,30-38, os amonitas eram descendentes de um certo Ben-Ami, filho de Ló, tradição que atesta sua origem aramaica. Cultuavam os amonitas o deus Moloc (ou Melek), a quem se sacrificavam crianças. Amon esteve frequentemente submetido a Israel, de quem sempre foi inimigo. Nos profetas, Amon e mencionado em Am 1,13-15; Sf 2,8-11; Jr 9,25; 49,1-6; Ez 21,33-37; 25,1-7 etc. Em todas estas passagens Amon é ameaçado pelos profetas com a punição exercida por Iahweh. Apocalíptica O termo vem do grego apocalýptein, que significa "revelar", "desvendar". A apocalíptica é um gênero literário e uma corrente de pensamento que floresceu entre os judeus durante uns três ou quatro séculos, a partir do século II a.C. A apocalíptica é filha da profecia e, tal como a mãe, é extremamente combativa. Surgiu como uma reação judaica típica ao influente racionalismo grego que se espalhava na Palestina durante o domínio selêucida. Sua maior efervescência se dá nos momentos das graves crises enfrentadas pelos judeus a partir da intervenção selêucida, ou seja: durante a revolta dos Macabeus ( séc. II a.C.), a partir da intervenção romana (séc. I a.C.) e durante as rebeliões judaicas contra Roma (séculos I e II d.C.). 106 Os grupos apocalípticos acreditavam serem eles os detentores de uma "revelação" e de uma "sabedoria" divina especial sobre os mistérios da história, o cosmos, o mundo celeste e o destino dos indivíduos no fim dos tempos, ocultada à razão humana. O livro de Daniel, escrito em 164 a.C., é uma das mais antigas obras apocalípticas que conhecemos. A maior parte da literatura apocalíptica é, hoje, classificada como apócrifa. Aram Os arameus constituem um povo semita nômade que a partir do deserto siroarábico invadiu a Alta Mesopotâmia e a Síria, talvez por volta do século XII a.C., ou mesmo antes. Conforme Dt 26,5 o próprio Jacó era um arameu. Os arameus nunca formaram uma unidade política, sendo a Síria sede de pelo menos cinco reinos arameus, segundo o AT. O reino de Damasco era pequeno, mas depois que Davi conquistou todos os outros, Damasco se impôs como principal, dominando todo o território sírio. Esteve frequentemente em conflito com Israel, sendo aniquilado pelos assírios um pouco antes de Israel do norte. A partir do domínio persa a língua aramaica tornou-se dominante em toda a região siro-palestina, sendo falada também pelos judeus pós-exílicos. Am 1,3-5 e Is 8,1-4;17,1-3, entre outros textos proféticos, referem-se a Damasco, ameaçando-a violentamente. Assíria A Assíria, em hebraico 'ashshûr, situava-se na Alta Mesopotâmia. Assur é também o nome de um deus nacional e de uma de suas capitais (outra famosa é Nínive). Os assírios são semitas do noroeste, mesclados, porém, com hurritas e acádios. Destes últimos os assírios herdaram a língua, a cultura e a religião. Embora sua história possa ser acompanhada desde o século XX a.C., somente a partir de 1100 a.C. os assírios conseguiram sua independência. A partir desta época eles construíram um poderoso império, fortemente militarizado, que dominou, em várias ocasiões, a Mesopotâmia, a Síria e a Palestina. O reino de Israel foi destruído pelos assírios em 722 a.C. e o reino de Judá viveu mais de um século sob sua dependência. A Assíria é citada pelos profetas Isaías, Oseias, Miqueias, Sofonias, Jeremias, Naum e Ezequiel. É vista como o grande inimigo, ameaça constante e instrumento de Iahweh para castigar Israel. Baal 107 Baal significa "senhor" e é o nome dado na região siro-palestina a várias divindades da natureza (no plural, baalim). Baal é também chamado de Hadad, "filho de Dagan", "Príncipe, Senhor da Terra", "Poderoso" etc. Baal é o deus da fertilidade e da guerra. Filho de El, segundo os mitos da região, Baal morre e renasce a cada ano, simbolizando a morte e o renascimento cíclico da vegetação, garantido assim as colheitas. Os camponeses cananeus e israelitas eram fortemente apegados ao culto de Baal e de outras divindades da fertilidade tais como Aserá e Astarté. Nas festas celebrava-se o mito do deus, com as devidas encenações. E aí representavam importante papel as práticas sexuais, associadas à fertilidade, função exercida pelas hieródulas ou "prostitutas sagradas". Os profetas combatem o baalismo sistematicamente. Especialmente sua instrumentalização por parte dos governantes, que usavam a devoção popular para controlar e explorar os camponeses israelitas. Babilônia O território babilônico ocupava a Baixa Mesopotâmia e sua história começa no III milênio a.C. Os babilônios são, no começo, os acádios depois de absorverem os sumérios. Sua capital era Babel (= Babilônia), nome que significa "porta de deus". Da época do predomínio amorita, semitas do oeste, temos o rei Hammurabi (1792-1750 a.C.), do qual sobreviveu o célebre Código de Hammurabi, coletânea de leis através da qual podemos conhecer a estrutura social da época. O reino neobabilônico (626-538 a.C.), controlado pelos caldeus, desenvolveu seu domínio sobre boa parte do Antigo Oriente Médio. Nabucodonosor, célebre rei, conquistou Jerusalém e a destruiu, exilando os judeus em 586 a.C. Em 538 a.C. Ciro conquistou a cidade de Babel, transformando Babilônia em província persa. Os profetas Jeremias, Ezequiel e Dêutero-Isaías (Is 40-55) viveram na época do confronto de Judá com a Babilônia e consequente exílio. Babilônia é repetidamente mencionada por eles. Betel Betel, em hebraico bêt-'el = "casa de Deus", é o nome de antigo e célebre santuário cananeu, depois israelita. Situado no território de Efraim, segundo Js 16,2, ou Benjamim, segundo Js 18,22, Betel ficava à beira da estrada que ia de Jerusalém a Siquém, cerca de 20 km ao norte da capital judaíta. A cidade de Betel chamava-se Luza, mas os israelitas, ao se apropriarem da região, passaram a chamá-la com o nome do santuário. Betel e seu santuário estão ligados às tradições sobre Abraão (Gn 12,8;13,3-4) e, especialmente, Jacó (Gn 28,1022). 108 Após a fundação do reino de Israel, em 931 a.C., Betel foi transformado em santuário nacional pelo rei Jeroboão I, que aí instalou a imagem de um touro, pedestal para Iahweh, diz o deuteronomista (1Rs 12,26-33). O profeta Amós pregou em Betel, de onde foi expulso por ordem real, na época de Jeroboão II (782/1-753 a.C.). Corveia Com o termo corveia, de origem francesa, tomado de empréstimo ao mundo feudal europeu, designa-se o trabalho forçado grátis para o Estado, normalmente utilizado em todo o Antigo Oriente Médio. Em hebraico usam-se os termos siblâh, sebhel ou mas (= trabalho forçado). A corveia distingue-se da escravidão: além de ser feita para um soberano ou Estado e não para particulares, a corveia é um serviço temporário, normalmente executado por pessoas livres no período da entressafra ou segundo a necessidade. O que não exclui do regime de corveia os prisioneiros de guerra e os povos dominados pelo país em questão. A "escravidão" dos hebreus no Egito é um típica corveia (Ex 1). Ao se libertar do poder opressor do faraó, Israel não deveria nunca mais se submeter à corveia. Mas, desde Salomão, segundo o deuteronomista, o trabalho compulsório foi organizado em Israel para a construção de obras públicas (1Rs 5,27;11,28). A instalação do regime de corvéia foi uma das causas da separação do reino do norte após a morte de Salomão, sempre segundo o deuteronomista. Mas os reis seguintes continuaram a usá-la. O profeta Jeremias criticou duramente o rei Joaquim por fazer "o seu próximo trabalhar de graça" (Jr 22,13). Dt 24,14-15 exige o pagamento diário do salário do pobre, "seja ele um dos teus irmãos ou um estrangeiro que mora em tua terra, em tua cidade". Culto Culto, em hebraico 'abhodhâh (= serviço), é a forma tradicional segundo a qual o crente procura relacionar-se com a divindade através de rituais, em geral, pré-fixados. O culto normalmente é uma expressão comunitária e possui seus agentes especializados, os sacerdotes; além de tender a se estabelecer em locais específicos dedicados à divindade, os templos. O culto israelita é uma celebração dos acontecimentos mais importantes ocorridos na vida do povo, vistos, sob a ótica da fé, como as obras de Iahweh em benefício de Israel. Segundo o conceito da aliança Deus-povo, o culto só tem sentido quando é, de fato, a celebração daquilo que é vivido no cotidiano e ordenado pela ética javista. É difícil descrever o culto em Israel, porque houve uma evolução gradual de suas formas, enquanto que o AT descreve apenas a situação já mais avançada do pós-exílio. 109 É preciso chamar a atenção para as três grandes festas anuais ou peregrinações (hag), que segundo a legislação sacerdotal (Lv 23) são: a festa da Páscoa, a ser celebrada no dia 14 de Nisan (março/abril); e a festa dos Ázimos, a partir de 15 de Nisan, com uma semana de duração a festa das Semanas, celebrada 50 dias após a festa dos Ázimos a festa dos Tabernáculos, que começava no dia 15 de Tishri (set./out.) com uma duração de sete dias, terminando com um dia solene de descanso. No pós-exílio são estabelecidas também as festas do Yom Kippur (Dia da Expiação), celebrada no dia 10 de Tishri; a festa da Hannuka ou Dedicação, celebrada a partir de 14 de dezembro de 164 a.C. para comemorar a purificação do Templo na época dos Macabeus; e a festa dos Purim (= sortes), celebrada nos dias 14 e 15 de Adar (fev./março). Há também o sábado, dia de repouso e oração; a lua nova, o ano novo etc. Os sacrifícios são de diversos tipos e incluem produtos do rebanho (animais) e do solo (vegetais). Lv 1-7 descreve o holocausto, o sacrifício de comunhão, os sacrifícios expiatórios, as oferendas vegetais, os pães da presença e as oferendas de perfumes. Embora os profetas não fossem contra o culto em si, a maioria deles criticou o uso mistificado que dele se fazia. Dizem os profetas (Am 5,21-27; Is 1,10-20; Mq 6,1-8; Jr 7,1-15) que de nada resolve a prática ritual dos sacrifícios quando não existe vivência real da ética javista. O culto, por si mesmo, não garante a relação do povo com Iahweh, mas sim a observância das normas da aliança. No lugar do culto os profetas exigem a prática do direito, da justiça, da solidariedade. Além do que, as grandes festas e o fausto e brilho do culto eram utilizados como eficazes narcóticos pelos governantes para desviar a atenção do povo da trágica situação em que o despotismo e a corrupção tinham jogado o país. Os profetas consideram criminosa tal atitude cultual. Praticavam-se em Israel também os cultos da fertilidade, em "lugares altos", aos deuses da natureza, tais como Baal e Astarté. Quando era forte a influência estrangeira, costumava difundir-se o culto aos astros, rituais típicos da Assíria, Babilônia e Egito. Deuteronômio O Deuteronômio (do grego deuteronómion, "segunda lei") é uma obra composta em várias fases. Esta é uma das reconstruções possíveis de sua trajetória: 1. O código original (Dt 12-26) foi escrito no norte de Israel, na primeira metade do século VIII a.C., nos círculos fiéis ao javismo, provavelmente os levitas (os profetas estavam também ligados ao projeto javista). Ou talvez o código tenha sido elaborado em Judá, na época de Ezequias, pelos levitas fugidos do norte com a queda de Samaria em 722 a.C. 2. Após chegar a Jerusalém, o Dt sofreu uma primeira revisão, na época de Ezequias. A parte jurídica foi revestida de uma roupagem parenética e exortativa e acrescentou-se-lhe uma moldura narrativa (Dt 4,44-9,6;10,12-11,32;27,9-10;28,1- 110 68). Com o fracasso da política reformista de Ezequias, o livro foi guardado no Templo e "esquecido". 3. "Encontrado" sob Josias, em 622 a.C., o Dt foi elevado à categoria de lei oficial do Estado. Sofreu nova revisão, reforçando o seu estilo parenético e inserindo o tom belicista, típico dos levitas que pregavam uma guerra santa para reconstituir o exército desfalcado com a derrota de 701 a.C. 4. Na época do exílio, o livro é novamente reformulado pelos redatores deuteronomistas, que lhe acrescentam Dt 1,1-4,43; 9,7-10,11; 28,69; 29,1-30,20. É então que o livro passa a ser considerado como um discurso de despedida de Moisés. 5. No pós-exílio o livro ainda sofreu acréscimos, tais como Dt 27,1-8; 31,1-13;32,1-43 etc A ideia mestra que rege o Dt é a de eleição (bahar), exigindo a comunhão de Israel com Iahweh como centro da vida nacional. Direito Mishpât, normalmente traduzido por "direito", vem da raiz shâpat, que significa "governar" e "julgar". Mishpât designa o "julgamento", tanto no sentido de "veredicto" quanto no sentido de "processo". Mishpât é o conjunto do direito. Mishpât ultrapassou este uso jurídico, sendo utilizado no sentido religioso e ético. Iahweh é visto como legislador e como parte legal, comprometido pela aliança com o seu povo. Iahweh está atento às relações sociais de seu povo e também o guia na guerra contra outros povos. Como chefe do povo, Iahweh é também o seu juiz. Daí que mishpât não pode ser compreendido segundo a categoria romana de lei. O termo indica relação. Ele regula as relações de uma sociedade, sendo uma reta ordem que se deve procurar, porque existe uma aliança Iahweh-Israel com determinações concretas. Os profetas conclamam Israel a procurar o direito. E acusam as autoridades de desviar o povo e destruir tanto o direito como a justiça (tsedhâqâh), termo que vem muitas vezes ligado a mishpât. Parece que nos profetas o uso de mishpât é mais frequente para se referir à prática da justiça nos tribunais. Edom Edom é o país ocupado por um povo semita do deserto siro-arábico aí pelo século XIII a.C. O país está localizado na Transjordânia, ao sul do mar Morto, em um planalto de 1600 metros de altitude, 110 km de comprimento e 25 km de largura. Seu limite ao norte é o rio Zared, ao sul o golfo de Áqaba. Sua capital foi Sela ou Bosra. Segundo a tradição bíblica, os edomitas eram irmãos dos israelitas, pois Esaú, irmão de Jacó, é identificado com Edom (Gn 36). A língua edomita era, sem dúvida, semelhante ao hebraico e ao moabita. 111 Edom esteve frequentemente em conflito com Israel, que ambicionava as suas rotas para chegar ao mar e às ricas minas da região. Nas épocas grega e romana os edomitas são conhecidos como idumeus e Herodes Magno, um idumeu, governará Israel durante 34 anos. Os profetas fazem violentas ameaças a Edom, como Am 1,11-12; Jr 49,7-22; Ez 25,12-14 e outros. Egito Egito vem do grego Aigyptos, da forma egípcia ht-k3-pth (= casa de Ptah), um dos nomes da cidade de Mênfis. Os egípcios chamavam o seu país de km.t (leia-se khemi), que significa "terra negra", por causa da cor do solo fertilizado pelo Nilo. A Bíblia o chama de mitsrayim a maior parte das vezes. Berço de uma grande civilização, uma das mais importantes da antiguidade, sua ligação com Israel é evidente. Desde a sujeição dos hebreus ao trabalho forçado até a influência administrativa e cultural durante a monarquia e as várias alianças e conflitos ao longo da história. Cumpre lembrar que a região de Canaã, antes da formação de Israel, era tradicionalmente dependente do Egito. O Egito vivia do Nilo. Seu vale fértil tem uma largura de 5 a 25 km, sendo que as águas do rio sobem de 5 a 7 metros na época das cheias. O Nilo percorre uns 2500 km de território egípcio. A história do Egito é tradicionalmente dividida em dinastias, sendo que a primeira dinastia situa-se no século XXX a.C., quando o primeiro faraó, um certo Narmer, unificou o Alto e o Baixo Egito. Sua primeira capital foi Mênfis. Estrangeiro Há três categorias de estrangeiros no AT: o zâr é o estranho, o estrangeiro, o de outra família ou povo e, com frequência, o inimigo o nokhrî é o estrangeiro em trânsito, residente temporário em Israel o ger é o estrangeiro residente, é aquele que se estabeleceu no país definitivamente. São antigos habitantes não assimilados, imigrantes ou refugiados. Podem participar da comunidade religiosa desde que cumpram os preceitos da lei israelita. O Código da Aliança, em Ex 22,20;23,9, estabelece que o ger não deve ser oprimido, até mesmo porque Israel foi ger no Egito, fato que não deve ser esquecido. O Código Deuteronômico (Dt 14,28-29;24,14-22) reforça a proteção ao estrangeiro residente, categoria que aumentou muito com a chegada dos refugiados do reino do norte após 722 a.C. 112 O estrangeiro (ger) necessita de proteção porque não possui todos os direitos civis. Especialmente na questão da propriedade da terra, que é sempre israelita. Daí que ele se vê obrigado a alugar a sua força de trabalho. Está na mesma situação do órfão e da viúva. Profetas como Jr 7,6;22,3; Ez 22,7.29; Zc 7,10; Ml 3,5 defendem o direito do estrangeiro, sempre colocado ao lado do órfão e da viúva. Exílio Com o termo "exílio", em hebraico gôlâh (= deportação, desterro, dispersão), em grego diasporá, indica-se o costume inaugurado pelos assírios de transferir a população vencida de seu território para outro, estrangeiro, como meio de impedir a sua reorganização após a retirada dos exércitos vencedores. Em 722 a.C. os assírios exilaram os israelitas do norte. Porém, o exílio mais famoso, o exílio típico, foi o de Judá, quando, em 597 a.C. e em 586 a.C., Nabucodonosor deportou cerca de 20 mil judeus para a Babilônia. Neste exílio babilônico, que durou 48 anos, os judeus em parte se adaptaram à nova realidade e nunca mais voltaram; em parte mantiveram sua identidade e sua fé javista, retornando ao país na época persa e reconstruindo Jerusalém. Lá no exílio babilônico apareceram dois importantes profetas, que ajudaram o povo a superar a crise da derrota e a se reorganizar para voltar à terra. Ezequiel, um deportado de 597 a.C.; e o Dêutero-Isaías (Is 40-55), de quem nada sabemos, a não ser que é um grande profeta. Falsos profetas Ao longo do AT aparecem muitos profetas que chamamos de "falsos", em oposição à minoria de profetas reconhecidos como "autênticos" ou "verdadeiros". Porém, as categorias de verdade/falsidade não aparecem nos textos bíblicos. Os profetas que chamamos de "falsos" estavam, em geral, ligados à corte ou ao Templo e defendiam o sistema explorador do Estado tributário. Estes profetas profetizam por dinheiro (Mq 3,11), são mentirosos (Jr 5,31;14,14), anunciam o que lhes convém (Mq 3,5), fortalecem as mãos dos perversos (Jr 23,14) etc. Assim são eles avaliados, especialmente por Jeremias, Miqueias e Ezequiel. O critério estabelecido por Dt 18,21-22 para se distinguir o verdadeiro do falso profeta (a realização da profecia) é insuficiente. O tempo e a história resolveram o problema, mas para os seus contemporâneos não era fácil decidir quem estava com a razão. Todos, verdadeiros e falsos, falavam em nome de Iahweh. A maior ou menor coerência histórico-social dos profetas é que acabou decidindo sobre o valor de sua profecia. 113 Filisteus Filisteus, em hebraico pelishtîm, são indo-europeus, parte dos "povos do mar" que, expulsos da região da Grécia pela invasão dórica no século XII a.C., tentaram invadir o Egito, mas foram vencidos pelo faraó Ramsés III. Os filisteus, originários de Caftor (Creta?), estabeleceram-se, então, numa faixa costeira no sul da Palestina, formando uma confederação de cinco cidades: Gaza, Ascalon, Azoto, Gat e Acaron. A planície filisteia tem de 7 a 15 km de largura, onde eram cultivados o trigo e a oliveira. Por ali passava a estrada que ia do Egito para a Síria. Portadores de armas de ferro e, talvez, premidos pela chegada de novos imigrantes, os filisteus quase conseguiram o domínio do território de Israel na época prémonárquica. Foram vencidos, segundo a Bíblia, por Davi. Na época grega foram rapidamente helenizados e, mais tarde, incorporados ao império romano. A Palestina deve a eles o seu nome. Os profetas falam várias vezes dos filisteus, em geral ameaçando-os, como Am 1,6-8 e Jr 47,1-7. Gêneros proféticos Gênero literário é a forma concreta de uma comunicação oral ou escrita que estabelece uma relação entre a realidade e a expressão dessa realidade. É de máxima importância, para a correta interpretação de um texto, que o leitor saiba em que forma literária ele lhe fala. Só assim se pode saber como ele lhe comunica a realidade. Na Bíblia, verdadeira biblioteca, são muitos os gêneros literários. É preciso descobri-los, descrevê-los, determinar a intenção de sua linguagem e seu contexto vital (em alemão, seu Sitz im Leben). Os profetas, homens da palavra, usam inúmeros gêneros literários para transmitir a sua mensagem. Como falam em nome de Iahweh, o gênero profético mais típico é o oráculo, palavra que indica um pronunciamento de Iahweh feito a Israel através da boca do profeta. Mas o oráculo profético pode ser de ameaça, quando anuncia uma desgraça aos seus ouvintes (Am 7,16-17); pode ser de salvação, quando prega uma saída para a crise vivida (Is 8,23b-9,6); pode ser de exortação, quando o profeta pede aos ouvintes para tomarem uma atitude (Is 1,10-20) etc. Os profetas usam também os gêneros literários da visão (Am 7,1-9), da vocação (Jr 1,4-19), da ação simbólica (Ez 4,1-17), além de inúmeros cânticos (de amor, de escárnio, fúnebre), hinos, processos etc. Jerusalém 114 Jerusalém, em hebraico yerûshâlaim, é nome derivado do cananeu urusalim (= cidade do deus Salém). Situada a 760 metros acima do nível do Mediterrâneo, a 52 km deste mar e a 22 km do Jordão, a cidade foi fundada por grupos cananeus por volta do ano 3000 a.C. Conquistada por Davi aos jebuseus no início de seu governo, transformou-se na capital de seu reino e, após a ruptura de 931 a.C., era a capital davídica de Judá. Foi destruída pelo babilônio Nabucodonosor em 586 a.C., reconstruída no pósexílio, destruída pelo general romano Tito em 70 d.C., reconstruída por Adriano e assim por diante. Cidade santa para judeus, cristãos e muçulmanos, Jerusalém é ainda hoje disputada por judeus e palestinos. A maioria dos profetas viveu e atuou em Jerusalém e, obviamente, dela eles falam constantemente. Citada às vezes como Sião, nome de uma de suas colinas, Jerusalém aparece nos profetas como a morada de Iahweh, a cidade eterna de Davi, esperança e glória do povo de Israel; mas também como a sede de um governo corrupto e despótico que explora os camponeses e engana o povo com faustosos sacrifícios e grandes festas no seu Templo. Justiça Tsedhâqâh ou tsedheq, normalmente traduzido por "justiça", vem de tsâdhaq que significa "ser justificado", "declarar justificado", "fazer justiça", "justificar". Tsedhâqâh/tsedheq designa a justiça que se exerce no tribunal, mas também a atitude interna de justiça que torna possível o exercício do mishpât (direito). Igualmente relacionada com a aliança, a justiça é atitude característica de Iahweh na relação com o seu povo e, em contrapartida, atitude exigida de seu povo nas suas relações sociais. Os profetas clamam por justiça a todo momento, associando muitas vezes o conceito de tsedhâqâh/tsedheq ao de mishpât, como em Am 5,7.24;6,12; Is 5,7; Jr 22,3.15; Ez 18,5.19.21.27 etc. Levita A origem dos levitas é controvertida, do mesmo modo que a etimologia da palavra hebraica levî, que pode ser um nome próprio (Levi: Gn 29,34) como também um ofício (os levitas: Dt 17,9.18). De algum modo, os levitas tornaram-se sacerdotes em Israel. E, pelo menos a partir de determinado período, eram distintos dos sacerdotes de Jerusalém (Ez 44,1031). É possível que fossem sacerdotes dos santuários espalhados pelo reino do norte. Depois de 722 a.C. agruparam-se em Jerusalém e após a reforma de Josias passaram a exercer funções secundárias no Templo. 115 Aqui o que nos interessa é que foram os levitas os prováveis autores do Deuteronômio. E, ao que tudo indica, eles estavam extremamente próximos dos profetas, pois seus projetos de sociedade são muito semelhantes. Ambos pregam a restauração dos valores javistas, reforçam a ideia de aliança e lutam contra a desintegração social reinante. Moab Moab está situado na Transjordânia entre os vales dos rios Zared e Arnon, porém levava frequentemente sua fronteira ao norte do Arnon. Seu território principal está situado em um planalto de 1200 metros de altitude. Os moabitas são semitas e parentes dos israelitas. Sua língua é muito parecida com o hebraico. A tradição bíblica supõe o parentesco dos moabitas com os israelitas, através do caso contado em Gn 19,30-38. Os moabitas ocuparam o território no século XIII a.C. Antes de Israel adotar a monarquia como forma de governo, Moab já o fizera. Seu deus principal era Kemosh, ao qual se ofereciam, às vezes, sacrifícios humanos (2Rs 3,27). Moab entrou em conflito com Israel várias vezes. Dominado por Davi, Moab libertou-se após 931 a.C. Por isso os profetas fazem duras ameaças aos moabitas, como em Am 2,1-3 e Jr 48,1-47. Pós-exílio Em 538 a.C. Ciro, o persa, concedeu a anistia aos judaítas exilados pela Babilônia. Durante os anos seguintes eles foram voltando para a terra, conseguindo, em 515 a.C., inaugurar o novo Templo, comandados por Zorobabel, e no século seguinte reconstruir Jerusalém na época de Esdras e Neemias. Reorganizados em Jerusalém e arredores, os judeus acabaram chefiados por um governo sacerdotal, por sua vez sempre submisso a uma potência estrangeira. Com o tempo alargaram as fronteiras do país. O domínio persa durou até 332 a.C. Depois vieram os gregos (332-63 a.C.) e em seguida os romanos (63 a.C.) Em 70 d.C. os judeus foram derrotados pelos romanos e Jerusalém destruída. Cerceados em sua autonomia política, os judeus desenvolveram as estruturas religiosas e sociais do judaísmo, cujos pilares eram o Templo (sacrifício) e a Sinagoga (Lei). É uma época de grande produção literária e de muitos conflitos externos e internos. Os profetas pós-exílicos ajudaram na reconstrução do país (Ageu, Zacarias 1-8), criticaram as novas estruturas de opressão que então se criavam (Trito-Isaías) e 116 desenvolveram expectativas apocalípticas (os apocalipses de Isaías, Zacarias 9-14, Malaquias, Joel). Sacerdote O sacerdócio em Israel era hereditário, passava de pai para filho e se mantinha, portanto, no âmbito de determinadas famílias. Com o estabelecimento da monarquia e, especialmente, com a construção do Templo de Jerusalém por Salomão, o Estado passa a controlar cada vez mais a classe sacerdotal. Os santuários tornaram-se propriedade do Estado e, portanto, os sacerdotes participavam muito de perto das decisões políticas que o governo tomava. Como os sacerdotes se calam diante das inúmeras injustiças cometidas contra os camponeses israelitas, os profetas atacam-nos violentamente. Por exemplo: Oseias acusa os sacerdotes porque rejeitam os valores do javismo (Os 4,4-10) e se transformam em assassinos (Os 6,9); Jeremias denuncia sua colaboração com a injustiça (Jr 8,8-12) e Miqueias aponta a sua ganância (Mq 3,9-12). Samaria Samaria, em hebraico shômerôn, talvez "a guardiã", foi a cidade fundada pelo rei Omri no século IX a.C. para ser a capital do reino de Israel. Tomada pelos assírios em 722 a.C., Samaria foi repovoada por colonos estrangeiros, o que levou, mais tarde, à exclusão dos samaritanos da comunidade judaica por não serem mais de sangue puro israelita. Foi capital da região sob o domínio persa, helenizada após a conquista grega e fortificada e restaurada por Herodes Magno, que mudou o seu nome para Sebaste. Alguns profetas viveram ou passaram por Samaria, como Oseias e Amós. Vale a pena destacar os oráculos de Amós contra o luxo e a opressão que reinavam em Samaria (Am 3,9-12;4,1-3) e os oráculos de Oseias contra o golpismo e a idolatria que ali se praticavam (Os 8,4-7). Solidariedade Solidariedade, em hebraico hesedh, é uma relação que se cria entre duas partes que estabelecem um acordo mútuo, uma aliança (berîth). É por isso que hesedh pode ser entendida como amor, benevolência, solidariedade. Pode ser uma relação que acontece entre parentes, amigos, hospedeiros e hóspedes ou entre dois grupos tribais diferentes que fazem um pacto. 117 Hesedh é também a relação que se estabelece entre Iahweh e Israel a partir da aliança. É a fidelidade do homem ao pacto, mas é também a benevolência de Deus em favor de seu povo. Hesedh aparece nos profetas, às vezes ao lado de mishpât (direito) e de tsedhâqâh (justiça), para expressar a vivência do javismo dentro do ideal da aliança. Como em Os 2,21;10,12;12,7 ou Jr 9,23;31,3. Tributo Em Israel pagava-se um tributo ao santuário. Este tributo é constituído pelo dízimo (Lv 27,30-33; Dt 14,22-29), que tem várias finalidades, pelas primícias (Dt 26,111) etc. Pagava-se tributo também à corte para a manutenção das estruturas do Estado, tais como funcionários, exército, obras públicas etc. 1Sm 8,11-18 descreve a prática tributária da monarquia israelita. Quando dominado por potências estrangeiras, Israel pagava-lhes igualmente um tributo (Esd 4,20; 1Mc 10,29), que variava na forma e na quantidade ao longo do tempo. O Estado tributário foi alvo dos ataques proféticos que viam o desmando, a corrupção e a violência serem praticadas pela corte e seus associados. Os camponeses israelitas eram os maiores prejudicados pelo sistema tributário. 118 BIBLIOGRAFIA ASURMENDI, J. M. Isaías 1-39. São Paulo: Paulus, 1980. BARTRA, R. (ed.) El modo de producción asiático. 3. ed. Mexico: Era, 1975. BENEDETTI, L. R. Templo, Praça, Coração: A articulação do campo religioso católico. 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