O afastamento do general Mc Chrystal
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O afastamento do general Mc Chrystal
2010/07/01 O AFASTAMENTO DO GENERAL M C CHRYSTAL Alexandre Reis Rodrigues Costuma dizer-se que não há ninguém insubstituível. Mc Chrystal era o mais qualificado para o cargo de comandante da ISAF e do contingente americano no Afeganistão, mas nem mesmo isso o salvou do afastamento do cargo para que o Presidente Obama o tinha escolhido. Imaginava-se que poderia não se sentir satisfeito com a forma como a sua missão tinha sido definida e principalmente com o calendário estabelecido e os recursos, militares e civis, que lhe foram atribuídos.[1] Presumia-se, no entanto, que Mc Chrystal, como militar de eleição, nunca trairia a confiança que recebera do seu comandante-chefe. Na verdade, calcula-se que não terá pensado em desafiar a autoridade do Presidente, como fez, por exemplo, Douglas Mac Arthur, num acto que Truman considerou de insubordinação, demitindo-o de imediato. O erro de Mc Chrystal foi mais simples do que isso mas nem por isso menos grave: não soube disciplinar o seu inconformismo perante as diferenças de opinião, no círculo próximo do Presidente, sobre o rumo a dar à campanha, partilhando, de forma inaceitável, a sua frustração com subordinados e um jornalista, que acabou por tornar tudo público; um erro crasso e indesculpável. Ao Presidente não restou outra solução senão demiti-lo. Pena foi que não tivesse sabido actuar a tempo, quando se tornou visível que a sua equipa principal no terreno (o enviado especial Holbrook, o embaixador em Cabul Einkenberry, e Mc Chrystal) não conseguia trabalhar em conjunto nem muito menos com o Presidente Karzai. Para o embaixador Einkenberry, Karzai não era um «adequate strategic partner». Mc Chrystal era o único a conseguir manter um diálogo com Karzai; compreendese, por isso, que este tenha tentado evitar a demissão. O afastamento de Mc Chrystal comportava o risco de constituir um revés para a credibilidade da vontade dos EUA em prosseguirem a estratégia adoptada para a estabilização do país e poderia alimentar a percepção que a retirada americana do Afeganistão teria ficado mais próxima. Foi precisamente isto que um cartoonista do International Herald Tribune transmitiu ao retratar a saída do general de Cabul, ao embarcar no seu avião, enquanto um talibã, à distância, comentava: “The pullout has began”. Obama evitou essa leitura ao decidir substituí-lo pelo seu superior, o general Petraeus, comandante do CENTCOM e autor da estratégia americana de contra-insurreição que Mc Chrystal tinha adaptado para o teatro afegão e o Presidente aprovou no final de 2009[2]; em qualquer caso, uma decisão insólita à luz do que é normal em termos militares. Presume-se que Petraeus vai continuar a acumular os dois cargos, o que é o segundo aspecto invulgar da situação. Neste caso, por razões óbvias, não poderia ser de outra maneira, mas a junção da responsabilidade directa pelo situação militar no Afeganistão com as responsabilidades mais gerais por toda a área do CENTCOM na mesma pessoa terá certamente uma leitura especialmente importante para o Irão. Indica que os EUA não prevêem a eventualidade de, pelo menos nos tempos mais próximos, terem de recorrer a uma solução militar para resolver o conflito existente com Teerão, tarefa que caberia ao CENTCOM. Os rumores que, entretanto, foram postos a circular de preparativos militares para atacar o Irão, incluindo a possível utilização de aeroportos no Geórgia e Azerbaijão, uma ideia que vem, pelo menos desde 2008, talvez tenham em vista não deixar instalar a percepção acima referida, o que obviamente faria os EUA perderem força negocial. Obama parece ter querido tornar claro que, ao contrário do que sucedera com o antecessor de Mc Chrystal, o general David Mc Kiernam, a mudança de comandante não corresponde desta vez a uma mudança de orientação. Petraeus, como um dos militares mais prestigiados das Forças Armadas americanas é, de facto, a figura incontornável para que todos se viram agora como o que tem as melhores condições para levar a missão por diante. Petraeus tem o crédito da aplicação bem-sucedida da “sua” estratégia de contra-insurreição no Iraque, três anos atrás, mas terá pela frente uma situação bem diferente, nomeadamente quanto à possibilidade de “jogar” com rivalidades étnicas, que foi onde Petraeus, no Iraque, foi buscar o essencial do sucesso alcançado. Poderá não introduzir alterações de fundo no caminho traçado por Mc Chrystal mas trará certamente algumas mudanças, quanto mais não seja para relançar o processo onde o seu antecessor acabou por não conseguir os objectivos estabelecidos[3]. Não se estranha, portanto, que a sua entrada em cena, em qualquer caso, relance o debate político, que aliás nunca parou, entre os que apoiaram a decisão do “surge” que o Presidente acabou por escolher e os que, simbolicamente representados pelo Vice-Presidente Joe Biden, recomendavam, em alternativa, reduzir a presença militar e o envolvimento militar directo; isto é substituir a protecção da população pela perseguição dos talibãs e ataques aos santuários da al Qaeda no Paquistão. O agravamento da situação, que aliás deve continuar nos tempos mais próximos, conforme aliás Petraeus admitiu na audição de anteontem no Congresso, pode dar novos argumentos aos que não acreditando nas possibilidades de sucesso recomendam reduzir de novo o nível de ambição, mas é prematuro “ler” a situação actual em termos de falhanço ou êxito. Não se passou mais do que um terço do tempo (seis meses) que o Presidente tinha dado a Mc Chrystal e, neste momento, nem sequer o “surge” aprovado foi integralmente concretizado; falta em tempo, pelo menos, outro tanto para chegar à altura de revisão da estratégia (Dezembro de 2010) e um período semelhante para então ser decidido o que, na prática, significa a expressão “finish the job” que o Presidente utilizou quando, no final de 2009 em West Point, anunciou a nova estratégia e disse expressamente que «after 18 months our troops will begin to come home». Obama considerou a intervenção no Afeganistão, ao contrário da do Iraque, como uma guerra de necessidade mas, mal grado ter-lhe atribuído mais recursos e efectivos militares, nunca evitou deixar transparecer que a pretende terminar tão cedo quanto as circunstâncias no terreno se assemelharem aos objectivos que estabeleceu: inverter a tendência de crescente controlo territorial pelos talibãs (ainda não alcançado), estender o funcionamento do Governo a todo o país (também não alcançado) e melhorar as condições de intervenção das forças afegãs (em curso o aumento dos seus efectivos para cerca de 230000, mas sem qualquer perspectiva séria de que esses efectivos possam constituir um exército nacional). A ideia final de criar condições para a transferência global de responsabilidades para os afegães, nestas condições, parece algo irrealizável, particularmente num contexto político regional em que, como lembrava recentemente Kissinger[4], os vizinhos e principais países da zona ainda não se dispuseram a tentar encontrar em conjunto uma solução para a situação existente, não obstante o risco que correm se o Afeganistão voltar a ser um país atractivo para acolher organizações terroristas. Por mais animadores que sejam os sucessos militares que Petraeus possa vir a conseguir – embora ninguém espere resultados espectaculares – uma estabilização consistente e duradoira vai continuar sobretudo dependente de soluções políticas no contexto regional atrás referido e, talvez ainda mais difícil, de acordos políticos internos entre as várias facções de poder, principalmente a nível local. Fica, no entanto, a grande dúvida de se saber se os talibãs estarão dispostos a partilhar o poder e se vai resultar a aposta em Karzai que o Presidente Obama, depois de algumas reservas, está agora a tentar. Sabendo-se da histórica recusa absoluta dos afegães em se deixarem governar por uma potência estrangeira e os desastrosos desfechos de anteriores tentativas, os EUA estão perante a tarefa quase impossível de conciliar uma garantia a Karzai de que o Afeganistão não será abandonado, incluindo programas de ajuda económica, apoio político e assistência militar, com um processo cuidadoso e faseado de retirada que Petraeus deve ter em vista como objectivo principal. [1] Ver texto também publicado neste site, sob o título “O Presidente Obama e a retirada do Afeganistão”, 2 de Dezembro de 2009. [2] O comando americano responsável pelo Médio Oriente, Irão, Paquistão, Afeganistão e Ásia Central. [3] O distrito de Marja na província de Helmand estava destinado a funcionar como uma espécie de “testing ground” da sua estratégia mas, como o próprio Mc Chrystal reconheceu continua a ser uma “bleeding ulcera”. [4] “In Afghanistan, America needs a strategy, not an alibi”, International Herald Tribune, 26 Jun 2010. 56 TEXTOS RELACIONADOS : 2012/01/25 O IRÃO AMEAÇA ENCERRAR O Alexandre Reis Rodrigues ESTREITO DE ORMUZ! 2012/01/17 A NOVA ESTRATÉGIA DE DEFESA DOS EUA E A EUROPA Alexandre Reis Rodrigues 2011/12/07 AFRICOM, UM OLHAR MAIS ABRANGENTE SOBRE ÁFRICA Pedro Barge Cunha[1] 2011/07/22 DISSUASÃO SEM ARMAS NUCLEARES ? (II) Alexandre Reis Rodrigues 2011/07/07 A RETIRADA AMERICANA DO AFEGANISTÃO Alexandre Reis Rodrigues 2011/05/11 A MORTE DE BIN LADEN E O FUTURO DA AL QAEDA Alexandre Reis Rodrigues 2010/08/11 O QUE SERÁ VENCER NO AFEGANISTÃO? Alexandre Reis Rodrigues 2010/04/16 DISSUASÃO SEM ARMAS NUCLEARES ? 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