NOTA TÉCNICA Nº 01/2016 / CdH / DAJ / FDCE UFMG 1. Objeto da
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NOTA TÉCNICA Nº 01/2016 / CdH / DAJ / FDCE UFMG 1. Objeto da
U NIV ERS I D A DE F E DE R AL DE MI N AS GE RA IS Clínica de Direitos Humanos da UFMG – CdH/UFMG Divisão de Assistência Judiciária – DAJ NOTA TÉCNICA Nº 01/2016 / CdH / DAJ / FDCE UFMG Referente aos fundamentos normativos do instituto da consulta prévia e sua aplicabilidade ao povo indígena Krenak, face ao Termo de Transação de Ajustamento de Conduta relativo ao rompimento da barragem de Fundão. 1. Objeto da Nota Técnica A presente Nota Técnica esclarece as bases normativas do instituto da consulta prévia e informa a necessidade de sua aplicação no que concerne à comunidade indígena Krenak, quando da homologação do Termo de Transação de Ajustamento de Conduta firmado entre a União e os estados de Minas Gerais, Espírito Santo, e as sociedades empresárias Samarco, Vale e BHP, o qual versa sobre as ações a serem tomadas em relação a todos os atingidos pelo desastre do rompimento da Barragem de Fundão, no Município de Mariana/MG, do pretérito ano. 2. Fundamentos O direito à consulta prévia e ao consentimento prévio, livre e informado dos povos indígenas e tribais consiste no direito desses povos de serem ouvidos e de participarem, por meio de suas próprias instituições e de acordo com seus valores, usos, costumes e formas de organização,1 da tomada de decisões sobre empreendimentos e medidas de qualquer natureza que afetem ou que possam afetar seus territórios2 ou sua vida cultural. Como observou Sônia Guajajara em pronunciamento, à época coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), a violação do direito dos povos 1 Corte IDH. Povo Indígena Kichwa de Sarayaku vs. Equador. Mérito e Reparações. Sentença de 27 de junho de 2012. Série C. No. 245. §126. 2 OIT. Convenção 169, promulgada pelo Dec. 5.051/04. Artigo 6º 1. Na aplicação das disposições da presente Convenção, os governos deverão: a) consultar os povos interessados, por meio de procedimentos adequados e, em particular, de suas instituições representativas, sempre que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente. Av. João Pinheiro, nº 100 - Ed. Villas-Boas - 7º andar, BH/MG, CEP 30.130-180, Tel: (31) 3409-8667 – www.clinicadhufmg.com 1/6 U NIV ERS I D A DE F E DE R AL DE MI N AS GE RA IS Clínica de Direitos Humanos da UFMG – CdH/UFMG Divisão de Assistência Judiciária – DAJ indígenas à consulta prévia configura não apenas precedente de ilegalidades no tocante à observância de tratados internacionais, mas também coloca em risco a própria sobrevivência da população indígena.3 A jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) se estabeleceu no sentido de que a violação ao direito à consulta prévia consiste na violação ao próprio vínculo espiritual e cultural dos povos indígenas com seu território ancestral e seus recursos naturais. Assim, sua eventual inobservância pode configurar a violação de inúmeros artigos da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), da qual o Brasil faz parte:4 direito à propriedade (art. 21, CADH); direito à vida (art. 4, CADH); direito à personalidade jurídica (art. 3, CADH); direito à proteção judicial (art. 25, CADH) e às garantias judiciais (art. 8, CADH); e direito à participação na vida pública (art. 23, CADH). Quando da celebração do Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta entre Estado (União, Estados de Minas Gerais e do Espírito Santo) e empresas causadoras do rompimento da barragem de Fundão, o povo indígena Krenak não foi devidamente consultado. É necessário destacar que tal comunidade foi atingida pelo desastre no âmago de sua cultura e espiritualidade, uma vez que o Rio Doce, considerado sagrado, local de rituais espirituais e que dá nome ao Povo do Uatu, está completamente inutilizável – considerado, até mesmo, morto. O Termo, portanto, os concerne tanto quanto aos povos ribeirinhos da região5, de modo que foi violado o direito à consulta prévia. Como esclarecido pela Convenção 169 da OIT (art. 6º) e pela Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (art. 19), parâmetros de 3 INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Governo brasileiro é denunciado na ONU por violação de direitos indígenas. Março de 2014. Disponível em: <https://www.socioambiental.org/pt-br/noticiassocioambientais/governo-brasileiro-e-denunciado-na-onu-por-violacao-de-direitos-indigenas>. 4 BRASIL. Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. 5 Vide item III.23.3 da Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público Federal. Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/mg/sala-de-imprensa/docs/acp-samarco>. Acesso em: 23/06/16. Av. João Pinheiro, nº 100 - Ed. Villas-Boas - 7º andar, BH/MG, CEP 30.130-180, Tel: (31) 3409-8667 – www.clinicadhufmg.com 2/6 U NIV ERS I D A DE F E DE R AL DE MI N AS GE RA IS Clínica de Direitos Humanos da UFMG – CdH/UFMG Divisão de Assistência Judiciária – DAJ interpretação adotados pela Corte IDH (art. 29, CADH), o processo de consulta prévia deve ser realizado6: i) Sempre que o Estado pretender adotar medidas legislativas ou administrativas que possam afetar os povos indígenas; ii) Em todas as fases de planejamento e desenvolvimento do projeto que possa afetar seu território ou seus direitos essenciais de sobrevivência enquanto povo,7 de modo que o primeiro contato deve ser anterior a qualquer tomada de decisão por parte do Estado, bem como às demais etapas, visando a uma participação completa e efetiva; iii) Com o objetivo de construção conjunta entre os entes estatais e os indígenas quanto à escolha e à execução das medidas que os afetem. A informação transmitida deve ser, além de ser pertinente e imparcial, de fácil compreensão e linguagem, o que geralmente não ocorre com o uso da linguagem jurídica. Ademais, a informação deve possuir caráter modificativo e não meramente instrumental, devendo os indivíduos gozar de tempo hábil para construí-la conjuntamente com todos os afetados, deixando, assim, de serem meros receptores de informação, mas agentes da realidade que lhes influencia; iv) De boa-fé, de modo que se se garanta o cumprimento das medidas acordadas, além de se proibir qualquer tipo de coerção por parte do Estado, ou de agentes, ou terceiros. Alerta-se para o fato de que a consulta realizada de boa-fé é incompatível com práticas como as de desintegração da coesão social das comunidades afetadas; v) Com respeito aos métodos e instituições tradicionais de tomada de decisão,8 sob pena de nulidade. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em 4 de Março de 2003, no desenrolar do caso Yatama vs 6 Corte IDH. Caso do Povo Saramaka vs. Suriname. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 28 de novembro de 2007. Série C. §129. 7 Corte IDH. Povo Indígena Kichwa de Sarayaku vs. Equador, §167. 8 EP. 'The Equator Principles. June 2013' (2013) (EP, 'EPIII'). Disponível em: <http://www.equatorprinciples.com/resources/equator_principles_portuguese_2013.pdf>, acesso em 20 de março de 2016. Princípio 5; Convenção 169 da OIT, art 6; Corte IDH. Caso do Povo Saramaka vs. Suriname, §147. Av. João Pinheiro, nº 100 - Ed. Villas-Boas - 7º andar, BH/MG, CEP 30.130-180, Tel: (31) 3409-8667 – www.clinicadhufmg.com 3/6 U NIV ERS I D A DE F E DE R AL DE MI N AS GE RA IS Clínica de Direitos Humanos da UFMG – CdH/UFMG Divisão de Assistência Judiciária – DAJ Nicarágua (em que membros de comunidades indígenas foram impedidos de participar nas eleições municipais), aprovou relatório recomendando à Nicarágua a realizar consulta prévia aos povos indígenas interessados, levando em consideração e respeitando o seu direito consuetudinário, seus valores, seus usos e seus costumes para que assim fossem pensadas medidas que promovessem e efetivassem sua participação eleitoral;9 vi) Por meio de órgãos estatais, uma vez que a obrigação de consultar previamente é responsabilidade do Estado. Como já decidido pela Corte IDH, “[...] processo de consulta não é um dever que se possa evitar, delegando-o a uma empresa privada ou a terceiros, muito menos à mesma empresa interessada na extração dos recursos no território da comunidade objeto da consulta”10; vii) Por fim, com garantia do direito à autodeterminação, direito declarado aos povos indígenas pela ONU que os confere a possibilidade de “determinar livremente seu status político e perseguir livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural, incluindo sistemas próprios de educação, saúde, financiamento e resolução de conflitos, entre outros” . 11 No presente caso, o povo Krenak não foi devidamente consultado quanto à realização do referido acordo, o que poderá impossibilitar a reivindicação de seus direitos perante o Judiciário futuramente. Inclusive, a expressa menção de que o Acordo “visa colocar fim” à Ação Civil Pública ajuizada contra as responsáveis pelo desastre e a outras ações “em curso ou que venham a ser propostas por quaisquer agentes legitimados”12 é nula de pleno direito, uma vez que dispõe da justiciabilidade de direitos de indivíduos e 9 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Direitos dos Povos Indígenas: Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Ministério da justiça: Brasília. 2014. pag. 168. 10 Corte IDH. Povo Indígena Kichwa de Sarayaku vs. Equador, §187. 11 OEA. Autodeterminação dos povos indígenas. Outubro de 2014. Disponível em: <https://minionu15anosoea.wordpress.com/2014/10/03/autodeterminacao-dos-povos-indigenas/>. 12 Tal afirmativa encontra-se expressamente escrita no denominado “Acordão”. In verbis: “CONSIDERANDO que as partes, por meio de transação que será exaustiva em relação ao EVENTO e seus efeitos, pretendem colocar fim a esta ACP e a outras ações, com objeto contido ou conexo a esta ACP, em curso ou que venham a ser propostas por quaisquer agentes legitimados. Disponível em: < http://www.advocaciageral.mg.gov.br/images/stories/downloads/Acordo/acordo-final-consolidado.pdf> Acesso em: 12 de junho de 2016. Av. João Pinheiro, nº 100 - Ed. Villas-Boas - 7º andar, BH/MG, CEP 30.130-180, Tel: (31) 3409-8667 – www.clinicadhufmg.com 4/6 U NIV ERS I D A DE F E DE R AL DE MI N AS GE RA IS Clínica de Direitos Humanos da UFMG – CdH/UFMG Divisão de Assistência Judiciária – DAJ povos que sequer foram consultados. A participação dos Krenak foi ignorada durante todo o processo de tomada de decisão, em flagrante violação, por parte do Estado brasileiro, de suas obrigações internacionais, mormente aos artigos: 6 da Convenção 169 da OIT; 19 da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas; 3, 4, 8, 21, 23 e 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. 3. Apontamentos O Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta é medida suscetível de afetar direitos indígenas, razão pela qual a decisão final do Estado deve ser condicionada ao cumprimento do previsto na Convenção 169 da OIT e demais instrumentos citados na presente Nota Técnica. A previsão no Termo de uma consulta futura, restrita aos limites estipulados no documento, NÃO SUPRE a ausência desse procedimento no momento de sua elaboração. 5/6 Ressalta-se que a restrição da presente nota à temática da consulta prévia não elimina outras críticas a pontos problemáticos do referido Termo. Belo Horizonte, 27 de Junho de 2016. ___________________________ ___________________________ Camila Silva Nicácio Coordenadora CdH/UFMG Letícia Soares Peixoto Aleixo Orientadora CdH/UFMG ___________________________ ___________________________ Amanda Naves Drummond Extensionista CdH/UFMG Andressa Freitas Martins Extensionista CdH/UFMG Av. João Pinheiro, nº 100 - Ed. Villas-Boas - 7º andar, BH/MG, CEP 30.130-180, Tel: (31) 3409-8667 – www.clinicadhufmg.com U NIV ERS I D A DE F E DE R AL DE MI N AS GE RA IS Clínica de Direitos Humanos da UFMG – CdH/UFMG Divisão de Assistência Judiciária – DAJ ___________________________ ___________________________ Carolina Soares Nunes Pereira Extensionista CdH/UFMG Gabriel Oliveira Vilela Extensionista CdH/UFMG ___________________________ ___________________________ Leonardo de Oliveira Thebit Extensionista CdH/UFMG Lorena Parreiras Amaral Extensionista CdH/UFMG ___________________________ Lorenzo Marcus Silva Campos Extensionista CdH/UFMG ___________________________ Paula Gomes de Magalhães Extensionista CdH/UFMG ___________________________ Sophia Pires Bastos Extensionista CdH/UFMG Av. João Pinheiro, nº 100 - Ed. Villas-Boas - 7º andar, BH/MG, CEP 30.130-180, Tel: (31) 3409-8667 – www.clinicadhufmg.com 6/6