indagare nº1 agosto 2016

Transcrição

indagare nº1 agosto 2016
Agosto 2016
Nº 1
Ficha técnica
Direcção INDAGARE:
Miguel Pereira
Joana Freitas Peixoto
Ana DaCosta
Joana Oliveira
Patrícia Vieira
Sara Vaz Cunha
Comissão Científica:
Professor Doutor Luís Manuel Couto Gonçalves
Professor Doutor Américo Fernando de Gravato Morais
Professora Doutora Alessandra Aparecida Souza da Silveira
Professor Doutor Joaquim Manuel Freitas da Rocha
Professor Doutor Fernando Eduardo Baptista Conde Monteiro
Professora Doutora Isabel Celeste Monteiro Fonseca
Professora Doutora Cristina Manuela Araújo Dias
Professora Doutora Patrícia Penélope Mendes Jerónimo Vink
Professora Doutora Joana Maria Madeira Aguiar e Silva
Professora Doutora Maria Elizabeth Moreira Fernandez
Professor Doutor Francisco António Carneiro Pacheco de Andrade
Professora Doutora Anabela Susana de Sousa Gonçalves
Professora Doutora Maria Irene da Silva Ferreira Gomes
Professor Doutor Nuno Manuel Pinto Oliveira
Capa e produção gráfica:
Rita Reis
Formatação e edição:
Ana Cláudia Freitas
Miguel Pereira
Rita Reis
Sara Peixoto
1
Agosto 2016
Nº 1
Editora:
ELSA UMinho
Escola de Direito da Universidade do Minho, Campus de Gualtar, Sala 10
4710-057 Braga, Portugal
[email protected]
Tel: +351 253 601 867
A reprodução desta obra, em todo ou em parte, carece do consentimento da Direcção da
Revista INDAGARE e dos seus autores.
Braga, 15 de Agosto de 2016
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Nº 1
Índice
Nota Editorial ................................................................................................................................ 4
A dialéctica da escassez no “catálogo constitucional dos direitos sociais”: problemas
emergentes - insustentabilidade intergeracional do paradigma actual? ........................................ 6
Dez Anos do Mandado de Detenção Europeu ............................................................................ 25
Semi-presidencialismo: seguro contra todos os riscos ou via aberta para a ingovernabilidade?.45
Dos novos desafios à ética, à bioética e ao biodireito na (nova) era da (r)evolução
biotecnológica: vias e reflexões .................................................................................................. 62
Brevíssima análise do fenómeno da ciberpedofilia e ciberpornografia infantil .......................... 88
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Nota editorial1
Este projecto que hoje apresentamos com muita satisfação, pretende dar resposta
a uma necessidade que, como alunos, há muito auscultamos: uma plataforma de
exposição do pensamento jurídico pelos que ainda dão os primeiros passos na sua
aprendizagem.
De facto, enquanto proliferam as publicações jurídicas, poucas são as que se
encontram acessíveis a alunos, mormente a alunos de licenciatura. Quando começamos a
gizar as bases da INDAGARE surgiu a dúvida quanto ao grau académico mínimo a exigir
e, nessa altura, chegou-nos o conselho de que não deveríamos exigir o grau de Mestre, ou
sequer de Licenciado. Efectivamente, fizeram-nos ver que, mesmo na Licenciatura,
encontramos dedicação, criatividade e amor à Ciência Jurídica, em igual medida à dos
demais Ciclos e Graus Académicos. E por isso hoje, com enorme prazer vemos dois textos
de alunos de licenciatura publicados neste nosso primeiro número.
Neste número, contamos com artigos que perpassam as mais diversas disciplinas
do Direito. No primeiro artigo, intitulado «A dialéctica da escassez no “catálogo
constitucional dos direitos sociais”: problemas emergentes - insustentabilidade
intergeracional do paradigma actual?», a autora faz uma análise do catálogo
constitucional de direitos sociais e figuras conexas, entrecruzando-a com uma breve
passagem pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 187/2013; ainda no âmbito
Constitucional, encontramos o artigo «Semi-presidencialismo: seguro contra todos os
riscos ou via aberta para a ingovernabilidade?», onde o estudo recai sobre o modelo
constitucional de governo da República Portuguesa e as suas debilidades. De seguida, o
artigo «Dez Anos do Mandado de Detenção Europeu» faz um reconto dos resultados da
aplicação da Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002 relativa
ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados-Membros,
partindo de uma análise das soluções jurisprudenciais do TJUE. Já o artigo «Brevíssima
análise do fenómeno da ciberpedofilia e ciberpornografia infantil» traduz um estudo da
regulação a que, actualmente, as tecnologias da informação estão sujeitas, socorrendo-se
do confronto com dois particulares casos de regulamentação excessiva. Finalmente,
entrando na área da recente disciplina do bio-direito, o artigo «Dos novos desafios à ética,
à bioética e ao biodireito na (nova) era da (r)evolução biotecnológica: vias e reflexões»,
1
Texto escrito segundo o antigo Acordo Ortográfico
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analisa o impacto dos novos desenvolvimentos bio-tecnológicos em dimensões como o
direito, a ética e a moral.
Reservo agora um pequeno espaço de agradecimento às várias entidades que
tornaram este projecto uma possibilidade e que, ao longo do seu desenvolvimento, nos
foram acompanhando e orientando.
Antes de mais, e naturalmente, o contributo incontornável dos autores que
connosco publicaram, sem cuja iniciativa e fulgor científico nada mais teríamos que uma
folha em branco, sendo que, sem dúvida, o maior contributo que nos trazem é o conforto
de saber que entre nós o Direito também é feito por jovens estudantes.
À Comissão Científica da INDAGARE, o mais profundo agradecimento pelo
rigor científico de que dotaram esta revista, pela orientação que da V. parte sempre nos
foi chegando e pela paciência e disponibilidade que sempre nos foi demonstrada.
À Escola de Direito da Universidade do Minho pelo apoio que neste projecto,
como em todos a que a ELSA UMinho se propõe, nos prestou.
Finalmente, e agora numa nota mais pessoal, às Direcções da ELSA UMinho para
os mandatos de 2014/2015, 2015/2016 e 2016/2017. À primeira porque é aí que
encontramos o gérmen e a constituição da INDAGARE, à segunda pelo trabalho de
elaboração e preparação e, à última e recém-eleita Direcção, pela assistência neste
lançamento, sem a qual este não seria possível. A todas, um muito obrigado pela amizade
e apoio que, da vossa parte, nunca me faltou.
Sem mais delongas, para vós, ei-la, a INDAGARE.
Miguel António da Silva Pereira
Presidente da Direcção da Revista INDAGARE
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Nº 1
A DIALÉCTICA DA ESCASSEZ NO “CATÁLOGO
CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS SOCIAIS”:
PROBLEMAS EMERGENTES –
INSUSTENTABILIDADE INTERGERACIONAL DO
PARADIGMA ACTUAL?
Inês ARAÚJO E GAMA2
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Mestranda em Ciências Jurídico-Forenses
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
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Nº 1
RESUMO
A escassez de recursos perpassa todas as dimensões da actividade humana, e a sua
íntima relação com os direitos sociais tem vindo a adquirir uma importância redobrada
no contexto económico-social actual, em que surgem, dia após dia, cada vez mais
problemas na mira da sustentabilidade e da justiça intergeracional – em todas as suas
vertentes.
Propomo-nos fazer um excurso pela escassez no “catálogo constitucional dos
direitos sociais”, depurando aquele conceito (pluridimensional) por referência aos seus
vários significados, dependentes das temáticas em que se encontra inserido. Debruçarnos-emos com particular cuidado sobre o diálogo daquele conceito com alguns direitos
sociais constantes do catálogo supramencionado, deitando posteriormente um “olhar de
soslaio” a certa figuras dogmáticas que se afiguram pertinentes nesta sede (da “reserva
do possível” ao direito a “um mínimo de existência condigna). Procuraremos elencar
alguns problemas emergentes em contexto de escassez através de uma análise
descomprometida ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 187/2013, vislumbrando a
problemática dos direitos adquiridos; para concluirmos, por fim, que esta escassez em
que se fundam os direitos sociais é a mesma que os coloca em perigo na actualidade, pela
vulnerabilidade que a conformação político-legislativa oferece, caindo por vezes na
tentação de negligenciar a justiça intergeracional em prol de uma sustentabilidade furtiva
que poderá, eventualmente, comprometer o futuro do paradigma que se vai traçando: um
paradigma de direitos sociais que tem, cada vez mais, de se orientar em função dos valores
simbióticos da sustentabilidade e da justiça intergeracional.
PALAVRAS-CHAVE
Acórdão do Tribunal Constitucional n.º187/2013, Constituição Social, Custos dos
Direitos, Direitos Adquiridos, Direitos Sociais, Escassez, Justiça Intergeracional, Mínimo
de Existência Condigna, Prestações Sociais, Reserva do Possível, Sustentabilidade.
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CONSIDERAÇÕES PRÉVIAS SOBRE O TEMA AGLUTINADOR
A escassez de recursos perpassa todas as dimensões da actividade humana, e a sua
íntima relação com os direitos sociais tem vindo a adquirir uma importância redobrada
no contexto económico-social actual, em que surgem, dia após dia, cada vez mais
problemas na mira da sustentabilidade e da justiça intergeracional – em todas as suas
vertentes.
UMAS
BREVÍSSIMAS
NOTAS
DE
PREPARAÇÃO
E
ALGUNS
APONTAMENTOS INTRODUTÓRIOS
Propomo-nos fazer um excurso pela escassez no “catálogo constitucional dos
direitos sociais”, depurando aquele conceito (pluridimensional) por referência aos seus
vários significados, dependentes das temáticas em que se encontra inserido. Debruçarnos-emos com particular cuidado sobre o diálogo daquele conceito com alguns direitos
sociais constantes do catálogo supramencionado, deitando posteriormente um “olhar de
soslaio” a certa figuras dogmáticas que se afiguram pertinentes nesta sede (da “reserva
do possível” ao direito a “um mínimo de existência condigna"). Procuraremos elencar
alguns problemas emergentes em contexto de escassez através de uma análise
descomprometida ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 187/2013, vislumbrando a
problemática dos direitos adquiridos; para concluirmos, por fim, que esta escassez em
que se fundam os direitos sociais é a mesma que os coloca em perigo na actualidade, pela
vulnerabilidade que a conformação político-legislativa oferece, caindo por vezes na
tentação de negligenciar a justiça intergeracional em prol de uma sustentabilidade furtiva
que poderá, eventualmente, comprometer o futuro do paradigma que se vai traçando: um
paradigma de direitos sociais que tem, cada vez mais, de se orientar em função dos valores
simbióticos da sustentabilidade e da justiça intergeracional.
A ABORDAGEM PLURIDIMENSIONAL DO CONCEITO DE ESCASSEZ
Propomo-nos abordar a escassez nas suas várias dimensões e entendimentos, de
forma genérica, quiçá superficial, que justificamos atendendo às constrições de espaço e
às limitações decorrentes da circunscrição material do tema ora explorado; mas nem por
isso deixamos de crer que, nos seus vários significados, é possível destrinçar uma tónica
de sentido comum nos seus múltiplos sentidos e acepções, transversal às inúmeras
mobilizações do termo e independente dos contextos que o convocam.
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A expressão “escassez” perspectiva-se, de modo consensual, como “qualidade do
que é escasso”3, importando, pois, saber que este último vocábulo se percebe como “não
suficiente; débil; diminuto; raro; falto; somítico”4, podendo assim englobar, v.g. escassez
de recursos, ambiental, energética, hídrica, biológica, geológica, entre outras, mas
também na saúde, escassez de órgãos, racionamento, et cetera.
Quando, porém, interpelamos a escassez do ponto de vista jurídico, tendemos a
delimitá-la usando como referência a faceta económica que sempre a reveste (“The notion
of scarcity plays a central role in economic theory. Indeed, some economists considered
it essencial for a proper definition of economics itself.”5), perfilando-se aí como
“qualidade do que existe em quantidade limitada”; nesta sede, é usual cindir o conceito
para melhor destrinçar as suas faces: assim, será absoluta ou relativa conforme for,
respectivamente, “qualidade das coisas não reprodutíveis” ou “qualidade das coisas
reprodutíveis, mas em que a quantidade é insuficiente para satisfazer as necessidades” 6.
E assim damos o primeiro passo rumo à escassez que nos apoquenta.
A senda que se pretende percorrer é a da escassez que perpassa os direitos sociais
constitucionalmente consagrados7, aquela que os fundamenta e põe à prova (uma prova
de fogo – quase!... – letal, muitas das vezes!), principalmente em tempos de crise.
As “normas sociais” são frequentemente configuradas como “normas
programáticas”, nas quais se encontram plasmados “princípios definidores dos fins do
Estado, de conteúdo eminentemente social” (cfr. art.º 9.º8: esta conformação jurídica
remete-nos, invariavelmente para a questão da realidade económica e consequente
escassez, “que não pode deixar de ser tomada a sério em sede de efectivação, por meio
Dicionário da Língua Portuguesa Porto Editora – com Acordo Ortográfico, in
http://www.infopedia.pt/lingua-portuguesa/escassez, em 27/04/2014.
4
Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, in http://www.priberam.pt/DLPO/escasso, em 27/04/2014.
5
The New Palgrave – A Dictionary of Economics, Edited by John Eatwell, Murray Milgate and Peter
Newman, The Macmillan Press Limited, 1987: dando como principal exemplo a definição de Walras de
bens económicos e discorrendo sobre o conceito – “ ‘By social wealth’, says Walras, ‘I mean all things,
material or immaterial (It does not matter which in this context), that are scarce, that is to say, on the one
hand, useful to us, on the other hand, only available to us in limited quantity’”.
6
MELO FRANCO/ANTUNES MARTINS, Conceitos e Princípios Jurídicos, Coimbra, Almedina, 1983,
p. 308; cfr. LOUREIRO, João Carlos, “A porta da memória: (pós?)-constitucionalismo, Estado (pós?)Social, (pós?)democracia e (pós?)capitalismo: contributos para uma “dogmática da escassez””, Estudos do
século XX, N. 13, IUC, Coimbra, 2013, em que se depuram outras “escasseze(s)”, pp. 12 e ss., e tipologias
de escassez, p. 14.
7
LOUREIRO, João Carlos, Adeus ao Estado Social?: a segurança social entre o crocodilo da economia e
a medusa da ideologia dos “direitos adquiridos”, Lisboa, Wolters Kluwer Portugal - Coimbra Editora,
2010, pp. 55 e ss.. O autor sublinha que os direitos sociais assistiram a um incremento significativo na
“sociedade de abundância” da Europa Ocidental dos “trinta anos gloriosos”; entre nós de forma mais
modesta, a partir dos anos sessenta, com alterações determinantes apenas na Constituição de 76.
8
GOMES CANOTILHO, J. J., Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, Almedina, 2003,
pp. 474 e ss..
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de políticas públicas, dos direitos fundamentais”9, “impondo-se escolhas que, no limite,
poderão ser trágicas”10.
Senão, vejamos, pragmaticamente: é difícil conceber uma realidade em que as
supracitadas políticas se revelem tangíveis sem recorrer a gastos públicos. Sabemos,
também, que os recursos públicos nem sempre são suficientes para prover à realização
dos direitos sociais dos cidadãos. Assim, “a escassez de recursos exige que o Estado faça
escolhas, o que pressupõe preferências e que, por sua vez, pressupõe preteridos”11.
Contudo, já se depreende, a escassez que mormente aqui releva é uma escassez de
recursos ou meios económico-financeiros - embora não se ignorem, nem deixem de
contemplar, outras manifestações.12
O “CATÁLOGO DE DIREITOS SOCIAIS” DA C.R.P. EM DIÁLOGO COM A
ESCASSEZ
Delimitado o âmbito da escassez que interessa, importa agora reconduzir o nosso
estudo ao busílis da questão social, fortemente modelada/influenciada pela tal
“insuficiência”.
O “catálogo de direitos sociais” compõe a chamada “constituição social”, que
designa o “conjunto de direitos e princípios de natureza constitucional formalmente
plasmados na Constituição”13, indissociáveis da “democracia social”14 enformadora do
9
LOUREIRO, João Carlos, Adeus ao Estado Social?... pp. 12 e ss., em que se afirma, excursando sobre a
história da ciência económica, do “paradigma do homo oeconomicus”, a “escola neoclássica e o seu
individuocentrismo”, à “helénica eudaimonia”, que “a teoria da desaxiologização do económico tem
assumido contornos, não raro, trágicos”.
10
LOUREIRO, João Carlos – “Sobre Cheschire e outros gatos”, in AVELÃS, José Nunes, CUNHA, Luís
Pedro, MARTINS, Maria Inês de Oliveira (Org.) – Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Aníbal de
Almeida, Coimbra, Coimbra Editora, 2012.
11
V. LIANG WANG, Daniel Wei - “Escassez de recursos, custos dos direitos e reserva do possível na
jurisprudência do STF”, in “Revista Direito GV”, 4 (2), São Paulo, Jul-Dez 2008, p. 540.
12
Pelo que impera atentar uma vez mais em J.C. Loureiro quando discorre sobre a evolução histórica da
noção: “recorde-se a formulação de Lionel Robbins (...). Considerada como traço das sociedades humanas,
a escassez assumiu um novo sentido na modernidade (v.g., Hobbes, Hume, Smith), num quadro marcado
por desejos e necessidades que não se podem limitar à mera sobrevivência. Na economia deste escrito, não
é possível, mas também não é absolutamente necessário, entrar, por exemplo, em diálogo com Rawls e a
ideia de “escassez moderada”. Resta-nos sublinhar que, numa leitura relacional da escassez, o aumento
exponencial do horizonte de possibilidades fácticas contrasta com a diminuição da capacidade do Estado
para obter os meios necessários para fazer face ao acréscimo de pretensões, enunciadas em termos de
direitos. Para a doutrina, a novidade residiria nas dimensões dos desafios da escassez e nos limites
absolutos em termos naturais.(...) A escassez é definida como uma “discrepância entre os bens desejados
e os bens disponíveis”, sendo um problema fundamental para o Estado social e para o Estado ambiental.”,
LOUREIRO, João Carlos, “A porta da memória...”, p.14, incluindo N.R. e indicações bibliográficas.
13
Para mais explicitações sobre este “amplo superconceito” do “direito social”, v. CANOTILHO, J.J.
Gomes, op. cit. Direito Constitucional..., pp. 347 e ss.
14
Sobre o princípio da democracia social, fortemente alicerçado no princípio da igualdade, cfr.
CANOTILHO, J.J. Gomes, ibid, pp. 348 e 349, em que o autor vai além da “dimensão subjectiva” do
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nosso Estado Social ("aquele em que, sem prejuízo do reconhecimento do papel essencial
da economia de mercado, assume como tarefa garantir condições materiais para uma
existência humana condigna, afirmando um conjunto de prestações, produzidas ou não
pelo Estado, com a marca da deverosidade jurídica, hoje especialmente, mas não
exclusivamente, na veste de direitos fundamentais, que respondem, a partir de
mecanismos de solidariedade, fraca ou forte, a necessidades que se conexionam com bens
básicos ou fundamentais (v.g., saúde, segurança social) cujo acesso não deve estar
dependente da capacidade de poder pagar, ou não, um preço"15). O capítulo dos direitos
e deveres sociais da Constituição da Républica Portuguesa (doravante designada C.R.P.)
em que nos concentramos (art.ºs 63.º a 72.º, inclusive) contempla direitos de natureza
positiva e negativa: ao encetá-lo, logo deparamos com um assaz significativo art.º 63.º,
de epígrafe “Segurança social e solidariedade”, tipicamente positivo, exigindo “o
fornecimento de prestações por parte do Estado, impondo-lhe verdadeiras obrigações de
fazer e de prestar (n.º 2)”16, que indubitavelmente remete para a função de prestação
social dos direitos fundamentais17.
Ora, os direitos a prestações a que nos referimos convocam, inelutavelmente, a
utilização de recursos materiais, sem os quais se revelaria impossível uma adequada
realização de direitos sociais como os direitos à habitação, saúde, assistência, educação,
cultura, et cetera. Do exposto se depreende, sem margem para dúvidas, estarmos perante
verdadeiros “pressupostos económico-financeiros do Estado Social”, em que a
efectivação dos direitos a prestações deve ser assegurada “pelos poderes públicos de
forma gratuita ou tendencialmente gratuita”18. Todavia, “os direitos sociais são caros”19,
e não apenas no que se refere a prestações sociais – os “pressupostos de direitos
princípio, com que não se basta, preconizando-o como “princípio objectivo” em várias disposições
constitucionais, redundando na “dignidade social” e na “igualdade real” dos cidadãos.
15
LOUREIRO, João Carlos, Adeus ao Estado Social?..., pp. 73 e ss., esmiuçando o(s) sentido(s) do
conceito.
16
GOMES CANOTILHO, J. J., Moreira, Vital, Constituição da República Portuguesa: Anotada (2007),
1.º Vol., 4.ª Ed. Rev., Coimbra, Coimbra Editora, p. 815
17
CANOTILHO, J.J. Gomes, Direito Constitucional..., pp. 408 e 409; para cfr.
18
As palavras pertencem a Gomes Canotilho, in “O direito constitucional como ciência de direcção – o
núcleo essencial de prestações sociais ou a localização incerta da socialidade (contributo para a reabilitação
da força normativa da “constituição social”)”, Direitos Fundamentais Sociais, 2010, Editora Saraiva, pp.
19 e ss., em que se se defende que “o Estado Social só pode desempenhar positivamente as suas tarefas de
socialidade se se verificarem quatro condições básicas”, a saber, 1) provisões financeiras necessárias e
suficientes, 2) estrutura da despesa pública orientada para as despesas social e produtiva, 3) orçamento
público equilibrado, 4) taxa decrescimento do rendimento nacional de valor médio ou elevado; onde o autor
conclui, em guiza de desabafo, que “a verificação de todas as condições enumeradas coloca o Estado
Social em reais dificuldades”, desde logo por ser este “modelo dos países ricos”.
19
CANOTILHO, J. J. Gomes, op. cit..
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fundamentais” abrangem uma vasta paleta de factores que “condicionam, de forma
positiva e negativa, a existência e protecção”20 daqueles direitos. Esta dependência de
condições de facto inviabiliza, perante a sua insuficiência, a satisfação das prestações pelo
Estado: “a escassez dos recursos à disposição (material e também jurídica) do Estado para
satisfazer as necessidades económicas, sociais e culturais de todos os cidadãos é um dado
da experiência nas sociedades livres, pelo que não está em causa a mera repartição desses
recursos segundo um princípio de igualdade, mas sim uma verdadeira opção quanto à
respetiva afetação material”21. Regressamos, pois, assim, ao já aludido carácter
programático das “normas sociais” e ao correspondente entendimento dos direitos
fundamentais sociais em sentido estrito como “direitos económicos sociais e culturais”,
rectius, “direitos cujo conteúdo principal típico consiste em prestações estaduais sujeitas
a conformação político-legislativa”22, uma realidade que chega, em casos-limite, a
consternar a consciência jurídica e social de alguns – Robert Alexy: “On the basis of
constitutional rights norms, each person has those entitlements which from the
perspective of constitutional law are so important, that their granting or denial cannot
be left to simple parliamentary majorities.”23.
Só através de uma conveniente gestão de recursos concretizada na realização
substancial do conteúdo dos direitos sociais (nomeadamente, a prestações), levada a cabo
CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito Constitucional..., cit. p. 473, “os Realien (os “dados reais”)
condicionam decisivamente o regime jurídico-constitucional do estatuto positivo dos cidadãos”, não se
podendo ignorar a influência determinante de certos factores: “capacidade económica do Estado, clima
espiritual da sociedade, estilo de vida, distribuição de bens, nível de ensino, desenvolvimento económico,
criatividade cultural, convenções sociais, ética filosófica ou religiosa”.
21
ANDRADE, J. C. Vieira de, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2012, 5.ª
Ed., Coimbra, Coimbra Almedina, pp. 179 e ss.,: “Por outro lado, essa opção revela-se extremamente
articulada e complexa, já que a escassez dos recursos disponíveis está instimamente ligada às variações
no desenvolvimento económico e social e às interdependências na dinâmica das relações e dos fenómenos
coletivos, tornando, por isso, a escolha dependente de um sistema global em que pesam todas as
coordenadas que condicionam esse desenvolvimento e esta dinâmica”.
22
ANDRADE, J. C. Vieira de, op. cit., pp. 357 e ss..
23
ALEXY, Robert, “A Theory of Constitutional Rights”, 2010 Reprint, Oxford University Press.
20
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mediante e em função das opções políticas do legislador24, se consegue enfrentar a
escassez que os reveste e fazer-lhe face.25
Aqui chegados, acreditamos estar em condições de concluir que o presente
excurso pode ser analisado sob a lógica de complementaridade recíproca de dois vectores
essenciais, dialecticamente apurados: 1) os “direitos sociais” nascem ou emergem da
escassez e da necessidade de combater os seus efeitos nefastos; 2) são, simultaneamente,
postos em causa a um ritmo galopante em virtude da própria escassez.
E, isto dito, está dado o mote que abrirá caminho ao próximo segmento do nosso
estudo.
UM OLHAR DE SOSLAIO ENTRE A ESCASSEZ, DA “RESERVA DO
POSSÍVEL” AO DIREITO A “UM MÍNIMO DE SUBSISTÊNCIA CONDIGNA”;
PROBLEMAS DE CONSTITUCIONALIDADE EMERGENTES;
Mas a trama adensa-se...
A capacidade do Estado para responder às necessidades dos cidadãos vai
diminuindo à medida que a conjuntura económico-financeira do país se agrava, deixando
patente o conflito entre o imperativo de realização dos “direitos sociais” e a
responsabilidade
de
conduzir
políticas
de
boa
governança
orientadas
pela
sustentabilidade; uma diatribe que pode, no limite, pôr em causa o próprio “contrato
social” (Rosseau).
“(...) em função do pluralismo ideológico ou por força de limitações jurídicas e de facto – sem esquecer,
porém, as situações intermédias, em especial as de fronteira, em que se revelam continuidades com os
direitos, liberdades e garantias, que exprimem, afinal, a pertença comum à matéria dos direitos
fundamenais das pessoas”, in ANDRADE, J. C. Vieira de, ibid, em que Vieira de Andrade esclarece que
o “entendimento dos direitos sociais a prestações varia consoante os ordenamentos jurídicos”, podendo
ser encarados como normas programáticas, mas também de outras formas, sendo que na nossa Constituição,
as normas que os prevêem contêm “directivas para o legislador ou, talvez melhor, são normas impositivas
de legislação, de não conferindo aos seus titulares verdadeiros poderes de exigir, porque visam, em
primeira linha, indicar ou impôr ao Estado que tome medidas para uma maior satisfação ou realização
concreta dos bens protegidos”, tal não significando, todavia, “que se trate de de normas meramente
programáticas”.
25
A “intervenção legislativa conformadora” (Vieira de Andrade) a que nos temos vindo a referir avulta
também em sede de financiamento do sistema de segurança social, que tanto é um encargo do Estado, como
dos respectivos beneficiários (que efectuam contribuições), cfr. GOMES CANOTILHO, J. J., Moreira,
Vital, Constituição..., p. 817,: “A proporção em que o financiamento da segurança social depende de uma
e de outra das duas fontes é matéria que está em grande medida à disposição do Estado no âmbito da sua
liberdade política e legislativa”.
24
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No pino do debate não se pode ignorar o argumento da emergência económicofinanceira26, mas nem por isso a reconduzimos “à fattispecie do art.º 19.º”, negando-se,
in casu, um eventual “estado de excepção”, por consubstanciar uma leitura “desnecessária
e desadequada, desde logo porque não estamos perante uma situação de suspensão de
direitos, e porque uma dogmática da escassez, que mobilize, de uma forma apropriada,
princípios como a proteção da confiança e a proporcionalidade, é perfeitamente capaz de
dar conta do recado”27; ou não fosse o princípio da protecção da confiança tantas vezes
“utilizado pelo Tribunal Constitucional na densificação e concretização dos direitos
sociais”, implicando “um mínimo de certeza e segurança nos direitos das pessoas e nas
suas expectativas juridicamente criadas e, consequentemente, a confiança dos cidadãos
e da comunidade na tutela jurídica” (cfr. art.ºs 2.º e 9/b) da C.R.P.). Contudo, «uma
norma jurídica apenas violará o “princípio da protecção da confiança do cidadão”, ínsito
no princípio do Estado de direito, se ela postergar de forma intolerável, arbitrária,
opressiva ou demasiado acentuada aquelas exigências de confiança, certeza e segurança
que são dimensões essenciais do princípio do Estado de direito». A ser assim,
hipoteticamente, “a confiança na situação jurídica preexistente, designadamente quando
há uma subjectivação de um direito social, há-de prevalecer sobre a medida legislativa
que veio agravar a posição do cidadão”, porque “tendo tal confiança, nesse caso, maior
peso ou relevo constitucional do que o interesse público subjacente à alteração em causa,
é justo que o conflito se resolva daquela maneira”28.
Outro expediente de concretização dos direitos sociais que avulta observar no seio
da controvérsia e frequentemente é lido a par do princípio pretérito, é o “direito ou a
garantia a um mínimo de subsistência condigna”. A garantia do direito enunciado tem de
estar sempre assegurada com um mínimo de eficácia jurídica, mas nem por isso o
legislador deixa de poder “escolher os instrumentos adequados (...), podendo modelá-los
em função das circunstâncias e dos seus critérios políticos próprios”, sendo esta “uma
decorrência do princípio democrático, que supõe a possibilidade de escolhas e opções
que dê significado ao pluralismo e à alternância democrática, embora no quadro das
balizas constitucionalmente fixadas, devendo aqui harmonizar-se os pilares em que, nos
Rejeitamos, com João Carlos Loureiro, “a teoria da irrelevância: a crise seria um elemento do fáctico
que não pode ter efeitos no procedimento hermenêutico-normativo”, “A porta da memória...” p. 18.
27
LOUREIRO, João Carlos, op. cit., p. 19.
28
Vamos citando CORREIA, Fernando Alves, “A Concretização dos Direitos Sociais pelo Tribunal
Constitucional”, Separata da Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Ano VII – 2010
(Especial), pp. 40-41.
26
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termos do artigo 1.º da Constituição, se baseia a República Portuguesa: por um lado, a
dignidade da pessoa humana e, por outro lado, a vontade popular expressa nas
eleições”29. Tal não significa, portanto, que se passe “um cheque em branco” ao
legislador: é certo que o seu grau de vinculação30 depende do nível de determinação das
imposições constitucionais, mas ele está estritamente vinculado ao conteúdo mínimo das
normas da Lei Fundamental31.
Somos, assim, catapultados para a incontornável questão da “reserva do
possível”, uma dogmática desenhada e concebida em virtude dos “custos dos direitos”
(que adquirem magnitude quando nos referimos ao “catálogo de direitos sociais”), que,
em termos absolutos e no limite, contradiz aquilo que tem vindo a ser exposto, por se
traduzir “em nenhuma vinculação jurídica”32 (R. Alexy: “The Federal Constitutional
Court speaks of the ‘right of entry to a degree programme of one’s choice’, which is held
intrinsically by the qualified citizen, but which is subject ti the ‘bounds of possibility’.
This right is (...) a binding subjective prima facie right (2). Finally, the right to an
existential minimum is a binding subjective definitive right (1)”33). Posto isto, não
podemos aceitá-la acriticamente, sob pena de legitimar a «“tendência para zero” da
eficácia jurídica das normas constitucionais consagradoras de direitos sociais»34 mas, à
semelhança de João Carlos Loureiro, vislumbramos uma centelha de verdade na ideia de
“gradualidade da realização” dos direitos, cujo limite é oferecido pela garantia do
“mínimo de subsistência condigna” – «A “reserva do possível” é, pois, o
reconhecimento de que o grau de realização dos direitos não é indiferente e insensível à
conjuntura».35
29
CORREIA, Fernando Alves, op. cit., pp. 36-37.
“Binding norms granting definitive subjective intitlemens (1) give the strongest protection, while nonbinding norms imposing a merely objective prima facie duty of the state to provide goods (8) give the
weakest.”, ALEXY, Robert, “A Theory of Constitutional Rights”…
31
ANDRADE, J. C. Vieira de, Os Direitos Fundamentais..., p. 365 e ss..
32
Sobre a relação entre a dogmática da “reserva do possível” e a “garantia do mínimo social”, cfr.
CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito Constitucional..., pp. 480 e ss..
33
ALEXY, Robert, “A Theory of Constitutional Rights”…
34
Gomes Canotilho analisa o dogma da “reserva do possível” de uma perspectiva quadripartida e
desconstrói-o através de uma relativização reconhecedora dos seus aspectos verdadeiros, em Estudos sobre
Direitos Fundamentais..., p. 106 e ss..
35
LOUREIRO, João Carlos, “A porta da memória...”, pp. 17-16,: “Já nos merece outra consideração a
ideia de gradualidade na sua realização, desde que: a) não se admita um “grau zero” de efetivação; b)
não se toque na garantia do “mínimo para uma existência condigna”; c) não se pretenda que não pode
haver diminuição do grau de realização dos direitos, nomeadamente do seu montante”.
30
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Nº 1
PROBLEMAS EMERGENTES EM CONTEXTO DE ESCASSEZ;
E no âmago desta controvérsia vamos, paulatinamente, sendo remetidos para o
tópico convocado na próxima epígrafe.
É que, quando a belicosa dança da realização dos direitos sociais e da liberdade
de conformação político-legislativa tem palco na esteira da aguda escassez (rectius, em
contexto de crise), os problemas de constitucionalidade começam a emergir... – é mister
analisá-los.
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL N.º 187/2013
Neste cenário, cumpre agora debruçarmo-nos sobre o Acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 187/201336, com o mero propósito de conferir, na prática, as
repercussões empíricas desta relação da escassez geradora da resposta às necessidades
sociais e, simultaneamente, contractora das opções legislativas que as concretizam.
Posto isto, não nos interessa fazer uma análise detalhada ou minuciosa destas
contingências, nem do próprio acórdão, mas somente verificar, in casu, os problemas de
constitucionalidades advenientes daquela escassez em período de dificuldade económicofinanceira.
No aresto, o Tribunal Constitucional (doravante, TC) declarou inconstitucional a
norma do artigo 29.º da Lei n.º 66-B/2012, com força obrigatória geral, e não declarou a
inconstitucionalidade das normas dos artigos 27.º, 45.º, 78.º, 186.º, na parte em que
alterou os artigos 68.º, 78.º e 85.º e aditou o artigo 68.º-A do Código do Imposto sobre o
Rendimento das Pessoas Singulares) e 187.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro.
Constatamos ainda que o TC se decidiu pelas declarações de inconstitucionalidade
das normas dos artigos 31.º, 77.º e 117.º, n.º 1, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro:
não são estas que nos importa observar, mas as primeiras, concretamente as que constam
dos artigos 29.º e 78.º.
Quanto ao artigo 29.º, declarado inconstitucional por violação do princípio da
igualdade, consagrado no artigo 13.º da C.R.P., estava em causa a suspensão do subsídio
de férias aos trabalhadores activos do sector público. Na fundamentação pode ler-se: “A
Lei Fundamental é sensível às variações, para menos, do nível da concretização
36
Cfr.
Acórdão
do
Tribunal
Constitucional
n.º
353/2012,
disponível
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20130187.html?impressao=1, em 27/10/2014.
em
16
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Nº 1
legislativa que possa conhecer o direito à retribuição, proporcionando um controlo, não
quanto à redutibilidade, em si mesma considerada, mas quanto aos termos da sua
efectivação – isto é, quanto às suas razões e medida. Esse controlo atua por intervenção
mediadora dos princípios da proteção da confiança, da igualdade e da proporcionalidade,
que densificam a ideia de sujeição do poder público a princípios e regras jurídicas,
integrando, nessa acepção, a ideia de Estado de direito inscrita no princípio do Estado de
direito democrático (artigo 2.º da Constituição). Também neste campo, a liberdade
conformadora do legislador encontra-se constitucionalmente vinculada por aqueles
princípios”. Pretendia saber-se, no que diz respeito à posição jurídica afectada, se as
putativas medidas, não obstante o interesse público que lhes subjazia, consubstanciavam,
“no contexto que resulta da Lei do Orçamento de Estado para 2013, uma intervenção
proibida pelos princípios da proteção da confiança, da igualdade e/ou da
proporcionalidade”. O TC acabou por concluir pela não violação do princípio da
protecção da confiança, por estarmos perante “razões de interesse público” que
justificavam as alterações legislativa e haver “indícios consistentes da necessidade de
manutenção de medidas de contenção orçamental”. Já relativamente ao princípio da
igualdade, a situação adquiriu outros contornos. Apesar da norma do artigo 29.º ter sido
acompanhada de “um conjunto mais abrangente de medidas de carácter fiscal que
afeta[vam] a generalidade dos contribuintes”, o Tribunal entendeu que resultava
desrespeitado o princípio da igualdade proporcional e da justa repartição dos encargos
públicos: “Não só porque o tratamento diferenciado dos trabalhadores do setor público
não pode continuar a justificar-se através do caráter mais eficaz das medidas de redução
salarial, em detrimento de outras alternativas possíveis de contenção de custos, como
também porque a sua vinculação ao interesse público não pode servir de fundamento para
a imposição continuada de sacrifícios a esses trabalhadores mediante a redução unilateral
de salários, nem como parâmetro valorativo do princípio da igualdade por comparação
com os trabalhadores do setor privado ou outros titulares de rendimento. E ainda porque
a penalização de certa categoria de pessoas, por efeito conjugado da diminuição de
salários e do aumento generalizado da carga fiscal, põe em causa os princípios da
igualdade perante os encargos públicos e da justiça tributária”37.
37
O TC concluiu ainda que o direito fundamental a uma existência condigna não era posto em causa, em
virtude da medida do artigo 29.º, n.º 2, apenas afectar trabalhadores do sector cuja remuneração mensal
fosse igual ou superior a 600€, um valor que excede a retribuição mínima mensal garantida.
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Reservamos um momento para atentar da declaração conjunta em que votaram
vencidos Vítor Gomes, Pedro Machete, Maria João Antunes, José Cunha Barbosa e Maria
Lúcia Amaral, por discordarem de dois dos argumentos em que se alicerçou a decisão do
TC: crêem que o Tribunal se imiscuiu/substituiu à competência do legislador ao «aferir a
“justa medida” da diferença a partir de uma situação de igualdade a priorística que
considera como um dado vinculante», para responder à questão de saber se a medida
legislativa se incluía ainda nos “limites do sacrifício”; por sua vez, ao responder à questão
da evidência da dispensabilidade da medida, o Tribunal ter-se-á fundado “num dado que
é jurisdicionalmente indemonstrável”, pois “ainda que, em tese, se pudesse sustentar que
a perdurabilidade, no tempo, das medidas de suspensão do pagamento de subsídios a
quem recebe por verbas públicas faria acrescer as responsabilidades do legislador no
encontrar de soluções alternativas (menos gravosas para aquela categoria de cidadãos)”
nem por isso se poderia concluir, naquele contexto orçamental, “que o legislador
incumpriu à evidência aquela responsabilidade”.
Reportemo-nos agora à norma do artigo 78.º, sobre a contribuição extraordinária
de solidariedade (de ora em diante, CES). As novidades introduzidas no diploma em
análise prendem-se com o alargamento da base contributiva do tributo aos regimes
complementares de iniciativa colectiva privada e o acentuar do seu carácter progressivo.
A CES configura uma “verdadeira contribuição para a segurança social”, revestindo a
natureza de um “tributo parafiscal”, tendo sido reconduzida pelo TC à categoria das
“demais contribuições financeiras” (não saindo prejudicada aquela qualificação), tal se
justificando “pelo facto de estarmos perante uma contribuição exigida aos actuais
beneficiários – e não apenas aos futuros como até aqui vinha sendo a regra – como ainda
por se tratar de uma medida extraordinária e transitória, consagrada em norma orçamental
e não num diploma próprio regulador do regime de segurança social”38. No entanto, este
cariz extraordinário e transitório da CES não é conditio sine qua non da sua existência,
podendo vir a adquirir “estatuto de instituto jurídico dentro da lei de bases da segurança
social” à luz dos mesmos princípios que a dotam de conformidade constitucional – os
princípios da contributividade e da justiça intergeracional e intrageracional39. A hipotética
conversão da CES numa medida ordinária, “funcionando como mais um estabilizador
SILVA, Suzana Tavares da, “O problema da justiça intergeracional em jeito de comentário ao Acórdão
do Tribunal Constitucional n.º 187/2013”, Cadernos de Justiça Tributária, n.º 00, Braga, 2013, p. 10.
39
Sobre o princípio da justiça intergeracional pronunciar-nos-emos com mais delongas em rubrica
posterior.
38
18
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automático”, tem na justiça intergeracional um pressuposto de sustentabilidade “sempre
que as condições económicas conjunturais revelem que as gerações presentes e futuras
de contribuintes para a segurança social estão em condições económicas piores que as
gerações beneficiárias do sistema”. A questão suscitada faz-nos resvalar para uma
“violação do princípio da tutela dos direitos adquiridos e dos direitos em formação”40,
que trataremos imediatamente.
A PROBLEMÁTICA DOS DIREITOS ADQUIRIDOS
A questão dos direitos adquiridos tem vindo a sobressair no actual contexto
económico-financeiro, por força das mutações sociais e jurídicas dele decorrentes. É uma
fórmula que tem sido mobilizada tanto pelo Tribunal Constitucional como pela classe
política, e que avulta no sistema de segurança social (v.g., o n.º 4 do artigo 63.º da C.R.P.,
plasmando o princípio do aproveitamento total do tempo de trabalho, que deve ser lido
em articulação com o princípio da manutenção dos direitos adquiridos41).
A Lei de Bases da Segurança Social consagra os direitos adquiridos, no seu artigo
66.º, como “os que já se encontram reconhecidos ou possam sê-lo por se encontrarem
reunidos todos os requisitos legais necessários ao seu reconhecimento”; a que se
contrapõem, com frequência, os “direitos em formação”42 – traduzindo uma
“diferenciação entre as expectativas legítimas”43.
O princípio da tutela dos direitos adquiridos é «uma dimensão concretizadora do
princípio constitucional da protecção da confiança legítima, que se reporta ao problema
jurídico da “justa conciliação” entre a protecção das expectativas desenvolvidas pelos
indivíduos enquanto destinatários de determinados actos do poder público (mesmo
quando estamos perante actos já praticados) no decurso de relações jurídicas duradouras
e a necessidade de actualização das opções políticas em função das necessidades ditadas
pelo interesse geral»44. A ideia dos direitos adquiridos tem precisamente aí o seu berço:
foi concebida para proteger a pessoa contra o arbítrio do Estado.45 Ainda assim, e
deixando intacto o valor ou importância jurídica desta categoria, cremos que não é imune
40
SILVA, Suzana Tavares da, op. cit., pp. 10 e ss..
GOMES CANOTILHO, J. J., Moreira, Vital, Constituição da República Portuguesa: Anotada (2007),
1.º Vol., 4.ª Ed. Rev., Coimbra, Coimbra Editora, p. 819.a
42
No mesmo diploma definidos como “os correspondentes aos períodos contributivos e valores de
remuneração registadas em nome do beneficiário”.
43
SILVA, Suzana Tavares da, “O problema da justiça intergeracional...”, p. 15..
44
SILVA, Suzana Tavares da, op. cit. pp. 10 e 11.
45
LOUREIRO, J. C., Adeus ao Estado Social?... 115 e ss., cfr. p. 272 e ss..
41
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a críticas. Especialmente se a cristalização de certos direitos no tempo, tornando-os
intocáveis, conflitua com assuntos prementes como o da sustentabilidade e o da justiça
intergeracional, aos quais urge prestar cada vez maior atenção (sob pena de nos autosabotarmos).46
A
INSUSTENTABILIDADE
INTERGERACIONAL
DO
PARADIGMA
ACTUAL?
Principiemos este último ponto pela abordagem da sustentabilidade (e da evolução
sustentável).
A sustentabilidade que visamos é multidimensional47, transversal, transtemporal
e integrada, isto é, compreendemos a sustentabilidade em sentido amplo, abrangendo
“três pilares”: I – a sustentabilidade ecológica; II – a sustentabilidade económica; II – a
sustentabilidade social48 - antevendo o “carácter federado” do conceito, que procura
responder a “novos padrões de complexidade social”.49 Esta resposta é, de facto, um
“dever de acção”50 que resulta da C.R.P. e a sua conformação compete ao legislador51,
que o deve fazer de forma integrada, e não estanque, concertando as políticas respeitantes
às várias áreas, ou gorar-se-á o seu propósito.
Para entender este princípio adequadamente e levar a cabo os seus desígnios, deve
proceder-se a uma leitura conjunta com o princípio da justiça intergeracional, que com
ele não se confunde, e cujo núcleo essencial se refere à “igualdade com
proporcionalidade”52.
As ideias de sustentabilidade e justiça intergeracional são, assim, indissociáveis,
seja em que temática for. Desempenha aqui um papel determinante a dívida pública que,
transferindo “os encargos financeiros para o futuro”, reduz “o espaço de actuação das
46
No mesmo sentido, João Carlos Loureiro, op. cit., pp. 14 e 15.
Gomes Canotilho estabelece um “imperativo categórico” do princípio da sustentabilidade, tripartido em
três “dimensões básicas”: 1) sustentabilidade interestatal; 2) sustentabilidade geracional; 3)
sustentabilidade intergeracional. CANOTILHO, Gomes, J. J., “Sustentabilidade – um romance de cultura
e de ciência para reforçar a sustentabilidade democrática”, Separata do Boletim da Faculdade de Direito,
vol. 88, Tomo I, Coimbra, 2012, pp. 5 e 6; cfr. LOUREIRO, João Carlos, Adeus ao Estado Social?..., p.
128,: “O princípio da sustentabilidade surge como súmula de dimensões de sustentabilidade em várias
áreas”.
48
CANOTILHO, Gomes, J. J., op. cit..
49
CANOTILHO, Gomes, J. J., ibid, p. 7.
50
LOUREIRO, João Carlos, op. cit.; cfr. artigo 64.º C.R.P..
51
Gomes Canotilho propõe “quatro vectores indispensáveis ao desenvolvimento, gradual mas profundo,
dos projectos políticos”: (i) eficiência; (ii) suficiência; (iii) consistência; (iv) participação; CANOTILHO,
J. J. Gomes, ibid, p. 8.
52
LOUREIRO, João Carlos, ibid, p. 135.
47
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gerações futuras”, só se revelando sustentável quando “aos encargos sobre gerações
futuras corresponderem iguais vantagens para estas gerações”. Efectivamente, o Estado
deve garantir que “uma geração não consome ilegitimamente recursos da outra” 53, uma
questão que adquire densidade no âmbito dos direitos sociais, mormente nos direitos a
prestações, em que necessita de certificar-se que existe “equidade diacrónica entre
prestações e contribuições”, ou seja, averiguar “se há justiça no montante das prestações
relativamente ao montante das contribuições, numa perspectiva intergeracional”54,
tomando a sério “as consequências de longa duração de um conjunto de mecanismos do
sistema de protecção social”55 – isto vale também no que concerne ao financiamento,
dado que a sustentabilidade não contempla necessariamente a justiça intergeracional, pelo
contrário, debatem-se cada vez mais.
53
SILVA, Suzana Tavares da, ibid, p. 11.
SILVA, Suzana Tavares da, ibid, p. 11 e ss.,: “a equidade – o critério base que justifica as transferências
de recursos entre grupos – neste caso é obtida a partir de comparações (metódica da igualdade) que assentam
nas diferenças existentes entre as diversas etapas da vida e não nas meras condições económicas actuais
dos elementos em comparação” (p. 12).
55
LOUREIRO, João Carlos, ibid, p. 278.
54
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À guisa de conclusão...
Aproximamo-nos finalmente da recta final da nossa exposição, para concluir que
a influência da escassez nos direitos sociais conduz, sem contestação possível, à
emergência de um sem-número de problemas no quadro da sustentabilidade e da justiça
intergeracional.
Isto porque, face à actual conjuntura económico-financeira, assiste-se a uma
tendência dominante para sacrificar a justiça intergeracional em função da
sustentabilidade, que é, muitas vezes, uma sustentabilidade encapotada, paradoxal, pouco
profícua por hipotecar o futuro das gerações presentes e vindouras, gerando, deste modo,
maiores problemas e soluções cada vez mais... escassas!
Não nos arrogamos a difícil tarefa de propôr soluções: as nossas limitações são
por demais evidentes, e impedem-nos de sucumbir à soberba.
Mas não descansaríamos a consciência se não colocássemos, pelo menos, a ênfase
nas questões, sempre com consciência crítica, acreditando que o paradigma de realização
dos direitos sociais terá de pautar-se, cada vez mais, por uma genuína sustentabilidade e
uma verdadeira justiça intergeracional.
Qual o caminho para lograr este objectivo? Permitimo-nos convocar as palavras
de José Régio, no seu Cântico Negro, uma resposta largamente mais elucidativa do que a
nossa poderia vir a ser...
“Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!”
José Régio
(Cântico Negro)
22
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BIBLIOGRAFIA
ALEXY, Robert, “A Theory of Constitutional Rights”, 2010 Reprint, Oxford University Press;
ANDRADE, J. C. Vieira de, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976,
2012, 5.ª Ed., Coimbra, Coimbra Almedina;
CORREIA, Fernando Alves, “A Concretização dos Direitos Sociais pelo Tribunal
Constitucional”, Separata da Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Ano
VII – 2010 (Especial);
GOMES CANOTILHO, J. J., Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra,
Almedina, 2003;
GOMES CANOTILHO, J. J., Moreira, Vital, Constituição da República Portuguesa: Anotada
(2007), 1.º Vol., 4.ª Ed. Rev., Coimbra, Coimbra Editora;
GOMES CANOTILHO, J.J., in “O direito constitucional como ciência de direcção – o núcleo
essencial de prestações sociais ou a localização incerta da socialidade (contributo para a
reabilitação da força normativa da “constituição social”)”, Direitos Fundamentais Sociais, 2010,
Editora Saraiva
GOMES CANOTILHO, J. J., Moreira, Vital, Constituição da República Portuguesa: Anotada
(2007), 1.º Vol., 4.ª Ed. Rev., Coimbra, Coimbra Editora;
GOMES CANOTILHO, J. J., “Sustentabilidade – um romance de cultura e de ciência para
reforçar a sustentabilidade democrática”, Separata do Boletim da Faculdade de Direito, vol. 88,
Tomo I, Coimbra, 2012;
LOUREIRO, João Carlos, “A porta da memória: (pós?)-constitucionalismo, Estado (pós?)-Social,
(pós?)democracia e (pós?)capitalismo: contributos para uma “dogmática da escassez””, Estudos
do século XX, N. 13, IUC, Coimbra, 2013;
23
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Nº 1
LOUREIRO, João Carlos, Adeus ao Estado Social?: a segurança social entre o crocodilo da
economia e a medusa da ideologia dos “direitos adquiridos”, Lisboa, Wolters Kluwer Portugal
- Coimbra Editora, 2010;
LOUREIRO, João Carlos – “Sobre Cheschire e outros gatos”, in AVELÃS, José Nunes, CUNHA,
Luís Pedro, MARTINS, Maria Inês de Oliveira (Org.) – Estudos em homenagem ao Prof. Doutor
Aníbal de Almeida, Coimbra, Coimbra Editora, 2012;
MELO FRANCO/ANTUNES MARTINS, Conceitos e Princípios Jurídicos, Coimbra, Almedina,
1983;
SILVA, Suzana Tavares da, “O problema da justiça intergeracional em jeito de comentário ao
Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 187/2013”, Cadernos de Justiça Tributária, n.º 00, Braga,
2013;
The New Palçgrave – A Dictionary of Economics, Edited by John Eatwell, Murray Milgate and
Peter Newman, The Macmillan Press Limited, 1987;
V. LIANG WANG, Daniel Wei - “Escassez de recursos, custos dos direitos e reserva do possível
na jurisprudência do STF”, in “Revista Direito GV”, 4 (2), São Paulo, Jul-Dez 2008.
WEBGRAFIA
Dicionário da Língua Portuguesa Porto Editora – com Acordo Ortográfico, in
http://www.infopedia.pt/lingua-portuguesa/escassez, em 27/04/2014;
Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, in http://www.priberam.pt/DLPO/escasso, em
27/04/2014;
Url: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20130187.html?impressao=1, em
27/04/201
24
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Nº 1
DEZ ANOS DO MANDATO DE DETENÇÃO EUROPEU
Joana, SOUSA DOMINGUES 56
56
Mestranda em Direito da União Europeia na Escola de Direito da Universidade do Minho
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Nº 1
RESUMO
O Mandado de Detenção Europeu foi a primeira das medidas adoptadas no quadro da
cooperação judiciária da União Europeia em matéria penal. Uma década volvida desde a data
da transposição da Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002 relativa
ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados-Membros, esta
continua a ser uma das mais emblemáticas mas também mais controversas daquelas medidas.
Cumpre pois analisar as soluções que foram sendo encontradas na jurisprudência do Tribunal
de Justiça da União Europeia aos desafios que surgiram e continuam a surgir na aplicação deste
instrumento.
Palavras-chave: cooperação judiciária; mandado de detenção europeu; princípio do
reconhecimento mútuo; Tribunal de Justiça da União Europeia.
26
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Nº 1
INTRODUÇÃO
Desenvolver um quadro de direito penal europeu tem sido, e ainda é, um dos projetos mais
ambiciosos de integração europeia. Com a abolição das fronteiras internas, foi necessário
implementar medidas compensatórias para combater o crime transnacional. O mandado de
detenção europeu (MDE) foi a primeira e mais simbólica daquelas.
Dez anos após a data para a transposição da decisão-quadro relativa ao MDE57 é
particularmente apropriado avaliar o seu funcionamento e refletir sobre o seu futuro. Na opinião
do Parlamento Europeu, expressada em fevereiro passado, é necessária uma revisão daquela
que é a iniciativa mais emblemática da cooperação judiciária da União Europeia (UE) em
matéria penal58.
Adoptado na sequência dos acontecimentos nos Estados-Unidos em 11 de setembro de
2001, o MDE representa “a primeira concretização no domínio do direito penal do princípio do
reconhecimento mútuo que o Conselho Europeu qualificou de pedra angular da cooperação
judiciária”59, em outubro de 1999, em Tampere60. O MDE foi projectado como uma medida de
dupla função: por um lado, serviria para abolir as formalidades associadas ao anterior sistema
da extradição (que o MDE veio substituir), e tornar mais célere e eficaz o reconhecimento,
mediante controlos mínimos, do pedido de entrega de uma pessoa, para o efeito de cumprir uma
pena ou para a efetivação do procedimento criminal, promovendo a implementação de um
diálogo direto entre as autoridades judiciárias dos Estados-Membros envolvidos; por outro lado,
seria um meio de combate ao crime transnacional (designadamente, o terrorismo)61.
57
Decisão-quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção
europeu e aos processos de entrega entre os Estados-Membros, publicada no Jornal Oficial das Comunidades
Europeias em 18 de julho de 2002 (JO L 190, 18.7.2002). A decisão-quadro foi aprovada em 2002 e entrou em
vigor a 1 de Janeiro de 2004.
58
Em fevereiro de 2014 o Parlamento Europeu aprovou uma Resolução recomendando a Comissão a
apresentar propostas legislativas destinadas a melhorar o funcionamento do MDE. Cf. Resolução do Parlamento
Europeu, de 27 de fevereiro de 2014, que contém recomendações à Comissão sobre a revisão do mandado de
detenção europeu (2013/2109 (INI)).
59
Considerando sexto da decisão-quadro 2002/584/JAI.
60
HELENA PATRÍCIO, “O mandado de detenção europeu na jurisprudência do Tribunal de Justiça”, in
UNIO, n.º 0, pp. 61-80.
61
“Given its adoption as a response to the 9/11 events, a striking feature of the European Arrest Warrant
is that its scope is not limited to terrorist offences”. Cf. VALSAMIS MITSILEGAS, “The Constitutional
Implications of mutual recognition in criminal matters in the EU”, in Common Market Law Review, n.º 43, 2006,
p. 1284.
27
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Nº 1
Visto como uma “história de sucesso”, não apenas pela Comissão Europeia62 mas também
por académicos63 e profissionais64, o MDE é controverso desde que foi adotado em 200265, e
continua a sê-lo em alguns ordenamentos jurídicos europeus. Acresce que, tem sido alvo de um
forte criticismo, havendo autores que consideram que o MDE é “vítima do seu próprio
sucesso”66.
Uma década de prática com o MDE forneceu materiais e debates para uma discussão sobre
este instrumento, os seus benefícios e suas deficiências67. Este artigo tem como objetivo
apresentar e analisar (alguns dos) problemas e dificuldades que têm surgido, articulando-os com
as soluções que foram sendo encontradas na jurisprudência do Tribunal de Justiça da União
Europeia (TJ)68.
62
No último relatório sobre a quarta ronda de avaliações mútuas a Comissão enfatiza que o sucesso desta
medida é especialmente demonstrado pela aceleração do processo, o que contrasta com a situação pré-MDE. Em
comparação com a média de um ano sob o regime de extradição, a média é de agora 48 dias, quando a pessoa não
consentir na sua entrega e 14 a 17 dias, em caso de consentimento. Vide, particularmente pp. 3 e 6, do Relatório
da Comissão ao Parlamento Europeu e ao Conselho, de 11 de Abril de 2011, sobre a aplicação, desde 2007,
da Decisão-Quadro do Conselho de 13 de Junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos
processos de entrega entre os Estados-Membros [COM(2011) 175].
63
Cf. KAREN WEIS, “The European arrest warrant – a victim of its own success”, in New Journal
of European Criminal Law, vol. 2, n.º 2, 2011, pp. 124-132.
64
Muitos profissionais que conhecem tanto o sistema de extradição como o MDE, consideram este
último como uma “revolução”. Sobre esta revolução veja-se, designadamente: SOPHIE BOT, Le mandat
d’arrêt européen, Bruxelas, Larcier, 2009, p. 194; MICHAEL PLACHTA, “European Arrest Warrant:
Revolution in Extradition”, in European Journal of Crime, Criminal Law and Criminal Justice, vol. 11, n.º 2,
2003, pp.178 -194.
65
Especialmente porque o MDE veio abolir a exigência de dupla incriminação para uma lista de 32
crimes, como consequência da adoção do princípio do reconhecimento mútuo.
66
Cf. KAREN WEIS, “The European arrest warrant…”, op. cit.
67
Tal como referenciado pela Comissão, a aplicação do MDE não é de longe perfeita. Contudo esta
instituição europeia enfatiza que há espaço para melhoramentos. Vide designadamente, pp. 3 e 6 do Relatório da
Comissão ao Parlamento Europeu e ao Conselho, de 11 de Abril de 2011 op. cit.
68
O TJ foi já chamado a pronunciar-se sobre este mecanismo em 12 reenvios prejudiciais: Acórdão ASBL
Advocaten voor de wereld, 2007, Processo C-303/05; Acórdão Szymon Kozlowski, 2008, Processo C-66/08;
Acórdão Santesteban Goicoechea, 2008, Processo C-296/08 PPU; Acórdão Leymann et Pustovarov, 2008,
Processo Case C-388/08 PPU; Acórdão Wolzemburg, 2009, Processo C-123/08; Acórdão I.B, 2010, Processo C306/09; Acórdão Mantello, 2010, Processo C-261/09; Acórdão Melvin West, 2012, Processo C-192/12; Acórdão
Lopes Da Silva Jorge, 2012, Processo C-42/11; Acórdão Radu, 2013, Processo C-396/11; Acórdão Melloni, 2013,
Processo C-399/11; Acórdão Jeremy F, 2013, Processo C-168/13.
28
Agosto 2016
Nº 1
OS PRIMEIROS ANOS DE IMPLEMENTAÇÃO
Os primeiros anos após a implementação do MDE nas legislações nacionais foram
marcados por uma fase de desafios constitucionais à validade do mesmo69.
Como bem identifica o Advogado-Geral (AG) Jarabo Colomer nas suas conclusões ao
Acórdão Advocaten voor de Wereld70, existe uma fronteira entre o MDE e o anterior sistema de
extradição. Contudo esta diferença não foi bem percebida pelos Tribunais Constitucionais
Alemão, Polaco e Cipriota, que consideraram nulas as legislações nacionais que aplicam a
Decisão-Quadro 2002/584 por ser contrária às respetivas Constituições71. Se alguns EstadosMembros procederam a alterações nas suas Leis Fundamentais antes da implementação da
decisão-quadro relativa ao MDE72, o mesmo não sucedeu, designadamente, naqueles três
Estados-Membros. Nestes, algumas das inovações introduzidas pelas legislações nacionais que
transpuseram a decisão-quadro relativa ao mandado de detenção europeu vieram chocar com
as disposições constitucionais que não foram modificadas para as receber.
A eliminação da tradicional proibição de extradição de cidadãos nacionais73 terá sido a
inovação trazida pelo MDE que encontrou maior oposição. De facto as diversas constituições
nacionais, como a Cipriota, Checa, Alemã ou Polaca, continham aquela proibição
constitucional. Para estes Estados-Membros a cidadania significa acima de tudo que o Estado
providencia aos seus cidadãos um local seguro do qual não podem ser privados. Se os cidadãos
nacionais podem ser expulsos do seu próprio Estado, aquela ideia é posta em causa. Tal foi
expressamente referenciado pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão74, que declarou nula
Cf., designadamente, VALSAMIS MITSILEGAS, “The Constitutional Implications of mutual
recognition…”, op. cit., pp. 1277-1311; JAN KOMÁREK, “European constitutionalism and the European arrest
warrant In search of the limits of contrapunctual principles”, in Common Market Law Review, vol. 44, n.º1,
fevereiro 2007, pp. 9-40; ORESTE POLLICINO, “European Arrest Warrant and Constitutional Principles of the
Member States: a Case Law-Based Outline in the Attempt to Strike the Right Balance between Interacting Legal
Systems”, in German Law Journal, vol. 9, n.º 10, 2008, pp.1313-1355.
70
Vide, cons. 45, nota de rodapé 40 das conclusões do Advogado-Geral Dámaso Ruiz-Jarabo Colomer,
apresentadas a 12 de Setembro de 2006, no Processo C-303/05 Advocaten de Wererd VZW c. Leden Van de
Ministerraad.
71
Para mais desenvolvimentos veja-se: ORESTE POLLICINO, “European Arrest Warrant...”, op. cit.,
pp.1313-1355.
72
Veja-se por exemplo o caso da Eslováquia, da Eslovénia ou Portugal.
73
Sobre o tema: ZSUZSANNA DEEN-RACSMNY, “The European Arrest Warrant and the Surrender of
Nationals Revisited: The Lessons of Constitutional Challenges”, in European Journal of Crime, Criminal Law
and Criminal Justice, vol. 14, n.º3, 2006, pp. 271-306
74
Decisão do Tribunal Constitucional Alemão de 18 de julho de 2005. Sobre esta decisão veja-se
designadamente: ALICIA HINAREJOS PARGA, “Bundesverfassungsgericht (German Constitutional Court),
Decision of 18 July 2005 (2 BvR 2236/04) on the German European Arrest Warrant Law”, in Common Market
Law Review, vol. 43, n.º 2, 2006, pp. 583–595; NICOLAS NOHLEN, “Germany: The European Arrest Warrant
case”, in International Journal of Constitutional Law, vol. 6, n.º1. 2008, pp. 153-161.
69
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Agosto 2016
Nº 1
a legislação nacional que aplica a Decisão-Quadro 2002/584 por ser contrária à Constituição
Alemã (Grundgesetz) violando Artigo16.II (Liberdade de extradição) e artigo 19.IV (Direito de
recurso a um Tribunal) da Grundgesetz. A Constituição Alemã foi então alterada permitindose a extradição de cidadãos alemães para outros Estados-Membros. No Polónia e Chipre haviam
proibições absolutas de extradição. O Supremo Tribunal do Chipre argumentou que a Decisão
– Quadro 2002/584 era uma medida do “Terceiro Pilar” e que por isso não tinha efeito direto,
donde não podia ser invocada75.O Tribunal Constitucional Polaco foi ainda mais direto.
Baseando-se na supremacia da Constituição Polaca sobre o Direito da União Europeia,
considerou que a lei polaca que transpõe a decisão – quadro 2002/584/JAI era inconstitucional,
já que segundo o artigo 55.º daquela lei fundamental a extradição de cidadãos polacos é
proibida76.
Outro aspeto controverso deste instrumento relaciona-se com a abolição da dupla
incriminação prevista no artigo 2.º, n.º 2 da decisão-quadro 2002/584/JAI. Se no tradicional
sistema de extradição o Estado de execução podia definir como condição para a entrega, a
exigência de que a infração em causa fosse igualmente tida como tal ao abrigo do seu sistema
legal, com o MDE tal deixa de ser possível em relação a um numerus clausus de trinta e dois
delitos. Este aspeto é fundamental já que possibilita a execução de um MDE para delitos em
relação aos quais não existem ainda disposições harmonizadas em todos os Estados-Membros
ou, em relação a crimes que podem nem ser considerados como tal no Estado requerido77.
Consequentemente o Estado requerido pode ter de prender ou entregar um individuo por
atividades que o próprio Estado não vê como ilegais. Este foi o caso em Advocaten voor de
Wereld78, onde a Advocaten voor de Wereld (uma organização sem fins lucrativos belga)
levantou perante os tribunais nacionais belgas o problema da violação do princípio da
legalidade79.
Sobre esta decisão: ALEXANDROS TSADIRAS, “Cyprus Supreme Court, Judgment of 7 November
2005 (Civil Appeal no. 294/2005) on the Cypriot European Arrest Warrant Law”, in Common Market Law Review,
vol. 44, n.º 5, 2007, pp. 1515–1528.
76
Sobre esta decisão: DOROTA LECZYKIEWICZ, “'Trybunal Konstytucyjny (Polish Constitutional
Tribunal), Judgment of 27 April 2005, No. P 1/05”, in Common Market Law Review, vol. 43, n.º4, 2006, pp. 1181–
1191; ANGELIKA NUBBERGER, “Poland: The Constitutional Tribunal on the Implementation of the European
Arrest Warrant”, in International Journal of Constitutional Law, vol. 6, Issue 1 (January 2008), pp. 162-170.
77
Sobre este assunto veja-se JAN KOMÁREK, “European constitutionalism and the European arrest
warrant In search of the limits of contrapunctual principles”, in Common Market Law Review, vol. 44, n.º1,
fevereiro 2007, pp. 9-40 (em particular pp. 16-18).
78
Acórdão Advocaten voor de wereld, 3 de maio de 2007, Processo C-303/05.
79
Vide, cons. 48-54 do ac. Advocaten voor de Wereld.
75
30
Agosto 2016
Nº 1
Esta fase de desafios constitucionais é encerrada precisamente com o Acórdão Advocaten
voor de Wereld, que representa o primeiro teste à validade do MDE. Ao contrário do que haviam
feito os seus homónimos, resolvendo os desafios constitucionais a nível nacional e evitando a
confrontação “direta” com o direito comunitário, o Tribunal Constitucional Belga decide
recorrer ao TJ através do mecanismo de reenvio prejudicial80.
Com as duas questões formuladas pelo tribunal Belga81 o TJ é chamado a pronunciar-se
sobre a validade formal (questão 1)) e substancial (questão 2)) da decisão-quadro 2002/584/JAI.
Quanto à primeira questão o TJ, uma vez que era chamado a decidir se a decisão-quadro havia
sido devidamente adotada com base no artigo 34.º, n.º 2, b) do Tratado da União Europeia
(TUE), refere primeiramente que é competente para interpretar disposições de direito primário,
neste caso aquela disposição, para em seguida concluir, em linha com as conclusões do AG 82,
que a decisão-quadro foi devidamente adotada83. O TJ focou-se, em seguida, na segunda
questão prejudicial abordando as implicações do requisito da dupla incriminação, previsto no
artigo 2.º, n.º2 da decisão-quadro 2002/584/JAI, nos direitos fundamentais e no princípio da
legalidade. A Advocaten voor de Wereld havia desafiado a presente decisão-quadro, baseandose nos princípios da igualdade e da não discriminação84, bem como no princípio da legalidade
penal. Em relação a este último o TJ reafirmou que, por força do artigo 6.º do TUE, a União
funda-se no princípio do Estado de Direito e no respeito pelos direitos fundamentais tal como
são reconhecidos pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Assim, o TJ responde
declarando que o artigo 2.º, n.º2 da decisão-quadro não viola o princípio da legalidade uma vez
que não se pretende harmonizar as infrações penais em causa. Os elementos constitutivos e as
penas aplicáveis aos ilícitos continuam a ser assuntos determinados pelo direito do EstadoMembro de emissão. Donde, é a este ordenamento jurídico que cabe a observância do princípio
da legalidade85. O TJ concluiu ainda que a norma legal em crise não violava o princípio da
igualdade nem da não-discriminação, aludindo fundamentalmente à seriedade – por razões de
ordem pública e à segurança pública – dos crimes listados na decisão-quadro que justifica que
o controlo da dupla incriminação não seja exigido86. E, é também neste ponto que o TJ toca no
80
Artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).
Vide, cons. 16 do ac. Advocaten voor de Wereld.
82
Vide cons. 29 das conclusões do Advogado Geral Advogado-Geral Dámaso Ruiz-Jarabo Colomer,
apresentadas a 12 de Setembro de 2006, no processo C-303/05 Advocaten de Wererd VZW c. Leden Van de
Ministerraad.
83
Vide, cons. 32, 42 e 43 do ac. Advocaten voor de Wereld.
84
Vide, cons. 48 do ac. Advocaten voor de Wereld.
85
Vide, cons. 52-53 do ac. Advocaten voor de Wereld.
86
Vide, cons. 57-58 do ac. Advocaten voor de Wereld.
81
31
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Nº 1
princípio do reconhecimento mútuo, enfatizando que o elevado grau de confiança e
solidariedade entre os Estados-Membros legitima a exclusão do controlo da dupla incriminação,
não sendo por isso necessária qualquer outra salvaguarda extrajudicial.
Com base nestes argumentos, o TJ decidiu que a “análise das questões colocadas não
revelou nenhum elemento suscetível de afetar a validade da decisão-quadro”87. Com esta
decisão pôs-se um ponto final à fase de protesto contra a existência do mandado de detenção
europeu, confirmando-se a sua validade e legitimidade. Apesar de conter alguns elementos
positivos e até “tranquilizadores” para restaurar a confiança, esta decisão judicial, apesar de tão
importante para a cooperação judiciária em matéria penal, é parca em argumentos. De facto, o
TJ parece preso à estrutura da decisão-quadro, preferindo respostas breves. Veja-se a parte final
do acórdão em análise, em que o TJ referindo-se à sua jurisprudência, e após afirmar que o
princípio da igualdade e da não discriminação exige que situações comparáveis não sejam
tratadas de modo diferente e que situações diferentes não sejam tratadas de modo igual, exceto
se esse tratamento for objectivamente justificado, dispensa a sua aplicação in casu para
averiguar se houve realmente um risco de tratamento diferenciado. Em vez disso, o TJ
contentou-se em referir a gravidade das infrações previstas no artigo 2.º, n.º 2 da decisãoquadro. A análise feita por aquele órgão jurisdicional seria, portanto, muito mais convincente
se tivesse sido mais desenvolvida.
A EXECUÇÃO DO MANDATO DE DETENÇÃO EUROPEU
Uma vez analisada a fase inicial da implementação do MDE cabe agora examinar alguns
dos problemas revelados pela aplicação prática do MDE nos anos que se seguiram.
A execução de um MDE e os Direitos Fundamentais.
Relacionada com o princípio do reconhecimento mútuo e da confiança mútua, estão por um
lado, os direitos fundamentais, e, por outro os direitos de defesa.
O princípio do reconhecimento mútuo permite um sistema de aplicação quase automático
das decisões judiciais sobre a entrega de indivíduos. Tal é possível por conta da alegada
existência de confiança mútua. Mas a celeridade do MDE, levanta a questão do equilíbrio que
por vezes pode faltar, entre a aplicação da lei, ou seja, a execução do pedido de entrega, e as
garantias da pessoa visada. Com efeito, no contexto dos procedimentos tendentes à execução
87
Vide, cons. 61 do ac. Advocaten voor de Wereld.
32
Agosto 2016
Nº 1
do MDE vários direitos fundamentais são suscetíveis de serem violados88. De facto de acordo
com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem vários Estados-Membros já
o fizeram.
No que ao lugar que os direitos fundamentais ocupam na decisão-quadro relativa ao MDE
concerne, apesar de não terem sido esquecidos - estes são citados no artigo 1.º, n.º3 e no
preâmbulo daquela decisão-quadro89 - fortes criticas têm surgido contra este texto legal pela
insuficiente consideração pelos mesmos. A inexistência de um motivo de recusa com base em
violação de direitos fundamentais previstos na decisão-quadro relativa ao MDE é
frequentemente apontada como ilustrativo disso memo.
Não obstante, e por essa razão, alguns Estados-Membros optaram por introduzir nas suas
legislações uma “cláusula de exceção” relativa aos direitos fundamentais como motivo de
recusa de execução de um MDE90. Outros, como Portugal e Espanha, assumindo que todos os
Estados-Membros são partes da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e com base no
princípio da confiança mútua consideraram que tal era desnecessário. Ainda assim, e mesmo
naqueles Estados-Membros onde existe um motivo explícito de recusa baseado nos direitos
fundamentais, na prática, é difícil estabelecer a violação ou risco de violação de um direito
fundamental91.
Tal como referenciado por alguns autores, estas diferenças entre os Estados-Membros
apenas vêm enfatizar a proteção desigual de direitos processuais que subsiste em toda a UE
bem como, evidenciar a necessidade que existe de se assegurar o respeito pela proteção
uniforme dos direitos fundamentais a nível comunitário como um meio de promoção da
confiança mútua92. A UE não é alheia à corelação que existe entre a proteção dos direitos
processuais e a garantia da confiança mútua (e consequentemente o reconhecimento das
decisões judiciais). E, prova disso é o conjunto de iniciativas legislativas relativas aos direitos
processuais que foram propostas no “Roadmap on procedural rights”, adoptado em 2009 pelo
Conselho da União Europeia93. Por forma a reforçar a confiança mútua entre os EstadosNeste sentido, SUSIE ALEGRE e MARISA LEAF, “Mutual Recognition in European Judicial
Cooperation: A Step Too Far Too Soon? Case Study—the European Arrest Warrant”, in European Law Journal,
vol. 10, n.º 2, 2004, pp. 206 – 209.
89
Designadamente nos considerandos 12, 13 e 14 da Decisão-Quadro 2002/584/JAI.
90
Fazendo-o ao abrigo do considerando 12 da Decisão-Quadro 2002/584/JAI.
91
SUSIE ALEGRE e MARISA LEAF, “Mutual Recognition in…”, op. cit., pp. 211- 213.
92
Cf., JACQUELINE HODGSON, “Safeguarding suspects” rights in Europe: a comparative
perspective”, in New Criminal Law Review, vol. 14, n.º 4, 2011, p. 56; DANIEL MANSELL – “The European
arrest warrant and defence rights”, in European Criminal Law Review, vol. 2, n.º 1, 2012, pp. 36-46.
93
Conselho da União Europeia, “Procedural rights in criminal proceedings”, Luxembourg, 23 October
2009 14828/09 (Presse 305). Disponível em:
88
33
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Nº 1
Membros, o TJ tem sublinhado repetidamente a obrigação de respeito pelos direitos
fundamentais, mesmo em situações que não se inserem no âmbito do direito da UE94. Por outro
lado, com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa inicia-se um processo de aproximação da
legislação penal e processual penal dos Estados-Membros. A cooperação judicial em matéria
criminal, que inclui aquela aproximação95, fundamenta-se no princípio do reconhecimento
mútuo que agora se encontra expressamente consagrado no artigo 67.º, n.º 3, do TFUE. Ao
reforçar o princípio do reconhecimento mútuo enfatiza-se a importância da promoção da
confiança mútua, fortificando-se o próprio mecanismo do MDE.
No contexto dos sistemas de justiça penal, com pouca aproximação entre as legislações
substantivas e um alto impacto e interferência nas liberdades pessoais, o princípio do
reconhecimento mútuo tem sido aplicado de modo a limitar o controlo jurisdicional. Em Radu96
o TJ esclarece que “segundo as disposições da Decisão-Quadro 2002/584, os Estados-Membros
apenas podem recusar dar execução a tal mandado nos casos de não execução obrigatória
previstos pelo artigo 3.° desta assim como nos casos de não execução facultativa enumerados
nos seus artigos 4.° e 4.°-A”97, referindo igualmente que “antes de decidir entregar a pessoa
procurada para efeitos de procedimento penal, a autoridade judiciária de execução deve exercer
uma certa fiscalização no que respeita ao mandado de detenção europeu.”98. Ou seja, de acordo
com o TJ o controlo jurisdicional deve incidir apenas sobre os motivos de recusa enumerados
na decisão-quadro. Relacionando ainda a decisão-quadro com os Direitos Fundamentais (artigo
47.º e 48.º) e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (artigo 6.º), o TJ entendeu que a
obrigação imposta a um Estado-Membro no sentido de dar aos suspeitos a oportunidade de
serem ouvidos antes da emissão do MDE, era desacelerar e reduzir a eficácia de todo o
mecanismo. Donde, a decisão-quadro 2002/584/JAI, deve ser interpretada no sentido de que as
autoridades judiciárias de execução não podem recusar executar um mandado de detenção
europeu emitido para efeitos de um procedimento penal com o fundamento de que a pessoa
procurada não foi ouvida no Estado-Membro de emissão antes de esse mandado de detenção
http://register.consilium.europa.eu/doc/srv?l=EN&f=ST%2014828%202009%20INIT
94
Veja-se o Acórdão Jeremy F, de 30 de maio de 2013, Processo C-168/13.
95
O art. 82.º, n.º 1 do TFUE, estipula expressamente que “(...) a cooperação judiciária em matéria penal
na União (...) inclui a aproximação das disposições legislativas e regulamentares dos Estados-Membros nos
domínios a que se referem o n.º 2 e o art. 83.º.”
96
Acórdão Radu, de 29 de janeiro de 2013, Processo C-396/11.
97
Cons. 36 do Acórdão Radu.
98
Cons. 42 do Acórdão Radu.
34
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Nº 1
ter sido emitido99. O TJ manteve esta mesma linha de pensamento no acórdão Melloni100. Nesta
decisão aquele órgão jurisdiconal enfatizou, uma vez mais, que os motivos de recusa incluídos
na decisão-quadro são exaustivos. Ou seja, no acórdão Melloni e reportando-se à interpretação
do Tribunal Constitucional Espanhol do direito a um julgamento justo para os julgamentos in
absentia¸ o Tribunal declarou, aludindo ao princípio do reconhecimento mútuo das decisões
judiciais e em virtude de um compromisso comum com o respeito pelos direitos humanos, que
o respeito pelos mesmos dentro o funcionamento do MDE não pode, consequentemente,
conduzir à aceitação de interpretações “á revelia” tal como levada a cabo pelo órgão
jurisdicional espanhol. Para além disso o TJ dispõe que “o artigo 53.º da Carta dos Direitos
Fundamentais da União Europeia deve ser interpretado no sentido de que não permite a um
Estado-Membro subordinar a entrega de uma pessoa condenada sem ter estado presente no
julgamento à condição de a condenação poder ser revista no Estado-Membro de emissão, a fim
de evitar uma violação do direito a um processo equitativo e dos direitos de defesa garantidos
pela sua Constituição”.
Na minha opinião, o TJ andou bem em ambos os acórdãos. Reconhecer um motivo adicional
de recusa desafiando a uniformidade do padrão de protecção dos direitos fundamentais tal como
definido na decisão-quadro, só enfraqueceria a eficácia do mecanismo do MDE e
consequentemente os princípios da confiança e reconhecimento mútuos. Estas soluções do TJ
conjugadas com os esforços em implementar nova legislação a nível europeu relativas aos
direitos processuais101 só podem levar à eficaz e eficiente prevenção de riscos de violação dos
direitos processuais das pessoas sujeitas a um MDE.
A execução de um MDE contra nacionais e residentes.
Juntamente com a remoção da proibição da extradição de cidadãos nacionais, a DecisãoQuadro 2002/584/JAI sobre o MDE atribui alguma relevância à nacionalidade e à residência
como motivo de não execução de um mandado de detenção europeu102.
No contexto da liberdade de circulação e da cidadania europeia, o legislador da UE tem
vindo a confrontar as relações construídas pelos residentes de longa duração num país diferente
daquele de que são nacionais, com o princípio da não discriminação em razão da nacionalidade,
um dos pilares da integração europeia. O TJ também foi confrontado com este problema, nos
99
Cons. 43 e 44 do Acórdão Radu.
Acórdão Melloni, de 26 de fevereiro de 2013, Proc. C-399/11.
101
Veja-se a título de exemplo a Diretiva 2010/64/UE relativa à interpretação e tradução em processo
100
penal.
102
Artigo 4º da Decisão-Quadro 2002/584/JAI.
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Nº 1
acórdãos Kozłowski103, Wolzenburg104 e Da Silva Jorge105. Neste último o TJ introduz limites
à resistência do Estados-Membros em relação à entrega de cidadãos nacionais e refere que a
proteção que é concedida aos cidadãos nacionais – a dita “cláusula de proteção” – também se
estende a não nacionais.
No acórdão Kozłowski, o TJ analisou o artigo 4.º, parágrafo 6, da decisão-quadro
2002/584/JAI, interpretando o conceito de residência e realçando as situações equiparáveis (em
francês “réside ou demeure”). O Tribunal concluiu que «uma pessoa procurada é “residente”
no Estado-Membro de execução quando tiver fixado a sua residência real nesse Estado-Membro
e “encontra-se” aí quando, na sequência de uma permanência estável de uma certa duração
nesse Estado-Membro, criou laços com esse Estado num grau semelhante aos que resultam da
residência».
Em Wolzenburg, voltando a analisar a mesma disposição legal o TJ conclui que “um
nacional de um Estado-Membro que reside legalmente noutro Estado-Membro tem o direito de
invocar o artigo 12.º, primeiro parágrafo, CE contra uma legislação nacional, (...) que fixa as
condições em que a autoridade judiciária competente pode recusar a execução de um mandado
de detenção europeu emitido para efeitos de execução de uma pena privativa da liberdade”.
Mais recentemente, em Da Silva Jorge, tendo em consideração o disposto no artigo 18.º do
TFUE, o TJ julgou que “o artigo 4.º, n.º 6, da Decisão-Quadro 2002/584/JAI (...), e o artigo 18.º
TFUE devem ser interpretados no sentido de que, embora um Estado-Membro possa, no âmbito
da transposição do referido artigo 4.º, n.º 6, decidir limitar as situações nas quais a autoridade
judiciária de execução nacional pode recusar entregar uma pessoa abrangida pelo âmbito de
aplicação desta disposição, não pode excluir de maneira absoluta e automática deste âmbito de
aplicação os nacionais de outros Estados-Membros que se encontram ou residem no seu
território, independentemente dos laços que tenham com este”. Ou seja, a lei nacional que exclui
completamente os nacionais de outros Estados-Membros independentemente do seu grau de
integração na sociedade francesa é contrária ao princípio da não discriminação em razão da
nacionalidade106.
Insistindo no direito à não-discriminação e nos direitos decorrentes da cidadania europeia,
o TJ tem vindo a indicar que o princípio do reconhecimento mútuo (em conjunto com a
confiança mútua) não deve ser considerado como absoluto, como um objetivo em si mesmo.
103
Acórdão Koslowski, de 17 de julho 2008, proc. C-66/08.
Acórdão Wolzenburg, de 5 de outubro de 2009, proc. C-123/08.
105
Acórdão Lopes da Silva, de 5 de setembro de 2012, proc. C-42/11.
106
Cons. 50 Acórdão Da Silva Jorge.
104
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Nº 1
Tal como sucede no mercado interno, de onde este princípio foi importado, a UE deve abraçar
uma visão de “reconhecimento mútuo relativo” abrindo espaço para uma adequada proteção
dos direito fundamentais.
PROPORCIONALIDADE
Tal como já foi referenciado, o MDE foi pensado e adoptado como uma medida de combate
ao crime transnacional grave107.
Sendo o MDE uma decisão judiciária baseada no reconhecimento mútuo (que implica que
os juízes dos Estados-Membros reconhecerão o MDE emitido sem qualquer outra formalidade,
tomando as medidas necessárias para a sua execução), o Estado-Membro requerido não vai
apreciar a decisão do Estado-Membro requerente. Estas especificidades têm levantado alguns
problemas no que ao princípio da proporcionalidade concerne108. Vários relatórios109 têm vindo
a demonstrar que o MDE é recorrentemente utilizado para os ditos crimes menos graves 110. Mas
mesmo nestes casos em que a falta de proporcionalidade possa ser evidente para o EstadoMembro requerido, ainda assim, e pelo que foi dito anteriormente, este não tem outra alternativa
se não a execução do pedido. A existência deste “problema de proporcionalidade” foi já
sinalizada pelas Instituições Europeias111 e pelos Estados-Membros (particularmente o Reino
Unido e os Países Baixos112), reconhecendo-se a importância de uma solução iminente113.
107
Segundo Thomas Hammarberg, Alto Comissário para os Direitos Humanos do Conselho da Europa,
assim deve manter-se já que “the overuse of the EAW is a threat to human rights.”
108
SARAH HAGGENMÜLLER, “The principle of proportionality and the European arrest warrant”, in
Oñati Socio-Legal Series, vol. 3, no. 1, 2013, pp. 95-106. Distingue-se dois tipos de desproporcionalidade: If the
first case refers to situations when the human and financial costs related to the extradition are disproportionate to
the offence, the second consists of cases in which the executing authority deems the sentence imposed by the
issuing state to be disproportionate in relation to the offence.
109
Veja-se designadamente, The European Arrest Warrant in Law and in Practice (estudo que se foca na
aplicação prática do MDE em quatros Estados-Membros, sendo eles Espanha, Itália, Países Baixos e Portugal);
Fair Trials International, “The European Arrest Warrant eight years on – time to amend the Framework Decision?”,
pp. 4-6; e os vários relatórios do Conselho elaborados regularmente em relação a cada Estado-membros em
particular.
110
Casos existem em que um pedido de MDE é emitido por roubo de frangos, porcos, por posse de 0,15
gr de heroína, contrafacção de € 100 ou outros crimes menores. Veja-se: Case of Patrick Connor, no briefing paper
elaborado pela Fair Trials International apresentado a 1 de fevereiro de 2012, The European Arrest Warrant eight
years on – time to amend the Framework Decision?, p. 4, texto disponível em:
http://www.fairtrials.org/documents/EAW_EP_own_initiative_legislative_report.pdf ; Sandru v Government of
Romania, 28 October 2009, [2009] EWHC 2879 (Admin).
111
Council document 10975/07 on the proposed subject for discussion at the experts' meeting on the
application of the Framework Decision on the European arrest warrant on 17 July 2007.
112
Council, Members States' comments on the Commission Report of 2005t, 2 Sept. 2005, Doc. 11528/05.
113
Council document 8302/4/09 REV 4, Final report on the fourth round of mutual evaluations, 28 May
2009.
37
Agosto 2016
Nº 1
A circunstância do uso deste mecanismo para crimes “menos graves”, põe em causa o
funcionamento global do MDE e o próprio significado e propósito para o qual foi concebido.
Acresce que dificulta a construção da confiança mútua entre os Estados-Membros (que implica
a aceitação das diferente ordens jurídicas nacionais europeias) que já de si se tem revelado
difícil de alcançar. Além do mais , cria-se o risco de que os Estados-Membros introduzam
soluções nas suas legislações nacionais, de forma autónoma, o que só iria contribuir para
desvirtuar o mecanismo que pressupõe a cooperação114. Acima de tudo, e ainda no âmbito da
discussão sobre este princípio, é necessário ter-se em consideração que o MDE é de facto uma
valiosa ferramenta para a cooperação transnacional, mas que fere a liberdade individual do
cidadão. Daqui decorre que, o uso desproporcional do MDE pode representar uma ameaça aos
direitos fundamentais do indivíduo visado115.
Reagindo a este problema a Comissão decidiu rever, em 2010, o Handbook on how to
issue a European Arrest Warrant116, sugerindo que as autoridades competentes tenham em
consideração o princípio da proporcionalidade, de acordo com um conjunto de factores
relevantes que são igualmente indicados. Não obstante, estas orientações não são vinculativas.
Outras soluções têm surgido na doutrina. Uma das mais discutidas é a introdução de um teste
de proporcionalidade que seria levado a cabo pela autoridade competente que emite o pedido117.
Por exemplo, alterando-se o artigo 2.º da decisão-quadro onde passaria a ler-se que “um MDE
não pode ser emitido sem que o Estado requerente esteja convencido de que a extradição de um
individuo de outro Estado-Membro é necessária e proporcional” tendo em conta os direitos do
suspeito ou acusado118. Há ainda quem defenda119 a introdução de novos limites ao artigo 2.º,
n.º 1 da decisão-quadro120 ou a introdução de um duplo teste de proporcionalidade. De todas, a
114
Existe o risco real de que os Estados-Membros decidam introduzir autonomamente excepções para a
execução de um MDE baseados no motivo de recusa com base na proporcionalidade, que aliás está já em discussão
no Reino Unido.
115
House of Lords House of Commons Joint Committee on Human Rights, “The Human Rights
Implications of UK Extradition Policy- Fifteenth Report of Session 2010–12”, p. 42, texto disponível em:
http://www.statewatch.org/news/2011/jun/uk-jhrc-uk-usa-extradition.pdf
116
Council, “Follow-up to the recommendations in the final report on the fourth round of mutual
evaluations concerning the European arrest warrant, during the Spanish Presidency of the Council of the
European Union – Draft Council Conclusions”, 28 maio 2010, Doc. No 8436/2/10 REV 2, pp. 3 – 5.
117
Veja-se, LUISA MARIN, “Effective and Legitimate? Learning from the Lessons of 10 Years of
Practice with the European Arrest Warrant (September 11, 2014)”, in New Journal of European Criminal Law,
2014, vol. 5, n.º 3; SARAH HAGGENMÜLLER, “The principle of proportionality…”, op.cit., pp. 95-106.
118
Fair Trials International, “The European Arrest…”, op.cit., p.4.
119
CARRERA, GUILD e HERNANZ, “Europe’s most wanted?”, in CEPS Working Documents, n.º 76,
março de 2013.
120
Na Bélgica foi já introduzido um limite máximo não inferior a dois anos.
38
Agosto 2016
Nº 1
que me parece mais acertada seria a primeira das elencadas, já que é aquela que menos
descaracterizaria o MDE. Contudo, na minha opinião, nem tal deveria ser necessário. Por um
lado porque, resulta da própria finalidade do MDE que este tem como propósito o combate ao
crime transnacional grave. Acresce que, do artigo 2.º, n.º1 da decisão-quadro (relativo ao âmbito
de aplicação do MDE, indicando-se o limiar de natureza quantitativa) resulta já implícito que o
princípio da proporcionalidade tem de ser respeitado. Por outro lado, e seguindo a opinião
expressada pelo órgão judicial superior de Estugarda121, o princípio da proporcionalidade faz
parte das tradições constitucionais comuns do Estados-Membros e é um princípio geral de
direito da União Europeia122. Assim, é de aplicação geral.
Parece-me que a referência expressa a este teste de proporcionalidade, reforçaria a
importância daquele princípio no momento da decisão da emissão e torná-lo-ia talvez mais
“visível”. Mas a verdade é que pelo que resulta acima exposto este já se encontra implícito,
quer na finalidade do MDE quer como princípio geral de direito da União Europeia. Assim, e
partilhando da opinião da autora Sarah Haggenmüller, talvez a solução possa ser encontrada
através da “melhoria das medidas alternativas” já existentes que, na visão da autora, permitem
a acusação por crimes “menos graves” de uma forma menos coerciva123.
JOACHIM VOGEL, “Introduction to the ruling of the Higher Regional Court Stuttgart of 25 February
2010 – the proportionality of a European Arrest Warrant”, in New Journal of European Criminal Law, vol. 1, Issue
2, 2010.
122
Este princípio resulta de várias disposições legais comunitárias: Art. 5.º, n.º4 do TUE, Art. 69.º e 296.º,
n.º1 do TFUE, Art. 49.º, n.º3 e art. 52.º, n.º1 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
123
SARAH HAGGENMÜLLER, “The principle of proportionality…”, op.cit., p. 103.
121
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Nº 1
CONCLUSÃO
Para a Comissão Europeia, o MDE é uma “história de sucesso”: está implementado e é
executado em toda a UE em grande escala. Este mecanismo reduziu a duração dos processos
de entrega entre Estados-Membros, facilitou a livre circulação de pessoas no interior da UE e
contribuiu para o combate à criminalidade transfronteiriça.
No entanto, como amplamente demonstrado pela experiência do mercado interno, o
reconhecimento mútuo pressupõe, e, eventualmente, implica algumas formas de harmonização
para o funcionamento dos próprios regimes de reconhecimento mútuo. Ora, tal ainda não
ocorreu no seio da UE em matéria penal. Em consequência vários problemas têm surgido na
implementação e execução do MDE como foi sublinhado supra, colocando em crise a eficácia
e legitimidade do próprio mecanismo.
Algumas medidas legislativas têm vindo a ser tomadas para reforçar a confiança entre os
Estados-Membros. Acredito que passado o período do período de transição (ou seja, 01 de
dezembro de 2014)124, a implementação do MDE será mais clara.
Apesar das dificuldades e dos problemas associados a esta medida, partilho da opinião da
Comissão. E tal como alguns autores têm vindo a afirmar, ainda que uma reforma seja
necessária tendo em conta todas as contrariedades que têm vindo a surgir desde a sua
implementação, a necessidade de uma ação legislativa da UE deve ser cuidadosamente
ponderada já que existe o risco de um retrocesso, especialmente em relação ao principio do
reconhecimento mútuo, no caso de reabertura das negociações sobre o MDE.
124
Artigo 10.º do Protocolo 36, anexo ao Tratado de Lisboa- Relativo às Disposições Transitórias.
40
Agosto 2016
Nº 1
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44
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Nº 1
SEMI-PRESIDENCIALISMO: SEGURO CONTRA
TODOS OS RISCOS OU VIA ABERTA PARA A
INGOVERNABILIDADE?
Joel ARAÚJO ALVES125
125
Estudante do 3.º ano da Licenciatura em Direito da Universidade do Minho
45
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RESUMO
Neste artigo procurar-se-á evidenciar a vulnerabilidade do sistema de governo acolhido
na Constituição da República Portuguesa – o semi-presidencialismo – à conflitualidade
institucional entre Presidentes da República e Primeiros-ministros em quadros de distonia
política entre a maioria presidencial e a maioria parlamentar que suporta o Governo (maxime,
quando esta última revista carácter meramente relativo); relacionado tal facto com o
paradigmático clima de instabilidade governativa experimentado desde a entrada em vigor da
Lei Fundamental de 1976 – traduzido na formação de 21 governos em cerca de quatro decénios
de constitucionalismo democrático.
Apresentam-se como principais conclusões a necessidade de estabelecer novos e mais
apertados limites aos poderes presidenciais de dissolução da Assembleia da República e de
demissão do Governo; bem assim como de limitar o exercício da função presidencial a um
único mandato de sete anos (sem possibilidade de reelegibilidade do Presidente em funções
para um mandato ulterior) de forma a mitigar a tendência para o exacerbamento da
disfuncionalidade político-institucional supra.
Palavras-chave: semi-presidencialismo; poderes presidenciais; instabilidade política;
dissolução da Assembleia da República; sistema de governo; conflitualidade institucional.
θ. Nota Introdutória
Nos últimos tempos, muito se tem dito e escrito sobre a pretensa conveniência de
rebalancear – ou, quando mais não seja, “clarificar” 126 – a complexa engrenagem de freios e
contra-pesos a que se encontra adstrita a actuação do Presidente da República no quadro
jurídico-constitucional português. Não apenas por força da convicção dogmática, expressa por
algumas correntes da doutrina, de que a apreciável margem
de conformação
constitucionalmente conferida ao Chefe de Estado no que concerne à interpretação e pósexercício das suas competências com mais vincada repercussão no hodierno político (maxime,
126
V. LOPES, Pedro Santana - Pecado original: O choque constitucional entre Belém e São Bento. 1. ª Edição.
Alfragide: Leya, 2013. Pp. 257 e 265.
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Nº 1
a faculdade de dissolução da Assembleia da República127) tem contribuído sobremaneira para
a instrumentalização da “função moderadora” do Presidente da República para fins de natureza
marcadamente político-partidária e/ou estratégico-pessoal, gerando um clima de permanente
incerteza e disfuncionalidade entre os primaciais pólos de poder político formalmente inscritos
na Constituição128; mas outrossim, pela evidência empírica de que, sobretudo no panorama
europeu, os sistemas de matriz semi-presidencialista somente se desvelaram promotores de
estabilidade política e governabilidade quando, na prática, se assistiu à prevalência de uma das
suas clássica sub-componentes – ou, mais exactamente, quando se definiu aquele que era o
órgão preponderante dentro da arquitectura político-institucional do sistema129.
Com efeito, no quadro daquela que tem vindo a ser, com relativa pacificidade,
classificada como a “mais vasta e complexa de todas as constituições portuguesas” 130, torna-se
inelutável explicitar, com o devido rigor técnico-jurídico, qual o papel de facto – e de direito –
assumido pelo mais alto magistrado da nação no xadrez político nacional: i) se o de mero
«árbitro» apaziguador de conflitos entre o Parlamento e o Governo; detentor de uma
importância estritamente formal para a garante do regular funcionamento das instituições
democráticas; ii) ou se, pelo contrário, de verdadeiro «jogador», titular de um apreciável elenco
de “poderes informais”131 (v.g, a influência mediática), passíveis de condicionar a agenda
política do país e, por maioria de razão, envasilhar, em larga medida, a chamada “capacidade
decisória” do governo”
132
- mormente, quando este represente um quadrante político-
ideológico que lhe seja oposto133.
Ora, naturalmente, a resposta a tão melindroso dilema tem-se revelado tudo menos
uníssona nos meandros da literatura jurídico-constitucional, servindo, ao invés, como mote à
revitalização da «eterna» querela entre aqueles que advogam uma quasi presidencialização do
sistema de governo perfilhado na Grund Norm portuguesa, designadamente, através do reforço
das competências presidenciais em domínios como a defesa e a política externa134; e os que, a
127
Cfr. artigos 133.º, e) ; 145.º, a) e 172.º da Constituição da República Portuguesa.
Nesse sentido, cfr. LOPES, Pedro Santana. Ob, cit., p. 259.
129
Ibidem, p. 255.
130
V. MIRANDA, Jorge – A Constituição e a Democracia Portuguesa, p.2. [Consultado em: 7 de Dezembro de
2015]. Disponível em:http://www.25abril.org/a25abril/docs/congresso/democracia/01.01-Jorge%20Miranda.pdf.
131
V. LOMBA, Pedro - "O problema da «intriga» no sistema de governo da Constituição". In A Constituição
Revista Um e-book da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Lisboa: FFMS, 2011. P.90.
132
V. LOBO, Marina Costa – “Organização Política”. In A Constituição Revista: um e-book da Fundação
Francisco Manuel dos Santos. Lisboa: FFMS, 2011. P. 84.
133
Idem, ibidem.
134
A este respeito, revestiu especial notoriedade a querela de Mário Soares (Presidente da República) e Cavaco
Silva (Primeiro-ministro) em torno da interpretação dos limites a que se encontravam adstritas as competências
128
47
Agosto 2016
Nº 1
contrario, defendem a racionalização dos “supremos poderes de arbitragem”135 de que o Chefe
de Estado dispõe, urgindo a uma gradual aproximação do sistema português aos modelos de
matriz parlamentar-racionalizada.
Nesse sentido, e a fim de não sucumbir à falaciosa dialéctica daqueles que arrojam fazer
da problemática em escrutínio uma questão, ora de recortes puramente técnico-jurídicos, ora de
decifre escrupulosamente político-sociológico; é mister ter presentes não apenas os limites
jurídico-constitucionais que acomodam o exercício da função presidencial no quadro do sistema
de governo português; como também, averiguar até que ponto a extensão dessas mesmas
«balizas» se demonstra – ou não – restringida ou amplificada em função das relações políticoinstitucionais pós-firmadas entre “os corpos executivos” e o “corpo legislativo” no decurso dos
respectivos mandatos136.
De todo o modo, não parecem de somenos as seguintes interrogações: serão as
disposições constitucionais (muito particularmente, as referentes ao modo como se estruturam
e inter-relacionam os diferentes órgãos de poder político que encontram expressão formal na
Constituição da República Portuguesa137) o factor-chave para a definição do protagonismo a
assumir pelo Presidente da República num sistema de governo «quimicamente» análogo ao
Português? Ou terá, por hipótese, o perfil político do Presidente, indissociável da forma como
o mesmo tenderá a interpretar e pós-exercer as competências que lhe forem constitucionalmente
outorgadas; uma relevância tão ou mais significativa para a demarcação dos limites materiais –
e não meramente formais – do próprio sistema138? Numa palavra: poderá o papel do Chefe de
do Chefe de Estado nos domínios supra-referidos, quando da coabitação entre ambos. Sobre o tema, cfr., entre
outros, VIEIRA, Joaquim – Mário Soares: uma vida. 1.ª Edição. Lisboa: Esfera dos Livros, 2013. Pp. 647 e segs.
135
V. FRAIN, Maritheresa - Relações entre o Presidente e o primeiro-ministro em Portugal: 1985-1995, p. 654.
[Consultado em: 7 de Dezembro de 2015]. Disponível em:
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136
Nesse sentido, cfr., entre outros, LOPES, Pedro Santana. Ob, cit., p. 25.
137
Neste artigo, seguir-se-á a delimitação jurídico-conceptual proposta em SOUSA, Marcelo Rebelo de –
Sistema semi-presidencial: definição e perspectivas; p.7. [Consultado em: 7 de Dezembro de 2015]. Disponível
em: http://comum.rcaap.pt/bitstream/10400.26/3556/1/NeD03_MarceloRebeloSousa.pdf ; segundo a qual o
conceito de sistema de governo quadrará com a “forma como se estruturam os órgãos do poder soberano do
Estado, envolvendo o elenco desses órgãos, a designação dos seus titulares, as suas atribuições e competências, o
seu modo de funcionamento, e muito particularmente a sua inter-relação”.
138
A este respeito, defendeu Mário Soares, Presidente da República Portuguesa entre 1986 e 1996: “Nunca me
queixei de ter falta de poderes presidenciais. Acho que o poder do presidente depende exclusivamente da sua
personalidade e da sua pessoa. Se o presidente for uma autoridade, se for respeitado e for uma pessoa inteligente,
e se souber manejar as coisas, tem todos os poderes do mundo e mais alguns”. E prosseguiu: “As fiscalizações
preventivas de constitucionalidade dos diplomas, os vetos, a magistratura de influência, usada discretamente,
mas com alguma eficácia, as presidências abertas, as palavras deixadas cair oportunamente, ou certas omissões e
silêncios pesados... Tudo isso são formas de exercer os poderes que a Constituição confere ao presidente”. Cfr.,
VIEIRA, Joaquim. Ob, cit., p. 582.
48
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Nº 1
Estado num sistema semi-presidencialista ser determinado mais por variáveis de ordem
exogénea (v.g., a relação de sintonia ou distonia política verificada entre a maioria parlamentar
que suporta o governo e a maioria presidencial139) do que pelos próprios preceitos jurídicoconstitucionais que servem de sustentáculo a este tipo de sistema?
Neste artigo, procurar-se-á, descortinar resposta para estas e muitas outras questões,
esquadrinhando a existência de um eventual nexo de causalidade entre i) o paradigmático clima
de instabilidade governativa experimentado, em Portugal, desde a entrada em vigor da Lei
Fundamental de 1976 (consubstanciado na formação de 21 governos em menos de quatro
decénios de constitucionalismo democrático); e ii) as fragilidades imanentes ao sistema de
governo acolhido pelo legislador constituinte; com vista a suportar a tese de que o semipresidencialismo, quando não assente numa praxis político-institucional sólida (conforme se
verifica, v.g., i) em França, onde o Presidente tem vindo a assumir-se como a figura central do
respectivo xadrez político; ii) ou, num plano avesso, em países como a Irlanda, a Islândia, ou a
Áustria, nos quais o Chefe de Estado se tem remetido a um papel secundário na mecânica do
sistema140); se demonstra, tal como oportunamente havia diagnosticado Juan Linz, sobejamente
propício a fenómenos de “politicagem e intrigas que retardam o processo de decisão e
conduzem a políticas contraditórias devido à oposição entre presidentes e primeirosministros”141.
1. Da qualificação jurídico-constitucional do sistema de governo português
Num artigo publicado, em 1980, no European Journal of Political Research, numa
tentativa de caracterizar a mecânica jurídico-constitucional pré-estabelecida nos sistemas de
governo de sete países europeus (a saber, a Áustria, a Finlândia, a França, a Islândia, a Irlanda,
e Portugal; bem assim como a Alemanha, durante a efémera e malograda empreendida entre
1919 e 1933, sob a égide da constituição de Weimar142); Maurice Duverger, definiu o semipresidencialismo
como
uma
espécie
de
fórmula
intermédia
da
clássica
díade
parlamentarismo/presidencialismo na qual se cumulariam os seguintes traços-estruturantes: i)
eleição do Presidente da República por sufrágio universal; ii) concessão ao Chefe de Estado de
consideráveis poderes; iii) coexistência de um Primeiro-Ministro e restantes membros do
Cfr., entre outros, MORAIS, Carlos Blanco – “Parte III da Constituição da República: Semipresidencialismo
«on probation»?”. In A Constituição Revista: um e-book da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Lisboa:
FFMS, 2011. P. 65.
140
Sobre a praxis presidencial nos países supra, cfr., entre outros, LOPES, Pedro Santana. Ob, cit., pp. 26-38.
141
V. LINZ, Juan, Cit. por LOMBA, Pedro. Ob, cit., p. 87.
142
Cfr., entre outros SOUSA, Marcelo Rebelo de. Ob, cit., p. 10.
139
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Nº 1
Governo cujo exercício dos poderes executivos e governamentais se encontraria sujeito à
fiscalização do Parlamento143; especificidades essas, que o converteriam numa solução
juspolítica bastante apelativa, mormente, para sociedades recém-saídas de regimes
autoritários/ditatoriais, nas quais as respectivas instituições democráticas ainda se encontravam
longe de plenamente consolidadas144.
Deste molde, não parece árduo depreender que, em Portugal, a optação do legislador
constituinte por este sistema de governo de matriz ecléctica visou responder não apenas a
motivações de ordem histórico-cultural (maxime, as carreadas pelas más-experiências
vivenciadas, ora com o parlamentarismo durante a 1.ª República, ora com o modelo
«presidencialista» instituído sob a vigência do Estado Novo145); como também – e sobretudo –
aos próprios circunstancialismos introduzidos pela correlação de forças estabelecida entre a
sociedade civil, os partidos políticos, e o poder militar no seguimento da «Revolução dos
Cravos», tendo como primaciais desígnios:146
i)
Restaurar o protagonismo assumido pelo Parlamento no cosmos político, muito
particularmente, através do restabelecimento da “dimensão parlamentar da
responsabilidade do Governo perante a assembleia”147; com vista a mitigar a tendência
para os “excessos de concentração e pessoalização do poder” típicos do
Presidencialismo148;
ii)
Reinstituir a eleição directa do Presidente da República, indo de acordo aos anseios
desvelados por uma sociedade sequiosa de participação política149; e, simultaneamente,
contrabalançando a potencial entropia de um Parlamento fundado sobre uma dinâmica
V. DUVERGER. Maurice - "A new political system model: semi‐presidential government”. In European
Journal of Political Research. Vol.8, N.º 2, 1980.
144
Em sentido afim, cfr. LOPES, Pedro Santana. Ob, cit., p. 254.
145
Cfr., entre outros, CRUZ, Manuel Braga da - O Presidente da República na génese e evolução do sistema de
governo português: 1985-1995; p. 203. [Consultado em: 7 de Dezembro de 2015]. Disponível em:
http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1223301924C0eCB7zr4Zj67VU4.pdf .
146
Para uma mais profunda análise sobre as origens do semi-presidencialismo português cfr., entre outros,
CRUZ, Manuel Braga da. Ob, cit., pp. 237-265; BAYERLEIN, Bernhard H. – Origens bonapartistas do
semipresidencialismo português, pp. 803-830. [Consultado em: 8 de Dezembro de 2015]. Disponível em:
http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1223395949O6eMB5cf2Vf17DB7.pdf ; PINTO, António Costa, e
FREIRE, André – O poder presidencial em Portugal. 2.ª Edição. Alfragide: Leya, 2010. Pp. 47-49.
147
V. CANOTILHO, José Joaquim e MOREIRA, Vital – Constituição da República Portuguesa anotada –
Volume II - Artigos 108.º a 296.º. 4.ª Edição (Reimpressão). Coimbra: Coimbra Editora, 2014.
148
Cfr., entre outros, CANAS, Vitalino, Cit. por PINTO, António Costa e FREIRE, André. Ob, cit., p. 49. e
ARAÚJO, António de, Cit. por PINTO, António Costa e FREIRE, André. Ob, cit., p.49.
143
149
V. CRUZ, Braga da. Ob, cit., Pág. 239.
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partidária ainda bastante frágil, muito em parte, por força da imperativa conformidade
a um modelo de representação político-eleitoral que, como tão bem recorda Manuel
Braga da Cruz, “se exigia proporcional”150.
Como quer que seja, resulta inequívoca a classificação do sistema de governo acolhido
na Constituição de 1976 como semi-presidencialista (ou, no dizer de J.J. Gomes Canotilho,
como sistema «misto» parlamentar-presidencial151), na medida em que:152
i)
o Presidente da República é, nos termos do número 1 do artigo 121.º da Constituição da
República Portuguesa (CRP), eleito por sufrágio directo, universal e secreto dos
cidadãos portugueses eleitores recenseados no território nacional, bem assim como dos
cidadãos portugueses residentes no estrangeiro;
ii)
o Primeiro-Ministro (que propõe, nos termos do número 2 do artigo 187.º da CRP, os
restantes membros do Governo ao Chefe de Estado) é nomeado pelo Presidente da
República tendo em conta os resultados das eleições legislativas, e ouvindo
obrigatoriamente os partidos representados na Assembleia da República153;
iii)
o Governo é, nos termos dos artigos 190.º e 191.º da CRP, responsável perante o
Presidente da República e perante a Assembleia da República, o que se traduz:
 na sujeição do programa do Governo ao escrutínio do Parlamento, implicando a sua
rejeição por maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções a demissão
deste (cfr. artigos 192.º e 195.º, n.º1, d) da CRP);
 na susceptibilidade de a “Assembleia da República pode[r] votar moções de censura
ao Governo sobre a execução do seu programa ou assunto relevante de interesse
nacional, por iniciativa de um quarto dos Deputados em efectividade de funções ou
de qualquer outro grupo parlamentar”, resultando da sua aprovação por maioria
absoluta dos deputados em efectividade de funções a queda do executivo (cfr. artigos
194.º e 195.º, n.º1, f) da CRP);
150
Idem, ibidem.
V., CANOTILHO, José Joaquim Gomes - Direito Constitucional e Teoria Da Constituição. 7.ª Edição.
Coimbra: Almedina, 2010. Pp. 591 e segs.
151
152
Sobre as particularidades do sistema de governo português, cfr., entre outros, SOUSA, Marcelo Rebelo de.
Ob, cit. Pág. 11 e segs.
153
Cfr. número 1 do artigo 187 da CRP.
51
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 na demissão do Governo em face da não aprovação de uma moção de confiança, nos
termos dos artigos 193.º e 195.º, n.º1, f) da Lei Fundamental;
 na possibilidade de o Presidente da República demitir o governo sempre que
considere que tal se afigura estritamente necessário para assegurar “o regular
funcionamento das instituições democráticas” (cfr. alíneas g) do artigo 133.º e b) do
artigo 145.º; bem assim como o artigo 195.º, n.º 2 da CRP);
iv)
o Presidente da República dispõe de um apreciável leque de poderes, dos quais avultam:
 a possibilidade de dissolver a Assembleia da República, no respeito pelos limites
temporais e circunstanciais estabelecidos no artigo 172.º da CRP; após prévia
audição dos partidos nela representados e do Conselho de Estado (cfr., alínea e) do
artigo 133.º e alínea a) do artigo 145..º da Lei Fundamental);
 o direito de vetar diplomas do Governo e da Assembleia da República por razões de
mérito ou oportunidade política, nos termos do artigo 136.º da CRP154;
 a nomeação do primeiro-ministro e a demissão do governo, nos termos pré-aludidos;
 a susceptibilidade de requerer ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva
de constitucionalidade de qualquer norma constante de tratado internacional que lhe
tenha sido submetida para ratificação, de decreto que lhe tenha sido enviado para
promulgação como lei ou como decreto-lei ou de acordo internacional cujo decreto
de aprovação lhe tenha sido remetido para assinatura (cfr. número 1 do artigo 278.º
da Lei Fundamental da República);
 uma multíplice de poderes que J.J. Gomes Canotilho classifica como de
“exteriorização política”, e de entre os quais se releva a possibilidade de o Chefe de
154
Respalde-se, não obstante, que nos termos do pré-referido artigo, enquanto o veto político do Presidente
reveste carácter absoluto/definitivo relativamente a diplomas do Governo, ficando este último compelido, após a
consumação do mesmo, i) a desistir do diploma ou ii) re-formulá-lo de acordo com as directrizes propostas pelo
Chefe de Estado; o mesmo adquire uma eficácia meramente relativa/suspensiva no que respeita a diplomas da
Assembleia da República, podendo ser ultrapassado acaso o Parlamento re-aprove o mesmo, sem quaisquer
alterações, por maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções (regra geral) ou por maioria de dois
terços dos deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções,
na eventualidade de o mesmo revestir a forma de lei orgânica ou versar sobre alguma das matérias elencadas no
número 3 do artigo em apreço, a saber: a) relações externas; b) limites entre o sector público, o sector privado e o
sector cooperativo e social de propriedade dos meios de produção; c) regulamentação dos actos eleitorais
previstos na CRP que não revistam a forma de lei orgânica. Como quer que seja, uma vez confirmada a
aprovação, no Parlamento, de determinado diploma previamente vetado por motivos estritamente relacionados
com o seu mérito ou oportunidade política, ficará o Presidente vinculado a promulga-lo no prazo de oito dias
após a verificação das formalidades supra.
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Estado dirigir à Assembleia da República, em sessão solene, mediante o convite e
assentimento desta, mensagens que, em função do conteúdo, “podem assumir relevo
próximo da «direcção política»”, v.g., quando contenham “críticas ou censuras a
actos ou comportamentos de outros órgãos constitucionais” ou quando sugiram
“directivas políticas referentes à agenda destes mesmos órgãos”155 (cfr. artigo 133.º,
d) da Lei Fundamental).
3. Da praxis político-institucional portuguesa
Como se verifica, resulta teoreticamente pacífica a qualificação do sistema de governo
português – e, ipso facto, do semi-presidencialismo - como um “sistema de dupla legitimidade
directa e universal e de dupla responsabilidade para o Governo”156. Não obstante, e uma vez
que, conforme têm respaldado autores como Santana Lopes, o semi-presidencialismo não
obedece a um modelo “hermético e único”, assumindo contornos quase diametralmente opostos
em função da prática político-institucional imperante no território em que se corporiza157, não
parecem de somenos as seguintes interrogações: será possível descortinar a existência de
uma praxis presidencial uniforme, em Portugal, desde a entrada em vigor da Lei
Fundamental de 1976? Ou terá, por hipótese, na linha do que tem defendido Manuel Braga
da Cruz, a praxis portuguesa “oscilado entre uma mais apagada e uma mais visível presença do
Presidente da República” no xadrez político, pese embora a inexistência de alterações jurídicoconstitucionais substanciais na arquitectura do sistema158? Numa palavra: será possível, no caso
português, identificar a prevalência de uma das clássicas sub-componentes do semipresidencialismo – a parlamentar e a presidencial – face à sua homóloga?
Ora, numa primeira análise, poderá argumentar-se que sim, na medida em que,
efectivamente, a praxis nacional tem pendido, sobretudo após o término do duplo mandato
presidencial de Ramalho Eanes (1976-86), para o esbatimento do papel desempenhado pelo
Presidente da República no xadrez político-institucional; limitando-se o Chefe de Estado, salvo
em raríssimas circunstâncias, ao exercício de funções notariais decorrentes das suas
incumbências de i) velar pelo cumprimento da constituição e ii) assegurar o regular
155
V. CANOTILHO, José Joaquim Gomes - Direito Constitucional e Teoria Da Constituição. 7.ª Edição.
Coimbra: Almedina, 2010. P. 627.
156
V. CRUZ, Manuel Braga da. Cit. por LOPES, Pedro Santana. Ob, cit., p. 24.
V. LOPES, Pedro. Ob, cit., pp. 25 e segs.
158
Idem, ibidem.
157
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funcionamento das instituições democráticas159. Todavia, e mediante uma mais rigorosa análise
sobre o modo como os diferentes presidentes interpretaram e pós-exerceram os respectivos
poderes constitucionais, desde os primórdios do constitucionalismo democrático, facilmente se
compreende que, em rigor, tal raciocínio enferma de algumas fragilidades. Senão como
justificar o ascendente político de Mário Soares no seu segundo mandato (1991-96) após um
primeiro (1986-91) essencialmente marcado por um “intervencionismo moderado”
160
no
xadrez político-institucional161? Mais: como fundamentar a substancial discrepância
imputável à actuação política de Jorge Sampaio relativamente aos governos liderados, numa
primeira fase, por António Guterres, e numa fase ulterior, por Durão Barroso e por Pedro
Santana Lopes? E de Cavaco Silva face aos executivos chefiados, por um lado, por José
Sócrates, e por outro, por Pedro Passos Coelho?
Deste molde, parece afastada a hipótese da eventual existência de uma praxis
presidencial uniforme desde a entrada em vigor da Lei Fundamental da República; podendo,
não obstante, afirmar-se que o maior ou menor protagonismo assumido pelo Presidente da
República no xadrez político-institucional tem sido determinado, essencialmente:
i)
Pelo facto de o Chefe de Estado em funções se encontrar no decurso do seu primeiro ou
segundo mandato; sendo, neste âmbito, importante aludir que a tradição eleitoral
portuguesa tem decorrido no sentido de o mesmo Chefe de Estado exercer dois
mandatos consecutivos, legitimados e pós-renovados nas urnas (assim com Ramalho
Eanes, Mário Soares, Jorge Sampaio e Cavaco Silva);
ii)
Pela composição da maioria (absoluta ou relativa) que sustenta o Governo na
Assembleia da República; bem como da relação de identidade (confluência) ou de
distonia (coabitação) política estabelecida entre a mesma e a maioria presidencial162.
Assim, pode dizer-se que:
i)
Em regra, o Chefe de Estado tende a assumir um papel bastante mais proactivo no
segundo mandato do que no primeiro (cfr., v.g., o exercício do poder de dissolução
159
Cfr., entre outros, artigos 120.º e 127.º da CRP.
V. CRUZ, Manuel Braga da. Ob, cit., p. 257.
161
Nesse sentido, cfr., entre outros, CRUZ, Manuel Braga da. Ob, cit., pp. 253-262.
162
Nesse sentido, cfr., entre outros MORAIS, Blanco de. Ob, cit., pp. 65; CRUZ, Manuel Braga da. Ob, cit., pp.
265.
160
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da Assembleia da República por parte dos diferentes presidentes do período
democrático-constitucional português, sintetizado no quadro infra); o que se pode
justificar, numa primeira análise, pelo facto de o mesmo já não se encontrar
condicionado pelos resultados a obter em eleições vindouras163; bem assim como pela
ânsia de colher protagonismo, de molde a sementar as bases para eventuais projectos de
índole político-partidária (cfr., com especial enfoque, a criação do Partido Renovador
Democrático por parte de Ramalho Eanes164) ou tão-só, sedimentar o seu legado na
história política nacional;
Presidente
Mandato
Primeiro
Segundo
Ramalho Eanes
1
2
Mário Soares
1
0
Jorge Sampaio
0
2
Cavaco Silva
0
1
Total
2
5
Quadro 1: Comparação do exercício do poder de dissolução da Assembleia da República entre os primeiros e segundos
mandatos de Ramalho Eanes, Mário Soares, Jorge Sampaio e Cavaco Silva
ii)
o Presidente da República tende a assumir um papel mais interventivo quando
confrontado com a existência de governos sustentados numa maioria parlamentar
relativa e/ou representante de quadrantes político-ideológicos que lhe sejam
opostos (cfr., v.g., o exercício do poder de dissolução da Assembleia da República, por
parte dos diferentes presidentes do período democrático-constitucional português,
sintetizado no quadro abaixo165).
163
Recorde-se, a este propósito, que nos termos do número 1 do artigo 123.º da CRP, o titular do cargo de
Presidente da República se encontra limitado a um máximo de dois mandatos consecutivos, não sendo
expectável uma eventual candidatura de um ex-Chefe de Estado a qualquer outro cargo político, visto que tal se
consubstanciaria numa espécie de despromoção política.
164
Sobre a génese do Partido Renovador Democrático e as vicissitudes do duplo mandato presidencial de
Ramalho Eanes, cfr., entre outros, VIEIRA, Joaquim. Ob, cit., pp. 456 e 548.
165
Por uma questão de rigor jurídico-político, não se procederá, neste quadro, à contabilização da dissolução
parlamentar levada a cabo por Ramalho Eanes, em 1979, maxime, pelo facto de a mesma ter sido efectuada no
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Relação entre a maioria presidencial e a maioria que suporta o
Quadro parlamentar em
Governo na Assembleia da República
que se sustenta o Governo
Sintonia Política
Distonia Política
(Coexistência)
(Coabitação)
Ramalho Eanes (1983)
Maioria Absoluta
-
Ramalho Eanes (1985)
Jorge Sampaio (2004)
Maioria Relativa
Jorge Sampaio (2001)
Total
1
Mário Soares (1987)
Cavaco Silva (2011)
5
Quadro 2: Comparação do exercício do poder de dissolução da Assembleia da República, por parte dos diferentes Presidentes
da República do período democrático-constitucional português, em função da relação estabelecida entre a maioria presidencial
e a maioria que suporta o Governo na Assembleia da República, por um lado; e da natureza (relativa ou absoluta) da maioria
parlamentar, por um outro.
Posto isto, não parece árduo coligir-se, com Manuel Braga da Cruz, que “os poderes
reais do Presidente (...) variam efectivamente com as relações [estabelecidas] entre o governo
e o parlamento”
166
; dependendo a sua maior ou menor amplitude da conjugação de uma
multíplice de factores, não só de ordem conjuntural como sistémica, que trespassam, em larga
medida, a «letra» das disposições constitucionais que abalizam as competências do Chefe de
Estado no quadro político-institucional português. Todavia – e avançando, sem mais delongas,
para o busílis deste artigo -, será possível deslindar um nexo de causalidade entre i) o exercício
da função presidencial em cenários de distonia política entre a maioria parlamentar que suporta
o governo e a maioria presidencial e ii) o pré-aludido clima de instabilidade governativa
experimentado, em Portugal, desde o estabelecimento de um sistema de governo semipresidencialista, com a Lei Fundamental da República de 25 de Abril de 1976?
Ora, para devidamente arriscar solução para tão complexo «quebra-cabeças», não
parece de somenos «rebobinar as cassetes» e passar em revista o relacionamento dos diferentes
Presidentes da República do período democrático-constitucional português com as distintas
maiorias parlamentares/governativas que se lhes opuseram, em cenários de sintonia políticoideológica, por um lado, e de distonia, por um outro.
quadro da vigência de um Governo de iniciativa presidencial, chefiado por Maria de Lourdes Pintassilgo e, por
isso, sem nenhuma correlação directa com a maioria parlamentar existente.
166
V. CRUZ, Manuel Braga da. Ob, cit., p. 265.
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Assim:
 A “coabitação” entre Ramalho Eanes e as diferentes maiorias governativas que se lhe
«opuseram» (maxime, as chefiadas por Mário Soares e Sá Carneiro167) revelou-se, salvo
raras excepções, tumultuosa; como bem ilustram a formação de nove governos
constitucionais (três deles, de iniciativa presidencial), durante o duplo mandato do General
(1976-1986); bem assim como a criação de uma força político-partidária “eanista”,
opositora ao Partido Socialista e ao Partido Social Democrata – o Partido Renovador
Democrático – logo após o término da sua Presidência;
 A relação de Mário Soares e Cavaco Silva (1986-1996), embora relativamente pacífica
numa primeira instância (1986-87), rapidamente se deteriorou por força da “estratégia do
então Presidente para entorpecer reformas e debilitar o governo de forma a beneficiar o
regresso ao poder do PS”168; mormente, através da organização de «Presidências Abertas»
de pendor manifestamente político-partidário, da ameaça de dissolução da Assembleia da
República, e do estímulo à contestação popular ao Governo recém-formado pelo PSD,
“através do «direito à indignação”169;
 A “coabitação” entre Jorge Sampaio e os executivos liderados, numa primeira fase por
Durão Barroso, e num segundo momento por Pedro Santana Lopes170, culminou em
«divórcio», “tendo o Presidente dissolvido o parlamento depois de colocado um governo
apoiado por uma maioria parlamentar absoluta «sob tutela»171;
 A “coabitação” entre Cavaco Silva e José Sócrates, ainda que se desvelando mais cordial
do que as supra-referidas, não deixou de passar por alguns momentos de alta-tensão,
sobretudo, no rescaldo do escândalo das «escutas em Belém»; terminando com a
dissolução da Assembleia da República, em Abril de 2011;
Neste sentido, cfr., entre outros, PINHEIRO, Miguel – Sá Carneiro. 3.ª Edição. Lisboa: Esfera dos Livros,
2010, p. 467 e segs.; VIEIRA, Joaquim. Ob, cit., pp. 405 e segs.
168
V. Morais, Blanco de. Ob, cit., pp. 66-67.
169
Idem, ibidem. Para uma mais aprofundada análise sobre a coabitação entre Mário Soares e Cavaco Silva, cfr.,
ainda, VIEIRA, Joaquim. Ob, cit., pp. 647-674.
167
170
Recorde-se, a este propósito, que José Manuel Durão Barroso apresentou, em Julho de 2004, a demissão do
cargo de Primeiro-Ministro, em face da sua designação para a Presidência da Comissão Europeia, tendo o
Presidente da República, após a auscultação das forças político-partidárias representadas no parlamento e do
Conselho de Estado, nomeado Pedro Santana Lopes como líder do XVI Governo Constitucional Português.
171
V. MORAIS, Blanco de. Ob, cit., p. 67.
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 Em quadros de “confluência” “o exercício dos poderes presidenciais foi marcado pela
escassa relevância do Presidente que se resumiu a funções «notariais» (...) que libertaram
a acção política dos governos” 172 (assim com Jorge Sampaio e António Guterres; Jorge
Sampaio e José Sócrates; e Cavaco Silva e Passos Coelho).
4. Conclusões
Como se verifica, resulta evidente a vulnerabilidade do sistema de governo
português à conflitualidade institucional entre Belém e São Bento em quadros de distonia
política entre a maioria presidencial e a maioria parlamentar em que se suporta o
Governo, maxime, quando da vigência de Governos minoritários173. Todavia, será tal
constatação suficiente para, de per se, respaldar a tese de que o semi-presidencialismo se
demonstra mais vulnerável à instabilidade política do que os sistemas clássicos (muito
particularmente, o parlamentarismo de matriz britânica)174? Mais: será legítimo argumentar, na
linha de Pedro Santana Lopes, que, em Portugal, a disfuncionalidade do semi-presidencialismo
nas circunstâncias supra se tem assumido como um dos primaciais obstáculos ao
desenvolvimento económico e social da nação175?
Ironicamente, não parecem quedar dúvidas de que sim. Afinal, e conquanto os
defensores do semi-presidencialismo continuam a advogar que “as tensões entre presidentes e
primeiros-ministros (...) traduzem uma faceta construtiva do sistema permitindo uma espécie
de vigilância mútua e crítica entre os [diferentes] órgãos [de poder político consignados na
CRP] a verdade é que, aquilo que teoreticamente se pré-apresentara como um brilhante
mecanismo de checks and balances, se tem revelado, do ponto de vista prático, não mais do
que um sub-refúgio jurídico para a subalternização da instituição presidencial aos interesses
político-estratégicos de um Chefe de Estado que se exigira detentor de um verdadeiro estatuto
supra-partidário no quadro da arrumação político-institucional do sistema e, por maioria de
razão, politicamente neutro na óptica do relacionamento com os demais pólos políticoconstitucionais.
172
Idem, ibidem.
Nesse sentido, cfr., entre outros, MORAIS, Blanco de. Ob, cit., pp. 66-67.
174
Nesse sentido, cfr. LOBO, Marina Costa. Ob, cit., p. 82.
175
Nesse sentido, cfr. LOPES, Pedro Santana. Ob, cit., pp. 255-256.
173
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Sendo assim, e na inexistência de uma praxis institucional passível de apontar, de forma
suficientemente precisa, qual o papel efectivamente reservado ao Presidente da República no
xadrez político nacional (contrariamente ao que se verifica na vasta maioria dos sistemas semipresidencialistas europeus, onde a margem de actuação do Chefe de Estado se encontra
consuetudinariamente bem-definida e abalizada176); parece pacífico que a solução mais
aprazível para o esbatimento de tamanha incerteza, geradora de instabilidade política e
disfuncionalidade institucional, passaria pela reformulação das disposições relativas à chamada
“parte organizatória” da CRP, muito particularmente, através da imposição de novos e mais
apertados limites aos poderes presidenciais de dissolução da Assembleia da República e de
demissão do Governo.
Para tanto, uma nova redacção do artigo 133.º e) da CRP poderia contemplar a
existência de um parecer favorável do Conselho de Estado como requisito para o exercício
do poder de dissolução por parte do Presidente da República; passando este a revestir
carácter não só obrigatório como vinculativo para o Chefe de Estado177; ao mesmo tempo que
a dúbia e enigmática exigência prescrita no artigo 195.º, nº 2 da CRP para a demissão do
Governo (“O Presidente da República só pode demitir o governo quando tal se torne necessário
para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas”) deveria ser densificada
ou, em última análise, substituída por uma outra de cariz mais restritivo e estritamente
relacionada com a necessidade de formação de um executivo que ofereça melhores condições
de estabilidade política e governabilidade178.
Não obstante, existem igualmente uma série de outras medidas que poderiam facilitar,
em larga medida, a concretização dos desígnios supra-referidos, como sejam i) a limitação do
exercício da função presidencial a um único mandato de sete anos (sem possibilidade de
176
Nesse sentido, cfr., entre outros, LOPES, Pedro Santana. Ob, cit., pp. 26-38.
Note-se que, conquanto tal sugestão possa ser aventada como uma re-aproximação à versão originária da
CRP, na qual o exercício do poder de dissolução parlamentar se encontrava, nos termos da alínea e) do artigo
136.º, dependente da pré-existência de um parecer favorável do Conselho de Revolução (ainda que tal parecer só
fosse vinculativo a título negativo, isto é, o Presidente estava impossibilitado de dissolver o parlamento sem a
sua pré-existência, mas não era forçado a dissolver a Assembleia, ainda que sob parecer favorável do Conselho
de Revolução, acaso não fosse essa a sua vontade), não parecem equiparáveis as dimensões históricas e
funcionais assumidas pelo extinto Conselho de Revolução (órgão de composição militar, instituído num quadro
de transição para a normalidade democrática sob a mediação do Movimento das Forças Armadas que, para além
de funcionar como Conselho do Presidente – função assumida desde 1982 pelo Conselho de Estado -,
concentrava uma série de outras competências constitucionais como a fiscalização do cumprimento da
constituição e o controlo da fidelidade política ao espírito da «Revolução dos Cravos») e pelo Conselho de
Estado (órgão político de consulta do Presidente da República, formado por uma multíplice de personalidade de
elevado relevo na vida política nacional – como o Primeiro-Ministro e o presidente da Assembleia da República
em funções ou os antigos Presidentes da Republica eleitos sob a vigência da Constituição de 1976 e que não
hajam sido destituídos do cargo – e operando sob um quadro de inquestionável normalidade política,
democrática e social).
178
Nesse sentido, cfr., entre outros, LOMBA, Pedro. Ob, cit., p. 92.
177
59
Agosto 2016
Nº 1
reelegibilidade do Chefe de Estado em funções para um mandato ulterior) ou ii) a observação
do princípio de “coordenação institucional” entre Presidentes e Primeiros-ministros no
quadro do seu relacionamento inter-orgânico179.
Como quer que seja, e acaso não se verifiquem significativas reformulações na
arquitectura jurídico-constitucional portuguesa (v.g., através da implementação de algumas das
mudanças sugeridas supra) parece inelutável admitir que “o equílibrio do poder entre o
Presidente da República e o Primeiro-Ministro continuará a reflectir e a responder às mudanças
que ocorrem no sistema político”, deslocando-se para um outro pólo em face “das condições
sociais e económicas, da força dos Governos, da evolução do sistema partidário e das
personalidades dos homens que ocuparão os dois cargos” 180.
179
180
Idem, ibidem.
V. FRAIN, Maritheresa. Ob, cit., p. 678.
60
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Nº 1
ANEXO
Exercício do poder presidencial de dissolução da Assembleia da República
(1976-2015)
Relação
Ano
Presidente
República
da
Primeiro-ministro
entre
a
Quadro parlamentar em que
maioria presidencial e
se sustenta o Governo
a maioria que suporta
o Governo na AR
1979
Ramalho Eanes
1983
Ramalho Eanes
1985
Ramalho Eanes
Maria
de
Lourdes
Pintassilgo
Francisco
Sem relação
-
(Governo de iniciativa
presidencial)
Pinto
Balsemão
Maioria absoluta
(Coligação PSD/CDS/PPM)
Distonia política
Maioria Absoluta
Mário Soares
(Acordo
de
incidência
Distonia política
parlamentar PS/PSD)
1987
Mário Soares
Cavaco Silva
2001
Jorge Sampaio
António Guterres
Maioria relativa
Distonia política
(PSD)
Maioria relativa
Sintonia política
(PS)
Maioria absoluta
2004
Jorge Sampaio
Pedro Santana Lopes
(Acordo
de
incidência
Distonia política
parlamentar PSD/CDS)
2011
Cavaco Silva
José Sócrates
Maioria relativa
(PS)
Distonia política
Legenda: AR – Assembleia da República; PSD – Partido Social Democrata; CDS – Centro Democrático Social;
PPM – Partido Popular Monárquico; PS – Partido Socialista.
61
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Nº 1
DOS NOVOS DESAFIOS À ÉTICA, À BIOÉTICA E AO
BIODIREITO NA (NOVA) ERA DA (R)EVOLUÇÃO
BIOTECNOLÓGICA: VIAS E REFLEXÕES
THE NEW CHALLENGES FOR ETHICS, BIO-ETHICS
AND BIO-LAW IN THE (NEW) ERA OF BIOTECHNOLOGY (R)EVOLUTION: WAYS AND THOUGHTS
Ricardo Alexandre, CARDOSO RODRIGUES 181 182
181
Doutorando em Ciências Jurídico-Económicas na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (FDUC).
Mestre em direito. Investigador no Centro de Investigação, Desenvolvimento e Inovação da Academia Militar
(CINAMIL), no Centro de Investigação Interdisciplinar em Direitos Humanos (EDUM), no Instituto Jurídico
Portucalense (IJP), na Associação Portuguesa de Direito de Consumo (apDC) e no Observatório de Economia e
Gestão de Fraude (OBEGEF). Relator pro bono do Observatório dos Direitos Humanos. Jurista pro bono da
Amnistia Internacional – Portugal, da Associação Portuguesa de Linfomas e Leucemias (APLL) e do Centro
de Aconselhamento e Orientação de Jovens de Lisboa (CAOJ).
182
62
Agosto 2016
Nº 1
RESUMO
Introdução: O presente estudo apresenta como objeto as potencialidades de impacto
evidenciadas pela (r)evolução biotecnológica, sua repercussão no indivíduo, na sociedade e no
meio ambiente e consequentes desafios impostos à ética, à bioética e ao biodireito.
Metodologia: Seguindo uma visão fenomenológica do direito partimos dos dados concretos
suficientemente constatados para as projeções jurídicas que se pretendem como soluções
válidas para as questões que emergem das problemáticas em discussão.
Evidências: A evolução tecnológica e científica vislumbrou um progresso acentuado com a
introdução, desenvolvimento e aplicação, a todos os seres vivos, das ciências da manipulação.
Aquela evolução positiva teve consequências práticas no exercício da medicina e no
desenvolvimento da industria agropecuária.
Plano de Discussão: Os avanços na área da biotecnologia levantam sérias questões no domínio
da ética, da bioética e do biodireito que merecem ser verdadeiramente analisadas, refletidas e
transversalmente discutidas.
Conclusões: O debate plural a par de uma visão projetada - no tempo e no espaço – da dignidade
da pessoa humana sobre as realidades emergentes permitir-nos-á garantir a tutela dos bens
jurídicos fundamentais, real ou hipoteticamente expostos.
Palavras-chave: Biotecnologia; Ética; Bioética; Biodireito.
63
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Nº 1
ABSTRACT
Introduction: The present study presents as object the potential impact evidenced by the
biotechnology (r)evolution, its repercussion on the individual, society and the environment, and
consequent challenges imposed to ethics, bioethics and biolaw.
Methodology: Following a phenomenological view of law, we started from the concrete data
sufficiently evidenced for legal projections that are intended to tackle successfully the issues
arising from the problematic under discussion.
Evidences: Technological and scientific developments have seen marked progress with the
introduction, development and implementation of manipulation sciences to all living beings.
That positive development had practical consequences in the medicine practice and
development of agricultural production.
Discussion Plan: Advances in biotechnology raise serious questions in ethics, bio-ethics and
bio-law domains that deserve to be analyzed discussed and reflected transversally.
Conclusions: The plural discussion along with one projected vision - in time and space - of the
dignity of the human person over the emergent realities will allow us ensure the protection of
fundamental legal goods, real or hypothetically exposed
Keywords: Biotechnology; Ethic; Bio-ethic; Bio- law
64
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Nº 1
INTRODUÇÃO
A economia e o sistema financeiro ocuparam, desde sempre, um papel preponderante
no desenvolvimento, positivo ou negativo, das estruturas sociais.
A par e em intensa articulação com a ciência e a tecnologia operam profundas mutações
na vida das pessoas e no seu habitat, implementando, o mais das vezes, sem qualquer tipo de
legitimidade, ideias, impondo sistemas, restringindo direitos e garantias naturais e
historicamente conquistadas.
A revolução biotecnológica veio intensificar esse paradigma com as suas extraordinárias
potencialidades de impacto.
METODOLOGIA
Numa primeira fase procedemos ao levantamento e análise de documentos que nos
permitiram confirmar o iter evolutivo da ciência e da tecnologia ao longo dos tempos. A par
dessa análise, o apuramento, por cruzamento, das consequências daquela evolução,
preocupações, reais e potenciais, associadas e os correspondentes desfechos a curto, médio e
longo prazos.
Numa segunda fase discorremos sobre as principais implicações no domínio da ética,
bioética e biodireito, partindo, de seguida, para as construções jurídicas associadas.
Numa última fase projetamos, a par de uma solução prática inevitável, a fórmula jurídica
inviolável que salvaguarda os bens jurídicos fundamentais do Homem Solo, do Homem Mundo
e do Homem Cidadão.
65
Agosto 2016
Nº 1
EVIDÊNCIAS
Constatamos nos últimos 100 – 200 anos um descomunal progresso científico e
tecnológico - que em muito se deveu à criação das leis de Mendel [1865-1866]183, à sua
redescoberta anos mais tarde
184 185 186
e integração na teoria cromossómica ou do
cromossomo/a (francês e inglês: Chromosome)
187 188 189
de Thomas Hunt Morgan [1910 -
Gregor Mendel [1822-1884] foi o pai instituidor das bases científicas da Genética, tendo designado “os
elementos celulares responsáveis pela transmissão da informação entre as gerações como "factores" e definiu a
natureza dominante e recessiva dos caracteres. Pelas suas descrições, é possível verificar como estabeleceu que os
alelos de cada par se separam um do outro durante a meiose, recebendo cada gâmeta apenas um dos alelos (1ª lei
de Mendel, "law of segregation"). Para as suas experiências, Mendel escolheu fenótipos determinados por um
único gene (donde a designação de hereditariedade mendeliana como sinónimo de hereditariedade monogénica).
Por sua vez, os genes encontrava-se em cromossomas diferentes ou tão distantes que não estavam em ligação
génica. Pôde assim verificar a segregação independente e deduzir que a transmissão de um gene não influencia a
probabilidade de transmissão de outro gene (2º lei de Mendel, "law of independente assortment”). Cf. Fernando J.
Regateiro. Manual de Genética Médica. Coimbra. 2013: p. 2.
183
184
Prostradas, no vácuo, desconhecidas, de todo, a sua importância, regressam a público, no ano de 1901, através
de Bateson, data que marca o início da Genética Médica. A propósito, “Darwin, um contemporâneo de Mendel,
descreveu em 1859, a sua teoria da evolução. Também contemporâneo de Mendel e primo de Darwin, Francis
Galton estudou a influência da hereditariedade na determinação de traços humanos, recorrendo sobretudo aos
gémeos. Já no princípio do século XX, em 1902, Garrod percebeu que a alcaptonúria é uma condição hereditária
devida a alterações num único gene, de natureza autossómica recessiva. Também a Garrod se deve a designação
de “erros inatos do metabolismo” para caracterizar esta e outras situações monogénicas.” In ibidem.
185
Cf. Encyclopedia International. Grolier Incorporated.Stratford Press. Vol.11; 1970. p. 520.
Em 1903, de forma independente, Sutton e Boveri, terem estabelecido “que os "factores" de Mendel envolvidos
na transmissão das características hereditárias se localizam nos cromossomas, assentando as bases que explicam
as leis de Mendel no comportamento dos cromossomas durante a meiose. Já anteriormente, em 1868, Haeckel
identificara o núcleo como a sede dos factores hereditários. Em 1909, Johannsen utiliza o termo "gene" para referir
a unidade básica da hereditariedade. Em 1914, Theodor Boveri enuncia a teoria cromossómica do cancro (…).”
Fernando J. Regateiro. Manual de Genética Médica. Coimbra; 2013: p. 3-4
187
Cf. Dicionário da Lingua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, Academia das
Ciências de Lisboa e da Fundação Calouste Gulbenkian. Vol. I A-F. Verbo. 2001; p. 1031. Na lingua espanhola
cromossoma. Cf. Dicionário de Portugues e Espanhol. Porto Editora; 2000: p. 338.
188
“A designação “cromossomas” foi escolhida por Waldeyer, em 1888. A proposta de localização de elementos
responsáveis pela hereditariedade nos cromossomas, foi prevista por Roux, de Vries e Weissmann, também nesta
década de 80.” Fernando J. Regateiro. Manual de Genética Médica. Coimbra; 2013: p. 3.
189
É uma “[e]strutura celular muito corável por corantes básicos, que é suporte de informação genética, sendo
constituída por nucleofilamentos condensados, que se tornam visíveis durante a mitose e a meiose." Cf. Dicionário
da Língua Portuguesa: Novo. Porto Editora; 2010: p. 446. Os cromossomas são, deste modo, “portadores dos
factores determinantes dos caracteres da hereditariedade.” Cf. Dicionário da Lingua Portuguesa Contemporânea
da Academia das Ciências de Lisboa, Academia das Ciências de Lisboa e da Fundação Calouste Gulbenkian. Vol.
I A-F. Verbo. 2001; p. 1031. Na sua estrutura encontram-se “os cerca de dois metros de DNA de um genoma
diplóide humano. Além do DNA, são constituídos por múltiplas proteínas histónicas e não histónicas. Cf. Fernando
J. Regateiro. Manual de Genética Médica. Coimbra. 2013: p. 461. “Em qualquer espécie, o número de
cromossomas é constante. Par de cromossomas” Cf. Dicionário da Língua Portuguesa: Novo. Porto Editora; 2010:
p. 446. “A espécie humana tem um número diploide de cromossomas constituído por 46 cromossomas agrupados
em 23 pares. Os cromossomas dividem-se em autossomas (22 pares de cromossomas homólogos numerados de 1
a 22 por ordem decrescente de comprimento, embora o 22 seja maior do que o 21) e heterocromossomas ou
cromossomas sexuais (cromossomas X e Y). “Fernando J. Regateiro. Manual de Genética Médica. Coimbra; 2013:
p. 244. “A descrição do número de 46 cromossomas, como complemento normal na espécie humana, data de 1956,
em artigo da revista Heredita por Tijo e Levan, o mesmo tendo feito Ford e Hamerton na revista Nature, no mesmo
ano.” Fernando J. Regateiro. Manual de Genética Médica. Coimbra; 2013: p. 4.
186
66
Agosto 2016
1915]190
191 192 193 194 195 196
Nº 1
- com a introdução, desenvolvimento e aplicação a todos os seres
vivos (firme-se, humanos e não humanos) das ciências da manipulação.
Dado que dever-nos-ia alegrar e, simultaneamente, retrair e fazer refletir pelas
potencialidades positivas, mas também, ilimitadas formas de lesão de direitos fundamentais. 197
Aquela evolução positiva teve consequências práticas no exercício da medicina, como
a produção e introdução de novos fármacos e no desenvolvimento da industria agropecuária.
A biotecnologia é, verdadeiramente, uma realidade do presente e do futuro:
Em termos científicos, reúne, em si, um conjunto de conhecimentos técnicos e métodos,
práticos e científicos, através dos quais faz uso de sistemas biológicos, organismos vivos, parte
deles, e análogos moleculares para - como parte integrante e ativa - a produção ou modificação
de produtos, mas também em processos para um dado desiderato, assim como, para a criação
de novos produtos e serviços a aplicar na dinâmica industrial, mas, também, para uso e fruição
da comunidade em geral. 198
190
Thomas Hunt Morgan [1866-1945], pai da genética experimental moderna, foi o cristalizador dos edifícios
teóricos desenvolvidos até então, por Darwin e Mendel e Boveri e Sutton, não obstante o seu patente ceticismo.
Partindo do material de estudo consegue, contra as suas convicções, provar, de um modo geral, a base
cromossómica da hereditariedade. Morgan foi, de facto, “o primeiro observador de um crossing over genético na
mosca das frutas.” Robert l. Nussbaum; Roderick R. Mclnnes; Huntington F. Willard. Thompson & Thompson
Genética Médica. Elsevier. 2008: p 221. Morgan, acabaria assim, por permitir a conciliação saudável entre as
teses de Darwin e Mendel. Por ordem cronológica deixamos os contributos mais relevantes: The Development of
the Frog's Egg (1897); Regeneration(1901); Evolution and adaptation (1903); Experimental Zoology (1907);
Heredity and Sex (1913); The Mechanism of Mendelian Heredity (1915); A Critique of the Theory of
Evolution (1916); The Physical basis of Heredity (1919); Evolution and Genetics (1925); The Teory of the
Gene (1926); Experimental Embriology (1927); The Scientific Bases of Evolution (1932); e Embriology and
Genetics (1933-1934). Em 1933 Morgan recebe prémio nobel da genética “pelas suas descobertas relativas ao
papel desempenhado pelos cromossomas na hereditariedade”. Fernando J. Regateiro. Manual de Genética Médica.
Coimbra. 2013: p. 8.
191
Vide Cf. T. H. Morgan, A. H. Sturtevant, H. J. Muller, C. B. Bridges. The Mechanism of Mendelian Heredity.
Henry Holt and Company; 1915.
192
Vide, também, estudo anterior. Cf. T. H. Morgan. Heredity and Sex. Columbia University Press; 1913.
Vide. Cf. T. H. Morgan. A Critique of the Theory of Evolution. Louis Clark Vanuxem Foundation. Princeton.
Princeton University Press; 1916.
194
Vide Cf. T. H. Morgan. The Physical basis of Heredity. Philadelphia and London. J. B. Lippincott Company;
1919.
195
Vide Cf. T. H. Morgan. Evolution and Genetics. Princeton, NJ..Princeton University Press;1925.
196
Vide Cf. T. H. Morgan. The Theory of the Gene. New Haven. Yale University Press; 1926.
197
Sobre a ineficácia da técnica - dependente dos usos e costumes - nas sociedades tradicionais em contraposição
com a operacionalidade atual. Cf. Maria L. P. Silva. Autonomia da pessoa e determinismo genético. In: Rui Nunes,
Helena Melo, Cristina Nunes. Genoma e dignidade humana. Coimbra: Gráfica de Coimbra; 2002. p. 11.
193
198
Cf. N. Lima, M. Mota. Biotecnologia: fundamentos e aplicações. Lidel Ed. Técnicas; 2003.
67
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Nº 1
Trata-se de uma área científica multidisciplinar que resulta da integração de diversas,
outras, áreas do conhecimentos, nomeadamente, das ciências da vida e da engenharia, tendo,
assim, em vista a criação de novos saberes e práticas. 199
Abrange um conjunto enorme de realidades: a manipulação genética; a utilização de
enzimas; a engenharia de proteínas; a tecnologia de cultura de tecidos; os biossensores (e
nanomarcadores); a tecnologia de processos bioquímicos.200
Para compreender a importância prática e projeção / impacto da biotecnologia no mundo
bastará atentar, nomeadamente, a ampla utilização, pelos cientistas da atualidade, de seres micro
e macroscópicos, geneticamente modificados. Cujos resultados científicos, produtos
biotecnológicos, são aplicados, in crescendo, no tratamento de numerosas doenças e, quando
aplicados nas industrias, nomeadamente, na agropecuária, amplamente distribuídos no mercado
do consumo, seja direta ou indiretamente.
Paulatinamente, os produtos das investigações levadas a cabo no domínio das ciências
da manipulação têm disseminado os seus efeitos pela população global e por todo o meio
ambiente.
Até os dias de hoje temos conseguido controlar as alterações que induzimos no
ecossistema provocadas pela constante reconfiguração ou reprogramação da criação original na
natureza. Temos conseguido manter, dentro dos limites de domínio do conhecimento técnico e
científico, a estabilidade da vida, a dinâmica regular do ecossistema.
No entanto, hoje experienciamos tempos, vidas e mundos a uma velocidade
(pluridimensional) não antes vista, a realidade é palco de enormes avanços tecnológicos e
científicos, nomeadamente, na área da biotecnologia médica.
Sérias questões no domínio da ética, da segurança e do direito se levantam. Urge, neste
domínios, operar uma séria reflexão. Urge pensar, refletir, debater o eu, o hoje e o futuro como
realidades fluídas. O que nós somos e o que seremos num futuro próximo depende de
exclusivamente de nós.
199
In idem, in ibidem.
200
Cf. Armando Venâncio, Angela C. Macedo, Francisco Malcata. Biotecnologia dos Alimentos. In:
Biotecnologia: Fundamentos e Aplicações. Lidel. Cap. XX; 2003. Na nossa opinião, conteúdo in progress.
68
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Nº 1
PLANO DE DISCUSSÃO
Os avanços consideráveis da biotecnologia têm sido acompanhados e debatidos
pluridisciplinarmente na comunidade científica.
Muitas questões de natureza ética, valorativa e jurídica têm sido levantadas no decurso
dos tempos.201 Seja pelos riscos associados à constante de inovações – tecnológicas e científicas
– a que temos assistido e a sua aplicação no campo da medicina que por sua vez alteram o
modus operandi da intervenção médica dos profissionais de saúde e reconfiguram a base da
relação profissional de saúde – utente; seja pela desenfreada produção e introdução de novos
fármacos no mercado, sem a necessária análise científica, reflexão e debate plurais (atento as
implicações multidisciplinares), bem como, o fundamentalíssimo debate informativo e
formativo alargado a toda a comunidade - fatores materiais de legitimação científica, social e
política - [reflita-se, mormente, sobre as implicações nefastas – diretas e/ou indiretas - que a
desinformação ou ausência informativa podem ter nas concretizações do direito à
autodeterminação pessoal do indivíduo (materialização do valor dignidade da pessoa humana),
nomeadamente, a afetação do princípio do consentimento informado que pressupõe um
conhecimento informado, em contexto clínico; e no amplo mercado de consumo de bens e
serviços, os efeitos diretos e indiretos da aquisição e utilização, respetivamente, pelo
distribuidor e consumidor final]; seja pelas potencialidades nefastas que um dado conhecimento
científico sobre a realidade pode ter quando mal aplicado ou mal gerido (ex.: uso de
microorganismos [v.g. bactérias, vírus] ou toxinas [naturais ou modificadas] letais como armas
de guerra [biológica e química]); seja pelos perigos e riscos – para a saúde e para o ambiente associados às alterações - conscientes, inconscientes, diretas ou indiretas - operadas pelo
Homem no ecossistema (ex máxime: formas ou vias de manipulação científica da natureza);
seja pelas consequências sociais e económicas associadas a uma certa e determinada evolução
económica e científica; entre outros aspetos que direta ou indiretamente são implicados.
De facto, os desenvolvimentos técnicos e científicos não podem decorrer foram de um
certo e determinado enquadramento ético e jurídico, sob pena de se permitirem violações a bens
jurídicos fundamentais [nomeadamente, atentados à vida, integridade física e moral, liberdade
física, mental (ex maxime de autodeterminação), confiança nos bens transacionáveis (ex maxime
consumíveis), ao bem jurídico ambiente] sem qualquer consequência para o infrator.
201
Cf. T. R. Vieira. Bioética e Direito. Jurídica Brasileira; 1999. p. 15 e ss.
69
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Nº 1
O desenvolvimento científico e tecnológico é uma consequência da modernidade e das
novas sociedades hodiernas e não pode, nem deve ser parado, mas sim orientado ou reorientado.
Não podemos esquecer que os avanços técnicos deverão ter sempre como objetivo o
progresso da humanidade. Quando se fala em temas como o do aumento da longevidade dos
seres humanos e da sua qualidade de vida, no seu ciclo vital, bem como o preservar da
biodiversidade, ou reduzir o impacto da poluição no meio ambiente, no fundo o que se pretende
é garantir um melhor futuro ao Homem, garantir a existência da humanidade, nos séculos, dos
séculos.
Decorre do exposto que deve-se procurar garantir uma evolução tecnológica e científica
que seja humana, social, económica, financeira e culturalmente sustentável.
Fala-se, nestes domínios, de realidades como a ética202
203
, a bioética
204 205 206
eo
biodireito207 208:
A ética visa a reflexão sobre o agir, através do debate plural na comunidade. Abrange
todo um conjunto de valores morais e princípios que norteiam, ou devem nortear, a conduta do
Homem na sociedade, conducentes à realização do bem.
Enquanto ciência define a conduta moral do Homem, traduz uma forma particular de
comportamento humano, que padroniza valores e meios práticos fitando garantir a integridade
física, psíquica e espiritual das pessoas, tendo em vista a felicidade do Homem.
Deste modo, promove a previsibilidade do comportamento moral e proporciona a
aquisição de saber, através do respetivo método científico.
A bioética revela-se entre o conjunto das reflexões éticas, isto porque compreende um
vastíssimo leque de questões relacionadas com a manutenção e a qualidade de vida. Constitui,
por efeito, um amplo espaço de debate, onde se entrecruzam saberes técnicos e científicos, tais
como a medicina, a enfermagem, a biologia, a física, a química, a psicologia, a antropologia, a
sociologia, o direito, a filosofia, a teologia etc.
202
Cf. J. P. Machado. Ética em Cuidados de Saúde. Porto: Porto Editora; 1998. p. 7.
203
Cf. R. Nunes, D. Serrão. Ética em Cuidados de Saúde. Porto: Porto Editora; 1998. p. 9.
204
Cf. Jr HT. Engelhardt. Fundamentos Da Bioética. Loyola; 1998. p. 52-56.
205
Cf. G. Hottois, MH. Parizeau. Dicionário Da Bioética. Colecção Atlas e Dicionários. Instituto Piaget; 1993. p.
58-64.
206
Cf. L. Pessini, C. de Paul Barchifontaine. Problemas atuais de Bioética. Centro Universitário S. Camilo. Edições
Loyola; 2002. p. 32 – 33.
207
Cf. Maria Celeste Cordeiro Leite. Biodireito: ciência da vida, os novos desafios. S. Paulo. Ed. Revista dos
Tribunais;2001.pp. 283-305.
208
Cf. Reinaldo Pereira Silva. Introdução ao Biodireito: investigações político-jurídicas sobre o estatuto da
concepção humana. S. Paulo: LTr; 2002. p.12.
70
Agosto 2016
Nº 1
A bioética enquanto ciência multidisciplinar que é promove o estudo sistemático e a
análise dos aspetos relevantes, em concreto, as posições, as condutas, as decisões a acolher no
mundo da ciência, da técnica, na e para a defesa da vida, tendo por base aspetos de natureza
moral, articulando saberes no espaço da comunidade científica, fitando encontrar respostas
suficientemente criativas e humanamente sustentáveis e responsáveis.
Sublinhe-se, a natureza não-dogmática da bioética que permite, tão-só, a discussão –
livre, aberta, plural e multidisciplinar (elementos estruturantes) - das problemáticas e a
pluralidade de soluções para cada caso ou situação concretos.
209
Facto que não reduz a sua
importância, antes enriquece, nomeadamente, pela consequente horizontalização das opiniões
e perspetivas (dentro e fora da comunidade), por sua vez, potenciadora do envolvimento
“unionista” das comunidades, promovendo-se, assim, o comparatismo doutrinário, técnico e
científico tão fundamentais à edificação consciente de respostas eficientes.
A bioética - nas suas dimensões micro e macro - encontra-se edificada sobre 3 pilares
(valores ou princípios) base ou estruturantes: o princípio de beneficência, o princípio da
autonomia ou autodeterminação e o princípio da justiça ou da equidade. 210 211 212 213 214
Os três princípios reguladores foram enunciados no Relatório Belmont, no ano de 1978
215
[1974-1979].216
217 218
Sublinhamos a importância de determinados marcos históricos –
209
Cf. C. Beckert. O Conceito Bioético de Pessoa: Entre o Indivíduo Biológico e o Sujeito Ético-jurídico. 15-32.
In J. Ribeiro da Silva, A. Barbosa, F. Martins Vale. Centro de Bioética. Faculdade de Medicina da Universidade
de Lisboa. Contributos para a Bioética em Portugal. Lisboa: Edições Cosmos; 2002 . p. 28-31.
210
Cf. J. Gafo. Fundamentatión de la Bioética y Manipulación Genética. Universidad Pontificia Comillas; 1988.
211
Cf. D. Gracia. Fundamentos de Bioética. Eudema; 1989.
212
213
Cf. D. Gracia. Procedimientos de decisión en Etica clínica. Eudema; 1991.
Cf. G. H. Kieffer. Bioética. Alhambra. Universidad; 1983.
214
Cf. P. Laín Entralgo. El médico y el enfermo. Guadarrama; 1969.
215
NATIONAL COMMISSION FOR THE PROTECTION OF HUMAN SUBJECTS OF BIOMEDICAL AND
BEHAVIORAL RESEARCH. The Belmont Report. Ethical Principles and Guidelines for the Protection of Human
Subjects of Research. Washington DC: DHEW Publication OS 78-0012; DC 1978.
216
Para mais desenvolvimentos sobre os trabalhos. Cf. P. Requena Meana. El Principialismo y la Casuística como
Modelos de Bioética Clínica Presentación y Valoración Crítica. Tese de Doutorameno. Pontificia Universidade da
Santa Cruz - Faculdade de Teologia; 2005. p. 39-43.
217
No ano de 1979 surge a primeira edição [de 7] do livro - Principles of Biomedical Ethics – dos autores
Beauchamp e Childress, que decidem dar continuidade ao importante trabalho desenvolvido. Importante de
referir será o uso da expressão “biomedical ethics” no intuito de ampliar o objeto de estudo do relatório Belmont
a todos os temas e questões éticas no âmbito biomédico. Neste sentido. Cf. P. Requena Meana. El principialismo
y la casuística como modelos de bioética clínica Presentación y valoración crítica. Tese de Doutorameno.
Pontificia Universidad de la Santa Cruz Facultad de Teología; 2005. Sublinhamos, todavia, o caracter mais
abrangente da expressão “bio”.
218
Beauchamp e Childress acrescentam um quarto princípio – o da não maleficiência. Não obstante, Beauchamp,
em estudos posteriors, fazer menção, tão só, aos três enunciados no relatório Belmont. Cf. T. L. Beauchamp,
Principi della bioetica: autonomia, beneficialità, giustizia. In Ed. G. Russo. Bioetica fondamentale e generale,
Torino: SEI; 1995, pp. 83-91
71
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nomeadamente, a publicação de relevantíssimos documentos no domínio da experimentação
científica em doentes: o Código de Nuremberga de 1947; a Declaração de Helsínquia de 1964;
a Declaração de Tóquio de 1975; e a Declaração de Hawai de 1977 - no assinalar do abandono
duma pura preocupação material ou intenção utilitarista pelo bem estar geral do indivíduo –
cidadão, entendido na intrínseca conexão com a comunidade, grupo de pertença, não obstante
a sua autodeterminação, que deu lugar a uma visão realista – humanista global do Ser Pessoa
Humana, sem menosprezar, na sua dignidade, o bem estar geral, relevar, na pessoa do doente,
as suas vontades e necessidades, passando este a participante ativo e com poder decisório na
sua gestão racional e emocional do vital (falamos, claro está, em contexto socio democrático).
Partimos, ora, à analise individual de cada princípio:
Princípio de beneficência (que inclui, por inerência, o principio da não maleficência):
princípio que é valor universal, aplicável à humanidade e às gerações futuras. Quando falamos
em generosidade, caridade, filantropia e, mesmo, otimização da qualidade do saber fazer para
o bem geral/ comum, estamos perante manifestações de beneficência. Podemos condensar este
princípio num expressão: “Faz aos outros o que é bom para eles”. 219 Desde Hipocrates este
valor constitui o primeiro princípio ético das atuações dos profissionais de saúde. Que segundo
este princípio ético básico devem aplicar-se em atender o utente de serviços de médicos e fazer,
dentro do que considerem o mais adequado – para os profissionais de saúde e sociedade, grupo
de pertença -, tudo o que esteja ao alcance para melhorar o seu estado de saúde. Este princípio
tem como foco essencial o utente e todas as pessoas que poderão vir a beneficiar de um novo
avanço médico. O sentido etimológico de beneficência deverá ser, nestes domínios, adaptado,
para que não seja exigindo o inexigível, no respetivo contexto clínico, nem implicar uma
atuação inócua.
Princípio da autonomia ou autodeterminação: tem como fundamento a convicção de
que todo o ser humano deve ser aceite e respeitado nas suas decisões / opções básicas vitais,
isto sem, qualquer controlo externo. Isso significa olhar o ser humano (seja ou não utente dos
serviços de saúde) como um sujeito, na sua liberdade decisória, e não como um mero objeto.
Numa frase: “[n]ão faças a outrem aquilo que ele não teria feito a si mesmo e faz-lhe o que te
comprometeste a fazer-lhe” tendo em linha de conta o acordado com ele.220 Podemos constatar
a necessária destrinça entre as convicções do Eu que analisa e executa e o Eu do qual promana
Cf. H. T. Engellhardt. The Foundations of Bioethics. Nova Iorque – Oxford: Oxford University Press; 1986. p.
87.
220
Cf. H. T. Engellhardt. The Foundations of Bioethics. Nova Iorque – Oxford: Oxford University Press; 1986.
p. 72.
219
72
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a vontade. Daí não bastar não fazer ao outro o que não desejava que me fizessem a mim. Neste
sentido, quando um doente qualifica certo tratamento (e os seus efeitos) – que aos olhos do
profissional de saúde, de acordo com as leges artis, considera necessário e favorável - como
indigno e violador da sua autodeterminação, razão pela qual o recusa, deve o médico respeitar
a sua decisão; do mesmo modo um médico não poderá ser obrigado a realizar atos médicos
quando violam valores ou princípios do circulo do seu Eu pessoal e/ou profissional (que
incluem convicções éticas e/ou religiosas) que o impele a lançar mão do instituto da objeção de
consciência, ainda que contra a vontade livre, esclarecida e ponderada do doente (ex.
interrupção voluntária da gravidez). O reconhecimento deste princípio, não significa, no
entanto, permitir-se uma decisão, desconsiderando os seus efeitos, reais ou potenciais. O mesmo
é dizer que o princípio não permeabiliza qualquer conduta moral. Em contexto clínico, o
princípio tem o seguinte significado: o utente deverá ser corretamente informado do seu
diagnóstico, estado de saúde e das alternativas de tratamento aplicáveis (natureza, meios e
objetivos do tratamento, riscos e benefícios, avaliação económica, etc.); por outro lado,
significa, que devem ser respeitadas as decisões dos doentes - considerados capazes – se e
quando adequadamente instruídas com as informações essências. Finalmente, como pilar
estrutural da relação entre o utente e os profissionais de saúde umas das mais preciosas
manifestações do princípio, o chamado conhecimento informado (para um consentimento
informado). Nestes domínios, urge lembrar os dois elementos que estão na base da solidez
decisória do utente, “a razão e a liberdade”: a primeira envolve, necessariamente, a competência
/legitimidade (ativa e passiva), comunicação / transmissão eloquente e compreensão /
assimilação do conteúdo transmitido; já, a segunda, voluntariedade/ livre arbítrio e
consentimento material / expressão da vontade.
Conflitos entre o princípio da beneficência e da autodeterminação (em contexto
clínico):
Pode acontecer o profissional de saúde, em concreto, o médico titular pensar que a
decisão do utente (capaz) não é a que melhor satisfaz ou suprirá o seu estado clínico. Por um
lado temos a decisão autodeterminada de um utente que, em princípio, deverá - de acordo com
as suas convicções pessoais, morais, religiosas (…) – querer o que melhor é para si (em todas
as dimensões do Eu), por outro, o profissional, com conhecimentos técnicos, que coloca em
causa a idoneidade do seu utente, já que este deseja algo que não corresponde aos efeitos da sua
opção. Se absolutizarmos o principio da autodeterminação, respeitamos, de facto, as opções do
utente que poderão ser contrárias às normas que disciplinam a prática profissional, e, mesmo, à
ética profissional médica, e poderemos, também, chegar a admitir a exigência de recursos
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inadmissíveis. Se absolutizarmos o princípio da beneficência podemos assegurar, dentro dos
padrões relativos de sucesso clínico, o bom estado de saúde e mesmo a longevidade do utente,
sacrificando, todavia, a vontade real ou hipotética do sujeito (capaz), restringindo, no plano da
sua autoprojeção pessoal na vida e no mundo, a sua dignidade enquanto Ser pessoa humana.
Decorre do exposto, qua a solução é articular ou conjugar, sem suprimir ou absolutizar
princípios, já que a sua característica elasticidade permite, o mais das vezes, uma solução (éticojurídica), suficientemente, congruente e satisfatória.
Princípio da justiça ou da equidade 221 222: Em termos nocionais o princípio da justiça
não tem acolhimento universal, o que se percebe pela amplitude de conteúdo que a expressão
justiça encerra. A justiça tem sido identificada, diversas vezes, com a equidade no seu respetivo
critério genérico de dar a cada um aquilo que, em concreto, lhe deve ser atribuído ou lhe
corresponde (justiça comutativa). Todavia, justiça pode ser, também, perspetivada segundo o
prisma da seguinte fórmula: tratar igual aquilo que é igual e diferente aquilo que é diferente na
medida da diferença (justiça geométrica ou distributiva). Não querendo firmar um conteúdo
nocional preciso sobre o princípio de justiça a aplicar nestes domínios, mas transpondo o
substrato essencial da sua substancia, temos a dizer que se impõe a garantia pelas estruturas
sociais das diversas comunidades dum acesso generalizado de toda a população aos serviços de
saúde adequados, dignos e básicos. Não se exige um serviço completo e de alta qualidade, mas,
pelo menos um serviço que seja essencial, e razoavelmente apropriado à situação e ao sujeito
(pessoa humana). Procura-se assegurar a tutela da vida, da integridade física dos seres humanos
indiscriminadamente. Reconhecer o princípio de justiça é reforçar as qualidades intrínsecas do
ser humano enquanto sujeito com dignidade, o que implica garantir a igualdade de tratamento
e oportunidades, a equidade na (re)distribuição dos bens, dos serviços, e dos riscos sociais,
envolve a liberdade de opinião, o respeito pela diferença do outro e uma resposta adequada à
diferença apresentada (justiça distributiva em articulação com a justiça social), exige uma visão
pluridisciplinar e multidimensional dos problemas, soluções pactuadas, soluções proativas. O
princípio da justiça, na verdade, opera como critério de gestão ótima (eficientizador) da coisa
pública na relação com os direitos, interesses e necessidades individuais e coletivos,
encontrando o equilíbrio, muitas vezes difícil, entre a (re)distribuição equitativa dos bens de
saúde (em geral, nomeadamente: os recursos técnicos, os recursos humanos, o financiamento)
221
Sobre o princípio em geral. Cf. Oliveira Ascensão. O Direito. Introdução e Teoria Geral. Almedina; 2005. p.
159-216.
222
Ver também sobre o princípio em geral. Cf. António dos Santos Justo. Introdução ao Estudo do Direito.
Coimbra: Coimbra Editora; 2012. p. 94-135.
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e o valor absoluto o Ser Pessoa Humana, em contexto, o doente, na sua dignidade. Dialoga,
deste modo, numa lógica de equidade (sentido amplo) funcional geral-concreta. Pretendendo,
assim, imprimir qualidade às decisões, que se pretendem as mais adequadas às especificidades
de cada situação ou caso concretos.
Como ficou claro recorrendo aos três princípios supra mencionados não será possível
obter respostas éticas concretas iguais para todos os problemas, visto ser, muitas vezes, difícil
identificar qual o princípio que merece supremacia sobre os restantes. Não obstante, fica pelo
menos a sensação de alguma comunhão de consensos numa dada terminologia, pontos de
referência e discrepância.
Como princípio consolidador da estrutura dos princípios, princípio integrador de
consensos e densificador - numa linha “ética da responsabilidade” - das crescentes necessidades
de prevenção e antecipação do dano, sobretudo, no âmbito do atual modelo de sociedade global de risco – caracterizado pelos notáveis avanços tecnológicos e científicos com as
correspondentes repercussões universais, muitas vezes, flagrantemente indefiníveis (qualitativa
e quantitativamente). Em concreto, a tecnologia aplicada às ciências da vida, tendo em linha de
conta todos os efeitos, reais e potenciais, diretos e indiretos, sobre o Homem e o meio. Em
contexto clínico, as necessárias mudanças de paradigma relacional e assistencial decorrentes da
dependência técnica e pessoal da tecnologia, mormente, os dispositivos tecnológicos e os
veículos de informação e comunicação.
Falamos, pois, do princípio da precaução223, instrumento de avaliação ética e de gestão
de riscos da sociedade, na sua atual e futura configurações. Trata-se, pois, dum principio,
critério, que trabalha sobre a incerteza antecipando-se a ela, conservando, assim, a integridade
dos bens jurídicos expostos ao dano. Não significa, com isto, que nutramos a ideia de que a
tecnociência seja mais negativa que positiva - já que revela pontos extremamente vantajosos ao
Ser - mas, antes, que envolve muitos perigos, e, em muitos casos, sérios riscos. 224
A presente estrutura principialista, não pode, nem deve ser entendida por forma
absoluta, nem, tão pouco, isolada dos respetivos contextos, mas permeável a formas materiais
de superação do formal, no fundo, aberta a outros modos e padrões éticos e estéticos de
compreensão da realidade, com o desiderato fundamental de garantir respostas adequadas –
223
Neste sentido. Cf. ASSEMBLEIA PARLAMENTAR DO CONSELHO DA EUROPA. Recomendação n.º
1468; 2000.
224
Para mais desenvolvimentos. Cf. E. Luiz Bonamigo. El Principio de Precaución: Un Nuevo Principio Bioético
y Biojurídico. Tese de Doutoramento. Departamento de Ciências da Educação, Linguagem, Cultura e Arte –
Faculdade de Ciências do Turismo. Universidade Rei Juan Carlos; 2010
75
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eficientes - aos factos, situações e necessidades emergentes do Homem, da vida e do mundo,
ora, mundializados e globalizados. Deste modo urge a adoção dum principialismo semiaberto,
cuja estrutura (de partida) deverá ser equacionada dentro de modelos ou padrões éticos articulação funcional entre uma ética de intenções morais concretas, ética de responsabilidade
e ética das consequências - e estéticos – ex.: eficiência económica, financeira, técnica, científica
e profissional duma certa e determinada atividade ou função -, não totalitários dirigidos a um
aprimoramento da moral geral, do cuidado (geral225 e assistencial) em especial, com valências
de concretude, assim sendo, a ética moral (das virtudes ou qualidades do Ser), a ética do cuidado
exímio e solícito (edificada segundo premissas morais específicas, por sua vez, erigidas e
modeladas a partir duma base fundamentante de valor, da qual destacamos o princípio da
vulnerabilidade226 227) 228 229; o profissionalismo 230 (decorrente de compromisso assumido para
com a sociedade, os doentes e a comunidade académica/ científica e profissional; envolve
questões de natureza educativa, técnica, científica e profissional-laboral [salientamos a
importância da formação – que deverá ser contínua - do atual e futuro profissional; da qualidade
da formação e dos seus docentes; o estímulo ao desenvolvimento de relevantes atributos
cognitivos e humanísticos231]); e a ética casuísta crítica (construída a partir de casos
análogos).232
De facto, assuntos como a natureza e fins da medicina, a missão dos profissionais de
saúde e a função social da medicina são temas do passado, mas, seguramente, do presente e,
muito mais, do futuro. São temas a refletir, a repensar, quanto mais, quando realidades como a
medicina preditiva233, a medicina regenerativa, com as altas potencialidades eugénicas, a
225
Cf. COMISSÃO NACIONAL JUSTIÇA E PAZ. Da Globalização da Indiferença a uma Ética do Cuidado.
Reflexão da CNJP para a Quaresma de 2015. CNJP; 2015.
226
Uma perpetiva interpessoal. Cf. E. Zoboli. Ética do cuidado: uma reflexão sobre o cuidado da pessoa idosa na
perspectiva do encontro interpessoal. Saúde Coletiva; 2007. p. 158-162.
227
E. Batoca Silva, Daniel Silva. Reflexão Ética Sobre Cuidados Paliativos em Neonatologia a Partir do Livro um
Filho para a Eternidade. Millenium. 47. Junho/ dezembro; 2014. p. 61‐68.
228
Para mais desenvolvimentos. Cf. W. T. Reich History of the Notion of Care. In: REICH, Warren T. (ed.).
Encyclopedia of Bioethics. New York: Simon & Schuster Macmillan; 1995. p. 349-361.
229
Cf. E. Zoboli. A redescoberta da ética do cuidado: o foco e a ênfase nas relações. Rev Esc Enferm. S. Paulo:
USP; 2004. p. 21-27
230
Cf. J. Martins e Silva. Educação Médica e Profissionalismo. Lisboa: Acta Médica Portuguesa; 2013.
231
Cf. A. Flexner. Medical education in the United States and Canada: a report to the Carnegie Foundation for the
Advancement of Teaching. New York: Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching; 1910.
232
Cf. P. Requena Meana. El principialismo y la casuística como modelos de bioética clínica Presentación y
valoración crítica. Tese de Doutorameno. Pontificia Universidad de la Santa Cruz Facultad de Teología; 2005. p.
207-332.
233
Para mais desenvolvimentos. J. C. Simões Gonçalves Loureiro. Adeus a Delfos? Saber, não saber e medicina
preditiva in Lex Medicinae: Revista Portuguesa de Direito da Saúde. Coimbra: Coimbra Editora. Grupo Wolters
Kluwer Coimbra. A. 8, n.º 15; 2011.
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telessaúde [seja na vertente académica e profissional, de diagnostico e assistencial] 234 - com a
introdução das novas tecnologias da comunicação e informação – e, em especial, a consequente
reconfiguração do método relacional – assistencial dos profissionais de saúde - entre outros,
são tão reais – e em exponencial crescimento - entre nós.
À bioética deverá ser reconhecido o papel preponderante na reflexão e discussão de
todas aquelas temáticas no sentido de, aproveitando os aspetos positivos, esbater os efeitos
nefastos e operar mudanças conducentes à alteração positiva do paradigma geral.
Entendemos que as grandes opções e decisões no domínio da bioética baseadas numa
estrutura principialista universal de cariz semiaberto superam, pelas importantes qualidades
autopoiéticas, o ceticismo e o pseudo-ceticismo de alguns – na garantia da sua subsistência,
consubstanciada, em parte, na habilitação para gerar soluções adequadas e eficientes agudizado pelos efeitos aglutinadores e facilitadores da mundialização e da globalização.
Na verdade falamos, hoje, dum Homem novo, inserido numa sociedade dinâmica com
estilos de vida extremamente complexos e diversificados.
Experimentamos, em contexto, o reflexo social e cultural do fascínio exacerbado pela
tecnologia, baseado num cientismo cego, muitas vezes, doentio que, sem “freio”, pode conduzir
ao progresso do retrocesso pela exposição do Ser Pessoa Humana, na sua dignidade, ao perigo
e ao risco de lesão.
Os novos progressos advenientes da atual sociedade – em rede (fortemente conectada)
- plural e multidimensional (sociedade moderna), frutos da mundialização e da globalização,
exigem, assim, pelas potencialidades de lesão de bens jurídicos, uma tutela cada vez mais
abstrata, uma tutela mais ampla, mais abrangente, sempre in progress.
Aliás, já, no ano de 1970, Van Rensselaer Potter, oncologista americano, a quem é
atribuída a paternidade da expressão “Bioética”235
236 237
, dando conta, por um lado, do
galopante progresso científico, em especial, no domínio da biologia, e o exponencial aumento
populacional e, por outro lado, a ausência de reflexão critica sobre a utilização do conhecimento
científico e a destruição dos espaços vitais globais, adverte para a necessidade de articulação
lógica e funcional do saber biológico com os valores e princípios (morais) humanos, com o
simples desiderato de criar uma ciência que desenvolveria uma sistema geral de prioridades
234
Em particular sobre a telemedicina e farmácia online. Alexandre Libório Dias Pereira. Telemedicina e farmácia
online: aspetos jurídicos da ehealth. Revista da Ordem dos Advogados. Ano 75. Vol. I/ II. Jan/jun. 2015.
235
Cf. V. Rensselaer Potter. Bioethics, the science of survival. 1970.
236
Cf. V. Rensselaer Potter. Bioethics: bridge to the future, Englewoods Cliffs. New Jersey: Prentice-Hall; 1971.
237
Cf. V. Rensselaer Potter. Global Bioethics, Building on the Leopold Legacy. Michigan: Michigan State
University Press, 1988.
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médicas e ambientais para uma sobrevivência verdadeiramente aceitável. Nasce, assim, a
bioética (uma ciência de sobrevivência e sustentabilidade), que, por sua vez deve, segundo o
autor, abranger domínios com implicação – direta e indireta - na sobrevivência do Homem e
sustentabilidade do meio (numa perspetiva de responsabilização solidaria pelo futuro), como
seja, a paz, a pobreza, o controle populacional, a ecologia, a vida animal, o bem estar humano
e animal.
Segundo Guy Durand 238 a doutrina maioritária acabaria por limitar a expressão bioética,
tão-só, as problemáticas das ciências biológicas, em particular, as correspondentes aplicações
no medicinal.
A bioética deverá, deste modo, ser entendida sob uma perspetiva global ou universal –
abarcando domínios, como, a deontologia médica, a ética médica, a ética ambiental, numa
estreita articulação funcional - focando, sempre, como objeto, o Homem, enquanto Ser Pessoa
e o Homem enquanto Ser Mundo ou Meio, numa comunhão de sentido e reciprocidade de ação.
239
Nesta linha de entendimento, o objeto de estudo da bioética compreende, de facto, uma
multiplicidade de temas tão abrangentes, quão relevantes. Expomos alguns exemplos chave: a
relação entre profissional-paciente; a saúde pública; as questões sociopolíticas em bioética; o
campo da saúde; a fertilidade e reprodução humana; a pesquisa biomédica e comportamental;
a saúde mental e questões comportamentais; a sexualidade e género; a morte e morrer; a
genética; a ética da população; a doação e transplante de órgãos; o bem-estar e tratamento
de animais; o meio ambiente; os códigos, juramento e outras diretrizes.
A bioética do presente e do futuro procurará, assim, “encontrar o justo equilíbrio entre
a ciência que cresce” – garantindo a sustentabilidade desse processo – “e o Homem que a
entende, usufruindo cientificamente o lado humano que o progresso trouxer.” No fundo
procurará, sempre, garantir o aperfeiçoamento bioético (possível) da ciência e das suas
aplicações concretas. 240
A nova bioética global ou universal, na verdade, revela-se como expressão do
humanismo do novo mundo procurando a otimização da gestão do ser “Pessoa Humana” - em
238
G. Durand Introduction générale à la bioéthique. FIDES/Cerf; 1999.
Neste sentido. Cf. C. Beckert. O Conceito Bioético de Pessoa: Entre o Indivíduo Biológico e o Sujeito Éticojurídico. 15-32. In J. Ribeiro da Silva, A. Barbosa, F. Martins Vale. Centro de Bioética. Faculdade de Medicina da
Universidade de Lisboa. Contributos para a Bioética em Portugal. Lisboa: Edições Cosmos; 2002 . p. 28-31.
240
Cf. J. Ribeiro da Silva. Perspectivas da Bioética. Bioética Contemporânea III. Lisboa : Edições Cosmos e João
Ribeiro da Silva ; 2003. p. 105.
239
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todas as suas dimensões e perspetivas -, da sua dignidade, nos seus corolários fundamentais,
antes, durante e após a vida.
Dentro e através do seu próprio sistema moral evidenciamos, a título essencialíssimo, o
papel propulsor dum novo racionalismo humanista, tendencialmente substituído pelos
denominado equipamentos “inteligentes” (com as mais profundas ressalvas à infelicidade da
expressão); duma formação de especialistas na assistência de pessoas (no seu sentido global:
com as sua virtudes e limitações) com patologias humanas, ao invés de técnicos no tratamento
de patologias humanas, com a consequente alteração do paradigma relacional entre o
profissional de saúde, a equipa e o doente; de relações profissionais de proximidade, através
das quais se estabeleçam importantes laços de confiança (procurando “na relação clínica uma
explicação definidora da vida e também a maneira mais certa para essa vida decorrer, assim
projetando o Homem relativamente à Humanidade. O médico intervém […] para procurar e
encontrar a saúde perdida, mas também para entender e para contribuir […] para o melhor
entendimento do conjunto humano.”241), ao invés de relações de tipo estritamente técnico
(formal, distante), desenvolvidas em ambiente hostil ao estabelecimento de laços (numa frigida
configuração de unidade fabril); do uso generalizado das potencialidades oferecidas pelas
variáveis biográficas, fitando a melhor verdade, de acordo com o profissionalismo do segredo
médico. 242
Os progressos tecnológicos e científicos redimensionam o debate centralizando-o no
Homem, quando este se torna objeto de estudo, de manipulação e de exposição.
Esgotados os limites científicos dos anteriores saberes cabe-nos, porque imperioso,
focar o modus operandi e respetivas implicações ético-jurídicas, das relações existentes entre
três realidades distintas: a ciência, o Estado e a comunidade.
O biodireito – a expressão foi utilizada como título de revista científica norte-americana
desde 1986 (biolaw); em particular na Europa destacamos a primeira obra sobre a temática,
com a data de 1994
243
- resulta da necessidade da comunidade enquanto sociedade
politicamente organizada de criar mecanismos legais, limites a práticas, condutas, violadoras
de bens jurídicos fundamentais.
Enquanto ciência jurídica, analisa, estuda e cria (direta e indiretamente) todo um
conjunto de, critérios, regras e princípios jurídicos, sobre temas relevantes da Bioética (que
241
Cf. J. Ribeiro da Silva. Perspectivas da Bioética. Bioética Contemporânea III. Lisboa : Edições Cosmos e João
Ribeiro da Silva ; 2003. p. 10.
242
Cf. J. Ribeiro da Silva. Perspectivas da Bioética. Bioética Contemporânea III. Lisboa : Edições Cosmos e João
Ribeiro da Silva ; 2003. p. 10.
243
Cf. Ch. Lavialle. De la Bioéthique au Biodroit. Paris: Ed. Droit et Société; 1994.
79
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abrangem as dimensões do Homem enquanto ser pessoa e do Homem enquanto ser do Mundo
ou Meio).
Constitui o instrumento de regulação das consequências sociais dos avanços
tecnológicos e científicos.244 Transporta para a lei as preocupações éticas trabalhadas pela
doutrina, pela jurisprudência, pelas vozes do mundo.245
Particularizando para as questões que dizem, flagrante e diretamente, respeito ao
Homem enquanto ser pessoa (temas mais gritantes): a natureza jurídica do embrião, o aborto,
o testamento vital, a eutanásia, a clonagem humana, a doação de órgãos, o transplante de
órgãos e tecidos entre seres vivos e não vivos, a eugenia, o genoma humano, a manipulação e
o controlo genético, o consentimento informado; o segredo profissional e os níveis de
confidencialidade dos dados etc. Sem descurar outras questões, concernentes ao Homem,
enquanto Ser do Mundo ou do Meio, com repercussões, diretas ou indiretas, no corpo, psique e
percurso vital, tais como: a saúde pública; o bem-estar e tratamento de animais; o meio
ambiente, etc.
A construção dogmática dos comandos jurídicos direta ou indiretamente aplicáveis ou
com meras implicações sobre o conteúdo de todas as questões mencionadas (abarcando,
necessariamente, aqueles normativos que autorizam a investigação, desenvolvimento, conceção
e introdução de certo fármaco, de certa terapia ou intervenção) dependem, sob pena de um total
desfasamento entre a realidade e a abstração, não apenas de uma sólida legitimação parlamentar
(formal), mas de um profundo esclarecimento alargado, diga-se, difusão de conteúdos, o mais
ampla possível (a toda a população), com caracter informativo, mas, também, formativo,
antecedida de uma séria e profunda análise, reflexão e um intenso debate extensível a toda a
comunidade científica (entenda-se numa perspetiva multidisciplinar). Da cooperação entre
todos os saberes resultará, certamente, uma solução técnica e cientificamente ajustada (direta,
objetiva e eficiente) às necessidades de tutela dos bem jurídicos a salvaguardar, isto sem os
subverter através de uma proteção excessivamente ampla ou indireta.
O biodireito pauta-se por valores e princípios base, transversais a todo os ramos do
direito. A dignidade da pessoa humana é um deles: constitui um valor base ou de referência de
matriz constitucional246 (entre nós, o art. 1.º e a al. a) do n.º 1 do art 13.º, ambos da Constituição
da República Portuguesa (mais adiante CRP), respetivamente: “Portugal é uma República
244
Cf. Ch. Lavialle. De la Bioéthique au Biodroit. Paris: Ed. Droit et Société; 1994.
Neste sentido. Cf. J. Miller. Is legislation in Bioethics desirable? An Exploration of aspects of the intersection
of Bioethics and Biolaw” in Bioethics and Biolaw. Vol.I. Judgement of life. Ed. Peter Kemp, Jacob Rendtorff, and
Niels Mattsson Johanssen; 2000.
246
Neste sentido. Paulo Ferreira da Cunha. O ponto de Arquimedes. Coimbra. Almedina. 2001: p. 212.
245
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soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na
construção de uma sociedade livre, justa e solidária”; e “[t]odos os cidadãos têm a mesma
dignidade social e são iguais perante a lei”. Na ordem jurídica espanhola, o art. 10.º/ 1 da
Constituição Espanhola, “A dignidade da pessoa, os direitos invioláveis que lhe são inerentes,
o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito à lei e aos direitos dos demais são
fundamentos da ordem política e da paz social.” Na ordem Jurídica brasileira, o art. 1.º, III da
Constituição democrática de 1988, “[a] República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
Democrático de Direito e tem como fundamentos”: III- “a dignidade da pessoa humana”. Na
ordem jurídica francesa a dignidade da pessoa humana – “contra toda a forma de escravidão e
degradação” - foi elevada à qualidade de princípio constitucional pela jurisprudência do
Conselho Constitucional número 94-343/344 DC de 27 julho de 1994. Tendo-se baseado no
conteúdo da alínea a) do preâmbulo da Constituição de 1946 segundo o qual: “[...] em
consequência da vitória alcançada pelos povos livres sobre os regimes que tentaram escravizar
e degradar a pessoa humana, o povo francês proclama novamente que todo ser humano, sem
distinção de raça, religião, crença, conta com direitos inalienáveis e sagrados. Ele reafirma
solenemente os direitos e liberdades do homem e do cidadão consagrados pela Declaração de
Direitos de 1789 e os princípios fundamentais reconhecidos pelas leis da República.”. Na ordem
jurídica italiana, a 1.ª parte do artigo 3.º da Constituição da República italiana (47) “Todos os
cidadãos têm a mesma social e são iguais perante a lei sem distinção de sexo, raça, língua,
religião, opinião política e condições pessoais e sociais”. Finalmente, na ordem jurídica alemã,
no artigo 1.1, da Lei Fundamental da Bonn (49) “A dignidade do homem é intangível. Respeitála e protege-la é obrigação de todo o poder público.”) e supra constitucional (a título de
exemplo: o 2.º paragrafo do preâmbulo da Carta das Nações Unidas de 1945, “[n]ós, os povos
das Nações Unidas, decididos”: “a reafirmar a nossa fé nos direitos fundamentais do homem,
na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres,
assim como das nações, grandes e pequenas”; o art. 1.º da Declaração Universal dos Direitos
do Homem: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos.
Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de
fraternidade;” mas também: parágrafos 1.º e 2.º do preâmbulo e o art. 10 do Pacto das Nações
Unidas relativo aos Direitos Civis e Políticos; parágrafos 1.º e 6 do preâmbulo e os arts. 1.º, 2.º,
3.º, 6.º, 10.º, 11.º, 12.º, 15.º, 21.º, 24.º da Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os
Direitos Humanos [apelidado de património da humanidade]; parágrafos 3.º, 7.º e 12.º do
preâmbulo e as alíneas. c) e d) do art.2.º, o n.º 1 do art. 3.º, os arts. 10.º, 11.º, 12.º, 28.º, da
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Declaração Universal sobre a Bioética e os Direitos dos Homens; parágrafos 10.º, 11.º e 18.º do
preâmbulo e art. 1.º da Convenção de Oviedo (“Convenção para a [Proteção] dos Direitos do
Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina:
Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina”); 2.º paragrafo do preâmbulo e o art.
1.º, ambos da Carta dos Direitos Fundamentais da União europeia (00), respetivamente,
“Consciente do seu património espiritual e moral, a União baseia-se nos valores indivisíveis e
universais da dignidade do ser humano, da liberdade, da igualdade e da solidariedade; assenta
nos princípios da democracia e do Estado de Direito. Ao instituir a cidadania da União e ao
criar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça, coloca o ser humano no cerne da sua
acção (…). A dignidade do ser humano é inviolável. Deve ser respeitada e protegida.”) de
natureza ampla que legitima e, simultaneamente, limita a intervenção do direito, que permite, e
simultaneamente, proíbe certas e determinadas condutas dos seres sociais.
A pessoa humana e a sua dignidade constituem o vetor fundamental da estrutura basilar
da comunidade. São fundamento e fim último da sociedade e do Estado, correspondendo, de
facto, a valores que predominam e predominarão sobre qualquer tipo de avanço científico e /
ou tecnológico (art.º 6.º. A Declaração sobre a Utilização do Progresso Científico e Tecnológico
Interesse da Paz e em Benefício da Humanidade, feita pela ONU em 10 de novembro de 1975).
A dignidade da pessoa humana constitui um valor máximo, supremo, que se materializa
moral, ética e espiritualmente, revelando-se, em termos relacionais, no sentimento de
solidariedade interindividual. 247 248 249 250
Deste modo, a bioética e o biodireito, enquanto densificações daquele valor, não podem
admitir quaisquer condutas tendentes a reduzir a pessoa humana à condição de coisa - a pessoa
humana é considerada sujeito e não objeto, e deve ser um fim e não um mero meio de relações
jurídico sociais251 - retirando-lhe a sua dignidade e o direito a uma vida condigna.
A dignidade da pessoa humana não é, claramente, um valor/ princípio fácil de definir,
seja pelo seu caráter pluridimensional e ambíguo, sendo porque revela uma natureza temporal
247
Sobre a dignidade da pessoa humana. Cf. J.J. G. Canotilho. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.
Almedina; 2003. pp. 225-226 e in passim.
248
Ver também sobre a dignidade da pessoa humana. Cf. J.J. G. Canotilho, V. Moreira. Constituição da República
Portuguesa Anotada: Volume I - Artigos 1º a 107º. Coimbra: Coimbra Editora; 2007. pp. 198-200 e in passim.
249
Ver também sobre a dignidade da pessoa humana. Sobre a mesma temática. Cf. Maria Helena Diniz. O
Respeito À Dignidade Humana Como Paradigma da Bioética e do Biodireito. 967-971. In: Jorge Miranda, Marco
António Marques da Silva. Tratado Luso- Brasileiro da Dignidade Humana. S. Paulo: Quartier Latin do Brasil; 2008.
250
A dignidade da pessoa humana e as raízes fundamentantes do direito. Cf. Santos Justo, A. Nótulas do
Pensamento Jurídico: História do Direito; 2005. p. 81-82.
251
Neste sentido. Barbara Freitag. A questão da moralidade: da razão prática de Kant à ética discursiva de
Habermas, Revista de Sociologia da Iniversidade de S. Paulo. Tempo Social. Vol. 1. N.º 2. 1989: p. 10.
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e espacialmente variável (não obstante a existência de uma conceção ou aspetos nocionais
objetivamente transversais).
Entendemos, de entre as diversas perspetivas existentes, que deverá ser sempre
perspetivada / analisada segundo dois pontos de vista distintos252, mas complementares: a
dignidade enquanto proteção/tutela da posição jurídica do indivíduo; e a dignidade como
autonomia do indivíduo (autodeterminação).
Sendo o primeiro característico da cultura jurídica norte-americana e o segundo o que
se mantém na Europa continental. 253 254
A dignidade da pessoa humana corresponde a uma ideia/valor força – que deverá ser
respeitada (o) e protegido de todos os ataques / perigos - acolhida(o) na atual civilização
ocidental255
256
, surgindo, por efeito, e como vimos, explicita e implicitamente em diversos
textos fundamentais sobre Direitos Humanos.
A título de exemplo veja-se o conteúdo geral do preâmbulo da Carta das Nações Unidas
de 1945, bem como, o preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem (de 1948),
em conjugação com o artigo 1.º do mesmo diploma. Uma analise integrada dos preceitos
permite-nos, por forma lapidar, concluir que257 258 259:
252
Cf. I. Sarlet. As Dimensões da Dignidade da Pessoa Humana: Uma Compreensão Jurídico-Constitucional
Aberta e Compatível com os Desafios da Biologia. In: Direitos Fundamentais e Biotecnologia, S. Paulo: Ed.
Método; 2008. p. 30 ss.
253
Cf. Frédérique Dreifuss-netter. La Protection Pénale de l’Être Humain avant la Naissance In : La Personne
Juridique dans la Philosophie du Droit Pénal. Panthéon Assas ; 2001. p. 95.
254
Cf. Bjarne Melkevik. Les Concepts de Personne et de Dignité: La Question de Droit. In : La Personne Juridique
dans la Philosophie du Droit Pénal. Paris: Editions Panthéon Assas ; 2001. p. 85-87.
255
Uma voz discordante. Cf. Vera Lúcia Raposo. O Direito à Vida na Jurisprudência de Estrasburgo.
Jurisprudência Constitucional. 2007; n.º 14 Abril-Junho: p. 85-87.
256
Outra voz discordante. Cf. C. A. Gomes. Risque Sanitaire et Protection de l’Individu Contre Soi-Même.
Quelques Topiques pour un Débat. Rev. do M. P.. 2008; nº 116 : p. 133 ss.
257
O artigo 1.º: “Les droits de l'homme sont l'expression directe de la dignité de la personne humaine. L'obligation
pour les Etats d'en assurer le respect découle de la reconnaissance même de cette dignité que proclament déjà la
Charte des Nations Unies et la Déclaration universelle des droits de l'homme. Cette obligation internationale est,
selon une formule utilisée par la Cour internationale de Justice, une obligation erga omnes ; elle incombe à tout
Etat vis-à-vis de la communauté internationale dans son ensemble, et tout Etat a un intérêt juridique à la protection
des droits de l'homme. Cette obligation implique au surplus un devoir de solidarité entre tous les Etats en vue
d'assurer le plus rapidement possible une protection universelle et efficace des droits de l’homme.”. “Human
rights are a direct expression of the dignity of the human person. The obligation of States to ensure their
observance derives from the recognition of this dignity as proclaimed in the Charter of the United Nations and in
the Universal Declaration of Human Rights. This international obligation, as expressed by the International Court
of Justice, is erga omnes ; it is incumbent upon every State in relation to the international community as a whole,
and every State has a legal interest in the protection of human rights. The obligation further implies a duty of
solidarity among all States to ensure as rapidly as possible the effective protection of human rights throughout the
world. “ Cf. Instituto de direito internacional. La protection des droits de l'homme et le principe de non-intervention
dans les affaires intérieures de l'Etat. 1.ª resolução adoptada a 13 setembro de 1989 – Em Santiago de Compostela
(Giuseppe Sperduti (Relator)). Anuário, 1990, v. 63-II: p.338. Cf. Instituto de direito internacional. La compétence
universelle civile en matière de réparation pour crimes internationaux/ Universal civil jurisdiction with regard to
reparation for international crimes. (Andreas Bucher (relator)). Relatório final. 2015: p. 6.
258
Cf. Jean Marie Crouzatier. Droit International de la Santé. Paris: Éditions des archives contemporaines. 2009:
p. 97.
259
Cf. Lenoir, N., Mathieu, B.. Les normes internationales de la bioéthique. Paris: PUF; 1998: p. 100.
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"Os direitos humanos são a expressão direta da dignidade da pessoa humana, a
obrigação dos Estados de assegurarem o respeito que decorre do próprio reconhecimento
dessa mesma dignidade".
A dignidade da pessoa humana, nas suas dimensões e projeções ético-jurídicas,
enquanto matriz estatutária fundamental/ fundamentante e reduto intangível tem as suas
implicações não apenas ao nível dos direitos civis e políticos (direitos primários)260.
Entre nós e a título exemplificativo261:
Direitos Civis: o direito à informação (art. 20.º, n.º 2 da CRP) o direito à vida (art. 24.º
da CRP); o direito à propriedade (art. 62.º da CRP); o direito à liberdade e à segurança (art. 27.º
da CRP); direito à integridade física e psíquica (art. 25.º da CRP); o direito ao desenvolvimento
da personalidade, o direito à identidade pessoal, o direito à identidade genética, à reserva da
intimidade da vida privada e familiar (art. 26.º da CRP);
Direitos políticos: a liberdade de associação (art. 51.º da CRP); o direito de petição e
direito de ação popular (art. 52.º da CRP);
Mas, também, ao nível dos direitos económicos, sociais, culturais (outros níveis –
dinâmicos - de cristalização), corolários dessa mesma dignidade,
Direitos económicos: o direito ao trabalho (art. 58.º da CRP) (2.ª geração); os direitos
dos consumidores (no art. 60.º da CRP) (3.ª geração);
Direitos sociais: o direito à saúde (art. 63.º da CRP) (2.ª geração); o direito ao ambiente
e qualidade de vida (no art. 66.º da CRP) (3.ª geração);
Direitos culturais: o direito à educação, cultura e ciência (art. 73.º da CRP) (2.ª e 3.ª
gerações).
Finamente, entre outros aspetos, ela, também, dá dimensão ao conteúdo do princípio da
igualdade e da não discriminação (art. 13.º da CRP) e o princípio da confiança, corolário do
principio do Estado de direito democrático (art. 2.º da CRP).
A dignidade da pessoa humana justifica, assim, a imposição de deveres públicos e
comunitários de defesa contra todos os ataques que possam ferir/ agredir– nos diversos planos/
sentidos da constelação ético-jurídica – os bens jurídicos fundamentais ou coloca-los em risco
ou perigo. Com especial enfoque, os respetivos núcleos essenciais.
260
Em sentido próximo. António Junqueira de Azevedo. Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana.
Revista trimestral de direito civil. Ano 2. Vol. 9. Jan./Mar..: 2002. Vide também. Nuno Manuel Pinto Oliveira.
Dignidade da pessoa humana e a regulação jurídica da bioética. Lex Medicinae – Revista Portuguesa de Direito
da Saúde. Ano 8. N.º 15: 2011.
261
Atente-se a conceção de Ser e da sua dignidade enquanto fluxo contínuo integrado na realidade universal.
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No fundo, proteger a dignidade da pessoa humana é garantir a vida, e a sua
condignidade, e o direito, sendo nesse limbo que se entrecruzam-se os saberes. Quando falamos
em dignidade humana reclamamos justiça para a humanidade.
Com o reconhecimento da importância atribuída à dignidade da pessoa humana, à ética,
à bioética e ao biodireito, em todas as suas dimensões, a evolução científica e tecnológica ganha
um novo sentido, verdadeiramente humanista. 262
262
Muito oportunas são as reflexões, com as correspondentes projeções ético-jurídicas, de Sloterdijk no livro
Regras para o parque humano. Cf. Peter Sloterdijk. Regras para o parque humano. Angelus Novus. Tradução de
Manuel Resende; 2008.
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CONCLUSÕES
Não há dúvida que a introdução de certos e determinados avanços tecnológicos e
científicos na medicina e nas industrias envolve perigos e, muitas vezes, riscos reais para a
saúde e para o meio ambiente. Exigindo-se uma profunda avaliação tão criteriosa quanto
possível.
É fundamental o debate informativo e formativo alargado. Não, apenas circunscrito à
micro comunidade, mas aberto a todo o globo, tendo em linha de conta os efeitos,
tendencialmente, mundiais de certos avanços (decorrentes da sua difusão e aplicação),
principalmente, no domínio da biotecnologia, e a imprevisibilidade dos fluxos migratórios no
decurso do devir social.
Uma análise científica profunda, uma intensa reflexão, um debate plural, e uma ampla
difusão informativa e formativa são fundamentais à consciencialização alargada dos efeitos
positivos e negativos (qualidade e níveis) que dado avanço no domínio da biotecnologia
implica, nomeadamente, os perigos e riscos biológicos e sociais, sejam eles reais ou potenciais.
O debate plural alargado e, consequente massificação do conhecimento nestes domínio
assegura a prevenção do tecido social, seja no domínio da vida prática ou da vida cívica /
política. Permitindo, em primeiro lugar, que os agentes sociais façam boas escolhas. Uma
decisão sana, equilibrada, objetiva, concisa, carece, sempre, de um sustentáculo prévio, o
conhecimento científico. Uma boa decisão não pode ser baseada somente em impulsos,
movidos por emoções perfeitamente condicionáveis. Uma decisão racional e conscienciosa
necessita, a par de um conhecimento esclarecido da realidade, uma solida base de sustentação,
o chamado conhecimento técnico informativo (ou conhecimento técnico massificado). Não
obstante, a necessária informação assistencial em contexto. Todavia, também esta carece de
informação e formação técnicas prévias. Finalmente, permite àqueles agentes acionar, com a
antecedência necessária, os meios legítimos à garantia concreta e abstrata dos direitos e
interesses real ou potencialmente expostos. O conhecimento esclarecido e informado sobre a
realidade permite antever as potencialidades de certa medida, método ou aplicação. Este juízo
crítico de prognose articulado com a participação cívica intensificará o controlo sobre as ações
concretas, bem como, o controlo sobre o controlo institucional concreto e abstrato (o grande
dilema das comunidades).
Certamente que o nível educacional, a tendencial estrutura comercial do média e todo
um quadro de limitações burocráticas poderão constituir um obstáculo de difícil superação.
Todavia, o agudizar da autonomia do sentido critico constituirá o primeiro pilar da transmutação
do atual paradigma informativo e formativo da população.
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Decorre do exposto a inevitabilidade prática – com conteúdo preventivo (conservatório
ou antecipatório) - do debate plural alargado como garantia da boa gestão pessoal do individuo
e correspondente percurso vital (autodeterminação), bem como, do exercício efetivo dos
direitos e liberdades políticos e de cidadania.
A dignidade da pessoa humana constitui um valor - prévio à comunidade e ao Estado enformador das várias dimensões da vida social, com imensas projeções dogmáticas, conforme
já tivemos oportunidade de delinear, e revela, o mais das vezes, por si, densidade suficiente
para se auto projetar na realidade ontológica e operar os seus efeitos jurídicos.
Uma visão auto e hétero projetada - no tempo e no espaço – deste poderoso limite
[acolhida e trabalhada pela comunidade científica e pelos centros legítimos e paralelos de poder
(grupos)] garantirá a sustentabilidade - humana, social, económica, financeira e cultural - do
progresso da civilização em todos os domínios e alcances, permitirá reclamar e impor um
verdadeiro sentido humanista num globo - constituído por Homens e outros seres vivos, que o
partilham, no mesmo meio envolvente - inserido numa galáxia – via láctea - de um universo em
muito intangível e incognoscível. Permitirá, no fundo, institucionalizar este valor supremo em
todas as dimensões da vida humana e social – designadamente: existência humana até à barreira
da experiência social; familiar e assistencial, académica / científica e profissional, económica e
financeira, política / administrativa / executiva, legislativa e judiciária - garantindo, assim, a
devolução do atual paradigma, consequentemente, a reposição da pirâmide de valores que, meia
volta, sofre uma inversão potenciada, o mais das vezes, por impulsos económicos e financeiros
dos mercados, que se movem por cotizações e flutuações, atentos, no fundo, bens tangíveis e
não valores estruturantes e nuclearmente constantes.
A dignidade da pessoa humana concebida e aplicada segundo estes moldes assegurará,
hoje e no amanhã, quando confrontada com as realidades emergentes da evolução dos tempos,
a tutela dos bens jurídicos fundamentais, real ou potencialmente, expostos.
Protegendo-se, deste modo, a esfera inviolável ou intangível, porque estritamente
fundamental, do Homem Solo, do Homem Mundo e do Homem Cidadão.
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BREVÍSSIMA ANÁLISE DO FENÓMENO DA
CIBERPEDOFILIA E CIBERPORNOGRAFIA
INFANTIL *
Tiago Sérgio Cabral263
*O autor dirige uma palavra de agradecimento ao Professor Doutor Fernando Conde Monteiro, referência do
Direito Penal da Escola de Direito da Universidade do Minho que pacientemente reviu e corrigiu o draft deste
trabalho.
263
Estudante do Curso de Direito da Universidade do Minho, Investigador do Núcleo de Estudos de Direito Ius
Pubblicum (NEDip).
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RESUMO
Com evolução cada vez mais rápida das tecnologias de informação é importante ao
Direito indagar sobre como deverá regular este “admirável mundo novo” onde tudo se encontra
conectado. Neste artigo procuramos demonstrar como esta regulação deve ser feita com a maior
prudência possível incidindo sobre dois casos particulares em que regulação excessivamente
opressiva em questões de menor gravidade originou uma séria complicação no combate à
ciberpedofilia e ciberpornografia infantil.
PALAVRAS-CHAVE: Pedofilia / Ciberpedofilia / Pornografia Infantil / Cibepornografia
Infantil / Dark Web / Direito de Autor / Partilha Online de Ficheiros Protegidos por Direito de
Autor / Informática / Encriptação / VPN / TOR / Whistleblowing
1. INTRÓITO
“Lo”. Esta foi a primeira mensagem transmitida no estado primordial da rede, que mais
tarde daria origem aquilo que hoje conhecemos como Internet. A história mostra que a Internet
não começou com o pé direito. Esta mensagem foi fruto de um erro de um grupo de
investigadores da UCLA , quando tentava aceder remotamente a um computador do Stanford
Research Institute. A experiência falhou antes de poderem escrever “log”. O acidente ocorrido
em 1969, não foi mais que um pequeno infortúnio numa história cheia de sucesso.264
A massificação da tecnologia deu origem a um admirável mundo novo, onde a
informação está disponível à velocidade de um clique. A distância pode ser vencida em
segundos. A sociedade não seria a mesma sem o advento desta tecnologia. 265 Na senda do
progresso, o Conselho Constitucional Francês considerou o acesso aos serviços de comunicação
264
Cfr. SINGER, P.W/ FRIEDMAN, Allan - Cybersecurity and Cyberwar: What Everybody Needs to Know. New
York: Oxford University Press, 2014, p. 14
265
Neste sentido concordamos com Pedro Freitas quando diz que “a tecnologia — produto da dialética entre a
ciência e a engenharia —, e mais concretamente as tecnologias de informação e comunicação, entre as quais se
situa a informática, provocaram, no século XX, um impacto irrivalizável na sociedade humana, cujos efeitos hoje
perduram.” Vide FREITAS, Pedro - “Breves Nótulas Sobre o Crime de Acesso Ilegítimo Previsto na Lei do
Cibercrime”. in Estudos em Comemoração dos 20 Anos da Escola de Direito da Universidade do Minho.
Coimbra: Coimbra Editora, 2015. p. 568.
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como um dos direitos fundamentais do homem,266 Concordamos e esperamos que,
eventualmente, o mesmo seja acolhido na Constituição da República Portuguesa. 267
Mas, nem todo o “admirável” deste mundo novo é necessariamente positivo. A rápida
progressão das tecnologias de informação268 fomentou uma mudança social a uma velocidade
tão alucinante, a qual tem gerado enormes dificuldades de adaptação ao Direito. A Ciência
Jurídica é obrigada a ajustar-se à nova realidade, conjugando a celeridade necessária ao
momento, com a prudência que lhe é característica.
Infelizmente o sucesso na demanda não é absoluto. Não têm sido poucas as ocasiões em
que se tenta regular, segundo uma visão tradicional, um novo fenómeno ocorrido a nível digital.
O Direito acaba assim a fazer uso das armas erradas. Pior ainda quando ignorando que está a
lidar com uma verdadeira rede, na acepção de teia, faz uso de métodos que sem resolver o
problema inicial, criam situações de uma complicação muito superior.
Neste trabalho procuraremos demonstrar que o combate aos fenómenos de
WhistleBlowing, e de forma ainda mais paradigmática à partilha ilegal de ficheiros protegidos
por direito de autor, teve repercussões negativas no combate à pedofilia e pornografia infantil.
Consequências estas que pensamos serem de maior grau, que qualquer sucesso alcançado nas
outras duas frentes.
266
Cfr. [Acordão do Conselho Constitucional Francês]; [10 Jun. 2009]; [http://www.conseilconstitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/root/bank_mm/anglais/2009_580dc.pdf]. [Consultado em 27 Dez.
2014]
267
Quando se ultrapassar o actual negativismo quanto à Constituição, quiçá se abram as portas a tal inclusão.
268
É estonteante a velocidade com que a Internet e a necessidade de acesso a ele se propagou no nosso país. Em
Portugal o número de agregados familiares com ligação á Internet em casa aumentou de 15,1% em 2004 para
65% em 2014 destes apenas 7,9% tinham ligação de banca larga em 2003 ao passo que em 2014 usufruem deste
serviço 63% dos agregados domésticos privados. Cfr. PORDATA/INE - Agregados domésticos privados com
computador, com ligação à Internet e com ligação à Internet através de banda larga (%) em Portugal.
[Consultado em 27 Dez. 2014]. Disponível em:
http://www.pordata.pt/Portugal/Agregados+domesticos+privados+com+computador++com+ligacao+a+Internet+
e+com+ligacao+a+Internet+atraves+de+banda+larga+(percentagem)-1158.
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2. WHISTLEBLOWING E WIKILEAKS
De forma a encontrar a origem do fenómeno digital de WhistleBlowing devemos atentar
na figura do soldado Americano Bradley Manning. Manning foi o homem perfeito, na posição
ideal para dar início ao fenómeno. Dentro das condições que o tornavam ideal são de destacar
o seu acesso a uma enorme quantidade de documentos secretos, ser possuidor de um vasto
conhecimento técnico, estar descontente e ser discriminado pelo exército devido à sua
orientação sexual269.270 Os sentimentos de Manning são facilmente perceptíveis nas conversas
trocadas com Adrian Lamo através da plataforma de mensagens instantâneas AOL, que
reproduzimos a seguir, devidamente traduzidas. 271
Bradass87: “Pergunta hipotética: Se tivesses acesso livre a redes secretas por um longo
período de tempo… vamos dizer, 8 a 9 meses… e visses coisas incríveis, coisas horríveis…
coisas que pertencem ao domínio público, e não devem estar guardadas num servidor num
quarto escuro em Washington DC… Que farias?”
“Uma base de dados com meio milhão de eventos ocorridos durante a guerra do
Iraque… de 2004 a 2009… Com relatórios, localizações latitude-longitude, número de
mortos…? Ou 260000 telegramas do departamento de estado, enviados por embaixadas e
consulados de todo o mundo que explicam como o primeiro mundo explora o terceiro, em
detalhe, de uma perspectiva interna?”...
“Vamos só dizer que “alguém” que eu conheço de forma íntima, andou a invadir
redes secretas Norte-Americanas à procura de informações como aquelas que te descrevi… A
transferir a informação das redes secretas para um computador … A organizar a informação,
a comprimi-la, e a transferi-la para um louco australiano de cabelo branco que parece ser
incapaz de se manter no mesmo país por muito tempo.”
“O louco de cabelo branco = Julian Assange”
“Noutras palavras… armei uma grande confusão”
269
Bradley Manning viria mais tarde a tornar-se Chelsea Manning
We Steal The Secrets: The Story of Wikileaks. DVD, realizado por ALEX GIBNEY, 1ª. ED., Utah, Focus
Features, 2013.
271
Este nosso trabalho de tradução torna-se ainda mais necessário visto que, salvo desconhecimento nosso, estas
nunca foram traduzidas para Português. Tentamos desta forma manter a tradução o mais fiel possível ao original.
270
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Para o olho atento é manifesto que na conversa reproduzida Manning justifica as suas
acções com recurso a dois dos tipos mais comuns de técnicas de neutralização272. Ao afirmar
que estas “coisas horríveis (…) não devem estar guardadas num servidor num quarto escuro”,
Manning censura os seus condenadores, ao denunciar o carácter injusto das forças armadas que
mantêm estas informações longe do público em geral. A segunda técnica presente é o apelo a
lealdades superiores, mais precisamente à nação no sentido de povo. Manning considera que é
da maior importância revelar a verdade ao público em geral, mesmo que isto implique
desobedecer leis.
273
O apelo a lealdades é recorrente nos responsáveis por WhistleBlowing.
Julian Assange defende que a única razão para uma organização poderosa manter segredos é
por saber que o público se oporia a eles274, Também Edward Snowden responsável pela
divulgação de programas de espionagem de inúmeras agências Norte-Americanas e Europeias,
com especial incidência na Nacional Security Agency275, justificou as suas acções invocando
este entendimento. Parece-nos indiscutível que todos os supracitados assimilaram os valores da
cultura maioritária uma vez que procuram fundamentar-se dentro desta.276
Os documentos fornecidos por Manning foram o primeiro home run para a plataforma
Wikileaks277 que sobre a mestria278 de Julian Assange, utilizou estas informações tornando-se
um nome mundialmente conhecido de governantes e público em geral.
A predilecção aparente da Wikileaks por “alvos” Norte-Americanos levou a uma
resposta célere pela justiça deste país, com a colaboração das múltiplas agências de investigação
que lhe estão disponíveis (algumas insatisfeitas por ver os seus segredos divulgados ao público).
A dimensão do processo que se seguiu é inédita, pelo menos contra jornalistas que publiquem
peças censuradas ou indivíduos responsáveis por WhistleBlowing. O primeiro visado foi
272
Poderia argumentar-se que tanto Manning como Assange e Snowden seriam antes criminosos por convicção
que cometem o crime pela sua convicção na lei injusta. Da investigação que fizemos de forma a elaborar este
trabalho não foi essa a conclusão a que chegamos. Ficam algumas referências bibliográficas ao fenómeno:Cfr.
RADBRUCH, Gustav - “El Delinquente Por Convicción” in Revista Electrónica de Ciencia Penal y
Criminologia, 1695-0194. n.º 7, 2005. [Consultado em 7 de Abril]. Disponível em:
http://criminet.ugr.es/recpc/07/recpc07-r4.pdf; PEREIRA, Maria Mariana –“Decisões de Consciência em Direito
Penal” in JusJornal, N.º 752, 2 de Abril de 2009, p. 5 e ss; CORREIA, Eduardo – Direito Criminal. Vol I,
Coimbra: Almedina, 2008, pp. 419 e ss.
273
Cfr. DIAS, Figueiredo / ANDRADE, Manuel Costa De - Criminologia: O Homem Delinquente e a Sociedade
Criminógena. 2.ª reimp., Coimbra: Coimbra Editora, 1997, pp. 240 e ss.
274
Cfr. ASSANGE, Julian - When Google Met Wikileaks, OR Books, New York, 2014, p. 117.
275
Incidiremos mais aprofundadamente na história de Edward Snowden infra.
276
Hipótese que contraria as teorias das subculturas delinquentes.
277
Não obstante pequenos sucessos anteriores, por exemplo com a divulgação do manual de tratamento dos
prisioneiros de Guantánamo.
278
Numa perspectiva de Marketing parece-nos inegável que pormenores como a edição, título e anotações do
vídeo “Collateral Murder”, o primeiro dos documentos fornecidos por Manning a ser publicado, não seja
incriticável. Em termos morais/ideológicos não faremos avaliações do carácter de Julian Assange.
92
Agosto 2016
Nº 1
Bradley Manning, denunciado ao FBI por Adrian Lamo 279 e mantido em prisão preventiva por
1103 dias. Mais tarde, acabou condenado em tribunal militar a 35 anos de prisão, num
julgamento rodeado por secretismo.280 Posteriormente o departamento de Justiça NorteAmericano procurou trazer Julian Assange à justiça sob a alçada do “Espionage Act” de 1917.
Foram criadas “taskforces” com o único propósito de combater a ameaça que representa a
Wikileaks. A companhia Twitter recebeu ordens para revelar informações, moradas, números
de telefone de indivíduos alegadamente associados à Wikileaks.281 Houve mesmo quem
clamasse pela eliminação de Julian Assange utilizando um ataque de drone.282 O fundador da
Wikileaks encontra-se actualmente exilado na embaixada do Equador, na cidade de Londres,
sob a ameaça de detenção imediata caso se ausente. 283
Para além da intervenção contra o homem responsável pela organização, a
Wikileaks sofreu inúmeros contratempos após a divulgação destas informações. Diversos
provedores de Internet deixaram de permitir o acesso ao site da organização, destaque-se os
casos da Amazon que viria apagar a Wikileaks dos seus servidores e do serviço de DNS,
responsável por redireccionar para o domínio wikileaks.org, que o deixou de fazer.
A resposta da plataforma viria a tornar-se no gold standard para qualquer organização
análoga que se queira, à revelia de forças externas, manter na rede. Milhares de utilizadores da
Wikileaks ofereceram os seus servidores para alojar cópias do site principal enquanto um
número ainda maior publicitava através das redes sociais os novos endereços do website e suas
cópias. O medo de represálias e ânsia por fugir aos controlos governamentais levou alguns a
deslocarem-se para as Dark Web, bem como a utilização do protocolo Bittorrent para partilha
dos ficheiros divulgados pela organização impossibilitou a retirada dos documentos da Internet
e dificultou a identificação dos responsáveis pela partilha destes.284
279
Cfr. SINGER, P.W / FRIEDMAN, Allan - op. cit., p. 55.
Cfr. ASSANGE, Julian - op. cit., p. 174 e ss.
281
Cfr. ASSANGE, Julian - op. cit., p. 178 e ss.
282
Cfr. http://www.telegraph.co.uk/news/worldnews/wikileaks/8172916/WikiLeaks-guilty-parties-should-facedeath-penalty.html. [Consultado em 4 de Abril de 2015]
283
Assange não procurou asilo por razões directamente conectadas com a Wikileaks. Assange é acusado na
Suécia de Crimes Sexuais que seriam análogos ao disposto no art.º 164.º do nosso Código Penal
284
Cfr. ASSANGE, Julian - op. cit., p. 175 e 176.
280
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Nº 1
2.1 EDWARD SNOWDEN E A NSA
Em Junho de 2013 o jornalista Glenn Greenwald revelou os primeiros de uma grande
colecção de documentos secretos que lhe foram fornecidos pelo ex-analista da NSA Edward
Snowden. Estas revelações, na sua maioria referentes a um esforço pela agência referida de
vigilância electrónica em massa, trouxeram a público três dados impensáveis anteriormente:
existe capacidade técnica para executar vigilância electrónica nesta escala, existe vontade para
realizar a supra-referida e existe colaboração das entidades privadas neste sentido uma vez que
o programa contava com a participação de empresas tão conhecidas como a Apple, Microsoft,
Google, Yahoo e Skype que permitiam à agência a obtenção de dados em tempo real.285 286
Snowden ficara perplexo com o escopo do programa de vigilância que encontrara
enquanto funcionário da Booz Allen Hamilton, empresa subcontratada pela NSA. Depois de
copiar e partilhar com a comunicação social uma série de documentos sensíveis viria a fugir
para Hong Kong de maneira a não se encontrar nos Estados Unidos aquando da vaga inicial de
revelações. Mais tarde refugiar-se-ia na Rússia onde se encontra actualmente.
O impacto das revelações do ex-analista foi tão intenso que levou à sua eleição como
homem do ano pelo jornal “The Guardian”, mudou os hábitos de pesquisa dos utilizadores da
Internet a nível global287 e dividiu a opinião pública entre aqueles que consideravam Snowden
um traidor e aqueles que o consideravam um herói. 288
Por já termos feito diversas constatações sobre a Wikileaks e Julian Assange supra que
se aplicam por analogia é importante apontar apenas as diferenças entre os casos. As
divulgações feitas por Snowden concernem em primeira mão todos os utilizadores da Internet
pois o programa de vigilância da NSA e seus colaboradores (a nível internacional) tinha uma
abrangência geral. Como tal qualquer um destes utilizadores pode ter visto os seus dados
analisados pelos computadores desta agência em algum momento no passado. Escusado será
dizer que este programa não tem como objectivo analisar o comportamento de um qualquer
particular, mesmo que este seja responsável por ilícitos menores. Convém relembrar no entanto
o direito à privacidade do indivíduo que não deve ser visto como potencial criminoso que deva
preventivamente ser vigiado. Entre nós relembramos a consagração do direito à reserva da
285
Cfr.MARTHEWS, Alex / TUCKER, Catherine - Government Surveillance and Internet Search Behavior.
[Consultado em 4 de Abril]. Disponível em: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2412564, p. 2
286
Cfr. JR., John Robinson -The Snowden Disconect: When The Ends Justify The Means. [Consultado em 4 de
Abril]. Disponível em: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2427412, p. 9
287
Cfr. MARTHEWS, Alex / TUCKER, Catherine – op. cit., p. 29
288
Cfr. JR., John Robinson – op. cit., p. 18 e ss
Cfr. https://yougov.co.uk/news/2013/06/16/edward-snowden-hero/
Cfr. https://euobserver.com/foreign/120795
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Nº 1
intimidade da vida privada como um dos direitos fundamentais da Constituição da República
Portuguesa afim de demonstrar quão a sério as ordens jurídicas levam este preceito.289 Não se
trata apenas de um Direito Fundamental como é uma necessidade fundamental do ser humano
pelo que, naturalmente, quando a vejam em perigo os utilizadores da Internet procurarão
maneiras de resistir contra a sua violação. O conteúdo das revelações de Snowden contribuiu
não só para mediatizar a problemática devido ao interesse mundial que suscitou como também
foi um catalisador que levou à propagação de diversas tecnologias utilizadas para proteger a
privacidade na rede algumas das quais falaremos infra.
3. PARTILHA ONLINE DE FICHEIROS PROTEGIDOS POR DIREITO DE AUTOR
O segundo conflito que nos importa abordar insere-se no âmbito da propriedade
intelectual, mais precisamente num dos institutos jurídicos que a compõe: O direito de autor.
Para descrever este instituto faremos uso, por tão eloquentes, das palavras de LUÍS
COUTO GONÇALVES.
“O direito de autor, que inclui a tutela dos direitos conexos, protege as criações
intelectuais dos domínios literário e artístico, por qualquer modo exteriorizadas e qualquer
que seja o seu género, mérito ou forma de expressão, incluindo: obras literárias; obras
audiovisuais; obras de multimédia; programas de computador (software)-, obras de arte
aplicadas, desenhos ou modelos e obras de design que constituam criação artística; ilustrações
e cartas geográficas; projetos, esboços e obras plásticas respeitantes à arquitetura, ao
urbanismo, à geografia ou às outras ciências. No âmbito do direito de autor são também
reconhecidos direitos exclusivos conexos sobre as prestações dos artistas, intérpretes ou
executantes, dos produtores de fonogramas e videogramas e dos organismos de
radiodifusão.”290
Não será difícil constar que a Internet veio dificultar seriamente a protecção destas
criações. O Napster veio apenas popularizar aquilo que já ocorria anteriormente em
Newsgroups, a partilha de ficheiros protegidos por direito de autor, ou comumente a pirataria.
289
Cfr. CANOTILHO, J. J. Gomes / MOREIRA, Vital - Constituição da República Portuguesa Anotada. Vol. I,
4.ª Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2014, p. 476 e ss.
290
Cfr. GONÇALVES, Luís Couto - “Propriedade Intelectual e Globalização”. in Estudos em Comemoração dos
20 Anos da Escola de Direito da Universidade do Minho, Coimbra: Coimbra Editora, 2015, p. 410.
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Nº 1
Entre nós, esta questão é regulada maioritariamente pelo Código do Direito de Autor e
Direitos Conexos291. É também de especial importância para a nossa discussão a Lei da Cópia
Privada292, cuja última revisão sofreu de um veto presidencial, vindo a ser confirmada sem
alterações pela Assembleia da República, e a qual já tivemos oportunidade de criticar, ainda
que de forma muito breve, noutras sedes.293 Já na altura dissemos que caso a revisão fosse em
frente a sua eficácia seria no mínimo duvidosa. O mesmo afirmamos do art.º 195.º do Código
do Direito de Autor e Direitos Conexos que nos parece ser completamente anulado pela al. do
n.º 2.º do art.º 75.º e pela al. b) do art.º 81.º do mesmo diploma. E ainda bem que assim é! Como
afirma Nuno Pereira, o Presidente da ACAPOR a pena de prisão em caso de usurpação
294
é
excessiva.295 Porém a supramencionada pessoa mina a sua própria posição, demonstrando o seu
fraco conhecimento jurídico e social ao defender a substituição por uma contra-ordenação ou
por um corte de Internet aqueles que descarreguem ficheiros protegidos por Direito de Autor,
métodos estes que nos parecem igualmente excessivos. Afigurar-se-nos que Nuno Pereira acaba
por se focar excessivamente e erradamente no consumidor de downloads e não no produtor ou
responsável pelo upload. Parece-nos também um absurdo a possibilidade de aplicar uma coima
a 41,1%296 dos internautas portugueses ou ainda mais incongruente cortar-lhes o acesso à
Internet. Somos da opinião que a protecção do direito de autor na Internet deve existir de facto
mas com a devida proporcionalidade. Por não ser o foco deste trabalho apenas apontamos para
a necessidade de clarificar o regime da “cópia privada” de que a legalidade nos parece
inquestionável mas de cuja consagração sofre de uma redacção incongruente e de uma
sistematização confusa. É também necessário o aumento do expecto das excepções em questões
de investigação/académicas297, também previsto no art.º 81 mais precisamente na alínea a). Por
291
Decreto-Lei n.º 63/85, de 14 de Março - Aprova o Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos. [Em
linha]. Diário da República: I Série A, n.º 237. [Consultado 1 Abril de 2015]. Disponível em WWW: <URL:
https://dre.pt/application/dir/pdf1s/2004/08/199A00/56585665.pdf>
292
Lei n.º 62/98, de 01 de Setembro - Regula o disposto no artigo 82.º do Código do Direito de Autor e dos
Direitos Conexos. Diário da República: I Série A, n.º 199. [Consultado 26 de Outubro de 2015]. Disponível em
WWW: <URL: https://dre.pt/application/conteudo/67409481>
293
Cfr. O nosso artigo com o Dr. Rui Melo Cordeiro in Correio dos Açores, 29 de Agosto de 2014
294
Nuno Pereira não só a considera excessiva como acaba por admitir que a aplicação da lei inundaria os
tribunais com processos relativos a esta questão. Parece-nos duvidosa esta afirmação pois actualmente o art.º
195.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos mais não é que letra morta.
295
Cfr. http://www.dn.pt/inicio/portugal/interior.aspx?content_id=1739889. [Consultado em 16 de Abril de
2015].
296
Percentagem de Internautas Portugueses que utilizam a Internet para reproduzir ilicitamente obras protegidas
por Direito de Autor.
Cfr. http://www.umic.pt/images/stories/noticias/Relatorio_LINI_UMIC_InternetPT.pdf. [Consultado em 16 de
Abril de 2015]
297
Quiçá adoptando uma versão alargada da teoria do fair use.
Neste sentido Cfr. ASCENSÃO, José De Oliveira - «O “Fair Use no Direito Autoral», in Direito da Sociedade
da Informação, Vol. IV, Coimbra, Coimbra Editora, 1999.”
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Nº 1
último o “combate” deve focar-se nos facilitadores e não nos consumidores. É preciso ter em
conta que o consumir não é um potencial pirata, que deve ser controlado a priori298. Parece-nos
que é imprescindível reagir a estas violações com o devido entendimento tecnológico299, É
preciso clarificar a situação de que quem, a título de exemplo, faz download de um ficheiro
através do Bittorrent e mantém o seu cliente aberto, estando assim a semear o ficheiro. Este
utilizador não é um facilitador e certamente não está a cometer nenhum crime de usurpação ou
análogo, como nem tampouco o está a perpetrar alguém que partilha um livro ou um ficheiro
MP3 com amigos simplesmente para fins lúdicos.300 Igualmente não é razoável pensar que o
pesquisador académico que digitaliza determinada fonte para utilizar numa investigação a fim
de produzir um trabalho independente está a fazer algo de errado mormente ilegal ou criminoso,
mesmo que conserve essas informações após o tempo necessário à sua utilização ou as partilhe.
Por esta ser uma discussão de grande relevância internacional, devemos apontar que as
iniciativas com vista a constranger a partilha de ficheiros para fins particulares têm sido
reiteradamente impopulares e alvo de resistência. Vejamos situações como nos Estados Unidos
da América com Stop Online Piracy Act e o Protect IP Act a serem derrotados ou na União
Europeia onde depois de terem ocorrido protestos em múltiplos países, o Parlamento Europeu
rejeitou por maioria esmagadora o Anti-Counterfeiting Trade Agreement301. Efectivamente
ficou “declarada” a morte deste tratado, não obstante a vontade dos Estados Unidos da América
em o levar a bom porto.
Apesar da fraca adesão popular a estes medidas o facto é que múltiplos grupos de
interesses procuram a erradicação deste fenómeno. O exemplo paradigmático da “guerra” - e
dos excessos - que tem sido travada à volta do problema da violação do direito de autor na
Cfr. PEREIRA, Alexandre Dias - “Pirataria e Cópia Privada”. in Direito da Sociedade da Informação, Vol.
IX, Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 126”
299
Infelizmente o legislador Português é sofredor de um patológico desconhecimento/desactualização a nível
tecnológico. Veja-se a título de exemplo o regime da e-procedimentalização, tão bem intencionado, mas cuja
consagração não se realizou da melhor forma no Código do Procedimento Administrativo.
300
Já bem compara, Alexandre Dias Pereira, a partilha de ficheiros em redes P2P e Bittorent às gravações em
cassete de fita que se faziam antigamente, entre amigos, dos discos de vinil. Também aponta, de novo de forma
brilhante, que proibição destes sistemas é análoga à proibição de uma nova forma de comunicação e na repressão
de novos modelos de negócio e propagação de cultura. Para aqueles que questionem se esta analogia não é
falaciosa, por quiçá, de um lado a partilha ser anónima e instantânea, e de outro morosa e pessoal, apontamos
exemplos como as redes sociais, onde de forma instantânea e quase anónima se criam vínculos sociais outrora
apenas possíveis através de relações presenciais. Não nos cabe julgar tal em termos filosóficos, nem tampouco
psicológicos ou sociológicos, o que é flagrantes, é que o direito não deve decidir pelo indivíduo a forma como
deve comunicar ou partilhar cultura com amigos.
Cfr. PEREIRA, Alexandre Dias - op. cit., p. 131.
301
Cfr. https://www.eff.org/deeplinks/2012/07/acta-victory-europe-and-what-lies-ahead. [Consultado em 17 de
Abril de 2015]
Cfr. http://falkvinge.net/2012/07/04/victory-acta-suffers-final-humiliating-defeat-in-european-parliament/.
[Consultado em 17 de Abril de 2015]
298
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Nº 1
internet é o site The Pirate Bay. Dois dos três fundadores do site encontram-se actualmente
detidos e um terceiro foi libertado recentemente. Foram realizadas duas operações
internacionais com vista a apreender o equipamento necessário ao funcionamento do wesite. O
mesmo encontra-se também bloqueado em dezenas de países.
O contra-ataque do The Pirate Bay e da comunidade Bittorrent ,em geral, também não
se pautou por meias medidas. Aquando do primeiro raid o site investiu no sistema DHT com o
objectivo de poder armazenar apenas magnet links e descartar o tracker que lhe servia de apoio.
Estas providências permitiram ao site tornar-se muito mais leve302, de forma a facilitar a
migração rápida de servidores, em caso de necessidade. O site tem vindo também a realizar
uma espécie “ping-pong” com as autoridades, mudando de domínio sempre que o actual se
encontra prestes a ser bloqueado. Com vista a ultrapassar os bloqueios judiciais múltiplos
utilizadores, à semelhança do que sucedeu com o Wikileaks, montaram mirrors e proxies para
que os internautas dos países em que se encontra bloqueado possam aceder-lhe facilmente. Para
além disto, a própria equipa do site lançou também o chamado The Pirate Browser303 que
permite aos utilizadores interessados aceder sem complicações ao site. Este programa funciona
sobre a rede encriptada Tor, na qual também está disponível uma versão do site. A utilização
de VPN para entrar neste e outros sites semelhantes também tem crescido drasticamente. Toda
a reacção que ocorreu após o primeiro raid ao site produziu uma situação em que o segundo
raid, apesar de deixar o site em baixo durante substancialmente mais tempo, teve um impacto
muito inferior. Passados poucos dias do ocorrido, já existiam na rede múltiplas cópias
funcionais do website e até software com o intuito de ajudar à criação destas para quem
estivesse interessado.
Os efeitos destas acções extravasaram o digital e fizeram-se sentir mesmo a nível
político. Criou-se e popularizou-se o Partido Pirata, que possuí até uma eurodeputada, Julia
Reda, eleita pela facção alemã do partido. Na Islândia, o partido afirmou-se como um dos
maiores do país. As últimas sondagens apontam para que possa ser mesmo a partido mais
popular.
304
O fenómeno não atingiu, entre nós, a mesma magnitude existindo apenas um
movimento pirata e não um partido oficializado. Para este facto poderão ter contribuído a atitude
302
Todo o site do PirateBay cabe numa pendrive.
Cfr. https://thepiratebay.se/torrent/8156416. [Consultado em 5 de Maio de 2015 através de VPN] – Cópia de
70mb com todos os magnets do site.
Cfr. https://thepiratebay.se/torrent/7028505/The_Pirate_Bay_full_siterip_2012. [Consultado em 5 de Maio de
2015 através de VPN] – Cópia com 3gb do site inteiro.
303
Cfr. http://piratebrowser.com/ [Consultado em 20 de Fevereiro de 2015]
304
http://www.visir.is/the-pirate-party-is-now-measured-as-the-biggest-party-in-iceland/article/2015150318848.
[Consultado em 12 de Abril de 2015]
98
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relativamente permissiva da nossa legislação em relação à cópia privada e a ausência de
blockades a websites do género. Contudo esta situação parece estar a mudar com o bloqueio a
nível nacional do The Pirate Bay, algo inédito em Portugal. Tememos que tal decisão abra
precedente para outras similares e sem a devida precaução poderemos entrar mesmo no campo
da censura… Na hipótese de se encontrarem alojados um milhão de ficheiros num destes
websites, dos quais setecentos mil são piratas, estamos ainda assim a vedar o acesso a outros
trezentos mil.305 São decisões claramente desproporcionais sendo desde já existem métodos
menos onerosos para providenciar a protecção do direito de autor306, E, mesmo que estes não
existissem, duvidamos que o interesse público em manter estas plataformas abertas não deva
suplantar o interesse de as bloquear.
Não se queima uma biblioteca porque meia dúzia das suas obras ferem os bons
costumes. No máximo retirem-se as nomeadas. Se não for possível efectuar esse acto, que se
“golpeiem” algumas susceptibilidades, mas que as mesmas não sejam eliminadas.
305
Estes números são meramente hipotéticos e pretendem apenas demonstrar que mesmo levado ao absurdo, as
razões para não barrar o acesso a este tipo de plataformas continuam a ser de peso.
306
Cfr. CANOTILHO, J. J Gomes - Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª. ed.. Coimbra:
Almedina, 2013, p. 266 e ss.
99
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3.1 VPN: O ÊXODO
Referimos supra algumas das reacções da comunidade Bittorent para evadir a legislação
cada vez mais agressiva relativamente à cópia ilegal de ficheiros protegidos por direito de autor
através de torrents. Dentro destas merece especial atenção o uso crescente da tecnologia VPN
ou Virtual Private Network.
Tradicionalmente esta tecnologia era utilizada maioritariamente em ambiente
empresarial com intuito de permitir o acesso do exterior a redes internas por funcionários ou
utilizadores com essa necessidade. Recentemente e em virtude dos fenómenos referenciados
anteriormente têm proliferado serviços de VPN com o intuito de utilização pessoal. 307
De forma muito resumida os tipos de VPN mais populares com este propósito funcionam
através da criação de uma espécie de túnel fortemente encriptado308. Este túnel liga o
computador do utilizador inicial aos servidores da empresa responsável pelo serviço de VPN,
por sua vez os referidos serão responsáveis pela conexão ao destino final e reenvio das
informações de volta ao utilizador. Ao contrário de um servidor proxy comum esta tecnologia
protege todo o tráfego feito pelo utilizador incluindo download de ficheiros através de bittorent.
A flexibilidade desta solução também se tem apresentado como um trunfo. Devido à
elevada procura e a um crescente aumento dos serviços no mercado os melhores serviços VPN
possuem preços inferiores a 10€ por mês, dezenas de servidores em diversos países, diferentes
escolhas em termos de protocolo de encriptação, uma política de no logs, apoio técnico 24
horas, aplicações próprias de forma a permitir a instalação fácil do serviço, a possibilidade de
conectar vários equipamentos, entre outros. As múltiplas nacionalidades oferecidas pelos
servidores associados aos provedores VPN representam mais uma vantagem para a utilidade
destes serviços. Com recurso a estes meios os utilizadores podem aceder a websites de
utilização restrita apenas a determinados países309 e facilmente evitar o bloqueio de websites
no seu país simplesmente conectando-se a outro servidor alojado num país onde o site esteja
disponível.
Relativamente á cópia e disponibilização de obras protegidas por direito de autor a
utilização de VPN é provavelmente a solução que se encontra melhor adaptada ao protocolo
bittorrent. Devido ao facto de encriptar todo o tráfego saído do computador de origem a
307
ROBERTS, Hal / ZUCKERMAN, Ethan / PALFREY, John - 2011 Circumvention Tool Evaluation.
[Consultado em: 7 de Março de 2015]. Disponível em: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=
1940455
308
FRASER, Moye - Understanding Virtual Private Networks. [Consultado em: 7 de Março de 2015].
Disponível em: http://www.giac.org/paper/gsec/561/understanding-virtual-private-networks-vpn/101344 p. 3
309
O caso paradigmático é o do Netflix.
100
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utilização de VPN confere bastante segurança tanto no download como no upload de torrents
enquanto não prejudica a velocidade.310
Todas estas vantagens aliadas à discordância maioritária com as medidas
implementadas em relação à protecção do direito de autor na Internet – e mesmo o seu
fundamento axiológico – podem levar com a crescente mediatização do problema a uma fuga
generalizada para este tipo de protecção. Deixando não só as autoridades “cegas” em relação
ao tráfego dos utilizadores da Internet – mesmo quando não o deveriam ser – como entregando
a única possibilidade de obter estas informações a empresas localizadas no estrangeiro cujas
intenções poderão não ser as melhores.
310
As restantes soluções como a utilização das Dark Web tendem a ser francamente prejudiciais em termos de
velocidade.
101
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4. DARK WEB: TOR E DEMAIS REDES ENCRIPTADAS
Para uma compreensão total deste trabalho é necessário ter em mente a distinção de três
conceitos. O primeiro é o conceito de Surface Web ou internet à superfície. O método para
classificar uma página como fazendo parte da Surface Web é de grande simplicidade, caso
determinado website possa ser encontrado/catalogado por um motor de busca esta faz parte da
Surface Web. O segundo a ter presente é o conceito de Deep Web ou internet profunda, que
engloba, a contrario sensu, tudo aquilo que não pode ser encontrado pelos motores de busca.
Na prática da surface web fará parte o nosso provedor de e-mail, o site do nosso banco, um
perfil público numa rede social… Da Deep Web fará parte a nossa conta de e-mail, a nossa
conta de e-banking e as informações e perfis privados desta mesma rede social. São parte
integrante também da Deep Web websites que propositadamente bloqueiam os crawlers, os
responsáveis pela catalogação dos motores de busca. Uma Dark Web é uma rede encriptada que
funciona por cima da própria Internet. Para aceder a estas Dark Web é necessário software
próprio que consinta o acesso a estas redes e a criação destes sites ocultos. Por ordem de
dificuldade de acesso temos assim a Surface Web por não exigir mais que um browser, seguida
da Deep Web por exigir um browser e conhecimento prévio de informação à qual desejamos
aceder : a password do nosso e-mail, o link de um site não catalogado… Por fim, temos a Dark
Web que exige um browser, software próprio e poderá mesmo ditar algum conhecimento
técnico para lhe aceder.
Não existe apenas uma Dark Web, são múltiplas estas redes e os softwares que as
suportam. Deixamos uma lista compilada por PEDRO FREITAS dos mais populares, sendo
estes Tor311, I2P312, Freenet313, Morphmix314, Tarzan315, Mixminion316, Haystack317, JAP318.319
Incidiremos principalmente sobre o primeiro, por ser sobejamente o mais popular, tanto em
termos de utilizadores como de sites e serviços disponíveis.
A criação do Tor é da responsabilidade do departamento de defesa Norte Americano
cujo objectivo era tornar anónimas as comunicações governamentais. Posteriormente o
311
Cfr. https://www.torproject.org/. [Consultado em 15 de Abril de 2015]
Cfr.https://geti2p.net/en/. [Consultado em 15 de Abril de 2015]
313
Cfr. https://freenetproject.org/ [Consultado em 15 de Abril de 2015]
314
Cfr. https://home.zhaw.ch/~rer/projects/morphmix/ [Consultado em 15 de Abril de 2015]
315
Cfr. http://pdos.csail.mit.edu/tarzan/ [Consultado em 15 de Abril de 2015]
316
Cfr. http://mixminion.net/ [Consultado em 15 de Abril de 2015]
317
O desenvolvimento do programa parece estar actualmente defunto.
318
Cfr. https://anon.inf.tu-dresden.de/index_en.html [Consultado em 15 de Abril de 2015]
319
Cfr. PEDRO FREITAS – “Dark Web: O Crime Sob o Véu do Anonimato” in Conferência Web Crimes.
Vídeo gentilmente cedido pelo autor.
312
102
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software foi disponibilizado ao público em geral320 sendo actualmente gratuito e de código
aberto. Este software- de forma muito simplificada - alcança a sua missão de tornar anónimas
as comunicações feitas através dele do chamado onion routing321. Esta técnica é extremamente
eficiente pois não só garante que todas as comunicações feitas através do programa são
encriptadas, à semelhança de um VPN, como também garante que as comunicações nunca são
feitas directamente entre o computador A e B. Caso o computador A se queira ligar através do
Tor ao computador B, ligar-se-á primeiro ao computador C, que se ligará ao D, que por sua vez
se irá conectar E. Apenas o E se conectará efectivamente a B enviando as informações de novo
para A através do mesmo processo. Nenhum computador na rede conhece o caminho completo
que determinada mensagem faz até chegar ao seu destinatário. Isto é, D apenas conhece C e E,
A e B são lhe desconhecidos. Logo não só o teor da comunicação é anónimo como o próprio
indivíduo ao qual é comunicada. O Tor não impede a utilização de outros meios de segurança
de forma cumulativa à sua tecnologia pelo que a utilização do Tor em conjunto com serviços
de VPN é um combo bastante popular entre aqueles que sejam mais preocupados ou aqueles
que estejam a realizar ilícitos mais graves.
A elevada eficácia deste software em manter o anonimato dos seus utilizadores já levou
agências como a Nacional Security Agency322 Norte-Americana e a Britânica Government
Communications Headquarters323a investigar o problema.324
A utilização de rede Tor tem aumentado exponencialmente nos últimos anos, atente-se
à sua importância em protestos como a Primavera Árabe, tendo-se apresentado como um
método de elevada eficácia para os protestantes esconderem as suas comunicações do regime
ou pela sua importância para os internautas chineses ultrapassarem a firewall que rodeia a
internet naquele país. Como já mencionamos igualmente plataformas como a Wikileaks
contribuíram activamente para a popularização deste software ao recomendarem o seu uso para
a divulgação de informação secreta e ao disponibilizarem cópias do seu website nessa rede. As
mesmas tornaram-se mais acessíveis e com um grau de segurança mais elevado para os
utilizadores. Mais tarde, as divulgações de Edward Snowden relativamente à vigilância de
diversas agências governamentais, principalmente Norte-Americanas e Europeias, com
Cfr. PEDRO FREITAS – “Dark Web: O Crime Sob o Véu do Anonimato” in Conferência Web Crimes.
Vídeo gentilmente cedido pelo autor.
321
Cfr. https://www.torproject.org/about/overview.html.en#thesolution. [Consultado em 19 de Abril de 2015]
322
Cfr. http://apps.washingtonpost.com/g/page/world/nsa-slideshow-on-the-tor-problem/499/. [Consultado em
19 de Abril de 2015]
323
Cfr. http://www.spiegel.de/media/media-35543.pdf ; http://www.spiegel.de/media/media-35539.pdf
[Consultado em 19 de Abril de 2015]
324
A preocupação destas agências foi revelada nos diversos documentos secretos revelados ao público por
Edward Snowden.
320
103
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Nº 1
especial incidência na Nacional Security Agency, sobre a internet veio contribuir para outro
aumento significativo de utilização desta rede. Finalmente o bloqueio de sites de partilha ilegal
de ficheiros como o The Pirate Bay vem contribuir para a utilização deste software como
ferramenta capaz de ultrapassar a censura nos países que a aplicam. Como referimos
anteriormente, o próprio The Pirate Bay através do seu Pirate Browser veio facultar os meios
para que tal aconteça com relativa facilidade.
Este novo mediatismo do Software, aliado a uma procura por utilizadores com menores
conhecimentos técnicos veio colocar o Tor numa situação única. Não só existe a
necessidade/interesse de tornar acessível esta rede ao utilizador “comum”, como há meios
financeiros para o fazer. Desde 2001 a rede Tor recebeu doações de mais de 4300 indivíduos,
e de poderosos nomes do ciberespaço, como a Google, a Reddit¸ a Ford Foundation 325 entre
muitos outros. Munidos de todos estes meios, os engenheiros por detrás da rede foram capazes
de tornar a sua utilização tão fácil, como a instalação do Tor Browser Bundle326 que mais não
é que uma instalação do Firefox, devidamente apetrechada para correr automaticamente o Tor.
327
Todavia o Tor não é utilizado exclusivamente por Whistleblowers, Activistas dos
Direitos Humanos e Piratas forçados a utilizar estas plataformas por temerem represálias de
uma justiça injusta. Dentro da rede Tor podemos encontrar, entre outros, venda de cartões de
crédito falsos/roubados328, venda de contas Paypal roubadas através de uma botnet329, venda de
notas falsas330, venda de armas331, oferta de serviços de hacking332, venda de aparelhos
electrónicos roubados 333, oferta de serviços de assassinato334, venda de drogas335, venda e troca
de vídeos de violação e pedofilia.336
325
Cfr. https://www.torproject.org/about/sponsors.html.en. [Consultado em 21 de Abril de 2015]
https://www.torproject.org/download/download-easy.html.en. [Consultado em 21 de Abril de 2015]
327
Cfr. PEDRO FREITAS – “Dark Web: O Crime Sob o Véu do Anonimato” in Conferência Web Crimes.
Vídeo gentilmente cedido pelo autor.
328
Chamamos a atenção para o facto de todos as ligações onion que apresentaremos a seguir apenas poderem ser
acedidas através do Tor pelo que simplesmente copiar e colar num browser regular apresentará uma página em
branco. As ligações da rede Tor são também muito voláteis pelo que muitas destas poderão, entre a data da
escrita e da leitura, ter mudado ou desaparecido.
Cfr. http://zzq7gpluliw6iq7l.onion/threadlist.php?/. [Consultado em 2 de Maio de 2015]
Cfr. http://slwc4j5wkn3yyo5j.onion/. [Consultado em 2 de Maio de 2015]
329
Cfr. http://nare7pqnmnojs2pg.onion/index.php. [Consultado em 2 de Maio de 2015]
330
Cfr. http://sla2tcypjz774dno.onion/euro.html. [Consultado em 2 de Maio de 2015]
331
Cfr. http://2kka4f23pcxgqkpv.onion/. [Consultado em 2 de Maio de 2015]
332
Cfr. http://2ogmrlfzdthnwkez.onion/. [Consultado em 2 de Maio de 2015]
Cfr. http://hacktorbnrmel7rj.onion/index.php. [Consultado em 2 de Maio de 2015]
333
Cfr. http://ftec4org3hcpnoir.onion/. [Consultado em 2 de Maio de 2015]
334
Cfr. http://pasterlczk6anaqz.onion/3d0b033eb3.txt. [Consultado em 2 de Maio de 2015]
335
Cfr. http://reloadedudjtjvxr.onion/. [Consultado em 2 de Maio de 2015]
336
Vamos abster-nos de partilhar o link nestes casos.
326
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Nº 1
O elevado impacto em termos mediáticos dos casos relacionados com a violação do
direito de autor na internet, especialmente quando o enfoque está no consumidor ou quando
uma plataforma de distinta popularidade é afectada foi fulcral na mediatização destas
plataformas. O pânico provocado pelas revelações – e patrocínio - da Wikileaks e mais tarde de
Edward Snowden, trouxe a público a existências destas Dark Web. Como descrevemos acima
e principalmente por estas razões o acesso a estas redes é hoje pouco mais difícil que o acesso
regular à internet. A proposta aliciante de um anonimato quase inquebrável levou a que
inúmeros indivíduos com comportamentos desviantes vissem aqui a plataforma ideal para o
desenvolvimento das suas actividades. 337
5. PEDOFILIA E PORNOGRAFIA INFANTIL: O PREÇO QUE PAGAMOS
Em termos de desenvolvimento da criança, os crimes de abuso sexual são aqueles que,
por comparação a outros abusos, possuem os efeitos mais nefastos338. O estádio de
desenvolvimento da criança, à data da prática destes crimes, não lhe permite compreender e
logo dar o seu consentimento informado relativamente a estas práticas. 339 Mais, as crianças
abusadas sexualmente têm um terço de probabilidade de repetir elas próprias o crime.340 22% a
82% dos abusadores sexuais afirmam ter sido abusados em crianças341.
Escusado será dizer que o abuso sexual de menores, pela natureza especialmente brutal
do crime e particular indefesa da vítima é um crime especialmente repudiado
342343
pela
Bem nos diz PEDRO VERDELHO que no “ciberespaço, qualquer pessoa pode manifestar-se ou expressar-se,
sem censura ou coacção. Para o bem e para o mal.” Se tal é verdade na Surface Web ainda mais o é na Dark
Web.
Cfr. VERDADELHO, Pedro - “Cibercrime”. in Direito da Sociedade da Informação, Vol. IV, Coimbra:
Coimbra Editora, 1999, p.348 e ss.”
338
Cfr. DIAS Figueiredo, “Comentário ao art.º 171.º do Código Penal” in DIAS, Figueiredo (dir.) , Comentário
Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 834.
339
Cfr. SOEIRO, Cristina - “O Abuso Sexual de Crianças: Contornos da Relação entre a Criança e a Justiça” in
Sub Judice. Coimbra. 0872-2137. n.º 26, Out-Dez 2003, p.21 e ss.
340
Cfr. DAVIS, Kent - Cruel and Unusual Punishment for Whom? Advocating the Imposition of Penile
Plethysmography and Chemical Castration as Conditions of Supervised Release for Habitual Child Sex
Offenders [Consultado em 14 de Março Disponível em: http://ssrn.com/abstract=2041769. ] p. 2.
341
Cfr. ARAÚJO ,António De -Crimes Sexuais Contra Menores: Entre o Direito Penal e a Constituição.
Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 49.
342
Sobre o Medo e o Crime:
Cfr. MACHADO, Carla / AGRA, Cândido Da, “Insegurança E Medo Do Crime: Da Ruptura Da Sociabilidade À
Reprodução Da Ordem Social” in Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Coimbra. 0871-8563. Ano 12, N.º1,
Jan-Mar 2003.
343
Sobre o sentimento de “nojo” sentido em relação aos responsáveis por crimes de abuso sexual:
Cfr. LYNCH, Mona - “Pedophiles and Cyber-Predators as Contaminating Forces: The Language of Disgust,
Pollution, and Boundary Invasions in Federal Debates on Sex Offender Legislation” in Law and Social Inquiry.
Boston. 0897-6546. Vol. 27, No. 529, 2002, pp. 538 e ss.
337
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sociedade344. Historicamente o abuso sexual de menores foi, até ao advento da psicanálise
através de Sigmund Freud, punido com a pena capital. A distinta influência que a psicanálise
veio a exercer na justiça levou a uma mudança de paradigma, dando-se primazia ao tratamento
da condição subjacente em relação ao crime, que mais não era que um sintoma da doença do
criminoso. Tomou-se assim a opção pelo tratamento médico345, através da psicanálise, o qual
paradoxalmente obrigava à colaboração do “paciente”
uma vez que ninguém pode ser
psicanalisado contra a sua vontade. O psicanalista é uma presença vazia que permite a
transformação do “paciente” através da reactivação do “jogo de Édipo”. Não é sua missão
“readaptar” o sujeito, mas sim ajudá-lo a compreender que a sua neurose não passa de uma
adaptação a uma realidade que é sua, uma vez que é dele a sua construção. 346 Presentemente
em Portugal este modelo é rejeitado. A legislação actualmente em vigor tem tentado um
equilíbrio entre a protecção da sociedade através da repressão de comportamentos da mesma
índole pelo agente (através de penas de prisão) e a reabilitação do mesmo.
A legislação em vigor tem sido no entanto altamente criticada. Para começar devemos
apontar as elevadas taxas de reincidência347 que demonstra a falta de eficácia da solução actual.
Novas teorias da criminologia e psicologia vieram também oferecer uma visão mais alargada e
contraditória da problemática.348 Devido às elevadas taxas de reincidência não falta quem,
invocando o interesse público, advogue soluções de “maior eficácia como a castração
química.”349
Cfr. DIAS, Figueiredo - “Comentário ao art.º 171.º do Código Penal” in DIAS Figueiredo (dir.) , Comentário
Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 845.
345
Para uma melhor compreensão do modelo médico/terapêutico:
Cfr. MONTEIRO, Fernando Conde -Direito Penal I: Texto Extraído das Aulas Teóricas da Disciplina de
Direito Penal I da Escola de Direito da Universidade do Minho, BRAGA: ELSA UMINHO, 2015, p. 25 e ss.
346
Cfr. AKOUN, André - “A Psicanálise” in Dicionário da Psicologia, Viseu: Verbo, 1980, p.422.
347
O estudo mais citado pela doutrina elaborado por Karl Hanson e Monique Bussière indica uma taxa de
reincidência de 12,7%.
Cfr. HANSON, Karl / BUSSIÈRE, Monique - “Predicting Relapse: A Meta-Analysis of Sexual Offender
Recidivism Studies” in Journal of Consulting and Clinical Psychology. Washington. 0022-006X. Vol. 66, N.º 2.
Mais tarde Hanson com Kelly Morton-Bourgon vem admitir que as taxas de reincidência poderão ser
substancialmente mais altas.
Cfr. HANSON, Karl / BOURGON, Kelly Morton - “The Accuracy of Recidivism Risk Assessments for Sexual
Offenders: A Meta-Analysis of 118 Prediction Studies” in Psychological Assessment. Washington . 1040-3590.
Vol. 21, N.º 1.
348
Por não ser o objectivo deste trabalho não nos vamos alargar nestas considerações, ficam algumas referências
bibliográficas:
Cfr. JANUS, Eric S. / POLACHEK, Emily A. – “A Crooked Picture: Re-Framing the Problem of Child Sexual
Abuse” in William Mitchell Law Review. 0270-272X. Vol. 36, N.º 1, 2009.
Cfr. WARD, Tony / SIEGERT, Richard J. – “Toward a Comprehensive Theory of Child Sexual Abuse: A
Theory Knitting Perspective” in Psychology, Crime & Law. 1477-2744. Vol. VII N.º 4, 2002.
349
Cfr. DAVIS, Kent - op. cit., pp.60 e ss.
344
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As matérias sobre as quais pretendemos incidir são, entre nós, maioritariamente
reguladas pelo Código Penal sem prejuízo de convenções internacionais como a Convenção de
Lanzarote350, de especial importância são os arts.º 171.º e seguintes do Código Penal relativos
aos crimes contra a autodeterminação sexual com o maior relevo para a nossa análise no art.º
171.º com a epígrafe “Abuso Sexual de Crianças” e 176.º “Pornografia de Menores”,
salvaguardando as respectivas possibilidades de agravação postuladas no art.º 177.º. A elevada
censurabilidade destas condutas reflecte-se nas molduras penais aplicadas com a “cópula, coito
anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos” a ser punida com
até 10 anos de prisão. No que se refere à Pornografia de Menores todo o processo realizado
com intento de criação e distribuição de pornografia infantil, desde que visando o lucro, é
punido com até 8 anos de prisão e o simples acto de adquirir, deter, aceder, obter ou facilitar o
acesso, através de sistema informático ou qualquer outro meio a pornografia de menores é
punido com pena de prisão até 2 anos351. Esta punição foi o meio encontrado pelo legislador
para antecipar a protecção da criança.352. O regime postulado sabiamente pune com maior
severidade as tentativas de lucrar com esta actividade 353
A lei é bastante tolerante e bem, em casos de mera posse ou aquisição de pornografia de
menores. Apesar da admiração que uma solução tão leniente possa criar, especialmente se
tivermos em conta que, em média, um utilizador destes serviços é possuidor de 50.000 arquivos
relacionados354 é preciso ter também em conta que ao contrário da convicção geral, não existe
uma progressão cientificamente provada entre o consumo destes materiais e o abuso sexual de
350
Não incidiremos com maior profundidade sobre todos os compromissos internacionais nesta matéria por
questões de espaço e pois a maioria encontra-se devidamente consagrada no regime actualmente previsto no
Código Penal. Referimos a título de exemplo a Convenção de Lanzarote e a Directiva 2011/92/UE Do
Parlamento Europeu e do Conselho de 13 de Dezembro de 2011 relativa à luta contra o abuso sexual e a
exploração sexual de crianças e a pornografia infantil.
351
O facto de a moldura penal para adquirir ou possuir pornografia infantil ser mais baixa que aquela por
usurpação do direito do autor é, para nós, o arquétipo do absurdo que é o regime da usurpação consagrado no
Código do Direito de Autor e Direitos Conexos. A proporcionalidade desta pena levanta-nos sérias dúvidas, até
mesmo a sua “utilidade” nos é duvidosa. Desta forma levanta-se a questão de saber se a moldura penal prescrita
não é ilegítima ou mesmo inconstitucional.
Cfr. MONTEIRO, Fernando Conde - Consequências Juridicopenais do Crime: Texto Extraído das Aulas
Teóricas da Disciplina de Direito Penal II da Escola de Direito da Universidade do Minho, Braga: ELSA
UMINHO, 2015, p. 31 e ss relativamente à questão da fixação de critérios da pena de multa às pessoas coletivas.
352
Cfr. ALBUQUERQUE, Paulo Pinto De - Comentário do Código Penal: Á Luz da Constituição da República
e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2010, p. 487
353
Cfr. DIAS, Figueiredo -“Comentário ao art.º 171.º do Código Penal” in DIAS, Figueiredo (dir.) in
Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 842 por
remissão de 883.
354
Cfr. MANUEL DAVID MASSENO – “Evolução da Pedofilia: Das Ruas Para a Web” in Conferência Web
Crimes. Vídeo gentilmente cedido pelo autor.
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crianças355356. Desta forma o agente é apenas um responsável muito indirecto do fenómeno ao
fornecer a procura do “mercado” da pornografia infantil. Censurável, sem dúvida, muito menos
que a oferta.
E é aqui que surge o problema que deu origem a este trabalho. Para que este “mercado”
funcione é necessário que haja um método funcional de averiguar a procura, um método seguro
de “publicitar” a oferta, um procedimento incógnito para realizar a transacção e uma plataforma
estável para que tudo isto aconteça. Até recentemente estas condições, felizmente, não existiam.
Actualmente podemos afirmar com segurança que existem. As Dark Web, com especial
incidência na rede Tor fornecem aos produtores e consumidores deste tipo de materiais uma
plataforma segura e anónima na qual poderão comprar, vender e trocar este tipo de ficheiros. A
existência de fóruns dedicados ao assunto permite até aos produtores facilmente conhecerem o
que os compradores procuram. Estes mesmos fóruns possibilitam ainda a troca de
conhecimentos e “dicas” de como abusar de menores sem ser apreendido pela justiça,
fornecendo verdadeiras plataformas de apoio online a abusadores sexuais de menores. O
aparecimento de criptomoedas que permitem realizar transacções anónimas na Dark Web veio
adicionar outra camada de segurança.357 Tudo isto derivado da forte encriptação destas
plataformas acontece num ambiente indetectável às autoridades358.
Criou-se uma situação em que o acesso à pornografia infantil e vídeos de abuso sexual
é fácil e seguro. O Direito perde assim a sua capacidade dissuasiva. A justiça nestas redes é
efectivamente cega, surda e desarmada. A concentração de deviance nestas redes é tão alta que
os padrões morais da sociedade maioritária deixam de se aplicar. Não é possível condenar o
comportamento de um individuo, mesmo que seja mais extremo que o de outros na rede, quando
este pode alterar a sua identidade com um clique.
355
Para uma crítica detalha aos mais proeminentes estudos com conclusões contrárias:
Cfr. HAMILTON, Melissa - “The Child Pornography Crusade and its Net Widening Effect” in Cardozo Law
Review. New York. 0270-5192. Vol. 33, N.º. 1, 2012.
356
Cfr. MANUEL DAVID MASSENO – “Evolução da Pedofilia: Das Ruas Para a Web” in Conferência Web
Crimes. Vídeo gentilmente cedido pelo autor.
Em sentido contrário à nossa visão:
Cfr. ROGERS, Audrey – “Child Pornography's Forgotten Victims” in Pace Law Review, New York. 0272-2410.
Vol. 28, N.º 4, 2008.
357
Cfr. PEDRO FREITAS – “Dark Web: O Crime Sob o Véu do Anonimato” in Conferência Web Crimes.
Vídeo gentilmente cedido pelo autor.
358
Interessante como a Internet cria problemas ao Direito problemas absolutamente apostos, por um lado aquele
que estamos a tratar que redunda numa anonimidade inquebrável por outro o problema do stalking motivado pela
dificuldade suprimir as nossas informações da rede. Sobre este problema aconselhamos:
Cfr. COELHO, Cláudia / ABRUNHOSA GONÇALVES, Rui “Stalking: Uma Outra Dimensão da Violência
Conjugal”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Coimbra. 0871-8563. Ano 17, N.º 2, Abril-Junho 2007, p.
280
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Foi este o preço que pagamos. Este problema de Direito foi criado pelo próprio Direito.
Ao reprimir desproporcionalmente crimes de menor gravidade como a violação do Direito de
Autor na Internet e colocar em causa excessivamente a liberdade de imprensa nos casos de
Whistleblowing não foram tidas em conta as consequências inevitáveis que essas acções trariam
num mundo conectado como o da Internet. O target das Dark Web nunca foi, ou será, o dos
abusadores sexuais. Nem tal “classe” conseguiria reunir os conhecimentos técnicos e
capacidade financeira para as construir. Esses meios apenas são alcançáveis para causas que
reúnam uma elevada simpatia popular e cobertura mediática. No entanto e por acidente acabou
por se criar plataforma segura e anónima onde estes proliferam. Escusado será dizer que uma
lei que não esteja de acordo com o espírito do sistema que eventualmente embocará no povo
não é eficaz e será alvo de resistência. No caso em estudo a resistência manifestou-se como
impossibilitar a aplicação da lei. As Dark Web impossibilitam revelar quem por detrás delas
conduz actividades ilícitas e a elevada utilização das mesmas para actividades lícitas ou ilícitos
de gravidade de menor não possibilita a utilização de presunções legais.
6. CONCLUSÃO: A NECESSIDADE DE UMA NOVA PERSPECTIVA
A resolução deste problema afigura-se complexa. O primeiro passo consiste em adoptar
uma postura mais comedida em relação a ilícitos de menor gravidade na Internet. Especialmente
quando estes ilícitos reúnem amplo apoio social como no caso da violação do direito de autor.
Em casos análogos é necessário readaptar a legislação ao mundo digital de forma a evitar
repercussões negativas semelhantes àquelas que sucederam nos casos em análise. A procura
por redes encriptadas será muito menor se o público não sentir que será punido injustamente
por crimes cuja catalogação é errónea e contra as convicções generalizadas na sociedade. A
utilização de técnicas de neutralização para justificar a deviance também deverá diminuir
utilizando estas medidas. No fundo é necessário compor a legislação formal de maneira a estar
de acordo com as convicções materiais maioritárias. Recordamos que da mesma maneira que
mais tecnologia não significa mais segurança – como tivemos oportunidade de constatar –
também normas mais restritivas não o significam, especialmente quando de fraca eficácia. 359
Ao diminuir-se a procura pelas Dark Web imediatamente se retira uma das maiores
armas aos utilizadores mal-intencionados destas redes, os números. Diminuindo o número de
utilizadores torna-se muito mais fácil para a justiça rastrear dentro da rede os indivíduos com
359
VALENTE, Manuel Monteiro Guedes - Ciência Policiais: Ensaios. Lisboa: Universidade Católica Editora,
2014, p. 53.
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comportamentos desviantes. A proibição da utilização destes softwares nunca será uma solução
porque eles são necessários para combater regimes opressores. Podem mesmo funcionar como
um sistema de checks and balances permitindo ao povo protestar quando considera que as leis
que regulam a Internet não são justas.
Em suma é necessária que o Direito se adapte a esta nova realidade interconectada e
legisle ponderando todas as suas vicissitudes. Só assim será possível alcançar uma justiça eficaz
e informada que não se limite a tentar regular sem sucesso um meio que não compreende.
110
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Nº 1
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