Língua Portuguesa – Redação – 3º bimestre Crônica

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Língua Portuguesa – Redação – 3º bimestre Crônica
Língua Portuguesa – Redação – 3º bimestre
Crônica
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Colégio Integral – série 8º ano – 2014
Crônica – definição e usos
Você já deve ter encontrado, em jornais diários, textos em que o autor parte de uma
experiência pessoal, quase sempre a observação de um fato cotidiano, a partir do qual elabora uma reflexão mais geral. Esses textos exemplificam um gênero discursivo chamado
CRÔNICA.
Crônica 1
Leia o texto a seguir:
Entre quatro paredes
Saí para dar uma volta, outro dia, e notei uma coisa. Fazia um tempo glorioso – melhor
impossível, e com toda probabilidade o último do gênero a se ver por estas bandas durante
muitos meses gelados –, no entanto quase todos os carros que passavam estavam com os
vidros fechados.
Todos aqueles motoristas tinham ajustado o controle de temperatura de seus veículos
hermeticamente fechados para criar um clima interno idêntico ao que já existia no mundo
exterior, e me ocorreu então que, no que se refere ao ar fresco, os americanos perderam de
vez a cabeça, ou o senso de proporção, ou alguma outra coisa.
Ah sim, de vez em quando eles saem para experimentar a novidade de estar ao ar livre
– fazem um piquenique, digamos, ou passam o dia na praia, ou num parque de diversões –,
mas esses são acontecimentos excepcionais. De maneira geral, boa parte dos americanos
acostumou-se de tal forma à ideia de passar o grosso da vida numa série de ambientes com
clima controlado que a possibilidade de uma alternativa não lhes passa mais pela cabeça.
Por isso fazem suas compras em shoppings fechados e vão de carro até esses shoppings com as janelas do carro fechadas e a ar-condicionado ligado mesmo quando o tempo
está ótimo, como nesse dia. Trabalham em escritórios onde não poderiam abrir as janelas
mesmo que quisessem – não que alguém fosse querer, claro. Quando saem de férias, em
geral viajam numa casa-reboque imensa, que lhes permite saborear a natureza sem na verdade se expor a ela. Cada vez mais, quando vão a um evento esportivo, o jogo é realizado
num estádio fechado. Dê uma volta a pé por praticamente qualquer bairro americano, agora
no verão, e não verá nenhuma criança andando de bicicleta ou jogando bola, porque estão
todas dentro de casa. Tudo o que você vai ouvir é o zumbido uniforme dos aparelhos de arcondicionado.
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Cidades do país inteiro deram ultimamente de construir o que chamam de skywalks –
passarelas fechadas e climatizadas, claro – ligando todos os prédios do centro. Na minha
cidade natal, Des Moines, no estado de Iowa, a primeira “calçada no céu” foi construída uns
25 anos atrás, entre um hotel e uma loja de departamentos, e fez tamanho sucesso que logo
foram surgindo outras. Hoje já é possível andar por quase um quilômetro no centro de Des
Moines, em qualquer direção, sem nunca botar o pé lá fora. Todas as lojas que ficavam no
nível da rua mudaram-se para o primeiro andar, onde agora trafegam os pedestres. Hoje em
dia, as únicas pessoas que se veem nas ruas de Des Moines são os bêbados e os empregados de escritórios, que saem para fumar um cigarro. A rua tornou-se uma espécie de purgatório, um lugar para onde você é expulso.
Existem até clubes formados por gente que troca o terno pelo abrigo de ginástica e
passa a hora do almoço fazendo caminhadas rápidas e saudáveis ao longo de uma trilha
com quilometragem marcada nos skywalks. Jamais lhes passaria pela cabeça fazer uma
coisa dessas ao ar livre. Clubes semelhantes, integrados por aposentados, podem ser vistos
em todos os shoppings do país. São pessoas, compreenda, que marcam encontro nos
shoppings não para fazer compras e sim para fazer seus exercícios diários.
Da última vez que estive em Des Moines, encontrei um velho amigo da família. Ele esta
de abrigo de ginástica e me disse que acabara de sair do clube do shopping Valley West.
Estávamos em abril e o tempo era esplêndido. Perguntei-lhe porque o clube não usava um
dos muitos belos e enormes parques da cidade.
“No shopping não tem chuva, não tem frio, não tem morro e não tem trombadinha”, ele
respondeu sem hesitar.
“Mas não existe nenhum trombadinha em Des Moines”, eu respondi.
“Exato”, ele concordou sem pestanejar. “E sabe por quê? Porque não tem ninguém na
rua para roubar.” Balançou a cabeça enfaticamente, como se eu não tivesse pensado nisso,
como de fato não tinha. [...]
Enquanto me achava ali parado, um passarinho derrubou sobre o dedão do meu sapato esquerdo qualquer tipo de coisa que você em geral não gosta muito que um passarinho
derrube. Olhei do céu para o sapato e de volta para o céu.
“Muito obrigado”, eu disse, e, creia-me, eu falei de coração.
(BRYSON, Bill. Crônicas de um país bem grande. Trad. De Beth Vieira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Fragmento)
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ANÁLISE DO TEXTO
Agora que você já leu o texto, responda as questões a seguir:
1. a) Que acontecimento desencadeou o texto de Bill Bryson?
b) Por que o autor julgou tal acontecimento digno de nota?
2. a) Transcreva, do início do texto, as passagens em que o autor deixa claro estar partindo
de uma observação pessoal.
b) Que elementos desses trechos caracterizam como particular a observação feita?
3. a) No 2º parágrafo, podemos identificar um trecho em que o autor começa a refletir sobre
o significado mais geral que o fato observado por ele pode ter. Identifique essa passagem.
b) Podemos afirmar que essa passagem recria, para o leitor do texto, o início de um raciocínio analítico realizado por Bill Bryson. Explique.
4. a) Em que momento fica evidente que a observação particular torna-se uma reflexão mais
geral sobre os hábitos do povo americano?
b) Que elementos dessa passagem denotam a mudança de perspectiva (de particular para
mais geral) observada no texto?
Releia:
Por isso fazem suas compras em shoppings fechados e vão de carro até esses shoppings com
as janelas do carro fechadas e a ar-condicionado ligado mesmo quando o tempo está ótimo, como
nesse dia. Trabalham em escritórios onde não poderiam abrir as janelas mesmo que quisessem –
não que alguém fosse querer, claro. Quando saem de férias, em geral viajam numa casa-reboque imensa, que lhes permite saborear a natureza sem na verdade se expor a ela.
5. a) Que relação de sentido o parágrafo acima estabelece com o trecho final do 3º parágrafo? Explique.
b) Em termos formais, que expressão marca o estabelecimento dessa relação de sentido?
c) Que tipo de “orientação de leitura” essa expressão fornece ao leitor do texto?
6. a) No 5º parágrafo, Bill Bryson passa a falar dos skywalks. O que são essas estruturas?
b) De que modo o exemplo dos skywalks se relaciona com a questão tematizada no texto?
Releia:
A rua tornou-se uma espécie de purgatório, um lugar para onde você é expulso.
7. Por que, no contexto da reflexão apresentada, Bill Bryson faz essa afirmação?
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8. a) O texto termina com a retomada da perspectiva particular com que havia começado.
Que fatos são relatados pelo autor nesse momento?
b) Podemos afirmar que, apesar de Bill Bryson retomar um tom mais pessoal, o texto não se
desvia da reflexão central. Por quê?
c) Como pode ser entendido o “Muito obrigado” que o autor dirige ao passarinho?
DEFINIÇÃO E USO
Os grandes jornais, de circulação diária, e as revistas semanais costumam reservar um
espaço fixo para a publicação de CRÔNICAS.
CRÔNICA é um gênero discursivo no qual, a partir da observação e do relato de fatos cotidianos, o autor manifesta sua perspectiva subjetiva, oferecendo uma interpretação que revela
ao leitor algo que está por trás das aparências ou não é percebido pelo senso comum. Nesse sentido, é finalidade da crônica revelar as fissuras do real, aquilo que parece invisível para a maioria das pessoas, ajudando-as a interpretar o que se passa à sua volta.
No texto de Bill Bryson, acompanhamos o processo de exposição de um comportamento característico do povo americano – a opção por viver em ambientes climatizados, envoltos
por uma falsa “natureza” –, a partir da observação de um fato aparentemente banal: em um
dia de verão, o autor constata que as pessoas dentro dos carros que circulavam pela rua,
mantinham os vidros fechados e o ar-condicionado ligado.
Esse procedimento ilustra o princípio desencadeador da crônica:
a observação do real com olhos investigativos, que desejam não só “registrar” uma cena
(corriqueira ou surpreendente, não importa), mas sempre ir além do que tal cena ilustra, para
buscar seu significado mais geral em relação ao comportamento humano.
UM POUCO DE HISTÓRIA...
Como gênero, a crônica tem raízes na história e na literatura. Durante o período das
grandes descobertas, quando as pessoas ainda descobriam territórios misteriosos nos quatro cantos do mundo e se aventuravam nas explorações marítimas, era comum haver sempre um cronista que acompanhava essas expedições. Sua função era clara: narrar os acontecimentos de modo cronologicamente organizado. Naquele momento, portanto, fazer
uma crônica significava registrar, de modo fiel, uma série de fatos ordenados no tem4
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po. A finalidade da crônica, nesse caso, era preservar a memória dos acontecimentos e, por
isso, aproximava-se da história.
Trecho da carta de Pero Vaz de Caminha
A partida de Belém foi – como Vossa Alteza sabe, segunda-feira 9 de
março. E sábado, 14 do dito mês, entre as 8 e 9 horas, nos achamos entre as
Canárias, mais perto da Grande Canária. E ali andamos todo aquele dia em
calma, à vista delas, obra de três a quatro léguas. E domingo, 22 do dito mês,
às dez horas mais ou menos, houvemos vista das ilhas de Cabo Verde, a saber
da ilha de São Nicolau, segundo o dito de Pero Escolar, piloto.
Na noite seguinte à segunda-feira amanheceu, se perdeu da frota Vasco
de Ataíde com a sua nau, sem haver tempo forte ou contrário para poder ser!
Fez o capitão suas diligências para o achar, em umas e outras partes.
Mas... não apareceu mais!
E assim seguimos nosso caminho, por este mar de longo, até que terçafeira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, topamos alguns sinais
de terra, estando da dita Ilha – segundo os pilotos diziam, obra de 660 ou 670
léguas – os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, e assim mesmo outras a que dão o nome de rabo-deasno. E quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam furabuchos.
Neste mesmo dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! A saber,
primeiramente de um grande monte, muito alto e redondo; e de outras serras
mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos; ao qual monte
alto o capitão pôs o nome de O Monte Pascoal e à terra A Terra de Vera Cruz!
Até o século XIX, era comum encontrar crônicas que apresentavam essa estrutura básica. Não se tratava mais, é claro, de registrar os acontecimentos de uma expedição, mas
sim os fatos cotidianos. Grandes escritores brasileiros, como José de Alencar e Machado de
Assis, celebrizaram-se como cronistas de seu tempo. Como os cronistas eram muitas vezes
romancistas ou poetas, o parentesco da crônica com a literatura se estreitou.
Aos poucos, porém, as crônicas foram sofrendo algumas modificações significativas.
Em lugar, por exemplo, de registrarem vários acontecimentos típicos de uma sociedade, os
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cronistas passaram a relatar um único fato
(ou vários fatos que ilustrassem uma ten-
A crônica e o estilo individual
dência comum) e, a partir desse relato, a
A crônica é um gênero discursivo que
tecer comentários mais gerais sobre como
permite a manifestação de estilos individu-
o acontecimento apresentado podia ser
ais, por ser um texto inspirado em um o-
interpretado.
lhar subjetivo para acontecimentos cotidia-
Quando essa transformação se consolidou, a crônica assumiu a estrutura e a
nos. No Brasil, houve um crescimento na
produção de crônicas a partir da década de
1950.
finalidade que ainda hoje apresenta. Escri-
Autores como Carlos Drummond de
to para ser publicado em jornais, esse gê-
Andrade,
nero discursivo se define por ser cla-
Campos, Fernando Sabino, Rachel de Quei-
ramente opinativo. Em meio a notícias e
roz, Carlos Heitor Cony, Otto Lara Resende,
reportagens, em que deve prevalecer uma
além de promoverem a popularização do
perspectiva imparcial, a crônica oferece
um contraponto para o leitor. Torna-se
uma espécie de avesso da notícia: em lu-
Rubem
Braga,
Paulo
Mendes
gênero, também estabeleceram seus estilos de modo claro e, com isso, conquistaram leitores fiéis.
gar da objetividade e da imparcialidade
que caracterizam aquele gênero, a crônica se define como subjetiva, opinativa, pessoal.
CONTEXTO DE CIRCULAÇÃO
As crônicas circulam, em sua maior parte, no espaço jornalístico. Dessa forma, há crônicas em jornais diários que, geralmente, contam com espaço e autor fixo.
Também é possível encontrá-las em revistas. Quando isso acontece, elas costumam
aparecer no início, como uma “introdução” às notícias da semana; ou no fim da revista, como uma “conclusão”, um espaço para o leitor refletir sobre algum dos muitos acontecimentos
que viraram notícia naquele período.
Muitas publicações especializadas, como revistas para adolescentes, público feminino,
dentre outras, também reservam um espaço para os cronistas.
O que se costuma observar é que, quanto mais geral for a abordagem jornalística do
veículo no qual a crônica se insere, maior tende a ser a liberdade dos escritores na hora de
decidirem o que irão tematizar em suas crônicas.
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Os livros também são um meio de circulação bastante comum para as crônicas. Geralmente os autores reúnem um conjunto de textos que julgam mais representativos da sua
obra e dos tempos em que vivemos e os publicam sob a forma de livro.
ESTRUTURA
A estrutura da crônica não segue um padrão fixo, mas apresenta algumas linhas gerais
que costumam ser seguidas pela maior parte dos autores. Vamos analisá-la a partir do exemplo seguinte:
Crônica 2
Gente boa
O ponto de partida para
Li outro dia um artigo sobre monges budistas,
a crônica é uma observa-
freiras de clausura e essa gente toda que medita com fre-
ção de caráter mais pes-
quência. Estudos provaram que eles têm mais desen-
soal: no caso, a autora
volvida a parte do cérebro que percebe o aspecto lu-
começa a falar sobre um
artigo que leu sobre pes-
minoso das coisas. Enxergam mínimas virtudes, têm
soas que meditam com
mais compaixão e sabem amar com desprendimento.
frequência.
Há sete anos passei um mês em Myanmar, a antiga
As conclusões apresen-
Birmânia, e lembro-me de sentir nitidamente que aque-
tadas no texto evocaram
la gente era melhor do que eu. Havia harmonia e be-
uma
nevolência na expressão das pessoas. Eu acordava
predisposta para o bem, não porque seja de fato boa,
outra
experiência
pessoal:
uma
feita
7
há
viagem
anos
para
Myanmar.
mas porque era o que se esperava de mim. Ninguém
O exemplo das pessoas
na rua imaginava que eu pudesse dar um golpezinho,
citadas no artigo e também
enganar ou pensar algo crítico enquanto sorria gen-
das muitas outras observa-
tilmente. A delicadeza ali está por toda parte e aponta
das na viagem à Myanmar
para o que há de mais puro na gente, umas belezas
é o ponto de partida para o
desenvolvimento da refle-
emboloradas foram brotando feito susto de dentro dos
xão pessoal que a autora
meus egoísmos. Por lá não há, ou não havia na época, o
deseja fazer.
hábito de televisão a qualquer hora, nem sequer existia TV
A conclusão apresen-
por satélite, e a cultura mantinha-se, assim, preservada de
tada no texto lido, aliás, já
costumes ocidentais. Não vi uma pessoa vestindo calça je-
antecipa o que será o ponto
ans, nem eu mesma, que rapidamente aprendi a amarrar
central da crônica de Maitê
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panos na cintura para fazer saia igual à das moças de lá – se
amarrar diferente vira saia de homem. A única infiltração de
hábito ocidental que se percebe é um pouco de cinema e,
Proença: pessoas que se
mesmo assim, os filmes são quase sempre indianos. Quem
dedicam à meditação, em
chega ali vindo de um mundo em que tudo se consegue por
sofrer
força, fica perplexo diante dos meninos e meninas que esco-
cultura
lhem passar, às vezes, três anos de sua adolescência buri-
a
influência
da
ocidental
que
estimula a competição e
o consumo, são pessoas
lando o espírito em monastérios budistas, no preparo para a
melhores, que vivem em
vida adulta. Saem sabendo tudo de abnegação, genero-
harmonia.
sidade, da importância do silêncio, do não julgamen-
O desenvolvimento do
to... Sabem pouco ou nada de sexo, drogas e rock’n
tema da crônica continua
roll. E conseguem viver sem isso, rindo! Não pretendo
sendo
fazer o relato sentimentaloide da pureza de um povo simples
atravessado
experiência
pela
particular,
pessoal da autora.
e isolado do mundo, mas é que a virtude precisa mesmo
Da observação do povo
de exercício para se manter espontânea, e aquele povo,
de Myanmar, Maitê conclui
sei lá por quê, parece achar essa prática importante. [...]
algo muito importante sobre
Tenho consciência de que um dia fui melhor do
que hoje – quando eu era mais simples. A vida foi se
sofisticando, me deixando esperta e mais apta para o
os seres humanos em geral:
a
virtude
precisa
mesmo de exercício para
manter-se
espontânea.
jogo social. Tive ganhos com isso mas perdi algo de
Ou seja, bondade exige
genuíno que me diferenciava. Fui perdendo, no corre-
prática. E só existe ação
corre do “fiz, faço, aconteço”, o que me aproximava de
continuada da generosida-
uma experiência particular e única – e melhor eu acho.
de, da aceitação do outro
Felizmente nada é irreversível e não preciso ir morar
faz com que as pessoas
em Myanmar pra resgatar minhas virtudes distantes.
Posso fazer isso do meu apartamento em Copacabana
realmente
aprendam
a
viver em harmonia.
– não é mais poderoso que a firmeza de uma intenção.
Mas aí... Cadê a firmeza?
(PROENÇA, Maitê. Entre ossos e a escrita. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
p. 99-100. (Fragmento).
De modo geral, o princípio organizador da crônica é o movimento reflexivo que
parte de uma experiência única, particular, pontual e vai ampliando a abrangência do
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que foi vivido ou observado para alcançar um significado mais geral, que ecoe a experiência de diferentes pessoas.
A reação frequente dos leitores aos textos de seus cronistas preferidos é uma prova de
que, de fato, há muito a ser aprendido sobre o comportamento humano a partir da observação e análise dos fatos cotidianos.
LINGUAGEM
A linguagem utilizada na crônica é marcada por certa informalidade. Como se trata de um texto para publicação, espera-se que as regras do português escrito culto sejam seguidas, mas admite-se a presença de algumas marcas de oralidade.
Essa aparente contradição é facilmente explicada: por trazer sempre uma perspectiva fortemente subjetiva, a crônica configura-se como um gênero discursivo no qual se
espera a presença de um “eu”. É essa perspectiva mais pessoal que introduz algumas
notas de informalidade ao texto.
OUTROS EXEMPLOS...
Crônica 3
Minha adolescência
A história de minha adolescência é a história de minha doença.
Adoeci aos dezoito anos quando estava fazendo o curso de engenheiro-arquiteto na Escola Politécnica de São Paulo. A moléstia não
me chegou sorrateiramente, como costuma fazer, com emagrecimento, febrinha, um pouco de tosse, não: caiu sobre mim de supetão e
com toda a violência, como uma machadada de Brucutu. Durante
meses, fiquei entre a vida e a morte. Tive de abandonar para sempre
os estudos. Como consegui com os anos levantar-me desse abismo
de padecimentos e tristezas é coisa que me parece a mim e aos que me conheceram então
um verdadeiro milagre. Aos trinta e um anos, ao editar meu primeiro livro de versos, A cinza
das horas, era praticamente um inválido. Publicando-o, não tinha de todo a intenção de iniciar uma carreira literária. Aquilo era antes o meu testamento - o testamento da minha adolescência. Mas os estímulos que recebi fizeram-me persistir nessa atividade poética, que eu
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exercia mais como um simples desabafo dos meus desgostos íntimos, da minha forçada
ociosidade. Hoje vivo admirado de ver que essa minha obra de poeta menor - de poeta rigorosamente menor - tenha podido suscitar tantas simpatias.
Conto estas coisas porque a minha dura experiência implica uma lição de otimismo e
confiança. Ninguém desanime por grande que seja a pedra no caminho. A do meu parecia
intransponível. No entanto, saltei-a. Milagre? Pois então isso prova que ainda há milagres.
BANDEIRA, Manuel. Minha adolescência. In: Crônicas para jovens. Seleção, prefácio e notas bibliográficas
Antonieta Cunha. São Paulo, Global, 2012.
Crônica 4
O momento mais inesquecível
Quando, aos dezoito anos, adoeci de tuberculose pulmonar, não foi à maneira romântica, com fastio e rosas na face pálida. A moléstia “que não perdoava” (naquele tempo não
havia antibióticos) caiu sobre mim como uma machadada de Brucutu. Fiquei logo entre a
vida e a morte. E fiquei esperando a morte. Mas ela não vinha. Durante alguns anos andei
pelo interior do Brasil em busca de melhoras. Pude assim verificar a verdade daquelas duras
palavras de João da Ega: “Não há nada mais reles de um bom clima”. Jacarepaguá, então
ainda silvestre; Campanha, Teresópolis, Quixeramobim, Mendes, eram bons climas, talvez
suportáveis nestes dias de high-fidelity, rádio e televisão. Mas eu tive de aguentá-los sem
outra defesa senão o violão e a leitura, de que não podia abusar. Era natural que pensasse
na Suíça. Pensava. Pensava muito. Tinha medo porém, de ir para tão longe de meu pai.
Porque não tinha medo de morrer, bem entendido, se no transe tivesse na minha mão a mão
de meu pai. Quando a tentação era maior e eu olhava o mapa e via aquele estirão de Oceano Atlântico, que os navios mais rápidos (não havia aviões) levavam duas semanas a atravessar, meu coração murchava. E eu desistia da Suíça.
Uma noite, depois do jantar, eu estava deitado em meu quarto e minha família – meu
pai, minha mãe e minha irmã – conversava na sala de visitas, contígua ao meu quarto, mas
sem comunicação direta (a comunicação se fazia por um corredor). De repente me faltou a
respiração. Fiz um esforço desesperado para recuperar o fôlego. Tive a impressão nítida de
que iria morrer. Ia morrer separado do meu pai, não pelo Oceano Atlântico, mas por uma
simples parede... Foi horrível. Mas foi uma lição. Desde aquele momento compreendi que
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não adianta apreender o futuro. Vivemos anos apreendendo um futuro imaginário que não
acontece; somos surpreendidos por uma desgraça que jamais havíamos pensado. A sabedoria está em pôr o coração à larga e entregar a alma a Deus.
No ano seguinte parti para a Suíça. Não morri lá. Não morri com a mão na de meu pai.
Ele é que morreu com a sua na minha. Eis o momento mais inesquecível.
31/01/1957
BANDEIRA, Manuel. O momento mais inesquecível. In: Crônicas para jovens. Seleção, prefácio e notas bibliográficas Antonieta Cunha. São Paulo, Global, 2012.
Crônica 5
Reis vagabundos
Juque! o outro não teve tempo de acabar o insulto: um soco bem colocado nos queixos
atirou-o por cima de uma das mesas do bar. No meio da confusão, vidros partidos, bebida
entornada, um garçon (os garçons gostavam dele) encaminhou o agressor para o mictório,
de onde por uma escada de mão se subia a uma soteiazinha, que era depósito de víveres e
bebidas. Isso era novidade para ele. Foi só quando os seus olhos se habituaram à meia escuridão do local, que percebeu nas prateleiras as latas de foie gras e mortadela, os queijos,
“and lo! creation widened in man’s view”, a bateria impressionante dos Black Label e dos
White Horse ali ao alcance da mão.
— Eta, sabiá da mata! O sol quando nasce é para todos!
Quebrou o gargalo de uma garrafa numa quina de madeira e o whisky começou a rolar
dentro e fora da boca. Um desperdício de roquefort completou aquela orgia sem mulheres.
Meia hora depois o mesmo garçon que o encaminhara ali, veio avisar que o caminho estava
desimpedido.
Desceu na calada e ganhou a rua. Hep! Rapidez e eficiência. Na rua Treze de Maio
sentiu que não podia esperar. Desacatou o poste de iluminação. Quando estava assim, a
sua ideia fixa era desacatar. Mas tanto era desacatar o ato de provocar um amigo ou desconhecido, como virar uma garrafa inteira de Madeira R ou fazer aquilo no poste, à vista de
toda a gente. “Desacatei! Hep!”
No Ventania apareceu o vice-cônsul, maior do que ele, mais corado do que ele, elegante pra cachorro: “Vil burocrata, espancá-lo-ei na via pública!” Mas espancou o quê, foram
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mas foi beber numa pensão da Lapa, espavorindo as mulheres, afugentando os michês,
hep!, enquanto a pianista feia e velha, única pessoa sem medo, mantinha o pretígio da casa
atacando com bravura o “Zaraza”. Depois o Lamas até às primeiras claridades da manhã.
Só então, porque como a Tristão e Isolda o sol é odioso aos notívagos desta espécie, os
dois deixaram o tradicional café do largo do Machado em busca de abrigo.
O vice-cônsul dormia num velho solar do Segundo Reinado, que ficava para os lados
da Gávea, próximo da lagoa Rodrigo de Freitas. A quebradeira dos herdeiros ajudada pelo
capim reduzira o antigo solar a habitação coletiva e quinze anos deste último regime acabaram arruinando o casarão, hoje desocupado, com exceção de um pequeno quarto no puxado, onde o vice-cônsul se instalara com armas e bagagens. As bagagens eram uma cama
de ferro, uma mesa de pinho não envernizada e uma cadeira de assento de palhinha furado;
a arma era uma só, uma arapuca de passarinhos, cuja utilidade se verá mais adiante. Havia
aos fundos uma boa chácara, onde por favor moravam dois mulatos que não atendiam nunca pelos nomes e sim pelos títulos de sua atividade junto ao vice-cônsul. Eram os secretários nos 1 e 2.
Até às oito horas houve uma tentativa honesta de sono. Àquela hora o vice-cônsul, que
sempre cochilara um bocadinho, levantou-se da cama e disse sério para o outro: — “Chegou
a hora do ganha-pão!”.
O secretário nº 1 foi despachado para a cidade com uma carta que bem respondida
deveria valer uma nota de vinte. Depois os dois amigos se dirigiram ao fundo da chácara, o
vice-cônsul armou o alçapão, que ficou confiado à vigilância do secretário nº 2, enquanto os
rapazes voltavam para o quarto a fumar os últimos cigarros. O vice-cônsul sabia que o recurso não falhava. O ganhapão era seguro.
Com efeito, três quartos de hora mais tarde o secretário nº 2 entrava da chácara trazendo na mão um bonito bem-te-vi laranjeira. Hep! Seguiu-se o preparo do bem-te-vi. O vice-cônsul tomou do bichinho, abriu-lhe o bico e deixou cair uma ou duas gotas de aguardente de bagaceira. O passarinho arregalou os olhinhos e ficou firme, empoleirado no dedo indicador do secretário nº 2, como se estivesse hipnotizado.
— Não venda por menos de dez mil-réis!
O secretário ganhou a rua, veio descendo até Voluntários da Pátria, com o bem-te-vi
firme no dedo. Quando passasse por ele um menino acompanhado da mãe, era só oferecer
o “bem-te-vi ensinado”. O passarinho passava para o indicador do menino e enquanto du12
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rasse o porrinho seria bem-te-vi ensinado. Era sempre assim e foi assim também daquela
vez.
Quando o secretário nº. 2 voltou com os dez mil-réis do bem-te-vi, o vice-cônsul mandou-o comprar ovos, presunto, queijo e cachaça, mais cigarros, e os amigos almoçaram aí
pelas duas da tarde, hep!
BANDEIRA, Manuel. Reis vagabundos. In: Crônicas para jovens. Seleção, prefácio e notas bibliográficas Antonieta Cunha. São Paulo, Global, 2012.
Crônica 6
O pavão de Braga
Domingo passado apanhei na banca os meus jornais (numerosos por causa dos suplementos literários,
e agora o jovem Eduardo Portela está-nos obrigando a
comprar também o Jornal do Commercio), voltei para
casa e, lentus in umbra, comecei a leitura pelo Diário
de Notícias, buscando na segunda página do 1º caderno, à esquerda, no alto, o palmo de prosa de Rubem
Rubem Braga (1913-1990)
Braga. Mas desta vez não chegava a um palmo, eram
foi cronista e jornalista brasi-
três dedos, mal medidos. E pensei comigo: “O velho
Braga anda preguiçoso”.
Qual não foi a minha surpresa quando principiei a
leiro. Tornou-se famoso como
cronista de jornais e revistas
de grande circulação no país.
Foi correspondente de guerra
ler e vi que estava diante de mais uma pequenina obra-
na Itália e Embaixador do
prima desse príncipe da crônica que é o taciturno cida-
Brasil em Marrocos.
dão de Cachoeiro de Itapemirim!
Já tentei explicar um dia a razão da superioridade de Braga sobre todos nós no gênero
por excelência caduco: a crônica. Parece-me que o segredo dele é pôr sempre no que escreve o melhor de certa sua inefável poesia. “Os outros cronistas”, ajuntei, “põem também
poesia nas suas crônicas, mas é o refugo, poesia barata, vulgarmente sentimental... A boa,
eles guardam para os seus poemas. Braga, poeta sem oficina montada e que faz poema
uma vez na vida e outra na morte, descarrega os seus bálsamos e os seus venenos na crônica diária.”
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É isso mesmo. De vez em quando mostra espírito público, escreve sobre Brasília, impostos, eleições. Quando a tragicomédia brasileira o enche demais, volta aos dias da infância em Cachoeira. Ou se Zico está fora, escreve-lhe uma carta puxa-puxa. Ou, muito simplesmente, namora com uma das suas paixões, que, segundo a receita do famoso soneto de
Vinicius, são sempre eternas enquanto duram.
A crônica de domingo era desta última categoria. Braga leu nos livros que as cores da
cauda do pavão, esse “arco-íris de plumas”, não estão nessas plumas: são efeitos de prisma. Muito bem, até aí o que há é didática. Mas a seguir o poeta Braga tira dessa primícia
duas imagens de também luxo imperial como o da cauda do pavão. A primeira é a do artista,
que quando é grande “atinge o máximo de matizes com o mínimo de elementos”; a segunda
é a do amor – do amor dele Braga: de tudo o que esse amor suscita e que esplende, estremece e delira nele, existe de fato o quê? Os dois olhos dele recebendo a luz dos dois olhos
dela...
Obrigado, Braga, por esse pavão magnífico.
[12.Xl.1958]
BANDEIRA, Manuel. O pavão do Braga. In: Crônicas para jovens. Seleção, prefácio e notas bibliográficas Antonieta Cunha. São Paulo, Global, 2012.
Produção textual – Atividade 1
Leia:
Crônica 7
Estive fazendo um levantamento de todas as baboseiras que me enviaram pela Internet
e observei como elas mudaram a minha existência. Primeiro, deixei de ir a bares, com medo
de me envolver com alguma mulher ligada a alguma quadrilha de ladrões de órgãos que me
roubasse as córneas, me arrancasse os dois rins e me deixasse estirado dentro de uma banheira de gelo.
Deixei também de ir ao cinema, com medo de me sentar em uma poltrona com seringa
infectada com o vírus da Aids. Depois parei de atender o telefone para evitar que me pedissem para digitar *9, e tivesse minha linha clonada e fosse obrigado a pagar uma conta telefônica astronômica.
Dei o meu celular porque iriam me presentear com um modelo mais novo da Ericsson,
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que nunca chegou. Então tive de comprar outro, mas o abandonei, com medo que as microondas me dessem câncer no cérebro. Deixei de comer vários alimentos com medo dos estrógenos.
Parei de comer galinha e hambúrgueres porque eles não são mais que carne de monstros horríveis, sem olhos, cabeludos e cultivados em um laboratório.
Abandonei o hábito de tomar qualquer coisa em lata para não morrer contaminado pela
urina do rato.
Deixei de ir aos shoppings com medo que sequestrassem minha mulher e a obrigassem a gastar todos os limites do cartão de crédito ou colocassem alguém morto no portamalas do automóvel dela.
Eu também doei todas as minhas poupanças à conta de Brian, um menino doente que
estava a ponto de morrer umas 700 vezes no hospital.
E como se não bastasse, terminei acreditando que tudo de ruim e de injusto que me
aconteceu é porque quebrei todas as correntes ridículas que me enviaram e acabei sendo
amaldiçoado, mesmo rezando todos os dias!
Resultado: estou em tratamento psiquiátrico.
(Joelmir Beting)
AGORA É A SUA VEZ...
Você já se deu conta de como estamos? A tecnologia está avançando e de como devemos acompanhar seus passos? Escreva uma CRÔNICA em que você narra, de forma
irônica, uma de suas experiências com um dos frutos da tecnologia.
ORIENTAÇÕES
 Organize suas ideias. Procure anotar que tipo de emoção, sentimento, reação ou reflexão o assunto da crônica desencadeou em você.
 A estrutura da crônica prevê como ponto de partida para o texto a apresentação de
um breve relato que situe o leitor em relação ao fato/ imagem/ comportamento que
desencadeou o processo analítico. Como você fará essa introdução?
 A linguagem da crônica admite certa informalidade, mas evite exageros nas marcas
de oralidade. Se você julgar interessante, lembre-se de que é possível estabelecer
uma interlocução com o leitor do texto.
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DIFERENTES TEMAS, DIFERENTES CRÔNICAS...
A possibilidade de abordar um sem-número de temas faz com que os cronistas escrevam sobre os mais variados tópicos. É possível, porém, identificar algumas grandes tendências no interior desse gênero discursivo. Por essa razão, alguns teóricos propõem uma
“classificação” das crônicas, a depender dos assuntos nelas abordados.
Vejamos algumas delas:

Crônica mundana: trata de fatos ou acontecimentos característicos de uma sociedade. É o caso do primeiro texto lido no começo deste material, a crônica Entre quatro
paredes, de Bill Bryson;

Crônica reflexiva: registra a expressão de um estado de espírito do cronista. Veja
um exemplo:
Crônica 8
Vitória nossa
O que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia? Não temos
amado, acima de todas as coisas. Não temos aceito o que não se entende porque não queremos ser tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos, nem aos outros. Não temos nenhuma alegria que tenha sido catalogada. Temos construído catedrais e
ficado do lado de fora, pois as catedrais que nós mesmos construímos tememos que sejam
armadilhas. Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida
larga e talvez sem consolo. Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro que por amor
diga: teu medo. Temos organizado associações de pavor sorridente, onde se serve a bebida
com soda. Temos procurado salvar-nos, mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer sua contextura de amor e de ódio. Temos mantido em segredo a nossa morte. Temos feito arte por não sabermos como é a outra coisa. Temos disfarçado com amor nossa
indiferença, disfarçado nossa indiferença com a angústia, disfarçando com o pequeno medo
o grande medo maior. Não temos adorado, por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido ingênuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer “pelo menos não fui tolo”, e assim não chorarmos antes de apagar a luz. Temos tido a certeza de que eu também e vocês todos também, e por isso todos sem saber se amam. Temos sorrido em público do que não sorrimos
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quando ficamos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a nossa candura. Temo-nos temido
um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso temos considerado a vitória nossa de cada dia...
(Clarice Lispector)

Crônica humorística: apresenta uma visão irônica ou cômica dos fatos relatados;
Veja um exemplo:
Crônica 9
Desabafos de um bom marido
Minha esposa e eu temos o segredo pra fazer um casamento durar: duas vezes por
semana, vamos a um ótimo restaurante, com uma comida gostosa, uma boa bebida, e um
bom companheirismo. Ela vai às terças-feiras, e eu às quintas.
Nós também dormimos em camas separadas. A dela é em Fortaleza e a minha em São
Paulo. Eu levo minha esposa a todos os lugares, mas ela sempre acha o caminho de volta.
Perguntei a ela onde ela gostaria de ir no nosso aniversário de casamento. “Em algum lugar
que eu não tenha ido há muito tempo!” ela disse. Então eu sugeri a cozinha.
Nós sempre andamos de mãos dadas. Se eu soltar, ela vai às compras. Ela tem um liquidificador elétrico, uma torradeira elétrica, e uma máquina de fazer pão elétrica. Então ela
disse: “Nós temos muitos aparelhos, mas não temos lugar pra sentar”. Daí, comprei pra ela
uma cadeira elétrica.
Lembrem-se, o casamento é a causa número um para o divórcio. Estatisticamente,
100% dos divórcios começam com o casamento. Eu me casei com a “Sra. Certa”. Só não
sabia que o primeiro nome dela era “Sempre”.
Já faz 18 meses que não falo com minha esposa. É que não gosto de interrompê-la.
Mas tenho que admitir, a nossa última briga foi culpa minha. Ela perguntou: “O que tem na
TV?” E eu disse “Poeira”.
No começo Deus criou o mundo e descansou. Então, Ele criou o homem e descansou.
Depois, criou a mulher.
Desde então, nem Deus, nem o homem, nem Mundo tiveram mais descanso. “Quando
o nosso cortador de grama quebrou, minha mulher ficava sempre me dando a entender que
eu deveria consertá-lo. Mas eu sempre acabava tendo outra coisa para cuidar antes: o caminhão, o carro, a pesca, sempre alguma coisa mais importante para mim.
Finalmente ela pensou num jeito esperto de me convencer. Certo dia, ao chegar em
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casa, encontrei-a sentada na grama alta, ocupada em podá-la com uma tesourinha de costura. Eu olhei em silêncio por um tempo, me emocionei bastante e depois entrei em casa.
Em alguns minutos eu voltei com uma escova de dentes e lhe entreguei. “Quando você
terminar de cortar a grama,” eu disse, “você pode também varrer a calçada.”
Depois disso não me lembro de mais nada. Os médicos dizem que eu voltarei a andar,
mas mancarei pelo resto da vida.
“O casamento é uma relação entre duas pessoas na qual uma está sempre certa e a
outra é o marido...”
(Luis Fernando Veríssimo)

Crônica jornalística: trata periodicamente de aspectos particulares de notícias ou
fatos; pode ser policial, esportiva, política, etc. Veja o exemplo:
Crônica 10
Notícia de jornal
Leio no jornal a notícia de que um homem morreu de fome. Um homem de cor branca,
30 anos presumíveis, pobremente vestido, morreu de fome, sem socorros, em pleno centro
da cidade, permanecendo deitado na calçada durante 72 horas, para finalmente morrer de
fome.
Morreu de fome. Depois de insistentes pedidos e comentários, uma ambulância do
Pronto Socorro e uma radiopatrulha foram ao local, mas regressaram sem prestar auxílio ao
homem, que acabou morrendo de fome.
Um homem que morreu de fome. O comissário de plantão (um homem) afirmou que o
caso (morrer de fome) era da alçada da Delegacia de Mendicância, especialista em homens
que morrem de fome. E o homem morreu de fome.
O corpo do homem que morreu de fome foi recolhido ao Instituto Anatômico sem ser
identificado. Nada se sabe dele, senão que morreu de fome.
Um homem morre de fome em plena rua, entre centenas de passantes. Um homem caído na rua. Um bêbado. Um vagabundo. Um mendigo, um anormal, um tarado, um pária, um
marginal, um proscrito, um bicho, uma coisa - não é um homem.
E os outros homens cumprem seu destino de passantes, que é o de passar. Durante
setenta e duas horas todos passam, ao lado do homem que morre de fome, com um olhar
de nojo, desdém, inquietação e até mesmo piedade, ou sem olhar nenhum.
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Passam, e o homem continua morrendo de fome, sozinho, isolado, perdido entre os
homens, sem socorro e sem perdão.
Não é da alçada do comissário, nem do hospital, nem da radiopatrulha, por que haveria
de ser da minha alçada? Que é que eu tenho com isso? Deixa o homem morrer de fome.
E o homem morre de fome. De trinta anos presumíveis. Pobremente vestido. Morreu de
fome, diz o jornal. Louve-se a insistência dos comerciantes, que jamais morrerão de fome,
pedindo providências às autoridades.
As autoridades nada mais puderam fazer senão remover o corpo do homem. Deviam
deixar que apodrecesse, para escarmento dos outros homens. Nada mais puderam fazer
senão esperar que morresse de fome.
E ontem, depois de setenta e duas horas de inanição, tombado em plena rua, no centro
mais movimentado da cidade do Rio de Janeiro, Estado da Guanabara, um homem morreu
de fome.
(Crônica de Fernando Sabino)
Existem várias outras classificações para as crônicas. É claro que essa é apenas uma
referência e, em muitos casos, uma mesma crônica pode apresentar características associadas a mais de um dos tipos identificados acima.
Produção textual – Atividade 2
É bastante comum que as crônicas publicadas nos jornais tenham como ponto de partida a leitura de uma notícia exibida anteriormente no próprio meio e lida pelo cronista. O
autor da crônica demonstra interesse em escrever a respeito de determinado assunto a fim
de extrapolar o campo da mera exposição de um acontecimento e revela um caráter de
questionamento e indagação acerca da vida cotidiana.
A crônica “Notícia de jornal” (página 18), do Fernando Sabino, foi originada a partir da
seguinte notícia de jornal:
Homem morre de fome no centro da cidade
Um homem de cor branca, 30 anos presumíveis, pobremente vestido, morreu de fome
ontem, no centro da cidade, depois de ter permanecido por setenta e duas horas deitado na
calçada. Uma ambulância do Pronto Socorro e uma radiopatrulha, chamadas insistentemente por comerciantes instalados nas proximidades, nada fizeram, alegando que o caso fugia
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às suas atribuições, era da alçada da Delegacia de Mendicância. O corpo foi recolhido ao
Instituto Médico Legal, onde aguarda identificação.
(Notícia retirada do livro: Português: uma proposta para o Letramento. Livro 7. Autora: Magda Soares)
Observe que a notícia restringe-se a expor ao leitor qual foi o acontecimento, não há
qualquer tipo de subjetividade, ou seja, de reflexão do autor. Ao contrário do que acontece
na crônica, um texto permeado pelas impressões, ou subjetividades, do cronista Fernando
Sabino, que, ao repetir a frase “um homem morreu de fome”, demonstra sua indignação diante do fato.
AGORA É A SUA VEZ...
Leia a notícia abaixo e, a partir dela, escreva uma crônica em que você apresente ao
leitor suas impressões e opiniões a respeito do tema abordado por ela.
Anunciado no Facebook, tênis da Adidas é considerado racista
Com correntes de borracha, calçado teve a venda suspensa
No mês de junho, a fabricante de materiais esportivos Adidas anunciou em sua página
do Facebook o lançamento de um novo tênis na linha outono-inverno 2012, segundo informou o jornal “Le Monde”. Desenhado pelo estilista Jeremy Scott Roundhouse, o calçado traz
pulseiras de borracha simulando correntes, que muitos internautas viram como uma referência à escravidão.
Segundo a CNN, a empresa rapidamente removeu a postagem na página do Facebook, mas o assunto já havia rodado o globo gerando revolta entre internautas.
“Aparentemente não havia pessoas de cor no departamento de marketing que o aprovou”, brinca Rodwell em comentário no site “Nice Kicks”, portal destinado aos lançamentos
de tênis.
A empresa, inicialmente, defendeu o designer, descrevendo seu estilo como “original” e
alegre, mas o fabricante alemão emitiu um comunicado onde pede desculpas aos ofendidos
com o caso e afirma que o modelo não será comercializado.
Fonte: (http://ocadernodarose.blogspot.com.br/2012/09/escreva-uma-cronica-com-base-nesta.html)
ORIENTAÇÕES
 Organize suas ideias. Procure anotar que tipo de emoção, sentimento, reação ou reflexão o assunto da notícia desencadeou em você.
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 A estrutura da crônica prevê como ponto de partida para o texto a apresentação de
um breve relato que situe o leitor em relação ao fato/ imagem/ comportamento que
desencadeou o processo analítico. Como você fará essa introdução?
 A linguagem da crônica admite certa informalidade, mas evite exageros nas marcas
de oralidade. Se você julgar interessante, lembre-se de que é possível estabelecer
uma interlocução com o leitor do texto.
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