Quando o céu é o limite - Eduff - Universidade Federal Fluminense

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Quando o céu é o limite - Eduff - Universidade Federal Fluminense
Quando o céu é o limite
Universidade Federal Fluminense
REITOR
Sidney Luiz de Matos Mello
VICE-REITOR
Antonio Claudio Lucas da Nóbrega
Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense
Conselho Editorial
Aníbal Francisco Alves Bragança (presidente)
Antônio Amaral Serra
Carlos Walter Porto-Gonçalves
Charles Freitas Pessanha
Guilherme Pereira das Neves
João Luiz Vieira
Laura Cavalcante Padilha
Luiz de Gonzaga Gawryszewski
Marlice Nazareth Soares de Azevedo
Nanci Gonçalves da Nóbrega
Roberto Kant de Lima
Túlio Batista Franco
DIRETOR
Aníbal Francisco Alves Bragança
Cristina Teixeira Marins
Quando o céu é o limite
Um olhar antropológico sobre
o universo dos casamentos e
dos cerimonialistas
Copyright © 2014 Cristina Teixeira Marins
Copyright © 2016 Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense
Nova Biblioteca, 10
É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da editora.
Direitos desta edição cedidos à
Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense
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Impresso no Brasil, 2016
Foi feito o depósito legal.
Este livro é para você, Thiago.
Que você receba com ele a minha gratidão, a minha
admiração e, acima de tudo, o meu amor.
Sumário
Prefácio | 9
Introdução | 13
Primeiros passos | 14
Incursão etnográfica preliminar | 17
Levantamento bibliográfico preliminar | 21
A centralidade das noivas | 23
Breves considerações sobre metodologia | 27
Os cerimonialistas em contexto | 39
Sobre a indústria | 41
Cerimonialistas no Rio de Janeiro | 52
O que fazem os cerimonialistas | 58
A construção do cerimonialista | 71
De noivas a cerimonialistas | 77
O aprendizado do ofício | 83
Cerimonialista não é convidado | 89
Lidando com noivas | 91
Algumas palavras sobre autoridade | 96
Lidando com redes profissionais | 102
Os cerimonialistas como artesãos | 107
O casamento | 109
A montagem | 110
A cerimônia | 116
A festa | 127
O tradicional versus o alternativo | 137
Considerações finais | 141
Referências | 147
Anexos | 151
Agradecimentos | 157
Prefácio
E
m meados de 2014, estreava mais um folhetim na
principal emissora de TV do Brasil. Exibida no
assim chamado horário nobre, a trama contava
com um núcleo que prometia causar polêmica. A razão era simples: para viver um profissional bem-sucedido, casado, pai de
dois filhos e que manteria um romance extraconjugal com um
jovem aspirante a ator, foi escalado um galã conhecido por interpretar personagens tidos como másculos, fortes, viris. Embora
este aspecto tenha sido o principal chamariz para a mídia e o
grande público, um outro (ainda que em escala mais modesta),
também atraía a atenção dos telespectadores: o personagem em
questão era um cerimonialista de referência no mundo dos poderosos e, portanto, figura constante em badaladas festas do Rio
de Janeiro.
Naquele mesmo ano, poucos meses antes, acontecia, nas
dependências do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da
Universidade Federal Fluminense, a defesa da dissertação de mestrado que deu origem ao livro que ora tenho a honra e o prazer de
prefaciar. Como informa o título, Quando o céu é o limite: um olhar
antropológico sobre o universo dos casamentos e dos cerimonialistas,
o trabalho aborda o fazer de uma categoria profissional que, para
muitos, vem se tornando praticamente imprescindível na construção de eventos, dentre os quais destacam-se os ritos e festejos
que acompanham a celebração do casamento. Se, como define o
sociólogo Norbert Elias, as profissões são “funções sociais especializadas que as pessoas desempenham em resposta a necessidades
especializadas de outras” (2001, p. 90), dado o cenário de tensão,
ansiedade e expectativa no qual, não raro, costumam atuar, os cerimonialistas poderiam ser encarados como uma espécie de magos
modernos, cuja eficácia simbólica repousa na crença de que, em
9
suas mãos, tudo há de transcorrer sob o mais absoluto controle;
que o Grande Dia será, como se deseja, simplesmente perfeito!
Embora, de algum modo, dialogue com o ramo das Ciências
Sociais a que se convencionou denominar sociologia das profissões, Quando o céu é o limite... vai além do estudo de uma categoria profissional e é precisamente aí que reside a sua originalidade.
Para desenvolvê-lo, a autora recorre, de forma criativa, à análise
das práticas e discursos dos cerimonialistas, não como um fim em
si mesmo, mas como um meio privilegiado para interpretar alguns
dos múltiplos e variados significados que envolvem a celebração do
casamento. E este é apenas um dos méritos da jovem etnógrafa que,
em seu début antropológico, mostra-se bastante à vontade quanto
ao emprego dos métodos e técnicas próprios da disciplina. Prova
disso é que combina, com indiscutível competência, diferentes estratégias de pesquisa, o que, por corolário, lhe permite lançar um
olhar caleidoscópico sobre um campo empírico, a um só tempo,
rico, fascinante e (permitam-me dizer) complexo.
Orientada pela máxima de que “os campos de produção
de bens culturais são universos de crença que só podem funcionar na medida em que conseguem produzir, inseparavelmente,
produtos e a necessidade desses produtos” (BOURDIEU, 2004,
p. 30), a pesquisadora nos conduz pelo interior da chamada “indústria dos casamentos” (com suas cifras monumentais!), desvelando, com riqueza de detalhes, o ofício de cerimonialista e o
lugar de destaque hoje ocupado por ele na construção dos mais
diversos eventos sociais. Ao descrever e analisar o desempenho
de suas funções, utiliza-o, também, como uma espécie de lente
através da qual torna-se possível enxergar um mundo que, para
muitos de nós, soa familiar, sem ser, de fato, conhecido; vivido,
mas não necessariamente refletido.
Uma outra qualidade digna de nota no trabalho que se
segue diz respeito a um aspecto importante, embora nem sempre suficientemente reconhecido. Refiro-me, no caso, ao nada
simples processo de textualização etnográfica. Após acumular
considerável massa de informações junto às mais variadas fontes (como, por exemplo, em cursos, workshops, palestras, feiras,
encontros, almoços, chás de confraternização etc.), a autora nos
10
brinda com um texto elegante, sucinto e, sobretudo, claro, muito
claro! Contrariando a tradição que nos ensina a falar apenas aos
iniciados (ou, como se diz, de pregar aos convertidos), empenha-se em produzir um texto acessível sem, contudo, prescindir dos
devidos rigores teórico-metodológicos, o que, ao menos potencialmente, o habilita a ter uma ampla circulação, tanto entre leigos quanto entre o público especializado.
Embora a tentação seja grande, não pretendo repetir, aqui,
o conhecido clichê sobre a leitura obrigatória do livro, até porque, a despeito das razões eventualmente evocadas, de fato, não
consigo acreditar nesse tipo de propaganda! Isso, porém, não me
desobriga de, ao menos, recomendá-lo como leitura agradável e
instrutiva, que pode, inclusive, revelar-se útil àqueles que admiram trabalhos monográficos inovadores, nos quais a curiosidade
e a imaginação sociológica se conjugam com a fina sensibilidade
etnográfica. Se esse for o seu caso, caro leitor, não me resta muito
a dizer, a não ser lhe desejar um bom proveito!
Edilson Márcio Almeida da Silva
Universidade Federal Fluminense
Referências
BOURDIEU, Pierre. A produção da crença: contribuição para
uma economia dos bens simbólicos. 2. ed. São Paulo: Zouk, 2004.
ELIAS, Norbert. Estudos sobre a gênese da profissão naval: cavalheiros e tarpaulins. In: Mana: estudos de antropologia social, 7
(1). Rio de Janeiro: Relume-Dumará; PPGAS/Museu Nacional/
UFRJ, 2001.
11
12
Introdução
E
m língua portuguesa, o termo “casamento” abarca, pelo menos, alguns significados distintos. Sem
pretender dar conta da polissemia do termo, noto
que, por “casamento”, podemos entender a vida em conjugalidade
marcada pela coabitação; o vínculo estabelecido legalmente entre
duas pessoas; ou, ainda, dentro de um espectro mais restrito, as
formas do ritual que, arquetipicamente, celebra a união em matrimônio entre um homem e uma mulher.
A respeito do último significado, julgo interessante mencionar a existência, em língua inglesa, de um termo específico
que designa a dimensão ritual do casamento: refiro-me à palavra
wedding, que diz respeito estritamente à cerimônia de casamento
e às festividades que a acompanham, enquanto o termo marriage
abrange um sentido mais vasto, que inclui a união em conjugalidade entre duas pessoas.
Chamar a atenção para os múltiplos sentidos do casamento é importante para traçar os primeiros contornos do objeto aqui
apresentado. Nesta pesquisa, trato, essencialmente, do casamento
tal como definido pelo termo wedding. Mais precisamente, volto
minhas atenções para o evento, o acontecimento de significância,
conforme assinalou Sahlins1. Portanto, ao longo da dissertação,
ao me referir a casamento, o faço em alusão à cerimônia (religiosa
1
“Um evento é de fato um acontecimento de significância e, enquanto significância, é
dependente na estrutura por sua existência e por seu efeito. ‘Eventos não estão apenas
ali e acontecem’, como diz Max Weber, ‘mas têm um significado e acontecem por causa
de um significado’. Ou, em outras palavras, um evento não é somente um acontecimento
no mundo; é a relação entre o acontecimento e um dado sistema simbólico. E, apesar de
um evento enquanto acontecimento ter propriedades ‘objetivas’ próprias e razões precedentes de outros mundos (sistemas), não são essas propriedades, enquanto tais, que lhe
dão efeito, mas a sua significância, da forma que é projetada a partir de algum esquema
cultural.” (SAHLINS, 2011, p. 191).
13
ou não) que marca a união entre duas pessoas (seja ela legitimada
pelo Estado ou não) e os festejos que lhe dizem respeito. É no
complexo ritual2 que encontro o ponto de partida e o fio condutor deste trabalho.
Dada a amplitude do tema, deparei-me com a n
­ ecessidade
de realizar alguns recortes, empregando nesta complexa tarefa uma dose inevitável de arbitrariedade. Por ora, gostaria de
mencionar duas destas escolhas que, como veremos adiante,
acabaram por conferir contornos particulares a este trabalho.
Em primeiro lugar, circunscrevi a realização da pesquisa à cidade do Rio de Janeiro3 – menos como um resultado de reflexão
­teórico-metodológica do que pelos aspectos práticos que esta
opção de trabalho implicaria. Em segundo lugar, optei por não
delimitar previamente um recorte por “classe” ou “estrato social”.
Tudo que eu pretendia era compreender quais eram os
significados, códigos e valores investidos nos ritos matrimoniais
contemporâneos da cidade do Rio de Janeiro.
Primeiros passos
Não deve ser por acaso que uma parcela dos textos produzidos por antropólogos seja, ao menos em algum grau, pontilhada por conteúdo autorreferente. Estou convencida de que
o caráter de personificação destes escritos (sobretudo o de suas
seções introdutórias), menos do que manifestação de vaidade,
constitui uma consequência inevitável do aprendizado do olhar
etnográfico e da aceitação de que, como pesquisadores, tomamos nossos objetos do mundo em que vivemos – e que isto, por
si só, produz importantes implicações. Assim sendo, sinto-me
inclinada a situar os primeiros passos deste trabalho em minha
trajetória pessoal.
Utilizo o termo “complexo ritual”, conforme assinalado por Victor Turner (1968, p. 3). A
partir desta noção, podemos compreender o casamento como um conjunto de sequências de momentos rituais, “fases”, “estágios”, “episódios” ou “ações” que o constituem.
3
Isto não significa, entretanto, que eu tenha desprezado informações que eu julgava úteis
e que dissessem respeito a outras regiões do Brasil.
2
14
No ano de 2008, quando iniciava meus estudos no campo
das ciências sociais, recebi um presente inesperado: meu então
namorado me ofertava uma pequena caixa de cor preta, envolvida por um laço prateado, que continha um par de alianças.
Informada por uma série de representações em torno deste gesto
singelo, logo entendi que se tratava de um pedido de casamento e,
mesmo tendo sido surpreendida pelo presente, tinha alguma noção de que aceitá-lo significaria uma iminente mudança em meu
estado civil que, possivelmente, seria precedida da organização
de um ritual que marcasse esta data.
Talvez tenha sido pela minha parca familiaridade com
o universo dos casamentos que o passo seguinte tenha se convertido na descoberta de um mundo que, além de me parecer
estranho, se revelaria bastante promissor para meu exercício intelectual. Com o olhar um pouco mais atento, não tardou para
que eu me desse conta da destacada posição que estes rituais
ocupam no imaginário cultural brasileiro4. Observando contextos e discursos cotidianos, percebi, por exemplo, que, em nosso
país, são produzidos e exibidos diversos programas de TV que
acompanham os preparativos de festas de casamento. Comecei a
reparar também nas numerosas publicações dedicadas ao tema,
largamente comercializadas em bancas de revistas e em livrarias
da cidade. Descobri que há um calendário de feiras e eventos voltados aos ritos matrimoniais, e que eles costumam atrair milhares
de pessoas durante todo o ano. Atentei ainda para o espaço de
destaque ocupado pelos casamentos na teledramaturgia e para as
minuciosas coberturas das festas de casamentos de famosos que
rendem páginas e mais páginas das revistas de fofoca. Se levarmos tudo isso em conta, talvez já não nos impressionem tanto as
estimativas do setor de eventos que apontam para a existência de
uma indústria poderosa: segundo especialistas ouvidos no ano­
de 2012, o mercado de casamentos no Brasil vem experimentando
4
Não quero dizer com isso que o fenômeno seja estritamente nacional. A propósito, compartilho da visão de Otnes e Pleck, que percebem o fascínio por festas de casamento
como um fenômeno ocidental em plena ascenção em outras partes do mundo (ver:
OTNES; PLECK, 2003, p. 2).
15
um crescimento sensível e movimenta, anualmente, algo em torno de 15 bilhões de reais5.
O lugar marcante ocupado pelos casamentos em nosso país se tornava, aos meus olhos, um tanto perturbador,
sobretudo quando confrontado com sua história recente.
Convencionalmente, os ritos matrimoniais são exemplos emblemáticos dos chamados “ritos de passagem”6 pois marcam,
entre outros aspectos, a transferência do casal para uma nova
moradia e o acesso ao estatuto de adulto, inaugurando formalmente os direitos à sexualidade e à procriação. No entanto, considerando as transformações ocorridas há poucas décadas no
campo dos costumes e da vida privada (tais como o feminismo,
a progressão das uniões livres e a chegada da mulher ao mercado de trabalho), os rituais de casamentos pareciam destinados a se tornarem, pouco a pouco, destituídos de sentido. E, se
isto acontecesse, seria perfeitamente plausível que estes rituais
experimentassem cedo ou tarde um declínio irremediável. Mas
eis que testemunhamos um movimento contrário: recentemente, os ritos matrimoniais vêm adquirindo uma importância expressiva e vêm se tornando objeto de crescente investimento de
tempo, dinheiro e energia.
Dado que os casamentos não marcam, ao menos não de
forma tão pronunciada como o faziam outrora, a passagem dos
noivos ao mundo dos adultos e que eles tampouco entraram em
declínio, deduzi que seus sentidos tivessem sido profundamente reformulados. Assim, eu começava a me questionar a respeito
dos novos sentidos dos quais eram supostamente investidos os
rituais de casamento contemporâneos. Queria compreender o
modo como o casamento é hoje planejado, percebido e lembrado, em uma palavra, representado pelos diferentes atores sociais
O montante aqui apresentado diz respeito às estimativas publicadas pela Revista Exame:
“A expansão do mercado de casamentos”. Revista Exame PME, 23/7/12. Contudo, julgo
pertinente ressaltar que ao longo da pesquisa me deparei com uma série de dados desencontrados (e isto, creio, deve se relacionar ao alto grau de informalidade verificado
no setor). Por outro lado, a ideia de que este se trata de um mercado em franca expansão
parece ser unânime.
6
Recorro aqui à afirmação de Van Gennep, segundo quem “casar-se é passar da sociedade
infantil ou adolescente para a sociedade madura, de certo clã para outro, de uma família
para outra, e muitas vezes de uma aldeia para outra” (VAN GENNEP, 2011, p. 112).
5
16
nele envolvidos. Mas deste ponto até a formulação de um projeto
de pesquisa que cumprisse as exigências inerentes a um trabalho
científico, um longo caminho ainda haveria de ser percorrido.
Incursão etnográfica
preliminar
Os argumentos desenvolvidos neste livro b
­ aseiam-se em
um trabalho de pesquisa que excedeu o período de duração do
curso de mestrado. Isto porque, antes que eu estivesse inscrita no
Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade
Federal Fluminense, esbocei uma primeira aproximação do campo entre os meses de novembro de 2010 e janeiro de 2011. Neste
período, buscava, fundamentalmente, avaliar as possibilidades
etnográficas que o tema oferecia e, para tal, valendo-me da ajuda
de pessoas de meu círculo de amizades, empreguei-me em uma
pequena empresa de convites e brindes para casamento.
Tratava-se de um estabelecimento comercial que funcionava em um edifício no centro da cidade havia pouco mais de
um ano. Sua proprietária, uma designer que deixara o emprego
em uma agência de publicidade para se dedicar exclusivamente
ao pequeno negócio, concentrava a quase totalidade das atividades da empresa, o que incluía a elaboração da arte dos produtos,
pagamentos a fornecedores e entrega dos convites e brindes. A
empresa tinha apenas uma funcionária, que trabalhava na etapa
de produção e acabamento dos pedidos. Recém-contratada, eu
deveria desempenhar a função de atendimento dos clientes.
Minha responsabilidade ali consistia, predominantemente, em atender os potenciais compradores por e-mail, telefone
ou face a face. Ainda que com menor frequência, eu também era
incumbida de conduzir negociações com fornecedores da indústria de casamentos. Trabalhava de segunda a sexta-feira, em
horário comercial e, eventualmente, aos sábados, conforme as
solicitações de clientes. A maior parte de minha jornada de trabalho era preenchida respondendo a solicitações de orçamento,
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fornecendo esclarecimentos sobre prazos e outros detalhes do
processo de confecção dos produtos de papelaria. Quase todos os
clientes que pretendiam fechar negócio agendavam um horário
comigo para que pudessem conhecer de perto os produtos, esclarecer dúvidas e tentar negociar preços e condições de pagamento.
Era comum que estas reuniões ultrapassassem uma, duas horas
de duração e que os compradores acabassem por me contar sobre
seus casamentos, compartilhando angústias e mesmo solicitando
conselhos relativos aos eventos que eles preparavam.
Os clientes que eu atendia provinham de contextos sociais
bastante diversos. Eram profissionais liberais, estudantes, comerciantes, médicos, vendedores, bancários. Vinham de bairros como
Ipanema, Barra da Tijuca, Cascadura, Vila Valqueire ou de cidades próximas, como Duque de Caxias, Macaé, Nova Friburgo. E eu
achava interessante que, a despeito das diferenças que guardavam
entre si, eles quase sempre convergissem no que dizia respeito a
suas inquietações. Escolher um convite de casamento costumava
ser uma tarefa demorada, acompanhada de inúmeras dúvidas e,
não raro, demandava algumas visitas à empresa.
Sentados diante de mim na pequena sala do edifício no
centro da cidade eles expunham um rol extenso de preocupações: deveriam optar por um texto clássico, no qual os pais convidariam para a cerimônia seguida de recepção? Seria de bom
tom indicar no convite o local onde deveriam ser comprados os
presentes de casamento? O tamanho e o formato dos envelopes
se adequavam à festa que eles preparavam? Deveriam optar pelo
acabamento com fita? Em caso positivo, a fita seria de cetim ou de
gorgurão? Na cor cinza, branca ou pérola? Seria possível imprimir na papelaria a mesma estampa floral utilizada na confecção
das almofadas da festa? O nível de detalhamento era acachapante.
Trabalhando nesta empresa, aprendi que um simples convite de
casamento poderia ser fruto de uma série de idealizações, de escolhas cuidadosas e de investimento financeiro considerável.
Embora o valor dos itens de papelaria não costumasse
ser significativo, se levado em conta o montante total gasto na
festa de casamento, ainda assim ele pode ser considerado alto.
18
Dependendo da gramatura e do tipo de papel, do tamanho do
envelope e do acabamento escolhido, o preço de cada unidade de convite poderia ultrapassar vinte reais – valor que eu sabia estar distante do mais alto do mercado. Assim, um cliente
que comprasse 150 convites, pagando quinze reais por unidade
(considerando o valor de um convite de preço intermediário),
desembolsaria 2.250 reais (um valor que, na época, equivalia
a, aproximadamente, 4,4 salários mínimos). Para a maior parte
dos clientes não se tratava de um episódio corriqueiro empregar tanto dinheiro em produtos feitos, essencialmente, de papel,
cola e tinta, o que se podia observar pela hesitação dos noivos
no momento de assinatura de um contrato.
Os clientes que eu atendia costumavam, em algum ponto
de nossa conversa, ponderar sobre a angústia suscitada pelos altos
custos implicados nas festas de casamento. E quanto mais conversávamos sobre os preparativos do evento, mais eu ouvia desabafos
sobre uma indústria propaladamente oportunista, capaz de triplicar o preço de um produto ou serviço diante da simples menção
da palavra “casamento”. Nossas reuniões de atendimento, quase
sempre, partiam do mesmo ponto: eu perguntava aos potenciais
clientes como eu poderia ajudá-los e eles rapidamente replicavam
que estavam à procura de convites “que não fossem caros”.
Pelo que pude notar trabalhando naquele pequeno empreendimento, os convites não ocupavam posição muito elevada
na hierarquia dos itens de consumo de um casamento. Em termos práticos, isso significava que os clientes costumavam procurar a empresa já no final dos preparativos (quando, muitas vezes,
o orçamento previsto para festa já havia sido estourado) e tratavam este item como um pormenor, justificando que os convites
“sempre vão parar no lixo mesmo”. Eu costumava encarar esse
discurso com certa naturalidade, até que ouvi um experiente profissional do ramo de casamentos retrucar esta ideia. Dizia ele que
“com exceção das fotos e do vídeo, todos os itens de um casamento vão parar no lixo, o que muda é a via”. E quanto mais eu pensava no assunto, mais eu ficava convencida de que ele estava com a
razão: do extenso inventário de itens incorporados ao casamento
(tais como o bolo, os doces, as bebidas, as flores, a maquiagem da
19
noiva e os trajes quase sempre alugados) pouco restaria não fosse
a lembrança materializada na produção audiovisual do evento.
Porque será, então, que alguns itens eram considerados centrais
em detrimento dos demais7?
Além disso, outra questão chamava minha atenção: salvo
um ou outro caso, as reuniões eram sempre agendadas pelas noivas. Aos encontros, elas poderiam comparecer sozinhas, acompanhadas de seus noivos, de suas mães, amigas ou parentes, mas
me parecia inequívoco que a palavra final competia sempre a elas.
Pouquíssimas vezes vi pisar na empresa os pais8 da noiva, amigos
ou parentes do sexo masculino. Os detalhes do convite pareciam
ser discutidos somente entre mulheres e, muito embora o evento
dissesse respeito à união de um casal, ao menos naquela fase dos
preparativos do casamento, os noivos pareciam ser coadjuvantes.
E isto fez com que eu começasse a me perguntar como seriam
construídos e desempenhados os papéis de gênero ao longo do
complexo ritual.
Terminados os três meses de trabalho na empresa de convites, eu me encontrava em estado de ainda maior inquietação.
Mas, a despeito de tantas indagações (ou exatamente impulsionada por elas), eu estava convencida de que o tema poderia render uma dissertação interessante. Tanto que, àquela altura, eu
imaginava já existirem numerosos estudos antropológicos sobre
o tema. Era chegada a hora de realizar um primeiro levantamento bibliográfico.
Posto que minha remuneração na loja de convites estava diretamente atrelada às vendas, eu tentava converter minha curiosidade antropológica em estratégia comercial.
Assim, eu apresentava aos clientes a opção de fazer os convites por e-mail, sem qualquer custo, ou ainda, questionava sobre a possibilidade de escrever bilhetes à mão,
sobre folhas de papel quaisquer. O silêncio que sucedia minhas indagações evidenciava um descompasso entre os discursos que apontavam para os convites como itens
sem importância e as inúmeras preocupações implicadas na compra destes. Mas se a
pergunta costumava surtir um efeito interessante para venda, elas eram realmente inquietantes para a pesquisadora: se a função do convite era simplesmente a de informar
a data e a hora do casamento e se os convites acabariam por ser descartados, porque
então empregar tamanha energia na escolha desses itens?
8
Uma vez que, em língua portuguesa, a palavra “pais” designa o plural de pai, mas também de pai e mãe, cabe ressaltar que, neste contexto, me refiro ao primeiro caso.
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