Caderno da Caade 2 - Secretaria de Estado de Desenvolvimento

Transcrição

Caderno da Caade 2 - Secretaria de Estado de Desenvolvimento
GOVERNO DO ESTADO DE MINAS GERAIS
Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social - SEDESE
Coordenadoria Especial de Apoio e Assistência à Pessoa com Deficiência- CAADE
CADERNOS DA CAADE
Número 2 – Sociedade e Pessoas com Deficiência
Belo Horizonte – Minas Gerais – 2010
3
Antonio Augusto Junho Anastasia
Governador do Estado de Minas Gerais
Ana Lúcia Almeida Gazzola
Secretária de Estado de Desenvolvimento Social
Flávio Couto e Silva de Oliveira
Coordenador Especial de Apoio e Assistência à Pessoa com Deficiência
4
SUMÁRIO
Apresentação
Introdução
Inclusão de pessoas com deficiência no trabalho: estudo em empresas com menos de
cem empregados em Contagem/MG
Natália Cristina Ribeiro Alves e Augusto Dutra ........................................................................7
Reflexões acerca da prática de colocação de pessoas com deficiência intelectual no
mercado de trabalho na modalidade de colocação seletiva nas APAES de Minas Gerais
Sérgio Sampaio Bezerra e Marli Helena Duarte Silva ..........................................................15
Acessibilidade e desenvolvimento de produtos: talheres em braille
Mônica Lucchesi Batista ........................................................................................................22
A pessoa com deficiência e o mercado de trabalho: a importância da investigação de
boas práticas que possam favorecer a inclusão produtiva
Nelson Luiz dos Santos Garcia e Frederico Luiz Barbosa de Melo ......................................27
Envelhecimento e Deficiência
Maria Aparecida Ferreira de Mello.........................................................................................33
Luz aos cegos, sons ao mundo: aspectos do ensino musical escolar sob o método
Braille, em uma escola brasileira (1926 a 1935)
Flávio Couto e Silva de Oliveira ............................................................................................36
Deficiência física e atividade turística: um contraponto entre a legislação e realidade
Everton Ricardo dos Reis ......................................................................................................46
Vida como patrimônio, inclusão como conquista: educação e pesquisa no museu de
ciências morfológicas da UFMG
Maria das Graças Ribeiro ......................................................................................................52
Necessidades educacionais especiais do autista
Amadeu Roselli-Cruz ............................................................................................................59
5
APRESENTAÇÂO
Vinculada à Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social, a Coordenadoria Especial de
Apoio e Assistência à Pessoa com Deficiência - CAADE - , exemplifica o claro compromisso da
Secretaria com o respeito e a atenção para com a diversidade dos grupos que integram o tecido
social. A CAADE, atuando no âmbito que lhe é próprio, pauta-se pela identificação e remoção
dos obstáculos, de não importa qual origem, que insistem em dificultar, ou mesmo impedir, o
pleno exercício da cidadania por parte das pessoas com deficiência. O princípio da inclusão,
gerador de uma cidadania sempre mais ampliada, é requisito básico do desenvolvimento
social e da consolidação da justiça e da equidade.
Ao editar o segundo número dos cadernos, a CAADE atesta a importância de conjugar
atividade e reflexão, evitando, assim, duas das dificuldades frequentes no serviço público, ora
sujeito às urgências de um cotidiano avassalador, ora seduzido pela palavra fácil e ineficaz. O
presente número, reunindo artigos que cobrem um amplo espectro, procura aproximar a atenção
a questões bem específicas de um marco geral que favoreça uma abordagem mais reflexiva.
Assim procedendo, a CAADE, nas atividades pelas quais é responsável, replica o que a
Sedese vem preconizando, a saber, a criação e implantação de medidas capazes de estender
a toda a sociedade os benefícios do desenvolvimento, tarefa que cabe a todos os que lutam
por uma nação menos desigual e mais justa.
Ana Lúcia Almeida Gazzola
Secretária de Estado de Desenvolvimento Social
6
INTRODUÇÂO
Dando prosseguimento à coleção Cadernos da CAADE, temos a satisfação de apresentar
neste segundo volume da série, uma coletânea de textos versando sobre diferentes assuntos
relacionados à inclusão social de pessoas com deficiência. Nesses textos, a temática da
deficiência é tratada principalmente a partir de uma abordagem social, conforme vem sendo
mundialmente preconizado nas últimas décadas, tanto por estudiosos, quanto pelo já sólido
marco regulatório nacional e internacional sobre o tema.
Entre esses documentos, cabe destacar a Convenção Internacional Sobre Os Direitos das
Pessoas com Deficiência, da Organização das Nações Unidas (ONU), bem como seu protocolo
facultativo, ambos ratificados no Brasil em julho de 2008, com status de norma constitucional.
Essa convenção internacional define pessoas com deficiência como sendo aquelas que “têm
impedimentos de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais
em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na
sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas” (grifo nosso).
Nota-se assim, que atualmente o foco na questão da deficiência não está mais apenas no
indivíduo e suas limitações, mas pelo contrário, a noção do que seja uma pessoa com deficiência
passou a ser percebida a partir de um conceito relacional, isto é, a relação do indivíduo com
deficiência e o contexto socioeconômico, político e ambiental em que tal indivíduo se insere.
Em outras palavras, a manifestação de uma deficiência como um fator potencial de limitação
na vida de uma pessoa é inversamente proporcional ao conjunto de facilidades oferecidas
pelo meio. Quanto mais acessível for o meio, menores serão as limitações de uma pessoa em
função de sua deficiência.
7
Desse modo, cada vez mais se compreende que o desenvolvimento de uma sociedade,
para ser pleno e efetivo, deve ser também justo e eqüitativo, considerando em todas as suas
dimensões, as necessidades específicas dos diferentes segmentos da população, alimentando
de maneira igualitária as potencialidades e as oportunidades de todas as pessoas. Essa é
portanto a noção de desenvolvimento social que tem servido como diretriz para as ações da
SEDESE e justamente por isso é também o conceito que está por detrás de cada um dos textos
escolhidos para compor esta publicação. Afinal, acreditamos firmemente que a circulação de
idéias, reflexões e relatos de experiências bem sucedidas contribui significativamente para
as mudanças de mentalidade e para o avanço das práticas de inclusão, bem como para a
universalização dos direitos humanos.
Logo, pretendemos com os Cadernos da CAADE, contribuir para fomentar o debate
qualificado sobre temas ligados à deficiência e ao mesmo tempo, possibilitar um novo
espaço para a publicação de resultados de pesquisas, resenhas de obras relevantes, ensaios
reflexivos e outros estudos, incentivando assim a produção na área. Com isso, acreditamos
estar cumprindo parte do papel essencial da CAADE|SEDESE, qual seja, derrubar a barreira
dos preconceitos, o que se dá, certamente, pela construção permanente do conhecimento.
A todos, uma boa leitura!
Flávio Couto e Silva de Oliveira
Coordenador da Caade/Sedese
8
Inclusão de pessoas com deficiência no trabalho: estudo em
empresas com menos de cem empregados em Contagem – MG
Natália Cristina Ribeiro Alves
Centro Universitário UNA
Augusto Dutra Galery
Universidade Presbiteriana Mackenzie
À medida que se empreendem esforços para a inclusão de pessoas com deficiência (PCD’s)1
no trabalho, tornam-se necessários estudos voltados para a forma com que representações
socialmente compartilhadas podem auxiliar ou dificultar o processo de inclusão social /
profissional dessas pessoas. Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT,
2002), a taxa de desemprego entre as PCD’s é bem mais elevada em relação à população
economicamente ativa (PEA). Estudos mostram que apenas cerca de 2% da população com
deficiência, no Brasil2, participa do mundo do trabalho (NERI; CARVALHO; COSTILLA, 2002).
Fatores de ordem objetiva contribuem para essa baixa taxa de empregabilidade, como a alegada
falta de capacitação desse público. Por outro lado, é possível supor que outros fatores, de ordem
subjetiva3, influenciem nas dificuldades que as PCD’’s enfrentam ao buscar o trabalho.
A exclusão da atividade produtiva reúne diversos efeitos sobre as PCD’s, como rupturas
identitárias, perda de status e reconhecimento social, exclusão, perdas de ordem financeira
e profissional. É necessário seu acesso a atividades produtivas que permitam o rompimento
de estereótipos e a ocupação ativa dos espaços profissionais. No entanto, as PCD’s, para
obter trabalho e mostrarem-se capazes, precisam romper mitos sociais que as vêem como
improdutivas e dependentes, necessitando sempre de cuidados especiais, sem condições
de desenvolver um trabalho que represente realização. Outra questão importante, no que diz
respeito ao trabalho, é o significado simbólico de se estar empregado formalmente, expresso
pelo conceito de cidadania regulada: seriam cidadãos aqueles que se encontrassem localizados
em ocupações reconhecidas, definidas em lei (BATISTA, 2002). A cidadania regulada seria,
então, restrita ao trabalhador do mercado formal de trabalho.
Vive-se um mercado de trabalho com altos índices de desemprego e exigências cada vez
maiores quanto à qualificação do candidato a emprego. As PCD’s vivem de modo agravado
esses problemas, apesar de haver uma legislação que assegure vagas em concursos públicos
e cota de cargos a serem preenchidos nas empresas4. Trata-se de uma situação complexa:
de um lado, as PCD’s, que não são consideradas habilitadas ou reabilitadas5, e de outro, as
empresas, que devem cumprir a legislação.
1
Como ressalta MATA (2004, p. 16), a opção pela terminologia “pessoas com deficiência”, por ele utilizada em seu trabalho,
“foi adotada por sugestão das entidades para pessoas com deficiência e de uma evolução em torno da terminologia”.
2
No Brasil, de acordo com o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) realizado em 2002, as PCDs
englobavam 24,5 milhões de pessoas.
3
Diversos autores tangenciam essa questão, ao falar de “mudança atitudinal” (FONSECA, 2005); “condições psicológicas
favoráveis” (GUGEL, 2001); “barreiras atitudinais” (SASSAKI, 2001).
4
Constituição Federal de 1988, art. 37 do inciso VIIII; Lei Federal 8.112/90, art. 5°; Constituição Estadual/95; Lei Municipal de
Belo Horizonte 6.661/94, art. 1°; Lei Federal 8.218/91, art. 3°.
5
Conferir: Lei Federal 8.213/91, art 89; Decreto 2.198/99, artigos 17, 18, 21 e 22; Ordem de Serviço 90, do Ministério da
Saúde e Previdência Social.
9
A partir de 1981, Ano Internacional das Pessoas Portadoras de Deficiência, e a partir da
declaração de princípios resultante do Congresso Mundial de Reabilitação, o Brasil vem
adotando uma série de ações afirmativas6 para incluir as PCD’s no trabalho, desde que assinou
duas convenções da OIT – Discriminação em Matéria de Emprego e Profissão, nº 111/59
e Adaptação de Ocupações e o Emprego do Portador de Deficiência, nº 159/83 (GUGEL,
2001) – ratificadas por decretos e leis que firmaram as diretrizes da inclusão profissional das
PCD’s, sendo uma das principais leis a 8.213/91, que reserva vagas em empresas com mais
de 100 funcionários para pessoas com deficiência habilitadas e/ou acidentados de trabalho
reabilitados, beneficiários da Previdência Social.7
Embora a legislação brasileira esteja voltada para o paradigma da inclusão social, a
sociedade não se adapta tão facilmente às mudanças. Assim, busca-se, no presente artigo,
verificar como as empresas reagem ao movimento social que força novas atitudes tais como
a inclusão profissional de PCD’s. Para tanto, far-se-á uma rápida exposição teórica sobre o
conceito de Sociedade Inclusiva. Em seguida, será apresentado o problema de pesquisa,
bem como a metodologia utilizada para abordá-lo, analisando os resultados obtidos. Por fim,
apontar-se-ão algumas conclusões da pesquisa realizada.
Sociedade inclusiva
Sociedade Inclusiva é uma sociedade para todos [...].
O objetivo principal é criar oportunidades iguais para
todos, percebendo o potencial humano (RATZKA, s/d).
A principal mudança paradigmática da proposta da Sociedade Inclusiva consiste em a
sociedade modificar-se para aceitar todos os seus integrantes. Assim, incluir não é “moldar” o
cidadão para se adequar às normas e estruturas já estabelecidas, é antes o inverso, adequar
as normas e estruturas às necessidades do cidadão. Busca-se modificar o conceito de
cidadania, rompendo com paradigmas de excluir as pessoas consideradas diferentes. Em
especial, a partir da Segunda Grande Guerra (FONSECA, 2005), vem-se buscando proteger
as pessoas pertencentes aos grupos minoritários, ampliando seus direitos e criando para os
mesmos “ambientes protegidos”. Multiplicaram-se as ações assistencialistas dos governos,
assim como as entidades filantrópicas, que se prestavam a dar segurança às minorias, mas
mantinham-nas segregadas, distantes do resto da sociedade, já que a “igualdade” não se
aplicava a essas pessoas, que dependiam de apoios específicos para se integrar à sociedade.
Fonseca (2005, p. 2) afirma que:
A sociedade deve, portanto, superar os paradigmas da mera afirmação
da igualdade de todos perante a lei [...] e agir, efetivamente, para [...] a
igualdade substancial de participação política, econômica e profissional
[...] estamos superando o viés assistencialista e caridosamente
excludente para possibilitar-lhes a inclusão efetiva.
6
Ações afirmativas são aquelas que buscam, ao mesmo tempo, combater a discriminação, reduzir a desigualdade e integrar
os diferentes grupos sociais existentes (MOEHLECKE, 2002).
7
A Lei 8.213/91, no artigo 93, distribui a reserva de vagas nas seguintes proporções: empresas com 100 a 200 empregados,
2% das vagas; de 201 a 500 empregados, 3% das vagas; de 501 a 1000 empregados, 4% das vagas; empresas com mais
de 1000 empregados, 5% das vagas.
10
A proposta conceitual da Sociedade Inclusiva é aquela em que qualquer indivíduo tem “o
direito de ir e vir, de trabalhar e de estudar”, sendo necessário garantir a “fruição das benesses
sociais do acesso ao lazer, à cultura, à educação, à saúde e à moradia” (FONSECA, 2005,
p.3). No entanto, a mudança mais importante no paradigma da Sociedade Inclusiva – aquela
capaz de realmente incluir – é a de foco: saindo da “integração” da pessoa para a inclusão pela
sociedade. Sassaki (2001) explica que no paradigma da integração era necessário preparar a
pessoa para ser recebida por uma sociedade que continuava igual. O “problema” era da PCD:
Então vamos fazer a preparação das pessoas com deficiência, a fim de
que possam inserir-se numa sociedade despreparada para conviver com
elas. Quer dizer, deixamos a sociedade mais ou menos como ela é, e
fomos lutando, sempre através da reabilitação, escolas especiais, oficinas
de trabalho e tantos outros recursos segregativos, segregacionistas e
segregadores (FONSECA, 2005, p. 2).
Em 1981, a partir da declaração de princípios, resultante do Congresso Mundial de Reabilitação
Internacional, ganha força a proposição de que a sociedade deveria estar pronta para receber
qualquer pessoa. “A pessoa é a mesma, o sistema e a estrutura é que mudam” (SASSAKI, 2001,
p. 2). O autor destaca que integração significa a “inserção da pessoa deficiente preparada para
conviver na sociedade”, diferente da inclusão, que seria “uma modificação da sociedade como
pré-requisito para que a pessoa com deficiência possa buscar seu desenvolvimento e exercer
a cidadania” (SASSAKI, 1997, p. 43). Assim, a Sociedade Inclusiva pode ser definida como “o
processo pelo qual a sociedade se adapta para incluir as pessoas até então marginalizadas, que
procuram capacitar-se para participar da vida da sociedade” (idem, p. 3).
Metodologia e problema de pesquisa
Buscou-se realizar uma análise da inclusão profissional de PCD’s em empresas do município
de Contagem – MG, através de pesquisa com empresas da região, empreendida por um
programa de Inclusão Profissional de uma universidade local, abarcando diversos setores /
ramos de atuação. Neste artigo, buscou-se avaliar as opiniões das empresas com menos de 100
funcionários – e, dessa forma, não sujeitas diretamente à ação do Ministério Público do Trabalho
– sobre a colocação profissional de PCD’s. Buscava-se avaliar o quanto essas empresas se
mostrariam abertas para a inclusão de PCD’s em seus quadros, quais as dificuldades enfrentadas
para isso e sugestões de como a sociedade poderia atuar para auxiliar essa inclusão. Assim, em
um questionário de diagnóstico (entrevista semi-estruturada) de necessidades do empresariado
de Contagem quanto à qualificação de PCD’s, foram incluídas perguntas abertas (ver Quadro 1,
a seguir), e as respostas, tratadas através de análise de conteúdo.
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Análise e resultados
Para a presente análise, foram considerados os seguintes itens da entrevista semiestruturada realizada (Quadro 1):
Quadro 1 – Questões analisadas
DADOS GERAIS - Nº DE FUNCIONÁRIOS:
6. Contrata pessoas com deficiência? Sim / Não
7. Por que?
8. Há cargos/funções na empresa que poderiam ser ocupados também por pessoas com
deficiência? Sim / Não
37. Quais as principais dificuldades que tem / teria em lidar com pessoas com deficiência na
sua empresa?
38. Quais seriam as suas sugestões para facilitar a colocação no trabalho de pessoas com
deficiência?
39. E na sua empresa? [Quais seriam as suas sugestões para facilitar a colocação de pessoas
com deficiência?]
Foram considerados válidos e aptos para os interesses dessa análise um total de 144
questionários, dos 255 respondidos. Destes, foram tratadas, através de análise de conteúdo,
as questões abertas selecionadas (questões 7, 37, 38 e 39). Para tanto, usaram-se três
categorizações que refletiam diferentes paradigmas explicitados nas respostas:
Paradigma da Exclusão: Por esse paradigma, as PCD’s não participam do mercado de
trabalho, sendo percebidas / representadas como incapazes. Tais representações resultam
não só da ideologia protecionista para com as PCD’s, mas também da não-percepção de suas
possibilidades laborativas (SASSAKI, 1997).
Paradigma da Integração: Esse paradigma reflete ações assistencialistas e onde a
responsabilidade da adaptação recai completamente na própria PCD e nas entidades
filantrópicas e governamentais. Sassaki (2001) destaca três formas do paradigma da
integração, aplicadas às PCD’s: 1) admissão e contratação, desde que tenham qualificação
profissional e consigam utilizar os espaços físicos e os equipamentos das empresas sem
nenhuma modificação; 2) as PCD’s, após seleção, são colocadas em órgãos públicos ou
empresas particulares que concordam em fazer pequenas adaptações nos postos de trabalho
“por motivo prático e não necessariamente pela causa da integração social” (p.; 3) as PCD’s
são colocadas em setores exclusivos, segregativos, com ou sem modificações, muitas vezes
afastadas do contato com o público.
Paradigma da Inclusão: as respostas neste paradigma refletem o pensamento
de que a sociedade e, portanto, o mercado de trabalho precisam estar prontos para
receber qualquer pessoa. Busca-se “a eliminação de barreiras físicas, programáticas e
atitudinais, a fim de que as pessoas com deficiência possam ter acesso a serviços e bens
12
necessários ao seu desenvolvimento profissional” (SASSAKI, 2001, p. 4). A percepção
é de que a sociedade também precisa adequar-se às necessidades das pessoas com
deficiência. No modelo inclusivo a empresa reduz ou elimina essas barreiras e possibilita
a contratação de pessoas com deficiência.
Abaixo, apresenta-se o resultado obtido por questão:
Na questão 7, referente ao porquê da contratação ou não de PCD’s, tem-se que 32,8%
das empresas encontram-se no paradigma da exclusão, enquanto que 48,2% das respostas
mostraram-se dentro do paradigma da integração e apenas 19,0% mostraram-se inclusivas.
Quando questionados sobre as dificuldades de se lidar com a PCD na empresa, observa-se
um fenômeno interessante: o discurso inclusivo predomina (56,9% das respostas). O discurso
de exclusão ainda é bastante presente, com 15,4% das respostas, e o paradigma de integração
é visto em 27,7% das respostas.
É importante notar que 40,8% dos respondentes que não foram inclusivos na questão sobre
contratação tiveram uma fala inclusiva, quando questionados sobre as dificuldades, sendo que
14,6% da amostra utilizada foi antagônica nessa questão: excludentes na contratação, mas
com uma fala inclusiva na questão sobre as dificuldades. Além disso, 82,1% das empresas
que tiveram uma fala inclusiva nessa questão afirmaram não contratar PCD’s.
As sugestões para facilitar a colocação das PCD’s na empresa foram, predominantemente,
dentro do paradigma de integração (64,6%). As sugestões excludentes foram de apenas 9,4%,
e as inclusivas foram de 26,0%.
Por fim, os entrevistados não se mostraram excludentes quando solicitados a dar sugestões
de como a sociedade pode facilitar a colocação profissional de PCD’s. 77,6% dos entrevistados
fizeram sugestões dentro do paradigma da integração, enquanto apenas os outros 22,4%
fizeram sugestões inclusivas.
Somando-se todas as 544 respostas consideradas válidas nas quatro questões abertas,
tem-se que a maioria das respostas – 54,6% – estão no paradigma da integração. O discurso
inclusivo aparece em 31,1% das respostas, enquanto que 14,3% delas são excludentes. Para
finalizar a análise, é necessário citar as respostas sobre a contratação e a possibilidade de
vagas para PCD’s nas empresas: 64,6% dos respondentes admitem que há vagas possíveis,
em suas empresas, para a contratação de PCD’s e, no entanto, a empresa afirma não contratar
essas pessoas. Um total de 86,8% das empresas entrevistadas não contratam PCD’s.
Conclusão
Pelo visto na análise dos resultados, conclui-se, em primeiro lugar, que o paradigma da
integração predomina entre as respostas. É possível perceber que uma grande parte da
amostra entende que a PCD tem direito a participar da sociedade, mas não se vê como
co-responsável por essa inclusão. Tal responsabilidade cabe ao governo, às ONGs ou, em
último caso, às grandes empresas. Apareceram sugestões, ainda, de que as novas empresas,
criadas daqui em diante, deveriam ser acessíveis.
Uma forma freqüente de responsabilização do governo apareceu nas sugestões sobre incentivos
deste às empresas. Para parte dos entrevistados, o governo deveria privilegiar as empresas que
contratassem PCD’s com benefícios como, por exemplo, a diminuição de impostos. Percebe-se
que esse tipo de discurso demonstra como a PCD é representada, percebida como “diferente” e
“inferior”, fazendo com que a empresa deva ser “compensada” ou “indenizada” quando contrata
uma PCD. Nas empresas, a representação das PCD’s revela-se na cultura organizacional de
13
diferentes formas: através da exclusão, da superproteção, da desqualificação, etc.
Por outro lado, integrar uma PCD é percebido, para a maioria das pessoas e no nível racional,
como desejável e apreciável. Conviver com essa contradição é complicado, tanto para o grupo já
formado, que compartilha de valores e comportamentos próprios, como para os recém-chegados
(PCD’s). Os dados da pesquisa também parecem confirmar as observações de Batista:
Outra característica considerada segregativa é a relação de trabalho
marcada pela categoria. Esse tipo de relação inicia-se pelo próprio
processo de seleção e contratação, que são realizados em grupos e de
forma diferenciada dos demais trabalhadores. A contratação realizada
pela categoria pode ser também observada se a pessoa portadora de
deficiência é contratada para realizar uma determinada função conforme
a sua deficiência. Como exemplos [...]: a contratação dos “surdos” vista
como uma possibilidade para se realizar um trabalho em um ambiente
com muito ruído, a dos “cegos” para trabalhos que exigem sensibilidades
táteis e a do “deficiente mental” para trabalhos repetitivos. A procura
pela maior produtividade faz com que a empresa selecione as pessoas
conforme sua deficiência e a possibilidade de tirar proveito da deficiência
numa função pré-definida (BATISTA, 2002, p. 117).
Se, por um lado, a maioria das empresas se mostrou dentro do paradigma da integração, é
digna de nota a curva das respostas excludentes (Gráfico 1). Esse gráfico mostra que quanto
mais próximas de uma ação efetiva, mais excludentes se tornam as respostas. Assim, ao
fazer sugestões de como a sociedade deve lidar com as PCD’s, não aparecem respostas
excludentes. No entanto, ao falar da própria empresa, essas respostas começam a aparecer,
de forma cada vez mais acentuada, até atingir mais de 30% da amostra, quando se pergunta
sobre a ação direta, ou seja, a contratação das PCD’s. Essa questão faz saltar aos olhos a
diferença entre o discurso e a prática.
Gráfico 1 – Porcentagem de respostas no paradigma da exclusão por questão – Contagem
35,0%______________________________________________________
30,0%______________________________________________________
25,0%______________________________________________________
20,0%______________________________________________________
15,0%______________________________________________________
10,0%______________________________________________________
5,0%______________________________________________________
0,0%______________________________________________________
Sugestão Sociedade
14
Sugestões Empresa
Dificuldades
Contratação
Outras duas análises vão ao encontro dessa conclusão: em primeiro lugar, quando se
agrupam as questões sobre contratação e possibilidade de vagas, vê-se que quase 65% das
empresas admitem ter vagas para PCD’s, mas não as contratam. Além disso, o surgimento de
um discurso inclusivo, quando se pergunta das dificuldades em se contratar PCD’s, aparece
como antagônico às contratações. Como foi visto, mais de 80% dos respondentes que dizem
não encontrar dificuldades na contratação de PCD’s não os contratam, deixando clara a
diferença entre o dizer e o atuar.
Outra questão importante, quando se tratou da baixa taxa de empregabilidade das PCD’s
(pela falta de capacitação desse público, por exemplo), é a discussão da própria noção de
empregabilidade: o desemprego decorreria do fato de que determinados indivíduos não
investiram adequadamente em si mesmos para se tornarem uma força de trabalho atraente
para os empregadores, como os outros indivíduos (os empregados) o fizeram (MATA, 2004).
Segundo esses autores, a noção de empregabilidade operaria uma transferência, para a força
de trabalho, do ônus por seu desemprego ou emprego. Desta forma, poder-se-ia afirmar,
quanto à inclusão no mercado de trabalho, que o discurso da integração, que transfere à PCD a
“responsabilidade” por sua entronização no mercado de trabalho, seria um reflexo do discurso
que atribui ao trabalhador – seja ele ou não pessoa com deficiência – a responsabilidade por
“buscar informações adequadas sobre quais as reais necessidades do mercado de trabalho
e se investir em si mesmo de forma diferenciada, estará em melhores condições que outros
indivíduos, portanto, em uma melhor posição” (MATA, 2004, p. 71):
O conceito de empregabilidade ganha força, sobretudo entre os
empresários. Trata-se de um argumento que tenta transferir para o
trabalhador a responsabilidade pela manutenção, ou não, de seu
emprego, cabendo a ele próprio enfrentar o desafio de se adaptar às
novas formas de trabalho, que exigem: educação básica de qualidade,
flexibilidade de conteúdos, constante requalificação profissional,
iniciativa, polivalência, participação, discernimento, envolvimento e
compromisso. A empregabilidade se torna, assim, justificativa para a
exclusão social, e serve como instrumento para a nova segmentação
que começa a se configurar: incluídos e excluídos do mercado de
trabalho (DIEESE, 2001, apud MATA, 2004, p. 71).
Por fim, deve-se notar que a porcentagem total de respostas no paradigma da inclusão
é duas vezes maior do que as respostas excludentes, o que já é um bom sinal. No entanto,
como apenas 13,2% das empresas da amostra se colocam dispostas a contratar PCD’s, vê-se
que ainda há um longo caminho a percorrer.
Referências
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15
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NERI, M. C.; CARVALHO, A. P.; COSTILLA, H. G. Política de cotas e inclusão trabalhista das
pessoas com deficiência. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 2002 (ensaios econômicos,
v. 462). Disponível em <http://virtualbib.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/518/1310.
pdf?sequence=1>. Acesso em 23 set. 2009.
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Recueil de directives pratiques du BIT. Genebra: Bureau International du Travail, 2002.
Disponível em <http://www.ilo.org/public/french/employment/skills/disability/download/code.
pdf>. Acesso em 23 set. 2009.
RATZKA, A. Conceito de Sociedade Inclusiva. Disponível em: <http://www.proex.pucminas.br/
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SASSAKI, R. K. Inclusão no trabalho. IN SEMINÁRIO INTERNACIONAL SOCIEDADE
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redonda. Disponível em <http://www.sociedadeinclusiva.pucminas.br/anaispdf/Romeu.pdf>.
Acesso em 23 set. 2009.
SASSAKI, R. K. Inclusão: Construindo uma sociedade para todos. 3ª. Edição. Rio de Janeiro:
WVA, 1997.
16
Reflexões acerca da prática de colocação de pessoas com deficiência
intelectual no mercado de trabalho na modalidade de colocação
seletiva nas Apaes de Minas Gerais
Sérgio Sampaio Bezerra
Presidente da Federação das Apaes do Estado de Minas Gerais;
graduado em Economia pela Universidade Federal de Pernambuco;
mestrando em Gestão Empresarial pela Escola Brasileira de
Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas.
Marli Helena Duarte Silva
Coordenadora de Trabalho, Emprego e Renda da Federação das Apaes
do Estado de Minas Gerais; graduada em Pedagogia pela Faculdade
Ciências Humanas de Araxá, com especialização em Educação Especial
pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Introdução
Num mundo cada vez mais competitivo, onde a eficiência é um fator essencial para a
contratação de pessoas no mercado de trabalho, percebe-se que um dos argumentos mais
utilizados para a não inserção de pessoas com deficiência intelectual em empresas é a sua
limitação cognitiva. Tomasini (1996) reforça esse argumento, quando afirma que a limitação
intelectual dessas pessoas é também usada pelos educadores e pela comunidade como
um todo como fator impeditivo à aprendizagem de conteúdos mais complexos, mostrando
claramente a baixa expectativa dos educadores e da sociedade com relação a essas pessoas,
principalmente por razão do preconceito.
Para Esteves (1999), no campo empresarial, a diversidade, enquanto geração de vantagem
competitiva, não se apresenta dissociada dos princípios de responsabilidade social. Entretanto,
no rol das iniciativas sociais, a diversidade não é um item preferencial. Sendo possível identificar
contradições entre o discurso formal e a ação prática das organizações em relação à gestão dessa
diversidade. Observa-se a necessidade de uma mudança cultural nas organizações para que as
políticas de diversidade não sejam apoiadas exclusivamente por seus interesses financeiros.
Segundo Tomasi (1996), à pessoa com deficiência raramente é dada à palavra e suas
reações, na maioria das vezes, são entendidas circunscritas ao seu quadro de anormalidade,
fechando-se assim, a possibilidade de se perceber comportamentos significativos que superem
tais limites. Mudam-se as estratégias e os métodos, ampliam-se os recursos, mas não se
muda a forma de nos relacionarmos com esse grupo de indivíduos. Nós determinamos e
eles obedecem numa relação de absoluta desigualdade. No interior das organizações, nós
profissionais, disputamos um território ao mesmo tempo em que disputamos o poder de nos
legitimarmos sobre eles. Os conflitos gerados por relações de poder transformam a instituição
em campo de lutas, deixando-se sempre a pessoa com deficiência em espaço secundário.
A Associação Americana de Deficiência Intelectual e de Desenvolvimento - AADID8 (2002)
atualizou a definição e a classificação de deficiência intelectual como sendo uma incapacidade
caracterizada por importantes limitações, tanto no funcionamento intelectual, quanto no
8
Antiga Associação Americana de Retardo Mental (AAMR).
17
comportamento adaptativo e isso está expresso nas habilidades conceituais, sociais e
práticas. Essa incapacidade tem início antes dos 18 anos. Para entendermos essa mudança
de paradigma, devemos observar três aspectos:
1. A deficiência intelectual deve ser definida no contexto social, ou seja, no impacto
social de interação da pessoa com deficiência com o ambiente que a cerca,
focalizando os comportamentos funcionais e os apoios.
2. Apoios adequados reduzem as limitações funcionais, permitindo que a pessoa
com deficiência intelectual melhore sua participação comunitária.
3. Os padrões de habilitação focalizam as melhorias práticas, os potenciais, o
ambiente, os serviços integrados de apoio e o indivíduo como centro.
Essa nova definição e classificação da pessoa com deficiência intelectual está centrada no
indivíduo – em suas potencialidades e limitações, no seu ambiente, nas suas necessidades e
nos apoios que devem ser acrescentados ou eliminados para lhe permitir construir uma vida
pessoal satisfatória (Barbosa, 2009).
O trabalho, sem dúvida, é uma das vias para se construir a cidadania dessas pessoas.
Mas requer esforços da sociedade na busca de arranjos instrucionais que permitam que esse
público seja inserido no mercado de trabalho. É nesse contexto que a legislação brasileira
define as possibilidades para contratação desse público pelas empresas. E aqui focalizaremos
a modalidade de colocação seletiva.
A colocação seletiva é uma forma legal de contratar pessoas com deficiência. Mas, tanto
os empregadores quanto as organizações que preparam esse público para o trabalho têm
diversas inquietações quanto à forma como essa modalidade está se efetivando na prática.
O decreto nº 3.298/99, regulamentador da lei 7.853/89, que dispõe sobre a Politica Nacional
da Pessoa com Deficiência, no seu art.35, define a colocação seletiva como um processo de
contratação regular que depende da adoção de procedimentos e apoios especiais para sua
concretização nos termos da legislação trabalhista e previdenciária brasileira.
De acordo com esse decreto, consideram-se apoios especiais à orientação, a supervisão,
as ajudas técnicas e outros elementos que possam auxiliar permitir ou compensar uma ou
mais limitações funcionais, motoras, sensoriais ou mentais da pessoa com deficiência, de
modo a superar as barreiras da mobilidade e da comunicação, possibilitando a plena utilização
de suas capacidades de funcionalidade.
A Federação da Apaes do Estado de Minas promoveu um encontro com sua rede, no dia
13 de abril de 2009, em Belo Horizonte, para juntos refletirem sobre suas inquietações com
relação à contratação por colocação seletiva. Lá estavam presentes, o presidente da Federação
Nacional das Apaes, Eduardo Barbosa; o presidente da Federação Estadual, Sérgio Sampaio;
a Conselheira Regional do Centro V, Cleusa Borges; a Secretária Executiva Darci Barbosa;
a coordenadora do Núcleo Trabalho, Emprego e Renda, Marli Duarte e representantes das
Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais(Apaes)9 mineiras que têm experiência prática
nessa área. Elas são: Apae de Lagoa Santa, Três Marias, Pará de Minas, Pedro Leopoldo,
Santa Luzia e Sete Lagoas.
A metodologia utilizada nesse encontro foi o relato de experiências práticas de cada uma
das Apaes quanto à modalidade de colocação seletiva.
9
Atualmente esse termo excepcional está ultrapassado, sendo o termo correto pessoa com deficiência, no entanto por uma
questão de marca essa Rede conserva o termo inicial quando de sua fundação.
18
Resultados da discussão com o grupo
Identifica-se nas discussões realizadas, que a modalidade da colocação seletiva nas Apaes
acontece em 03 formas distintas, que denominamos estágios:
1º Estágio: Pessoas com deficiência contratados pela empresa, que permanecem na Apae,
com atividades de artesanato sem ter nenhuma relação com a atividade fim da empresa.
Pontos Levantados:
• Possibilitar à pessoa com deficiência com maior comprometimento, ou seja, aquele
que necessita de “procedimentos” e apoios especiais, ser incluído socialmente,
através da inserção no mercado de trabalho.
Como o caso da trabalhadora P.R.B, com 30 anos deficiente intelectual.
• A valorização e o reconhecimento das pessoas com deficiência como seres
capazes e produtivos em nossa sociedade e na sua família
P.R.B 30 anos diz: Eu precisava trabalhar, sabe bem como é família! Antes de trabalhar
eu me sentia péssima, não tinha dinheiro, precisava comprar as coisas e tinha que
ouvir minha família falando. A conta na farmácia sem pagar, ficava de cara grande.
• Melhorar a qualidade de vida da pessoa com deficiência quanto à autonomia e
cidadania.
P.R.B. 30 anos diz: Agora eu trabalhando eu sei que sou capaz, sei que posso comprar
as coisas com o meu dinheiro, estou servindo de exemplo dentro de casa, tenho um
irmão que não trabalha e meu irmão mais velho (C...) fala que é uma vergonha eu
trabalhar e o outro não, mas não é vergonha, todos nós precisamos trabalhar.
• Local de trabalho, dentro da própria Apae.
• Atividade desenvolvida sem nenhuma relação com a atividade fim da empresa.
2º Estágio: Pessoas com deficiência intelectual contratadas pela empresa, realizando atividade
produtiva para empresa contratante na própria Apae.
Pontos Levantados:
• Independente do fato de trabalhar na empresa ou na Apae e a forma em que
acontece a contratação, verifica-se através dos depoimentos colhidos, a geração
de renda para o indivíduo e para sua família, resgatando a dignidade e autonomia
da pessoa com deficiência intelectual;
S. M. pessoa com deficiência intelectual - 32 anos
“Sempre tive vontade de trabalhar e quando comecei foi muito bom posso ajudar em
casa com o dinheiro que ganho antes as coisas eram muito difíceis em casa”.
“Eu sempre achava que não conseguia fazer as coisas, hoje eu sei que consigo e
posso ajudar minha mãe. Gosto de mim desse jeito”.
19
• Clima organizacional da empresa é melhorado.
• O cumprimento da lei de cotas , com pessoas com deficiência intelectual.
• Local de trabalho dentro da Apae.
Depoimento de representante de empresa P..... que emprega pessoa com deficiência
intelectual nessa modalidade.
“Com a inserção dos portadores de deficiência no quadro de colaboradores da empresa,
mesmo eles não estando aqui todos os dias sentimos muito importantes pelo fato de contribuir
para a melhoria da qualidade de vida dessas pessoas, de fazer com que se sintam úteis”. Nas
festas, confraternização de final de ano, e reuniões eles participam como qualquer funcionário;
e os outros colaboradores sem deficiência passam a se respeitar mais, a ter um pouco mais
de paciência com o colega de trabalho.
Os brindes que eles confeccionam prestigiam a nossa empresa.
Depoimento família de empregado com deficiência nesse estágio.
“O salário da minha filha está sendo muito abençoado para toda a família.Paga plano de
saúde para mim e os irmãos, é baratinho, ela já tem da empresa. Antigamente, não tínhamos
quase nada, hoje com o trabalho de M. temos televisão, fogão novo, sofá, e tudo comprado
em nome dela.Há!!! Me deu também um tanquinho, lavava roupa na mão, “ô sofrimento...”O
dinheiro de minha filha ajuda muito, na despesa da casa, ai de mim se não fosse ela.Nós
valorizamos demais “a M., ela trabalha, é respeitada.” Nesta casa moram 09 pessoas, sendo
que três trabalham, sendo uma renda mensal de R$1150,00.”
3º estágio: Neste estágio, o trabalhador com deficiência é contratado pela empresa, presta os
serviços na própria empresa.
Pontos Levantados:
• Cumprimento da lei de cotas.
• Promoção das pessoas com deficiência.
• Melhora do clima organizacional da empresa.
Nome: L.A.da S. Idade: 53 anos - Diagnóstico: Deficiência Intelectual
Antes de trabalhar precisava pedir a meu pai para comprar as coisas, mas muitas vezes ele
não tinha o dinheiro para me dar e eu precisava ficar esperando até ele ter o dinheiro.
Eu ajudo em casa com R$50,00, deposito um pouco e o que sobra para mim compro roupa,
sapato, DVD de música internacional e popular brasileiro, viajei para Visconde do Rio Branco/
MG, comprei um computador, uso a internet para ver notícias e ouvir músicas.
É importante trabalhar para ter as coisas, fico animado, fiz amizades.
20
Empresa C....: Para nossa empresa de uma forma geral, bem como para os nossos
colaboradores sem deficiência, os portadores de deficiência são hoje pessoas que assim
como os demais, que tem muito a contribuir. Acontece que a deficiência ou limitação deles é
mais visível, pois limitações todos nós temos.
A empresa C...., assim como outras empresas, tenta adequar o portador de deficiência à
atividade proposta. Temos hoje, vários colaboradores portadores de deficiência que trabalham
conosco tanto no escritório como no projeto, e são pessoas que assim como os demais
colaboradores tem meta de produtividade, trabalham sob pressão, enfim, são tratados da
mesma forma que os outros.
Análise dos resultados
Observamos que os depoimentos apresentados pelas pessoas com deficiência intelectual
em relação ao trabalho, seja ele na APAE ou na empresa, nos mostra que elas conquistam a sua
inclusão, no primeiro espaço, que é importante para qualquer ser humano, dentro da família.
É a família que dá sustentabilidade e apoio para o resgate de sua autoestima favorecendo a
conquista de novos espaços. O acreditar, o respeito conquistado dentro da família, juntamente
com a autonomia e a independência no mundo do trabalho que proporcionará à pessoa com
deficiência intelectual a inclusão em outros espaços sociais.
Desta forma, a discussão aponta que não é somente o trabalho dentro da empresa que
favorece a inclusão. Entendemos que os estágios um e dois, onde o trabalho acontece na APAE,
podem ser vistos como processuais, e que são importantes para a pessoa com deficiência
intelectual desenvolver como pessoa na sociedade, como ser humano produtivo e consumidor,
e também importante para as empresas, que passam a compreender estes trabalhadores
que estão iniciando no mundo do trabalho, cujos valores ressaltados são a inteligência e o
conhecimento, que são as maiores dificuldades da pessoa com deficiência intelectual.
É unânime nas Apaes que utilizam dessa modalidade de emprego, que as pessoas
contratadas são aquelas que têm a deficiência intelectual mais comprometida, para tanto
necessitam de procedimentos e apoios especiais.
Outra especificidade nesse tipo de contratação destacada pelos especialistas na discussão
é a alegação do empresário acerca da atividade fim da empresa contratante, pois todas dizem
exercerem, atividade de alto grau de periculosidade, dificultando assim o cumprimento da lei
de cotas, com pessoas com deficiência intelectual.
Por fim, a discussão salientou que a relação entre os funcionários que trabalham dentro da
Apae com os funcionários que trabalham na empresa se dá em momentos de confraternização
como festas natalinas e outras comemorações, algumas empresas agendam visitas periódicas
desses funcionários a suas instalações.
O grupo de discussão considera que a alternativa de emprego apoiado, nos estágios
um e dois, funciona como uma “ponte” para a contratação competitiva aberta, ou para uma
contratação no 3º estágio, na própria empresa, e que seria o objetivo final da instituição.
21
Considerações finais
Para o movimento apaeano mineiro, o ideal é desenvolver um processo de trabalho com
as empresas para que a colocação seletiva chegue ao que chamamos de terceiro estágio. No
nosso entendimento, essa é a melhor forma de garantir o acesso, à igualdade de oportunidades
e quiçá, a inclusão dessas pessoas no meio empresarial. Esse empregado com deficiência
intelectual poderá funcionar como o agente transformador das práticas organizacionais até
então predominantes nas empresas. Observamos, no entanto, que as outras duas formas
de colocação seletiva; os estágios um e dois, apesar de serem distintos do estágio três,
guardam em si o que para nós é o mais importante; o desenvolvimento da autonomia e da
independência da pessoa com deficiência intelectual, elevando sua autoestima e levando-a
a ser respeitada pelos demais. Vemos também que qualquer uma dessas formas poderá dar
inicio à aproximação da pessoa com deficiência com o mundo empresarial. Isso permitirá
que, paulatinamente, se quebre os paradigmas e as resistências discriminatórias existentes,
deixando evidente toda a sua potencialidade aos executivos.
Diante disso, discordamos com a essência da Nota Técnica nº 252/RR/DEFIT/SIT/
TEM, expedida pelo Ministério do Trabalho e Emprego, em 14/11/2007, que considera a
contratação seletiva no que denominamos 1º e 2º estágios, como não cumpridora da lei
de cotas. No nosso entendimento, essa diretriz de política pública governamental anula
possibilidades ao invés de criá-las.
Tissi (2000), no seu estudo sobre deficiência e trabalho, reforça o nosso argumento, ao
afirmar que o processo e as condições de trabalho atestam que inclusão e exclusão não são
pólos antagônicos. Podendo-se inferir que em qualquer desses estágios as pessoas com
deficiência intelectual fazem parte de um processo produtivo e, mais do que isso, de um
processo social que se desdobra em múltiplas relações e dimensões sociais. A inserção no
trabalho, independentemente da sua forma, promove integração econômica, gera renda e
possibilita a própria subsistência e a da família, o acesso ao consumo e a recursos matérias.
Ainda segundo essa autora, à essa integração econômica imbricam-se ganhos no
plano simbólico, que são os valores éticos e morais associados à inserção ao trabalho e
seus resultados materiais, expressos em dignidade por se constituir família e opor-se aos
“vagabundos, aos que não têm disposição ou capacidade para o trabalho e aos mendigos”,
categorias ligadas, nas suas representações, à desonestidade. No plano da sociabilidade,
a inserção no trabalho promove a ampliação das relações sociais, pessoais ou comerciais,
sejam boas ou ruins, fazendo oposição ao isolamento.
Para concluir gostaríamos de ressaltar, o pequeno número de contratações de pessoas
com deficiência intelectual pelas empresas, Batista (2003) no seu estudo mostra que, em
Minas Gerais, do total das pessoas com deficiência empregadas apenas 2,6% são pessoas
com deficiência intelectual. Então, podemos inferir que de fato esse público enfrenta menores
possibilidades para sua inserção no mercado de trabalho, o que nos leva a pensar que para
promoção do seu acesso devemos buscar formas alternativas de gestão.
22
Referências
AMERICANASSOCIATION ON MENTAL RETARDATION. Retardo Mental: definição, classificação
e sistema de apoio. Tradução: Magda França Lopes. 10. ed. Porto Alegre: Artmed, 2002.
BARBOSA, Darci Fioravante Barros.Deficiência mental:definição e sistemas de apoio. Belo
Horizonte: Federação das Apaes do Estado de Minas Gerais, 2009. Working paper.
BATISTA, Cristina Abranches Mota. Educação profissional e inclusão no trabalho: entraves
e possibilidades. In: FEDERAÇÃO NACIONAL DAS APAES. Trabalho e deficiência mental:
perspectivas atuais. Brasília, DF, 2003.
BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. Contratação de pessoa com deficiência. Brasília,
DF: NOTA TÉCNICA Nº 252/RR/DEFIT/SIT/MTE, 2007.
ESTEVES, S. Diversidade nas organizações: uma visão atualizada. Brasília, DF: Ed.Projeto
OIT/Mtb/CERT/DIV. OIT, 1999.
TISSI, Maria Cristina. Deficiência e trabalho no setor informal: considerações sobre
processos de inclusão e exclusão social. Saude soc., São Paulo, v. 9, n. 1-2, dez.
2000. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010412902000000100006&lng=pt&nrm=iso>. acessos em27 ago. 2009. doi: 10.1590/
S0104-12902000000100006.
TOMASINI, M. E. A. Trabalho e deficiência mental: uma questão a ser repensada. Revista
Brasileira de Educação Especial, Piracicaba: v. 3, n. 4, 1996.
23
Acessibilidade e desenvolvimento de produtos: talheres em braille
Mônica Lucchesi Batista
Professora de tempo integral do Instituto Politécnico UNA
Resumo
Para o desenvolvimento de novos produtos e aperfeiçoamento dos produtos existentes é
necessário um olhar atento às necessidades do dia-a-dia, aliado com criatividade e conhecimento
acadêmico. Uma observação dos produtos disponíveis no mercado aponta para o fato que nem
todos os produtos fabricados e comercializados são bons e utilizáveis para todas as pessoas.
Percebe-se, por exemplo, que são poucos os produtos voltados para o público de deficientes. O
conceito de acessibilidade pressupõe produtos, meios de comunicação e ambientes que possam
ser utilizados por todas as pessoas, independente de suas características físicas. Assim, buscouse apresentar neste artigo o aperfeiçoamento de um produto amplamente utilizado por todos:
os talheres de mesa. O desenvolvimento de produtos voltados para o consumo dos deficientes
precisa deixar de ser visto como uma escolha do setor produtivo da economia para ser entendido
como um dever garantido pelas políticas públicas.
Palavra-chave: Acessibilidade; Desenvolvimento de produtos;
Introdução
Para o desenvolvimento de novos produtos é necessário um olhar atento às necessidades
do dia-a-dia, aliado com criatividade e conhecimento acadêmico. Uma observação dos
produtos disponíveis no mercado aponta para o fato que nem todos os produtos fabricados
e comercializados são bons e utilizáveis para todas as pessoas. Percebe-se, por exemplo,
que são poucos os produtos voltados para o público de deficientes, seja essa deficiência
visual, física, auditiva ou mental. O conceito de acessibilidade pressupõe produtos, meios de
comunicação e ambientes que possam ser utilizados por todas as pessoas, independente de
suas características físicas. Assim, buscou-se apresentar neste artigo o aperfeiçoamento de
um produto amplamente utilizado por todos: os talheres de mesa.
Segundo dados do IBGE, baseados no censo de 2000, 14,5% da população brasileira
possui algum tipo de deficiência. Desse percentual 7%, aproximadamente 16,6 milhões, são
de pessoas com algum grau de deficiência visual. Mas são poucos os produtos adaptados
para a realidade dessas pessoas.
Um tipo de produto chamou mais a atenção por estar associado com a higiene dessas
pessoas e, portanto, fundamentais para sua saúde e qualidade de vida, os talheres de mesa.
Isso porque para que os deficientes visuais façam a distinção do que é um garfo, uma colher
ou uma faca, é comum que ele toque no objeto. Assim, buscou-se criar marcações em Braille
nos talheres para que quando a pessoa for alimentar-se ela não precise ter contato direto,
através do tato, com a parte que levará à boca.
24
O sistema braille
3
O Sistema Braille é um código universal de leitura tátil e de escrita, usado por pessoas
cegas, inventado na França por Louis Braille, um jovem cego. Reconhece-se o ano de 1825
como o marco dessa importante conquista para a educação e a integração dos deficientes
visuais na sociedade.
O Sistema Braille consta do arranjo de seis pontos em relevo, dispostos em duas colunas
de três pontos, configurando um retângulo de seis milímetros de altura por aproximadamente
três milímetros de largura. Os seis pontos formam o que se convencionou chamar “cela Braille”
(Figura 1). Para facilitar sua identificação, os pontos são numerados da seguinte forma:
a) Do alto para baixo, coluna da esquerda: pontos 123;
b) Do alto para baixo, coluna da direita: pontos 456.
1
2
3
4
5
6
Figura 1: Arranjo do Sistema Braille também conhecido como “Cela Braille”.
Conforme forem combinados os pontos entre si, formar-se-ão as letras; por exemplo, o
ponto 1, sozinho, representa o “a” (Figura 2).
Figura 2: Representação da letra “a” no arranjo do sistema Braille.
É fácil saber qual dos pontos está determinado, pois são colocados sempre na mesma disposição.
As diferentes disposições desses seis pontos permitem a formação de 63 combinações, ou
símbolos Braille. As dez primeiras letras do alfabeto são formadas pelas diversas combinações
possíveis dos quatro pontos superiores (1245); as dez letras seguintes são as combinações
das dez primeiras letras, acrescidas do ponto 3, e formam a segunda linha de sinais. A terceira
linha é formada pelo acréscimo dos pontos 3 e 6 às combinações da primeira linha.
25
A seguir, na figura 3, tem-se o alfabeto em Braille:
Figura 3: Alfabeto em Braille [fonte: http://jornalcrpd.vilabol.uol.com.br/edicao13/braille.htm].
a
b
c
d
e
f
g
h
i
j
a b c d e f g h i j
k
l
m
n
o
p
q
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-
_
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1
2
3
4
5
6
4
8
9
0
1 2 3 4 5 6 7 8 9 0
26
A marcação em braille nos talheres de mesa
As marcações serão feitas a 15 mm do final do cabo de cada utensílio, utilizando-se a inicial
de cada talher, ou seja: para a faca, a letra F em Braille; para o garfo, a letra G em Braille e para
a colher a letra C em Braille. A figura 4 apresenta a marcação proposta para cada talher.
As marcações em Braille serão feitas a partir do processo de estampagem do aço.
Por estampagem entende-se o processo de fabricação de peças, através do corte ou
deformação de chapas em operação de prensagem a frio. Emprega-se a estampagem
de chapas para fabricar peças com paredes finas feitas de chapa ou fita de diversos
metais e ligas. As operações de estampagem podem ser resumidas em três básicas: corte,
dobramento e embutimento ou repuxo.
Figura 4: Disposição das marcações em Braille.
A estampagem da chapa pode ser simples, sendo executa uma só operação. Com a ajuda
da estampagem de chapas, fabricam-se peças de aço baixo carbono, aços inoxidáveis,
alumínio, cobre e de diferentes ligas não ferrosas. Devido às suas características este
processo de fabricação é apropriado, preferencialmente, para as grandes séries de peças,
obtendo-se grandes vantagens, tais como: alta produção, reduzido custo por peça, melhor
acabamento, não necessitando processamento posterior, maior resistência das peças devido
à conformação, que causa o encruamento no material, baixo custo de controle de qualidade
devido à uniformidade da produção e a facilidade para a detecção de desvios.
Como principal desvantagem deste processo, pode-se destacar o alto custo do ferramental,
que só pode ser amortizado se a quantidade de peças a produzidas for elevada.
27
Considerações finais
O projeto de melhoramento dos talheres de mesa incorporando a linguagem Braille vem
contribuir na organização da vida do deficiente visual que necessita de estar seguro de que seu
espaço na sociedade é garantido. Essa segurança passa pelo domínio espacial dos lugares que
freqüenta, do domínio dos objetos que manipula e da certeza que seus direitos de cidadania
serão respeitados. A inclusão social necessita de autonomia, de capacidade de escolhas e de
independência. O caminho que os deficientes visuais têm a percorrer para alcançar a inclusão
social ainda é longo, mas acredita-se que pequenas idéias como a apresentada representam
um passo a mais em direção a acessibilidade. O desenvolvimento de produtos voltados para o
consumo dos deficientes precisa deixar de ser visto como uma escolha do setor produtivo da
economia para ser entendido como um dever garantido pelas políticas públicas.
Referências
Alfabeto em braille disponível no site: http://jornalcrpd.vilabol.uol.com.br/edicao13/braille.htm.
Com acesso em 24 de setembro de 2009.
IBGE. Censo Demográfico 2000. Disponível no site www.ibge.gov.br acesso em 24 de setembro
de 2009.
SENAI. Curso de Escrita Braille Para Docentes. Disponível no site WWW.senai.br acesso em
24 de setembro de 2009.
28
A pessoa com deficiência e o mercado de trabalho: a importância da
investigação de boas práticas que possam favorecer a inclusão produtiva
Nelson Luiz dos Santos Garcia
Mestrando em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local
pelo Centro Universitário UNA, graduado em Direito pela Faculdade de
Direito Milton Campus, Professor das Faculdades Promove ,
Superintendente de Políticas para o Apoio às
Pessoas com Deficiência da CAADE / SEDESE
Frederico Luiz Barbosa de Melo
Doutor em Demografia pela Universidade Federal de Minas Gerais,
Professor do Centro Universitário UNA e técnico do DIEESE-MG
Resumo
Investiga a importância de boas práticas que possam favorecer a inclusão produtiva de pessoas
com deficiência no mercado de trabalho. Constata ser necessário colher dados e analisar as
percepções dos atores do processo de inclusão produtiva no mercado de trabalho e a partir
dessa avaliação realizar o levantamento das experiências positivas. Aponta que estudos nesse
sentido poderão servir de instrumentos para o planejamento e para as execuções de ações de
impactos positivos na inclusão social de pessoas com deficiência no âmbito do trabalho.
Palavra-chave: Inclusão Social. Pessoas com deficiências. Práticas empresariais inclusivas.
Introdução
A inclusão social das pessoas com deficiência é uma antiga temática de indiscutível
relevância social. Sua importância vem tomando corpo ao longo do tempo, especialmente
após o início do século XXI, com sensível reflexo nas políticas públicas, no mundo
corporativo e no ambiente acadêmico.
O desenvolvimento justo e integral de uma sociedade deveria ter sempre como premissa uma
investigação sobre as mais diversas possibilidades de cada um de seus indivíduos, visando
além de permitir, incentivar que todos, sem exceção, possam contribuir com o melhor de suas
potencialidades. Em conseqüência, quanto maior o número de indivíduos que contribuam
para a realização de produtos e serviços, maior a perspectiva de se usufruir dessa dinâmica
de produção coletiva, mantendo-a cada vez mais forte e efetiva.
Em relação às pessoas com deficiência, sua inclusão no mundo do trabalho tem se
mostrado como uma excelente maneira de promover uma participação social mais eficaz
e sustentável, com destaque ao seu caráter duplamente ativo, já que além de propiciar
o auto desenvolvimento do trabalhador permite que esse, enquanto agente produtivo,
contribua diretamente para a melhoria da comunidade.
Além disso, trata-se de um assunto que envolve um dos preceitos fundamentais da nossa
sociedade, esculpido no artigo primeiro da nossa Constituição da República, que é o respeito
à dignidade humana. O acesso e a permanência de uma pessoa, com ou sem deficiência, em
um ambiente produtivo é, sem dúvida, uma maneira concreta de se ressaltar essa dignidade.
Apesar do reconhecimento da importância da diversidade humana no ambiente do trabalho,
29
existe ainda um expressivo número de pessoas com deficiência, em condições de trabalhar, que
se encontram alijadas do mercado produtivo. Segundo estudo realizado pelo Instituto Ethos de
Responsabilidade Social (INSTITUTO ETHOS, 2000) existem no Brasil 9 milhões de pessoas
com deficiência em idade laboral, das quais, 1 milhão (11,1%) exercem alguma atividade
remunerada e apenas 200 mil (2,2%) são empregados com registro em Carteira de Trabalho.
Vale lembrar que cada pessoa com deficiência em idade e condição de trabalhar que se
encontra ociosa, deixa de participar e contribuir como sujeito produtivo na sociedade. Em
conseqüência, e por força de sua baixa autonomia financeira, essa pessoa passa a ser objeto
de auxílio alheio, seja de sua própria família ou do sistema assistencial nacional. Essa realidade
implica, entre outros aspectos, em um grande custo social.
O trabalho como espaço de inclusão e de exclusão social
A perspectiva da pessoa com deficiência exercer um trabalho formal é de vital importância
tanto para o indivíduo como para a sociedade. Para a pessoa, é essencial que ela passe a
ser vista como geradora de renda (e não de despesas), com implicação direta na melhoria
de sua auto-estima, passando a ser motivo de orgulho próprio, dos familiares e dos amigos.
Além desses importantes ganhos, a pessoa com deficiência que faz parte do mercado formal
de trabalho passa a contribuir concretamente com a comunidade, seja através de sua força
laboral ou por meio da sua elevação ao posto de consumidor ativo de produtos e serviços.
E mais, cada trabalhador contratado é também um novo contribuinte e boa parte de sua
renda será destinada, inevitavelmente, ao pagamento de impostos e da previdência social.
E com a inclusão dessas pessoas nos processos sociais mais amplos, a sociedade passa a
integrar e valorizar a diversidade humana.
Para Guimarães e Hirata (2006, p.12) falar da questão concernente aos resultados oriundos
“da inclusão (ou exclusão) dos benefícios e direitos associados ao exercício do trabalho” é voltar
a um dos temas clássicos da sociologia, que, não obstante sua antiguidade, hoje ressurge “como
um novo terreno de indagações, abrindo questões urgentes de cunho metodológico e teórico”.
Em se tratando de um público minoritário que historicamente suporta a falta de oportunidades e
reiterados atos de preconceito, como é o caso das pessoas com deficiência, essa relação entre
exclusão social e inclusão no mundo do trabalho torna-se claramente potencializada. Pastore
(2000, p.21) atenta para a supervalorização da sociedade atual no que se refere a alguns
símbolos, como o trabalho, a beleza e a forma física, sendo que, “modernamente, tais atributos
são usados, por muitos grupos sociais, como indicadores de sucesso”. E acrescenta: “muitos
se surpreendem com a beleza que surge quando portadores de deficiência são colocados em
condições de criar e expressar suas idéias, habilidades e sentimentos”.
Advirta-se, ainda, para o fato de que não basta apenas assalariar, é necessário propiciar
condições dignas de sobrevivência e participação social. Castel (1998, p. 415), ressalta que
“a condição proletária apresenta uma situação de quase exclusão do corpo social”. Portanto,
quando se aborda o tema da inclusão da pessoa com deficiência no mercado de trabalho
deve-se pensar também em sua perspectiva de mobilidade social, sob pena de se fazer
uma inclusão de um maior número de pessoas nos patamares sociais que já são, de per
si, excludentes. Esse mesmo autor, ao refletir sobre a condição do proletário, resgata uma
colocação de Auguste Comte, que, ao se manifestar acerca da condição do excluído social,
daquele que está fadado a trabalhar apenas para se reproduzir, refere-se a esse trabalhador
como uma pessoa que “apenas acampa na sociedade sem se encaixar” (CASTEL, 1998,
p.415). Essa alegoria é bastante rica para demonstrar a percepção das pessoas diante das
30
barreiras que encontram para sua inclusão social por meio do trabalho. E em se tratando
de pessoas com deficiência estas se confrontam continuamente não apenas com tais (e já
enormes) obstáculos oriundos do modelo socioeconômico vigente, mas, somam-se a eles,
outras inúmeras barreiras de natureza arquitetônica, de comunicação e, principalmente, de
atitude. É esse cenário áspero e hostil que é oferecido a indivíduos que durante um longo
período de suas vidas foram acumulando vivências de rejeições e opressões, como respostas
às suas mais diversas iniciativas de participação social por intermédio do trabalho.
A legislação nacional e internacional sobre o trabalho da pessoa com deficiência
No Brasil, o arcabouço legal que fundamenta a inclusão da pessoa com deficiência no
mercado de trabalho encontra na Constituição Federal de 1988 um relevante marco regulatório.
Após a promulgação da Constituição Cidadã, foi construída uma legislação infraconstitucional
com o intuito de oportunizar o trabalho a todo o cidadão, sem qualquer distinção em razão de
características pessoais indissociáveis, como raça, cor, sexo, orientação sexual, condição de
pessoa com deficiência, idade, entre outras, reforçando-se, a partir de então, a importância da
igualdade, da dignidade, e do respeito à diversidade humana.
Expressamente, a atual Constituição da República, em seu art. 7º, inciso XXXI, prevê
a proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do
trabalhador portador de deficiência.
A contratação de Pessoas com Deficiência pela iniciativa privada passou a ser uma
obrigação legal. Desde 24.07.1991, vigora no Brasil a Lei Federal nº 8.213, que em seu art.93,
obriga as empresas com 100 ou mais empregados “a preencherem de 2% (dois por cento) a
5% (cinco por cento) dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de
deficiência”1. Por sua vez, as empresas brasileiras vêm sendo paulatinamente demandadas pela
sociedade para que adotem posturas consideradas éticas e ações de responsabilidade social
que interfiram positivamente dentro e fora do universo de atuação do mundo corporativo.
O mais relevante e atualizado documento jurídico internacional sobre esse tema é a
Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, cujo conteúdo se
destaca pela sua abrangência e aplicabilidade. Essa Convenção foi aprovada pela Assembléia
da ONU, no final de 2006, começando a vigorar internacionalmente em 03 de maio de 2008. O
processo de construção do seu texto teve a participação de representantes de Governos e do
movimento social das pessoas com deficiência de diversos países do mundo e sua aprovação
contou com a assinatura de 192 nações, ou seja quase todas as pátrias reconhecidas da
Terra. Como produto final, a norma internacional contém 50 artigos que abordam os principais
temas relacionados à pessoa com deficiência (RESENDE E VITAL, 2008).
No Brasil, o texto da Convenção Internacional foi ratificado pelo Congresso Nacional em 09 de
julho de 2008, através do Decreto Legislativo 186/2008, tendo sido aprovado com status de emenda
à Constituição e hoje encontra-se em vigor como integrante da nossa Carta Magna. Destaca-se
que a sua importância prática no nosso país advém sobretudo de sua força corecitiva, definido
1
LEI Nº 8.213 - DE 24 DE JULHO DE 1991
Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências.
Art. 93. A empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento)
dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, na seguinte proporção:
I - até 200 empregados...........................................................................................2%;
II - de 201 a 500......................................................................................................3%;
III - de 501 a 1.000..................................................................................................4%;
IV - de 1.001 em diante. .........................................................................................5%.
31
pelo Dicionário Aurélio como “a força que emana da soberania do Estado e é capaz de impor o
respeito à norma legal”. Portanto, a legislação pátria anterior à Convenção será recepcionada ou
invalidada pela nova ordem constitucional, perdendo eficácia qualquer dispositivo legal que não se
coadune com a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.
No que tange à inclusão produtiva da pessoa com deficiência, a Convenção Internacional
reforça a importância de ações que demonstrem a vontade de cada país, a ser expressa
em atitudes que reafirmem a igualdade de oportunidades e busquem resgatar um histórico
de exclusão. Nesta seara, o sistema de reserva de cotas para pessoas com deficiência em
empresas privadas é uma forma de política afirmativa referenciada na Convenção Internacional
e que vem sendo adotado não somente pelo Brasil mas por diversos países em todo o mundo.
Países tão diferentes como França, Itália, Portugal, Espanha, Áustria, Bélgica, Holanda, Irlanda,
Reino Unido, Argentina, Colômbia, El Salvador, Honduras, Nicarágua, Panamá, Peru, Uruguai,
Venezuela, Estados Unidos da América, China e Japão já adotam o sistema de reserva de
cotas para pessoas com deficiência em empresas privadas. (MTE, SIT, DEFIT, 2007).
As tentativas por meio de ações afirmativas e obrigatórias de inclusão das pessoas com
deficiência não tem tido todo o êxito esperado no Brasil. Os motivos atribuídos à essa dificuldade
em permear o tecido social são os mais diversos, incluindo os discursos pré-concebidos e
utilizados por grande parte das organizações empresarias. Tanaka e Manzini (2005), em
seu estudo denominado “O que os empregadores pensam sobre o trabalho da pessoa com
deficiência?” apresenta alguns argumentos recorrentes vindos das empresas:
Os entrevistados acreditavam que as pessoas com deficiência tinham
condições de exercer um trabalho, mas apontaram algumas dificuldades
em função: a) dela própria - falta de escolaridade, de interesse e de
preparação profissional e social; b) da empresa – condições inadequadas
do ambiente físico e social, falta de conhecimento sobre a deficiência; c)
das instituições especiais – inadequação dos programas de treinamento
profissional e social, falta de contato com as empresas para conhecer as
suas necessidades; d) do governo – de proporcionar acesso à escola e ao
transporte, falta de incentivo para as empresas promoverem adaptações
ergonômicas e desenvolverem programas de responsabilidade social
(TANAKA; MANZINI, 2005 p. 273).
Nesse contexto, dado que as dificuldades alegadas para não efetivar a contratação de
pessoas com deficiência já vêm sendo estudadas, passa a ser importante o levantamento das
boas práticas adotadas e cujo êxito tenha possibilidade de replicação trazendo o necessário
alento ao grande número de pessoas envolvidas nessa temática da inclusão social. Talvez a
melhor ferramenta para combater a exclusão social seja exatamente o exemplo concreto e
bem sucedido de inclusão produtiva de pessoas com deficiência no mercado de trabalho.
A importância da investigação e da consolidação de boas práticas
Partindo-se do entendimento de que a inclusão produtiva de pessoas com deficiência é
premente e insofismável, é fundamental indagar se as ações já existentes com esse propósito
têm encontrado êxito e em que proporção.
A relevância de um estudo como este encontra respaldo na sua iminente aplicabilidade
dentro de um mercado de trabalho ávido por soluções e carente de diálogos intersetoriais
que abordem a questão. Provavelmente seu caráter mais relevante encontra-se no fato de
32
querer investigar e sistematizar dados pouco estudados das ações positivas e de sucesso. Os
resultados de uma investigação como esta podem surpreender até mesmo aqueles que já se
encontram envolvidos com o tema em sua lida cotidiana e contribuir para uma inclusão mais
plena e eficiente das pessoas com deficiência no mundo do trabalho.
Algumas questões podem ser destacadas para se examinar. Por exemplo, as empresas
oferecem seus postos de trabalho para pessoas com deficiência baseando-se em suas
concepções pré-formuladas (ou pre-conceituadas) ou já detém algum conhecimento sobre
potencialidades dessas pessoas como força de trabalho? As ações que têm alcançado êxito
reputam seu mérito à qualidade dos candidatos selecionados, à aptidão e sensibilidade
daqueles que contratam, ao ambiente empresarial ou a que outros fatores? As boas
práticas são pontuais ou podem servir de exemplo? Nesse cenário, como são percebidas
as ações governamentais e as atuações da Sociedade Civil organizada? Pela percepção
dos envolvidos na questão, existe dissonância entre as atuações do governo, das empresas
e da sociedade civil? Enfim, essas são algumas das perguntas cujas respostas não estão
prontas, mas que merecem reflexão e estudo.
O problema a ser enfrentado é descobrir porque algumas ações destinadas à inclusão de
pessoas com deficiência no mercado de trabalho são exitosas e outras não. É necessário,
portanto, investigar quais são os fatores que interferem positiva e negativamente na inclusão
produtiva da pessoa com deficiência na iniciativa privada.
Trazer à tona, de forma sistematizada e compilada, quais são os motivos pelos quais as
pessoas com deficiência são incluídas e mantidas no mercado produtivo, ou dele sumariamente
excluídas, tem como finalidade produzir um instrumento de consulta que possa facilitar nas
decisões pessoais e corporativas que envolvam essa questão.
A partir dos dados colhidos e da análise das percepções dos principais atores do processo de
inclusão produtiva da pessoa com deficiência com suas práticas perpetradas no mercado, poderá
ser possível determinar alguns modelos de atuação a serem propostos aos envolvidos nessa
importante trajetória. Essa análise possibilitará o levantamento de aspectos negativos ou com
pouca efetividade nas rotinas adotadas pelas empresas, com intuito de apresentar propostas de
alterações, visando uma melhoria efetiva no processo de absorção dessa força produtiva.
Com esse material devidamente catalogado será possível construir um instrumento de
apoio para o planejamento e para a execução de ações que busquem a inclusão produtiva de
pessoas com deficiência na iniciativa privada. Será possível, portanto, elaborar um compilado
de boas práticas adotadas pelos três setores da sociedade com foco no mundo do trabalho das
pessoas com deficiência. Esse material poderá ser disponibilizado em meio virtual, podendo
também ser impresso para a veiculação das informações nas associações de pessoas com
deficiência, nas empresas, nos sindicatos e associações empresarias, e ainda como opção de
consulta para uso dos agentes públicos e pelos demais interessados.
Vislumbra-se que o fato de se debater a questão já é um primeiro passo no sentido de se
obterem mudanças positivas nesse processo de inclusão. De todo modo, o prosseguimento
e aprofundamento dessa pesquisa poderá proporcionar impactos positivos na forma de
contratação e manutenção das pessoas com deficiência nas empresas. Espera-se, sobretudo,
que estudos como este possam auxiliar na melhoria do ambiente empresarial de forma a tornálo mais amigável e estimulante para o efetivo desenvolvimento de todo o potencial de trabalho
de um relevante público, quantitativa e qualitativamente, de pessoas com deficiência que vivem
em nosso país. Almeja-se, ainda, contribuir para o alcance de uma sociedade que, de fato,
abrace toda a diversidade de seus membros e considere-a como um valor enriquecedor.
33
Referências
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Federal, Centro Gráfico, 1988. 292 p. Atualizada com as emendas constitucionais promulgadas.
BRASIL. Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da
Previdência Social e dá outras providências. Brasília, 1991.
BRASIL. Ministério do Trabalho, A inclusão de pessoas com deficiência no mercado de
trabalho – 2. ed. – Brasília: MTE, SIT, 2007.
INSTITUTO ETHOS. Como as empresas podem (e devem) valorizar a diversidade. São Paulo:
Instituto Ethos, 2000.
GUIMARÃES, Nadya Araújo; HIRATA, Helena. Desemprego: Trajetórias, Identidades,
Mobilização. São Paulo, Editora Senac. 2006. 320 p.
PASTORE, José. Oportunidades de trabalho para portadores de deficiência. São Paulo:
LTr, 2000.
RESENDE, Ana Paula; VITAL, Flavia Maria de Paiva. Convenção sobre Direitos das Pessoas
com Deficiência comentada. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2008.
TANAKA, E.D.O., MANZINI, E.J. O que os empregadores pensam sobre o trabalho da pessoa
com deficiência? Rev. Bras. Ed. Esp., Marília, v.11, n.2, p.273-294, maio/ago. 2005.
CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Tradução Iraci
Poleti. Petrópolis: Vozes, 1998.
GUIMARÃES, Nadya Araujo; HIRATA Helena Sumiko. Desemprego : Trajetórias, Identidades,
Mobilizações. Sao Paulo, SP: EDITORA SENAC São Paulo, 2006.
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Envelhecimento e deficiência
Maria Aparecida Ferreira de Mello
Terapeuta Ocupacional com doutorado em Reabilitação pela
Universidade de São Paulo e coordenadora do curso de pos graduação
em Saude do Idoso da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais.
Pessoas que são idosas e têm uma deficiência – um percentual crescente da
população - enfrentam um duplo desafio: as dificuldades e a discriminação geralmente
encontradas no cotidiano. Esse artigo examina tal situação discutindo principalmente
os preconceitos associados a esse grupo.
O envelhecimento da população brasileira e o aumento da expectativa de vida têm chamado
a atenção do governo e esse tem respondido com políticas apropriadas, mesmo que ainda não
estejam implementadas de forma suficiente. Entretanto, o envelhecimento da população com
deficiência não tem recebido a atenção necessária. No passado, as pessoas com deficiência não
sobreviviam nem até a meia idade devido às complicações relacionadas com suas deficiências.
Agora a situação é diferente. Nos Estados Unidos um em cada 100 idosos está envelhecendo com
uma deficiência de longo prazo tal como seqüelas de esclerose múltipla, trauma raquimedular,
pós-pólio, paralisia cerebral e deficiências do desenvolvimento e intelectual (Ansello, 2004). Há
50 anos atrás o tempo médio de vida de um indivíduo com trauma raquimedular era menos
que três anos depois da ocorrência do acidente (Wirtz, Favor, e Ang, 1996). Não temos dados
brasileiros, mas nos EUA 40 por cento dos sobreviventes de trauma raquimedular estão com
idade acima de 45 anos (Menter, 1993), há em torno de 300.000 indivíduos com síndrome
pós-pólio com idade acima de 60 anos; aproximadamente 526.000 pessoas acima de 60 anos
têm uma deficiência intelectual ou de desenvolvimento (Hammer e Nochajski, 2000). Esse
aumento da longevidade entre as pessoas com deficiência traz novos desafios. Grande parte
dessa população apresenta problemas de saúde antecipados (dor, fadiga, etc) e declínio
funcional (perda de força muscular, diminuição da mobilidade, etc) assim que eles alcançam a
meia idade (Campbell, Sheers and Strong, 1999). Essas condições secundárias de saúde estão
relacionadas com o efeito do envelhecimento imposto à deficiência primária. Essa condição tem
sido descrita como envelhecimento precoce ou prematuro, pois ocorre de 15 a 20 anos mais cedo
que seria no caso do envelhecimento normal (Kemp e Mosqueda, 2004). Em alguns casos, as
pessoas com deficiência têm que se aposentar mais cedo devido a essas limitações sem ter tido
a oportunidade de planejarem moradia, recursos para pagar cuidadores, transporte, cuidados
a saúde entre outras despesas. Infelizmente o benefício de prestação continuada (BPC) ou
mesmo a maioria das aposentadorias têm um valor insuficiente para cobrir todas as despesas.
Como mais um complicador, temos serviços para idosos que não estão preparados para lidar
com deficiências não típicas do envelhecimento e por outro lado, serviços de reabilitação não
preparados para lidar com pessoas envelhecidas.
Pessoas idosas e pessoas com deficiência sempre encontram discriminação e estigma
social. “Ageism” (ainda sem tradução) tem sido utilizado para expressar o julgamento de uma
pessoa idosa sem evidências suficientes, por exemplo alguns mitos relacionados ao ser idoso:
cheiro de velho, associar velhice com presença de doenças, a incapacidade ou dificuldade
de aprendizagem, não devem ter vida sexual, entre outros mitos. Pessoas com deficiência
também enfrentam preconceitos com freqüência, na maioria das vezes porque são definidos
por uma condição e não pelo que são enquanto indivíduos. Preconceitos podem tomar duas
formas: a primeira é acreditar que um grupo tem uma característica genérica negativa, quando
35
de fato isso não existe. A segunda forma é a crença de que características de um indivíduo em
particular sejam de todos pertencentes ao grupo. Tratar uma mulher idosa como incompetente
simplesmente porque quadro demenciais são comuns entre idosos é um bom exemplo.
Ganhos na expectativa de vida tem tornado a deficiência um evento comum aos últimos
anos de vida. Esse grupo de idosos que adquirem uma deficiência já na velhice muitas vezes
não são reconhecidos como pessoas com uma deficiência, mas incapacitados devido ao
envelhecimento. Essa visão faz com que não sejam buscados serviços de reabilitação ou
tecnologia assistiva para superar as dificuldades funcionais.
Outro aspecto extremamente relevante, é que o processo de prescrição e seleção de
tecnologia assistiva utilizado para pessoas idosas deve ser diferenciado daquele realizado
para crianças e adultos. Em muitas situações a pessoa idosa recusa a ajuda técnica por aceitar
a incapacidade como parte do processo natural do envelhecimento e não “merecer” um ganho
funcional naquela área específica. Existem vários estudos que tratam desse assunto. Outros
associam deficiência com vulnerabilidade, fraqueza, dependência e perda do auto-controle.
Essas associações podem levar as pessoas idosas a recusarem o uso de ajudas técnicas
para não “aparentarem” que têm uma deficiência.
Muitos dos profissionais que trabalham com idosos são familiarizados com os mitos do
envelhecimento (“ageism”), mas eles não estão conscientizados dos preconceitos em relação
a deficiência. Gerontologistas sabem que a idade cronológica diz muito pouco dos potenciais
e limites de uma pessoa. Similarmente, uma condição incapacitante fala quase nada das
capacidades individuais de uma pessoa.
A deficiência é fluída e dinâmica e pode variar de acordo com as condições do ambiente.
Somando a isso, as pessoas idosas com deficiência compõem um grupo heterogêneo de
várias etnias, diferentes estatus socioeconômicos. Generalizar intervenções para esse
grupo não é adequado.
Os brasileiros deificam a juventude e beleza. Muitos preconceitos em relação às pessoas
idosas e pessoas com deficiência existem porque não se acredita que eles possam contribuir de
forma significativa intelectual, emocional, econômica ou socialmente para os outros membros
da sociedade. Idade avançada e deficiência são condições desvalorizadas socialmente e para
serem evitadas, adiadas e até mesmo negadas em nosso meio.
Quais seriam os preconceitos comuns em relação às pessoas idosas e as pessoas
com deficiência? O primeiro fator é que em ambas situações ocorrem mudanças físicas
(raríssimas exceções) que são consideradas indesejadas numa sociedade que valoriza a
beleza. Segundo, envelhecimento e deficiência alimentam o medo que as pessoas têm de se
tornarem dependentes e vulneráveis à medida que envelhecem. Ser velho ou ser uma pessoa
com deficiência é visto pela sociedade como sendo uma situação muito difícil e sendo assim
é preferível negá-la ou ignorá-la. Terceiro, as dificuldades funcionais associadas à deficiência
ou ao envelhecimento podem causar tensão em pessoas que evitam contato por se sentirem
desconfortáveis. Quarto, o envelhecimento e a deficiência são estados ambíguos que podem
levar a pessoa a se sentir incompetente e a focar somente nos aspectos negativos ou atribuir
a todos idosos e pessoas com deficiências maiores limitações funcionais do que realmente
existem. Quinto, pessoas idosas e pessoas com deficiência são muitas vezes vistas como um
peso, alguém que consome os recursos de uma sociedade. Muitas pessoas ficam enraivecidas
quando solicitadas a ajudarem pessoas idosas ou com deficiência. As pessoas podem se
sentir angustiadas por associarem o envelhecimento e a deficiência à morte.
As organizações de defesa dos direitos das pessoas idosas e das pessoas com deficiência
têm tido objetivos diferentes. Historicamente, as organizações que defendem as pessoas idosas
36
preocupavam-se primariamente com assuntos relativos a aposentadoria. Somente depois da
promulgação da Política Nacional do Idoso e do Estatuto do Idoso que essa discussão começa
a se ampliar, mas de maneira muito tímida ainda. As organizações que defendem e promovem
os direitos das pessoas com deficiência são mais antigas no país, mas tratam prioritariamente
de crianças e jovens, e têm focado na educação, reabilitação, vida independente e emprego.
Torna-se necessário que estas organizações (governamentais e não governamentais)
elaborem uma agenda em comum, servindo as pessoas idosas com deficiência. Algumas
pessoas podem se colocar contra dizendo que é a somatória de dificuldades, mas outros
mais otimistas concordam que é a oportunidade de permitir que as pessoas tenham uma
vida longa e com mais independência. Capacitação das equipes de atendimento tanto em
gerontologia quanto em deficiência farão toda a diferença na adequação das propostas de
intervenção, sejam elas sociais ou de saúde. Os princípios da inclusão e participação devem
ser considerados para a sociedade como um todo. Criar essas alianças ou coalizões não é uma
tarefa fácil dado as diferenças filosóficas que permeiam o universo do conhecimento e serviços
em envelhecimento e o da deficiência. Para tanto é necessário quantificar e qualificar as
necessidades reais das pessoas que envelhecem com deficiência e daquelas que adquirem
uma deficiência ao ficarem mais velhas. Faltam estudos sobre o envelhecimento das pessoas
com deficiência no país. Somente com essas informações mais claras é possível planejar
ações que possam ter sucesso.
Referências
ANSELLO, E. Public policu writ small: Coalitions at the intersection of aging and lifelong
disabilities, Public Policy Aging Report 14 (4), 2004.
CAMPBELL, M.,Sheets D., e Strong P. Secondary health conditions among middle-aged
individuals with chronic physical disabilities: Implications for unmet needs of services. Assistive
Technology 11(2);105-22,1999.
HAMMEL and NOCHAJSKI,S (eds).Introduction, In Aging and Developmental Disabilities:current
Research,Programming, and Practice Implications, New York, The Harworth Press Inc., 2000.
KEMP, B e MOSQUEDA, L (eds)Aging with a disability,what a clinician needs to know.
Baltimore,Md.:John Hopkins University Press,2004.
MENTER,R. Issues of Aging with spinal cord injury. In G.Whitecek,et al,eds, Aging with Spinal
Cord Injury,pp.1-8, New York, Demus, 1993.
WITZ, K., FVAOR,K.L. e Ang, R. Manging Chronic Spinal Cord Injury: Issues in Critical Care.
Critical Care Nurse 16(4):24-35, 1996.
37
Luz aos cegos, sons ao mundo: aspectos do ensino musical escolar
sob o método braille, em uma escola brasileira (1926 a 1935)**
Flávio Couto e Silva de Oliveira
Historiador e Doutor em Educação e Inclusão Social pela
Universidade Federal de Minas Gerais;
Coordenador da CAADE|SEDESE e membro do Grupo de Estudos
e Pesquisas em História da Educação – GEPHE -, da Faculdade de
Educação da (UFMG).
Palavra-chave: Musicografia, braille, Instituto São Rafael, história da educação artística.
O presente artigo pretende antes de tudo ser um tributo da história da educação ao
bicentenário de nascimento de Louis Braille (1809-1852), comemorado mundialmente em
2009. O trabalho traz uma abordagem acerca de um ramo específico da educação artística
no Brasil, que cada vez mais deve merecer a atenção de historiadores, já que hoje, uma das
grandes questões de nosso tempo, que transcende a instância educacional,11 diz respeito à
promoção e à valorização da diversidade humana. Tal questão se desdobra no atual debate
sobre a educação inclusiva de pessoas com deficiência, referidas entre os educadores
contemporâneos como portadoras de necessidades educacionais especiais. Logo, para que
se tenha uma melhor perspectiva na sustentação desse debate, torna-se crucial conhecer as
raízes históricas dos processos educacionais vivenciados por essas pessoas, em diferentes
contextos sócio-culturais. A importância da música na história da educação de cegos, bem
como as apropriações do aprendizado musical por alunos de em uma escola brasileira, durante
as décadas de 1930 e 1940, foram assim, o tema central deste estudo.
A referida escola é o Instituto São Rafael, inaugurado em Belo Horizonte (capital do Estado
de Minas Gerais), em 1926, no contexto das reformas educacionais brasileiras das primeiras
décadas do século XX. O Instituto São Rafael foi assim, a primeira escola para cegos, de
caráter oficial no país a partir do período republicano. Além dos ensinos primário e secundário,
a escola oferecia também uma formação técnico-profissional em trabalhos manuais, além de
um ensino musical completo, baseado na musicografia braille.
11
A realização desse debate não é objetivo específico do presente artigo. Contudo, é interessante deixar assinalados seus
principais marcos regulatórios nos últimos vinte anos no Brasil, a fim de trilhar o caminho para pesquisadores que se interessem pelo tema. Assim, podem-se citar a Própria Constituição Federal de 1988 (especialmente o artigo 205, o inciso I do
artigo 206 e o artigo 208); a Lei Federal 7853/89; o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8069/90; a Declaração Mundial
de Educação para Todos (1990) e a Declaração de Salamanca (1994); a Política Nacional de Educação Especial (1994);
a Lei Federal 9394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional); o Decreto Federal 3298/99, que dispõe sobre a
Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência; as Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na
Educação Básica (Resolução CNE/CEB nº 2/2001); as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da
Educação Básica (Resolução CNE/CP nº1/2002); A Portaria nº 2.678/02, que aprova diretrizes e normas para o uso, o ensino,
a produção e a difusão do Sistema Braille em todas as modalidades de ensino, compreendendo o projeto da Grafia Braile
para a Língua Portuguesa e a recomendação para o seu uso em todo o território nacional; o programa Direito à Diversidade,
do MEC (2003); e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada pela ONU (2006).
** Este artigo foi apresentado e publicado nos anais do IX Congresso Iberoamericano de História da Educação Latino
Americana, organizado pela sociedade Brasileira de História da Educação, 2009, Rio de Janeiro, RJ.
38
O texto traz alguns resultados de minha dissertação de mestrado (1995)12 e de minha
tese de doutorado (2004)13, respectivamente, sobre memórias de músicos cegos e sobre a
constituição do canto enquanto disciplina escolar em escolas primárias e normais mineiras,
do princípio do século XX. Como fontes de investigação, foram utilizados o regimento do
Instituto São Rafael, a legislação pertinente ao tema e, de maneira especial, documentos orais
produzidos na pesquisa da referida dissertação, os quais trazem depoimentos de ex-alunos
do Instituto São Rafael, relativos ao período proposto e que são de grande importância para
o argumento desenvolvido neste texto. Logo, o emprego de documentos orais como fontes
privilegiadas, torna importante uma reflexão crítica quanto a utilização desse método|técnica.
Notas sobre história oral
Sabe-se que a história se faz somente a partir de documentos. Entretanto, a ampliação
do sentido do termo ‘documento’, como não sendo mais necessariamente aqueles escritos
(textuais), há muito deixou de constituir novidade para os pesquisadores de história. Hoje,
a questão documental expandiu-se de um modo notável, o que enriqueceu sobremaneira
as potencialidades do fazer historiográfico, fornecendo aos historiadores a possibilidade de
se trabalhar com as mais variadas fontes: documentos iconográficos, documentos escritos,
filmes, literatura, além do próprio documento oral.
Com efeito, o crescente interesse pelos métodos e técnicas da história oral está relacionado
a um voltar de atenções cada vez maior, dos historiadores, para a história do particular, do
pequeno, do cotidiano. As representações e interpretações que os indivíduos fazem do seu
passado — material constituidor do documento oral — passam a receber maior atenção dos
pesquisadores de história, e é principalmente a partir delas que se pode chegar à memória
coletiva de um determinado grupo social. Mas, se por um lado, o processo de produção do
documento oral, como mais um recurso a ser utilizado pelos historiadores, parece ter adquirido
nas últimas décadas uma boa dose de confiabilidade, por outro lado, essa metodologia nunca
deixou de ser alvo de discussões. Ouçamos o que diz Paul Thompson:
A História Oral não é necessariamente um instrumento de mudança; isso
depende do espírito com que seja utilizada. Não obstante, a História Oral
pode certamente ser um meio de transformar tanto o conteúdo quanto
a finalidade da História. Pode ser utilizada para alterar o enfoque da
própria História e revelar novos campos de investigação; pode derrubar
barreiras que existam entre professores e alunos, entre gerações, entre
instituições educacionais e o mundo exterior; e na produção da história
— seja em livros, museus, rádio ou cinema — pode devolver às pessoas
que fizeram e vivenciaram a história um lugar fundamental, mediante
suas próprias palavras. (THOMPSON, 1992, p. 22).
12
OLIVEIRA, Flávio Couto e Silva de. “Histórias de um aprendizado: os signos de Deuleuze nos relatos de vida de músico
cegos”. Dissertação de Mestrado apresentada ao programa de pós-graduação em Educação, da Faculdade de Educação da
UFMG. (Biblioteca FAE/UFMG) Belo Horizonte, 1995. p.
13
OLIVEIRA, Flávio Couto e Silva de. “O Canto civilizador: música como disciplina escolar nos ensinos primário e normal de
Minas Gerais, durante as primeiras décadas do século XX”. Tese de Doutorado apresentada ao programa de pós-graduação
em Educação, da Faculdade de Educação da UFMG. (Biblioteca FAE/UFMG) Belo Horizonte, 2004. p.
39
Por tudo isso é que a memória oral pode se constituir em uma excelente fonte de investigação
para aqueles que se dedicam ao trabalho de investigação no campo da história da educação
artística. Foi com esse espírito que se procurou utilizar no presente trabalho, depoimentos de
ex-alunos (alguns deles professores) do Instituto São Rafael.
As raízes musicais da educação de cegos, da Europa ao Brasil
Na virada do século XVIII, em pleno período das intensas transformações sociais impostas
pela Revolução Francesa, o poeta e filósofo alemão Friedrich Schiller (1759-1805) afirmava que,
para se resolver os problemas políticos de seu tempo, seria necessário se caminhar pela via
estética, pois “é pela beleza que se vai à liberdade” (SCHILLER, 1995, p. 26). Evidentemente,
Schiller não estava sozinho ao defender a promoção de uma educação estética para o povo. Já
desde meados daquele mesmo século, filósofos e educadores como Jean-Jacques Rousseau
(1712-1778), Immanuel Kant (1724-1804) e Friedrich Froebel (1782-1852) preconizavam uma
pedagogia voltada não somente para a formação intelectual das crianças, mas também para
o aprimoramento de seus sentidos.
Foi esse ambiente intelectual que serviu como pano de fundo para as primeiras experiências
educacionais de cegos, iniciadas na França, em 1784, com a criação do Instituto Real dos
Jovens Cegos de Paris, pelo tradutor, intérprete e filantropo francês, Valentin Hauy (17451822). Essas experiências educacionais tiveram como um de seus mais fortes referenciais,
o ensino de música, de modo que, desde o início, esta área das artes esteve estreitamente
relacionada à educação de cegos. Conforme se lê no Dictionaire de Pédagogie de Buisson,
a partir de 1787 já se podiam ver os alunos de Hauy “executarem em várias igrejas de Paris,
temas compostos por eles: marchas cantantes às procissões da Fête-Dieu, pedindo auxílio
em proveito da nascente instituição” (BUISSON, 1887, p. 160).
Com efeito, foi Hauy quem primeiro tomou a iniciativa de sistematizar uma pedagogia através
da qual os cegos pudessem receber uma educação conforme os padrões então vigentes. Ele
sabia que os cegos podiam reconhecer os objetos pela diversidade de suas formas: “Ele não
conhece o valor de uma moeda? Por que ele não distinguiria um ‘a’ de um ‘f’, se esses signos
se tornassem palpáveis?” (BUISSON, 1887, p.160).
Três décadas antes, o enciclopedista Denis Diderot, em sua Carta Sobre Os Cegos para Uso dos
que Vêem, de 1754, havia lançado as bases para a criação de uma linguagem escrita adequada
às pessoas sem visão. Diderot entendia que, “os conhecimentos têm três portas para entrar em
nossa alma, e nós mantemos uma trancada por falta de sinais”. (DIDEROT, 1985, p11).
É com essas palavras que Diderot (1985) argumenta em prol da criação de tal linguagem
específica:
A unidade pura e simples é um símbolo demasiado vago, demasiado
geral para nós. Nossos sentidos nos reconduzem a signos mais análogos
à extensão de nosso espírito e à conformação de nossos órgãos.
Fizemos mesmo as coisas de maneira que esses signos pudessem
ser comuns entre nós, e que servissem, por assim dizer, de entreposto
ao comércio mútuo de nossas idéias. Instituímos alguns para os olhos,
são os caracteres; para o ouvido, são os sons articulados; mas não
possuímos nenhum deles para o tato, embora haja maneira peculiar
de falar a esse sentido, e de obter dele respostas. À falta desta língua,
40
a comunicação fica inteiramente rompida entre nós e os que nascem
surdos, cegos e mudos (DIDEROT, 1985, p.11).
Em um adendo que escreveu a sua “Carta sobre os Cegos”, poucos anos antes de
sua morte (época em que se iniciam as experiências de Hauy), Diderot referiu-se a
uma prodigiosa cega, Mademoiselle Mélanie de Salignac, que havia aprendido a ler e a
executar música através de caracteres em relevo:
Era apaixonada pela leitura e louca por música. (...) Haviam lhe ensinado
música por meio de caracteres em relevo que eram colocados sobre
linhas eminentes à superfície de uma grande mesa. Lia os caracteres com
a mão; executava-os em seu instrumento, e em pouquíssimo tempo de
estudo aprendera a tocar com partitura a mais longa e mais complicada
peça. (DIDEROT, 1985, p.36).
Um dos alunos da instituição criada por Valentin Hauy foi o célebre Louis Braille (1809-1852),
que havia ficado cego aos três anos de idade. Logo, coube a ele o papel histórico da invenção,
em 1825, do mais completo sistema de leitura e escrita para cegos até hoje utilizado em todo o
mundo, o qual desde o início teve grande aplicação no ensino e aprendizagem de música.
Conforme assinalam Lemos, Venturini e Rossi (2009), a inspiração para a criação do sistema
Braille de leitura e escrita para cegos, por meio de pontos salientes, veio do invento de um
ex-capitão de artilharia do exército francês, Charles-Marie Barbier de La Serre (1767-1841). A
Escrita Noturna, ou Sonografia (nome que Barbier deu ao seus sistema de leitura, baseado em
linhas e pontos em relevo) teria sido criada com o objetivo de permitir que soldados pudessem
ler mensagens militares no escuro. Em 1820, Barbier levou seu invento ao Instituto de Paris,
com a idéia de que este pudesse ser aplicado a educação de cegos. Entretanto, o sistema de
Barbier apresentava uma série de dificuldades:
Não permitiam conhecimento de ortografia, pois os sinais representavam
somente sons; não havia símbolos para pontuação, acentos, números, sinais
matemáticos e notação musical. A complexidade de combinações tornava a
leitura difícil e lenta (LEMOS, VENTURINI e ROSSI, 2009, p. 35).
Louis Braille, aluno do Instituto, propôs inicialmente modificações ao sistema de Barbier, até
transformá-lo completamente, transmutando-o, cinco anos mais tarde, no seu próprio sistema
de leitura e escrita em relevo. Este é formado de seis pontos os quais permitem 63 diferentes
combinações entre si. Pelo seu caráter universal, o Braille é aplicável a todos os idiomas
e dialetos, possibilitando também a representação de todos os sinais gráficos, algarismos,
símbolos matemáticos e partituras musicais.
Em 1829, Louis Braille publicou a primeira edição de seu trabalho, no qual apresentava
o sistema de leitura e escrita em relevo por ele criado. Esse trabalho foi intitulado Processo
para escrever as palavras, a música e o canto-chão, por meio de pontos, para uso dos
cegos e dispostos para eles. A segunda edição, que data de 1837, definiu a essência da
musicografia braille utilizada até hoje. Ainda conforme Lemos, Venturini e Rossi (2009),
atualmente, a musicografia Braille é adotada de maneira uniforme por todos os países. Para
tanto, contribuíram, principalmente, os congressos realizados em Colônia (1888), em Paris
(1929) e em Nova Iorque (1954).
41
Nota-se pois, que a representação musical foi de grande importância para a constituição e
afirmação do Sistema Braille, visto que a música sempre teve um papel central na formação e na
vida de seu criador. Vale lembrar que Louis Braille foi durante muito tempo, organista da Igreja
de Saint Nicholas-Des-Champs e que até um ano antes de sua morte, em 1852, era professor
de piano no Instituto Real dos Jovens Cegos (LEMOS, VENTURINI e ROSSI, 2009).
O Sistema Braille veio a obter no entanto o seu reconhecimento oficial na França, apenas
dois anos após a morte de seu inventor. Nesse mesmo ano de 1854, inaugurou-se no Rio de
Janeiro, o Imperial Instituto dos Meninos Cegos, onde o sistema de leitura e escrita criado por
Louis Braille foi integralmente adotado e onde o ensino de música teve desde o início, um
importante papel na educação dos cegos no Brasil.
Música e educação no Instituto São Rafael
Com a proclamação da República no Brasil, em 1889, o Imperial Instituto dos Meninos
Cegos foi rebatizado de Instituto Benjamin Constant, em homenagem a um dos patronos
da República. Sendo a primeira escola para cegos do Brasil, o Instituto Benjamin Constant
acabou servindo também como modelo para outras instituições semelhantes em todo o país.
Assim, no contexto das reformas educacionais das primeiras décadas do século XX, foi que
se inaugurou em 2 de setembro de 1926, em Belo Horizonte, durante a gestão do Governador
de Minas Gerais, Dr. Fernando de Mello Vianna, aquela que veio a ser a segunda experiência
brasileira — e a primeira iniciativa oficial durante a República, na criação de uma escola
especializada na educação da pessoa cega.
Da mesma forma que o seu modelo, o Instituto São Rafael preconizava um sistema de
educação que oferecia aos cegos não somente a instrução primária e secundária, como
também um ensino musical e técnico-profissional. Em minha dissertação de mestrado, que
inspirou a escrita do presente artigo, interessei-me, portanto, justamente pelos efeitos que a
formação musical oferecida pela escola teve na vida de um grupo de alunos. Esses músicos
formados pelo Instituto São Rafael, atendendo as expectativas pedagógicas da Escola, na
maior parte das vezes, acabavam efetivamente por se profissionalizar.
Os outros tipos de formação profissional oferecidos pela escola estavam relacionados
sobretudo, aos trabalhos manuais. Para tanto, o São Rafael possuía uma oficina, uma
marcenaria e uma imprensa braille para os alunos, além de uma sala de costura onde as
alunas aprendiam a fazer trabalhos de agulha: bordado, tricô, crochê, etc. Nota-se assim, que
no tipo de formação profissional oferecida, havia uma divisão entre os trabalhos socialmente
aceitos como trabalhos masculinos e os femininos.
A música,particularmente, além de ser um ensino altamente especializado, possibilitava ao
aluno do Instituto circular em outros espaços que não apenas o interno da instituição, ao qual,
geralmente, estavam restritos aqueles que se dedicavam aos outros misteres: marceneiros,
encadernadores, bordadeiras etc. A música era, desse modo, um passaporte que permitia ao
aluno cego circular pelos diversos espaços citadinos. Dizendo de outra forma, a música, arte
essencialmente ligada ao sentido da audição, viabilizava aos estudantes, além de fugirem
ao espaço normatizado da instituição, serem reconhecidos como pessoas competentes, pois
de certa maneira, no exercício dessa profissão, pouco importava que eles fossem cegos.
Entretanto, há que se dizer que, embora meninas e meninos tivessem igual liberdade para
adquirir a formação musical, e o faziam igualmente, eram quase somente esses últimos que
de fato acabavam por se profissionalizar e freqüentar os ambientes musicais da cidade.
42
Durante muitas décadas, o Instituto São Rafael funcionou em regime de internato e
semi-internato, de modo que, de acordo com os depoimentos dos entrevistados, os alunos
do curso de música, à medida em que iam se aperfeiçoando tecnicamente, passavam a
freqüentar certos locais da cidade onde se executava preferencialmente a música popular.
E foi a partir de sua frequência nesses locais públicos (bares, cabarés, salas de concerto,
auditórios de rádio) que esses estudantes puderam completar sua formação musical
iniciada na escola. Assim, os músicos do Instituto eram, de certa forma, privilegiados entre
os seus colegas, já que eram eles que, atuando como artistas, resgatavam para o grupo
um certo prestígio social sonegado, já que, na condição de pessoas com deficiência,
faziam parte de um segmento historicamente excluído.
É interessante que se fale um pouco sobre o regimento escolar do Instituto São Rafael
de 1934, encontrado no Arquivo Público Mineiro, a fim de que se possa compreender em
que contexto pedagógico se deu a formação daqueles músicos. O documento inicia-se
com os seguintes termos:
O interventor federal do Estado de Minas Gerais, usando das atribuições
que lhe confere o Decreto número 19.398 de 11 de novembro de 1930
do Governo Provisório da República, resolve aprovar o regulamento do
Instituto São Rafael.
Palácio da Liberdade em Belo Horizonte, 31 de agosto de 1934.
Benedito Valadares Ribeiro
Noraldino Lima. (OLIVEIRA, 1995).
O regimento começa por identificar os fins do Instituto e os cursos oferecidos. De acordo
com o documento, o Instituto São Rafael tinha por fim ministrar aos cegos de ambos
os sexos instrução primária, secundária, profissional e artística. Estavam previstos os
seguintes cursos: primário e secundário, ambos obrigatórios, musical e técnico profissional,
que eram de livre escolha dos alunos.
O curso primário, que era feito em quatro anos, abrangia os seguintes conhecimentos:
leitura e escrita em braille, língua pátria, cálculo elementar, morfologia, geometria, geografia,
corografia do Brasil, história, lições de coisas e higiene, educação física, ciências naturais,
música, datilografia, trabalhos manuais e artes domésticas.
Como curso técnico profissional, aos cegos eram ensinados os seguintes trabalhos:
fabrico de vassouras, escovas, espanadores e artigos similares; empalhação, colchoaria,
tapeçaria, tecelagem, encadernação, cartonagem, modelagem e tipografia, carpintaria
e marcenaria, afinação e reparo de pianos, jardinagem, trabalhos de agulha, costura,
artefatos de vime, culinária etc.
O curso secundário seria feito em cinco anos e obedeceria ao programa oficial no que
fosse acessível aos cegos (o documento encontrado não fornece maiores detalhes sobre este
particular). O curso técnico profissional, feito em dois anos, seria destinado a formar artífices,
completando todos os conhecimentos das artes e ofícios adquiridos no curso primário.
O curso de música, por sua vez, seria dividido em duas partes (teórico e prático) e se
iniciaria no segundo ano do curso primário. Sua duração seria de nove anos e compreenderia
as seguintes matérias: solfejo, harmonia, contraponto, fuga, orquestração, composição (curso
teórico), piano, harmônico, violino, violoncelo, contrabaixo, flauta, clarinete, piston, trombone
e outros; canto coral e canto solo (curso prático). É importante que se diga que, conforme
43
demonstra a documentação encontrada, a formação musical do ISR seguia à risca o programa
do Conservatório Mineiro de Música, uma vez que a musicografia braille colocava o aluno
cego em igualdade de condições com os demais estudantes.
Nota-se que a influência da música aparece de forma concreta logo no dia da inauguração
do Instituto São Rafael, quando, de acordo com a matéria publicada no Minas Gerais (diário
oficial do Estado) no dia seguinte, entre os convidados para a solenidade, estavam os
integrantes da jazz band “Engenho de Dentro”, do Instituto Benjamin Constant, que executou
alguns números em homenagem aos seus colegas mineiros (OLIVEIRA, 1995).
De maneira impalpável, a música vai aparecer nos mitos de origem marcados na memória
coletiva de seus ex-alunos. Em seu depoimento de novembro de 1990, o professor Jésus
Ferreira, aluno da primeira turma do Instituto São Rafael e mais tarde professor de teoria
musical dessa escola, conta que, ao ser apresentada a proposta da criação do Instituto,
ao Governador do Estado, Dr. Fernando de Mello Vianna, pelas famílias dos ex-alunos do
Instituto Benjamin Constant, Aires da Mata Machado, José Ferreira de Oliveira e João Gabriel
de Almeida, este teria ficado reticente quanto à real possibilidade de se promover a educação
de pessoas cegas. Mello Vianna, então, só teria se convencido da eficácia de tal projeto
ao assistir a um concerto do violonista Levino Albano da Conceição, também formado pelo
Benjamin Constant, que, de passagem por Belo Horizonte, fora levado até ele como uma
prova de que, havendo as condições técnicas e pedagógicas adequadas, os cegos poderiam
normalmente receber uma instrução de bom nível. Ouçamos um trecho desse depoimento:
Foi então, que aqueles companheiros nossos, Ayres da Matta Machado,
José Ferreira de Oliveira, João Gabriel de Almeida e suas famílias se
interessaram junto ao Governo de Mello Viana., Dr. Fernando de Mello
Viana; mas aí está também a colaboração de um grande violonista,
Levino Albano da Conceição. Esse Levino Albano da Conceição era
guitarrista e vivia dando concertos pelo país. Ele conhecia o Brasil todo
através de concertos. E quando ele - isso é muito interessante quando
ele vinha a Belo Horizonte realizar seus concertos, por efeito dele tocar
violão - e violão sempre foi um instrumento muito popular, muito querido
- tornou-se grande amigo da família Lúcio dos Santos. Veja você como
as coisas vão se encadeando. O Cristovinho, Dr. Cristóvão, que era
irmão do Dr Lúcio dos Santos, o patriarca, andava com o Levino Albano
da Conceição, Belo Horizonte inteiro, pra ele tocar violão. E nessas
andanças, foram até o Palácio da Liberdade, tocar para Mello Viana. Aí
está a música como papel preponderante na fundação do Instituto São
Rafael. Mello Viana ouvindo Levino Albano da Conceição disse: “não!
Nós temos de ter aqui, uma casa dessas que ensine o cego! Temos
que dar ao cego trabalho!” E tratou da fundação do Instituto São Rafael.
Alí, ele contou com diversos entusiástas da obra, como Sandoval de
Azevedo, como a família Lúcio dos Santos, especialmente José Lúcio
dos Santos. Puseram mãos a obra, e ele prometeu aos cegos que daria
o Instituto aos cegos (FERREIRA, 199014).
14
44
Entrevista realizada com o senhor Jésus Ferreira, em 1990, em Belo Horizonte, por Flávio Couto e Silva de Oliveira (mimeo).
Assim, de acordo com parte da memória coletiva daquela comunidade, cujos indícios
estão expressos na fala do Professor Jésus, a música foi o argumento fundamental que teria
convencido o Presidente do Estado a abraçar a causa da fundação daquela escola. Notase, pois, que a história da fundação do Instituto São Rafael é alicerçada basicamente sobre
três mitos constituídos nas diferentes versões que existem para o fato, a oficial e a expressa
na memória coletiva do grupo. A construção do primeiro mito apresenta aquela escola para
cegos como “uma obra verdadeiramente humanitária” do governo do Estado. O Instituto
São Rafael aparece em publicações de jornais da época, como “uma instituição caridosa
decentemente criada pelo atual governo do Estado, com a generosa preocupação de minorar
os sofrimentos dos cegos”, e as autoridades do Estado como “seus queridos amigos e
bondosos protetores”15. Em segundo lugar, temos o mito dos jovens cegos, João Gabriel
de Almeida, José Ferreira de Oliveira e Aires da Matta Machado, que teriam conseguido,
através da influência política e social de suas famílias, sensibilizar os governantes, no
sentido de criarem em Belo Horizonte uma instituição especializada no ensino de crianças
e jovens com deficiência visual. E, por último, observa-se o mito do violonista Levino Albano
da Conceição, músico que impressionara o Governador Mello Vianna.
Assim, é de se notar como a construção desses três mitos vai deslocando, gradativamente,
os méritos pela criação do Instituto em direção ao talento dos próprios cegos. Num primeiro
momento, o Instituto São Rafael seria uma benesse do Estado e, nesse caso, o cego era
simplesmente marginalizado de toda e qualquer iniciativa, figurando meramente como objeto
das benfeitorias estatais. Num segundo momento, o mito resgata a participação de cegos na
fundação do Instituto. No entanto, essa participação se dava unicamente em função da posição
social privilegiada, de suas famílias. O terceiro mito atribui, finalmente, uma participação ativa
de cegos na criação daquela escola, participação essa atribuída ao seu próprio talento — que,
no caso, foi o talento de um violonista. Verifica-se então, três versões, três mitos que compõem
paritariamente a memória coletiva e a identidade daquele grupo.
É interessante o paralelismo existente entre os mitos de origem da fundação do Instituto
São Rafael e aqueles relacionados ao surgimento de uma pedagogia especializada na
educação de cegos. Encontram-se em Buisson, referências à figura de François Lesueur. O
jovem Lesueur, que havia ficado cego com poucas semanas de idade, foi a pessoa através
de quem Hauy pôde provar os resultados de sua pedagogia. Desse modo, tal qual a história
do violonista Levino Albano da Conceição, Lesueur impressionara “os ministros de então, que
ficaram maravilhados”(BUISSON, 1887, p.160). Uma sociedade filantrópica que cuidava de
doze crianças cegas confiou-as, então, aos cuidados de Hauy, tendo surgido, desse modo,
a primeira escola de cegos em Paris. Em ambas histórias, encontram-se os mesmos três
elementos fundadores de uma memória coletiva mais universal dos cegos sobre as origens
do seu processo educativo. Tais elementos são os homens de Estado, a filantropia, todos eles
convergindo, finalmente, para o talento musical dos próprios cegos.
É muito interessante perceber na fala do Sr. Asdrúbal, um dos alunos da primeira turma
formada no Instituto São Rafael, cujo depoimento colhi em 1993, ocasião em que o depoente
contava aproximadamente oitenta anos de idade, os efeitos que a educação musical e a
posterior profissionalização na música tiveram em sua vida. É com essas palavras que ele
inicia o último trecho de seu longo e emocionante depoimento:
15
Minas Gerais. Ano 35, n.205, sexta-feira, 03/09/1926.
45
A música sempre foi uma coisa maravilhosa. Agora que eu estou velho,
que o tempo de moço já ficou para trás eu posso dizer que a música é tudo
quanto eu possuo. Só me dediquei a ela. É tudo até hoje. Hoje, é a minha
religião. Eu estudo todo dia como se eu ainda tivesse muitos anos pela
frente quando eu sei que não tenho, porque já estou com idade avançada.
Mas é tudo: meu gosto, minha vontade de aprender sempre. Para mim, a
música é uma religião. Gosto muito e estudo até hoje.
(...). Mas para entender a música, vai depender muito da sensibilidade da
pessoa, do modo de sentir: modo mental, psicológico. Então, para se ouvir
música, é preciso muita concepção e muita concentração. É o que eu
acho. Para se ouvir música, deve-se concentrar gostando, gostando!(...)
Mas há pessoas que são avessas à música porque não têm capacidade
de assimilação. Isso acontece também com a pintura, não é só com a
música. A música, para certas pessoas é indiferente embora seja a arte
das artes. Isso na minha opinião. Eu não enxergo a pintura e portanto não
posso discutir muito sobre isso. Mas pelo que eu percebo, a aceitação
que a música tem entre os videntes é tão grande, que eu acho que a
música é a arte suprema, é a mais querida. A música é uma coisa que
agrada de maneira geral, pois a música com seu ritmo é contagiante.
Quem é que não gosta de dançar? A música, que é composta de ritmo
e som, quando quer estimula qualquer um de nós, qualquer pessoa.
Mesmo quando não se é músico, ao se ouvir uma música, a pessoa
sente vontade de compartilhar, de dançar. É uma coisa psicológica e já
faz parte da gente, o Criador assim fez e por isso a música é uma coisa
transcendente. A música não foi discriminada! (Asdrúbal, 199316).
Considerações finais
Comparando-se a história da educação de deficientes visuais no mundo, inclusive a criação
do Sistema Braille de leitura e escrita, com a história da fundação e dos primeiros anos do
Instituto São Rafael, em Belo Horizonte M. G., constatou-se que a música cumpriu um papel
fundamental na inclusão social dessas pessoas. Nesse sentido, é interessante lembrar que a
proposta educacional de Valentin Hauy, a idéia de se criar um sistema de leitura tátil a ser utilizado
por cegos (inicialmente proposta por Charles Barbier) e a própria invenção e difusão do Sistema
Braille, deram-se no momento histórico de emergência do pensamento pedagógico moderno,
que teve como principais representantes, Rousseau, Kant, Pestalozzi, Frôebel e Schiller, o qual
defendia uma educação estética para o povo. Este pensamento pedagógico compoz e dialogou
profundamente com o também emergente movimento romântico, promovendo a valorização do
aprimoramento dos sentidos, para uma educação integral dos indivíduos.
A afirmação de Schiller de que para se resolver os problemas políticos de seu tempo, seria
importante se caminhar pela via estética, pois é pela beleza que se vai à liberdade, pode
ser compreendida como a expressão mais acabada desse ideário. Aí está, portanto, o nexo
indissolúvel entre a educação dos cegos, a música e a invenção do Sistema Braille.
No Brasil oitocentista, a influência de franceses na corte de D. Pedro II, contribuiu
decisivamente para a fundação do Imperial Instituto dos Meninos Cegos, bem como para
16
Entrevista realizada com o senhor Asdrúbal Teixeira de Sousa Filho nos meses de outubro e novembro de 1993, em Belo
Horizonte, por Flávio Couto e Silva de Oliveira (mimeo).
46
o pioneirismo do país, quanto a adoção do Sistema Braille, realizada no mesmo ano (1854)
em que a própria França o adotou oficialmente. Duas décadas mais tarde, nos estertores do
período imperial e no contexto da necessidade premente da expansão da educação pública,
é que as idéias pedagógicas referenciadas no movimento romântico chegam ao país. Com a
proclamação da República, em 1889, esse ideário pedagógico esteve na base de uma série
de reformas pedagógicas que se deflagraram durante as duas primeiras décadas do século
XX. Essa discussão encontra-se esmiuçada em minha tese de Doutorado, referenciada no
presente trabalho. A fundação do Instituto São Rafael, em Belo Horizonte, no ano de 1926,
deu-se portanto nesse contexto histórico, social e pedagógico.
Na elaboração do presente artigo, foi muito interessante perceber de que maneira a memória
dos primeiros alunos do Instituto resgatou um protagonismo dos próprios deficientes visuais na
criação daquele estabelecimento educacional. Para o ponto de vista da história da educação
artística, foi ainda mais interessante perceber o papel conferido pela memória, à música, não
só na educação, como também no processo de inclusão social daqueles que a estudaram.
Assim, no caso do grupo de deficientes visuais aqui estudado, é possível se inferir que a
música foi a via estética de que falava Schiller, no processo de conquista de sua liberdade,
leia-se, de sua inclusão sócio-educacional.
Referências
BUISSON, F. Dictionnaire de Pedagogie et d’Instruction Primaire. Paris: Librairie Hachette, 1887.2v.
DIDEROT, Denis. Carta sobre os cegos para uso dos que vêem. In: Os pensadores. Textos
escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, Tradução e notas de J. Guinsburg. 1985.
KANT, Immanuel. Sobre a pedagogia (tradução de Francisco Cock Fontanella). 3. ed.
Piracicaba: Editora Unimep, 2002.
LEMOS, Edison Ribeiro; VENTURINI, Jurema; ROSSI, Teresinha Fleury de Oliveira. Louis
Braille: sua vida e seu sistema. Edição Braille. 3ed. Fundação Dorina Nowill para Cegos. 2009.
Minas Gerais. Ano 35, n.205, sexta-feira, 03/09/1926.
OLIVEIRA, Flávio Couto e Silva de. “Histórias de um aprendizado: os signos de Deleuze nos
relatos de vida de músicos cegos”. Dissertação de Mestrado apresentada ao programa de
pós-graduação em Educação, da Faculdade de Educação da UFMG. (Biblioteca FAE/UFMG)
Belo Horizonte, 1995. p. 186.
OLIVEIRA, Flávio Couto e Silva de. “O Canto civilizador: música como disciplina escolar nos
ensinos primário e normal de Minas Gerais, durante as primeiras décadas do século XX”. Tese
de Doutorado apresentada ao programa de pós-graduação em Educação, da Faculdade de
Educação da UFMG. (Biblioteca FAE/UFMG) Belo Horizonte, 2004. p 227.
PESTALOZZI, Johann Heinrich. Cartas sobre educación infantil (estudio preliminar y traducción
de José Maria Quintana Cabanas). Madrid: Tecnos, 1996.
SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem numa série de cartas (tradução: Roberto
Schwarcz e Márcio Suzuki). 3. ed. São Paulo: Editora Iluminuras, 1995.
THOMPSON, Paul. A voz do passado - História oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
47
Deficiência física e atividade turística:
um contraponto entre a legislação e a realidade
Everton Ricardo dos Reis
Professor e Assessor do Núcleo Acadêmico do Centro Universitário
UNA –Belo Horizonte MG, Mestre em Turismo e Meio Ambiente pelo
Centro Universitário UNA, MBA em Turismo e Hotelaria pelo Centro
Universitário UNA , Graduado em Turismo pela UNIFOR – Centro
Universitário de Formiga.
Resumo
Este artigo faz uma análise das condições de acesso dos portadores de deficiência física à
atividade turística, traz um levantamento da legislação vigente quanto ao acesso dos mesmos
à atividade e analisa como o setor de turismo tem atendido a este público. Foi feito grupo focal
com deficientes e entrevistas individuais com os representantes de associações empresariais
de turismo e lideranças de associações. Foi possível perceber que grupo de deficientes
ainda possuem muitas dificuldades para a prática do turismo, principalmente pela falta de
acessibilidade e disponibilidade econômica. Percebe-se uma melhora nos problemas, mas o
acesso ao turismo ainda é uma das questões que merecem maior atenção do poder público e
de associações empresariais turísticas.
Palavra-Chave: Acessibilidade, Inclusão Social, Turismo Inclusivo.
Introdução
Diversos segmentos sociais tais como os sem terra, os índios e tantos outros excluídos,
estão lutando pelos seus direitos de inclusão na sociedade. Como esses, há um outro grupo
de excluídos conhecidos como “Pessoas Portadoras de Deficiência” (PPD), que também não
têm acesso aos serviços aos quais têm direito.
Dentro desse contexto, várias são as formas de se agrupar e de definir as deficiências,
levando-se em consideração, entre outros pontos, a forma como as pessoas se integram
na sociedade. A classificação mais difundida e aceita no Brasil é a proposta pela ONU e
compreende as seguintes categorias: a) Deficiência física; b) Deficiência sensorial: está
dividida em auditiva e visual; c) Deficiência mental; d) Deficiências múltiplas: concomitância
de um ou mais tipos na mesma pessoa. Dentre as várias classes de deficiência, a presente
pesquisa pretende estudar o grupo de portadores de deficiência física, pois se acredita que
este grupo é o que mais necessita de adaptações para sua inserção na atividade turística.
Apesar da importância do tema, constata-se a existência de reduzida literatura sobre a
situação do portador de necessidades especiais na prática do turismo e do lazer. Portanto, a
presente pesquisa buscará contribuir para a reflexão sobre esta questão.
O objetivo principal que motivou a realização deste trabalho foi analisar as condições
de acesso dos portadores de deficiência física de Minas Gerais à atividade turística. Este
objetivo foi desmembrado nos seguintes objetivos específicos: levantar a legislação vigente
no país relativa ao acesso dos portadores de deficiência física à atividade turística; analisar
como o setor de turismo tem atendido a este público a partir da percepção dos portadores
de deficiência física e de suas lideranças.
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Referencial Teórico
Deficiência e inclusão Social
Atualmente, não é difícil deparar-se com a desinformação e a presença de preconceitos e
discriminação que atingem as pessoas com deficiências. O tratamento destinado às pessoas
com deficiência variou conforme a sociedade, dentro de contextos histórico culturais e sócio
políticos distintos. Segundo Silva (1987), podem-se observar dois tipos de atitudes em relação
a esse público ao longo dos tempos: ora uma postura de aceitação, tolerância, apoio e
assimilação, ora uma atitude de exclusão, eliminação, menosprezo ou destruição.
Conceitua-se a inclusão social como o processo pelo qual a sociedade se adapta para
poder incluir em seus sistemas sociais gerais, pessoas com necessidades especiais e,
simultaneamente, estas se preparam para assumir seus papéis na sociedade. A inclusão social
constitui, então, um processo bilateral no qual as pessoas ainda excluídas e a sociedade
buscam em parceria equacionar problemas, decidir sobre soluções e efetivar a equiparação
de oportunidades para todos (SASSAKI,1999).
Para incluir todas as pessoas, a sociedade precisa ser capaz de entender às necessidades
de seus membros. O desenvolvimento (por meio da educação, reabilitação, qualificação
profissional, etc.) das pessoas com deficiência deve ocorrer dentro de um processo de inclusão
e não como um pré-requisito para estas pessoas poder fazer parte da sociedade, como se
elas precisassem pagar “ingressos” para integrar a comunidade (CLEMENTE FILHO, 1996).
A prática da inclusão social repousa em princípios até então considerados incomuns, tais
como: a aceitação das diferenças individuais, a valorização de cada pessoa, a convivência
dentro da mesma diversidade humana, a aprendizagem através da cooperação. A inclusão
social, portanto, é um processo que contribui para a construção de um novo tipo de sociedade,
através de transformações, pequenas e grandes, nos ambientes físicos (espaços internos
e externos, equipamentos, aparelhos e utensílios, mobiliário e meios de transporte) e na
mentalidade de todas as pessoas e do próprio portador de deficiências (SASSAKI, 1999).
O turista portador de necessidades especiais: legislação e normas
Diversas são as leis que protegem os direitos das pessoas com deficiência nas mais
diversas áreas de atuação. No Brasil, a partir de 1981, o “Ano Internacional de Atenção à
Pessoa Portadora de Deficiência”, algumas leis foram promulgadas com o intuito de garantir
o acesso e utilização dos espaços construídos. A constituição federal de 1988 é considerada
uma das mais avançadas do mundo no tocante a deficiência (BAHIA, 1998).
Mundialmente, a questão dos direitos humanos das PPD é um assunto de interesse discutido
no âmbito de vários organismos internacionais que se preocupam em estabelecer orientações
para a garantia destes direitos. Com este objetivo, a Organização das Nações Unidas criou
em 1982, o Programa de Ação Mundial para as Pessoas com Deficiência, tendo como tema
“Igualdade e Plena Participação”. Este programa visa orientar os países membros sobre as
políticas a serem adotadas em relação à equiparação de oportunidades para as PPD.
A Constituição Brasileira promulgada em 1988 representa um avanço na proteção dos
direitos dos cidadãos em geral e em especial das pessoas portadoras de deficiência.
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Nos artigos 1º e 3º, reza a Constituição que os fundamentos da nação são promover
a dignidade da pessoa humana e garantir o exercício da cidadania para que não haja
desigualdades sociais e sejam eliminados quaisquer preconceitos ou discriminações. No artigo
6º assegura a todos os cidadãos e, portanto, às pessoas com deficiência, direito à educação,
ao trabalho, à saúde, à segurança, à previdência social e ao lazer.
Segundo Melo e Megale (2005), a NBR 9050, que entrou em vigor em 30 de maio
de 2004, oferece critérios e parâmetros antropométricos para adaptação e construção
de edificações, mobiliários, espaços e equipamentos urbanos às condições ideais de
acessibilidade. Esta norma visa proporcionar à maior quantidade possível de pessoas,
independentemente de idade, estatura ou limitação de mobilidade ou percepção, a
utilização de maneira autônoma e segura do ambiente.
Turismo Inclusivo
Segundo Boiteux (2003), o Art. 2º do Código Mundial de Ética do Turismo menciona que as
atividades turísticas devem respeitar a igualdade entre homens e mulheres, devem tender a
promover os direitos humanos e especialmente os direitos particulares de grupos específicos
tais como crianças, idosos, deficientes, minorias étnicas e os povos autóctones
No Brasil, o Decreto nº 3.298, de 20/12/1999, publicado em 21/12/1999, que regulamentou a Lei
nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa
Portadora de Deficiência e consolida as normas de proteção. Tais normas de proteção asseguram
à pessoa portadora de deficiência o pleno exercício de seus direitos básicos, conforme o Art. 2º:
... à educação, à saúde, ao trabalho, ao desporto, ao turismo, ao lazer,
à previdência social, à assistência social, ao transporte, à edificação
pública, à habitação, à cultura, ao amparo à infância e à maternidade, e
de outros que decorrentes da Constituição e das leis, propiciem seu bem
estar pessoal, social e econômico (BRASIL, 1989).
Mas, se as leis brasileiras garantem aos deficientes o exercício de seus direitos quanto
ao turismo, cultura e lazer, a experiência do turismo inclusivo vai a passos lentos no país.
Essa é uma questão que, além de envolver uma série de reflexões e atitudes que fazem
alusão ao respeito à diversidade, à solidariedade, à aceitação das diferenças, também
precisa passar pela reengenharia de vários processos ligados ao turismo, para que a
inclusão possa ser efetivamente concretizada. É preciso, então, compreender como, na
prática, se desenvolvem tais processos.
A questão do turismo inclusivo no Brasil é de muita relevância, uma vez que ele pode ser
utilizado como uma ferramenta para diminuir as desigualdades sociais, através de atividades
que proporcionem educação, lazer e cultura às pessoas portadoras de necessidades
especiais. Essas atividades turísticas possibilitam o respeito às diferenças e necessidades
de cada indivíduo, independentemente de suas limitações, aliando harmonia e respeito às
comunidades e locais visitados.
O turismo inclusivo tenta se contrapor a esta imagem preconceituosa e até mesmo
discriminatória no que diz respeito às pessoas portadoras de necessidades especiais. Nesse
aspecto, o turismo inclusivo tem por objetivo incluir as pessoas portadoras de necessidades
especiais na sociedade, fazendo com que haja uma melhor integração e socialização.
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Metodologia
Optou-se pela realização de pesquisa qualitativa com caráter exploratório. Quanto à técnica
de pesquisa, os dados foram obtidos através de levantamento bibliográfico, levantamento
documental e pesquisa de campo. A pesquisa de campo foi dividida em três momentos:
1) Pesquisa com os deficientes físicos: Foi utilizada a técnica de grupo focal com 9
deficientes físicos, realizada em Belo Horizonte- Mg.
2) Pesquisa com líderes de entidades representativas de deficientes Físicos:
entrevistas individuais com 3 líderes de entidades, sendo elas: Coordenadoria Especial
de Apoio e Assistência à Pessoa com Deficiência – CAADE (Órgão governamental),
e as ONGs, Associação Mineira de Paraplégicos – AMP, e União dos Paraplégicos
de Belo Horizonte – UNIPABE.
3) Pesquisa com Representantes de Associações Empresariais do Setor de Turismo:
entrevistas individuais com os representantes de associações empresariais do
setor turístico que tiveram como principal objetivo discutir a preocupação em se
adaptar serviços ou produtos para os portadores de necessidades especiais. As
entrevistas foram com as seguintes associações: ABIH –MG – Associação Brasileira
das Indústrias Hoteleiras, ABRASEL – MG – Associação Brasileira de Bares e
Restaurantes.
Apresentação dos resultados da percepção dos diversos atores envolvidos
na pesquisa
Na questão do turismo como fator de inclusão social, a visão dos portadores de deficiência
física deixa transparecer a importância do turismo para melhoria da qualidade de vida,
aumento da auto-estima e descontração. Além desses aspectos, o grupo acredita que a
prática do turismo com pessoas de necessidades diversas possibilita a todos os indivíduos
uma reflexão sobre as diferenças. Esse último ponto abordado pelos PNE vai ao encontro
da perspectiva defendida pelas associações de deficientes, que acreditam que o turismo
pode ser considerado um fator “possibilitador” da inclusão social, na medida em que as
pessoas passam a ser mais vistas na sociedade, aumentando o convívio com os outros. As
associações empresarias não se manifestaram a respeito.
Quanto às principais dificuldades que o PNE encontra na prática do turismo, em primeiro
lugar, foi apontada pelos deficientes a questão da acessibilidade, seguida da adaptação dos
hotéis e dificuldade financeira. Já as associações dos deficientes apontaram, em primeiro
lugar, a dificuldade financeira seguida da acessibilidade. As associações empresarias,
novamente, não se manifestaram a respeito.
O papel das associações de deficientes e as empresariais é avaliada apenas pelas duas
associações. As associações empresariais do setor do turismo acreditam que seu principal
papel consiste em divulgar amplamente a legislação e as associações de deficientes afirmam
que suas ações são focadas na conscientização dos estabelecimentos sobre a questão da
acessibilidade e divulgação da legislação.
Ao serem questionados sobre a adaptação dos destinos turísticos, se os entrevistados a
consideram satisfatória, os deficientes afirmaram que a maioria dos locais apresenta ainda
pouca adaptação, considerando-a não satisfatória. Apesar de afirmarem que a adaptação
ocorre no sentido de atender a legislação, as associações empresariais consideram as
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adaptações satisfatórias, uma vez que a maioria dos melhores hotéis e restaurantes em Belo
Horizonte é adaptada. Entretanto, segundo os empresários, no interior não ocorre o mesmo,
já que a fiscalização é menor. Já as associações de deficientes concordam com o grupo
de PNE entrevistado de que a adaptação não é satisfatória, apesar dos espaços públicos
apresentarem mais adaptações do que os espaços privados.
Na questão do acesso à atividade turística em Minas Gerais pelos PNE, os deficientes
afirmam que o estado tem melhorado e apresentado pontos positivos na adaptação do setor
turístico, já que a Estrada Real trouxe melhorias significativas. Segundo as associações dos
deficientes, a situação tem melhorado, mas ainda está muito aquém do que poderia ser ou
deveria ser. As associações empresariais não se manifestaram a respeito.
Por fim, sobre o acesso à atividade turística no Brasil pelos PNE os deficientes afirmam que
a questão do deficiente tem melhorado em outros aspectos, entretanto em relação ao turismo o
cenário ainda é o mesmo. Para as associações dos deficientes a questão do acesso à atividade
turística tem melhorado em reflexo da evolução dos deficientes de maneira geral na sociedade,
em virtude do aperfeiçoamento da legislação que prevê a acessibilidade, por exemplo.
Conclusão
A pesquisa aqui realizada possibilitou-nos um mergulho nos problemas dos portadores
de deficiência relacionados à prática do turismo, trazendo-nos um entendimento das
condições de acesso e dos principais obstáculos enfrentados. A despeito da relevância do
tema proposto, na revisão de literatura foi possível perceber a carência de informações e
de pesquisas relacionadas à situação do PNE na prática do turismo e do lazer. O debate
a respeito dos portadores de necessidades especiais vem crescendo significativamente,
no entanto, ainda percebe-se uma lacuna no que se refere às discussões voltadas para o
acesso deste segmento ao turismo e ao lazer.
A falta de informação e divulgação da legislação normatizadora, bem como a baixa fiscalização
por parte dos órgãos públicos, faz com que bares e hotéis adaptem seus ambientes de forma
incorreta e insuficiente, não atendendo, na maioria das vezes, as necessidades dos deficientes.
A falta de orientação no momento da construção causa uma série de transtornos em que
dificilmente são remediados depois do edifício construído. Daí percebe-se a importância da
ação do governo em fiscalizar e cobrar multas para que as adaptações ocorram corretamente.
Contudo, essa questão não exime os empresários de se conscientizarem da importância
das adaptações no sentido de incluir o deficiente na sociedade de maneira ampla.
Pois percebe-se, através das entrevistas realizadas, a visão puramente comercial dos
empresários, que não consideram o PNE como um público consumidor, uma vez que o
retorno financeiro desse segmento é quase inexistente. Esse ponto é reforçado pelos
portadores de deficiência física, que afirmam que os empresários não os consideram um
segmento de mercado capaz de gerar retorno financeiro, já que o deficiente é quase
sempre associado à classe social mais desfavorável financeiramente.
Percebe-se nesse ponto uma via de mão dupla, pois os locais não são adaptados sob a
justificativa dos representantes dos empresários do setor turístico de que não existe uma
demanda suficiente que justifique o investimento nesse sentido. Entretanto, acredita-se que
além das dificuldades financeiras enfrentadas pelo segmento, a falta de adaptação contribui
para a baixa procura, uma vez que o acesso é dificultado e, no caso dos hotéis, os que
possuem adaptação normalmente são os estabelecimentos mais caros.
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É possível perceber nas informações coletadas a partir das entrevistas realizadas com o
grupo de deficientes físicos e com os representantes de suas associações os constrangimentos
que enfrentam quando freqüentam destinos turísticos como hotéis, restaurantes, teatros,
casas de show e edificações. Conforme exposto anteriormente, apesar das legislações que
regem sobre a questão da acessibilidade, esse continua sendo um dos principais obstáculos
enfrentado pelos deficientes no acesso à atividade turística. Segundo os relatos, percebe-se
uma melhora nos problemas enfrentados pelo deficiente de maneira geral, mas o acesso ao
turismo ainda é uma das questões que merecem maior atenção por parte do poder público,
das associações de deficientes e, principalmente, de associações empresariais turísticas.
Acredita-se que o quadro de exclusão do deficiente físico só será revertido com ações
coletivas (governo, iniciativa privada e sociedade civil) voltadas para a sensibilização e
conscientização da população. A falta de informação é um dos pontos principais da discriminação
e de preconceitos que atingem este segmento específico. Nesse sentido, acredita-se que
os órgãos públicos exercem importante papel na questão do acesso à informação, com
campanhas informativas e programas de sensibilização.
Referências
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 9050: Acessibilidade de Pessoas
Portadoras de Deficiências a Edificações, Espaço, Mobiliário e Equipamento Urbano: Rio de
Janeiro: ABNT, 1994.
BAHIA, S. R. et al. Município e acessibilidade. Rio de Janeiro: IBAM/DUMA, 1998. 68p.
BOITEUX, B. Legislação de turismo: tópicos de direito aplicados ao turismo. 2. ed. Rio de
Janeiro: Campus, 2003.
BRASIL. Constituição Federal, 1988.
__. Presidência da República – Casa Civil : Decreto Federal nº 3.298 de 20 de dezembro
de 1999. Disponível em <http://www010.dataprev.gov.br/sislex/paginas/23/1999/3298.htm>.
Acesso em 10 abr. 2007.
__. Presidência da República – Casa Civil: subchefia para assuntos jurídicos. Lei No 7853 de
24 de Outubro de 1989. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L7853.htm
>. Acesso em: 25 mar. 2007.
CLEMENTE FILHO, A.S. Da integração a inclusão. Jornal da APAE. São Paulo, 1996. 36 p.
REDE DE INFORMAÇÕES SOBRE DEFICIÊNCIA -Informações básicas sobre Deficiência
Física. Disponível em: <http://www.entreamigos .com.br> Acesso em: 12 mai. 2007.
MELO, L.A.L; MEGALE, V.J. O Estudo da acessibilidade como forma de turismo inclusivo na
infra-estrutura turística de Tiradentes – MG. IN: ENCONTRO NACIONAL DE TURISMO EM
BASE LOCAL, 2005, Recife. Anais... Recife, 2005.P26-29.
SASSAKI, Romeu K. Inclusão: construindo uma sociedade para todos. Rio de Janeiro: WVA, 1999.
SILVA, O.M. A Epopéia ignorada: a pessoa deficiente na história do mundo de ontem e de
hoje. São Paulo: Cedas, 1987. p.290.
53
Vida como patrimônio, inclusão como conquista:
educação e pesquisa no Museu de Ciências Morfológicas da UFMG
Maria das Graças Ribeiro
Professora, Doutora em Ciências da Saúde, Diretora do Museu
de Ciências Morfológicas e Coordenadora do Laboratório de
Pesquisa e Educação Inclusiva da UFMG
Resumo
Acessibilidade, inclusão social e de pessoas com necessidades especiais, têm ultrapassado
o status de tema atual de discussão e se tornado experiências concretas em muitas instituições
de ensino e outros setores da sociedade. Tais vivências apontam para mudanças no modelo
educacional, com reflexos na sociedade e contribuição para a formação de uma nova
consciência sobre democracia, direitos humanos, cidadania.
Palavra-chave: ciência;educação inclusiva; coleção didática.
Conhecimento e sensibilidade excluem a exclusão e a indiferença
A visão multidisciplinar da ciência moderna, além de abrir novas portas para o
conhecimento, tem alargado outras, permitindo reformular conceitos, reavaliar posturas,
reconstruir modelos. É bom lembrar que, ao contrário do que se acreditou em dado momento
da história da ciência, muitas das espécies que sobreviveram ao processo evolutivo não
foram as que possuíam indivíduos mais fortes, mas aquelas cujos membros se mantiveram
agrupados e solidários. E a despeito da grande diversidade biológica existente na natureza,
a convivência e a interatividade entre diferentes seres e grupos têm se mostrado essenciais
ao equilíbrio e à evolução coletiva.
No entanto, embora estes sejam modelos inegáveis, o desconhecimento e a falta de
percepção fizeram do homem autor ou vítima da exclusão social – sutil, velada, disfarçada
de indiferença ou de forma explícita – ao longo de toda a história das sociedades humanas.
E nem seria necessária a percepção apurada para constatar a sua presença e persistência
ao longo de séculos, com múltiplas razões e aparências: - da exclusão racial à exclusão
religiosa, motivando sangrentas e históricas batalhas; - da exclusão política à exclusão
cultural, fazendo de ideologias, visões de mundo e até da língua, fatores de dominação de
uns indivíduos sobre outros; - da exclusão dos economicamente menos favorecidos, em
regimes político-econômicos por vezes cruéis, à exclusão de cidadãos com deficiências e/ou
outras formas de limitação. Até mesmo o desenvolvimento científico e tecnológico, gerado
em uma sociedade historicamente excludente, tem deixado sua cota de excluídos. Milhares
de cidadãos, em várias partes do mundo, não têm acesso ao conhecimento, à escola, ao
trabalho, à arte, à cultura, à informação, aos serviços de saúde, aos produtos da ciência e
tecnologia, a decisões que lhe dizem respeito, com profundos reflexos sobre as sociedades,
sobretudo nos países menos desenvolvidos.
Entretanto, de forma visivelmente crescente, sinais de mudança desse paradigma vêm
ganhando força através de movimentos e iniciativas nacionais e internacionais pró inclusão
social, congregando diferentes setores da sociedade, grupos e instituições, visando
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ultrapassar as tentativas isoladas e promover a transformação sócio-político-educacional
tão almejada e que produza, como construção coletiva, uma sociedade realmente inclusiva,
verdadeiramente democrática.
Certamente que as transformações sociais não são imediatas e representam o resultado de
um processo amplo de conscientização dos próprios excluídos, apoiados por aqueles cidadãos
que já abrigam em suas consciências as sementes de um novo modelo de sociedade, baseado
na convivência com a diversidade, no reconhecimento das múltiplas inteligências e competências
do homem, na liberdade, na justiça e na solidariedade. Começam a ter visibilidade movimentos
e instituições para os quais o conhecimento é usado como fator de identificação e não mais
de dominação. A cultura revela a riqueza de suas múltiplas faces; crescem e se fortalecem
movimentos formadores de uma consciência ecológica e planetária, baseada no respeito e na
preservação de bens, tangíveis ou intangíveis, que pertencem a toda a humanidade.
No Brasil, assim como em outros países da América Latina, movimentos de caráter político
e social, reuniões didaticocientificas, projetos e iniciativas de inclusão socioeducacional
emergem de instituições públicas, privadas, organizações não-governamentais e representam
ações concretas que apontam para a construção de uma nova cultura, da vivência de um
novo tempo e de uma nova sociedade: inclusiva.
Nos museus e centros de ciência e cultura, a partir da década de 90, programas de inclusão
socioeducacional ganharam visibilidade e apoio, sensibilizando a sociedade e promovendo o
debate, a reflexão e o surgimento de outras iniciativas, tanto no Brasil como em outros países
latinoamericanos. Originadas, talvez, a partir do enfrentamento de graves e semelhantes
problemas sociais, a sensibilidade, a experiência e, sobretudo, a responsabilidade com que a
questão da inclusão social é tratada nos museus de muitos desses países é algo estimulante,
que salta aos olhos de qualquer observador “que tenha olhos para ver”!
Inclusão socioeducacional na UFMG
O Museu de Ciências Morfológicas (MCM) da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG) é um museu do corpo humano, que trabalha a vida como patrimônio e a saúde
como conquista a ser alcançada através do conhecimento e do compromisso de cada cidadão
consigo mesmo e com o ambiente no qual está inserido.
No entanto, a história desse museu teve início num contexto de exclusão, apontada por
cidadãos que, interessados em conhecer a estrutura e funcionamento de seu próprio organismo,
não encontravam espaço e, segundo eles, se sentiam excluídos desse conhecimento, restrito
aos profissionais da área de saúde e que lhes garantia poder sobre a vida dos demais.
Registrando a demanda crescente da comunidade, pesquisadores da UFMG se sentiram
desafiados a buscar solução para tal impasse e propuseram o desenvolvimento do projeto de
pesquisa que resultou na criação do Museu. Espaço democrático de pesquisa e educação
científica, com enfoque na promoção da saúde e preservação da vida, o MCM foi mais longe na
missão de incluir a comunidade ao conhecimento do organismo humano, ao iniciar sua acolhida
e diálogo também com grupos minoritários e/ou de pessoas com limitações e deficiências.
Idosos, cadeirantes, pessoas com deficiência auditiva, mental, se tornaram frequentes no
Museu: não para serem “assistidos”, mas para exercerem seu direito ao conhecimento da
vida, de seu próprio corpo e de suas limitações.
Apesar do estranhamento da comunidade universitária da época (as universidades ainda
mantinham o modelo hegemônico de produção e repasse de conhecimento), o MCM foi
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construindo a sua história, conquistando credibilidade e visibilidade, à medida que se firmava
como espaço democrático, comprometido com a construção de uma nova cultura, na qual o
conhecimento é direito de todos os cidadãos e o acesso a ele deveria ser construído.
O trabalho de educação para a saúde e para a vida, bem como o de conscientização do
homem sobre seu pertencimento à natureza a ser preservada e sua responsabilidade nesta
preservação tornou-se um ícone do Museu. Como espaço aberto à comunidade, sem restrições
ou pré-requisitos, o acervo e exposições do Museu são totalmente voltados para a constituição
macro e microscópica do corpo humano. Isto atrai grande número e diversidade de público,
tanto de Minas Gerais como de outros estados e países, dentre eles profissionais que buscam
referência para atenderem a demandas semelhantes, igualmente intensas e represadas.
Ensinar e aprender o conteúdo da Morfologia Humana e áreas afins, de forma suave,
atraente e interativa, para um público com interesses tão diversificados continua sendo um
desafio para o Museu de Ciências Morfológicas. Suas atividades atuais estão voltadas para o
apoio ao ensino formal, numa tentativa de ressignificar o ensino de ciências; para a educação
científica não formal; para a produção e popularização do conhecimento através de diferentes
tipos de mídia, em atendimento aos interesses da comunidade.
Em seu trabalho de inclusão e promoção social, o Museu continua se dedicando,
de modo especial, à inclusão de pessoas com necessidades educacionais especiais,
atendendo-as tanto em sua sede, no Campus Pampulha/UFMG, quanto em outras
instituições e eventos, conforme demanda.
Outros museus brasileiros, de diferentes tipologias, formam, atualmente, verdadeira
rede de acessibilidade científico-cultural. Sensibilidade e esforço motivam suas equipes,
que buscam facilitar o acesso de pessoas com necessidades educacionais especiais às
suas atividades. Réplicas de peças de arte, textos explicativos em braile, mapas e telas em
relevo, oficinas de arte, informações em áudio, réplicas de animais e plantas, simulações
de ambientes naturais, são algumas das iniciativas dos museus visando a inclusão desse
público em suas atividades.
A “deficiência” de um mundo distante da realidade
Embora soubéssemos ser a deficiência visual fator limitante para muitos cidadãos em
todo o mundo, e milhões de brasileiros fazem parte desse grupo, até a década de 80, a
convivência com alunos deficientes visuais não fazia parte de nosso universo acadêmico na
UFMG. Tivemos alunos cadeirantes, em espaços nada acessíveis, e sabíamos da presença
de estudantes cegos em alguns cursos, como pedagogia, letras, matemática.
Foi necessário adentrar esse mundo, até então desconhecido, para perceber que a deficiência
visual, somente nos últimos anos vem se tornando “visível” para a sociedade brasileira, cujo
olhar se revela mais maduro e os cidadãos mais conscientes de que nenhuma deficiência pode
restringir o direito do indivíduo à escola, seu acesso à informação, à cultura, ao desenvolvimento
científico e tecnológico, nem tampouco representar fator de exclusão social.
Entretanto, apesar de legislações (inclusive a Constituição Brasileira) garantirem às pessoas
com limitações e/ou deficiências todos os direitos de cidadão, na realidade elas ainda sofrem
discriminação e dificuldades em sua formação e inserção no mercado de trabalho. Os deficientes
visuais contavam com poucas vagas para a educação básica e o número desses estudantes
no ensino médio era ainda mais reduzido. Segundo um jovem de 18 anos ”...não sabemos se
é mais difícil chegar à universidade, permanecer nela ou lutar por um espaço no mercado de
trabalho”! Pouquíssimos chegavam ao terceiro grau e os que conseguiram procuravam, segundo
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suas próprias expressões, “cursos nos quais possamos sobreviver e concluir”.
Nos cursos das áreas biológicas e da saúde não havia registro de deficientes visuais, até
a chegada do Luis Edmundo Costa (citação autorizada) matriculado no curso de Fisioterapia
da UFMG. Sua presença nos flagrou como muitos outros professores de escolas públicas:
despreparadas, material didático inexistente, laboratórios inadequados e acessibilidade restrita
à boa vontade. Para não responder quem era “deficiente” ali, evitamos nos perguntar.
Mas como boa vontade se multiplica, várias mãos se somaram e a solução encontrada
(produção de desenhos em relevo), ainda que de forma insipiente, cumpriu seus objetivos e
deu início ao projeto “a célula ao alcance da mão”. Além do bom desempenho do Luís Edmundo
em testes de apropriação cognitiva do conteúdo, de sua integração ao ambiente do laboratório,
do envolvimento de sua turma nesse processo e da agregação de estudantes de outros cursos
e unidades acadêmicas da UFMG, e da atuação surpreendente do Luís como monitor dos
colegas videntes, os resultados foram tão significativos que induziram a proposta de ampliar as
pesquisas, experimentar novos materiais e metodologias com outros deficientes visuais.
Segundo Luis Edmundo, ”é preciso pedir passagem às dificuldades e vencer”. Mas só isso
não bastou naquele momento: aquele projeto de pesquisa e educação inclusiva em Ciências
Morfológicas foi silenciado por oito anos, por falta de recursos. Nessa época estava em
desenvolvimento o projeto de pesquisa gerador do Museu de Ciências Morfológicas, o que
anestesiou um pouco a decepção.
Após a abertura do Museu ao público, com sua proposta inclusiva e suas exposições visuais,
mais uma vez surgiu a necessidade de desenvolver novos recursos para atender aos visitantes
deficientes visuais. Resgatado o projeto “a célula ao alcance da mão”, que passou a ser
desenvolvido em parceria com o Museu, a Coleção produzida tornou-se “eficiente” ferramenta
de inclusão socioeducacional de deficientes visuais ao estudo do corpo humano.
“A célula ao alcance da mão” arte e educação inclusiva no estudo do
corpo humano
A proposta inclusiva e integradora que motivou o desenvolvimento de uma nova tecnologia
socioeducacional, com metodologia própria, fez com que o ensino e aprendizagem do organismo
humano deixasse de ser problema para professores e estudantes deficientes visuais. Pesquisando
diferentes materiais e técnicas, foi criada uma Coleção Didática de modelos tridimensionais e
em relevo, representativos do corpo humano, em suas dimensões macro e microscópicas.
Com 63 peças, a referida Coleção reproduz uma célula com suas organelas, todos os tipos
de tecidos, órgãos e sistemas orgânicos. Com suas formas, dimensões e texturas capazes
de possibilitar a exploração e identificação tátil das diferentes estruturas orgânicas, esses
modelos biológicos, esculpidos em gesso, resina plástica, metal e outros materiais, passaram
a ser experimentados e aprovados (ou não), por professores e estudantes deficientes visuais,
que se tornaram parceiros definitivos dessa construção.
Como a nova metodologia propõe o estudo do organismo humano de forma atraente,
interativa, lúdica e inclusiva, a utilização da referida Coleção por estudantes deficientes
visuais e videntes enriqueceu o ensino de Ciências, possibilitando ainda a utilização de outros
sentidos, como tato e audição, no ensino e aprendizagem do corpo humano, tanto em sala de
aula e laboratórios, quanto em museus e centros de ciência e cultura.
Legendas em braile e tinta para cada peça da Coleção facilitam a sua compreensão e
possibilitam o trânsito relativamente independente do público alvo, bem como o retorno às
peças quantas vezes julgar necessárias. Também fazem parte da Coleção 01 livro didático,
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em braile e tinta, com informações teóricas essenciais à compreensão do conteúdo em estudo
e a descrição detalhada de cada modelo da Coleção, de modo a facilitar a sua utilização
e contribuir para a independência dos estudantes/visitantes; e 01 audiolivro, que além de
possibilitar a liberação de ambas as mãos para explorarem os modelos, enquanto ouvem as
informações correspondentes, também contribui para o processo de aprendizagem.
A referida Coleção de arte-educação vem mostrando potencialidades bem mais amplas
do que aquelas inicialmente previstas. Encontra-se disponível a toda a comunidade no
Laboratório de Pesquisa e Educação Inclusiva do Museu de Ciências Morfológicas e está
sendo disponibilizada também para escolas, museus e centros de ciência e cultura, estações/
parques de ciências, em diversas cidades e estados brasileiros, além de outros países.
O Laboratório de Pesquisa e Educação Inclusiva do MCM tornou-se um centro de referência
no debate, reflexão e atendimento a profissionais, estudantes e instituições com projetos de
inclusão de deficientes visuais em atividades socioeducacionais. E o Luís Edmundo, num
encontro casual dez anos depois, tomou conhecimento da Coleção, dos novos rumos do
projeto e novamente se tornou parceiro na divulgação da tecnologia assistiva desenvolvida.
Resultados promissores e mudança de “visão”
Vencendo desafios e protagonizando um novo modelo de produção e difusão de
conhecimento, o Programa de Educação Inclusiva do Museu de Ciências Morfológicas vem
mudando a “visão” de todos nós e contabilizando outros resultados qualitativos, como a coconstrução de conhecimento, envolvendo deficientes visuais em suas pesquisas e ações
educativas; - o diálogo e a troca real de experiências entre a equipe universitária e professores
do ensino fundamental e médio, cuja participação competente, madura e compromissada vem
tornando a proposta deste projeto mais próxima do cotidiano de suas salas de aula; - a
avaliação e o controle de qualidade como práticas pedagógicas de rotina, tanto no laboratório
de reprodução da Coleção Didática como na implantação da metodologia; - a participação
ativa de um museu de ciências mediando e contribuindo para a solução de problemas
relacionados tanto à educação formal quanto não formal; - a integração entre estudantes com
necessidades educacionais especiais e os demais estudantes das turmas envolvidas nesse
processo, possibilitando aos deficientes visuais a oportunidade de mostrarem sua eficiência
e atuação positiva junto aos colegas videntes; - o aumento do número de jovens deficientes
visuais no ensino médio (de 4 em 2000 para 49 em 2005 e 73 em 2009), dentre outros.
Soma-se a tudo isto o debate e as reflexões, conscientizando e envolvendo principalmente
a comunidade universitária, que se torna cada vez mais atenta e ativa, com atitudes próativas (e menos reativas) com relação aos deficientes visuais. Nas exposições da referida
Coleção Didática, embora ainda constitua fato isolado, visitantes espontâneos buscam o
monitoramento dos deficientes visuais, numa atitude que ainda surpreende ambas as partes.
Muitos estudantes das primeiras séries de escolas da rede privada, desconhecendo o alfabeto
braile, a língua brasileira de sinais (LIBRAS), se surpreendem ao ver colegas comunicando-se
de forma diferente da habitual.
Tais vivências preparam para experiências futuras, certas de que a inclusão social que
todos esperamos terá que passar pela escola, pela convivência com as diferenças, respeito
ao direito de todos e às necessidades de cada um.
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Só assim se conseguirá envolver cada vez mais a sociedade que, de ostensiva se tornou
indiferente, mas já mostra sensibilidade e fraternidade, deixando-nos sonhar com a convivência
humana saudável entre diferentes, com a consciência de que “todos temos o direito de ser
iguais sempre que a diferença nos inferiorizar; e o direito de ser diferentes sempre que a
igualdade nos descaracterizar”.
Desdobramentos e abertura de novos horizontes
O desenvolvimento da tecnologia assistiva “A célula ao alcance da mão” tem possibilitado
ampliar as ações de pesquisa e educação científica inclusiva do MCM/UFMG, gerando novos
projetos. A criação de um Laboratório de Ciências e a implantação da Coleção Didática no
Instituto Benjamim Constant (RJ) trouxe experiências que extrapolam qualquer expectativa. O
Curso de Formação de Mediadores treinou mais de vinte estudantes deficientes visuais para
atenderem ao público (deficiente visual e vidente), do próprio IBC e da comunidades do entorno.
Esse acontecimento foi, para professores, técnicos e monitores envolvidos, oportunidade rara
de ultrapassar qualquer experiência acadêmica e exercitar a fraternidade humana e o valor do
afeto em ações educativas transformadoras.
Um subprojeto desenvolvido no Laboratório de Pesquisa e Educação Inclusiva (LaPEI)
do MCM envolve, além de monitores do Museu, universitários com baixa visão (inclusive
estudante de medicina da UFMG), na produção de material didático para atendimento a
estudantes das áreas biológicas e da saúde, com visão subnormal. O material produzido atlas com imagens de lâminas histológicas capturadas e impressas em aumento que atenda
a esses alunos; gravação em CD ROM do banco de imagens; disponibilidade do LaPEI para
estudantes de outras faculdades e universidades, de Minas e outros estados, orientados por
mediadores preparados para esse atendimento.
O projeto de pesquisa sobre a “qualidade de vida de idosos cegos de Belo Horizonte” vem
sendo desenvolvido desde 2003, analisando faixa etária, aspectos como nível de dependência,
condições de saúde, inserção na família, condições socioeconômicas, principais demandas,
dentre outros aspectos. A Coleção Didática do Corpo Humano centraliza muitas atividades
educativas, tanto no LaPEI quanto em outras instituições (nesse caso utilizando Coleção
Itinerante), atendendo à demanda de conhecimento desse público. Além de resultados
publicados em eventos científicos, está sendo editado, o livro que aborda temas de interesse
dos idosos em geral e que será publicado também em audiolivro, possibilitando o acesso
desse público, uma vez que 93% dele não lê braile.
Outro desdobramento do Programa de Educação Inclusiva do MCM é a ITINERÂNCIA DA
COLEÇÃO “A célula ao alcance da mão”, que possibilita atender outros municípios, estados e
eventos, a demandas diversas de conhecimento da estrutura e funcionamento do corpo humano,
independentemente de faixa etária, condições físicas e nível sociocultural. Com agenda anual lotada,
o LaPEI tem buscado recursos para viabilizar o atendimento a todas as solicitações, principalmente
do interior de Minas. Pessoas com limitações e/ou deficiências sempre estão presentes, mas o
enfoque do trabalho continua sendo a inclusão e integração de todos os cidadãos.
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Referências
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Janeiro, Revista Benjamim Constant, 15 ed.abr. 2000.
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Petrópolis. R.J.: Vozes, 2006. p. 151
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Necessidades educacionais especiais do autista
Amadeu Roselli-Cruz
Psicólogo, Mestrado em Psicologia Social, Doutorado em
Lingüística, Professor do Programa de Pós-graduação em
Neurociências e Comportamento da Universidade Federal de
Minas Gerais
Resumo
Ser autista significa viver num mundo próprio com um grau de inteligência que pode ir de
um grau baixo até a normalidade. Sua linguagem pode também apresentar grandes variações
implicando na necessidade educacional especial mais seletiva em função do grau de limitação.
É mais frequente em homens. A escola inclusiva deve contemplar projetos psicopedagógicos
individualizados para as crianças autistas. A medicação psicofarmacológica é de grande ajuda
em muitos casos, assegurando o convívio social e escolar. E o bom domínio da linguagem pelo
autista é fator de prognóstico mais favorável. O grande problema psicopedagógico da escola
é como fazer a avaliação de desempenho escolar desse aluno. Ele precisa ter outro tipo de
avaliação onde sua socialização seja mais importante do que conteúdos memorizados.
Palavra-chave: Autismo, Síndrome de Asperger, necessidades educacionais especiais,
avaliação escolar nas necessidades educacionais especiais, psicopedagogia.
Em 1942, L. Kanner descreveu um novo quadro patológico que afetava crianças e afirmou
que este pertencia ao grande grupo de doenças classificadas como esquizofrenia. Os principais
sintomas então descritos foram autismo, obsessividade, estereotipias de comportamento,
alterações na comunicação e na linguagem, e ecolalia. Kanner teve o cuidado de diferenciar o
quadro que descrevia daqueles então classificados como retardos mentais.
Esse conceito perdurou por 35 anos, quando ER Ritvo avançou o conhecimento considerando
o quadro descrito como uma síndrome relacionada com um transtorno do desenvolvimento
da criança, acarretando deficiência cognitiva (Assumpção Junior e Kucznski, 2007). 75% dos
autistas têm problemas com a cognição.
Posteriormente, observou-se que algumas crianças poderiam ser classificadas à parte,
como a atual Síndrome de Asperger, que difere, sobretudo, quanto ao nível mental e de
inteligência, que é normal, em geral. Além da manutenção da linguagem em termos bastante
aceitáveis, embora mantenha algumas alterações de pragmatismo e de prosódia (Riviere,
2008). A Síndrome de Asperger pertence ao quadro geral dos distúrbios autísticos, mas tem
particularidades próprias. Não há atraso significativo no desenvolvimento da linguagem,
embora haja atraso no desenvolvimento social e ocupacional.
As crianças podem apresentar interesses muito específicos e restritos aos quais se dedicam com
grande intensidade, abandonando outros assuntos. Se gostarem de um esporte lêem tudo sobre ele,
chegando a saber detalhes mínimos. Nesses casos, podem apresentar uma memória que chama
a atenção da família e da escola. Apresentam comportamento social e emocional impróprio que
determinam problemas na interação interpessoal. Isto vai se revelar um grave problema na escola.
Ainda dentro do espectro do autismo e dos Transtornos Invasivos do Desenvolvimento,
temos a Síndrome de Rett, e outros Transtornos Desintegrativos da Infância, como psicoses
infantis, e quadros de neurose graves.
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Epidemiologicamente, o autismo é observado entre 1 a 5 crianças entre cada 10.000
crianças da população geral. É mais frequente entre os meninos, na proporção de 2
a 3 deles para cada menina. Embora alguns autores afirmem poder se diagnosticar o
autismo em redor dos 18 meses, em geral é próximo dos 3 anos de idade que se tem
diagnosticado os quadros. Esta diferença pode ser atribuída à gravidade dos casos.
Quanto mais grave for, mais precocemente a família, o professor da escola da criança e
o pediatra podem desconfiar da patologia e apurar o diagnóstico.
Assumpção Junior e Kucznski (2007) destacam o fato de a inteligência da criança autista poder
ser distribuída ao longo de um continuum, onde algumas têm um déficit intelectual muito intenso,
enquanto outras manifestam uma inteligência normal. A curva de frequência é muito maior nos
valores de inteligência mais baixa. Esse fato é de extrema importância para a escola que nunca,
jamais, pode ter apenas um projeto psicopedagógico global de atendimento para as necessidades
educacionais especiais dos alunos autistas. O projeto precisa ser individualizado.
Na história do autismo, existe um período, nas décadas de 60 e 70, que se prolongou por
parte dos anos 80, onde conceitos equivocados sobre o tema trouxeram muitos problemas éticos,
familiares e escolares. A psicanalista inglesa Frances Tustin (1975) publicou uma série de livros e
artigos em revistas especializadas apregoando uma razão etiológica para o autismo sem nenhuma
comprovação científica. A autora atribuía o autismo ao péssimo relacionamento entre mãe e filhos
desde a gestação. A psicanalista afirmava existir mulheres portadoras de “útero frio” que durante
a gestação afetavam a criança determinando vários problemas ao longo do desenvolvimento do
feto, inclusive o autismo. O “útero frio” foi uma metáfora tomada como literal por muitas pessoas,
querendo significar que aquelas mães não desejavam os seus filhos durante a gestação. E sugeria
até uma rejeição por eles. Isto influenciaria o desenvolvimento do feto acarretando patologias.
A ciência jamais comprovou essa afirmação do “útero frio”. Porém, depois da divulgação
da teoria equivocada, inúmeras mães, no mundo todo, sentindo-se com culpa, dedicaram-se
à psicoterapia, outras tentaram o suicídio e certo número conseguiu se matar. Muito tempo
depois, em 1994, antes de morrer, Tustin pediu desculpas pelas afirmações anteriores. Muitas
horas de psicoterapia foram gastas no mundo com aquela sua afirmação.
É claro que existem mães que rejeitam a gravidez e a criança quando ela nasce, e essa
rejeição pode trazer problemas para a criança. Mas, em definitivo, isso jamais determinará
que uma criança seja portadora de autismo. O avanço da ciência demorou um pouco, mas
finalmente chegou corrigindo essa falha.
A escola inclusiva e o autista
O estado de Minas Gerais aprovou em 1995 a Lei 11.802/95 que dispõe sobre a promoção
da saúde e reintegração social do portador de sofrimento mental. E em 2006 a Secretaria de
Estado da Educação lançou o Projeto Incluir – Diretrizes da Educação Inclusiva em Minas
Gerais. Ambos os projetos dizem respeito à criança autista. A Escola Inclusiva, adotada
pelo estado de Minas Gerais, procura atender ao aluno autista tanto quanto aos demais
que apresentam necessidades educacionais especiais, como os deficientes físicos, visuais,
auditivos, Síndrome de Down, pessoas com altas habilidades, entre tantos outros que precisam
dos mesmos cuidados (Roselli-Cruz, 2009).
O dito no parágrafo acima está de acordo com documento fundamental da UNESCO
(1994) chamado Declaração de Salamanca que convidou os países membros a planejar uma
educação que incluísse aqueles alunos que têm necessidades educacionais especiais no
ensino regular. Incluindo os autistas entre estes.
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A linguagem do autista e a escola
Para os especialistas o domínio da linguagem é um fator importante para a elaboração de
um prognóstico escolar e social do autista. Quanto melhor o seu domínio da linguagem e da
comunicação, melhor será sua socialização e desempenho escolar.
Dentre os distúrbios de linguagem mais frequentes encontramos a ecolalia (repetição mecânica
de frases ou palavras ditas pelo outro); inversão pronominal (confusão entre a primeira e a
segunda pessoa do singular, eu/tu. Pode ocorrer confusão também entre o eu e o ele); linguagem
irrelevante; rigidez de significados (em palavras que têm vários significados, o autista se fixa em
apenas um e não admite os demais. Por exemplo, Rosa que pode ser uma flor ou o nome de
uma mulher. Ele aceita apenas um dos significados e rejeita o outro, necessitando então que
seus educadores encontrem um sinônimo); dificuldade de compreensão de metáforas e ironias
(isto implica em grande dificuldade em entender uma piada, brincadeiras típicas da idade, jogos
de linguagem e linguagem social corriqueira), podendo chegar até ao mutismo e dificuldade
completa de manter uma conversação (Assumpção Jr e Kuczynski, 2007).
O autismo e o projeto psicopedagógico da escola
O projeto psicopedagógico da Escola Inclusiva que atende alunos autistas deve começar
com uma avaliação diagnóstica que afira a potencialidade de crescimento da criança portadora
do transtorno invasivo do desenvolvimento. A capacidade comunicativa e o uso da linguagem
que pratica devem ser avaliadas pois serão importantes no projeto.
Escolas de pequeno porte e salas com menos alunos são desejáveis, embora nem sempre
seja possível. É necessário informar aos colegas de sala de aula a maneira correta de interagir
com os colegas autistas. Deve haver orientação constante aos professores e pais por parte de
psicólogos, pedagogos e psicopedagogos, além de, em muitos casos, fonoaudiólogos.
O sucesso da Escola Inclusiva, no caso dos alunos autistas, depende muito do envolvimento
da sua família. Esse envolvimento é a diferença entre o sucesso e o fracasso na escolarização
do autista. Em 1966 surgiu o TEACCH – Treatment and Education Autistic and Related
Communication Handicapped Children (Tratamento e Educação para Autistas e Crianças
com Déficits. É uma prática psicopedagógica fundamentada na teoria comportamental usada
em todo o mundo e que envolve tanto o tratamento quanto a escolaridade. Esse sistema se
preocupa em estabelecer rotinas de atividades escolares, familiares e sociais para serem
cumpridas. Riviere (2008) afirma que a escola que atende alunos autistas deve ter preocupação
com a diversidade e com a personalização do ensino.
O grande desafio para a escola é como fazer a avaliação destes alunos. Ela deve ter o rigor
necessário da avaliação em geral e, ao mesmo tempo, a flexibilidade que contemple a peculiaridade
deste aluno. Em provas fundamentadas na memorização um aluno com a Síndrome de Asperger,
que se interessou pelo assunto da prova, terá um dos melhores rendimentos, se comparado
com os colegas. Porém, um autista clássico que mal se comunique terá rendimento muito baixo.
Considerando que a permanência dele na escola é necessária e melhor do que o abandono
escolar, e que a convivência com os demais colegas é produtiva para todos, a avaliação do seu
desempenho escolar deve ser diferente. Muito mais do que avaliar se ele sabe o valor do X na
prova de matemática, ou os afluentes da margem direita de tal rio da Amazônia, ele pode ser
avaliado em função do seu progresso na socialização e descoberta de novos interesses. Essa
avaliação é um desafio que nossa escola ainda não superou. Mas vai conseguir um dia.
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Não podemos esquecer que alunos portadores de quadros dentro do espectro autista
podem graduar-se na universidade, fazer mestrado, doutorado, e até ganhar o Prêmio Nobel,
como aconteceu com John Nash. Em 1994 ele ganhou o Prêmio Nobel de Economia por suas
pesquisas sobre a Teoria dos Jogos, um complexo jogo matemático aplicado à economia.
Essa história está retratada no filme “Uma mente brilhante.”
A medicação psicofarmacológica ajuda a controlar alguns quadros do autismo como a
irritabilidade, agressividade, alterações do sono como a insônia e as alterações do humor.
A medicação corretamente prescrita e administrada trás grande ajuda na aprendizagem dessas
crianças. Os efeitos colaterais da medicação, sempre presentes, são irrelevantes se considerarmos
os benefícios que ela trás para a qualidade de vida do autista, sobretudo na escola.
O tratamento é sempre multidisciplinar e dele deve fazer parte um projeto psicopedagógico
em que toda a família (pai, mãe, irmãos e agregados), professores e amigos que convivem
com a família, devem participar.
Em resumo, o atendimento do aluno autista depende de políticas públicas que o estado
de Minas Gerais já vem adotando desde algum tempo. É benéfico para a sociedade e para o
aluno autista que ele participe de uma escola com perfil de Escola Inclusiva.
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perspectivas. São Paulo: Atheneu.
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Cadernos da CAADE
Sociedade e Pessoas com Deficiência
Ano II - número 2 - junho de 2010
Organizadores: Ana Lúcia Henriques Grossi, Flávio Couto e Silva de Oliveira e Maria Cesarina
Noronha Magalhães
Projeto gráfico, diagramação e revisão ortográfica: Assessoria de Comunicação da SEDESE
Impressão: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais
Tiragem: 3.000 exemplares
O conteúdo dos artigos publicados nesta edição é de inteira responsabilidade de seus
autores não expressando, necessariamente, a opinião da CAADE/SEDESE.
CAADE
Coordenadoria Especial de Apoio e Assistência à Pessoa com Deficiência
Coordenador: Flávio Couto e Silva de Oliveira
Superintendente de Planos e Projetos Específicos: Ana Lúcia Henriques Grossi
Superintendente de Políticas para Pessoas com Deficiência: Nelson Luiz dos Santos Garcia
Diretora de Promoção da Acessibilidade: Maria Alice Pessoa Cançado
Diretora de Desenvolvimento Inclusivo: Juliana de Melo Cordeiro Chiari
Gerente de Programas Especiais: Maria Christina Ottoni
Apoio técnico: Janaína Nunes Maciel, Josiane Cecília Ferreira Agapito, Maria Cesarina
Noronha Magalhães
Gerente do Posto CAADE/SINE: Rosele Lemos de Carvalho Guerra
Atendentes: Ângela Cristina Alves de Souza, Elizabeth Pelucci Garcia, Mariela R. S. Costa,
Marina Pimentel Oliveira, Patrícia da Costa Arvelos Rosa, Thamires Fernanda de Oliveira
Apoio administrativo: Carla Nésia da Silva Duarte, Darlan Ferreira Costa, Flavio Henrique
Alves da Costa, Gláucia Tavares Arco Verde, Glória Fernandes Parreiras, Iranis Sampaio
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