Grupo de Transmissão e Estudos de Psicanálise

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Grupo de Transmissão e Estudos de Psicanálise
Entretantos, 2014 Grupo: DE TRANSMISSÃO E ESTUDOS DE PSICANÁLISE -­‐ GTEP Integrantes: Ana Lucia Panachão, Célia Klouri, Cleide Monteiro, Elaine Armênio, Elcio Gonçalves, Fátima Milnitzky, Helena Albuquerque, Iso Ghertman, Leonor Rufino, Maria Aparecida Barbirato, Marli C. Vianna, Nanci de Oliveira Lima, Paula Francisquetti, Rodrigo Blum, Rosanglea Rodrigues Gouveia e Tatiana T. Inglez Mazzarella Interlocutora: Elaine Armênio Articuladora da Área de Clínica e Instituições: Rita Cardeal “DIFERENÇA E TRANSMISSÃO: A EXPERIÊNCIA DE CIRCULAÇÃO DAS TRANSFERÊNCIAS NO GTEP” Apresentadora: PAULA PATRICIA S. N. FRANCISQUETTI Agradecemos aos organizadores do evento “Entretantos” a oportunidade de pensar o trabalho do GTEP junto ao Departamento de Psicanálise. Vamos apresentar um texto multifacetado, elaborado por várias pessoas em diferentes momentos. Nota-­‐se entre as facetas uma conversa, uma reflexão sobre nosso campo partilhado, nosso comum, nosso entretantos. Há quase 30 anos começamos como um grupo de estudos para membros do Departamento e, ao longo dos anos, passamos a nos ocupar mais e mais da transmissão da psicanálise fora dos limites da cidade de São Paulo. Somos quinze membros e uma aspirante a membro. Trabalhamos em grupo e com grupos ao transmitir a experiência psicanalítica. É fundamental na história do GTEP a marca do trabalho coletivo na esfera da transmissão. A entrada no GTEP acontece por meio de um processo seletivo aberto para os membros e aspirantes a membro do Departamento de Psicanálise e guiado por alguns critérios como: desejo, disposição para o trabalho grupal, experiência de análise, de supervisão e de transmissão. Sem esse procedimento não seria possível compor nosso grupo com diferentes estilos de exercer a psicanálise. Instituto Sedes Sapientiae
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Nosso campo de trabalho tem sido o extramuros do Instituto Sedes Sapientiae. Transmitimos a psicanálise em diversas localidades, no momento: Fortaleza, Goiânia, Lorena, S J Rio Preto e Alphaville. Um grande desafio. Em cada uma delas nos deparamos com diferentes composições das transferências e do movimento psicanalítico; com diferentes modos de vida, entrelaçamentos de histórias e musicalidades: vários sotaques, vários ritmos, várias cadências, várias formas de usar nossa língua comum, o português. Consideramos parte da formação, nossa e dos analistas em formação conosco, o convívio e a interlocução com uma diversidade de psicanalistas e de leituras de Freud. Saltam como características de nosso trabalho: o grupal, a circulação em diversas posições, uma abertura ao fora, a pluralidade, o deslocamento no espaço e a criação de espaços de escuta e de fala sobre a clínica e a teoria psicanalíticas. Algumas de nossas questões são: como o fora produz diferença no trabalho que realizamos? Que marcas deixamos nas localidades? E como manter entre nós e nas localidades um diálogo vivo da psicanálise com o mundo? Para acompanhar o trabalho em cada local formamos um grupo que nomeamos de retaguarda. Esse grupo reúne-­‐se quinzenalmente para acompanhar a concepção e os fios condutores do trabalho. Os membros das retaguardas revezam nas posições de coordenação de módulo e coordenação institucional, respeitando os princípios de circulação e horizontalidade. Dessa maneira, privilegiamos a formação permanente de cada um de nós e a transferência com o trabalho do Gtep. Trabalhamos, na maioria das vezes, num regime concentrado de 8 horas mensais, distribuídas em seminário teórico, seminário teórico-­‐clínico e supervisão. Nos intervalos entre uma e outra viagem, processamos, nas retaguardas, tanto questões inerentes à teoria e à clínica, como àquelas referentes a dinâmica do grupo, às dificuldades do coordenador e aos problemas interinstitucionais. Instituto Sedes Sapientiae
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Lidamos com processos e passagens. Constituímos assim, um lugar entre pares, um lugar de partilha, de elaboração, de alteridade, onde cada coordenador pode construir uma narrativa sobre sua experiência de transmissão com um grupo e uma localidade específicos. Pares nessa jornada, ao passar ou pegar o bastão, estamos atravessados e imantados pelos laços institucionais e transferências daqui e de lá. Nos sustentamos sobre quatro eixos fundamentais: a análise pessoal, a experiência clínica, o percurso teórico e o dispositivo grupal como lugar de terceiro. Insistimos: a diferença e a circulação de lugares norteiam nosso trabalho. Entendemos que diferenças potencializam o trabalho psíquico, possibilitam a criação de novas formulações e evitam a institucionalização de concepções e condutas. Ainda, nossa inserção institucional convoca-­‐nos a pensar a dialética presente entre o individual e o coletivo, entre o suporte transferencial que o grupo e a instituição nos oferecem e a solidão própria ao exercício de nossa prática. Nosso desafio é realizar o trabalho de formação como um fazer de liberdades, como um processo, tal qual uma sessão de análise, onde cada encontro é singular, sem padronizações, abrindo espaço para a criação de pensamentos, e para a descoberta e construção de novos saberes. Na psicanálise o conhecimento se dá em aberto, as palavras não recobrem todo o real e os fatos psíquicos trazem o surpreendente e o enigmático. A linguagem não é toda, há sempre algo de inominável que trinca o discurso abrindo as frestas por onde circulam a pulsionalidade e o desejo. No caso da formação em psicanálise está em pauta não apenas a transmissão de uma teoria, mas sim de uma experiência, onde está implicada a transferência. Freud destacava que o ensino da psicanálise trazia dificuldades por sua própria natureza: regulação pela transferência. Ou seja, ele já postulava que se todo ensino em geral é atravessado pela transferência, o da psicanálise em particular, não teria como escapar a esta questão. Somos herdeiros destas marcas iniciais e fundantes da transmissão na e da psicanálise. Pensar sobre elas, analisá-­‐las é parte imprescindível de nosso trabalho de transmissão. Instituto Sedes Sapientiae
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Em relação à transferência, Roustang (1987) destaca que quando algo dela se resolve para o analista, ele pode dizer em nome próprio e não apenas sob a proteção e em referência ao mestre. Há aqui uma importante distinção entre herança, no sentido da transformação do legado em algo próprio, e a posição de discípulo numa relação assimétrica e alienante. É da posição de apropriação que nos interessa transmitir. Há algo de intransferível quando sustentamos o desejo de transmitir a psicanálise psicanaliticamente, desejo esse que nos interroga sobre nossa própria formação. A experiência do inconsciente só pode se dar pela via da análise em transferência e nesse sentido comporta uma dimensão impossível de ser transmitida. Mas como transmitir o impossível? Como uma transmissão para analistas em formação, num espaço fora da situação analítica, pode manter a vivacidade da psicanálise, sua função instituinte, criadora? No dispositivo da retaguarda questionamos e pensamos nosso trabalho. É um lugar mais instituinte do que instituído. Ele leva-­‐nos a abrir espaço para o novo, o que requer o manejo do aspecto resistencial sempre presente na transmissão que se faz em transferência. É um lugar de exploração de inquietações, por exemplo, como buscar um entendimento dos fatos psíquicos que leve em conta as intensidades, seu caráter enigmático, assim como a radicalidade da psicanálise implicada na sexualidade e na tragicidade do sujeito. Piera Aulagnier ajuda-­‐nos a pensar nesse impasse da transmissão ao dizer que o analista que se ocupa da transmissão precisa estar atento para não “consolidar sua posição de depositário do saber”, pois, “será ao preço dessa vigilância que o projeto do docente poderá partilhar o projeto do analista sobre um ponto: conduzir o discípulo tão longe quanto se possa num processo de desalienação. Porém o analista não pode pretender, o que estaria em total contradição com sua teoria, que do lugar que ocupa enquanto docente, esteja em posição de interpretante frente ao inconsciente do discípulo”. (p.54) Instituto Sedes Sapientiae
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A formação psicanalítica no contexto institucional tem sido marcada pelo pensamento dogmático, a partir das transferências e resistências a Freud e de Freud, mostra-­‐nos Kupermann no texto “Transferências cruzadas, transferências nômades. Sobre a transmissão da psicanálise e as instituições psicanalíticas”. Muitas vezes, nas instituições psicanalíticas, teria prevalecido a obediência, a submissão e a transferência maciça, alienada, em detrimento dos ideais psicanalíticos, como a abertura para a fala, a escuta do desejo, o combate às hipocrisias culturais e a diminuição do sofrimento psíquico. A problemática da transmissão é atravessada a todo momento por questões transferenciais e éticas. Violências institucionais terríveis foram feitas em nome do “bem” em contextos fascistas e ditatoriais. A quebra das ilusões narcísicas, a sexualidade infantil, o questionamento de determinados ideais, mobilizariam resistências. Para Kupermann (1996), a manutenção da moralidade estaria ligada à proibição do pensamento, via proibição da crítica e da discussão. Ele denuncia, assim, a lógica da ilusão, lógica esta da qual nem mesmo a psicanálise está livre. Nem alienação, nem liquidação total da transferência, mas criação de um espaço de jogo, propõe-­‐nos. Supõe que na atualidade formam-­‐se grupos mais heterogêneos e mais livres das exigências do super-­‐eu. É interessante pensarmos sobre o quanto assumimos essa heterogeneidade e sobre as nossas exigências dentro do Gtep e do Departamento de Psicanálise. O quanto conseguimos produzir uma psicanálise não dogmática e inventiva? Entendemos de fato o que isso significa? Radmila Zygouris, psicanalista radicada na França, em entrevista para a revista Percurso 45, fala em uma psicanálise não dogmática, em cultura da heterogeneidade; na possibilidade de circulação por vários autores pós-­‐freudianos e numa leitura desses autores mais fresca, leve e menos absoluta. Nem ecletismo, uma das formas do amortecimento, nem sistema total, totalizante, mas pluralidade, livre pensar e primado da clínica, da vida. Instituto Sedes Sapientiae
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Em relação a questão da heterogeneidade, Kupermann sugere a transferência nômade. O que seria isso? A condição para um novo arranjo institucional que permita o livre trânsito por diferentes teorias, mestres e associações. Diz ele: “A transferência nômade é a possibilidade de transferir de forma múltipla, no âmbito institucional da psicanálise, permitindo assim a preservação da singularidade da experiência psicanalítica no processo de formação. Por meio de um embaralhamento dos códigos, dos contratos e das redes de compromisso estabelecidas pelas certezas adquiridas, um movimento de desterritorialização é criado de modo a que se reexperimente, em outros lugares transferenciais, a diferença e a angústia da incerteza que marcam a experiência psicanalítica em seu momento inaugural, e que devem marcar toda nova análise”. O trabalho coletivo, sabemos, não é fácil numa sociedade como a nossa que privilegia o individualismo, o salve-­‐se quem puder, estimulando as rivalidades e o marketing pessoal. Afinal, é possível o trabalho coletivo entre analistas? Segundo Birman, a fraternidade num coletivo só é possível quando este é formado por sujeitos que se reconhecem insuficientes. Só assim os sujeitos podem ajudar-­‐se mutuamente numa troca solidária entre "faltantes", o oposto da auto-­‐suficiência tão apregoada nestes tempos neo-­‐liberais. Justamente por este conflito permanente entre o reconhecimento de nossa precariedade (e a consequente disposição de sustentar um laço fraterno com o outro) e a pressão contínua que a auto-­‐suficiência imaginária faz a cada um é que o laço fraterno está sempre em risco e exige trabalho em dois eixos: cada um em relação a si mesmo e cada um em relação aos demais. Consideramos ser possível um livre pensar, o lidar com as diferenças, as diferentes transferências, a inventividade, apesar das resistências, da angústia, do desamparo e da pulsão de morte que nos rondam. Nossa experiência aponta que um analista requer a escuta de outros para trabalhar seus pontos cegos, para manter sua movência, seu trabalho psíquico, sua possibilidade de jogo; para manter-­‐se vivo, Instituto Sedes Sapientiae
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manter viva a escuta de si e do outro. Daí a importância que damos ao trabalho coletivo, aos grupos de pertinência, onde o não saber e o livre pensar possam ter lugar, como numa análise. Quando não se tem direito ao não saber e a pesquisa, o dogmatismo prolifera. Onde há dogmatismo, há alienação, masoquismo, proliferação do mortífero e proibição do pensamento. Um trabalho de transmissão deve fomentar o livre pensar, a desalienação. É essa a experiência a ser transmitida. Segundo Radmila Zygouris: “Pensar é antes de mais nada fazer a experiência sensível do pensamento… o pensamento é um sentir que precede a linguagem e a formatação pela linguagem… é algo que despenca sobre nós, uma experiência fulgurante”. Grande desafio, uma transmissão em grupo que possibilite a experiência do inconsciente, o encontro das forças pulsionais com a palavra, a palavra-­‐raio, palavra renovada, inédita, experiência prazerosa de uma análise. Instituto Sedes Sapientiae
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Referências Bibliográficas AULAGNIER, PIERA. Um intérprete em busca de sentido – I. São Paulo: Escuta.1990, pg-­‐54. BIRMAN, JOEL. “Insuficientes, um esforço a mais para sermos irmãos!” in Função fraterna. Maria Rita Kehl (org). Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. KUPERMANN, D. Presença sensível. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. KUPERMANN, D. Transferências Cruzadas: uma história da psicanálise e suas instituições. Rio de Janeiro: Revan, 1996. ROUSTANG, F. Um destino tão funesto. Rio de Janeiro: Livraria Taurus Editora, 1987. ZYGOURIS, RADMILA. “Por uma psicanálise laica”. Percurso: Revista de Psicanálise/ Instituto Sedes Sapientiae. AnoXXIII, n.45 (2010). São Paulo, Instituto Sedes Sapientiae. Instituto Sedes Sapientiae
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