EDUCAÇÃO PARA A CIDADANIA: CONFLITO POLÍTICO - Nepp-DH

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EDUCAÇÃO PARA A CIDADANIA: CONFLITO POLÍTICO - Nepp-DH
EDUCAÇÃO PARA A CIDADANIA: CONFLITO
POLÍTICO-PARTIDÁRIO-RELIGIOSO NA ESPANHA
Desde a transição espanhola da ditadura para a democracia, os partidos políticos de direita e
de esquerda têm se alternado no poder. Na direita, o Partido Popular-PP e, na esquerda, o
Partido Socialista Operário Espanhol-PSOE fizeram maioria nas eleições legislativas, em
distintos períodos. Como o país tem um regime monárquico-parlamentarista, o partido que faz
a maioria do parlamento (ou consegue liderar uma coalizão vitoriosa nas eleições legislativas)
indica o Presidente do Governo, título equivalente ao de Primeiro Ministro da Grã-Bretanha,
da França ou da Itália.
Desde o fim do franquismo, em 1975, e a nova Constituição, de 1978, o partido que indica o
Presidente do Governo tem logrado a aprovação de uma lei sobre a educação, que, se não
muda toda a situação anterior, resulta na reforma de aspectos importantes. É assim que se
pode entender a conflituosa convivência da disciplina “Educação para a Cidadania” com a
disciplina “Religião Católica”.
A inclusão de “Educação para a Cidadania” no currículo das escolas públicas e privadas
conveniadas foi determinada pela Lei Orgânica de Educação, aprovada em 2006. Essa lei foi
resultado de projeto do Partido Socialista, que havia ganho a eleição, em 2004, o que
acarretou a oposição dos partidos que perderam as eleições, em especial o Partido Popular.
“Educação para a Cidadania” seria obrigatória para duas séries da Escola Primária e duas da
Escola Secundária Obrigatória, e não entraria no lugar de nenhuma disciplina do currículo. A
nova disciplina buscava a sintonia do currículo da escola espanhola com os de outros países
europeus, cujos currículos escolares contemplavam conteúdos análogos, na modalidade
transversal ou na modalidade disciplinar.
A justificativa oficial para a nova disciplina foi sintetizada em artigo de autoria de Luís Maria
Cifuentes Pérez, Professor Catedrático de Filosofia, publicado no ano de aprovação da Lei
Orgânica. Trata-se de “Educación para la Ciudadania y los Derechos Humanos”, em El País,
18/09/2006. O núcleo da argumentação é que a transversalidade não deu os resultados
esperados no currículo espanhol, por diversas razões. A principal delas foi o magistério da
escola secundária ser constituído de professores dotados de formação em disciplinas
específicas. Por isso, eles não estavam em condições de lidar com conteúdos transversais às
diversas disciplinas específicas. Impunha-se, então, que houvesse docentes dotados de
formação no conteúdo em questão, que se dedicassem ao seu ensino, com o mesmo preparo e
empenho dos seus colegas das demais disciplinas. Mas, para Cifuentes, além da dimensão
intra-escolar, havia uma outra, de caráter político, que justificava a inclusão de “Educação
para a Cidadania” no currículo espanhol: “Para atuar democraticamente, é muito oportuno
conhecer os elementos teóricos, históricos e sociais que contribuíram para a construção da
democracia na Espanha e no mundo; porque a conduta democrática não é espontânea e
irreflexiva, não é uma atitude inata no indivíduo, senão que os valores e normas democráticos
necessitam de uma aprendizagem no âmbito familiar e escolar para que o exercício da
cidadania seja consciente e maduro.”
Para a implantação da disciplina foram transferidos docentes em atividade, com formação
compatível, mas a ampliação do quadro seria feita com os egresso de uma nova habilitação
criada nas Faculdades de Ciências de Educação, nas modalidades presencial e a distância.
Do outro lado do campo político, estabeleceu-se uma aliança do Partido Popular com a alta
hierarquia do clero católico, que mobilizaram seus seguidores para duas atividades práticas: o
boicote à disciplina, isto é, levar os pais a retirarem os filhos das aulas de “Educação para a
Cidadania”; e acionar a justiça pelo reconhecimento da legitimidade desse boicote. Para isso,
desenvolveu-se toda uma argumentação com base na “objeção de consciência”, ou seja, o
conteúdo da nova disciplina contrariaria um dispositivo fundamental da Constituição
espanhola – o direito dos pais de decidir sobre a educação religiosa e moral dos seus filhos.
Além do alto clero espanhol, o Vaticano emitiu declarações que apoiavam os opositores,
como, por exemplo, o Primeiro Secretário da Congregação para a Doutrina da Fé (ex-Santo
Ofício), Cardeal Angelo Amato, que declarou: “Não deve ser o Estado que impõe as
convicções religiosas e éticas, mas a própria consciência.” O jornal ABC, um dos três mais
importantes da Espanha, deu total e contínuo apoio ao boicote. Esse jornal é muito ligado à
hierarquia da Igreja Católica, e inclui o suplemento semanal “Alfa y Omega – Semanário
Católico de Información”.
Foram autores do principal processo judicial contra a disciplina o Fórum Espanhol da Família,
a Fundação Universidade São Paulo, a Associação Profissionais pela Ética e a Confederação
Católica de Pais de Alunos. Mas a Federação Espanhola de Religiosos do Ensino não apoiou o
boicote e preferiu um entendimento com o Ministério da Educação sobre o conteúdo da
disciplina. Não houve manifestações de dirigentes religiosos não católicos.
Os principais temas contenciosos eram família, sexualidade, imigração, política e economia.
As matérias publicadas no jornal ABC, em janeiro-fevereiro de 2009, permitiram a
constatação de que a questão mais sensível era a que ligava sexualidade e família,
particularmente a possibilidade, já legal na Espanha, da união civil de pessoas do mesmo
sexo, com os direitos e os deveres das famílias constituídas pela união de um homem e uma
mulher.
Aquele jornal e os processos na justiça pinçaram dos livros didáticos de “Educação para a
Cidadania”, vendidos no mercado, definições e opiniões consideradas atentatórias à família,
entendida na forma valorizada pela Igreja Católica. Um dizia que os jovens deveriam ser
injustos para com os adultos, senão seriam sempre seus imitadores, e a sociedade não
progrediria. Outro dizia, sem rejeição, que uma coisa era o sexo biológico, com o qual
nascemos, outra a identidade sexual que construímos ao longo de nossas vidas. Pior ainda,
que há famílias de pessoas homossexuais, que podem deixar descendência. Outro livro dizia,
ademais, que os imigrantes pobres e sem documentos estão em situação de miséria e
discriminação, na Espanha, ao contrário dos que provêm de países ricos. Mas, a pérola mais
rara foi a de um prefácio que afirmava ser o objetivo de “Educação para a Cidadania” retirar a
educação das mãos dos pais, “normalmente muito reacionários”, e dos padres “desviantes”.
(ABC, 30/01/2009)
Diante de exemplos desse tipo, dois tipos de reações polarizaram as opiniões. A reação
otimista dizia que apesar dos livros conterem erros, a consciência dos jovens encontra seus
próprios caminhos, sempre no melhor sentido, senão a Espanha teria sido franquista para todo
o sempre. A reação pessimista dizia que esses exemplos eram representativos de toda a
literatura de Educação para a Cidadania, que se resumia em um “catecismo socialista”, de
efeitos catastróficos para a sociedade espanhola.
Cumpre esclarecer que, na Espanha, os livros didáticos não são produzidos pelo Estado nem
pelas universidades públicas. O procedimento é parecido com o brasileiro, isto é, passa
totalmente pelo mercado. Os livros são escolhidos pelos professores dentre as ofertas das
editoras privadas, e o governo os compra e distribui às escolas e aos alunos. São só as editoras
privadas que os editam, nenhuma editora estatal, o que não dá base para o argumento de que o
Estado impõe uma concepção ética. A maioria dos livros adquiridos pelo governo é das
grandes editoras, com um conteúdo amplamente aceito, o que para elas é condição econômica,
pois não lhes interessa publicar livros que não encontrem compradores. Alguns livros têm, de
fato, passagens sensíveis, mas são pouco escolhidos pelos professores. Aliás, os pais podem
objetar contra os livros adotados, nos conselhos escolares.
Segundo o Ministério da Educação, os alunos que boicotaram “Educação para a Cidadania”
foram apenas 150 em todo o país (os opositores falavam no dobro desse número), mas as
ações judiciais contra a disciplina chegaram a quase duas mil. Alguns tribunais regionais
deram ganho de causa ao boicote, outros não. Por isso, a questão foi para o Tribunal Supremo,
a mais alta instância da justiça espanhola, que, em 28/01/2009, decidiu por ampla maioria (22
X 7) favoravelmente à constitucionalidade da disciplina.
A argumentação do Tribunal Supremo foi taxativa, mas cuidadosa. A cidadania é totalmente
compatível com o direito à liberdade religiosa e ideológica proclamada pela Constituição
espanhola. Portanto, a disciplina “Educação para a Cidadania” é legal e deve ser freqüentada
por todos os alunos. Ainda que o Estado não possa levar sua competência educativa tão longe
que invada o direito dos pais de decidir sobre a educação religiosa e moral dos seus filhos,
tampouco os pais podem levar esse direito tão longe que se desvirtue o dever do Estado de
garantir uma educação no respeito aos princípios democráticos de convivência e aos direitos e
liberdades fundamentais. Portanto, é legal tratar de temas como, por exemplo, os novos
padrões sexuais existentes na sociedade e as novas formas de família reconhecidas pela
legislação espanhola. Mas, o Tribunal deixou claro que a disciplina não pode ser utilizada para
inculcar pontos de vista controvertidos. Os projetos, os textos e as explicações não devem
descambar para a doutrinação. Diante dos temas sobre os quais não exista consenso moral, o
ensino deve guardar “a mais estrita objetividade”.
As crianças e jovens que haviam deixado de freqüentar a disciplina retornaram às salas de
aula, em fevereiro de 2009, mas as lideranças das entidades objetoras prometeram recorrer ao
Tribunal Constitucional da Espanha e ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Os
dirigentes do Partido Popular prometeram suprimir “Educação para a Cidadania” do currículo
logo que chegarem ao poder. A posição do Vaticano foi manifestada pelo Cardeal Zenon
Grocholewski, Prefeito da Congregação Pontifícia para a Educação Católica, ao tomar
conhecimento da decisão do Tribunal Supremo: “Estamos preocupados. É um direito essencial
que os pais possam educar seus filhos de acordo com sua convicções.” (ABC, Madrid,
29/01/2009)

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