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ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Andréa Ana do Nascimento77 Resumo O Rio de Janeiro se destacou pelo programa de reforma policial Delegacia Legal, que buscou proporcionar tanto mudanças estruturais como culturais no trabalho das delegacias. A proposta era modificar a maneira de operar de uma delegacia de polícia, qualificar o atendimento ao cidadão e resgatar a função investigativa da polícia através da padronização arquitetônica, técnica e operacional. No entanto, as etnografias e as avaliações feitas sobre as Delegacias Legais indicam que, apesar das mudanças já estarem em andamento, diversos aspectos da prática policial tradicional ainda permanecem ativos. Dentre eles, podemos destacar o tratamento desigual dado aos seus usuários. Durante a pesquisa, acompanhei as atividades de uma Delegacia Legal priorizando o exame dos registros de ocorrência e, através da observação participante, tive contato direto com os policiais e os usuários dessa delegacia. A experiência permitiu identificar as formas de tratamento dadas aos diversos tipos de ocorrências registradas e também aos diferentes usuários. Aparência, nível de escolaridade e renda são elementos considerados na hora de realizar o atendimento policial. Neste artigo – através de registros de ocorrência relatados ao longo trabalho – apresento uma descrição e uma breve análise de situações cotidianas de exclusão, discriminação e tratamento desigual dado aos usuários das Delegacias Legais. Palavras-chave: polícia civil, Delegacia Legal, reforma. Abstract Rio de Janeiro if detached for the program of police reform Legal Police station, which it searched to provide as many structural changes as cultural in the work of the police stations. The proposal was to modify the way to operate of a police station, to characterize the attendance to the citizen and to rescue the investigative function of the police through the standardization architectural and operational technique. However, the ethnographies and the evaluations made on the Legal Police stations indicate that, despite the changes already being in progress, diverse aspects of the practical traditional policemen still remain active. Amongst them, we can detach the different treatment data to its users. During the research, I followed the activities of a Legal Police station prioritizing the examination of the occurrence registers and, through the participant comment; I had direct contact with the policemen and the users of this police station. The experience allowed to also identifying the forms of treatment given to the diverse types of registered occurrences and to the different users. Appearance, level of education and income are elements considered in the hour to carry through the police attendance. In this article - through registers of occurrence told to the long work - I present a description and one brief analysis of daily situations of exclusion, discrimination and different treatment given to the users of the Legal Police stations. 77 A autora é mestranda no Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pós-graduada em políticas públicas de segurança e justiça criminal pela Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora assistente do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU/UFRJ) e do Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas (NUFEP/UFF), e participante do PRONEX. Moderadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 91 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Key words: Civil police, Legal Police Station, reformation. Este trabalho é parte de uma reflexão iniciada com a pesquisa "Práticas policiais, 'direitos humanos' e os processos de construção de cidadania: um estudo 92 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ sobre o Programa Delegacia Legal", coordenada pelo Prof. Dr. Roberto Kant de Lima e financiada pela FAPERJ. Este artigo busca realizar uma análise sobre a reforma realizada na Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro (PCERJ) através da implementação do Programa Delegacia Legal (PDL). A proposta do Programa era melhorar a atuação policial diante das novas demandas por segurança. Mais adiante, o Programa Delegacia Legal (PDL) será apresentado com mais detalhes. Neste momento, cabe contextualizar brevemente o surgimento da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro. Em seu estudo sobre a Polícia do Rio de Janeiro, Holloway (1997) explicita que o controle social deixou de ser exercido pelas hierarquias personalistas para ser executado por uma autoridade impessoal das instituições estatais. Porém, o autor demonstra que estas duas lógicas – a personalista e a impessoal – continuaram a existir e a se complementar nas práticas policiais. Se, por um lado, temos uma instituição impessoal e universal, por outro, constatamos que ela atua de forma a reprimir as transgressões de regras que foram criadas pelas próprias elites políticas, reafirmando assim a continuidade das relações hierárquicas da sociedade. O inimigo da polícia do Rio de Janeiro era a própria sociedade – não a sociedade como um todo, mas os que violavam as regras de comportamento estabelecidas pela elite política que criou a policia e dirigia sua ação. Pode se ver esse exercício de concentração de força como defensivo, visando proteger as pessoas que fizeram as regras, possuíam propriedade e controlavam instituições públicas que precisavam ser defendidas. Mas também se pode vêlo como ofensivo, visando controlar o território social e geográfico – espaço público da cidade – subjugando os escravos e reprimindo as classes inferiores livres pela intimidação, exclusão ou subordinação, conforme as circunstâncias exigissem (Holloway, 1997:50). Deste modo, percebemos que a criação do aparato policial veio para suprir as necessidades de uma burguesia comercial brasileira e defender seus interesses, ao invés de servir e proteger a sociedade como um todo. Naquele período, era necessário manter o controle social dos indivíduos, salvaguardando a ordem estabelecida pelas elites. Sendo assim, as elites brasileiras apropriaram-se de uma instituição burocrática, a polícia, para atender aos seus próprios interesses, contrariando a lógica das instituições burocráticas modernas que têm por base a organização e a impessoalidade de suas ações. À medida que a sociedade foi se tornando mais complexa, fluida e impessoal, novas técnicas se fizeram necessárias para suplementar o controle dos senhores sobre os escravos e para estender esse controle às crescentes camadas inferiores livres. O novo Estado tratou de suprir essa necessidade, e o sistema policial herdado do final do período colonial evoluiu para reprimir e excluir aquele segmento da população urbana que pouco ou nada recebia dos benefícios que o liberalismo garantia para a minoria governante (Holloway, 1997:251). 93 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Em seu trabalho, Kant de Lima (1995) demonstra como a polícia civil muitas vezes atua arbitrando os conflitos através da sua discricionariedade. Em muitos casos, os fatos ilícitos não são registrados e acabam sendo administrados pelo próprio delegado. A polícia é que decide se determinado indivíduo é suspeito ou não para a sociedade. Na maioria das vezes, essa suspeita decorre do status quo do indivíduo e não de uma ação criminosa. A investigação da polícia é contaminada pela vigilância da população, que busca selecionar, em um processo preliminar, os possíveis criminosos, como demonstra o trecho a seguir: Ao exercer as funções judiciárias, a polícia não atua simplesmente como agente do sistema judicial, identificando os fatos criminosos previamente tipificados (previstos) pela lei, tal como estipula a teoria jurídica brasileira. Na realidade, a polícia “prevê” os fatos delituosos por meio de suposições relativas ao caráter do delinqüente – os estereótipos [...] (Kant de Lima, 1995:8). A contextualização acima aponta para alguns aspectos da atuação policial antes da reforma proposta pelo governo do estado do Rio de Janeiro através da implementação do Programa Delegacia Legal. Levantarei aqui algumas das mudanças alcançadas pelo Programa e serão esclarecidos, de maneira mais cuidadosa, alguns aspectos do PDL. Contudo, cabe ressaltar que muitos dos pontos abordados sobre a questão de reforma da polícia, em que a PCERJ foi utilizada como referência, aparecem também em outras polícias analisadas por autores como Bittner, Bayley e Monjardet. Não há a pretensão de se fazer uma revisão minuciosa destes autores, mas gostaríamos de tecer alguns comentários sobre determinados aspectos da reforma, que podem ter pontos comparativos em relação aos trabalhos dos autores mencionados. Lembramos que o caso brasileiro é atípico, pois temos uma polícia dividida entre civil e militar, o que requer, em algumas situações, cuidado com os cotejos com as polícias estrangeiras. Desta forma, ao longo do texto, buscaremos confrontar o nosso “modelo de polícia” com outros estudados por diversos autores. O Programa Delegacia Legal O Programa Delegacia Legal foi implementado com o objetivo de proporcionar uma mudança estrutural e cultural na forma de trabalhar das delegacias. Para realizar tal propósito, foi criado um Grupo Executivo, formado por delegados, policiais e outros profissionais e que é, até hoje, responsável pela execução do PDL. Conforme o Plano Estadual, o objetivo do Programa é “mudar” a 94 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ forma de operar de uma delegacia de polícia, qualificar o atendimento ao cidadão e resgatar a função investigativa da polícia através da padronização arquitetônica, técnica e operacional. Modifica completamente a forma de operar de uma delegacia de polícia, consistindo na transformação radical do desenho dos prédios, tornando-os locais confortáveis e funcionais; na dotação de equipamentos de última geração para todas elas; na modificação das rotinas; e na requalificação do pessoal que nelas opera. Essas mudanças visam melhorar o trabalho policial através de uma qualificação e utilização de novos recursos tecnológicos aproximando os cidadãos da instituição. Desta forma as mudanças propostas pelo Programa são a eliminação da carceragem, com a criação concomitante de Casas de Custódia para abrigar os detentos; a contratação de um corpo de funcionários não-policial responsável pela parte administrativa da delegacia, assim como estagiários das áreas de psicologia, assistência social e comunicação social para atendimento ao público no balcão; incorporação ao espaço da delegacia de instituições como o Ministério Público, Juizado Especial, Polícia Militar e Assistência Social; obrigatoriedade do uso de crachás e gravatas, com o objetivo de facilitar a percepção de um ambiente de ordem, respeito e distinção; identificação e visualização das ocorrências mediante o controle em tempo real dos atos praticados, entre outras (Plano Estadual , 2000). O projeto teve início em março de 1999 com a implementação da primeira Delegacia Legal do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente, já conta com quase 80% das delegacias de polícia seguindo este modelo. A partir das mudanças propostas pelo Programa Delegacia Legal, buscaremos demonstrar como isto afetou ou deixou de afetar algumas práticas policiais cotidianas, especialmente naquilo que se refere ao tratamento dado à população que busca os serviços da Delegacia Legal ou, ainda, que é conduzida a ela por ter praticado algum delito. Para isso, consideraremos apenas uma das delegacias pesquisadas, lembrando que a metodologia adotada foi a observação participante e o acompanhamento de registros de ocorrência. Para facilitar a compreensão do artigo, apresentaremos cinco situações que acompanhamos, e que indicam a forma de tratamento que os policiais adotam em relação aos que procuram a delegacia, considerando o perfil da vítima ou do autor. A delegacia escolhida localiza-se na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, tida na representação dos policiais como “Faixa de Gaza”, pois é próxima de duas vias de muita movimentação e integra uma área de aproximadamente 65 favelas. Começando do zero: as “mudanças” e as percepções sobre a reforma trazidas pelo Programa Delegacia Legal 95 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que as informações apresentadas aqui se referem apenas a uma delegacia pesquisada, descrita anteriormente. No entanto, cabe dizer que, na maioria das delegacias estudadas, totalizando quatro áreas geográficas (zona norte, zona sul, Centro e Região Metropolitana), as situações e as formas de tratamento, que serão descritas mais adiante, são muito semelhantes, variando em geral o tipo de delito e o perfil dos usuários de acordo com a área. Segundo Paes (2006), com a experiência atual do Programa Delegacia Legal, dois modelos de delegacia passam a conviver; para distingui-los, não só pela forma, mas também pelo conteúdo, as delegacias podem ser denominadas de delegacia legal ou delegacia tradicional. No primeiro caso, encontram-se aquelas que estão inseridas no Programa Delegacia Legal. No segundo, acham-se as que ainda não estão inseridas no PDL. No entanto, neste último caso, é comum ouvir por parte dos policiais que estas são delegacias convencionais ou, ainda, delegacias “ilegais”, fazendo um trocadilho com o significado do termo, ficando estabelecida, desta forma, uma separação entre os dois modelos de delegacia. Para estabelecer uma contraposição dos dois modelos, mais uma vez utilizamos o trabalho de Paes (2006), que faz uma descrição cuidadosa do modelo convencional de delegacia. Creio ser fundamental tratar de alguns aspectos dessa descrição, pois mais adiante apontaremos as “mudanças”, e só assim será possível comparar os dois modelos. Segundo a autora, o atendimento inicial em uma delegacia convencional é feito por um policial que, dependendo da situação e até mesmo da delegacia, pode acumular algumas funções; estas vão desde o atendimento ao público ou a telefonemas, passam pela orientação à população e pelo registro de ocorrência, até o controle da carceragem. O trâmite dos procedimentos da delegacia convencional inicia-se por um policial que fica no balcão logo na entrada da delegacia para atender ao público que demanda as atividades policiais. Na delegacia em que realizei a maior parte da pesquisa de campo, esse policial estava responsável por atender às ocorrências policiais (principal função a ele destinada), por atender à maior parte dos telefonemas que são dirigidos à delegacia ou a alguém que esteja necessitando de alguma informação, e por dirigir essas pessoas aos setores que deveriam procurar na delegacia, caso fosse necessário. A chave da carceragem da delegacia também ficava com esse policial do atendimento, de forma que eram inúmeras as funções que ele acumulava (Paes, 2006:61). Ainda segundo Paes, no caso da realização dos registros de ocorrências, estes são feitos em um formulário-padrão preenchido em uma máquina de escrever, e depois são encaminhados para o Setor Administrativo, onde são 96 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ protocolados e distribuídos para os Setores de Investigação da Delegacia, ou então são encerrados. Depois de encaminhados, os casos tornam-se VPIs (Verificação Preliminar da Informação ou do Inquérito), e se convertem em uma espécie de relatório preliminar, que pode vir ou não a se tornar um inquérito. Como indica Kant de Lima, esta é uma prática informal institucionalizada. Por ocasião da pesquisa, havia uma prática institucionalizada na polícia do Rio de Janeiro destinada a evitar a supervisão do sistema judicial e da correição policial. Em vez de um inquérito policial, o delegado abria uma investigação preliminar, que era designada também pelas iniciais IP, que coincidiam com as de Inquérito Policial. Essa investigação preliminar, com o nome de investigação policial, era admitida em casos de sindicâncias administrativas que a polícia era solicitada a efetuar em suas atividades de vigilância para esclarecer oficialmente, por exemplo, a situação econômica de um indivíduo (Kant de Lima, 1995:68). Os setores de investigação costumam ser divididos por especializações internas, tais como homicídios, roubos e furtos, entorpecentes, entre outros. A delegacia deve dispor ainda de salas para tomar depoimentos ou realizar interrogatórios. Uma vez descrito o modelo convencional, podemos partir para o perfil do modelo adequado ao PDL. Na medida do possível, tentaremos seguir a ordem que Paes (2006) utilizou para descrever a delegacia convencional. As Delegacias Legais iniciaram suas atividades começando do zero. Isto porque, segundo Paes (2006), assim que uma nova delegacia é inaugurada, todos os procedimentos produzidos pelo modelo anterior são encaminhados a uma Delegacia Especializada de Acervo Cartorário para que continuem a ter andamento, zerando os registros de ocorrência na nova delegacia legal. Ao chegar a uma Delegacia Legal, a primeira impressão que se tem é a de um ambiente limpo, iluminado e transparente. De fato, a reforma arquitetônica é apontada como um elemento positivo tanto pela população quanto pelos policiais. As Delegacias Legais contam com banheiros, telefones públicos e com um atendimento diferenciado. Por esta razão, o atendimento inicial não é realizado por um policial, mas sim por um estagiário de psicologia, serviço social ou outros. Ele é responsável por fazer uma triagem dos casos e orientar a população; também atende o telefone e direciona as ligações para os setores adequados. Se o estagiário perceber que se trata de um caso de polícia, a vítima – ou utilizando uma linguagem administrativa, o cliente ou o usuário da delegacia – é encaminhada para o atendimento policial. 97 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ O policial que faz o registro de ocorrência de acordo com o Programa é o responsável direto pela sua investigação. Dessa forma, não estão previstas pelo Programa especializações como as que existem no setor de investigação da delegacia tradicional, como um setor para homicídios, outro para entorpecentes etc. O próprio policial é o responsável por conduzir a VPI (Verificação Preliminar da Informação) e, se for o caso, o inquérito. Isto tudo é feito através de um sistema informatizado e que se encontra em rede, tendo como propósito, além da circulação da informação, manter um controle sobre a produtividade dos policiais, já que o sistema permite que eles, assim como o Grupo Executivo, mantenham a fiscalização sobre os registros de ocorrência realizados por esses mesmos policiais. Além disso, a delegacia dispõe de uma sessão chamada SESOP (Seção de Suporte Operacional), que deve desempenhar funções semelhantes às do setor administrativo da delegacia tradicional, organizando e distribuindo os documentos dentro e fora da delegacia. Não podemos deixar de falar do SIP (Seção de Inteligência Policial). Esta seção é a responsável pela qualificação dos presos e também tem acesso a sistemas de informações que os outros policiais responsáveis pelos registros de ocorrência não têm. A seção tira fotos dos detidos, lança no sistema, levanta a vida pregressa e pode, através do acesso a diversos bancos de dados, cruzar informações e identificar pessoas. A Delegacia Legal não possui carceragem e, sendo assim, não existe um policial oficialmente designado para o papel de carcereiro. O que há são duas celas, onde os detidos não ficam por mais de 24 horas; após esse período, são transferidos para alguma carceragem – na época da pesquisa, era a POLINTER (Polícia Interestadual), localizada no bairro da Gamboa, próximo ao Centro. Na verdade, segundo os policiais, a origem do nome Delegacia Legal vem dessa mudança pois, segundo eles, a carceragem em delegacias é inconstitucional, portanto, ilegal. Por isso, depois da implementação do Programa, muitos passaram a chamar as delegacias convencionais de ilegais. A Delegacia Legal conta ainda com a figura do síndico. Trata-se de uma pessoa contratada pelo Grupo Executivo e que, assim como os estagiários, não é policial. O papel do síndico é semelhante ao de um almoxarife, pois ele cuida de toda a parte material da delegacia, desde a solicitação de itens como papel, cartuchos para impressoras até a parte de pedidos de reparos em computador, arcondicionado, telefone, e demais necessidades da delegacia. 98 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Se formos analisar a reforma simplesmente pela sua proposta, poderemos afirmar que, além de inovadora, ela é realmente muito positiva, pois tenta dar conta não só dos aspectos objetivos que já destacamos – as mudanças arquitetônicas, a informatização e a divisão das atividades – mas também de aspectos subjetivos, como a sensação de transparência, o conforto e o atendimento especializado. No entanto, vendo cada um desses aspectos de perto e durante certo tempo, é possível identificar que nem tudo funciona como o previsto. As resistências por parte dos policiais em se adequarem às normas do Programa são muitas, como veremos mais à frente. Mais uma vez, buscando manter uma seqüência na descrição do funcionamento da delegacia, buscaremos expor os fatos seguindo a lógica da exposição anterior. O atendimento inicial é realizado por estagiários de ambos os sexos, em geral, oriundos da área de humanas, e supervisionados por um técnico ou técnica já graduado/a. No entanto, depois de algum tempo de convívio, pudemos perceber que essas pessoas passam a reproduzir algumas das práticas ditas “tradicionais” da polícia. Dentre elas, destacamos o chamado “bico”. Na linguagem dos policiais, a palavra pode indicar duas práticas diferentes. A primeira delas refere-se ao segundo emprego, pois muitos policiais desempenham outras atividades profissionais em seus dias de folga, as quais eles chamam de bico.78 A segunda está vinculada à palavra chutar, bicar, dar um pontapé. Neste caso, para a polícia, bicar seria “chutar”, num sentido figurado, a vítima ou o reclamante para fora da delegacia. Isto ocorre quando a pessoa que deseja fazer um registro de ocorrência é convencida a não fazê-lo sob diversas alegações. No caso dos estagiários, eles podem convencer a pessoa de que sua queixa não é assunto de polícia ou, ainda, que o fato não aconteceu na circunscrição daquela delegacia, apesar de o caso poder ser atendido lá e posteriormente encaminhado à delegacia mais próxima do ocorrido. Existem ainda momentos em que a ordem de espera no atendimento pode não ser respeitada, pois o policial liga para o atendente e pergunta quais são os casos, e escolhe qual vai atender, sem considerar quem chegou primeiro. Essas situações demonstram que, apesar de o atendimento inicial não ser realizado por policiais, ele pode não ser muito eficiente em acolher a população, especialmente nas situações em que reproduz atitudes comuns às dos policiais. 78 Bico. 4. Pop. Pequenos ganhos avulsos / ou tarefa adicional que os possibilita; biscate, galho. Mini Dicionário Escolar Aurélio. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2000. 99 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Em alguns casos, as formas de realização do registro de ocorrência também fogem às propostas do Programa, apesar de ele ser realizado pelos policiais do Grupo de Investigação (GI). Na primeira delas, em geral, o policial que faz o registro não é o mesmo que vai conduzir a investigação. Na verdade, existe um grupo de policiais para cada passo de uma investigação na delegacia pesquisada. Há um grupo de policiais responsável pelo atendimento ao público, aquele que faz, portanto, os registros de ocorrência. Se o registro não for encerrado, existe um outro grupo que cuida das VPIs, esclarecidas anteriormente, o que é uma herança das delegacias convencionais. Na delegacia estudada, as VPIs são devidamente separadas em pares e ímpares: as primeiras ficam sob a responsabilidade de um policial, e as segundas, com outro. Existe ainda um policial designado para trabalhar os inquéritos: pede prazo para o Ministério Público, ouve as pessoas, dentre outras atribuições. Todas as divisões citadas indicam que essa delegacia não está em conformidade com as normas do Programa. Além dos aspectos supracitados, essa delegacia conta ainda com um GIC (Grupo de Investigação Continuada), ou como o chamam ali, “Grupo de Investigação Complementar”, que é composto por policiais diretamente subordinados ao delegado titular e, por isso, também conhecido como “Grupo Íntimo do Chefe”. Tal grupo foi criado posteriormente à implementação do PDL pois, segundo Paes (2006:91), “esse setor não conseguiu acumular as funções de registro e investigação, ocasionando assim um grande acúmulo de investigações sem andamento”. Na delegacia em questão, esse grupo possuía algumas especializações semelhantes às de uma delegacia convencional: GIC de homicídios, GIC de entorpecentes e um GIC que só realizava operações externas (prisões, entrega de intimações etc.). Cabe ressaltar que o GIC é geralmente composto por policiais novatos. Estes, muitas vezes, têm escolaridade mais elevada do que a dos policiais mais velhos, chamados “antigos” ou “cascudos” devido à sua experiência profissional. Esta mudança tornou-se formal através dos recentes concursos que exigem nível superior para cargos que antes eram exercidos por profissionais de nível médio, dentre eles, o de investigador. Esse convívio nem sempre é harmônico. Os policiais novatos acreditam estar mais atualizados e melhor preparados para o “combate”, e acusam os mais velhos de serem preguiçosos e acomodados. Já os mais velhos acreditam que os novatos são imprudentes e exibicionistas, pois cultuam o corpo e adoram andar armados. No caso da polícia norte-americana, Bittner (2003) indica que o quadro atual desses funcionários oferece resistência às propostas de aumento de escolaridade. 100 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Segundo o autor, parece compreensível que os chefes, os capitães e mesmo os policiais veteranos não fiquem contentes em ter que trabalhar com recrutas que os ultrapassam em termos educacionais. Além disso, Bittner questiona a qualidade dos profissionais que, apesar de terem se empenhado em receber o diploma universitário, optam por uma profissão que exige apenas o nível médio de escolaridade e na qual, na maioria dos casos, o que se aprendeu na faculdade não parece ser útil para o trabalho policial. A Seção de Inteligência Policial (SIP) é dotada de diversas ferramentas que permitem a agilização de uma investigação. Ela é alimentada, em parte, pelas informações colocadas pelos policiais que operam o sistema, mas elas nem sempre são preenchidas de forma precisa pelos policiais ao realizarem os registros de ocorrência. Muitas vezes, algumas daquelas de que os policiais dispõem são qualificadas como ignoradas para que o registro possa ser feito de forma mais rápida. Dados como local do crime, descrição do autor e outros detalhamentos não são escritos corretamente. Os policiais do SIP possuem uma senha que dá acesso a determinadas informações que os outros policiais não têm. Mas é comum, na ausência do “sipeiro”,79 a senha ser deixada com outro policial da delegacia, que verificará então os novos dados para ele e para os colegas. Nem mesmo o Grupo Executivo parece ter controle sobre essas senhas. Numa das situações acompanhadas, um “sipeiro”, que havia sido transferido da delegacia pesquisada para a DRFA (Delegacia de Roubos e Furtos de Autos), deixou sua senha com o policial que assumiu o seu lugar; este, enquanto não solicitava a sua própria senha, utilizava a do antigo operador. Ele ainda faz uso dela sem que o sistema bloqueie o seu acesso. Ainda em relação às senhas, alguns policiais, quando precisavam ausentarse da delegacia, pediam para um colega fazer registros em seu terminal; para isto, deixavam a sua senha e o nome completo, de modo a parecer que ele estava lá trabalhando quando, às vezes, não tinha sequer ido à delegacia. Assinar documentos pelo colega, e até mesmo pelo delegado, era muito comum, prática esta chamada de “Baixar o santo do delegado”. Apesar de não haver uma carceragem nessa delegacia, quem ficava com as chaves da cela era o “sipeiro”. Segundo ele, o fato ocorria porque sua sala era a mais próxima das celas. Ele não parecia estar muito satisfeito com tal atribuição e dizia que isso atrapalhava o trabalho por implicar um acúmulo de atividades e o resgate da função de carcereiro. No que se refere ao papel do síndico, ele parecia executar as funções de acordo com o previsto, porém, em algumas situações, ficava 79 Denominação dada ao policial que trabalha no SIP. 101 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ limitado pela falta de papel, tinta para impressão e o não-pagamento de alguns serviços, como o do ar–condicionado, que era desligado pela empresa quando os pagamentos estavam atrasados. De acordo com as informações dos policiais, todo o equipamento eletrônico usado na delegacia é alugado, desde os computadores até o ar-condicionado. Segundo os delegados e os policiais, as mudanças administrativas propostas tiveram que ser adaptadas às necessidades da delegacia. Uma delas é o fato de o Programa Delegacia Legal prever que um mesmo investigador abarque todas as funções, desde o registro até a investigação e a abertura do inquérito. Este foi um dos problemas apontados pelos policiais que trabalham na Delegacia Legal, pois não dá para realizar todas as investigações, já que ficam muito tempo na delegacia fazendo vários registros de ocorrência. Na visão dos delegados entrevistados, cada policial tem um perfil profissional diferenciado, mas isto não está previsto no Programa, ou seja, existem policiais que têm mais habilidade para o trabalho realizado na rua, denominado de "atividade fim", e outros são mais adequados ao trabalho burocrático, denominado "atividade meio". Desta maneira, eles optam por manter o formato anterior ao Programa, designando um policial para cada atividade. Para muitos investigadores, o trabalho que realizam na delegacia não é considerado de “polícia”, pois são, na maioria das vezes, conflitos entre “vizinhos”, “marido que bate na sua mulher”, e outros semelhantes. Em casos como estes, eles agem mais como árbitros do conflito, tentando resolver os problemas que, para eles, “não são de polícia” ou, como gostam de chamar, são “a feijoada”. Eles acreditam que trabalho de policia é prender bandido, e não resolver problemas como estes. Os investigadores deixam claro que sua função na delegacia depende do relacionamento que cada policial tenha com o delegado titular. Cada delegado tem um grupo de policiais de sua confiança que realiza as investigações determinadas por ele, denominado Grupo de Investigação Complementar (GIC) ou, no jargão dos policiais, “Grupo Íntimo do Chefe”.80 De fato, essa equipe trabalha diretamente com o delegado e, no caso da delegacia estudada, possui nela uma posição diferenciada, pois tem escala diferente e raramente os policiais que a ela pertencem são empregados em trabalhos internos ou burocráticos; em geral, eles são os responsáveis pela entrega de intimações, o cumprimento de mandados e as apreensões de armas e drogas. 80 Como mencionado anteriormente, o GIC foi incorporado pelo Programa Delegacia Legal. 102 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ No que se refere ao perfil dos registros de ocorrência da delegacia estudada, a maioria dos atendimentos está relacionada ao encontro e à remoção de cadáveres, à apreensão de armas e drogas, à detenção de usuários de droga e, por fim, aos roubos e aos furtos de celulares e carros. É importante ressaltar que boa parte dessa demanda é trazida pela polícia militar. Segundo os policiais, apesar de o Programa prever que todos os casos que chegam à delegacia devem ser registrados, na prática, a decisão de se fazer um registro de ocorrência depende do investigador. É ele quem decide se existe ou não um fato ilícito. Na maioria das vezes, os policiais tentam não fazer o registro, ora dizendo que o fato não aconteceu na área da circunscrição da delegacia, ora que o ocorrido não é um fato ilícito. Em várias ocasiões também é feita pelos policiais uma arbitragem entre as partes, sem que seja necessária a abertura do registro de ocorrência. Identificando algumas práticas policiais no Programa Delegacia Legal: a administração institucionalizada de conflitos Uma vez já tendo sido feitos diversos apontamentos sobre o Programa Delegacia Legal, faz-se necessário agora o relato de alguns registros de ocorrência que acompanhamos nesse período. O propósito da utilização de tais relatos é demonstrar como a polícia atua ajustando-se não só à estrutura oficial e jurídica legal, mas também às normas de uma sociedade hierárquica e desigual como é a brasileira. Esta composição resulta no que Kant de Lima chama de ética policial, e ela diz respeito a um conjunto de regras e práticas utilizado pela polícia: “A 'ética policial' servia de fundamento para o exercício de uma interpretação autônoma da lei e como tal imprimia à aplicação desta uma característica peculiar, própria das práticas policiais.” (Kant de Lima 1995:65). De acordo com Bayley (2003), apesar de a relativa eficácia para enfrentar responsabilidades ser um aspecto importante, existem outros da atividade policial que são fundamentais para compreender e avaliar o seu funcionamento. Dentre eles, podemos citar o respeito à lei, a criação de confiança pública, as demonstrações de simpatia e preocupação e o tratamento igualitário das pessoas. Alguns destes aspectos são preteridos, às vezes, pelos pesquisadores, que preferem avaliar o impacto das reformas policiais analisando apenas o aspecto quantitativo, como os índices de resolução e a redução da criminalidade. 103 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Para Bayley (2003), se a resolução e o combate ao crime forem tomados como as principais características da atividade policial, os dados institucionais produzidos em relação a este tema não são de todo confiáveis. Isto acontece não só porque pode existir um interesse institucional em prejudicar a transparência dos mesmos, mas também devido a outros fatores, como a confiabilidade que a população tem, ou não, na polícia. Por exemplo, quando a confiabilidade aumenta, o índice de registros de crimes pode aumentar por esta razão, e não necessariamente porque a criminalidade cresceu. E mesmo que esses dados sejam confiáveis, eles medem o que a polícia faz – prender – e não o que ela alcança com isso – a prevenção dos crimes. As situações relatadas a seguir demonstram como a polícia pode, baseada em sua ética, administrar de forma diferenciada conflitos semelhantes. O primeiro caso refere-se a um “não-registro” de ameaça. Tratava-se de um homem que havia sido traído pela mulher. Quando ele descobriu, ligou para a mulher do amante de sua esposa e contou tudo para ela. Depois disso, ele recebeu um telefonema do amante de sua esposa que o ameaçou de morte. Ele revidou a ameaça dizendo que: "Bala trocada não dói". No dia seguinte, uma pessoa que se identificou como policial ligou para ele para tirar satisfação do que estava acontecendo. Ele falou com a esposa do amante de sua mulher que disse a ele que já sabia do caso, e que a mulher dele e o marido dela se encontravam no trabalho toda quinta-feira. O amante era plantonista do Raio-X, e a mulher dele, que tinha plantões alternados, ia toda quinta-feira ao hospital. Ele resolveu dizer para esposa que ia se queixar dela para o diretor do hospital. Ela disse que, se ele fizesse isso, ia se ver com ela. Ele ficou com medo das ligações e decidiu dar queixa. O inspetor teve um trabalho enorme, mas conseguiu reverter a situação, de modo que o homem desistiu de registrar a queixa. O inspetor disse para ele que, como ele havia revidado a ameaça, teria que entrar no registro como vítima, mas também como autor. Nesse caso, segundo o inspetor, isso iria ficar na ficha dele, podendo prejudicá-lo futuramente. Além disso, ele aconselhou o homem a não se queixar da mulher com o diretor do hospital. Segundo ele, não havia provas de que os dois se encontravam lá, e ela poderia processá-lo por calúnia e ele teria que indenizá-la. O desfecho foi que o homem foi embora da delegacia sem fazer o registro. O homem aparentava ser humilde e ter uma escolaridade baixa, pela forma que se expressava com o inspetor. Ele chegou à delegacia sozinho e parecia bem determinado a fazer o registro mas, após uma longa conversa com o inspetor, acabou desistindo. Não temos dados exatos sobre o perfil do mesmo, pois o registro de ocorrência não foi realizado. Neste caso, o ato de “bicar” foi bem aplicado pelo inspetor. Mas nem sempre o policial consegue simplesmente dispensar o reclamante e não realizar o registro. Fatores como escolaridade, perfil profissional ou financeiro e relações pessoais do reclamante são considerados antes de se “bicar” a vítima. Podemos perceber isto na situação descrita abaixo, na qual aparece mais uma circunstância de ameaça. O inspetor fez o registro porque um delegado conhecido dele havia pedido a ele que atendesse ao caso. O reclamante era um arquiteto e havia sido traído e 104 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ ameaçado pela mulher. O amante da mulher era ex-policial e trabalhava no mesmo lugar que ela em um cargo de confiança. A mulher era do Tribunal de Justiça e tinha pai influente. O reclamante foi com uma advogada, que era conhecida do delegado e amiga do inspetor que atendeu o caso, e ele permitiu que ela (a advogada) relatasse o fato como achasse melhor. Toda vez que o homem se propunha a falar diretamente com o inspetor, ele mandava o homem esperar. Depois ele [o inspetor] falou para a gente que não ia dar em nada, mas que fez o registro porque conhecia a pessoa que havia indicado a doutora para ele atender. Creio que em outra situação ele não teria feito o registro, ou teria tentado convencer o cara a desistir. Além disso, quando a vítima se retirou, ele fez diversos comentários sobre a sexualidade do mesmo, alegando que ele tinha levado chifre porque era homossexual. Diante dessas duas situações que envolvem um mesmo tipo de delito – a ameaça – percebemos que se mantém a prática de não se fazerem os registros, ou mesmo de registrar o caso baseando-se no perfil da vítima e em suas relações pessoais, o que ainda ocorre nessa delegacia. Além disso, a aplicação e o uso de estereótipos e o tratamento dispensado às vítimas com base em tais fatores também continuam em andamento. As pessoas primeiramente são classificadas por critérios do policial, e só depois disso é que se dá andamento ou não ao registro. Em um de seus trabalhos, Kant de Lima aponta, através da fala de um delegado, esse tipo de classificação. Quando um grupo de pessoas entra na delegacia, antes de ouvi-las, nós enquadramos cada uma delas. Isso é uma coisa profissional, uma coisa de perdigueiro. Após esse primeiro instante, vamos aperfeiçoando a imagem da pessoa, mas a primeira coisa é “tirá-la”: temos de ver se os sapatos são caros ou baratos, sujos ou limpos, se as solas estão gastas ou não, se as calças são formais ou informais e de que tecido são feitas. Observamos o aspecto geral da pessoa para ver se está alinhada ou em desalinho, se fez a barba recentemente, se está bem alimentada, o estado dos dentes. [...] Observamos então sua educação, sua experiência. Após observarmos todas essas coisas, dirigimos algumas perguntas para obter informações. [...]” (Kant de Lima, 1995:53). Quando há o envolvimento de autores de determinados crimes ou delitos, o tratamento diferenciado também ocorre. Podemos observar isto nos dois casos que se seguem, ambos acontecidos no mesmo dia e quase ao mesmo tempo, e nos quais, de acordo com o perfil dos atores, a forma de tratá-los foi bem diversa. Chegaram dois flagrantes do artigo 16 [usuário de drogas] na delegacia. O primeiro deles se tratava de um jovem de classe média que foi pego com 31,4 gramas de maconha em tablete. Ele havia comprado a droga numa favela próxima e, ao tentar embarcar, deu de cara com dois policiais militares que faziam o policiamento no ônibus. Ele foi revistado e depois levado à delegacia. Esse flagrante demorou muito, pois os policiais tiveram que levar a droga ao Instituto Criminal Carlos Éboli de ônibus, pois não tinham viatura. Enquanto isso, o rapaz ficou na delegacia conversando com o policial militar, com o inspetor que atendeu ao seu caso e conosco. O rapaz tinha 22 anos, morava na Taquara e estava no 5º período de Educação Física. Ele conversou muito, e os policiais perguntaram a ele porque ele usava drogas. Ele respondeu que 105 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ gostava e que a droga o ajudava a estudar, além de deixá-lo relaxado. Disse também que os policiais só o pegaram porque ele estava lerdo, pois havia fumado um baseado antes de entrar no ônibus. O rapaz contou sobre sua vida, dizendo que iria chegar atrasado ao trabalho, pois fazia recreação e dava instrução de esportes radicais em um hotel-fazenda em Piraí. Ele distribuiu para todos uns panfletos do hotel. Disse que seu pai tinha um quiosque na Prainha, chamado Quiosque do “B”, e que quando quiséssemos podíamos ir lá tomar uma cerveja. Ele disse que não queria assinar o termo para comparecer no JECRIM, e o inspetor explicou a ele que era melhor fazer isso, pois caso contrário seria preso. Ele concordou, e o inspetor explicou que por causa disso ele não poderia tentar concurso público. Eles conversaram mais um pouco sobre os efeitos da maconha e, depois disso, o inspetor decidiu ir lá fora fumar, e orientou o rapaz a não tentar fugir. Ele ficou algum tempo na DP, e depois foi lá fora fumar junto com o inspetor e com o policial militar. Ao mesmo tempo, outro flagrante acontecia. Era também um artigo 16, em que dois jovens foram pegos com 13,7g e 25 gramas de maconha, respectivamente. Os dois estavam juntos e foram pegos na estação de trem da zona norte por policiais militares do serviço reservado. Eles viram os rapazes embarcarem na estação de trem e, quando estes desembarcaram na outra estação, foram abordados e revistados, e depois conduzidos para a delegacia. O primeiro deles era um paraibano com primeiro grau incompleto e sem ocupação. O outro era um jovem negro também com primeiro grau incompleto, sem ocupação e com duas anotações criminais no artigo 157 [roubo], mas que estava ainda aguardando providências. Quando chegaram, foram imediatamente levados para a cela e em nenhum momento foram chamados lá na frente para serem ouvidos. Quem fez esse registro foi outro inspetor, que ficou um bom tempo conversando com os policiais militares enquanto aguardava o laudo. O ponto importante deste relato é a diferença de tratamento dada ao rapaz de classe média em relação aos dois rapazes de classe mais baixa que foram detidos pelo mesmo artigo. O primeiro entrou pela porta da frente da DP e ficou à vontade, podendo circular dentro e fora da DP e conversar tanto com os PMs quanto com o inspetor. Os últimos entraram pela porta de trás, foram direto para a cela e em nenhum momento ouvidos, ao contrário, foram chamados apenas para assinar o papel dizendo-se para eles que falariam em juízo. O inspetor combinou isto com os policiais militares para que o registro fosse feito mais rapidamente. Os casos citados apontam que a estrutura da Delegacia Legal, ao menos nesta delegacia, não parece ter rompido com os velhos preconceitos e com o universo relacional que beneficiam uns e prejudicam outros. O que se pode observar é que, por um lado, ao aplicar a lei de forma desigual na sociedade, a polícia mantém que alguns criminosos ou vítimas não se beneficiem dos princípios constitucionais igualitários e, por outro lado, aplica os mesmos princípios igualitários a camadas média e alta da sociedade, restabelecendo a sua convicção no sistema político, jurídico e social brasileiro. 106 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Kant de Lima demonstra que as práticas policiais estão relacionadas ao paradoxo legal brasileiro, no qual a ordem igualitária é aplicada de maneira hierárquica. No Brasil uma ordem constitucional igualitária é aplicada de maneira hierárquica pelo sistema judicial. Diferentes tratamentos legais são dispensados às mesmas infrações, dependendo da situação social ou profissional dos suspeitos enquanto aguardam o julgamento, e até depois de condenados, os réus são submetidos a regimes carcerários diferentes, mesmo que tenham cometido crimes da mesma natureza (Kant de Lima, 1995:01). Diante desses fatos, e considerando o contexto geral da pesquisa, é possível constatar que determinadas práticas policiais anteriores ao Programa Delegacia Legal, das quais destaco o tratamento diferenciado dispensado às vítimas e aos autores de crimes, continuam sendo operadas da mesma forma. Apesar da reforma, não ocorreu uma transformação dessas práticas policiais. Fica claro ainda que não existe um padrão para o atendimento dos registros de ocorrência. Além disso, essas práticas desiguais de atendimento reforçam a idéia de que existem sujeitos criminosos e outros que, embora tenham cometido um crime, são de difícil enquadramento como criminosos conforme o sistema de classificação policial. Em sua tese de doutorado, Misse (1999) trata dessas situações, as quais ele chama de sujeição criminal e que está relacionada à identidade que é atribuída a alguém, como essa identidade é interpretada publicamente e o como o sujeito dessa sujeição percebe a sua própria identidade. A sujeição criminal distancia, separa e autonomiza os indivíduos. Desta forma, percebemos que no caso do rapaz de classe média a sujeição criminal não se concretiza, pois a polícia pode percebê-lo como desviante e ele aceita esse rótulo, mas nem a polícia o identifica como criminoso, nem o próprio jovem assim o faz. Já no que se refere aos outros dois rapazes, a identidade atribuída a ambos pela polícia é a de criminosos, não só pela sua posição social, como também pela identidade pública de um deles, que já tinha ficha na polícia. Assim, o tratamento dispensado a eles não se baseia somente na situação atual, mas tem uma referência no passado; além disso, ambos aceitam sem reclamar o tratamento oferecido pela polícia, reforçando sua sujeição. Inicialmente, o tratamento diferenciado pode parecer um desvio do que se espera da polícia. No entanto, esse tipo de interpretação da lei e, em conseqüência, essa forma de ação não são características unicamente brasileiras. De acordo com Monjardet (2003), toda organização comporta duas faces: um lado formal (estrutura, organogramas, recursos humanos e materiais, regras 107 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ etc.) e outro lado informal, que é o conjunto dos comportamentos e das normas observáveis, segundo as quais a organização realmente funciona. Para o autor, o lado informal não designa um desvio. Assim a noção de organização informal à primeira vista não designa um desvio, mas simplesmente o fato de que todo o processo de trabalho organizado necessita de interpretação e adaptação das regras, no caso, negociação e compromisso; e que ela nunca funciona, portanto, em conformidade perfeita com as normas que supostamente a dirigem, mesmo quando estas não são contraditórias (Monjardet, 2003:41). Gostaríamos de encerrar este ponto da discussão citando mais uma situação presenciada nessa delegacia, onde um homem tentou enganar um inspetor fazendo um falso registro de ocorrência. Ele chegou à delegacia dizendo que seu Fiat havia sido roubado. Como o carro era muito velho, o inspetor desconfiou e perguntou a ele qual era a história verdadeira. O rapaz contou que havia vendido o carro, mas o comprador não havia passado o veículo para o seu nome, e vinha cometendo infrações de trânsito que caíam no nome do antigo proprietário. Um amigo sugeriu a ele que fizesse o registro de roubo para não ter que arcar com as multas. Ele foi então até a DP para fazer o falso registro. O inspetor brigou com ele, e disse que iria prendê-lo, pois fazer registro falso de ocorrência é crime. Mas como o cara tinha família e o caso não era tão sério assim, ele decidiu colocar o rapaz de castigo. E de fato fez isso, colocou-o na salinha do síndico sozinho, sentado numa cadeira e olhando para parede e disse que ele ia ficar de castigo ali até o dia seguinte, e lá ele ficou até aproximadamente 1 hora da manhã, segundo nos informaram. O inspetor orientou que se alguém perguntasse a ele o que estava fazendo ali, era para ele dizer que estava de castigo. Ao tratar da polícia, Kant Lima, através de relatos e histórias contadas pelos próprios policiais, nos lembra que a polícia tem uma ética que orienta suas ações. [...] Há muito tempo atrás, esse delegado estava passando pela rua de uma pequena cidade do interior do estado, na qual estava lotado, quando encontrou casualmente um conhecido. Num tom entre polido e paternalista, tratando-o de “meu filho”, perguntou-lhe como estava passando. O conhecido respondeu que estaria passando bem se não fosse uma dolorosa infecção de um de seus dedos do pé, que o estava incomodando terrivelmente. O delegado disse que sentia muito, que toda doença é uma má notícia. O doente disse que o dedo estava doendo tanto que ele gostaria de se livrar dele; gostaria que o delegado desse cabo do dedo acertando-lhe um tiro. O delegado não hesitou: pegou o revólver e acertou o dedo do homem. Este ficou sangrando e apavorado. Ao reclamar do que o delegado tinha feito, este retrucou-lhe que só tinha satisfeito um pedido dele, que era, portanto, o único responsável pelo ocorrido. O delegado insistia que só tinha lhe prestado um favor. A moral dessa história de advertência era: se você não tiver a firme intenção de exprimir alguma coisa, não diga a um policial. A polícia pode sempre reagir de maneira inesperada (Kant de Lima 1995:137). 108 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ Ainda segundo o mesmo autor, somente a polícia tem controle de suas ações. Ela não respeita a diferença e a transforma em anormalidade. Para conseguir relacionar-se com a polícia, você tem que entender a sua ética, ter certeza do que diz para ela. Considerações finais Ao analisarmos a forma com que os procedimentos de registros são realizados nas delegacias legais, percebemos que eles são orientados por uma lógica anterior à reforma. Essa lógica ou forma de agir da polícia possui uma ética própria que deve ser considerada ao se lidar com a Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro. Kant de Lima (1999) nos lembra que alguns procedimentos policiais – sempre ameaçados por ilegalidades, mas tachados de desvios – na verdade aparecem com certa regularidade que aponta para a sua consistência. Assim a regulação da tortura de acordo com a gravidade da denúncia ou queixa, e conforme a posição social dos envolvidos; a permissão da participação dos advogados nos inquéritos também de acordo com a posição que estes especialistas ocupam nos quadros profissionais; o registro – ou não – das ocorrências levadas ao conhecimento da polícia; a qualificação e tipificação – ou não – das infrações e crimes registrados e a abertura de investigações preliminares, que levam, ou não, ao arquivamento ou ao prosseguimento do inquérito policial; tudo isso, de acordo com interesses manifestamente particularistas são, sem dúvida, algumas dessas práticas institucionalizadas (Kant de Lima, 1999:30). Desta forma, cabe dizer que algumas mudanças propostas pelo PDL, tais como a inovação tecnológica, a normatização dos procedimentos e a mudança na estrutura física da delegacia, não foram suficientes para que os policiais aderissem ao Programa Delegacia Legal. Nem mesmo essas mudanças em si parecem estar garantidas pois, segundo as obvervações realizadas ao longo deste trabalho, diversos aspectos do Programa funcionam de forma diferente da prevista originalmente. Alguns deles foram incorporados ao Programa, como a criação do GIC; outros, como o controle dos dados que entram e saem do sistema, nem tanto. O próprio controle que o PDL busca ter em relação às atividades policiais falha ao não conseguir racionalizar o uso das senhas e das informações pessoais. No entanto, cabe dizer que tudo o que é registrado de forma equivocada ou incompleta pode ser alvo da Corregedoria, mas enquanto este trabalho era realizado, isto não 109 ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ foi presenciado pelos pesquisadores. Ao contrário, todas as correições foram comunicadas com antecedência ao delegado e à sua equipe, que na semana anterior se dedicava em deixar “tudo no esquema” para a visita do corregedor. Além disso, percebemos que a polícia atua se orientando por valores paradoxais presentes na sociedade brasileira. Se, por um lado, esses valores garantem igualdade jurídica, por outro, concretizam-se de forma desigual, baseando-se nas diferenças sociais, econômicas e culturais entre os indivíduos. Isto permite que entrar pela “porta da frente ou de trás” de uma delegacia não esteja necessariamente relacionado ao fato de se ter cometido ou não um delito ou crime, mas sim a quem cometeu essa ação. Por fim, ao que tudo indica, há uma prática policial que não se encaixa nesse novo modelo teórico e prático proposto pelo PDL, apesar de o Programa disponibilizar a capacitação e a atualização dos policiais para atuarem de acordo com ele. Kant de Lima (2003) comenta que não basta só formar os policiais que entraram para a polícia recentemente, pois estes poucos (em relação à totalidade de policiais no Brasil) fariam pequena diferença, mesmo a médio prazo. Segundo ele, o desafio é formar policiais já "formados", ou seja, desconstruir paradigmas de pensamento e ação para que os policiais possam atuar com a concepção de que todos os cidadãos, inclusive os policiais, são sujeitos de direitos e destinatários da proteção da polícia. Nesse sentido, faz-se necessário perceber que existem duas racionalidades coexistentes e antagônicas em um mesmo ambiente da Delegacia Legal. Neste caso, explicitar os conflitos e as resistências referentes ao Programa Delegacia Legal talvez seja uma boa maneira de iniciar uma mudança mais profunda e que tenha a adesão de parte dos policiais. Referências Bibliográficas BAYLEY, David H. Padrões de policiamento. São Paulo: EDUSP, 2003. BITTNER, Ergon. Aspectos do trabalho policial. São Paulo: EDUSP, 2003. HOLLOWAY. Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX. 1.ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997. KANT DE LIMA, Roberto. A polícia da cidade do Rio de Janeiro. 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