Procedimentos cômicos em José Cândido de Carvalho

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Procedimentos cômicos em José Cândido de Carvalho
III Colóquio Filosofia e Literatura: do cômico - Anais do Evento
20 a 22 de março de 2013
Procedimentos cômicos em José Cândido de Carvalho
Danielle da Silva Andrade1
Graduação/UFS
Resumo: Tendo como mais famosa obra o romance intitulado O Coronel e o Lobisomen, José Cân-
dido de Carvalho, autor brasileiro inserido na terceira geração modernista, se destaca pelo
cômico requintado que se encontra em suas obras. Este autor possui ainda mais três obras
sendo estas: Olha para o céu Frederico, seu primeiro romance, Porque Lulu Bergantim
não atravessou o Rubicon e Um ninho de mafagafes cheio de mafagafinhos, estes últimos
são livros de contos e se assemelham pelo interessante subtítulo: “contados e astuciados
sucedidos ao povinho do Brasil”. O trabalho em questão pretende analisar contos de ambos os livros tendo como base as teorias de Bergson (2007), Freud (1906) e Jolles (1976),
nosso objetivo é elencar elementos e/ou procedimentos cômicos presentes nestes textos
correlacionando-os com as questões sociais, para tanto recorreremos também ao estudo
de Lélia Parreira Duarte (2006) sobre questões relacionadas à ironia, ainda no que concerne à ironia recorreremos também às teorias de Muecke (1995).
Introdução
José Cândido de Carvalho, romancista, contista e jornalista nascido a cinco de agosto de
1914, em Campos, RJ, filho de lavradores da cidade de Trás-os-Montes, situada ao norte de Portugal, iniciou seus trabalhos de jornalista como editor da revista O Liberal, passando pelo jornal
Folha do Comércio, O Dia, Gazeta do Povo e O Monitor Campista. Leitor e admirador de Raquel
de Queiróz e José Lins do Rêgo, Cândido de Carvalho teve sua primeira publicação feita em 1939,
o seu primeiro romance, intitulado Olha Para O Céu Frederico! A segunda publicação do autor foi
realizada no ano de 1964, o romance O Coronel e o Lobisomem, sua mais famosa obra, possuindo
mais de 41 edições e tendo sido traduzida para o português de Portugal.
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Graduanda em Letras/DLI/GeFeLit/UFS.
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Quinto ocupante da cadeira 31 da Academia Brasileira de Letras (ABL), tendo sucedido
Cassiano Ricardo, e escritor do grande romance (O Coronel e o Lobisomem) que o inscreveu na
literatura brasileira como um autor singular, José Cândido publicou outros dois livros de contos,
sendo estes: Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon e Um ninho de mafagafes cheio
de mafagafinhos, ambos sucedidos pelo subtítulo “contados, astuciados, sucedidos e acontecidos
do povinho do Brasil”. Sua obra ficcional é das mais originais, graças à linguagem pitoresca e
aos personagens, ora picarescos, ora populares, extraídos do “povinho do Brasil”. Neste trabalho,
tentaremos analisar quatro contos dos livros acima citados, tendo como referencial teórico autores
como Bergson (2007), Freud (1906) e Jolles (1976).
1 - Revisão teórica
Em seu estudo, Bergson faz referência a questões sociais atreladas ao riso. Para ele, o riso
serve para corrigir através da humilhação aqueles que se desviam do esperado pela sociedade;
a estes que fogem do que a sociedade espera dá-se o nome de desviados. Além de fugir do que
esperam os cidadãos, o desviado é também tomado como autômato, como alguém que se porta
como uma máquina, que não domina suas vontades e age automaticamente. Segundo Bergson, agir
automaticamente significa dizer que a pessoa está alheia à sociedade, que está apenas se deixando
levar, ou seja, não está atento, consequentemente não cumpre o papel esperado para ele. Se o riso
é algo social, para que seja entendido tem-se que fazer parte da sociedade em questão, pois o que
caracteriza o desvio em uma sociedade pode ser algo aceito comumente em outra. Sobre as piadas,
Bergson explica que piadas traduzidas raramente terão a mesma graça que na sociedade na qual se
originou.
Para este autor, o riso é uma maneira que a sociedade tem de criar comportamento padrão.
Aquele que foge a esse padrão, essa norma, é objeto de riso, ao rir de alguém estamos reprovando
suas atitudes e aquele que é objeto do riso tentará se corrigir. Porém, Bergson nos diz que para rir
de alguém é preciso estar distanciado do que se ri, deve-se estar indiferente a ele, se o objeto do
riso nos causar compaixão não causará o efeito cômico. Segundo esse autor, a emoção é inimiga do
riso. Retornando ao automatismo, temos a questão da rigidez que, segundo ele, também caracteriza
o desviado e sobre a qual pode-se afirmar que é risível tanto a rigidez de um bom caráter quanto a
de um caráter ruim. Portanto, para o citado autor, para estar apto a viver em sociedade é necessária
certa flexibilidade.
Já para Freud, em seu livro Os Chistes e a Sua Relação Com O Inconsciente, os principais
elementos caracterizadores do chiste são: a brevidade o desconcerto e o esclarecimento. Sobre os
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tipos de chistes temos: chistes com caricatura, nonsense. A caricatura lança mão do que está escondido, isto é, traz à tona o que está submerso. O nonsense é uma lógica diferente. Já o desconcerto
causa surpresa; nesse momento algo não foi compreendido e é seguido pelo esclarecimento que tem
a função de tornar compreensível, revelar.
O que nos interessa nesse momento sobre os chistes é uma de suas características: a brevidade. Segundo Freud, a brevidade é de total importância para o chiste. Para ele, um bom chiste
deve dizer muito através de poucas palavras. Ainda para este autor, a brevidade é importante também porque trará economia de energia para seu entendimento, o que causará mais prazer a quem o
chiste está sendo contado.
Sobre os tipos de chistes, Freud cita os chistes tendenciosos e os não tendenciosos. Os
primeiros servem para atacar alguém, geralmente um superior, o que fora do contexto cômico não
seria possível. Os chistes tendenciosos são um meio de voltar-se contra aspectos da sociedade, trazer à tona questões que fora do contexto cômico não seriam permitidas a todos. Já os chistes não
tendenciosos serão tratados, a princípio, somente como meio de proporcionar prazer, o que, para
este autor, é a principal função do riso. Contudo, no decorrer do texto há uma importante explanação sobre os chistes não tendenciosos, sobre os quais é dito que servem mesmo para proporcionar
prazer, porém não apenas para isso, os chistes não tendenciosos ou inocentes como os nomeia o
autor, servem, assim como os tendenciosos, para que o espirituoso se rebele contra a sociedade.
Através da técnica do absurdo, o autor dos chistes inocentes se volta contra os padrões sociais e critica (direta/indiretamente) as formas possíveis de se relacionar com o mundo. Na discussão sobre o
motivo dos chistes: os chistes como processo social, Freud diz que o principal motivo dos chistes
é proporcionar prazer, porém ele continua sua busca por outros motivos e, então, adentra o campo
psíquico.
Outro teórico que se ocupou da questão foi Jolles (1976), que, assim como Bergson, toma
o chiste enquanto fator social. Para ele, o chiste perpassa gerações e serve para desatar nós, nós da
linguagem, lógica, ética e da forma. Em Jolles, temos que o chiste faz uso dos jogos de palavras
ao que ele chama de duplo sentido e, assim como em Bergson, Jolles acredita que é necessário que
haja cumplicidade entre os ridentes, mas essa cumplicidade precisa ser temporariamente desfeita
para que sejam geradas diferentes interpretações.
Uma importante colocação de Jolles se referente à sátira e a ironia. Para ele, a sátira repreende e reprova através do distanciamento entre o ridente e o objeto do riso, já a ironia ensina,
repreende se colocando próximo ao objeto do riso. Em Jolles, o cômico procura opor-se ao severo,
sendo, portanto, um meio de libertar-se de uma tensão, o cômico é, portanto, uma forma de relaxamento de tensões.
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2 - Análise da obra
Verbos e gerúndios pela ponta dos dedos
O mestre Zeferino Moscoso recordando, na porta da Colombo, seus heroicos tempos de professor de gramática em Crubixais do Alto:
– Aquilo é era educação! A gente largava a palmatória na meninada de sair verbos
e gerúndios pela ponta dos dedos. Os mestres tinham o apoio dos pais. Chiquinho
Cravo, que depois foi deputado e senador, aprendeu gramática com meia dúzia de
aula de palmatória. Antônio Barbirato, filho do desembargador Barbirato das Neves, na primeira cacetada que levou na raiz do ouvido desmaiou. E quando voltou
do desmaio estava falando francês. Aquilo é que era ensino! Hoje, com essa mania
de modernismo, o negócio virou da cabeça para os pés. O mestre agora apanha dos
alunos. Um colega meu do Educandário Afonso Pena levou uma cabeçada tão ferina
que ficou três dias sem fala. Quando recobrou a voz foi para gritar pela progenitora
e pedir aposentadoria. Não falando no caso do doutor Penado Riscado. Pegou tanto
bofetão nas bochechas que botou pela boca os Lusíadas de Camões, fora outras
obras de pequeno porte. Por essas e outras é que deixei o ensino. A gente amassa
um aluno e vai preso. Só porque retirei do seu devido lugar um par de orelhas, levei
processo, fui destratado pelos jornais e comi o pão que o diabo fez em sua padaria
de desgraças. Ensino, nunca mais! (Carvalho, 2003, p. 28)
2.1 - Elementos cômicos: Inversão, Transposição e Ironia.
“No fundo, trata-se sempre de uma inversão de papéis e de uma situação que se volta para
quem a criou.” (BERGSON, 2007, p. 70).
No Conto “Verbos e Gerúndios pela ponta dos dedos” temos certa inversão de papéis. Nesse conto, Zeferino Moscoso, insatisfeito, relata sobre a situação educacional. Para ele, a educação
atual ou “moderna”, como ele diz, está tornando as coisas mais difíceis; antes os alunos levavam
palmatórias e saíam da escola capazes, já hoje em dia a coisa desandou, não se pode mais bater
nos alunos e são eles que batem nos mestres. A inversão se dá pelo fato de ser ele (Zeferino) um
ex-professor que usava da palmatória para obter êxito em seu ensino e se vê, agora, indignado frente à nova lei educacional que exclui a palmatória da educação e ainda vê a situação da palmatória
se voltar contra ele, já que agora são os professores que apanham. Notemos, ainda, a inversão no
relato da personagem de que os alunos que levavam “palmadas” saíam falando até francês e conseguiam um futuro ilustre, como na política por exemplo. Como citado acima, na inversão a situação
se volta contra quem a criou, se antes os professores batiam nos alunos e estes adquiriam saber,
assim também se dá aos mestres que agora apanham dos alunos e da mesma forma adquirem saber,
logo um deles recitou (“botou pela boca”) Os Lusíadas de Camões.
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Percebe-se na fala da personagem o alto nível de exagero: “Antônio Barbirato, filho do
desembargador Barbirato das Neves, na primeira cacetada que levou na raiz do ouvido desmaiou.
E quando voltou estava falando francês. Aquilo é que era educação!”. O exagero é um dos fatores
que mais tornam cômicos os textos. Segundo Jolles, o exagero é parte integrante da caricatura. Este
autor nos dá a seguinte definição de caricaturas: “A caricatura designa, habitualmente, um retrato
que ataca um caráter mediante uma reprodução jocosa (caricato), sublinhando e exagerando certos
traços (carica) para tentar deslindar a compleição física e mental do visado.” (JOLLES, 1976, p.
216). Assim como em Bergson, Jolles também explana sobre a inversão e a transposição (dentro
do chiste), mas para este ambas estão intrinsecamente ligadas ao exagero, veja-se nesta citação
“O chiste encontra-se em todos os domínios, com seus exageros para cima e para baixo, suas
transposições, sua capacidade de inverter o sentido das coisas.” (JOLLES, 1976, p. 208). Na frase
seguinte, do senhor Zeferino Moscoso, temos um exemplo de que a inversão, a transposição e o
exagero podem atuar todos numa mesma frase, fazendo desta uma frase chistosa: “Um colega meu
do Educandário Afonso Pena levou uma cacetada tão ferina que ficou três dias sem fala. Quando
recobrou a voz foi para gritar pela progenitora e pedir aposentadoria.” Como dito acima a inversão
serve para inverter o sentido das coisas, nesse conto o que está sendo invertido? O narrador está
de acordo com a nova lei da educação, ou compactua com a antiga? Veja-se que a ironia aliada à
inversão e à transposição está conseguindo inverter duplamente os “sentidos”. É possível afirmar
que há uma dupla ironização, posto que a crítica à educação apareça ironizada tanto quando se refere ao passado quanto ao presente, isso se nota nas citações anteriores nas quais vemos que antes
os alunos apanhavam o que não era aceitável, já hoje os professores apanham o que também não o
é. Percebe-se, então, que o discurso do narrador é ironizado duplamente, uma contra ele mesmo, e
uma contra a atualidade.
Agora iremos ao conto “Mata a cobra e mostra o pau”.
Mata a cobra e mostra o pau
E por ter perdido uns votos nas eleições de Brejais, o major Quiquim Paranhos
resolveu espichar de defunto um certo Bebé de Melo, gogó de ouro que abalava
as praças públicas com seu ruibarbosismo de mato a dentro. Era voz de não caber
numa cidade, coisa de estilhaçar copos e cristais. Quando Bebé expelia discurso na
Praça do Vintém, o farmacêutico Bentinho Cruz prevenia o prático da botica:
– Seu Bendengó, cuide dos frascos. Hoje tem discurso de Bebé de Melo.
Foi esse ninho de ventania que o major resolveu estancar. Para o serviço mandou
vir de longe, e por ter muita fama e ser de gatilho rápido, um tal de Percilato Reis,
que abastecia cemitérios e beira de estrada com sua pontaria daninha. Na pólvora de
Percilato depositou o major Quinquim esta incumbência:
– Em troca de minha proteção e um gadinho limpo do Piauí, quero que passe fogo,
de nunca mais comer farinha, num tal de Bebé de Melo, que vive desabonando
minha conduta e tirando meus votos na briga das eleições. Tão desrespeitante que
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passou pela minha pessoa sem tirar o charuto como manda a boa ilustração. Parecia
um trem de linha soltando fumaça pela chaminé. Aturo tudo, Seu Percilato. Menos
faltamento de respeito! É nesse porém que viro cobra. Cobra na brasa Seu Percilato.
Perco a ponderação e mando chumbo. Não de pessoalmente, que não vou dar confiança a qualquer sujeitinho. Ademais, sou devoto e não compete a devoto praticar
serviço de sangue, Seu Percilato.
E para que Percilato não errasse de endereço, colocou em mãos dele dois retratos
do candidato a defunto: um de lado e outro de Bebé de Melo todo pomponete, de
charuto despencado no beiço e chapelão caído para trás. E dando o último retoque
na conversa:
– Veja o sujeitão! Parece um presépio Seu Percilato! Tem de um tudo. Tem lapiseira
no bolso, alfinete de pedrinha na gravata, um ramo de flor no paletó e correntona de
ouro na barriga. Não tem que errar, Seu Percilato! Não tem que errar.
Percilato pegou os retratos pulou na sela e sumiu na estrada. Para só voltar duas
semanas depois com o serviço arrematado. E para Quinquim Paranhos que gozava
o soninho do ajantarado na varandona de sua casa de invernada:
– Major, mandei bala mortal nos dois. No que estava de lado e no sem-vergonha que
estava de frente, ostentosão de charuto encalhado na boca. (CARVALHO, 2003, p.
102).
Este conto é também caracterizado pela inversão. Nele, observamos o major Quinquim
Paranhos ver seu plano de “espichar de defunto um certo Bebé de Melo” ir por um caminho não
esperado. Este conto, assim como o anterior, é caracterizado pelo discurso direto, temos uma pequena participação de um narrador em terceira pessoa só no início do conto e, logo após, o início
do discurso direto, ou seja, a personagem está contando sua história. Veja-se que, segundo Ligia
Chiappini (1994), em seu estudo sobre o foco narrativo, quando o texto está em primeira pessoa é
necessário que o leitor esteja atento, pois a verdade que está sendo exposta é a verdade da personagem, o que não significa dizer que esta é uma verdade geral. Segundo ela, o narrador em primeira
pessoa é um narrador do qual devemos desconfiar. Temos então a seguinte frase do narrador: “Foi
esse ninho de ventania que o major resolveu estancar”. Parece-nos que o ato do major trará um
bem para todos, já que acabarão os quebramentos de vidros, a falta de respeito com os ilustres da
cidade. É interessante notar que, assim como a personagem Zeferino, o major Quinquim também
está indignado e revoltado, perceba-se ao ver a descrição que faz de seu rival: “Tão desrespeitante
que passou pela minha pessoa sem tirar o charuto como manda a boa ilustração”. Como vimos, essa
descrição é caracterizada pelo exagero.
Outro fator cômico de que trata Bergson, que também compõe ambos os contos, e que me
parece, aliás, semelhante à inversão, é a transposição. A transposição pode ser facilmente definida
pela seguinte citação: “Exprimir honestamente uma idéia desonesta, tomar uma situação escabrosa,
um ofício humilde ou um mau comportamento e descrevê-los em termos de estrita respectability,
tudo isso geralmente é cômico”. (BERGSON, 2007, p. 94).
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Podemos notar a transposição em ambas as falas das personagens citadas. Em “Mata a cobra
e mostra o pau” o major Quinquim Paranhos exprime toda sua indignação e resolve acabar com
a vida de Bebé de Melo, pois este além de ser seu adversário nas eleições ainda o trata, segundo
ele, com desrespeito. Na verdade, o desrespeito que o major alega estar sofrendo não é senão uma
justificativa para seu ato criminoso, ao que ele diz ao pistoleiro: “Aturo tudo, Seu Percilato. Menos
faltamento de respeito!” Note-se, novamente, o exagero já citado anteriormente quando da descrição da personagem, essa repetição pode estar sendo usada para enfatizar o discurso criminoso, ou
justificar o crime. O discurso do major é totalmente construído em cima de justificativas, veja-se
que ele, ao explanar sobre sua revolta contra o inimigo, se justifica constantemente, mesmo altamente revoltado ele não vai matá-lo pessoalmente, pois não vai “dar confiança a qualquer sujeitinho...” e logo depois mais uma justificativa para não fazê-lo pessoalmente “Ademais sou devoto e
não compete a devoto praticar serviço de sangue”. Todas as justificativas servem para construir um
discurso baseado na honestidade, ou seja, para transpor o desonesto tornando-o ou idealizando-o
como honesto.
Em “Verbos e Gerúndios pela Ponta dos Dedos” temos também a transposição. Zeferino ao
recordar-se dos “seus heróicos tempos de ensino” também constrói um discurso cheio de justificativas. Note-se que, assim como o Major, Zeferino também está conversando com um interlocutor
que não se pronuncia, seu discurso é indignado e revoltado e este, assim como aquele, parece
acreditar que o que está dizendo é a mais pura verdade, isto é, ele está exprimindo honestamente
uma idéia que não o é. Ele está discursando sobre algo que não é correto como se isto assim fosse.
As justificativas de Zeferino dizem respeito à descontinuação do uso da palmatória, ele prova com
argumentos convincentes que o não uso deste “tão valioso” equipamento educacional só piorou a
situação da educação neste país. Notemos a transposição na seguinte fala de Zeferino: “A gente
amassa um aluno e vai preso”. Nesta frase, ele está se reportando a algo condenável como se fosse
aceitável e ao correto como se incorreto estivesse. José Cândido constrói estes textos usando, para
tal, a ironia. É perceptível a ironia presente nestes e nos demais contos.
Segundo Lélia Parreira Duarte (2006), em seu livro Ironia e Humor na Literatura, “a ironia
é uma figura retórica em que se diz o contrário do que se diz” (DUARTE, 2006, p. 18). Notemos
que esse conceito de ironia nos faz lembrar o conceito de transposição citado acima e retirado do
livro de Bergson. Voltemos, então, ao discurso das personagens de ambos os contos. Como dito,
as personagens buscam sempre se justificar de seus atos, buscam convencer o interlocutor de que
estão com a razão, de que estão certos sobre as atitudes tomadas. Em “Mata a Cobra e Mostra o
Pau” o major manda matar um adversário seu e em “Verbos e Gerúndios pelas Pontas dos Dedos”
o mestre está justificando o porquê de ter deixado o ensino: por que foi banido o uso da palmatória.
Mas que interlocutor é esse para o qual se pronunciam? Se em “Mata a cobra e mostra o
pau” temos a pequena fala de seu Percilato, em “Verbos e Gerúndios” esse interlocutor existe, porISBN: 978-85-7822-365-6
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que a personagem está falando para alguém, contudo não explicitamente. Em se tratando de textos
irônicos, Lélia Parreira Duarte afirma que “A comunicação irônica obedece a um código particular:
não se endereça ao objeto da ironia, mas a um terceiro elemento real ou supostamente presente ao
ato da palavra irônica – o leitor.” (DUARTE, 2006, p. 29). Percebemos então que o fato de serem
estes contos construídos (em sua maioria) por um diálogo em que o locutor tem a voz e o interlocutor é mudo, pode ser um meio pelo qual o autor buscou a interação do leitor com o texto, já que,
segundo Duarte, os textos são escritos para serem lidos. No tocante ao uso da ironia como método
para que o leitor participe do texto, se posicione junto a este, temos o seguinte: “A ironia, afirmação de um indivíduo que reconhece a natureza intersubjetiva de sua literatura, quando esta busca
um leitor que não seja passivo, mas atento e participante (...)” (DUARTE, 2006, p. 19). Podemos
dizer que José Cândido está, através da ironia, chamando o leitor, mais especificamente, chamando
a atenção do leitor para o que está querendo expor através de sua literatura.
Ainda segundo Leila Parreira Duarte “A ironia congrega aqueles que a usam ou a percebem”
(DUARTE, 2006, p. 30). Nisto, entendemos que o leitor e o autor interagem através da percepção
da ironia existente no texto e que o leitor passa automaticamente a participar do texto ao perceber
a ironia.
2.3 - O cômico e a sociedade
“Mas sempre que o chiste é popular, a sua espécie e a sua maneira caracterizam a raça, o
povo, o grupo e o tempo donde procede” (JOLLES, 1976, p. 205).
Partindo da citação acima, podemos dizer que o cômico é um elemento que caracteriza as
sociedades. Através dele, podemos perceber os anseios dos indivíduos que compõem essas sociedades, pelo olhar do escritor. Nos livros Porque Lulu Bergantim Não Atravessou o Rubicon e Um
Ninho Mafagafes Cheio de Mafagafinhos José Cândido de Carvalho trata em especial de questões
relacionadas ao contexto político de sua época. Em contos como “O alfabetizador de Empregadas
ou o Idealista Seabra” e/ou em “Mata a cobra e mostra o pau” o autor representa direta e indiretamente o momento pelo qual passava o Brasil; um momento de crise política, de denúncias. No
conto “Mata a cobra e mostra o pau” temos a questão do coronelismo político, no qual os coronéis
mandavam seus jagunços tirarem a vida de qualquer um que representasse a ameaça de perder
alguns votos. Como se pode notar, neste conto o major Quinquim Paranhos deposita em Percilato
Reis a incumbência de “passar fogo” em Bebé de Melo que era, assim como ele (Quinquim), político e politiqueiro, que usava seu poderoso gogó para diminuir os votos e, segundo Quinquim, diminuir também a sua figura. Porém, na tentativa de enfatizar a foto do pretendente a defunto, o major
mostra ao pistoleiro duas fotos: uma de frente e uma de perfil. Sendo o pistoleiro pouco instruído,
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quando chega ao local de praticar o crime mata dois, tendo em vista que lhe foram apresentadas
duas fotografias. E é isso, principalmente, que causa o efeito cômico: o exagero. Segundo Duarte,
“o exagero é usado a favor da ironia” (DUARTE, 2006, p. 30).
Neste conto (“Mata a cobra e mostra o pau”) notamos que o autor tenta, através da comicidade, repreender as atitudes dos políticos. A atitude deste autor pode nos revelar o desejo de toda
uma sociedade. Sobre isto, Bergson nos diz: “(...) a invenção cômica não nos daria informações
sobre os procedimentos de trabalho da invenção humana e, mais particularmente, da imaginação
social, coletiva, popular?” (BERGSON, 2007, p. 2). A indignação proposta pelo autor a suas personagens pode estar representando a sua própria indignação frente à situação brasileira da época,
tendo em vista que ele usa a ironia que, como supracitado, é dizer algo querendo que se entenda
o contrário. Ao nos fazer rir através da inversão, transposição e, principalmente, da ironia, o autor
esta chamando o leitor para que este perceba a realidade. Assim como Duarte, Bergson nos mostra
que “por mais franco que suponham, o riso esconde uma intenção de entendimento, eu diria quase
de cumplicidade, com outros ridentes, reais ou imaginários” (BERGSON, 2007, p. 5). O autor parece chamar o leitor para que este compactue com ele.
Em “O alfabetizador de empregadas ou o idealista Seabra” (CÂNDIDO, 2003, p. 56) ele (o
autor) repreende as ações da personagem se colocando próximo a ela, o que, segundo Jolles (1976),
caracteriza a ironia, sobre a qual ele diz que repreende, mas não se distancia do objeto da repreensão; antes a ironia ensina. Temos em Jolles (1976) o seguinte: “O azedume da ironia resume-se em
encontrar em nós o que censuramos em outrem”. Podemos dizer então que João Cândido de Carvalho está censurando a sociedade e se colocando como parte dela e, portanto, elemento a ser censurado. Dessa forma, podemos entender que o cômico em João Cândido de Carvalho está ensinando
às pessoas (todos, sem exceção) que não é o outro apenas a cometer falhas, todos as cometemos.
Temos em Bergson que “o riso deve corresponder a certas exigências da vida em comum, o riso
deve ter uma significação social” (Bergson, 2007, p. 6) e em Jolles “Vê-se agora que a intenção do
chiste ou do cômico pode ser mais profunda que o simples desenlace daquilo que se repreende ou
se reprova.” (JOLLES, 1976, p. 212). Em ambos os autores temos que o riso pode ser usado para
a repreensão do que a sociedade como um todo reprova, mas que não se resume apenas a isto. O
cômico serve, de igual maneira e na mesma medida, para causar prazer em quem o produz, bem
como em quem o lê, o percebe. Vejamos o seguinte conto:
Grita forte que a companhia de seguros garante o resto
Carta de Benzinato Cunha, guarda-livros, a seu compadre Neco Moscoso:
Viajei para bem longe deste atraso de vida que é São Carlos do Fundão para poder
dizer umas verdades ao Coronel Sandó Cruz. Não caso nem quero ver mais a cara
da filha dele, aquela empadona que ficava o dia todo na janela, de olho grudado
em todo sujeito de calça que transitasse pela Praça do Comércio. Uma ocasião,
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estando eu no Bazar Almeida, cai na bobagem de dizer que ela tinha uns encaracolados muito bonitos. Pois foi o bastante para que o pai dela aparecesse no Hotel
Adamastor todo mordido de cobra. De princípio, para abrir a conversa, desmontou
a porretadas a mesa onde eu comia minha asa de galinha e bebia minha cerveja
preta. Não contente, danificou de enfiada outros utensílios da sala de refeição, de
não respeitar nem o retrato do falecido Gumercindo Alves, que morava desde mais
de cinquenta anos na parede do Hotel Adamastor, todo de preto, de barba em leque,
com a fita de intendente da Prefeitura de São Carlos no peito. Para que o Coronel
não esquartejasse o estabelecimento, firmei contrato de rebocar para o altar esse
baú velho enfeitado de bumba-meu-boi que é sua filha. Mas passada a fraqueza,
voltei ao meu natural e resolvi responder a ofensa, pelo que dou ao compadre a
missão de dizer a Sandó Cruz que não caso com a filha dele nem por ouro nem por
prata. Se a pé eu não queria pagar o compromisso, quanto mais agora que comprei
uma bicicleta de segunda mão. Como sou previdente, já tomei as competentes deliberações para garantir meu compadre nesta missão espinhenta. Pode gritar alto
com o Coronel Sandó que a companhia de seguros garante a comadre Esmeralda
em caso de suceder uma desgraça e sua pessoa embarcar para o outro mundo montado numa bala. (CARVALHO, 2005, p. 100).
Apesar de João Cândido de Carvalho trabalhar, principalmente, com as questões políticas
do país, com críticas ao patriotismo exagerado, à hipocrisia, ele cita também aspectos morais da
população, como as traições dos maridos às esposas, e vice-versa, e o misto de esperteza e covardia
de alguns personagens, como no conto “Grita forte que a companhia de seguros garante o resto”,
no qual a personagem Benzinato Cunha deixa para seu compadre Neco Moscoso a missão de terminar seu noivado forçado com a filha do violento coronel Sandó Cruz. Note-se que Neco foge para
outra cidade e avisa ao seu compadre da incumbência deixada para ele via carta. Mas como Neco
Moscoso era “previdente” e para garantir que o compadre fosse, fez para este um seguro de vida.
Neste conto predomina a função libertadora do cômico, o alívio de uma tensão. De fato,
“o gracejo fornece ao espírito um meio de libertar-se momentaneamente de si mesmo, quando o
deseje.” (JOLLES, 1976, p. 213). Este conto, assim como os anteriores, questiona os aspectos da
sociedade, neste, como em “Mata a Cobra e Mostra o pau”, temos um coronel que usa de seu poder
para coagir a população, contudo, o que predomina neste conto não é a questão politica, mas o riso
causado pela covardia do noivo de enfrentar o sogro. Através do exagero, o texto se torna bastante
cômico. Esse noivo nos parece a caricatura, ou seja, a exageração de um covarde. Cândido de Carvalho tem personagens essencialmente exagerados, nos quatro contos citados temos: uma esposa
que glorifica as traições do marido, um major cristão que não mata, mas que manda matar, um exnoivo que foge e deixa o compadre na linha de fogo e um professor que reclama os atuais métodos
educacionais. Percebe-se que esses personagens são caricaturas, formas irônicas que denunciam
distorções sociais, contradições de nossa cultura.
Dessa forma, temos que o cômico é, sobretudo, ambivalente. Partindo do conceito de ambivalência do cômico, nota-se que João Cândido de Carvalho usa do viés humorístico não apenas
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para repreender, mas também para esclarecer e promover o alívio da tensão. “Um dos meios – às
vezes o único, frequentemente o melhor – de passar da tensão à distensão, ao relaxamento, ainda é
o chiste.” (JOLLES, 1976, p. 212).
Considerações finais
Podemos destacar os citados contos como meios de subsidiar a afirmação de que o cômico
é sobremaneira ambivalente. Notemos que o cômico pode ser usado como meio de repressão, como
nos contos “Verbos e Gerúndios pela ponta dos dedos”, caracterizado pela dupla crítica: ao modelo
educacional antigo e à novidade, e “Mata a Cobra e Mostra o Pau”, revelando a questão do coronelismo, mas temos também o cômico libertador, aliviador de tensões como em “Grita Forte que a
companhia de Seguros Garante o Resto”. Observemos, porém, que este conto tanto pode ser considerado aliviador (como visto acima) quanto repressor, partindo do princípio de que temos neste
conto a caricatura de um covarde. Neste conto, a exageração do covarde pode servir de exemplo a
não ser seguido, outra possível leitura, agora considerando o contexto social, é a da fuga para que
se pudesse dizer aquilo que se tinha vontade, já que o ex-noivo aceita o casamento com medo do
futuro sogro, diga-se que este é “um pouco” violento. Consideremos a violência desse candidato
a sogro uma alusão ao regime ditatorial vivido pelo país no qual em determinado período teve a
censura como uma de suas principais características, quem não se subordinava a censura era punido
com violência Para embasar essa afirmação, citemos a frase seguinte: “De princípio, para abrir a
conversa, desmontou a porretadas a mesa (...)”, e não era assim que se iniciavam as conversas entre
a equipe governamental responsável pela censura e os censurados?
Um mestre irônico. Este é José Cândido de Carvalho. Sua ironia congrega, adverte, ensina
e expõe o que não pode ser exposto, diz o que não pode ser dito e nos revela humoristicamente a
realidade cruel de sua (ou nossa) sociedade.
Referências bibliográficas
BERGSON, Henri. O Riso: ensaio sobre a significação da comicidade. 2ª Ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2007; Coleção Trópicos.
CARVALHO, José Cândido de, Porque Lulu Bergantim Não Atravessou O Rubicon. Rio de Janeiro:
Rocco, 2003.
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CARVALHO, José Cândido de, Um ninho de mafagafes cheio de mafagafinhos. Rio de Janeiro:
Rocco, 2005.
DUARTE, Lélia Parreira. Ironia e humor na literatura. Belo Horizonte: Editora PUC Minas; São
Paulo: Alameda, 2006.
FREUD, Sigmund. Os Chistes e Sua Relação com o Inconsciente. Rio de janeiro: Imago editora
LTDA, 1906, volume VIII.
JOLLES, André. Formas Simples. São Paulo: Editora Cultrix LTDA, 1976.
LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O Foco Narrativo (ou A polêmica em torno da ilusão). 7ª Edição.
São Paulo. Editora Ática, 1994.
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