PRÓLOGO
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PRÓLOGO
PRÓLOGO “A natureza de uma coisa faz outra brotar, e, da morte, uma nova vida nascer.” Lucrécio (c. 98-55 a.C.) PRIMEIRO RELATO DIÁRIO DE ANA ALICE20 DE OUTUBRO DE 2092. “Diário Primeiro veio o frio, depois o calor alucinado. Não foi um ataque alienígena. Nem tampouco fomos atingidos por algum meteoro errante. Não, a Terra não saiu de órbita nem o Sol explodiu. Também não tivemos a terceira guerra mundial, embora, tenhamos uma boa parcela de culpa nisso tudo. Ontem, às 20h de Greenwich, o mundo inteiro parou para ver o noticiário. De todas as discussões sobre como o mundo acabaria- pela água ou pelo fogo-, ninguém acertou. Na verdade, o apocalipse traria muito... Dos dois. Alguns deixariam de existir debaixo de águas violentas, enquanto outros experimentariam a fúria das chamas e secas furiosas. Por quê? Nosso planeta enlouqueceu. Meteorologistas, físicos e estudiosos dos quatro cantos do planeta tentaram explicar o estranho comportamento do clima em todo o mundo na última semana. A frequência de base da Terra, a ressonância de Schumman- RS-, explodiu de sete, oito ciclos por segundo... Para quinze ciclos, indicando importantes variações de temperatura e clima. Além disso, uma quantidade cada vez maior de neutrinos solares, registrados pelos nanotelescópios marítimos, prova que a camada de ozônio está tão esburacada quanto um queijo suíço de qualidade! Alguns cientistas falaram em fim do mundo, outros em nova era, mas uma coisa foi consenso - o que quer que possa ser já começou, e está muito mais rápido do que qualquer previsão ao longo dos últimos cinquenta anos! A temperatura global atingiu o aumento de 5,9oC - em contraste com 4oC desde o período glacial, há 20.000 anos. Nanocomputadores de dados instalados nas grandes geleiras mostram uma velocidade de derretimento do permafrost exorbitante, cinco vezes maior que em toda a história do mundo, e há a ameaça constante de que vulcões submersos no oceano próximo ao Polo Norte possam estar entrando na fase final de sua atividade- logo antes de entrarem em erupção. Segunda a NOAA – a Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos EUApodemos estar enfrentando um processo muito maior, a inversão das correntes 1 marítimas. Isso explicaria porque uma La Niña furiosa forma ciclones extratropicais com núcleo de baixas temperaturas na América do Norte, enquanto uma variável de seu antigo companheiro- e oposto-, El Niño, apelidado como El Hombrecito, formou-se simultaneamente no Oceano Atlântico, devastando as cidades do centro da Argentina e Sul do Brasil, alagando e desabrigando milhares de pessoas. O Brasil apenas havia experimentado a força de um furacão em maio de 2004, quando o Catalina, um furacão F2, batizou Santa Catarina- até ontem-, quando chegou à costa do Espírito Santo, o furacão Tereza, um furacão F3, com ventos a mais de 300 km/h. Ninguém sabe ao certo o número de mortos ainda. De que adianta a física quântica agora? Desde o início dos estudos do Grande Colisor de Hádrons, na Suíça, em março de 2010, a revolução quântica não parou... E depois, em 2020, quando finalmente físicos descobriram como produzir a fusão nuclear dos isótopos de hidrogênio em temperatura próxima à do ambiente, a evolução da nanotecnologia avançou cem anos de desenvolvimento... Talvez, quase transformando a Terra numa civilização tipo I – do famoso físico Nikolai-, saindo do marco zero e finalmente utilizando a energia do planeta para nos suprir, e não os recursos naturais do planeta para obter energia, acabando com cada minúsculo pedaço de natureza. Utopia agora, já que destruímos nosso ecossistema, por tempo demais. De repente, eram os países que ainda possuíam solo utilizável que detinham toda a riqueza da humanidade, superando-se no cenário econômico mundial, exatamente como os países capazes de produzir petróleo no último século. Foi assim que o ex-presidente Sr. Rogério Dantas de Andrade, um afro-americano, revolucionou a economia e a visão mundial do nosso país-, e fundou, em 2023, a Agência Nacional de Estudos Geoclimáticos- ANEG. Dr. Walter Cunha, primeiro diretor da ANEG, divulgou estudos em ampla escala sobre a possibilidade de estarmos na iminência de um evento com proporções apocalípticas, e é claro, foi inicialmente ridicularizado no cenário mundial, que demorou a acreditar nos resultados de um estudo realizado por um dos países emergentes. Para os antigos senhores soberanos do capitalismo, que continuaram gastando toda sua economia em armamentos nanobiológicos, seremos sempre ricos ascendentes. Somente após as primeiras catástrofes geoclimáticas invadirem e turbinagem as telas de hyperplasma inteligente das televisões mundiais é que a Comissão Mundial de Alterações Climáticas – CAMC-, presidida pelo Dr. Mark Jhonsons, americano é claro, deu ouvidos ao português impecável do Dr. Walter, o qual se recusou a proferir sua palestra em inglês. Eu tinha apenas quinze anos quando, frente a mais de duzentos doutores, físicos, biólogos, professores e titulares de associações ao redor do globo de estudos geoclimáticos, marítimos e polares, o brasileiro de apenas cinquenta e seis anos, Dr. Cunha, explicou detalhadamente sua teoria e as comprovações de um evento geoclimático que combinaria a inversão magnética dos polos com tempestades solares de neutrinos e mudanças climáticas e marítimas drásticas, abrigando desde tempestades tropicais violentas a novas atividades vulcânicas, com seus estragos catalisados pelos produtos de um efeito estufa acumulado-, e não foi contestado. Milhões de pessoas no mundo todo assistiram estarrecidas ao cenário de destruição maciça que poderia se instalar muito em breve, transformando completamente o planeta azul que conhecíamos hoje. O ápice dessa catástrofe ficaria conhecido pela comunidade científica e popular como o Ponto Nulo- no qual a vida na Terra poderia recomeçar ou simplesmente deixar de existir. “- ...Quando o sol estiver passando por mais um de seus limites inferiores de atividade, o efeito termométrico de aumento da temperatura global nos últimos anos, incluindo o aumento da temperatura das marés- o que por si só já proporcionaria uma maior susceptibilidade de erupções vulcânicas-, poderá deflagrar efeitos drásticos na biosfera terrestre. No início, teremos chuvas torrenciais, furacões, tempestades tropicais e aumento do tempo de estiagem no centro do globo. Para a humanidade, adicionaremos epidemias, devastação e alteração no meio de vida. Logo em seguida, terremotos e tsunamis deverão devastar as costas litorâneas. Por fim, próximo á inversão magnética dos polos- evento que provavelmente já ocorreu algumas vezes antes porém, nunca associado ao efeito estufa máximo que atingimos- vulcões marítimos próximos aos polos deverão entrar em erupção, causando degelo maciço de geleiras inteiras. Qual o efeito disso? Não temos como prever. Podemos, meus amigos, estar diante do apocalipse por si só. Um evento de proporções tão gigantescas que mudará tudo e qualquer forma de vida que conhecemos hoje. Quando essa nuvem massa úmida e fria violenta se soltar, destruirá tudo por onde passar, transformando os ápices do globo em verdadeira era do gelo. O problema maior será quando ela se chocar abruptamente com a massa de ar seco e quente se expandindo a partir do Equador, que a esse ponto deverá estar desertificado. O efeito disso zerará os cronômetros da vida na Terra e a partir dai- ninguém sabe.” Após as conclusões finais da palestra do Dr. Walter, o mundo se silenciou por aproximadamente um minuto. Havia provas. Muitos dos desastres que Dr. Walter falava já estavam começando. Dois dias depois cientistas do mundo todo entravam e saiam de rede mundial contestando as evidências do brasileiro. Muito mais fácil do que aceitar que ferramos o mundo. E muito pouco foi feito à respeito. Em uma semana, os noticiários já estavam abarrotados de imagens da próxima rainha da Inglaterra, ainda no útero. Assim é o homem. Fato:- Em São Paulo, estamos no verão a meses agora, e há tanta chuva que mal conseguimos sair de casa. Sem falar dos inúmeros genocídios de seitas apocalípticas ao redor de todo o globo, como se já não bastassem as baixas pela fúria da natureza. As pessoas fogem desesperadas, abandonando toda a sua vida para trás. Mas fugir pra onde? Formamos uma equipe, Dr. Carlos é o chefe, eu, a infectologista. Temos ainda uma pediatra e um clínico geral, mas não esperava que um cirurgião plástico como o Beto fosse querer ficar... 3 Meu maior temor não é morrer, porque honestamente, não sei se acredito em vida após a morte... Talvez seja apenas um bando de reações químicas que deixam de existir, apesar dos avanços imensos da noética em provar a existência do pensamento e seus efeitos sobre a massa- o que eu consigo acreditar-, e em provar a existência de um espírito dentro dos nossos corpos- essa parte nem tanto! Tenho medo de nunca conhecer o amor... Será que esse é realmente o fim? Ana Alice” Capítulo 1- A Prisioneira 2286. JULIÉRIO, 15. ALGUM LUGAR DENTRO DAS INSTALAÇÕES DE LA COLMENA. Acordei no susto, com o coração palpitando e os olhos demorando mais do que o normal para se abrirem. Onde eu estava? O que havia sido aquilo? Um sonho? Uma visão? O que, em nome do Sol, estava acontecendo na minha maldita cabeça ferrada de vez? Respirei. Reconhecimento estratégico. Novamente deitada numa sala desconhecida, com paredes de terra contrastando a tecnologia avançada da estranha e azulada luz hadriônica – eu podia jurar que logotipo dos laboratórios Suntech estava nela- disposta no centro do salão meio oval de limites irregulares, tentei virar a cabeça para os lados, mas uma pontada de dor alucinante se instalou bem no meio da minha testa, impedindo qualquer movimento adicional. Tentei levantar as mãos. Sem sucesso. Estavam presas. Aliás, eu estava toda presa naquela espécie de maca, dominada pela tontura e dor constantes, fazendo-me querer vomitar praticamente o tempo todo. Havia um cheiro de almíscar misturado com éter preenchendo ar da estranha sala, mas não havia névoa. Não havia nada. Apenas eu, a estranha luz azul, a maca e uma baita confusão mental na minha cabeça dolorida, totalmente desorientada no tempo e espaço. Tudo que eu conseguia distinguir do borrão de pensamentos misturados era de ter levantado para trabalhar no Humanitá atrasada naquele dia. Não. Não era aquele dia. A parede se abriu – espera aí! - paredes nãos se abrem. Era uma porta. - Olá? – perguntei. Ninguém respondeu. Ouvi vozes desconhecidas, cochichando. - Hei? Tem alguém ai?! Hei? Oi?! – insisti. Nada. A porta rangeu, fechando-se novamente. Havia um pânico lá. Minhas mãos e pernas amarradas ao longo da maca, e a luz começava a doer nos meus olhos. Fechei os olhos. Apertados, tentando me lembrar de onde estava e como havia parado naquele lugar saído dos antigos blue rays sônicos da Golden Era. Vamos Hanna, vamos!- pensei- ponha essa cabeça oca pra funcionar! Lentamente a pequena fagulha começou a brilhar lá dentro da minha mente atrapalhada. Era uma memória? Com certeza era! Ele. O menino dos olhos azuis que eu havia conhecido há poucos dias na névoa. Esperanza. Christopher! - Chris?!- Gritei. –Chris?! Ninguém respondeu, mesmo porque, não havia mais ninguém lá. Eu estava morta? É óbvio que ninguém acorda do outro lado presa numa maca dos laboratórios Suntech. Ufa! Alívio. Alívio momentâneo, porque naquele mundo havia coisas piores que a morte. Um sentimento- que estava se tornando meu melhor 5 amigo-, subiu pelas minhas costas. Terror. A porta se abriu de novo. Seria real dessa vez? Era real. O estranho de óculos ray ban antiquados e redondos com lentes de fundo de garrafa e cabelos grisalhos despenteados surgiu por entre as sombras. - Eh... Olá- disse ele. - Quem é você?! Onde estou? Porque estou amarrada? – despejei em cima do homem. - Scien. Meu nome é Scien- respondeu ele sem dar muita importância. – Preciso que você me explique como se destrava isso aqui. - O quê?! Você poderia me soltar daqui, por favor? - Sim, claro- continuou ele, imóvel parado ao meu lado, segurando um objeto estranho nas mãos. – Depois que você me contar como se abre isso aqui. - Eu não sei o que é isso! – respondi honestamente. Ele riu. - Claro que sabe- pressionou ele. - Onde está Chris? - Onde está a chave?- insistiu, a voz fria e distante. - Eu não sei do que você está falando! – contestei- Por favor, por favor, me solte! Pedaços de cenas mal acabadas começavam a fervilhar no pano de fundo da minha cabeça, mas eu não conseguia distingui-las. Nomes soltos reverberavam lá dentro da minha confusão mental sem precedentes. Ethan, Pablo, Margot, Claire. De quem eram aqueles nomes? Scien, que havia saído da sala, voltou em segundos arrastando um homem moribundo por uma espécie de coleira. Eu tive quase certeza que o conhecia. De onde? - É ela?- berrou ele para o homem. O maltrapilho me encarou. Josué! Seu nome era Josué. - É ela mesma- disse enquanto cuspia um pouco de sangue salivado no chão. Scien praticamente arremessou o homem porta afora. - Agora para de palhaçada- gritou com a voz mais fina e estridente do mundo. Pode me explicar como faço para abrir esse maldito cantil? O cantil! A palavra disparou uma centena de memórias. Minha casa no solar, meu mestre e mentor Dr. Charles Nelson, e sua descoberta, guardada lá dentro daquele cantil falso, protegido por uma fechadura pós- moderna travada com meu DNA- um dínalo- e motivo pelo qual eu havia embarcado nessa viagem maluca através da névoa, para levar aquele mesmo cantil até o solar de Aráquia. Eu sabia exatamente como abrir aquele dínalo. E não ia contar. - Não sei- respondi, agora, mentindo. - Não me lembro de nada desde que sai para trabalhar no solar hoje de manhã. - Você está mentindo! – gritou ele vindo para cima de mim. Pequenas gotas de saliva quente espirraram no meu braço, formigando. O homem esquisito levou a mão até meu braço e meu corpo se defendeu imediatamente, disparando uma corrente elétrica contra ele, na mesma hora em que uma figura ainda mais estranha passava pela porta, correndo. Gordo, beirando seus cinquenta anos, com bochechas rosadas que destacavam suas olheiras pesadas, o homem desviou de Scien que havia caído no chão com a força do choque, e veio em minha direção. - Pare já com isso Scien!- falou ele como uma mulher, vestindo um estranho pulôver de lã bege mal confeccionado, extremamente quente para aquele clima. - Saia daqui Klépio! Ninguém te chamou ainda- retrucou Scien, ainda trôpego, tentando se levantar do chão de terra batida, como uma argila encerada. - Ela está com amnésia seu estúpido! Não adianta ataca-la com violência! Deixe que eu cuido disso!- O gordo afeminado me deu uma piscadela enchendo minha mente de déjà vus. – Assim que ela estiver pronta eu te chamo! Homem endiabrado! Scien saiu bufando, contrariado talvez pelo conselho do fofão, talvez pelo choque quando tocou meus braços, e Klépio retirou minhas amarras enquanto praguejava sozinho. - Não sei qual a necessidade de amarrar uma moça! Que comportamento ridículo e hostil! Já me basta sua captura que não foi nada educada... E existe alguma captura educada?- pensei enquanto sentava na maca estreita e dura. - Não, não, não. Ninguém acorrenta uma pobre moça sem memoria enquanto eu estiver aqui! - Obrigada- respondi esfregando os pulsos, tentando tirar a marca das amarras. Eu estava suja e empoeirada. Sentia gosto de sangue na boca. - Querida, querida. Não começamos bem não foi? Prazer em conhecê-la! Sou Klépio, curandeiro de La Colmena. - Desculpe-me, mas curandeiro da onde? - Oh minha filha, não se lembra de nada, nadinha mesmo né? Você e seu garoto gostosão, ai, perdão! – riu como se estivéssemos tomando um chá na varanda e falando banalidades- Enfim, vocês foram capturados em Orish, meu bem. Orish! Minha mente finalmente começava a funcionar direito e várias lembranças foram aparecendo. A mais forte de todas veio tão rápido que eu mal pude me segurar em pé. Não se esqueça de Orish- lembrei-me da voz de Chris implorando vagamente. - Você está lembrando! Oba, Oba! – A parafernália de Klépio batendo palminhas era tão irritante quanto o timbre da sua voz e se enfiava na minha cabeça, enquanto continuava tonta com o terabite de lembranças fazendo download no meu cérebro. Em menos de um minuto eu havia sido carregada com todas as lembranças de uma semana inteira, memórias e sentimentos. Tudo que eu havia descoberto e o que eu ainda tinha dúvida. E a última parte delas latejou lá dentro, atormentando meu coraçãoEu havia levado Chris direitinho para a emboscada junto comigo. Onde ele estaria agora? Morto? Preso numa maca como eu? Surtei. Não podia ter demorado tantos anos para encontra-lo e perde-lo assim, tão estupidamente, após um único beijo! Não, era muito azar. -Senhor, é... Klépio? – perguntei indecisa. Minha voz era trêmula e eu continuava meio aérea, flutuando no nada. 7 - Sem formalidades, sem formalidades. Somente Klépio mesmo. -Sim, Klépio- hesitei - É... O meu garoto, quer dizer, Chris, ele ainda está... -Vivo? Mas é claro que sim! – gesticulou ele animadamente. - E onde ele está? – insisti. -Bom... Isso não é assunto pra nós querida- rebateu ele. A animação mais contida. - Pelo menos não pra mim, e definitivamente não agora. Primeiro você precisa passar o segredo da abertura daquele cantil para Scien. -Não posso fazer isso. - Entendo. - O homem abaixou a cabeça grande e gorda, olhando os pés calçados com sapatos de juta feitos à mão. – Então, acho que sua estadia aqui conosco não será tão agradável. Infelizmente. - O que é aqui? Onde estou? - Você está na toca de Scien. E aqui é La Colmena, abrigo e morada dos fortes e guerreiros degenerados. Sob o ilustre comando de Lord Konig, e seu general, Ludowick. Lu.do.wick. Ludowick. Seu nome era quase tão penetrante quanto a vontade de vê-lo. Arrepiava. A simples menção de seu nome era capaz de fazer meu coração entrar numa taquicardia sinusal, disparando uma reação de ansiedade explodindo na minha cabeça. E eu não tinha a menor ideia do por que. - Vou ter que deixa-la agora- despediu-se o velho gordo e gentil segurando minha mão carinhosamente. – Olhe querida, nem todos são como eu, viu? Cuidado com suas escolhas. Aqui não é Esperanza. Ninguém vai te servir chá com torradas. - Ok- respondi desvirtuadamente. Afinal, o que eu poderia fazer? - Mais uma coisa- completou sorrindo maliciosamente. – Você é ainda mais poderosa do que eu esperava. Apenas não sabe disso ainda. Klépio fechou a porta atrás de si e fiquei sozinha na sala, desamarrada, mas sem conseguir me mexer. Poderosa? Como eu poderia ser mais poderosa do que qualquer coisa naquele inferno? Olhei em volta, parecia mesmo uma toca. Uma espécie de caverna com limites tortuosos e paredes feitas de argila. Não tinha janela, nem outras portas, portanto, ficava praticamente impossível sair dali sem ser vista. Era uma sala cirúrgica, com certeza. A maca no centro, um armário de níquel encrustado na parede, com trava codificada, uma pequena mesa de alumínio de procedimentos cirúrgicos simples e uma pia dupla com torneiras sensoriais para evitar o toque ao ligar e desligar. A bancada estreita de pedra e laminado ladeava a parede oposta à porta, com duas estufas proto-protônicas com emissão de fótons estavam dispostas lado a lado no canto esquerdo da bancadaprovavelmente para esterilização dos instrumentais- o que era muito estranho, pois tudo isso era tecnologia ultrapassada dos laboratórios Suntech. Sim, os mesmos que controlavam todos os solares e afirmavam que não havia vida humana inteligente fora dos nossos limites. Ouvi passos, e como não havia absolutamente nada em que eu pudesse me esconder, encostei-me ao lado mais distante da porta e esperei. Alguns minutos depois e ela rangeu. O perfume da mulher, com um vestido rubi e longos cabelos loiros sedosos que desciam até a cintura fina, me dava náuseas e eu só pensava em abrir a boca e vomitar. Ela era perfeitamente linda, quase onírica pra mim, com seus olhos verde água. -Bom dia, flor do dia- ironizou a deusa. Não respondi. Estava me sentindo ainda mais suja e esquisita perto daquela estátua de beleza. -O gato comeu sua língua?- sibilou a mulher. -Quem é você? – balbuciei. -Malena – respondeu ela sem dar muita importância. - Ah... Que decepção! É por isso que Christopher está enlouquecido? Pensei que fosse alguém mais... Digamos, melhor. A loira me encarou. Alguma coisa inexplicável aconteceu. Fiquei cega de ciúmes. Ela sabia o nome dele? Então ele só poderia estar com ela. Só podia ser. Ele estivera com ela esse tempo todo, na cama dela. Eu quase conseguia sentir o cheiro dele exalando do corpo dela. Para Hanna. Para de surtar. Mas eu não conseguia pensar em outra coisa. Apesar de saber o quanto ridículo era ter ciúmes agora, eu não conseguia pensar em outra coisa. Meu corpo tremia. Eu podia ver sua boca encostando-se à dele, eu podia sentir. Cerrei os punhos e machuquei minhas próprias mãos, mas não importava. Queria mata-la, sentia minhas mãos apertando seu pescoço perfeito até não entrar mais nenhuma molécula de ar naqueles pulmões simétricos. E então, de repente- tudo sumiu. Não havia mais cena nenhuma, cheiro nenhum. Apenas eu e a risada de Malena, fria como a lâmina de uma faca. -Uma genuína garota do solar se metendo nessa confusão – zombou ela. – Ainda por cima apaixonada! Logo por um dos homens mais cobiçados de todo o mundo externo? Era óbvio que eu era ridícula pra ela. -Ande ser insignificante- ordenou- venha pra cá, quero te ver melhor. Eu estava numa espécie de torpor pós- ictal. Simplesmente fiz o que ela mandou e me aproximei, como se não tivesse vontade própria. -Ah sim... Agora entendo porque Christopher perdeu a cabeça... É compreensível. Você realmente o ama de verdade... Senão jamais teria ficado assim. -Você conhece Chris? – perguntei em um tom rude. O mais deseducado que pude achar no momento. Mas ela não me respondeu. Minhas dúvidas não interessavam. -Pare com isso Malena- riu ironicamente alguém parado na porta. - Chega de torturar a menina! Desviei a cabeça para enxergar. Elas estavam se multiplicando? Que droga!pensei- outra beldade! Essa era ainda mais perfeita que a loira. Usava um vestido branco de pano cintilante sem as costas e tinha cabelos negros e lisos. -Ah Savrè, estava engraçado, não estava?– riram. Imóveis atrás dela, duas mulheres que mais pareciam estátuas de mármore, mantinham-se em posição de submissão, com os olhos voltados para baixo. – Vamos aias, peguem a menina e vamos de uma vez- ordenou Savrè. Ninguém se mexia, parecendo ter asco de mim e de todo o lugar. 9 -Quem são vocês? – balbuciei. -Nenhuma de suas perguntas é importante agora querida- retrucou Malena quase parecendo algodão doce. -Vamos, vamos – gesticulou Savrè impaciente para as duas garotas atrás delaAgora! Lord Konig a quer na praça. Com o novo comando mais imperativo, uma delas finalmente tomou coragem se adiantou, amarrando meus pulsos atrás das costas. -Hanna? – A voz da deusa loira era mortífera pros meus ouvidos. Como glicose para um diabético- pensei. – Veja bem querida- falou suavemente- Não é porque eu não carrego armas ou não me visto mal e cheia de bugigangas penduradas, que não sei quebrar cada um dos seus ossos, ouviu? Não tente nenhuma gracinha comigo... Você ainda não tem a menor ideia de com quem está lindando! Agora ande! Não temos o dia todo. Siga-me. -Por que eu seguiria você? – enfrentei. Elas riram sonoramente. Senti o desprezo em cada gesto das deusas, para elas eu era tipo- uma baratona com asas- entendeu? Nojenta, asquerosa, repugnante. -Primeiro... – sussurrou ela enquanto se aproximava lentamente para que eu pudesse admirar sua perfeição – Porque eu estou mandando. E segundo porque, se estivesse no seu lugar, não me preocuparia com meu corpo feio e insignificante morto, mas com o corpo lindo e escultural de Christopher estatelado no chão- por sua causa. Malena fez uma pausa e olhou dentro dos meus olhos. -Gostaria que o punhal que parasse seu lindo coração estivesse sendo empunhado pelas suas mãos? – ameaçou ela, demoradamente, delicadamente, deliciando-se com a minha reação de espanto e terror. Eu já havia ouvido aquela ameaça antes! E a raiva cegou meus olhos. -Não! - rangi os dentes. -Ótimo! Então vamos! Como se tivesse saído do centro cirúrgico da sede dos laboratórios Suntech diretamente para o subúrbio desolado de algum lixão da Golden era, entramos no corredor mal iluminado, de terra e argila, que nos levou ao lado de fora. Tropecei algumas vezes, mas continuei, cambaleando. Saímos. A claridade- mas não o Sol, nunca o Sol- embaçou minha visão. Por todos os dias de sol da minha vida, o que era aquilo?! O barulho de muitas vozes gritando e clamando alguma coisa, ecoava pelos ares, enquanto eu tentava inutilmente reconhecer que ambiente era aquele. Meu coração palpitou e eu parei. A aia deu um puxão na corrente, ferindo meus pulsos dolorosamente. Meus pés relutaram em continuar andando, meu corpo todo queria correr para o outro lado, mas era impossível. Eu sabia que era a presa daquela gente. Era a carne da semana. O produto da caçada. A oferenda para algum Deus pagão. E não havia o que fazer senão continuar – pé após pé- atrás das duas deusas que conduziam o cortejo. Assim começa a minha vida. A minha verdadeira vida. Porque honestamente, tudo que eu tinha antes, não poderia ter sido menos real. Mas espera aí. Talvez eu deva voltar um pouco mais. Uma semana atrás precisamente, quando tudo isso começou. Antes disso não vale a pena, dá pra resumir num parágrafo. Meu nome é Hanna Rodrigues, nasci em 2266 no solar de Kanliston, na região de Matroso, abaixo do novo Equador, ou confederação Norte. Nasci numa época pósapocalíptica onde uma névoa asquerosa e incompatível com a vida humana normalassim acreditei - tomou conta de mais de sessenta por cento da parte habitável da terra, poupando alguns oásis de sua ação maligna e mutagênica, conhecidos como solares. Lá, a humanidade manteve seu ritmo e desenvolvimento, sob a tutela de uma rede de laboratórios denominados- Suntech. Lá, a humanidade fechou os olhos e os portões para o que pudesse estar acontecendo sob a névoa, para qualquer forma de vida que pudesse ter ficado para fora. Mas eu não. E essa é a minha história. 11