O Banco Mundial e as estratégias de desenvolvimento institucion

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O Banco Mundial e as estratégias de desenvolvimento institucion
O Banco Mundial e as estratégias de desenvolvimento
institucional para as cidades: primeiro, idéias, depois
dinheiro
Geraldo Browne Ribeiro Filho1
1. Introdução
Este artigo procura analisar as chamadas estratégias de “desenvolvimento
institucional” formuladas pelo Banco Mundial para os governos municipais, desde o início
de suas operações urbanas, no princípio da década de 1970. O desenvolvimento
institucional tem se constituído, desde a década de 1980, em um componente fundamental
dos projetos urbanos do Banco, pois tem sido por ele utilizado como uma das maneiras
para difundir e implementar novas formas de gestão urbana nos países da periferia
capitalista, com objetivo principal de criar um ambiente favorável aos negócios nas
cidades.
O chamado desenvolvimento institucional tem se constituído nas ações de assessoria
técnica, consultorias, cursos, informatização de prefeituras e “modernização” da máquina
pública municipal, promovidas pelo Banco Mundial, principalmente por intermédio de
seus projetos urbanos, e é por ele definido como o “processo de aperfeiçoamento de
habilidades de instituições para que façam uso efetivo dos recursos humanos e financeiros
disponíveis no país, com o objetivo central de se promover o desenvolvimento” (ISRAEL,
1987).
Esta definição, aparentemente “ingênua”, na verdade tem servido para ocultar os
verdadeiros objetivos do desenvolvimento institucional que é, antes de tudo, difundir as
idéias hegemônicas do Banco sob a sua concepção de cidade. Ao se analisar esta definição
1
Doutorando pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ) e Professor Assistente do Departamento de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Viçosa: [email protected]
de desenvolvimento institucional formulada pelo Banco verifica-se que, a princípio, não há
como contestá-la, pois, poderia se questionar: quem seria contra aperfeiçoar habilidades
das instituições para que elas façam uso efetivo dos recursos humanos e financeiros do país
para que ele se desenvolva?
Acredita-se que ninguém seria contrário. O que seria
questionado, com certeza, diz respeito ao conjunto de idéias difundidas nesse processo de
aperfeiçoamento de habilidades e ao qual a administração municipal não tem como
escapar, pois participar das ações de desenvolvimento institucional, desde a década de
1980, se tornou condição sine qua non para receber os empréstimos do Banco. Um
documento de avaliação do Banco deixa claro os seus objetivos a respeito das ações de
desenvolvimento institucional: para aqueles países que possuem “instituições fracas e
políticas pobres, o Banco, ao invés de prover dinheiro, deveria prover apenas idéias”
(WORLD BANK, 2002:4).
Estas idéias, além de serem difundidas através de cursos, assessoriais, assistências
técnicas, reuniões etc., têm sido disseminadas também por intermédio de inúmeras
publicações, pelo sítio eletrônico do Banco, através do patrocínio e apoio a eventos
culturais e científicos, além de campanhas e programas, destacando-se a Campanha Global
pela Boa Governança e o Programa de Gestão Urbana, todos os dois eventos realizados
juntamente com o PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e a
Agência Habitat, com o apoio financeiro de agências bilaterais e fundações privadas
(WERNA, 1996:14).
A força deste discurso tem sido tão intensa que os países, na maioria das vezes, não
têm como escapar do receituário difundido por essas agências, principalmente aqueles
largamente endividados e que dependem da “ajuda” delas. Essas agências convencionaram
o que seriam “boas políticas” e “boas instituições” e têm pressionado2 os governos dos
países da periferia para que as adotem. Para elas, “boas políticas” seriam aquelas prescritas
pelo Consenso de Washington, isto é, políticas macroeconômicas restritivas, liberalização
do comércio internacional e dos investimentos, privatização e desregulamentação. E “boas
instituições” seriam, essencialmente, as existentes nos países centrais, sobretudo, nos
anglo-saxônicos, quais sejam, a democracia, a “boa” burocracia, o judiciário independente,
a proteção aos direitos de propriedade privada e um governo empreendedor, transparente e
orientado para e pelo mercado (CHANG, 2004:11-12).
2
O conceito de pressão utilizado neste artigo refere-se à capacidade de um país ou de uma organização A
forçar outro país ou outra organização B a fazer algo que em outras condições não faria. Essa definição de
pressão tem como pressuposto a idéia de que a pressão e o interesse nacional são elementos opostos na
determinação de políticas.
A difusão e a implementação de “boas políticas” e “boas instituições” têm como
objetivo redefinir o que é cidade e enquadrar as administrações públicas municipais em um
modelo de gestão gerencial ou empreendedorista para que a cidade seja administrada como
se fosse uma empresa, isto é, tendo como “horizonte o mercado, tomando decisões a partir
de informações e expectativas geradas no e pelo mercado (...)” (VAINER:2000:89).
Vainer - um dos principais críticos desse modelo de gestão urbana empresarial afirma que os projetos de cidade norteados por esta forma de gestão estão sempre sujeitos
aos interesses empresariais globalizados e dependem, em grande medida, da eliminação da
política, do conflito e das condições de exercício da cidadania (2000:77). Para o autor, esta
proposta não se resume simplesmente em uma mudança administrativa ou operacional em
direção ao modelo gerencial, mas na redefinição do conjunto da cidade e do poder local,
isto é,
“o conceito de cidade, e com ele os conceitos de poder público e de governo da
cidade são investidos de novos significados, numa operação que tem como um dos
esteios a transformação da cidade em sujeito/ator econômico...e, mais,
especificamente, num sujeito/ator cuja natureza mercantil e empresarial instaura o
poder de uma nova lógica, com a qual se pretende legitimar a apropriação direta
dos instrumentos de poder público por grupos empresariais privados.” (VAINER,
2000:89)
Nesta perspectiva, a cidade passa a operar como um “agente econômico que atua no
contexto de um mercado e que encontra neste mercado a regra e o modelo do
planejamento e execução de suas ações”. Assim, nesta cidade gerida tendo como
referência interesses empresariais é
“o setor privado que vai liderar as estratégias econômicas locais, estabelecendo-se
parceria com o setor público, que assegurará que os interesses do mercado estarão
adequadamente presentes, representados no processo de planejamento e de decisão.
Isto quer dizer que os capitalistas e empresários participarão diretamente dos
processos de decisão referentes ao planejamento e execução de políticas públicas”
(VAINER, 2000:97-89).
Para designar esta forma de gestão que atende os interesses capitalistas o Banco
Mundial resgatou a expressão “governança urbana” e, a partir da década de 1990, passou a
dar importância cada vez maior às questões que envolvem este tema. Nesse sentido, tem
produzido inúmeros documentos, patrocinado cursos, eventos, se reestruturado
internamente, inclusive transformou o Economic Development Institute - EDI no World
Bank Institute - WBI, atribuiu-lhe mais poder e ampliou a sua atuação para ministrar
cursos e difundir as suas noções sobre governança.
Esta nova ortodoxia do Banco Mundial, centrada na redefinição do papel do Estado
para reduzir a sua intervenção na economia, tem sido formulada a partir de um debate
recente sobre a questão do desenvolvimento econômico, tendo como referência a
experiência do leste asiático confrontada com a de outros países, com destaque para a
América Latina. Estas experiências, muitas vezes, têm se traduzido em “teorias” que, a
partir do que os seus autores consideram como “sucesso” dos países do leste asiático e
“fracasso” dos países latino-americanos, indicam uma base normativa para se pensar o
papel do Estado nesse processo (GADELHA, 1998:7).
Nessa linha, o Banco Mundial também produziu a sua “teoria”, que foi publicada em
1993 no documento intitulado The East Asian Miracle: Economic Growth and Public
Policy. Estas idéias serviram mais para conferir substância teórica, histórica e empírica à
sua base normativa sobre o que deveria ser o papel do Estado para atender às necessidades
do mercado do que para compreender a experiência dos países asiáticos. Este receituário
produzido pelo Banco tem se constituído na visão hegemônica entre especialistas de
diversas agências internacionais, de países centrais e mesmo dos periféricos acerca das
medidas a serem tomadas pelos países da periferia capitalista para alcançar o mesmo
“sucesso” dos países asiáticos.
O parágrafo abaixo elucida esta visão hegemônica largamente difundida entre os
países da periferia capitalista. Como pode ser percebida, diferentemente da corrente
neoclássica que descarta a intervenção do Estado na economia, esta visão aceita a
intervenção do Estado, no entanto, ela deve estar direcionada para estimular o
funcionamento dos mecanismos de mercado, enfatizando as políticas governamentais
funcionais:
“In the past twenty years a consensus has emerged among economists on the best
approach to economic development. This consensus was discussed at length in World
Development Report 1991 […] The Report highlighted the importance of a healthy
private sector, which results from investments in people, a much reduced role for
government, openness to (and so competitiveness with) the rest of the world, and
macroeconomic stability. These ideas have crystallized into what is now called the
‘market friendly’ approach.” (The World Bank, 1993:85 apud GADELHA, 1998:8).
2. Contextualizando as reformas neoliberais...
Estas mudanças nas formas de gestão urbana, que passam pela redefinição do papel
do Estado são formas que os capitalistas têm buscado para sair da crise por que o passa o
sistema no contexto do fenômeno de mundialização do capital e da reestruturação
produtiva3 em curso. O objetivo destas mudanças na gestão urbana seria o de facilitar a
criação de ambientes favoráveis nas cidades para manter ou aumentar os níveis de
acumulação capitalista. Afinal, cada vez mais, a economia dos países está se concentrando
nas cidades, principalmente no chamado terceiro mundo, chegando em algumas situações a
corresponder a 90% do PIB, como é o caso do Brasil.
Esta reestruturação, provocada pela crise do modelo de desenvolvimento “fordistakeynesiano”4, crise esta iniciada em meados dos anos 1960 (HARVEY, 1996:70, RIBEIRO
& SANTOS JÚNIOR, 1994:11, LIPIETZ, 1988:56-59), pressionou as empresas a
buscarem formas mais flexíveis de produção e de administração para se contrapor à rigidez
não só da cadeia de produção do modelo fordista, como também à estrutura administrativa
fortemente hierarquizada e verticalizada dessas empresas.
Os fatores mais claros dessa crise consistiram na desaceleração geral dos ganhos de
produtividade, que afetaram até os ramos mais tipicamente fordistas - a indústria
automobilística, por exemplo -, como também o desemprego e o aumento dos gastos
previdenciários do chamado Estado de Bem Estar Social5 (LIPIETZ, 1988:57), motivo
principal da chamada crise do modelo “keynesiano” de desenvolvimento.
O papel do Estado passou a ser repensado e reformado principalmente sob a lógica
das idéias neoliberais6, hegemônicas a partir dos anos 1980. Com as reformas neoliberais,
3
VELTZ (1996:183) resume da seguinte forma a idéia de reestruturação produtiva: “as grandes firmas têm
uma tendência a se fragmentar em unidades de tamanho às vezes muito reduzido, assim como a terceirizar
uma parte crescente de suas atividades. (...) O modelo pipe-line de produção em massa, no qual a própria
firma produzia praticamente tudo, desde os estudos até a comercialização, passando pela fabricação dos
componentes essenciais, recua inexoravelmente e cede lugar a modelos em rede muito mais diversificados e
complexos, nos quais coexistem business units mais ou menos autônomas no plano operacional – mas
rigidamente enquadradas no plano estratégico, financeiro e normativo – e a inúmeras empresas terceirizadas
(...)”.
4
O chamado modelo fordista de produção foi aquele que se generalizou a partir da Segunda Guerra Mundial,
principalmente entre os chamados países centrais e se caracterizou pela produção em massa e pelo consumo
em massa. O modelo “keynesiano” foi proposto pelo economista inglês John Maynard Keynes e se
caracterizou principalmente pela defesa da intervenção do Estado na economia. Keynes achava que uma
política governamental anticíclica correta, particularmente (mas não apenas) em setores como tributação,
oferta de dinheiro, expansão e contratação do crédito, taxas de juros, obras públicas e especialmente déficits
orçamentários e excedentes orçamentários, poderia garantir o pleno emprego, ou quase, e uma taxa de
crescimento econômico por longos períodos, talvez para sempre (SOUZA, 1999:155-159).
5
Deve-se ressaltar que esta crise atingiu diferentemente os países tendo em vista os diferentes graus de
adoção deste modelo de desenvolvimento “fordista-keynesiano”. Nos países periféricos, como no caso do
Brasil, diversos autores apontam que o modelo fordista de produção não se completou e nem o Estado de
Bem Estar Social, portanto, a crise deriva mais dos encadeamentos amplificados pelas interconexões com as
diferentes formações socioeconômicas, principalmente com as do países do centro e dos fenômenos
específicos de cada formação social considerada do que propriamente de uma crise do modelo “fordistakeynesiano”.
6
As idéias neoliberais começaram a tomar forma no final dos anos 1930, em Paris. Mais precisamente, no
dia 26 de agosto de 1938, trinta participantes, jornalistas e professores universitários, entre eles os
economistas austríacos Friedrich von Hayek e Ludwig von Mises se reuniram no Colóquio Walter Lippman
formando a “vanguarda intelectual do liberalismo econômico militante” (DIXON, 1999:2-3). Esta corrente
caracterizadas principalmente pela abertura comercial, desregulamentação da economia e
privatização das empresas estatais, o Estado de Bem Estar Social foi cedendo lugar para
um Estado cujo papel se tornou cada vez mais secundário na condução da economia e dos
destinos da sociedade. A lógica hegemônica foi a da economia de mercado.
BOURDIEU destaca a força do discurso neoliberal a partir dos anos 80. Ao visar um
trabalho de “doutrinação simbólica do qual participavam passivamente os jornalistas ou
os simples cidadãos e, sobretudo, ativamente, um certo número de intelectuais.” (1998:42)
esse discurso, sob as “aparências da inevitabilidade”, produziu (e ainda produz) “efeitos
muito profundos” e possui um conjunto de pressupostos que são
“impostos como óbvios: admite-se o crescimento máximo, e logo a produtividade e a
competitividade é o fim último e único das ações humanas; ou que não se pode
resistir às forças econômicas. Ou ainda, pressuposto que fundamenta todos os
pressupostos da economia, faz-se um corte radical entre o econômico e social, que é
deixado de lado e abandonado aos sociólogos, como uma espécie de entulho. Outro
pressuposto importante é o léxico comum que nos invade, que absorvemos logo que
abrimos o jornal, logo que escutamos o rádio, e que é composto, no essencial de
eufemismos.” (BOURDIEU, 1998:44)
O êxito do neoliberalismo no campo cultural e ideológico pode-se dizer que foi
completo, pois
“(...) não só impôs o seu programa, mas também inclusive, mudou o sentido das
palavras. O vocábulo “reforma”, por exemplo, que antes da era neoliberal tinha
uma conotação positiva e progressista – e que, fiel a uma concepção iluminista,
remetia a transformações sociais e econômicas orientadas para uma sociedade mais
igualitária, democrática e humana – foi apropriado e ‘reconvertido’ pelos ideólogos
do neoliberalismo num significante que alude a processos e transformações sociais
de claro sinal involutivo e antidemocrático.” (BORON, 1999:11)
Um dos principais difusores das idéias neoliberais e promotor7 das reformas do
Estado em toda periferia capitalista foi e tem sido o Banco Mundial. Esta agenda
reformista foi lançada, em 1980, no discurso de despedida de McNamara como presidente
do Banco. Para dar forma a estas reformas o Banco criou dois tipos de empréstimos: o
chamado empréstimo de ajuste estrutural (structural loan) e o de ajuste setorial (sectorial
loan). O objetivo consistiu em reestruturar as finanças dos países tomadores de
de pensamento, antes de tornar-se dominante a partir dos anos 1980, percorreu um longo processo de
constituição e consolidação.
7
No período de 1997 a 2000, por exemplo, o Banco financiou cerca de 1600 projetos classificados como
“Reforma do Estado e Governance”, totalizando um montante de recursos destinados a estas reformas em
torno de US$ 7 bilhões, neste período (REZENDE, 2003:226).
empréstimos, sanear suas economias para que pudessem pagar pelos empréstimos tomados
não só ao próprio Banco como também aos bancos privados.
Na visão do Banco, o mercado deveria operar livre e eficientemente e, para isto,
seriam necessárias reformas nos aparelhos do Estado para desobstruir os entraves políticos,
econômicos e legais. O Banco elaborou então uma fórmula única de reformas estruturais
para ser aplicada em todos os países que estavam pleiteando os seus empréstimos,
independentemente das diferentes características de seus problemas. E faz parte desta
fórmula a pressão sobre eles para que adotarem o receituário de reformas. Para
CAULFIELD (1996:145), “somente países nas mais desesperadas circunstâncias aceitaria
tais intrusões em suas soberanias”. No entanto, a crise da dívida tinha deixado muitos
países nesta situação e, portanto, dependentes dos empréstimos do Banco.8
Utilizando-se da ideologia da globalização9 e dos recursos técnicos e dos avanços nas
áreas de comunicação e de informática, mas também de congressos, seminários, workshops, jornais, rádios, televisões, etc. o discurso neoliberal percorreu o mundo, aportandose na América Latina nos 1980 e, no Brasil10 no governo Collor11, no início da década de
1990. A crise da dívida, a dificuldade para debelar a inflação e os sucessivos fracassos dos
planos econômicos durante o Governo Sarney contribuíram não só para aumentar a
vulnerabilidade externa do país como também para que os organismos multilaterais de
crédito e o governo americano pressionassem ainda mais o governo brasileiro para realizar
8
Apesar de projetados para durarem de três a cinco anos, muitos dos empréstimos de ajustes duraram mais
de dez anos e, ao invés de reverter o processo de crise dos países mutuários, pelo contrário, acentuaram a
crise. De acordo com CAULFIELD (1996:149), em 1982, os empréstimos de ajuste estrutural tinham
ultrapassado os 10% autorizados pelo board do Banco. Em 1986, esta modalidade de empréstimo já
ultrapassava 25% e nos anos de 1989, 1990, 1991 e 1992 estes empréstimos também excederam os 25%.
Ainda de acordo com a autora, em 1995, oitenta e oito países tinham contraído empréstimos de ajuste
estrutural e nenhum deles conseguiu ajustar suas economias em três anos, conforme prescrevia o Banco.
9
Para Bourdieu, a globalização é um fenômeno que se repete na trajetória do capitalismo desde o século XV
e, na sua forma mais recente, pode ser entendida como um “mito no sentido forte do termo, um discurso
poderoso, uma ‘idéia-força’, uma idéia que tem força social, que realiza a crença. É a arma principal das lutas
contra as conquistas do welfare state.” (1998)
10
Os governos militares e Sarney, pressionados pela elite industrial dominante visando manter sua liderança
na condução do processo de industrialização do país, resistiram à entrada das políticas neoliberais no Brasil,
devido ao modelo de desenvolvimento adotado com significativa presença do Estado na sua condução.
11
Com a nomeação de Marcílio Marques Moreira para Ministro da Fazenda – pessoa de confiança da
comunidade financeira internacional - o seu governo passou a subscrever, sem reservas, o Consenso de
Washington, como forma de se credenciar a uma renegociação da dívida externa. Ou seja, o governo Collor
passou a admitir que a política macroeconômica poderia ser definida a partir das condições estabelecidas
pelos credores.
reformas econômicas de orientação neoliberal12, ratificadas pelo “Consenso de
Washington”13.
O colapso do governo Collor não impediu que as linhas mestras do pensamento
neoliberal e as idéias reformistas sobrevivessem não só ao governo Itamar Franco e aos
dois governos Fernando Henrique Cardoso, como também, pelo menos até o momento, ao
governo Lula.14
3. Desenvolvimento institucional: trajetória inicial
Os primeiros estudos sobre desenvolvimento institucional datam do início da década
de 1960, com o nome de “institution building”, como forma de os Estados Unidos
aumentarem sua presença nos países da periferia capitalista, para “cumprir missão
civilizadora” (PINTO, 1989:9), difundir a doutrina capitalista e o “american way of life” e,
principalmente, estancar o crescimento do comunismo. Os Estados Unidos já tinham uma
presença acentuada nesses países, principalmente na prestação de assistência técnica e
econômica, através de suas agências de desenvolvimento e do Banco Mundial, e por outras
organizações internacionais. No entanto, estas ações não estavam tendo o impacto
esperado, pois se centravam em poucas pessoas, principalmente na individualidade de
assessores estrangeiros e dos especialistas nativos treinados em seu próprio país ou nos
Estados Unidos e Europa. (SANTOS, 1980:5-6)
12
O ideário neoliberal já havia sido apresentado à diretoria da FIESP pelo Institute for International
Economics em uma publicação intitulada Towards Economic Growth in Latin American, que contou com a
colaboração do economista brasileiro e ex-ministro da Fazenda Mário Henrique Simonsen.
13
A expressão “Consenso de Washington” foi cunhada e publicada em 1990 pelo economista norteamericano John Williamson. A importância do Consenso de Washington se deve ao fato de reunir em um
único conjunto, elementos antes esparsos e oriundos de fontes diversas, às vezes diretamente do governo
norte-americano, outras vezes de suas agências, do FMI ou do Banco Mundial. O Consenso de Washington
não tratou de formulações novas, mas simplesmente de ratificar as existentes, como medidas estruturais para
a crise econômica da periferia capitalista (FIORI, 2001:84).
14
O jornal Folha de São Paulo, de 25 de maio de 2003, Caderno B, p. 4, traz a seguinte manchete: “Lula
reproduz nova agenda de Washington” e em um subtítulo afirma: “Consenso clonado: discurso do governo
traz mesmas idéias do receituário renovado do Banco Mundial para os países emergentes”. A reportagem
descreve vários pontos comuns entre o pensamento do Banco Mundial e do governo Lula. Em entrevista à
Folha de São Paulo, de 27 de abril de 2003, o economista Emanuel Skoufias, do BID, afirmou que “não é um
consenso apenas em Washington que, quando se tem pouco dinheiro, deve-se procurar empenhá-lo onde o
retorno é maior. É uma questão de bom senso. Se o dinheiro hoje é dirigido a atividades pouco efetivas, o
melhor a fazer é tirá-lo de lá para direcionar para algo mais produtivo”. Antônio Palocci Filho – Ministro da
Fazenda do Governo Lula – também em entrevista ao mesmo jornal, afirmou: “a focalização (em programas
sociais) é uma questão de bom senso, não de políticas de direita ou esquerda”. (Folha de São Paulo, de 27 de
abril de 2003, domingo, Caderno A, p. 4)
Os limitados resultados fez com que o governo americano financiasse estudos em
busca de modelos que produzissem os resultados esperados mais rapidamente e de forma
mais consistente. Assim, sem abandonar o modelo de assistência técnica, uma vez que ele
continuou e continua a ser aplicado em larga medida, não só pelos Estados Unidos, mas
também pela União Européia e Japão, o foco das atenções foi deslocado para as
organizações.
Nesta época, estudos já apontavam algumas vantagens das organizações como
vetores mais adequados do que a prestação de assistência técnica para institucionalização
de novos valores, padrões, processos, estruturas, de novas tecnologias e normas de
comportamento entre os países do terceiro mundo. Algumas dessas vantagens seriam: as
organizações reuniriam com mais facilidade recursos humanos, físicos e tecnológicos para
viabilizar de forma racional os objetivos traçados; as organizações seriam mais
consistentes para a introjeção de valores e atitudes tanto em participantes internos como
externos; e as organizações possuiriam maior capacidade para superar obstáculos,
contornar forças negativas internas e externas e seguir atuando e influindo no ambiente em
que operam (ESMAN e BLAISE, 1966:1 apud SANTOS, 1980:6, PINTO, 1969:21).
Assim, em 1964, financiado pelo governo americano através da USAID e pela
Fundação Ford, foi formado um grupo de pesquisadores de várias universidades norteamericanas para construir uma base teórica sobre o tema. Este grupo recebeu o nome de
Inter-University Research Program in Institution Building – IRPIB. A sede foi a
University of Pittsburgh e participaram dele as Universidades de Michigan, Syracuse e
Indiana. Posteriormente, se integraram ao programa as Universidades de Minnesota,
Wisconsin, Illinois, Chicago e Purdue (SANTOS, 1980:7).
Apoiados na literatura sobre teoria da administração, comportamento organizacional,
mudança social e na teoria dos sistemas, Milton Esman e Hans Blaise – dois dos principais
pesquisadores desse grupo – estruturaram uma base conceitual que passou a influenciar
significativamente as ações do governo americano e das agências multilaterais,
destacando-se o Banco Mundial. Esman e Blaise consideraram as organizações como
sistemas abertos em permanente interação com o seu meio ambiente, em contínuo processo
de influenciação mútua. Segundo os autores, as organizações recolheriam energia do
ambiente (inputs) que seria processada e convertida em produtos (outputs) que seriam
absorvidos pelo ambiente (PINTO, 1980:12).
Sob essa ótica, para esses autores, as mudanças de comportamento dos governos dos
países periféricos seriam mais eficazes por intermédio das relações entre organizações,
como a USAID ou o Banco Mundial, por exemplo, com os organismos governamentais
desses países. Por intermédio das inter-relações entre organizações, com mais propriedade,
o receituário seria difundido de forma mais consistente, rápida e duradoura e se
produziriam os resultados (ideológicos) esperados pelos países centrais. Nesse sentido, as
principais áreas que as organizações internacionais poderiam influenciar ou pressionar os
órgãos governamentais para se produzir as mudanças recomendadas em direção à adoção
das “boas políticas” e das “boas instituições” seriam, segundo esses autores, trabalhar
principalmente junto às lideranças governamentais, mudar a doutrina dos órgãos
governamentais, os seus programas de governo, influenciar os seus recursos e em reformar
sua estrutura interna.
4. O Banco Mundial e o desenvolvimento urbano
O Banco Mundial foi criado em 1944, juntamente com o Fundo Monetário
Internacional – FMI -, na conferência de Bretton Woods, New Hampshire, EUA, com o
objetivo de promover uma nova ordem econômica internacional no pós-guerra, ajudar na
reconstrução da Europa devastada pela Segunda Guerra e promover o desenvolvimento dos
países da periferia capitalista. Com a aprovação do Plano Marshall15 no final dos anos
1940, o Banco deixa de financiar projetos para a Europa e passa a se dedicar aos países da
periferia.
Desde o início de suas operações, o Banco financiou principalmente grandes
projetos16 de infra-estrutura, notadamente de transportes e energia. As operações urbanas
do Banco tiveram início apenas na década de 1970. Até então, o Banco havia ignorado a
cidade como questão urbana. A cidade era pensada apenas como um lócus de apoio ao
desenvolvimento econômico, onde estavam instaladas a base produtiva e as grandes redes
de infra-estrutura. E era considerada como “um mal ou como um lugar inevitável para o
governo realizar investimentos – considerados improdutivos – pois se resumiam no
provimento de habitação popular e equipamentos sociais” (OSMONT, 1995:6,
SAMPSON, 1981:100).
O reconhecimento pelo Banco de que a urbanização era um processo irreversível
ocorreu somente no início dos anos 1970, quando ele passou a ver a cidade como motor do
15
Plano de ajudar militar e econômica dos Estados Unidos para impedir a expansão do comunismo na
Europa.
16
Cabe esclarecer que o Banco Mundial, desde o início de suas operações, empresta através de projetos e que
estes projetos, via de regra, possuem dois componentes principais: infra-estrutura e desenvolvimento
institucional ou “capacity building”.
crescimento econômico, local de reserva de mão-de-obra e da produção e do consumo,
considerados fatores favoráveis às economias de escala para os vários setores da economia
urbana (OSMONT, 1995:7, 25-26). O início das operações urbanas não se deu sem um
amplo debate entre os especialistas favoráveis ao financiamento de projetos urbanos e
aqueles que defendiam o financiamento apenas de projetos para o setor rural. Neste debate,
os especialistas favoráveis ao financiamento de projetos urbanos estavam em uma posição
desfavorável devido a uma espécie de “consenso internacional” de que a assistência
prestada pelos países centrais e pelos organismos multilaterais deveria priorizar apenas o
setor rural (COHEN, 1983:3).
Dois discursos de Robert McNamara – presidente do Banco nesta época –
contribuíram para apressar o início das operações urbanas. O primeiro foi pronunciado em
1972, no Chile, onde McNamara convoca seus técnicos especialistas em desenvolvimento
para formular projetos para tornar os pobres urbanos “mais produtivos”. O segundo
discurso foi pronunciado em 1975, na Assembléia de Governadores, em Washington, onde
McNamara, preocupado com o avanço do comunismo, principalmente entre os pobres
urbanos, diz que
“historicamente, a violência e a sublevação civil são mais comuns nas cidades do
que no campo. Frustrações que se acentuam entre os pobres urbanos são
prontamente exploradas por extremistas políticos. Se as cidades não começarem a
lidar mais construtivamente com a pobreza, esta pode começar a lidar
destrutivamente com a cidade” (PAYER, 1982:316 apud MELO e MOURA,
1991:101, OSMONT, 1995:12-13).
Assim, parece que o que realmente motivou o Banco a financiar projetos urbanos,
através de políticas focalizadas para os mais pobres foi a tentativa de se evitar que esses
pobres fossem “explorados por extremistas políticos”, isto é, pelos comunistas. 17 Desde
então, já se passaram mais de três décadas e os resultados desses projetos urbanos para os
países mutuários têm sido, no mínimo, questionáveis. As sessões seguintes apresentarão
uma breve análise dos tipos de projetos urbanos adotados e/ou formulados pelo Banco e
como foram sendo alterados ou descartados ao longo do tempo na busca de soluções para
as transformações recentes motivadas pela crise do capitalismo.
17
Cabe lembrar que McNamara antes de ser indicado presidente do Banco Mundial liderou as forças
americanas no Vietnam.
4.1. Primeira década de operações urbanas (1972-1982)
Os primeiros projetos urbanos financiados pelo Banco foram os chamados shelters
projects, que se subdividam em dois tipos: slum upgrading e sites and services. O primeiro
foi criado com o objetivo de financiar a urbanização de áreas faveladas e o segundo para
financiar lotes com infra-estrutura e serviços urbanos para o próprio mutuário construir a
sua casa, através do investimento de sua poupança. Nesta década, anterior ao avassalador
domínio das idéias neoliberais presentes a partir da década de 1980, o Banco ainda admitia
a presença do Estado na regulação da economia. Estes primeiros projetos para a área
habitacional previam esta intervenção, na medida em que seria papel do poder público
fornecer lotes urbanizados para a população de baixa renda. Estes projetos, apesar de
prever a recuperação dos custos dos investimentos – cost recovery - e tarifas sem
subsídios, isto nem sempre foi possível.
Além dos shelters projects, o Banco criou os seguintes projetos: Urban Transports
Projects, para financiar o setor de transportes urbanos, os Integrated Urban Projects, para
financiar projetos que envolvem vários setores da economia urbana e os Regional
Development Projects, similar ao anterior, mas de abrangência regional.
Desde o início das operações urbanas, o desenvolvimento institucional tem se
constituído em um componente dos projetos urbanos do Banco, juntamente com o
componente de infra-estrutura. Primeiramente, as ações de desenvolvimento institucional
enfatizaram os processos de institution building - direcionados à criação e aperfeiçoamento
de agências governamentais encarregadas por implementar os projetos urbanos18 -, e de
capacity building, para treinamento e capacitação do corpo técnico dessas agências. A
preocupação do Banco na época era com a performance do projeto, ou seja, fazer com que
o projeto fosse implementado com eficiência (WORLD BANK, 1991:83).
No entanto, muitas destas ações resultaram em fracasso, conforme aponta relatório
de avaliação do próprio Banco. Este relatório, ao invés de apontar o Banco como um dos
responsáveis, senão o principal, pelos “maus resultados” das ações de desenvolvimento
institucional, aponta as instituições municipais. Textualmente, este relatório diz que as
instituições possuem “problemas endêmicos” e apresentam “dificuldades para aperfeiçoar
sua organização interna, seus procedimentos, capacitar seu staff e responder por novos
papéis e responsabilidades”. Ainda de acordo com o relatório, o fracasso deriva também
da existência de várias instituições com as mesmas atribuições operando em áreas urbanas
18
A criação da EBTU – Empresa Brasileira de Transportes Urbanos é um exemplo de institution building no
Brasil.
e a falta de coordenação entre elas, à falta de capacitação e má remuneração do corpo
técnico das prefeituras, da falta de autonomia municipal e das mudanças constantes nas
prioridades dos investimentos urbanos, nos diferentes níveis de governo (COHEN,
1983:42).
4.2. Segunda década de operações urbanas (1983-1992)
Esta década é marcada pela ampliação das ações de desenvolvimento institucional do
Banco que, além de continuar a promover a institution building, passa a apoiar e promover
não só amplas reformas de Estado como também a “reestruturação de setores dos
aparelhos de Estado, visando à adoção de um formato empresarial nas agências
governamentais urbanas, (...) consistente com o credo neoliberal” (MELO e MOURA,
1990:104). Estas intervenções do Banco diretamente nos aparelhos de Estado, nos três
níveis de governo, visando reduzir drasticamente o seu tamanho e diminuir as suas
funções, tornam suas ações cada vez mais politizadas19 e com isso mais visíveis. Os
debates em torno das operações do Banco ampliam-se no sentido de se questionar não só
em que medida ele estaria ou não infringindo a soberania dos países ao exigir reformas,
como também sobre as repercussões políticas das condicionalidades “impostas”20, as quais
passam a se constituir em variáveis centrais em seu processo de decisão (HELLEINER,
1986 apud MELO e MOURA, 1990:102).
Em 1991, o Banco formaliza uma nova agenda urbana que passa articular as questões
urbanas com a política macroeconômica. Diferentemente da agenda urbana da década
anterior que enfatizou os aspectos físico-territorias dos projetos e as intervenções pontuais
nas cidades, a agenda lançada em 1991 para vigorar na década de 1990, está centrada na
produtividade e na competitividade da cidade. A idéia é aumentar a produtividade das
cidades e com isso a produtividade da economia nacional. Ou seja, não é possível fazer
19
Cabe lembrar que dimensão política esteve presente também no passado – a suspensão prolongada
das operações com o Brasil na década de 50 é um exemplo paradigmático neste sentido.
20
As políticas públicas, como qualquer ação humana, são definidas, implementadas, reformuladas ou
desativadas com base na memória da sociedade ou do Estado em que têm em curso. Elas são construídas a
partir de representações sociais que cada sociedade desenvolve a respeito de si própria e guardam intrínseca
conexão com o universo cultural e simbólico ou com o sistema de significações que é próprio de uma
determinada realidade social. As representações sociais predominantes fornecem os valores, normas e
símbolos que estruturam as relações sociais e, como tal, fazem-se presentes no sistema de dominação,
atribuindo significados à definição social da realidade que vai orientar os processo de decisão, formulação e
implementação das políticas. Isto permite afirmar que as orientações ou “imposições” não são transplantadas
mecanicamente para qualquer sociedade. Na realidade, elas são “ressegnificadas” no ambiente em que foram
elaboradas de acordo com a relação de poder que se estabelece neste ambiente (JOBERT et MULLER, 1987
apud AZEVEDO, 2001:xiv-xv, AZEVEDO, 2001:XV).
reformas nos níveis das políticas macroeconômicas para se alcançar os constantes
superávits primários sem que se faça também reformas nas instituições urbanas, uma vez
que parte significativa da economia, atualmente, está localizada na cidade. Assim, o Banco
passa a compreender que a
“cidade e a política urbana constituem elemento central da própria dinâmica
macroeconômica. Como a economia contemporânea é, em grande medida, economia
urbana – baseada na cidade e voltada para a cidade -, o desempenho econômico da
cidade é central para o desempenho da economia como um todo. Assim, a
produtividade da cidade é vetor essencial na determinação da produtividade da
economia. Elevar a produtividade da cidade é elevar a produtividade, e, por
conseguinte, a competitividade da economia” (VAINER, 2004).
Nota-se também, neste período, uma ampliação das linhas de pesquisa urbana e do
volume de recursos destinados aos empréstimos urbanos bem como do número de projetos.
A abordagem da década anterior que privilegiava um número reduzido de cidades é
substituída por uma nova abordagem que visa atingir o maior número de cidades,
abordagem esta denominada pelo Banco de “por atacado” (WORLD BANK, 2000:123).
Com a crise da dívida dos países do terceiro mundo, o Banco passa a emprestar
diretamente para os governos estaduais e a negociação sobre os componentes dos projetos
passa a ser realizada diretamente entre os governos estaduais e o Banco, sem que haja
interferência do governo federal, a não ser para aprovar e avalizar o empréstimo. Quer
dizer, o governo federal passou a não mais participar da definição de políticas urbanas em
projetos urbanos financiados pelo Banco Mundial.
Nesta década, o Banco criou também um novo projeto denominado Municipal
Development Project – MDP - em mais uma tentativa de mudar a perspectiva físicoterritorial dos projetos da década anterior para uma visão de cidade integrada, que
contemplasse também as dimensões política, ambiental e a econômica. No entanto, na
prática isto não acontece. Nestes projetos não estão previstas ações para as áreas sociais
como construção, aparelhamento de escolas, hospitais, postos de saúde, creches ou
capacitação de profissionais para estas áreas, por exemplo. O componente infra-estrutura
urbana se restringe à construção de praças públicas, pavimentação de ruas, reestruturação
de serviço de limpeza urbana, construção e reformas de rede de esgoto e de água,
drenagem urbana, construção de mercados, etc. E o componente desenvolvimento
institucional privilegia a área financeira municipal com objetivo fiscal, ou seja, aumentar a
arrecadação municipal.
Destaca-se nestes projetos de desenvolvimento municipal a importância dada pelo
Banco
ao
componente
desenvolvimento
institucional,
que
passa
a
ser
uma
condicionalidade atrelada ao empréstimo, isto é, a participação do município nas ações de
desenvolvimento institucional é condição obrigatória para que ele tenha acesso ao
financiamento. Nesses projetos, o desenvolvimento institucional, para atrair os municípios,
é oferecido a fundo perdido, pelo menos em sua fase inicial, e os recursos financeiros
destinados a treinamentos, assessoriais, informatizações, reformas administrativas são
oriundos do próprio Banco e não da contra-partida dos estados.
Nem todos os municípios podem participar do projeto. A participação é restrita aos
municípios que comprovem capacidade de endividamento, apresentem superávit primário
de no mínimo 15% do total de suas receitas e comprovem que o estoque da dívida é menor
ou igual às receitas totais. Além disso, se a sua população urbana for inferior a um
determinado valor estipulado pelo projeto, o município não poderá participar do projeto21.
Ou seja, são principalmente os critérios de ordem econômica e financeira que definem a
participação ou não dos municípios no projeto e não as demandas da população local.22
4.3. Terceira e quarta décadas de operações urbanas (1993-2004)23
Neste período, o Banco continua a promover amplas reformas nas instituições
públicas municipais sob a lógica neoliberal. No entanto, procura corrigir “alguns excessos”
ocorridos na década anterior, quando houve um rápido desmantelamento dessas
instituições, que prejudicou a implementação de suas reformas e o funcionamento da
economia de mercado. A questão principal que o Banco passa a discutir nesta década é a
“qualidade do Estado” e não o seu tamanho.
A questão da qualidade do Estado também está diretamente vinculada à formulação e
à implementação de políticas públicas. O Relatório de 1997 do Banco Mundial preconiza
que o Estado, ao invés de dispersar seus parcos recursos em políticas universalizantes,
deveria “focalizar as suas ações”24, isto é, “concentrar a sua capacidade nas tarefas que
pode e deve executar” (BANCO MUNDIAL, 1997).
21
No caso do PRODUR – Ba, o município deverá ter uma população urbana superior a 15000 habitantes.
Há notícias – ainda a serem comprovadas – que alguns prefeitos apelam também para as relações políticas
para credenciar seus municípios aos projetos, quando a situação financeira não se enquadra nos critérios
mencionados.
23
Como não há mudanças significativas nas operações urbanas do Banco nas décadas de 1990 e 2000
optamos por analisar este período conjuntamente.
24
O princípio da focalização dos programas sociais é também compartilhado pelo BID – Banco
Interamericano de Desenvolvimento - e pelo Ministério da Fazenda do Brasil. Em entrevista à Folha de São
22
No entanto, é importante esclarecer que nesta nova visão hegemônica do Banco a
qualidade que se prega não é para todos os setores do Estado, mas apenas para aqueles que
facilitariam, através da implementação de “boas” políticas e de “boas” instituições, o
“bom” funcionamento do setor privado. Deve-se destacar também que neste novo
receituário de reformas, apesar da retórica da qualidade, e de que o tamanho do Estado não
é mais importante, nota-se que, na prática, as reformas continuam a ser no sentido de
promover uma drástica redução do Estado, através de privatizações, concessões,
terceirizações, parcerias, coalizões etc.
Nesta década nota-se também a introdução de novos léxicos na linguagem do Banco,
destacando-se para o termo “governança”, recuperado para designar o modelo de gestão
(pós-reformas neoliberais) caracterizado pela coalizão entre governo, sociedade organizada
e mercado para administrar a cidade, ou seja, uma espécie de “governo paralelo” na cidade.
Ou seja, governança urbana é uma espécie de “governo paralelo” na cidade que conta com
a participação do governo local, mas de forma subordinada aos interesses do mercado, isto
é com atribuições apenas para viabilizar um sistema de regras, de instituições e de
mecanismos que sejam previsíveis e que não criem empecilhos para o funcionamento do
mercado. Aliás, nesta forma de “governo” quem dita as regras de forma hegemônica é o
mercado.
A expressão governança urbana tem sido também definida pelo Banco por um
conjunto de atributos, quais sejam: “accountability”, “responsiveness”, “management
innovation”, participação e combate à corrupção. O Banco está desenvolvendo um ranking
sobre governança urbana, para medir a qualidade da gestão das cidades de acordo com os
atributos por ele criados. Vários destes atributos são de difícil tradução para o português ou
mesmo para outras línguas. Quando o Banco escreve sobre “accountability” pode estar
falando de finanças, comunicação, de estrutura normativa e de política administrativa.
“Responsiveness” pode significar habilidade do governo para determinar e responder às
necessidades de seus eleitores, “management innovation” pode significar a habilidade do
governo para implementar mudanças nos sistemas de administração, o que quer dizer
Paulo, de 27 de abril de 2003, o economista Emanuel Skoufias, do BID, afirmou que “não é um consenso
apenas em Washington que, quando se tem pouco dinheiro, deve-se procurar empenhá-lo onde o retorno é
maior. É uma questão de bom senso. Se o dinheiro hoje é dirigido a atividades pouco efetivas, o melhor a
fazer é tirá-lo de lá para direcionar para algo mais produtivo”. Antônio Palocci Filho – Ministro da Fazenda
do Governo Lula – também em entrevista ao mesmo jornal, afirmou: “a focalização (em programas sociais) é
uma questão de bom senso, não de políticas de direita ou esquerda”. (Folha de São Paulo, de 27 de abril de
2003, domingo, Caderno A, p. 4)
estabelecer parceria público-privado, interação governo local-cidadão e “networking”, ou
seja, estabelecer rede de relações com outras cidades.
Muitas vezes, nos documentos do Banco a palavra governança não está
explicitamente mencionada. É comum o uso, em substituição, de um ou vários de seus
atributos. Isto é, se em algum documento estiver escrita a palavra “accountability”, por
exemplo, isto quer dizer que o Banco está falando de governança. É mais uma forma de
escamotear as suas intenções.
No ano 2000, o Banco lança uma nova agenda urbana centrada na visão de cidades
sustentáveis, sustentada no que seriam quatro qualidades que as cidades deveriam
perseguir: habitabilidade, competitividade, boa governança e boa administração e serem
solváveis financeiramente. Cidades sustentáveis, neste caso, pouco ou nada tem a ver com
sustentabilidade ambiental como poderia se pensar, mas sim com sustentabilidade
econômica. Cidades sustentáveis seriam, assim, apenas aquelas cidades que tivessem
condições de obter crédito no mercado financeiro privado.
5. À guisa de conclusão
Este artigo teve como objetivo elaborar uma breve análise das estratégias do
chamado desenvolvimento institucional nos projetos de desenvolvimento urbano do Banco
Mundial. Os primeiros projetos urbanos financiados pelo Banco privilegiaram a infraestrutura urbana e tiveram uma ênfase muito mais voltada para os aspectos físicoterritoriais do que para os aspectos sociais, políticos e institucionais. Nestes projetos, o
desenvolvimento institucional privilegiou as ações de institution building e de capacity
building das agências governamentais responsáveis pela implementação dos projetos.
A partir da década de 1980, as intervenções do Banco tornaram-se crescentemente
mais visíveis e politizadas e, por isso, mais questionáveis, devido às suas intervenções
diretas nos aparelhos de Estado, promovendo amplas reformas, reduzindo seu tamanho e
funções, em todos os níveis de governo. Para o setor urbano, criou os projetos de
desenvolvimento municipal, que têm se constituído em instrumentos para o Banco
transmitir às organizações públicas municipais suas idéias, conceitos, práticas e modelos
de gestão urbana e de planejamento urbano.
A partir dos anos 1990, a ênfase passa a ser a “qualidade” da gestão urbana, a ser
alcançada através de “boas políticas” e “boas instituições”, estipuladas de acordo com
critérios do próprio Banco. Para designar o que seria uma “boa gestão”, o Banco recuperou
o termo governança urbana, que é uma espécie de “governo paralelo”, formado por uma
coalizão entre o governo propriamente dito, eleito democraticamente, porém com papel
restrito, a sociedade civil organizada e o mercado, com o objetivo de consolidar um
ambiente favorável ao desenvolvimento da economia de mercado nas cidades. Dinheiro
dos empréstimos? Somente após a adoção deste ideário pelos governos municipais.
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