Eu - Goodreads

Transcrição

Eu - Goodreads
INTRODUÇÃO
Como pode um livro nascer, sem que o próprio autor tenha
consciência de que está criando um? Pois foi assim
que Mundos Secretos ganhou vida: Em um momento, eu só
estava pensando em todas as facetas fantásticas por detrás
da Saga das Sombras... No outro, eu já tinha em mãos cinco
contos sobre o universo dos Arcanos, cada um abordados
através de um ponto de vista diferente.
Para quem não conhece a história da criação da Saga
das Sombras, desde que me entendo por gente, eu sempre
quis produzir um livro sobre anjos e demônios. Escapista
com orgulho e apaixonado por todas as vertentes da
Literatura de Fantasia, nunca me vi escrevendo algo que não
tivesse relação alguma com esses seres...
Bom, quase nunca.
Confesso que tentei várias vezes sair desta linha e
desbravar novos mitos, afinal nós temos esses ''momentos''.
Mas de uma forma ou de outra, as narrativas nunca
funcionavam, e lá estava eu pensando mais uma vez em uma
realidade repleta de criaturas aladas e batalhas entre o Bem e
o Mal.
Desde
2006,
quando
finalmente
encontrei
a minha história e a melhor forma de narra-lá, venho
passando dias e noites imaginando e recriando o mundo que
adaptei. Pois sim, construir um mito a partir do nada é uma
tarefa difícil; mas moldar um mito já existente - e que é uma
verdadeira crença para milhares de pessoas - é algo que posso
designar como uma tarefa digna de Hércules. Afinal, como
poderia contar a minha trama sobre anjos e demônios de uma
forma original, sem quebrar os paradigmas pré-estabelecidos
e ultramente arraigados destes seres?
A resposta para esta pergunta veio para mim através
da criação dos Arcanos.
No princípio, eles seriam meros coadjuvantes. Mas o
meu fascínio por eles se tornou tão grande que logo se
transformaram nos personagens principais da trama central
da série. Na verdade, os Arcanos eram tudo o que eu queria
no momento: pessoas com dons especiais e sobre-humanos,
que poderiam ver tanto anjos quanto demônios - ficando, por
consequência, no centro de tudo.
Escolhido os narradores, um dos personagens mais
jovens da turma dos Arcanos reclamou o direito de ser nossos
olhos e ouvidos através da história. E não tinha jeito, sempre
que imaginava uma nova cena, lá estava Adrian Regis na
frente de todos os outros - dando pitacos no que acontecia ao
seu redor e tomando para si as futuras ações. Ele me
perturbou e me encheu tanto no processo de criação, que não
tive outra escolha: dei para ele o papel de protagonista da
Saga, e consequentemente, o nomeei como personagem que
dividiria conosco o seu ponto de vista pelo maior tempo
possível.
E assim, a partir de setembro 2009, comecei a escrever
e a postar no meu blog a trama de Terra das Sombras – o
romance da Saga que seria ''escrito'' pelo proscrito da
Academia Constantine.
O que eu não sabia no começo era que Adrian tinha
uma limitação, que ao mesmo tempo podia ser uma benção
ou uma maldição:
Ele era um Arcano em treinamento.
O que às vezes era útil para o desenvolvimento dos
mistérios da história, outras vezes se mostrava um problema
- pois se ele não considerasse as informações repassadas úteis
para o momento, acabava as descartando sem dó nem
piedade, e assim diminuindo muita das coisas que eu tinha
em mente sobre o seu universo.
Foi aí que surgiu o meu primeiro conto sobre a Saga
das Sombras – o ''Dança Macabra''. E para narrá-lo, ninguém
menos que Angelina Regis – a tia do Adrian.
Depois do sobrinho, não havia personagem mais
intrometida do que ela. E, após escrever uma longa conversa
- porém muito ''por alto'' - entre Adrian e seu pai sobre
demônios, logo vi que Angel era a melhor pessoa para
aprofundar um pouco mais este assunto. Em uma única
noite, escolhi o tema da mini-trama, qual adversário a garota
iria enfrentar e como a história se desenrolaria... E Deus sabe
o quanto eu me diverti escrevendo sobre o ponto de vista da
garota.
Angel tem uma personalidade completamente
diferente de Adrian. Ela conhece mais sobre o mundo ao
qual pertence. Sem falar que temos a chance de conhecer a
sua melhor amiga desmiolada Naty, e o Incubo sedento por...
''sangue'', Nicolai (personagens que tiveram inspiração em
um casal bastante famoso, mas que não posso falar aqui pois se prestar bastante atenção na sua descrição - a minha visão
sobre eles não é nem um pouco lisonjeira).
Cinco horas mais tarde, lá estava eu revisando – em
plena madrugada - o texto com mais de quinze páginas e me
perguntando qual seria o meu próximo conto.
A questão não tardou muito a ser resolvida.
Na noite seguinte, eu volto para a frente do
computador, e escrevo com fúria os acontecimentos
de Assombrado. Assim como a história de Angelina, o
pequeno conto sobre a possessão demoníaca de uma Sensitiva
- que na verdade é uma charlatã que desconhece os seus
verdadeiros dons - na frente de pessoas que não faziam
ideia do que estavam lidando levou apenas algumas horas
para ficar pronta. Porém, diferente de Dança, ele foi um dos
mais revisados e o que teve o final mais modificado das cinco
narrativas de Mundos Secretos.
No original, além da ação principal, eu também havia
criado um pequeno dilema amoroso - que acabava em um
esperado e ''bonitinho'' final feliz... Mas só de ler pela
primeira vez, eu via que aquilo estava forçado,
e muito enjoativo. Era muita coisa acontecendo em um curto
espaço de tempo e tudo acabava rápido demais. Resultado:
pelo resto da semana, passei o meu tempo livre editando e
revisando, até que Assombrado se tornou o que é hoje.
O que acabou resultando em uma pequena greve de
contos durante quase dois meses. Nesse tempo, eu continuei
a trabalhar e a postar a história de Adrian e de todos os seus
companheiros - que a cada capítulo que se passava, mais
pesado e denso o clima ficava.
Deste período, que carinhosamente chamo de ''minha
era dark-emo'', nasceu Reunião Sombria.
Nunca, em todo este tempo, eu me lembro de
produzir um texto tão pesado e depressivo quanto ele. A
história não acaba bem para ninguém, e a mensagem descrita
nele é bastante controversa. Acredite, não foi proposital. Eu
escrevi o conto em menos de meia hora, e pelo resto da noite
(sempre ela) eu fiquei deitado no meu quarto, escutando
música no escuro.
Os acontecimentos de Reunião Sombria haviam me
afetado de uma forma potente e esmagadora.
E eu percebi o por quê.
Pois, a cada ponto de vista que eu utilizava (tanto nos
contos quanto na trama principal), eu deixava uma parte do
personagem-orador entrar dentro de mim. E, por aqueles
breves momentos, eu não enxergava como Henrique. Não
pensava como Henrique. Não falava como Henrique.
Eu era o Adrian.
Eu era a Angelina.
Eu era o Gui.
Eu era o Higor... E foi por causa do que eu senti
escrevendo como o Higor que eu tive tanto medo de
finalmente digitar a história que vinha se desenvolvendo já a
algum tempo dentro da minha cabeça.
E isto me incomodava.
Afinal, por mais que as tramas que eu imaginasse
fossem fracas e sem sentido, eu sempre as colocava para fora.
Foi assim desde do princípio, quando a Saga nem me
passava pela cabeça.
Mais alguns dias se passaram, e eu enfim perdi a
batalha contra os meus medos. O conto seria escrito, e – por
alguns instantes - eu deixaria o personagem usar as minhas
mãos para contar o que ele tanto queria. Mas ele não era um
personagem qualquer... Era o confuso, o cruel, o vingativo, o
cheio de ódio e dor, Alexander Morton. O vilão da história
central da Saga das Sombras. E sua história também não seria
qualquer história...
Simplesmente seria o momento em que ele descobriu
que havia morrido; que havia ganho não só uma nova - e
maligna - consciência, mas também um novo e letal corpo de
demônio.
Nem preciso dizer que A Fúria foi o conto em que eu
mais demorei escrevendo.
Durante quase um mês e meio, eu passei noites em
claro, me sentindo péssimo e esgotado pela manhã. Mas isto
nunca parecia o bastante para Alex. O rapaz queria mais, e eu
tive que segurá-lo. Quando coloquei o ponto final em sua
narrativa, parecia que os meus olhos finalmente viam a luz
depois de passar uma longa temporada no escuro. Meu
humor estava péssimo. Mas eu tinha feito o meu papel; tinha
escrito o conto.
Foi quando percebi algo bem maior.
Sim, eu tinha superado os meus temores quanto A
Fúria.
Não só isso.
Eu descobrira o que um escritor queria dizer quando
falava que seus personagens ganhavam vida própria e
tomavam conta da narrativa, sem pedir licença ou
permissão.
Porém, naquele dia, não era nenhuma das duas coisas
o que ocupava tempo e espaço em minha mente. O que, na
verdade, eu pensava era: Eu tenho quatro histórias
terminadas sobre a Saga das Sombras... Eu tenho uma
pequena Antologia!
A ''minha'' Antologia. O ''meu'' Mundo.
Mundos Secretos.
O que, devo dizer, foi algo bastante inesperado. Pois,
se antes eu via os contos apenas como braços soltos da trama
que eu estava criando, agora eu os encarava de uma maneira
muito, mas muito mais séria e profissional. A revisão de cada
um deles passou a ser ferrenha. Porém, o mais importante
desta decisão, foi que eu sabia que precisava escrever mais
um conto.
Precisava aprofundar ainda mais o universo da série.
E foi assim que surgiu Caçada, a última narração-solo
a ser escrita e a única que foi especialmente pensada para
fazer parte do volume Mundos Secretos. Também devo
confessar que este foi o único conto que eu planejei com
afinco durante uma semana antes de escrever. A história da
fuga de Luce era repleta de pequenos detalhes e segredos que
deveriam ser contados pouco à pouco, e que envolvia
diretamente o seu passado, presente e no que ela se tornaria
no futuro.
Terminado Caçada, revisei mais uma vez os cinco
contos e, depois de muita concentração, me esqueci de tudo
o que havia escrito e li cada um deles - através dos olhos de
um leitor. Como se fosse a primeira vez. Quando cheguei no
último parágrafo, da última página, percebi que as histórias
contidas em Mundos Secretos não eram apenas um braço
adjacente e sem importância da trilogia principal da Saga das
Sombras.
Elas faziam parte do universo de Adrian. Elas
traduziam, ilustravam e desconstruíam a realidade na qual o
garoto cresceu e atualmente vive - mesmo aquelas que
parecem não ter relação alguma com ele, tanto no passado
quanto no futuro.
E é por este motivo que você está, neste exato
momento, segurando Mundos Secretos em suas mãos – seja
em sua forma física ou digital, no silêncio da sua casa, no
carro, na confusão do ônibus, escondido no trabalho, na
escola, aonde for...
Cada conto ganhou por si só o direito de criar vida.
Mas vou lhe avisando de antemão: não se anime
muito. Não vá com muita sede ao pote. Nem todas tem um
''final feliz''. Nem todas são alegres, divertidas ou mágicas.
Porém, elas são a verdadeira face do universo dos
Arcanos. E, como diz o Antigo Provérbio: só a verdade tem o
poder de nos libertar.
Desejo que façam uma boa viagem... e abram bem os
seus olhos.
Sinceramente,
Henri.
O
velho Cemitério de St. Argell era, sem a menor sombra
de dúvidas, o lugar mais sombrio de toda a região. Tudo
naquele cenário inspirava ao macabro e, nem de longe, o
terreno conseguia refletir a incrível modernidade de
Dumont, ou a velha beleza decadente de Ventura.
De fato, a visão do mato crescido acompanhado pela
névoa gelada sobre os túmulos afastavam qualquer ser
humano normal do local. Exceto, talvez, na aterradora noite
de lua nova em que começa a nossa história, quando se podia
distinguir através da densa neblina as formas agitadas e
elegantes dos jovens que se movimentavam no ritmo intenso
do bate-estaca, não parecendo se importar nem um pouco
com o endereço inusitado da festinha particular.
- Viu só, Angel? Eu não disse que o Nicolai ia
conseguir deixar este lugar perfeito pra gente?
Eu não acreditava no que os meus ouvidos estavam
escutando. Ali estava minha doce e descerebrada amiga Naty,
seus olhos verdes levemente desfocados e seus lábios finos se
mexendo preguiçosamente, só para me lembrar o quão otário
aquele Nicolai parecia ser.
Qual é, eles se conheceram à apenas uma semana! Não
tem como uma garoto da nossa idade jurar amor eterno para
uma garota em tão pouco tempo... E o pior, não me entrava
na cabeça ele querer comemorar com todos os nossos amigos
a sua ''união eterna'' com a Naty em pleno cemitério, e ainda
por cima no maior estilo Baile de Máscaras. Não Mesmo!
Parecendo adivinhar para onde os meus pensamentos
me levavam, ela me puxou para um canto oculto pelas
sombras de uma enorme árvore petrificada e me lançou um
estranho olhar de reprovação.
- Escute aqui, Angelina - sussurrou Naty, enquanto
ajeitava de forma breve a delicada máscara Rosa-Bebê que
lhe cobria a parte superior do rosto - Esta é a noite mais
perfeita da minha vida! Por favor, não vá estragá-la com os
seus papos bizarros...
- Não, escute você... - comecei a me defender, mas
logo após mais uma mirada severa de minha amiga, eu não
consegui continuar.
Até por que eu tinha plena consciência que às vezes
os meus papos eram bizarros. Só que eu não podia fazer nada
- era parte da minha natureza.
Afinal, quando você nasce com o estranho dom de ser
um Arcano, e é obrigada a ver e fazer coisas que qualquer um
duvidaria, é meio que implícito que uma hora ou outra as
suas conversas iriam seguir as estranhas e tortuosas curvas da
anormalidade.
Mas, se não fosse por essa minha particularidade (que
todos teimavam em achar maluquice), tenho plena convicção
que metade dos meus amigos - incluindo a Miss Tico & Teco
à minha frente - já teriam encontrado um destino não muito
agradável há muito tempo.
Para ser mais sincera, se não fosse pelo meu ''Alarme
Interior Para Problemas Paranormais'', eu não teria nem
pisado fora da cama esta noite. Tudo bem, eu não era a garota
mais ajuizada da região, mas uma Raive misteriosa em pleno
Cemitério para comemorar aniversário de namoro? Coisa
mais suspeita quanto aquela não podia ter.
De fato, se não fosse pelos meus amigos - e confesso
que este pensamento não era nada nobre - eu não teria
chegado nem perto dali. Isto era problema na certa. E era isto
o que eu estava tentando dizer para Naty quando as caixas de
som posicionadas em um mausoléu próximo de onde
estávamos diminuiu o volume dramaticamente, e todos os
convidados da festa começaram a urrar e bater palmas como se um grande astro do Rock tivesse acabado de
anunciar a sua entrada.
- Ai. Meu. Deus! - resfolegou Naty, ajeitando as alças
de seu vestido rosa com as mãos trêmulas - Eu não acredito, é
o Nicolai!
- Ah, por favor - esbravejei, não aguentando ver
tamanha adoração no rosto daquela gente - É só um cara!
Fingindo que não escutava o que eu havia acabado de
falar, Naty deu às costas para mim e se misturou a multidão
que se acotovelava entre os túmulos, indo na direção de algo
que eu ainda não tinha visto. Sem ter muita escolha, me
encarapitei em cima das estranhas raízes da árvore
petrificada e arrumei minha máscara de renda negra, que
cismava em bagunçar o penteado que eu havia levado horas
para fazer, repuxando vários fios de cabelo prateado do meu
coque.
No mesmo instante, um holofote se ascendeu só Deus
sabe aonde e levou o seu facho de luz na direção da entrada
da Capela de St. Argell. Como por encanto, a figura alta e
forte de um rapaz loiro, todo vestido de negro e com a face
parcialmente oculta pela máscara branca que usava surgiu
em frente às portas de madeira trabalhada da igrejinha levando todo o grupo reunido ali à loucura. Eu não sabia o
que aquele Nicolai tinha feito para deixar os meus amigos
daquele jeito, mas eu desconfiava que era uma macumba das
feias. Sem nem mesmo falar uma palavra, o carinha tinha
aquele povo todo nas mãos.
Se eu não desconfiasse que o cordeirinho à minha
frente pudesse ser na verdade um lobo dos maus, eu até que
acharia ele muito suculento... Mas eu não era uma qualquer oras, eu sou uma profissional, não brinco em serviço - e se
ele achava que iria ganhar a minha simpatia só com aquele
sorrisinho idiota, ele bem que podia tirar o seu cavalinho da
chuva!
Com um breve aceno de sua mão, Nicolai conseguiu
silenciar toda balburdia, ao mesmo tempo em que admirava a
pequena multidão ao seu redor com um estranho brilho no
seus olhos dourados. Se até aquele momento eu tinha
dúvidas sobre o caráter dele, ali eu tinha certeza que o cara
era encrenca na certa.
Por um segundo, me peguei imaginando o que meu
irmão Cirus faria em uma situação como aquela. Com
cautela, isto eu tinha certeza. Pois, se teve uma coisa que
meu irmão havia herdado do meu pai era a calma inabalável,
mesmo diante do risco iminente. O mesmo não se aplicava ao
seu filho, o meu - argh - doce e temperamental sobrinho
Adrian.
Se eu o conhecia bem, uma coisa que eu sabia que ele
iria fazer seria estragar tudo. Adrian era simples e
completamente movido pelo impulso. Cirus com certeza
falaria: ''Não pegue pesado com ele, Angel... O garoto só tem
18 anos!''. Mas aí eu responderia com acidez: ''Não, mano ele já tem 18! É bastante diferente...''
Em pensar que aquela criatura era só 3 anos mais nova
do que eu - e ainda por cima 15 centímetros maior!
- Olá, meus amigos... - bradou Nicolai com sua voz
grave, me despertando inteiramente dos meus pensamentos É muito bom ver quanta gente está aqui, para felicitar a
união da minha vida com a da formosa Natally!
Em meio as risadinhas estridentes de Naty e os
sussurros de adoração que vinham da plateia, parecia que eu
era a única que tinha percebido o tom que Nicolai acabara de
usar para se referir a própria ''vida''. Foi verdadeiramente
agourento - e se não tivesse tanta gente ao meu redor, eu
teria me jogado em cima dele ali mesmo, e o faria se revelar
(sendo lá o que ele fosse!).
Mas como ninguém, além de mim mesma, pareceu
perceber este pequeno detalhe, nosso charmoso anfitrião
continuou o seu discurso - dessa vez não tirando aqueles seus
estranhos olhos dourados de cima da minha amiga sem
cérebro.
- Então - continuou ele, com o seu incomparável tom
de voz - por que alongar os ouvidos de vocês com um assunto
tão íntimo quando todos poderíamos estar celebrando esta
maravilhosa noite de Lua Nova? Acho que o melhor seria
dizer: Que os festejos comecem!
Céus, mas em que tipo de século esse cara pensava
que vivia? Eu nunca ouvira palavras tão antiquadas serem
faladas com tamanha naturalidade desde a minha última
visita à mamãe. Era assustador. Mas novamente, sendo a
única a ter uma reação normal depois de escutar o que aquele
projeto de candidato à Presidente dizia, toda a algazarra da
festa recomeçou - só que agora em um ritmo muito mais
intenso e... tribal.
A música que saía das caixas de som parecia tremer o
cemitério por inteiro, e todas as pessoas ao meu redor
começaram a dançar como se tivessem ensaiado a semana
inteira para aquele momento.
Sem movimentar a boca para falar um ''ai'', Nicolai
abriu um círculo perfeito no centro do ajuntamento,
convidando Naty para dançar com um pequeno aceno de
cabeça. Quando enfim se encontraram, em meio aos olhares
obcecados de toda aquela gente, os dois iniciaram uma
espécie de valsa maluca - o que na verdade mais parecia ''A
Dança Pornográfica do Acasalamento'' do que outra coisa.
Mais uma vez, eu não podia acreditar no que os meus
olhos me amostravam... Como Naty, uma garota não muito
dotada de esperteza mas conhecida por ser ''de respeito'',
poderia deixar aquele completo estranho a tocar daquele
jeito tão vulgar na frente de todo mundo?
Com a cabeça estourando pelo choque, tentei sair do
lugar mas não consegui. Parecia que uma força maligna me
prendia aquele cemitério, e tudo o que podia fazer era ficar
observando todos os meus amigos - alguns à dois, outros à
três, o restante... nem queira saber - copiando a mesma
coreografia desconcertante e estúpida que Naty e Nicolai
protagonizavam no epicentro da festa.
Sem ter para onde ir, olhei aterrorizada para minha
amiga - mas ao invés de receber o seu olhar de volta, foi a
mirada de seu parceiro que me encontrou. Agora Nicolai
parecia diferente de uma forma terrível. A face - mesmo
oculta pela máscara branca e retorcida de um prazer ofensivo
- estava pálida como o mármore dos túmulos, os olhos
dourados chamuscavam de forma intensa e os seus lábios estáticos em um sorriso horrível - estavam vermelhos e
brilhavam como se estivessem cobertos de sangue.
Ao perceber que o encarava, o monstro loiro sorriu
ainda mais e - com um ligeiro rodopio - afastou Naty de seus
braços e traçou uma linha reta na minha direção.
Completamente paralisada, lutei para quebrar o
encanto que estava ao nosso redor, mas todo o meu esforço
foi em vão... Nem mesmo os meus dons de Arcano pareciam
ser úteis contra o vudu produzido por Nicolai.
Me amaldiçoando em pensamento, esperei a chegada
do meu carrasco com as mãos atadas. Tudo o que me passava
pela cabeça era a pergunta: ''Mas como eu pude ser tão
burra?''. Estava na cara que Nicolai era um demônio... E não
era só isso. Ele era um demônio-Incubo!
Um Incubo que estava pronto para drenar toda a vida
da minha melhor amiga, sugar o máximo de energia dos
meus colegas e - se pudesse, e ainda estivesse com disposição
- acabar com a minha raça sem dó nem piedade.
- Angelina Regis - sussurrou Nicolai, assim que
chegou aonde eu estava, as mãos duras e frias tocando a pele
do meu braço - Nossa, você não sabe a quanto tempo venho
escutando sobre você... e sua extraordinária família!
Então era isso? Tudo aquilo não passava de uma
armadilha para me pegar? Era inacreditável ver todo o
trabalho que ele fizera só para obter esse resultado.
- Olha só - falei, tentando demonstrar uma calma que
eu não tinha - Se você queria se vingar de mim por qualquer
coisa que eu tenha feito, não precisava envolver meus
amigos.
- Ah, mas é claro que eu precisava - respondeu o
demônio, tirando a máscara que vestia e revelando um rosto
infernalmente bonito - Você me destroçou... Tirou tudo o
que eu tinha... E pra quê? Pra voltar para essa sua vidinha
dupla e infeliz, protegendo seus amigos de algo que metade
deles nem acredita - e muito menos tem a capacidade de lhe
agradecer!
- Eu não preciso de reconhecimento - cuspi, tentando
puxar pela memória o que eu poderia ter feito para provocar
a fúria de Nicolai - Este é o meu trabalho... O meu dever.
- O ''seu dever''? Por favor, isto é tão piegas –
retrucou Nicolai, me lançando um sorriso cheio de presas
pontiagudas - Por que todo Arcano tem que ter esse incrível
''Complexo de Herói''?
Só quando o assassino à minha frente me lançou
aquele sorriso foi que a lembrança que estava escondida nos
cantos mais escuros da minha mente veio à tona... O Sorriso
Macabro. Era igual ao dela - a Súcubo que eu aniquilara há
uns dois meses atrás em Dumont.
- É você! - exclamei, não conseguindo conter a
surpresa - Você era o parceiro daquela vadia que estava
atacando o garotos do Instituto Alverga!
Antes que pudesse reagir, senti um forte impacto me
atingir no estômago e todo o peso do meu corpo me levar à
três metros de distância, na direção das raízes nodosas de
uma grossa árvore atrás de mim. Mesmo com a visão
embaralhada pela queda, eu pude ver o Incubo se aproximar
de mim em um átimo de segundo - a expressão triunfante
enquanto esmagava a minha garganta apenas com a sua mão
esquerda.
- Como ousa citar Dalila com esses seus lábios
imundos? - perguntou Nicolai, a voz grave falhando tamanho
era a sua fúria.
- Dalila? - arfei, não me importando com o fato de
que minha vista ficava cada vez mais obscurecida - Mas que
nome conveniente, não? Isso explica a grande vagabunda que
ela era!
Minha provocação só fez aumentar a fúria que o
demônio sentia por mim. Exalando um ódio infernal, Nicolai
colocou mais pressão na mão que esfacelava a minha
traqueia, seus olhos delirando de puro prazer. Não sabendo o
que estava acontecendo comigo, a cada vez que eu sentia a
minha respiração fraquejar, eu começava a rir
descontroladamente.
Sem entender a minha reação louca diante da morte,
o Incubo pareceu voltar a si, liberando a minha garganta de
seu aperto e pondo-se de pé, o rosto voltando para o modo
''galanteador'', sem perder a áurea maligna.
- Eu tentei fazer as coisas do modo certo com você,
Angelina. - murmurou ele, recolocando a máscara sobre o
rosto e alinhando o colarinho de sua camisa negra - Mas você
não me deu outra escolha... Acho que está na hora de você
sentir tudo o que eu senti quando arrancou Dalila de mim.
Em uma única batida do meu coração, Nicolai voltou
para o centro de seu Baile das Sombras e - depois de piscar de
forma marota para mim - enlaçou Naty novamente em seus
braços, suas mãos percorrendo todo o caminho do fecho do
vestido rosa e elegante de minha melhor amiga até encontrar
o seu zíper.
Aquilo foi a gota d'água. Como se o feitiço do Incubo
não pudesse mais me conter, eu me coloquei de pé – pouco
me importando com a ardência no meu pescoço ou com as
dores pelo meu corpo - e abri a fenda da minha saia de renda
negra, retirando da parte interna de minha coxa esquerda o
velho punhal feito de Prata Purificada do papai.
Determinada, e não demonstrando um traço de
insegurança, cruzei o caminho até onde estavam Nicolai
e Naty, empurrando sem um pingo de dó todos os idiotas que
cruzavam a minha frente e que estavam imitando os passos
estúpidos daquela dança ridícula e vulgar.
Aproveitando a distração que o vestido de minha
amiga oferecia ao demônio, peguei Nicolai pela gola de seu
paletó e o puxei para mim, como se o convidasse a tentar
fazer comigo o mesmo que fazia com ela. Sem entender
patavinas, o Incubo se virou estarrecido e me encarou, a
chama viva que eram os seus olhos cor-de-fogo mais brandos
do que eu já havia visto até então.
Não perdendo tempo, me estiquei o máximo que
podia nas pontas dos pés e murmurei ao seu ouvido o mais
alto que eu me atrevia com aquele bate-estaca ensurdecedor:
- Se você sente tanta falta da VACA da sua
namoradinha, por que não vai se juntar a ela no Inferno?
Antes que Nicolai esboçasse qualquer reação, levantei
o punhal na altura do meu rosto e o cravei com toda a força
que tinha no ''coração'' do demônio.
Ainda surpreso com o que tinha acabado de
acontecer, o Incubo urrou em fúria, sua voz agora
transformada em um rugido bestial. Com uma satisfação
macabra, me afastei do ''namorado perfeito'' de Natally e o
observei definhar, sua antiga beleza dando lugar ao seu
verdadeiro eu - se transformando em chamas e pó em
questão de segundos.
Como que para purificar todo o terreno daquela
presença maligna, um vento forte e aterrador atingiu o
cemitério, sacudindo o topo alto das árvores ao redor com
violência e levando sem deixar rastro toda a poeira da qual
Nicolai havia sido reduzido. Para completar, as caixas de som
que continuavam a tocar aquela música horrível entraram
em curto e explodiram, despertando os convidados
(incluindo a Rainha Sem Noção) do torpor em que haviam
sido mergulhados pelo Incubo - e os fazendo perceber o quão
constrangedora era a situação em que se encontravam.
- Mas... o que aconteceu? - perguntou Naty, seu rosto
ficando vermelho vivo ao perceber que o zíper de seu vestido
rosa estava aberto - Angel, o que nós estamos fazendo aqui?
Por que a minha roupa esta aberta?
Sentindo todo o peso daquela noite me cair sobre as
costas de uma só vez, inspirei fundo e tentei encontrar a
melhor desculpa que eu podia dar nas minhas condições.
- Eu que sei? - fingi bufar, me esforçando ao máximo
para parecer o mais natural e despreocupada o possível – Foi
você que me trouxe pra essa festa maluca! Mas escuta bem,
da próxima vez em que quiser fugir para uma Raive
clandestina, pelo menos tenha certeza se os caras que
organizaram tem um equipamento decente... Essa porcaria
explodiu na primeira oportunidade!
Eu estava tagarelando, assim como sempre acontecia
quando eu contava uma mentira. Mas Naty parecia ter
engolido. Ela olhava toda hora para as caixas de som em
chamas e depois mirava na direção dos nossos amigos ligeiramente trôpegos, como se tivessem acabado de tomar
todas - e perguntava para si mesmo ''O que foi que eu
tomei?''.
Sei muito bem o que você deve estar pensando: Como
uma amiga era capaz de fazer isto com a outra? Acredite, no
meu caso, mentir era muito melhor do que contar a verdade.
Imagine se eu tivesse respondido para ela que estávamos no
cemitério por que ela havia me levado para uma Dança
Macabra, onde o anfitrião era nada menos que um Incubo
tarado que queria se vingar de mim – abusando até a morte
de minha melhor amiga e sugando toda a energia juvenil do
restante dos convidados... No mínimo ela ligaria para o
hospício mais próximo e me internaria até que o mundo
ficasse plano.
Por isso que, assim que Naty pediu para ir para casa
por que ''não estava se sentindo bem'', eu apenas concordei
com a cabeça e a acompanhei de forma lenta e cuidadosa em
direção ao portões ao lado da velha Capela de St. Argell – que
era o local por onde todas as pessoas saíam, envergonhadas
demais para olharem para o lado.
Com um último suspiro, me virei para trás e vi a
densa neblina do começo da festa recomeçar a tomar forma e
novamente engolir o mato e as lápides do cemitério como
um imenso mar branco-pérola. Se tudo desse certo, eu não
precisaria voltar naquele lugar horrível tão cedo, muito
menos para ver alguém que amava passar por um perigo tão
mortal quanto o que os meus amigos e eu enfrentamos nesta
noite.
Era uma pena que, como sempre, eu estava
completamente enganada.
-Afinal, Gui, você quer ou não quer acabar com essa
história de uma vez? - esbravejou Celina, a expressão
zangada transformando por completo seu rosto bondoso.
- É lógico que eu quero! - exclamei, minha voz
subindo duas oitavas sem a minha autorização - Só não acho
mais que esta seja a melhor forma de resolver a questão...
- Calminha aí pessoal... - sussurrou Leo, tentando
conter as ondas de tensão que cresciam ao nosso redor – Nós
vamos ser os próximos, não precisa de todo esse estresse!
Ao mesmo tempo, Celina e eu lançamos um olhar
zangado para o Capitão da Equipe de Lutas do Colégio Delta.
Sem se deixar abalar, Leo apenas ergueu os ombros, virandose novamente na direção da Roda-Gigante, as luzes do
brinquedo iluminando com cores estranhas os seus olhos
azuis. Sem um pingo de paciência para travar outra discussão,
cruzei os meus braços sobre o peito com força e encarei a
escuridão que tomava conta do céu acima de mim.
Desde o começo eu havia achado aquela ideia
terrivelmente idiota, mas Leo e Celina encheram tanto os
meus ouvidos que acabei concordando. Agora ali estávamos
os três, no canto mais escuro e deserto do único Parque de
Diversões da cidade, de frente para uma barraca antiga e de
cores sombrias, esperando a nossa vez de nos consultarmos
com a ''Inestimável e Famosa Madame Sherazaid'' (que por
sinal eu nunca havia ouvido falar dela, até ler o letreiro
dourado ao lado da entrada da tenda à uns cinco minutos
atrás).
- Hum... e aí Gui - pigarreou Celina, tentando
estabelecer uma conversa decente depois de nossa pequena
briga - nesse meio tempo, aconteceu mais alguma coisa
estranha com você?... Hoje?
Ainda me sentindo irritado pelo bate-boca, ignorei a
pergunta de Celina e continuei a encarar as estrelas. A
verdade era que, assim como a semana inteira, havia sim
acontecido uma coisa estranha hoje; e eram por essas coisas
estranhas que estavam acontecendo comigo que ela e Leo
haviam indicado um encontro com uma Paranormal, para
começo de conversa... Mas agora que eu estava ali, prestes a
ser ''consultado'', tudo parecia ainda mais ridículo do que já
era.
E se o que aconteceu não foi apenas uma coincidência
macabra? E se os meus acidentes não passassem de uma
pequena maré de má-sorte?
Quebrando as minhas divagações como um raio
atingindo a copa de uma árvore, um casal de namorados saiu
da barraca de Madame Sherazaid, os rostos petrificados em
uma carranca de medo. Ao passar por nós, o dois trocaram
uma olhadela de medo e apertaram ainda mais o passo na
direção da saída do Parque.
- Essa madame deve ser boa, não? - riu-se Leo,
acompanhando o casal com clara diversão, enquanto
entrávamos na escuridão que era a tenda da Vidente.
Como se fosse possível, o interior da barraca parecia
ser ainda menor do que o visto do lado de fora. O lugar era
decorado por um círculo de longos candelabros
encarapitados por velas em formas esquisitas, ao passo que os
únicos móveis presentes eram uma pequena e torta mesa
redonda e um grupo de pufes manchados cor-de beterraba.
A mesa era coberta por um tecido escuro e pesado, e
sobre ela havia o mais variado grupo de objetos místicos –
desde cartas de tarô cortadas até a esperada orbe enevoada de
uma Bola de Cristal.
Parada de costas para entrada estava Madame
Sherazaid, o vestido leve e colorido cobrindo o corpo
definido como névoa mágica, suas costas tomadas por
cascatas e mais cascatas de um cabelo vermelho e brilhante.
- Nossa, e como é boa... - cochichou o capitão ao meu
ouvido, ao mesmo tempo em que Celina dava um forte
cutucão em sua costela.
Virando-se de forma elegante e teatral, Madame
Sherazaid nos encarou com seu incrível par de olhos verdes,
as mãos e o pescoço cobertos por dezenas de correntes de
ouro e prata.
- Até que fim vocês chegaram, meus jovens - disse ela,
com um tom fino e baixo como de uma fada – estive
esperando pelos três a semana inteira...
Confesso, a menção da palavra ''semana'' fez toda a
minha pele se arrepiar. Eu sabia que havia chegado a hora de
confrontar todos os meus ''demônios interiores'', mas fazer
isto em um lugar sombrio e tomado pelo denso aroma de
incenso não era uma experiência muito agradável.
- Hei, pra que toda essa formalidade? - perguntou a
vidente, fazendo um gesto despreocupado para a mesa à
nossa frente, enquanto se encarapitava sobre um dos pufes
cor-de-beterraba - Basta me contarem qual foi o Carma que
os fizeram me procurar esta noite e eu garanto que irei
resolver o problema em três dias!
Antes que Leo explodisse em uma gargalhada
descontrolada e infantil, Celina e eu o carregamos pelos
ombros e nos sentamos nas almofadas manchadas. Sem olhar
para nós, Madame Sherazaid começou a separar as cartas de
Tarô à sua frente e, com um arrepio pra lá de duvidoso, se
inclinou na direção da impetuosa Líder da Equipe de Debates
e perguntou:
- Eu sei o que a preocupa... E sei que posso resolver Com uma piscadela, a mulher sorriu maternalmente e
balançou a cabeça para onde eu estava sentado - Um garoto.
Sempre é um garoto!
- Me desculpe, Madame, mas não estamos aqui por
minha causa – exclamou Celina, alto demais para abafar as
risadinhas bestas de Léo - Na verdade, o motivo de nossa
visita é o meu amigo Guilherme.
- Mas não é sobre ele que estamos falando? - indagou
a vidente, enquanto Leo literalmente se dobrava de tanto rir.
- Sim... quero dizer, não... A senhora não está
entendendo! - engasgou-se a garota, o rosto mais vermelho
do que um tomate - O que eu quero dizer é que é ele quem
vai se consultar.
- Ah, agora compreendo - sussurrou Madame
Sherazaid, mudando a sua postura e voltando-se para mim se me permite perguntar: Que mal lhe aflige?
Eu estava achando aquela sessão de clarividência uma
charlatanice pura, mas depois de ver os olhares de
encorajamento dos meus amigos, resolvi contar tudo. E
quando digo tudo, estou falando de tudo mesmo: falei do
começo da semana, de como parecia que eu estava vendo
vultos escuros pelos cantos, aonde quer que eu ia; contei
sobre o dia em que a macarronada da minha mãe se
transformou misteriosamente em uma verdadeira ''Sopa de
Verme'' no meu prato; também citei o episódio da queda
quase-fatal do meu armário no vestiário da escola,
aparentemente aparafusado na parede... até falei do episódio
de hoje de manhã, quando parecia que o meu travesseiro de
estimação estava tentando me esmagar com todas as forças
contra o colchão da minha cama até a morte.
É claro que, para um leigo, aquilo tudo pareceria uma
maluquice, mas Madame Sherazaid escutou o meu relato
com completa atenção e interesse. Quando terminei, ela me
encarou com seus olhos verdes gigantes e, depois de um
longo suspiro, se levantou e começou a...
...dançar.
Isto mesmo o que você leu: ela começou a dançar.
Sem se importar com a expressão assombrada de
Celina, ou até mesmo com a satisfação nada cavalheiresca
exibida por Leo, a mulher rodopiou e se balançou pela tenda,
as correntes farfalhando e zunindo com os seus movimentos
excêntricos. Para completar a cena, Madame Sherazaid
pegou um dos incensos que estavam presos em um suporte
no chão e o agitou ao redor da minha cabeça, assoprando e
assobiando, completando de uma forma nada digna a sua
encenação de fada maluca.
Para mim, aquilo foi a cereja do bolo.
A raiva e o arrependimento que eu estava sentindo no
começo - antes de entrar na barraca - voltou com força total,
e se não fosse pela mão pesada de Leo no meu ombro, eu
teria me levantado e deixado aquele circo sem pensar duas
vezes.
- Não. Se. Estresse! - murmurou Celina, percebendo a
minha reação.
Tentando me acalmar, respirei com força e me
concentrei em coisas banais. Como por encanto, me lembrei
do antigo relógio-de-bolso que o meu avô havia dado no meu
último aniversário e o peguei para ver quanto tempo mais
aquela palhaçada iria durar. Eu não gostava de usar aquele
troço velho e antiquado, mas como o meu celular havia feito
o favor de cair na piscina da escola na semana anterior, ele
era a minha única opção momentânea para ver as horas.
Assim que eu tirei o mostrador dourado e antigo de
dentro da minha jaqueta, o corpo de Madame Sherazaid se
congelou no ar e tombou, atingindo o chão atapetado da
tenda com um baque surdo e profundo. Após cinco segundos
de trocas de olhares confusos e um longo silêncio,
resolvemos nos levantar e verificar o que de fato havia
acontecido com a Paranormal.
- Será que ela está morta? - perguntou o capitão,
cutucando a mulher estirada com a ponta do seu tênis.
- Não seja ridículo, Leonidas... Ela só desmaiou sussurrou Celina, verificando o pulso da vidente e
observando a sua respiração - Até eu desmaiaria se tivesse
que ficar enfurnada dentro dessa tenda quente e fedida o dia
inteiro!
- Acho que devemos ir embora - resmunguei, me
levantando do meu pufe manchado e indo na direção da
entrada da barraca.
Porém, antes que eu alcançasse a saída, as velas
bruxuleantes que iluminavam todo o interior tremeluziram e
se apagaram, ocultando a passagem com as sombras. Tudo
ficou no mais perfeito escuro, e não conseguíamos ver nada,
a não ser a fraca luz enevoada que vinha da orbe brilhante da
Bola de Cristal.
- Eu não gosto disso - resmungou Leo, em algum lugar
atrás de mim - Eu não gosto nada disso!
Tateando às cegas, Celina procurou por uma das velas e
tentou ascender o seu pavio com uma caixa de fósforos que
encontrou sobre o tampo da mesa redonda. Ela riscou um,
dois, ..., cinco palitos, mas sempre que colocava o fogo perto
da vela, a chama se apagava.
- Acho que devemos ir embora - repeti, dessa vez
sentindo o pânico correr pelas minhas veias.
- O Gui tem razão - concordou Celina, e eu podia
distinguir um ligeiro traço de medo em sua voz - Esse lugar
aqui não está me inspirando muita confiança.
No mesmo segundo, antecipando qualquer
movimento que nós poderíamos fazer, todas as velas do lugar
voltaram a se ascender - as chamas chegando quase ao topo
da tenda. Com um batucar lento e ritmado, o tampo da mesa
redonda começou a se agitar e sacudir ao mesmo tempo em
que o corpo de Madame Sherazaid se erguia do chão e
flutuava à nossa frente, como se ela fosse uma enorme
marionete com cordões invisíveis.
- Mas que merda é essa? - cuspiu Leo, as mãos nos
meus ombros tão tensas que parecia que ele queria arrancar o
meu osso fora.
Sem chance alguma de dizer algo, a boca mole da
vidente se abriu e um som alto e espectral furou os nossos
tímpanos, como se o grito viesse das profundezas do mais
sombrio abismo.
- Você!!! - cacarejou a voz ríspida e velha, usando o
braço direito de Madame Sherazaid para me acusar – Você.
Me. Roubou!.. Seu ladrão! Ladrãozinho de uma figa!
- Eu não roubei nada de ninguém! - respondi, ainda
em choque pela situação, mas não me contendo ao ser
chamado de ladrão por ''sabe-se lá quem'' - E se pudesse, não
gostaria de ser acusado de ladrão...
- Ah, não?! - debochou o ser que possuía a
Paranormal adormecida, a descrença e o escárnio presente
em cada nota que usava - Então aonde você arranjou esse
relógio que está guardado no bolso da sua jaqueta?
Como se eu tivesse acabado de perceber que havia
sido atropelado por uma locomotiva, tirei o relógio de dentro
do meu casaco e o segurei pela corrente, bem em frente ao
meu rosto.
Aquilo não fazia sentindo.
Meu avô havia me dado de presente. Por que aquilo
estava me chamando de ladrão por um crime que eu não
cometi?
- Eu não disse!!! - se vangloriou a voz, levando o
corpo de Madame Sherazaid para cima e para baixo, tamanho
era o seu prazer pela descoberta - Vocês o tomaram de mim...
O presente do meu marido! Vocês três nos roubaram...
roubaram tudo o que tínhamos em vida, e agora vão pagar!
Ah, como vão pagar!
- Quem você pensa que está chamando de ladra? explodiu Celina, empurrando Leo e a mim do seu caminho,
ficando frente a frente com a força do além - Este relógio não
lhe pertence mais! O avô de Guilherme o comprou de forma
honesta, e deu para o neto de presente! Nós não temos culpa
se, pelo visto, os seus herdeiros não sabem guardar nada de
valor familiar...
Em um acesso de fúria, o ser abominável se ergueu e
jogou o corpo da vidente à toda velocidade na direção de
Celina. Assim que chegou no lugar onde a garota estava,
levantou os braços dormentes de Madame Sherazaid e os
enroscou no pescoço de minha amiga com todas as forças,
visivelmente a apertando até lhe tirar o último sopro de
vida.
Tomado pelo raiva, Leonidas saiu de seu breve
momento de torpor e se atirou em cima da atacante, ao passo
que nem pode terminar o trabalho, já que - antes de tocar a
clarividente - ele foi arremessado pelo ar, até cair com
estrépito em cima da mesa circular que ainda tremia.
Olhei para o relógio que eu ainda segurava com
extrema aversão. Havia sido ele quem começara tudo aquilo,
e agora os meus dois amigos estavam feridos e correndo risco
de morrer nas mãos de... Alguém que eu não queria nem
imaginar o que pudesse ser. Movido por esse sentimento,
andei firme até o espirito possessor e o encarei, ainda com a
mão que empunhava a corrente acima da minha cabeça.
- Hei, Velha do Relógio! - chamei, meu corpo
tremendo só de imaginar o que eu estava prestes a fazer Não é isso o que você quer?
Por um instante, a criatura parou de pressionar o
pescoço de Celina e me olhou com as pálpebras fechadas,
toda sua fúria sendo despejada sobre mim.
- Isto me pertence, e você sabe disso!
- Sei... - murmurei, andando para trás e chegando no
limite da tenda - Então, por que você não vem pegar?!
No mesmo momento, soltei o aperto de minha mão
direita e libertei a corrente de ouro, fazendo com que o
relógio se espatifasse em milhares de pedaços no chão
atapetado.
Com uma lamúria horrenda, o corpo de Madame
Sherazaid girou no ar e caiu, libertando Celina e fazendo
com que tudo dentro da barraca voasse pelos céus.
Foi um segundo desagradável; a grande orbe da Bola
de Cristal brilhou e explodiu, uma luz clara e forte
interrompendo por completo a nossa visão. Quando acabou,
Celina correu para mim e me abraçou, fios e mais fios de
lágrimas manchando o seu rosto delicado. Do outro lado, Leo
se levantava aos trancos e barrancos, vindo na nossa direção
e me pegando pelo pescoço com seu braço musculoso.
- Nunca mais! - gritou ele, num misto de pânico e
fúria - Nunca mais me peça para lhe ajudar com nada!
Escutou bem?!
Meio segundo depois, ele me segurou pela cintura e
me rodou, em um imenso abraço de urso. No meio de nossa
pequena confusão de euforia, Madame Sherazaid despertou e
se colocou de pé, o rosto aparvalhado e perdido, como se
tentasse entender o que havia acabado de acontecer em sua
minúscula barraca.
- Me desculpem, meus jovens - sussurrou ela, sua voz
etérea de fada no estado natural - Devo considerar, pela
alegria de vocês, que lhes trouxe enormes boas-novas... Mas
será que poderiam me explicar o que se passou por aqui?
Eu não sabia o que responder.
Algo muito ruim havia acabado de acontecer ali, e de
uma forma que eu não compreendia, eu conseguira controlar
e expurgar o que quer que fosse que estava me seguindo.
Somente quebrando o relógio que o meu avô me dera.
- Acho que você nos ajudou - disse por fim, um leve
tremor percorrendo todo o meu corpo.
- Bom - suspirou a vidente, arrumando seus cachos
ruivos e nos encarando de uma forma prepotente e orgulhosa
- então está na hora de eu receber o meu pagamento...
Não pensando duas vezes, tirei uma nota de vinte do
bolso da minha jeans e depositei na mão ossuda e pálida de
Madame Sherazaid. No mesmo instante, Leonidas, Celina e
eu saíamos da barraca, abençoando o ar frio da noite que nos
recebia e não esperando um minuto sequer para ver a reação
da mulher ao perceber o estrago que havia acontecido no
interior de sua tenda.
- Nós não vamos contar o que aconteceu agora para
ninguém, não é mesmo?
Sem nos virarmos para Celina, Leo e eu concordamos
em silêncio, nossos pés tentando chegar o mais rápido
possível da saída do parque.
Afinal, quem acreditaria em nossa história?
É, isto mesmo... Ninguém.
Mas de uma coisa eu estava certo. Meu avô iria me
matar se descobrisse o que aconteceu com o ''presente'' que
ele me deu; o que seria a segunda tentativa de assassinato por
causa daquele relógio em um único dia.
P
or um longo tempo eu a esperei.
Desde que ela havia partido, me peguei preso à única
janela do meu quarto, esperando algum vislumbre, sombra
ou até mesmo um sopro no vento que me lembrasse Alana.
Mas nada aconteceu.
Minha mãe dizia que era para eu despertar daquele
meu sono profundo - dizia que a vida continuava, e era isto o
que Alana deveria estar querendo para mim, onde quer que
ela estivesse.
Mas eu não queria continuar. Eu queria ela, do meu
lado.
Assim, quando a noite sombria chegou, e com a brisa
trouxe o cheiro da morte, eu sabia que seria ela quem viria
me buscar.
No decorrer do dia D, deixei tudo pronto: Minha
carta de despedida, o meu quarto arrumado, algumas
lembranças para minha família e o copo de leite que me
levaria aos braços de minha amada - para sempre.
Depois do banho, me deitei sobre a minha cama e
tomei um longo e profundo gole da bebida envenenada. Com
o passar das horas, o cômodo me pareceu ficar mais frio e o
meu corpo cada vez mais pesado.
Com um último suspiro, fechei os meus olhos. E como
eu esperava, Alana apareceu ao meu lado - seu rosto perfeito
e angelical iluminado por uma luz tão bela quanto ela.
Quando Alana se aproximou, percebi que sua face
estava tomada por lágrimas prateadas. Aquilo não estava
certo. Era um momento feliz - nós estávamos juntos!
- Higor, o que você fez?
Eu não entendi a pergunta. Havia feito aquilo por nós,
e foi isso o que disse a ela.
Mas Alana continuou a chorar, como se não tivesse
me escutado. Por isso repeti o que disse... talvez dessa vez ela
entendesse.
- Alana - sussurrei, tentando me aproximar dela – Fiz
isso pois não aguentava viver sem você... Agora poderemos
ficar juntos, para sempre!
- Não Higor, não podemos.
Como assim? Era claro que podíamos. O que iria nos
impedir?
- Você se matou, Higor - respondeu Alana,
adivinhando o que se passava em minha cabeça – Diferente
de mim, você escolheu terminar com a sua vida...
Eu olhei para ela ainda sem compreender. Porém,
com as feições de seu rosto delicado transformadas em uma
expressão dura, Alana se afastou de mim e me encarou como se fosse nossa última vez.
- Me desculpe, Higor, mas não era para ser assim.
Infelizmente você escolheu o caminho fácil e errado. Agora
não há mais volta: estaremos separados para sempre...
A luz ao seu redor pareceu ficar mais forte, e Alana
desaparecia gradativamente junto com ela.
- Espere! - gritei, um esforço que eu sabia que era
inútil - Alana, eu te amo!
- Eu também te amo, Higor - respondeu ela, as
lágrimas voltando a banhar sua face meiga - mas isso não
muda nada.
Com um clarão de luz, Alana desapareceu - levando o
meu coração e parte da minha alma.
E ali eu fiquei, deitado no escuro, vendo as sombras se
apossarem pouco a pouco de mim, conduzindo os pedaços
quebrados que haviam restado do meu ser para a escuridão
eterna.
Aquela era a primeira vez, em duas longas semanas,
que dormíamos em um quarto de verdade. Afinal,
depois de todo este tempo, descobrimos que ''dormir ao
relento'' era apenas um dos tributos que Adam e eu
teríamos que pagar por cruzar o país às pressas, com
alguns poucos trocados nos bolsos e completamente sem
destino.
No momento, comer ainda não havia se tornado
um problema, a higiene pessoal era algo que dava para
''ignorar'' com um pouco de esforço e o caminho
confuso e complicado que tomávamos todo santo dia
parecia colocar o jogo à nosso favor... mas hoje a noite,
quando vimos este hotelzinho mixuruca piscando para
nós no final da estrada, não pensamos duas vezes e
decidimos nos hospedar.
Até por que, não se é todo dia que podemos
dispensar um bom colchão sob as nossas costas e um teto
de verdade para nos abrigar.
- Não acredito que nem pediram a nossa
identidade na entrada... - comentei, frenética, enquanto
torcia meu cabelo ensopado na velha toalha embolorada
que eu havia pego no pequeno banheiro da suíte - Sabe,
se bater uma fiscalização aqui, eles estão ferrados!
- Se bater uma fiscalização aqui, pode ficar
tranquila que nós seremos os primeiros a saber.
Adam encarava a janela embaçada, do outro lado
do quarto, com suas mãos apoiadas firmemente no
móvel preso à parede. A chuva continuava à cair aos
borbotões do lado de fora do prédio, e eu ainda não
conseguia decidir se continuava de dia ou se já era noite.
- O que vamos fazer agora?
Em um piscar de olhos, Adam se virou para mim
e - com um estranho meio sorriso se espalhando por seu
rosto - me avaliou dos pés à cabeça. Só então eu percebi
que continuava vestindo as minhas roupas encharcadas
pelo aguaceiro, e que cada parte do meu corpo deveria
estar tão exposta quanto se eu estivesse usando apenas
lingeries.
- Tenho uma boa ideia do que podemos fazer... Adam respondeu, se aproximando lentamente da cama e
parando bem na minha frente - Só não sei se você vai
concordar comigo.
Com um esforço descomunal, engoli seco.
Nunca, em todos estes meses, eu tinha ficado tão
perto de Adam quanto naquele instante. Desde que nos
conhecemos, nós dois tínhamos passado por tanta coisa
juntos, enfrentando os mais diversos tipos de
contratempos, que nunca me passou pela cabeça que ele
pudesse estar interessado em mim. Pelo menos, não do
mesmo jeito que eu estava interessada nele.
O que, ambos sabíamos, era um erro incrível.
Tentando controlar a pulsação que latejava em
meus ouvidos, levantei o meu rosto e sustentei o olhar
que o rapaz me lançava. Como de propósito, uma
minúscula gota de chuva caiu de seus cabelos castanhos
umedecidos e deslizou lentamente por todo o seu rosto
bronzeado, até chegar aos seus lábios cheios.
Inspirando forte, obriguei a minha mente a
apagar a imagem que havia se formado em meu
subconsciente e fechei os meus olhos com força. Eu
tinha que colocar a minha cabeça no lugar, por mais
difícil que pudesse parecer.
- Acho que devíamos tirar estas roupas molhadas
e tomarmos um banho...
- Eu concordo com tudo o que você falou.
Assim que abri os meus olhos, pensei que iria
desmaiar.
Pois, antes que eu pudesse fazer qualquer coisa,
Adam já havia se livrado de sua camisa e me encarava
intensamente, de um jeito que eu nunca tinha visto até
então. Como se um grande imã me puxasse, levantei
minha mão direita e toquei em seu abdômen torneado meus dedos percorrendo de forma hipnótica cada
músculo que se tencionava ao meu toque, minha
respiração ficando cada vez mais lenta e mais pesada.
- Isto não é certo - sussurrei fracamente, minhas
mãos ainda presas no corpo seminu do rapaz.
- Ah, Luce... Como algo tão bom pode não ser
certo?
Eu não respondi.
Na verdade, já não estava pensando em mais
nada.
Apenas deixei os meus dedos continuarem o seu
trabalho, passeando pela pele molhada de Adam até
chegar às suas costas - onde duas longas cicatrizes
desciam em sentido diagonal de seus ombros e se
encontravam na altura dos pulmões, formando um
grande V na parte superior de seu tronco.
O meu toque fez Adam se arrepiar todo - mas ao
passar por cima das longas marcas esbranquiçadas, me
lembrei porque nós dois estávamos ali, escondidos como
ratos.
Aquelas cicatrizes eram um dos motivos que me
fez sair de casa, deixando tudo para trás, e caindo no
mundo como uma proscrita; Aquelas cicatrizes eram as
provas vivas do mundo que até pouco tempo acreditava
ser apenas um mito, mas que agora se revelava ser uma
parte de mim – da maneira mais cruel o possível.
Aquelas cicatrizes não eram apenas de Adam...
Eram minhas também.
Ainda perdida naquele torpor, nem percebi
quando os músculos de Adam se retesaram e ele me
puxou para junto de si, arrancando minha regata com
apenas um breve puxão. Surpresa, senti a pressão que o
seu corpo fazia em meu corpo, e instintivamente,
inclinei a minha cabeça para trás – um convite aberto e
explícito para ele fazer o que nós dois queríamos.
- Luce - ele murmurou, sua mão grande ajeitando
delicadamente a mecha negra e cacheada do cabelo que
caia sobre a minha testa - Eu esperei tanto... Eu pensei
tanto em você... Nisto... Que eu nem sei...
Eu via a adoração estampada em seu olhar, e
aquilo pareceu despertar algo que estava escondido este
tempo todo dentro de mim. Algo que me deixou ligada –
e sedenta por mais.
- Escuta aqui - disse por fim, segurando sua
cabeça com firmeza na minha direção e o encarando
com a mesma intensidade daquilo que sentia - Por que
você não para de falar e me beija logo?!
Não se fazendo de rogado, Adam me segurou
firme pela cintura e me inclinou na direção da cama nossos lábios se cruzando como se aquele fosse o último
minuto de vida na Terra.
Por mais que nos beijássemos com fúria, meu
corpo ainda gritava de desejo. Minhas pernas pareciam
ter vida própria, e enlaçavam famintas a pélvis de Adam
contra o meu baixo-ventre; minhas mãos, antes tão
delicadas e fracas, agora pareciam pertencer a uma nova
Luce: certa do que queria, e que guiava com destreza a
cabeça do rapaz em cima de mim, do meu ombro para o
decote do meu sutiã.
Eu me sentia suja, e ao mesmo tempo,
incrivelmente livre.
Tudo parecia perfeito - Adam e eu deitados na
cama, nossos corpos entrelaçados como se fossem um só
- até que minha pele se arrepiou de repente, e uma
estranha e assustadora sensação de aflição se apoderou
do meu ser. Eu queria simplesmente ignorar aquele
sentimento e continuar o que estava fazendo, mas não
me parecia natural.
Algo estava errado.
- Hei... O que está acontecendo?
Assim que tirou seus olhos da pele nua da minha
barriga e os levou de forma instintiva para a expressão
que começava a tomar conta do meu rosto, Adam parou
instantaneamente de me beijar e se levantou - sua
postura relaxada dando lugar à movimentos rápidos e
atentos.
- Eu... eu não sei - gaguejei, me encolhendo
pouco-apouco e procurando em todas as direções
possíveis o que poderia estar me causando aquilo. - Só
sinto que... eu não sei, alguma coisa... está se
aproximando.
Um segundo depois, um forte relâmpago cruzou o
céu turbulento do lado de fora da janela, e a porta do
nosso quarto se explodiu em milhares de pedaços deixando para trás uma imensa nuvem de poeira e
caliça.
- Eles no encontraram - murmurou Adam,
puxando-me pelo braço e fincando o seu corpo à minha
frente.
Em meio à névoa produzida pela explosão, a
figura alta e monstruosamente forte de um homem que
aparentava ser um pouco mais velho do que nós surgiu
do nada – seus olhos, dourados como fogo em brasas,
nos encarando com uma fome assassina.
- Ora, ora, ora... Vejam só quem eu encontrei retrucou o intruso, sua voz áspera e cortante ecoando
pelo silêncio do quarto revirado - Mas não é que vocês
realmente merecem o título de ''Romeu & Julieta'' do
Plano Celestial?!
Sem saber para onde ir, e muito menos o que
fazer, pressionei o meu rosto com força contra os
ombros de Adam - o que acabou se revelando um
grande erro, já que ele tomou aquele gesto como uma
forma de encorajamento e caminhou alguns passos na
direção do invasor, sua mãos cerradas em punhos e sua
respiração lenta e entrecortada.
- Nicael - disse Adam, em reconhecimento – Eu
deveria imaginar que era você este tempo todo...
Como resposta ao comentário do rapaz, Nicael
unicamente olhou para nós dois com desdém e sorriu
com uma satisfação devastadora. Descobrindo de
imediato o por que da risadinha tola, recolhi a toalha
embolada que estava no piso ao meus pés e tentei me
cobrir da melhor maneira que podia.
- Vamos lá, Luce, não precisa ter medo de mim Nicael caminhou à passos largos na direção da única
janela do cômodo e encostou-se no peitoril, tirando
maliciosamente seus cabelos dourados do campo de
visão e piscando para mim - Acho que você deve saber...
Eu sou do time dos bonzinhos.
À minha frente, todos os músculos de Adam se
retesavam, e eu podia sentir nas palmas de minhas mãos
o tremor que subia e descia por toda a superfície de suas
cicatrizes em V. Com um suspiro, percebi o que estava
prestes à acontecer.
E não seria nem um pouco legal.
- Fique longe dela - rosnou Adam, encarando o
intruso sem piscar um minuto sequer.
Desta vez, Nicael não esboçou nenhum tipo de
reação forçada de amizade. Na verdade, ele parecia estar
se controlando o máximo que podia. E, se eu não
estivesse enganada, sua cicatriz deveria estar tão
inquieta quanto à do rapaz com quem discutia.
- Nós confiamos a você uma Missão - disse ele,
sua voz diminuindo até atingir um ponto que parecia
mais um sibilar venenoso de uma serpente do que um
som humano - Seria rápido e limpo... Tudo o que tinha
que fazer era chegar nela. O resto era conosco.
- Eu não vou deixar você, nem ninguém, se
aproximar de Luce - Adam deu mais um passo a frente, e
meu coração estava prestes a saltar pela boca. Sempre
quando falava de sua Missão, o real motivo que ele teve
para se aproximar de mim assim que nos conhecemos, as
marcas esbranquiçadas em suas costas pareciam querer
se abrir em revolta e vergonha - Vou protegê-la, nem
que para isto eu tenha que cair.
- Intercessores - resmungo Nicael, começando a
desabotoar sua camisa de linho branco e se aproximando
mais um pouco de nós - Sempre achei uma má ideia
desde o Princípio... E aqui está a prova: uma vez
Homem, sempre Homem. Será que existe alguma outra
raça neste mundo que consegue ser tão facilmente
manipulada com as mais fracas palavras e um pouco de
pele exposta?
Como se estivessem ensaiando para aquele
instante durante meses, os dois homens diante de mim
contraíram as suas costas e a pele esticada de suas
cicatrizes se rasgaram ao meio - revelando dois pares de
longas e assustadoras asas, suas penas alvas e sedosas
como nuvens em um dia ensolarado e as pontas de cada
uma delas tão letais e afiadas quanto o fio de uma
espada.
- Cala a boca, Nicael! - vociferou Adam, a
vibração de sua raiva conseguindo fazer tremer os vidros
presos na janela
- Eu não estou sendo controlado por ninguém!
- Ah, está sim... - respondeu o invasor, seus olhos
dourados se transformando em dois poços de chamas –
Você está sendo controlado pela Paixão, pela Luxúria...
Você está sendo controlado por ela.
Em um piscar de olhos, Adam pulou como um
gato sobre o corpo de Nicael, agarrou seus cabelos
dourados com fúria e jogou a cabeça do anjo contra a
quina do pequeno criado-mudo. Mesmo estando do
outro lado do quarto, pude ouvir alarmada os ossos do
nariz do anjo sendo triturados à cada pancada.
- ''Os pecados do pai não serão os pecados do
filho''... - Adam repetia o movimento várias e várias
vezes, encharcando de sangue prateado a superfície
lustrosa do móvel de madeira - Estas palavras nãos
significam nada para você?
Deslizando como uma serpente, Nicael se livrou
do aperto empregado por Adam e saltou na minha
direção. Eu estava pronta para me virar e fugir, mas ao
ver o rosto do anjo perfeitamente inteiro, sem uma
única marca ou arranhão e apenas coberto pelos
respingos de seu sangue luminoso, todo o meu corpo se
congelou.
- Ela não é uma humana comum! - gritou Nicael,
me pegando pelos ombros e me empurrando contra a
parede oposta - Ela é uma Nefilim! Ela é filha de um
Anjo Caído... As Leis não se aplicam para esse tipo de
coisa.
Antes que eu pudesse reagir ou sair correndo,
senti o meu corpo tremer e as mãos frias e duras do
invasor se fecharem sobre o meu pescoço. Lágrimas
começaram a transbordar dos meus olhos. Aquilo era tão
injusto! Nunca, em toda a minha vida, eu tive qualquer
tipo de contato com o meu pai biológico. Tudo o que ele
havia feito para mim foi transar com a minha mãe por
uma única noite e cair no mundo - a deixando sozinha
com uma filha. Eu não o conhecia, e nem queria.
Quando Adam me contou sobre o que eu era, o
por que dele ter me encontrado e qual era a real
natureza do meu pai, eu acreditei na hora. Em parte por
ele ter revelado as suas asas de Intercessor para mim
junto com toda a verdade, mas com toda a certeza eu era
capaz de imaginar que Arziel era um ser mal e egoísta,
que era capaz de trair a todos quem conhecia só por
alguns minutos de prazer e Pecados baratos.
Eu não tinha nada a ver com ele... Muito menos
com as coisas abomináveis que ele havia feito para ser
expulso do Céu.
- Por favor, não me machuque – choraminguei
desesperada, sentindo a pressão das grandes e pesadas
mãos de Nicael presas ao redor do meu pescoço - Eu
odeio o Arziel tanto quanto você... É sério. Se quiser, eu
ajudo a encontrá-lo. Eu faço qualquer coisa!
- As coisas não são tão fáceis assim - disse o anjo,
o fogo em seu olhar se abrandando por um milissegundo
– Não podemos confiar em um Nefilim. Pode ainda não
sentir, mas em breve a herança de seu pai começará a
tomar conta de você, e aí será perigoso. Não só para as
pessoas ao seu redor, mas para si mesma. Acredite, não é
nada pessoal. Eu só sigo as ordens... Ordens que eram de
Adam, mas que ele foi fraco demais para cumpri-las.
No mesmo minuto em que Nicael começou a
apertar a minha garganta com sua força real, uma chuva
de cacos de vidro caiu sobre a sua cabeça e ele se desviou
para o lado - libertando-me instantaneamente da prisão
assassina de seus braços e despencando aturdido na
confusão que era a cama do hotel.
- Eu falei que era para você ficar longe dela...
Adam estava parado atrás do intruso, suas mãos
segurando um pesado pedaço da luminária do cômodo.
Suas asas gigantescas se agitavam loucamente, o que
acabou criando um intenso vendaval que impedia o
outro anjo de se levantar e revidar o ataque.
- Escutai-me, Intercessor - ladrou Nicael,
tentando a todo custo superar a intensidade do vento
produzido pelas asas de Adam - Eu sou o seu Superior. E
eu ordeno que obedeças às nossas Leis! AGORA!
Com um breve meio-sorriso, Adam meneou a
cabeça com incredulidade e lançou para o outro lado do
cômodo a arma improvisada que ainda tinha em mãos.
- Posso ser o seu subordinado, Arcanjo Nicael,
mas não sou seu cão de aluguel - respondeu meu
protetor, se aproximando um passo de cada vez de seu
oponente caído, seus olhos cinzentos sendo tomados por
um estranho tom escuro - Nunca, em toda a minha
breve vida, eu matei um outro ser inocente... E não será
agora, depois de transformado em um anjo Intercessor,
que irei fazer isto.
Os dois se entreolharam por um curto espaço de
tempo que me pareceu uma eternidade. A decisão do
que iria acontecer foi tomada ali, bem na minha frente,
sem uma única palavra. Por mais que tentasse ignorar,
eu podia sentir o terror e a expectativa do que estava por
vir se espalhar rapidamente pelo ambiente fechado do
quarto - se agarrando a minha pele igual à um gás
venenoso.
- Se existe alguém aqui que merece ser
condenado, com certeza não é a Luce...
E estas foram as últimas palavras que Nicael, o
Arcanjo, escutou antes de perder a sua consciência e
mergulhar - para todo o sempre - no desconhecido
abismo da Eternidade.
Por um segundo, eu quis desviar os meus olhos da
cena que se seguiu. Mas, por mais que eu tentasse, eu
não conseguia deixar de ver o espetáculo macabro que se
desenrolava à minha frente. Adam estava tomado por
uma fúria animalesca, e açoitava, e socava e chutava
cada centímetro do corpo do anjo. Eu escutava o
barulho de cada osso sendo quebrado, via o sangue
prateado espirrar em todas as direções - e ainda assim,
não conseguia desgrudar os meus olhos do massacre.
Quando suas energias estavam quase no fim, o
rapaz se debruçou sobre o ser desfalecido e começou a
puxar, sem dó nem piedade, as asas presas ao tronco.
Conforme a cartilagem se soltava da pela marmórea e as
penas despencavam do membro atrofiado, mais o meu
coração parecia querer saltar de minha boca.
Eu estava assustada e, de uma maneira doentia,
fascinada.
- Me desculpe por isto - murmurou Adam, assim
que passou o seu acesso de raiva e suas asas se retraiam
novamente para dentro de suas cicatrizes.
Para ser sincera, não sabia como agir em uma
situação daquelas. Havia uma criatura morta no chão de
nosso quarto, o cômodo inteiro se encontrava revirado e
completamente destruído, e mesmo assim, tudo o que eu
pensava era como os músculos expostos do meu
Intercessor pareciam belos e másculos estando cobertos
pelos fluídos luminosos do anjo abatido.
- Você... você é lindo - deixei escapar baixinho,
constrangida demais por falar uma coisa dessas naquele
momento.
No mesmo segundo, Adam levantou seus olhos do
corpo caído de Nicael e os levou na minha direção.
Assim como na luta com o anjo, suas íris não estavam
em seu tom natural de cinza, e sim negras e com as
pupilas dilatadas. Por um breve instante, eu imaginei se
não seria eu quem o transformava, o manipulava para
ficar desta maneira. Mas era loucura. Como eu, uma
garota comum e sem atrativo algum, poderia controlar
uma criatura poderosa como um anjo?
- E você sabe que está totalmente enganada, não é
mesmo?
- Como?! - respondi, despertando do meu
devaneio.
- Não sou eu que sou lindo - continou Adam, seu
meio sorriso maravilhoso brincando em seus lábios - É
você... só você!
E, assim que ele disse isto, eu sai de meu transe
temporário e me joguei em seus braços ensopados de
sangue celestial. Adam tinha feito tudo aquilo abandonando a sua Missão, fugindo comigo e matando
um anjo superior - só por minha causa. Aquilo não era
cruel... Era maravilhoso. E romântico. E belo.
Afinal, como algo tão bom poderia ser ruim?!
- Me beije - sussurrei, fechando os meus olhos –
Me beije agora!
Quando nossos lábios se entrelaçaram, nada mais
parecia errado. Não me importava com o fato de o
quarto estar destruído, muito menos que os olhos sem
vida de Nicael nos encarava - suas asas repartidas
jogadas de qualquer jeito no piso do cômodo. Só o que
me importava era que Adam e eu estávamos conectados,
nossos corpos se movendo e se tocando em único ritmo,
e que juntos - a Nefilim e o Intercessor - seríamos
invencíveis...
Eu estava queimando.
Cada centímetro do meu corpo parecia estar sendo
consumido por chamas vivas, e a respiração que saia da
minha boca era quente e entrecortada. Nunca, em toda a
minha vida, eu havia experimentado uma dor tão lancinamte
quanta aquela. Era uma sensação impossível de se explicar,
tamanha a sua complexidade.
Insuportável... mas, ao mesmo tempo, estranhamente
prazerosa.
Tentando entender o que estava acontecendo comigo,
tateei a superfície abaixo de mim, minhas mãos encontrando
ao acaso a textura dura e arenosa do asfalto úmido que se
agigantava em todas as direções ao meu redor.
Abri os olhos.
Para minha surpresa, um enorme e negro céu me
saldou lá do alto. Debilmente, e sentindo uma fisgada forte e
aguda no topo da minha cabeça, pisquei como um farol
descontrolado em todas as direções possíveis... Só para me
ver deitado no meio da autopista que ligava Dumont à cidade
de Ventura, feito um mendigo velho e chapado.
- Mas que merda - resmunguei em voz baixa,
obrigando cada partícula do meu ser a trabalhar e me
levantar do meio da estrada - O que eu estou fazendo aqui?!
Antes que eu recobrasse totalmente os meus sentidos,
uma viatura da polícia surgiu ruidosa em meio a névoa
espessa - o automóvel passando à toda velocidade pela
autopista e me obrigando a rolar sem cuidado algum na
direção do acostamento.
- Seus Babacas! - bradei para a escuridão, as brasas em
meu peito se atiçando violentamente - Não me viram aqui
não?!
Um segundo depois, outra viatura passou correndo na
mesma direção, as luzes do capô preenchendo de azul e
vermelho o ar cinzento da noite.
Aquilo era muito, muito estranho... E, eu não sabia
por que, uma espécie de aflição começou a tomar conta de
mim - sentimento que foi triplicado com a ajuda do fogo que
ardia em meu interior.
Num súbito momento de inspiração, resolvi checar o
que estava acontecendo.
Desajeitado, e ainda um tantinho tonto, caminhei péante-pé pela borda do acostamento. A cada passo que eu
dava, as chamas que me devoravam pareciam se agitar mais,
produzindo uma grossa camada de suor em minha pele e
grudando a camiseta que usava ao meu peito.
- Inferno - bufei, puxando de qualquer maneira o
tecido encharcado pela minha cabeça e o jogando na direção
da grossa fileira de eucaliptos que me seguia no limite da
estrada - Este deve ser o pior dia da minha vida...
Seguindo a curva da autopista, deparei com uma cena
que me fez estacar no chão e o meu sangue borbulhar ainda
mais.
À alguns metros a minha frente, uma confusão de
ambulâncias e viaturas bloqueavam por completo as duas
vias da estrada. Para onde eu olhava, homens e mulheres de
farda corriam determinados, suas mãos ocupadas com o mais
variado tipo de maletas e equipamentos. Porém, o que mais
chamava a minha atenção eram os dois carros retorcidos que
delimitavam onde começava e onde terminava o frisson.
O primeiro, obviamente, era um táxi. Sua lataria
dianteira estava em um estado de perda total - o para-choque
dividido ao meio pelo tronco robusto de um eucalipto à
margem da via. A visão do segundo era mais assustadora.
Capotado no meio da auto pista, o conversível vermelho
queimava como uma imensa fogueira de comemoração - seu
teto móvel, a porta dianteira e uma de suas rodas jazendo em
chamas à metros de distância. Eu não conseguia ver como
estava a pessoa que dirigia o automóvel, mas de uma coisa eu
estava certo:
Aquele carro era igual ao meu.
Respirando fundo para recuperar meu equilíbrio, me
aproximei do acidente e tentei encontrar alguém que pudesse
me explicar o que estava acontecendo. Se antes eu queimava,
agora estava em erupção - tamanho era o meu nervosismo.
Por sorte, encontrei um policial afastado do grupo,
seus olhos miúdos fixos em uma sacola preta e disforme
postada aos seus pés.
- Com licença, senhor - sussurrei, contornando com
cuidado a massa estranha no chão e parando de frente para o
oficial - Será que poderia me dizer o que foi que aconteceu
aqui?... O senhor por acaso sabe quem estava dirigindo o
conversível?
Durante dois minutos, eu fiquei esperando a resposta
do policial.
Mas, em uma atitude bastante grosseira, o cara parecia
fazer questão de me ignorar - como se nem ao menos eu
estivesse ali, em pé diante dele.
Contrariado, vi o homem sacudir a cabeça com
reprovação e se afastar dali, me deixando sozinho no meio da
algazarra.
- Mas que merda de profissional!
Mesmo eu tendo gritado a provocação para todo
mundo ouvir, ninguém apareceu para me dar o mínimo
sequer de atenção. Sem saber em quem descontar a minha
raiva, chutei o embrulho preto aos meus pés com toda a força
- o plástico rodopiando para longe de mim como uma
gigantesca bola de futebol americano, sua lateral se rasgando
no asfalto antes mesmo de parar.
- Ca-ce-te.
Percebendo tarde demais a enorme burrada que eu
havia acabado de cometer, observei estupefato uma grande
mão masculina deslizar imóvel para o lado de fora da
abertura cerzida, suas veias tão roxas que era possível vê-las
saltarem através da pele marmórea.
Afinal, aquilo na minha frente não era uma simples
sacola jogada de qualquer jeito no chão...
...Era uma mortalha.
Em um misto de terror e curiosidade, me esgueirei
silenciosamente por entre o caos de pessoas trabalhando e
me aproximei de onde a manta térmica se encontrava
violada. Olhando por cima dos ombros, puxei bem devagar o
fino zíper que lacrava a bolsa negra e espiei o corpo jovem
que se deteriorava minuto à minuto em seu esconderijo
escuro.
Uma coisa eu devo confessar: desde que me entendo
por gente, sempre tive fobia por cadáveres. É algo meio
irônico de se imaginar, já que metade da minha família é
formada por médicos, e eu mesmo estava cursando medicina.
Porém, ainda que eu não tivesse este pânico por ver gente
morta, nada poderia ter me preparado fisicamente – e
psicologicamente - para aquele momento.
Pois, do interior da mortalha, um rapaz alto e
bastante forte me encarava com olhos vidrados, as pontas de
seus cabelos ruivos levemente chamuscados e metade do seu
rosto pálido oculto por uma grossa camada de sangue e carne
queimada.
Talvez, para a maioria das pessoas ao meu redor,
aquele rosto apagado não significasse completamente nada.
Mas para mim era diferente. Eu conhecia aquele
rosto; cada centímetro dele, cada imperfeição, cada marca de
expressão...
Aquele era o meu rosto.
O meu corpo.
Morto.
Em um asfixiante turbilhão de imagens, todas as
lembranças ocultas daquela noite invadiram a minha mente
por completo, me tirando o chão e o restinho de ar que ainda
havia em meus pulmões. Totalmente nauseado, revivi
impotente minhas últimas horas de vida - desde que acordei,
até aquele momento obscuro.
Flash.
Meu pai discutia comigo.
O coroa falava sem parar por eu ter chegado em casa
tarde na noite anterior. Eu não queria escutar. Minha cabeça
explodia. Fui para a varanda e ascendi um baseado. A fumaça
do cigarro me entorpeceu e pareceu abafar a ladainha que
vinha da porta aberta.
Flash.
Eu e Suzana dávamos uns amassos no meu carro.
Quando paramos, ela perguntou se eu estava bem. Eu
menti. Disse que estava ótimo. Que os meus pais haviam
parado de pegar no meu pé. Ela não acreditou. E falou que se
preocupava.
Flash.
Hora do estágio. O Dr. Biel me chamou para
conversar na sala dele depois do expediente. Tentei disfarçar
os olhos vermelhos. Ao chegar lá, não acreditei no que ele
me dizia. O tutor falava que estava impressionado comigo.
Me queria em sua equipe. Assim que o semestre acabasse.
Flash.
Eu rodava pela cidade.
A turma fazia uma zona no meu carro. O tilintar das
latinhas de cerveja e a fumaça do baseado enchiam o ar à
nossa volta. Íamos para um bar no limite do campus da
Faculdade. Eu só pensava em comemorar. Em poucos meses,
eu estaria livre das merdas dos meus velhos. Livre para fazer
o quisesse. Para Sempre.
Flash.
Suzana dizia que eu era louco.
E que estava chapado.
E que eu precisava parar de dirigir naquele instante.
Eu não me importei. Repeti o pedido que havia
acabado de fazer pelo celular. Perguntei se ela queria morar
comigo. Perguntei se queria se casar comigo. Ela riu e me
mandou tomar uma ducha de água gelada. Dessa vez quem
riu fui eu. Disse que não precisava de água gelada. Só dela. E
de seu corpo. Falei para Suzana se preparar, pois eu estava
indo para a sua casa. Nós iríamos comemorar. A noite inteira.
Antes que ela me respondesse, um par de luzes
amarelas iluminou o meu para-brisa, e eu perdi o controle do
conversível.
Tudo ficou escuro.
Com um forte suspiro, voltei para o presente.
Piscando loucamente, me vi novamente ajoelhado de
frente para o meu cadáver. As chamas no meu corpo agora
eram labaredas e, só agora eu percebia, a minha pulsação não
existia mais. Era um som único, como um motor de carro
ligado, e que zumbia baixinho em meus ouvidos.
O que havia acontecido comigo, afinal?! Será que
agora eu era um fantasma? Um monstro das sombras?
Besteira... Eu nunca acreditara nestas histórias.
Em um surto de lucidez, procurei pelas outras vítimas
do acidente: o motorista e os passageiros do táxi. Era claro.
Pois, se eu estava nesta espécie de limbo ''Além da
Imaginação'', eles também deveriam estar.
Guiei os meus olhos por todas as direções, mas não os
encontrei em lugar algum. Nem um outro corpo pelo chão...
Nem uma outra mortalha. Só a minha.
Sentindo um macabro arrepio percorrer a minha
espinha, andei à passos largos na direção da ambulância mais
próxima. Os paramédicos já se preparavam para partir, mas
eu não podia perder aquele chance de procurar por respostas.
Eu não podia simplesmente ser o único.
Assim que me desviei do pequeno grupo de
bombeiros que bloqueavam a minha visão, meu estômago
deu um salto. Sentados de qualquer jeito no interior do
veículo, três pessoas contemplavam o nada, suas expressões
tão abatidas que eu tive certeza que eram os outros
envolvidos no acidente.
O mais próximo de mim só podia ser o taxista. Com o
cabelo raspado em estilo militar e enormes costeletas, o cara
deveria ser apenas alguns anos mais velho do que eu. Ao seu
lado, um casal de adolescentes se encostava um no ombro do
outro, as faces dos dois tomadas por lágrimas e fuligem seca.
Com os mesmos cabelos ondulados e o tom de pele
castanho, se via claramente que eram irmãos. Mas, enquanto
a menina era uma verdadeira rainha da beleza em todos os
sentidos, o visual do rapaz parecia ser de um jovem sátiro que
havia acabado de participar de um filme de vampiros emos.
- Então, precisam de alguma coisa?
Pulando com o susto, girei nos meus calcanhares e me
deparei com a expressão dura e misteriosa do Chefe da
Brigada de Paramédicos. Por um breve momento, pensei que
ele me encarava... Seus olhos cinzentos, parcialmente ocultos
por uma mecha de seu cabelo negro, pareciam tentar se fixar
em meu rosto.
Porém, assim como todos ao redor, o homem cruzou
o espaço entre nós e se dirigiu na direção do pequeno grupo
sentado na ambulância.
Naquele segundo, percebi o que estava óbvio à muito
tempo...
Os três ainda estavam vivos. Haviam sobrevivido ao
desastre apenas com alguns arranhões e manchas de cinzas
pelo corpo.
Só eu perdera o corpo.
Só eu havia morrido.
E. Aquilo. Não. Era. Justo!
Vendo os homens terminarem de prestar os primeiros
socorros e fecharem a porta dupla da ambulância, todo o meu
corpo começou a entrar em convulsão. Ao colocar a mão
diante do meu rosto, tudo o que eu conseguia enxergar era
um borrão de cor e raiva.
Não podia ser... Eu tinha acabado de ganhar um
emprego. Estava prestes a me formar na Faculdade. Aquilo
não era real. Não era possível!
Eram eles quem deveriam estar invisíveis à todos...
...Eram eles que deviam ter seus corpos se
decompondo lentamente dentro de uma mortalha plástica...
Eram eles quem deviam estar mortos, não eu!
- NÃO! - implorei com todas as minhas forças, um rio
de lágrimas incandescentes rolando por meu rosto sem
controle algum - Por favor, NÃO!
Tomado pela fúria, observei a ambulância ganhar
distância à toda velocidade, as luzes presas no teto do veículo
ficando cada vez menores com o passar do tempo. Eu me
sentia impotente. Não sabia o que fazer. Mas tinha plena
convicção de que eu tinha que fazer alguma coisa – qualquer
coisa - para mudar a situação.
Sem pensar em nada, comecei a correr atrás da
viatura.
Desesperado, meu subconsciente tentou me alertar
que aquilo era inútil, que eu só iria me cansar e me deixar
ainda mais frustrado.
Eu não me importava.
Só queria continuar movendo os meus pés... continuar
seguindo o ronco distante da ambulância.
Com o passar do tempo, ao invés de sentir o cansaço
começar a me abater, tudo o que eu percebia era que eu
estava ficando cada vez mais rápido. Os eucaliptos que
margeavam a rodovia não passavam de um leve borrão de
cores, a umidade do ar noturno se condensava
instantaneamente ao entrar em contato com a minha pele
quente, e - principalmente - o som produzido pela sirene
parecia ficar cada vez mais próxima, ao invés de cada vez
mais distante.
Intuitivamente, apertei ainda mais os meus passos.
Assim que eu comecei a forçar as minhas pernas à
darem o máximo de si na corrida, um cheiro denso e
insuportável de borracha queimada me atingiu em cheio me obrigando a parar e ver o que estava acontecendo.
Respirando fundo, olhei para os meus pés e o choque
me tomou por completo. Do solado dos meus sapatos, uma
fumaça negra e pegajosa se espiralava para o céu, um brilho
fosco de dourado sendo atiçado sobre o solo ao mais leve
sopro do vento.
Alarmado, arranquei fora o calçado em chamas e o
joguei longe.
De alguma maneira assustadora e quase animalesca,
eu conseguia correr mais rápido que uma pessoa comum. Se a
sola dos meus sapatos não tivessem entrado em combustão
instantânea devido ao atrito, em mais alguns metros eu teria
conseguido alcançar a ambulância - que naquele momento, já
deveria estar à quilômetros de distância do ponto onde eu
estava.
Me lembrar disto só me fez piorar.
Como uma onda em meio à uma tempestade, eu senti
toda a pressão do que estava passando cair sobre mim e me
jogar com todas as forças no chão.
Eu estava cansado.
Eu estava perdido.
E o meu coração parecia querer explodir de tanto...
Ódio.
Sim. Eu estava com Ódio...
Ódio por estar morto.
Ódio por não poder ver mais a Suzana.
Ódio pelos meus pais.
Mas, principalmente, Ódio por aqueles três filhos da
puta de merda que haviam sobrevivido ao acidente. Que
haviam me matado, me fodido, e me tirado tudo o que eu
havia conseguido.
Eles iriam me pagar... Nem que isto fosse a última
coisa que eu fizesse!
Com um esgar sombrio, uma dor lancinante rasgou a
pele das minhas costas ao meio. Mesmo ficando por um
segundo sem ar, gritei com todas as minhas forças para o céu
da noite, as veias do meu pescoço saltando com fúria tamanho era o terror e o ódio que sentia.
Arfando enlouquecidamente, tombei para frente e
esmurrei o chão com o punho repetidas vezes, triturando o
concreto duro à cada batida. Agora o fogo não parecia estar
somente me consumindo por dentro; ele se esvaia para fora
do meu corpo, as chamas encontrando uma saída através do
buraco que havia se explodido de meus ombros e que agora
me obrigavam a ficar arriado, o rosto colado no asfalto.
E, mesmo balejado, com cada ponto do meu interior
sendo torturado por partículas de brasa, e com a minha visão
turva sendo parcialmente obliterada pelo gigantesco vulto
negro que desabrochava a partir do meu tronco, eu não
conseguia esquecer o que havia acontecido.
''É culpa deles'', um coral de vozes no fundo do meu
cérebro me incitava, a cada espasmo que me fazia tombar de
cara no asfalto, ''Você precisa se vingar!''
Sim, eu concordava com isto.
Eles tinham que me pagar.
Eu tinha que me vingar.
E foi assim que o farfalhar de longas asas
destroçadas encheram os meus ouvidos e, no mesmo
instante, a sombra que surgia de mim me rodeou por
completo - abraçando e recolhendo o meu novo corpo
em meu próprio mundo de escuridão.
Anjo:
Ser puramente espiritual, de aparência humana e
longas asas de pássaro. Criado por Deus para ser seu
Mensageiro, sua principal Missão é guardar o Mundo
Material das intenções subversivas do Exército das Sombras.
A Ordem dos Anjos é formada por diversas classes e
subdivisões, sendo a principal delas composta pelos Arcanjos.
Apesar de Imortal, se um Anjo ''morrer'' durante uma
batalha, o seu eu pode retorna no Mundo Material na forma
de um Arcano.
Arcano:
Pessoa capaz de ver e interagir com Anjos e
Demônios. Além da Visão, um Arcano possui força e
agilidade sobre-humanas, além de ser dotado de uma
sensibilidade apurada – o que o possibilita descobrir qualquer
tipo de Operação Maligna que esteja trabalhando no
ambiente ao seu redor. Os Arcanos podem surgir de duas
formas: Através da ''morte'' em batalha de um Anjo, ou da
hereditariedade familiar.
Demônio: Ser de natureza maligna; Anjo Caído. Integrante
superior do Exército das Sombras, sua principal missão é
levar dor e desespero ao Mundo Material, além de tentar
corromper a alma humana. Assim como a Ordem dos Anjos,
a armada demoníaca é formada por várias classes e
subdivisões, sendo a mais comum composta por espíritos de
mortais que morreram sem Salvação e agarrados à Pecados
Capitais como: o Ódio, o Rancor, a Inveja, a Avareza e a
Luxúria. Se um demônio é banido do Mundo Material por
um Anjo ou por um Arcano, o seu eu é aprisionado no
Inferno por toda Eternidade.
Incubo:
Espécie de demônio masculino que suga a vida de
suas vítimas através do prazer sexual. Além do poder da
beleza e da sedução, um Incubo exerce forte influência no
mundo dos pesadelos.
Intercessor:
Membro pertencente à Última Classe da
Ordem dos Anjos. Originados a partir da morte de um
humano de ''alma-pura'' cuja Missão na Terra não foi
completada, o Intercessor segue diretamente no Mundo
Material as tarefas idealizadas por seus Superiores. Apesar de
sua transformação em um ser Celestial durante leito de
morte, o Intercessor ainda preserva muitas de suas
características humanas, tais como a impulsividade e a
paixão.
Nefilim:
Filho de um Anjo Caído/Demônio com uma
pessoa comum. Metade ser sobrenatural, metade ser
humano, um Nefilim herda não só alguns dos perigosos
''dons'' de seu pai, como também sua personalidade
vingativa, traiçoeira e manipuladora.
Sensitivo:
Ser humano comum que nasce com uma leve
conexão com o Mundo Espiritual. Capaz de descobrir a
verdadeira natureza de uma pessoa, e suas reais intenções,
muitos Sensitivos passam a vida sem descobrir a origem de
sua ''intuição''. Diferentes dos Arcanos, um Sensitivo só
consegue ver/interagir com um Anjo ou um Demônio se o
mesmo se revelar para ele.
Sucubo: Espécie de demônio feminino que suga a vida
de suas vítimas através do prazer sexual. Assim como o
seu consorte, uma sucubo também é uma ''pessoa''
incrivelmente bonita e exerce forte influência no
mundo dos pesadelos.
Não perca a irresistível
continuação da saga de anjos, demônios e arcanos:
Em Breve
HENRI B. NETO
Nasceu no Rio de Janeiro, no ano de 1989.
Apaixonado por livros desde pequeno,
é um ''escapista''de carteirinha - e tem como grande
paixão a Literatura de Fantasia. Atualmente,
ele divide o seu tempo entre a
Faculdade de Pedagogia, seu blog & vlog no Youtube
sobre romances para
o público Jovem-Adulto e na produção de
novos volumes da ''Saga das Sombras''.
henrib-neto.webs.com