Berlim faz de seu festival de cinema uma festa. Uma

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Berlim faz de seu festival de cinema uma festa. Uma
Berlim faz de seu festival de cinema uma festa. Uma cidade que viu e viveu demais nos últimos 70 anos, traz
para o mundo visões de alguns mundos. Nos filmes que apresenta mas também em suas ruas. Da chegada de
Hitler ao poder em 1933, passando pela Segunda Guerra, pelo muro que dividiu um povo, Berlim é hoje uma
cidade multiétnica, reconstruída e reintegrada, hedonista como a Love Parade, sua festa de música eletrônica
inspirada no Carnaval carioca.
A era dos extremos se resume aqui, fazendo de Berlim uma festa exuberante e irresistível aos olhos de quem a
visita pela primeira vez. Um certo século XX reloaded, ou talvez uma indicação do que o século XXI possa vir a
ser. Uma visita ao antigo quartel general da Gestapo, hoje vizinho à grande área reconstruída de Potsdamer
Platz; a opulência dos prédios-caixotes comunistas; o estilo retrô-metal dos berlinenses nos trens; o pop rock
dos anos noventa de volta às rádios; uma ida ao Cookies, boate andrógina com a melhor da música para
dançar. Tudo parece exagerado, principalmente a diversão. São umas máquinas os berlinenses. Levam para os
bares e pistas toda a carga de um dia cinzento de inverno, e a incineram como em um ritual punk, quase
insano.
Berlim é hoje o cenário ideal para alemãs e estrangeiros irem se reinventar, tentar vidas novas. Há quinze
anos, a cidade é um pulsante canteiro de obras, onde já foram gastos US$ 53 bilhões para que Berlim seja uma
só, outra vez. Existe de tudo para todo gosto, e cada esquina traz memórias e imagens deste século que
passou. Uma cidade onde todos parecem poder ser homens ou mulheres, mas onde a decisão só precisa ser
tomada às 3 da manhã em alguma pista de dança do Mitte (Centro) – um novo bairro na cidade, onde os antigos
oriente e ocidente se encontraram e desde então se festejam. Tudo às claras, ao som de um bate estaca, sem
medo ou culpa. Quem resumiu bem a avalanche de símbolos que é Berlim foi meu irmão Gustavo, que olhando
perplexo a trepidante fauna do Cookies disse, “São uns loucos. Os cara têm até canibal!”
A reza foi forte e o vencedor do Urso de Ouro foi o alemão “Gegen die Wand”(Contra a Parede) de Fatih Akin,
31 anos. Uma cruel e linda história de amor passada em Hamburgo entre um jovem viúvo, desacreditado e
drogado e uma descendente de turcos nascida na Alemanha. Ela o pede em casamento para poder sair da casa
dos pais. Ele aceita e, apesar do combinado, os dois se apaixonam. Neste momento há a belíssima cena, onde
Sibel, a personagem de 20 anos, passeia por um parque de diversões, ao cair de uma tarde, curtindo este amor
inesperado. (Meninas fãs de Encontros e Desencontros, esta sequência é para vocês.)
Como os enredos não podem ser tão simples e felizes, um crime os separará por anos, até um reencontro em
Istambul. É um filme brutal e urgente, mas que nunca perde uma doçura estranha, real. Uma violência sem
armas, auto-infligida por dois personagens que sabem ter a salvação um no outro. Uns dez copos e garrafas são
quebrados durante o filme. Há brigas, uma cena de sutura e até um estupro. Mas tudo isso sem deixar de ser (e
na verdade, contribuindo) para uma maravilhosa história de amor, daquelas onde se torce para o casal ficar
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junto no final.
O filme tem suas garras no contemporâneo, tratando desse tema sempre pontual e mutante que é a questão
dos imigrantes em países ricos. “Gegen die Wand”, assim também como o esplêndido “Ae Fond Kiss” (Um Beijo
Carinhoso) de Ken Loach, também apresentado na Competição da Berlinale, nos mostra como o centro está
irremediavelmente infiltrado pela periferia, da mesma forma que há tempos a periferia sofre o domínio do
centro.
O filme de Loach é também uma história de amor, desta vez entre uma professora escocesa e um descendente
de paquistaneses de segunda geração. As fronteiras entre metrópole e colônia vêm desde sempre se abolindo,
mas agora com a novidade de encontrarmos em cidades como Miami ou Berlim uma massa crítica de imigrantes
que é capaz de manter, quase intactos, seus símbolos e suas razões. Tudo isso sem o medo e a vergonha da
geração anterior, que tinha a urgência em adotar uma nova identidade por não ter a proteção da cidadania –
inédita garantia da nova geração.
Estes dois filmes oportunamente nos mostram a realidade e a necessidade dos encontros entre culturas.
Através destas histórias de ilusão podemos entender um pouco mais sobre as ambigüidades vividas por turcos
na Alemanha ou paquistaneses na Escócia. Istambul é Hamburgo como o Paquistão é a Escócia, e não há volta.
As experiências se misturam e se influenciam, já que no mundo de hoje não se fazem guetos tão facilmente. É
o efeito “Cidade de Deus”, a edição da favela mudando o ritmo dos filmes americanos. (Como nos lembra Nick
Hornby, os maiores beneficiados disso tudo foram os londrinos que, devido à imigração indiana, hoje podem
substituir o fish & chips por um bom curry.)
Os mundos revelados por estes dois filmes nos remetem à Berlim de hoje, uma cidade que progride. Progresso
sem nenhuma conotação política, significando apenas um encadeamento de idéias e situações. Berlim é um
lugar que soube se utilizar de seu passado, não importa qual, para já estar em seu futuro. É uma feliz ironia
que a capital da Gestapo seja hoje uma cidade livre, uma referência de integração, da criação e do prazer.
Nos últimos quinze anos Berlim foi levada ao divã, e parece ter encontrado em seus atritos e símbolos diversos
ao menos a possibilidade de continuar se reinventando, seguindo em frente. Fui logo lembrado do verso de
Caetano sobre o Brasil: “A beleza de um país em formação”. Em Berlim, vi uma certa fluidez e ousadia que nos
faria muito bem por aqui. E se hoje na Alemanha existem canibais, há pelo menos o consenso entre as partes.
Melhor assim.
Guilherme Coelho, documentarista
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