Classificação dos receptores muscarínicos

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Classificação dos receptores muscarínicos
FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DO PORTO
Instituto de Farmacologia e Terapêutica
FARMACOLOGIA
Notas sobre a classificação dos receptores muscarínicos
Conhecem-se cinco genes que codificam a síntese de cinco glicoproteínas com as
propriedades de receptores muscarínicos. Estes genes foram clonados e determinouse a sua sequência de nucleotídeos bem como a sequência de aminoácidos das
proteínas em que se exprimem. Aceita-se, assim, actualmente cinco subtipos de
receptores muscarínicos, designados M1, M2, M3, M4 e M5, embora a actividade
funcional dos dois últimos seja ainda pouco clara.
Os receptores de todos estes subtipos são proteínas com sete hélices
intramembranares associadas a proteínas G. No entanto há diferenças estruturais
importantes na terceira ansa intracelular que condicionam diferenças no tipo de
proteína G a que se associam. Assim, os receptores M1, M3 e M5 activam proteínas G
da família Gq enquanto que os receptores M2 e M4 activam proteínas G da família Gi.
Qualquer destas famílias de proteínas G é um agregado de três subunidades proteicas
(alfa, beta e gama). A subunidade alfa fixa os nucleotídeos de guanina, GDP ou GTP.
Na situação de repouso, a subunidade alfa está ligada ao GDP e associa-se às duas
outras subunidades constituindo a forma trimérica, inactiva, da proteína G. A activação
do receptor provoca uma troca do GDP pelo GTP na subunidade alfa, que perde
afinidade e se dissocia do complexo deixando um dímero beta-gama. A subunidade
alfa da proteína Gq activa a fosfolípase C da membrana celular que cataliza a
formação de trifosfato de inositol e diacilglicerol a partir da hidrólise dos fosfatilinositóis
que fazem parte dos fosfolipídeos da membrana celular. O trifosfato de inositol fixa-se
a receptores específicos na membrana do retículo endoplasmático em cujo interior
estão contidos depósitos intracelulares de cálcio. A activação dos receptores do
trifosfato de inositol provoca abertura de canais iónicos permeáveis ao cálcio que se
movimenta do interior do retículo endoplasmático para o citossol por um gradiente de
concentrações. A concentração de cálcio no citossol aumenta 10 a 100 vezes o que
causa contracção do músculo liso, estimulação da exocitose nas glândulas secretoras
e nos terminais nervosos e activação da síntese do óxido nítrico nas células
endoteliais.
As proteínas Gi têm uma subunidade alfa que, ligada ao GTP, inibe a adenilil cíclase.
A síntese de AMP cíclico diminui, as suas concentrações baixam e a actividade das
cínases dependentes do AMP cíclico baixam também. Há proteínas que deixam de ser
fosforiladas com perda de actividade, como, por exemplo, a proteína dos canais L de
cálcio do coração, com consequente diminuição da entrada de cálcio durante a
despolarização e consequentemente redução da actividade cardíaca. A subunidade
alfa-GTP e o dímero beta-gama da proteína Gi associada ao receptor M2 podem ainda
actuar directamente sobre canais de potássio da membrana celular cardíaca e
provocar abertura destes canais. O resultado é uma saída da célula de mais potássio
com consequente perda de partículas electricamente positivas e hiperpolarização com
redução da excitabilidade cardíaca. Este mecanismo contribui também para a redução
da função cardíaca provocada pela activação dos receptores muscarínicos.
A distribuição tecidular dos subtipos de receptores muscarínicos está ainda mal
caracterizada mas parece desde já claro que muitos tecidos exprimem misturas de
receptores, pelo que os efeitos dos fármacos podem ser confusos.
Num quadro simplificado e resumido, pode-se considerar que os receptores M1
("neuroniais") são funcionalmente importantes para a activação neuronial lenta
causada pela acetilcolina (a activação neuronial rápida pela acetilcolina é mediada por
receptores nicotínicos) que se pode observar quer no sistema nervoso central quer em
gânglios vegetativos. Os receptores M1 medeiam também à estimulação vagal da
secreção gástrica. Este efeito foi o primeiro a ser atribuído a um subtipo específico de
receptor muscarínico. A pirenzepina, desenvolvida como medicamento antiulceroso
por volta de 1980, é um antagonista muscarínico que inibe muito a secreção gástrica
em concentrações que não produzem inibição importante da secreção salivar e da
contracção do músculo liso (efeitos dependentes sobretudo da activação M3). Ainda
não é claro se os receptores M1 se localizam nas células parietais do estômago ou se
situam nos gânglios intraparietais. A activação de receptores muscarínicos de subtipo
M1 bem como de outros subtipos muscarínicos e, seguramente de receptores
nicotínicos, está comprometida na doença de Alzheimer. Há uma melhoria marginal
que atrasa em alguns meses a deterioração mental destes doentes quando se usam
inibidores das colinestérases com a tacrina e o donepezil. Embora o benefício clínico
destes compostos seja pequeno ou nulo ou mesmo inferior aos efeitos tóxicos
(hepatotoxicidade frequente com a tacrina, e inibição generalizada das colinestérases
com broncoconstrição, diarreia e cólicas abdominais, micções involuntárias, sudorese,
sialorreia, aumento das secreções brônquicas, bradicardia e redução da condução
auriculoventricular) são as únicas substâncias conhecidas com acção documentada
sobre os sintomas da doença de Alzheimer. Trouxeram pelo menos a esperança de se
desenvolver alguma terapêutica para uma doença de evolução até agora
desesperada. Sabe-se também que a escopolamina, antagonista muscarínico sem
selectividade de subtipo, provoca perda de memória.
A activação de receptores muscarínicos do sistema nervoso central (M1 e outros)
provocam trémulo marcado (a oxotremorina é uma agonista muscarínico usado para
provocar trémulo experimental em animais de laboratório no rastreio de compostos
potencialmente úteis para o tratamento de doenças do movimento como o
parkinsonismo) enquanto que o seu bloqueio alivia o trémulo dos doentes
parkinsónicos (antagonistas muscarínicos como o tri-hexifenidilo, o biperideno ou a
benzatropina, são medicamentos adjuvantes no alívio sintomático do trémulo
parkinsónico) e reduz a ataxia, as vertigens e os vómitos desencadeados pelo
movimento (cinetoses ou enjoo do movimento) (sobretudo a escopolamina e vários
anti-histamínicos H1 com potente acção antimuscarínica e boa penetração no sistema
nervoso central, como a difenidramina, a prometazina ou o dimenidrato).
Os receptores cardíacos de subtipo M2 são os responsáveis pelas acções inibitórias da
acetilcolina sobre a frequência cardíaca, a velocidade de condução e a inotropia.
Os receptores M3 contribuem para a contracção do músculo liso, para a secreção
glandular e para a secreção endotelial de NO. É através da produção de NO endotelial
que a acetilcolina tem efeitos vasodilatadores in vivo. É também um mecanismo
importante da erecção. O NO actua por estimulação da guanilil cíclase da fracção
solúvel do citoplasma, que provoca a transformação de GTP em GMP cíclico, que é o
segundo mensageiro responsável pelo efeito relaxante vascular. As fosfodiestérases
são uma família vasta de enzimas que inactivam os nucleotídeos cíclicos. O sildenafil,
usado no tratamento da incapacidade eréctil, é um inibidor de algumas
fosfodiestérases e, por isso, potencia o efeito das substâncias que activam a guanilil
cíclase como o NO formado por activação dos receptores muscarínicos pela
acetilcolina libertada pelos nervos parassimpáticos sagrados.
A importância funcional dos receptores M4 e M5 é desconhecida.
Em conclusão, há receptores muscarínicos de, pelo menos, cinco subtipos. No
entanto, não há agonistas selectivos para cada um desses subtipos. Há antagonistas
com afinidades diferentes para alguns dos subtipos. No entanto, o grau de
selectividade é baixo porque as diferenças das concentrações que reconhecem os
diferentes subtipos são pequenas e porque nenhum dos antagonistas reconhece
selectivamente um único subtipo, isto é, são todos parcialmente selectivos. Com
excepção da pirenzepina, ou do seu derivado telenzepina, todos os medicamentos
antimuscarínicos em uso clínico corrente têm efeitos dependentes do bloqueio de
todos os subtipos de receptores muscarínicos. O uso médico da pirenzepina é
actualmente reduzido, quer pela maior potência de outros inibidores da secreção
gástrica, como o omeprazol ou os anti-histamínicos H2, quer pela confirmação da
eficácia da terapêutica antimicrobiana sobre o Helicobacter pylori no controlo das
recidivas da úlcera péptica.
D.M.

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