entendendo o peixe de Boiçucanga
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entendendo o peixe de Boiçucanga
2 2 3 CARAPIRÁS ENTENDENDO O PEIXE DE BOIÇUCANGA Carapirá é o nome que o caiçara dá para o Alcatraz, uma das espécies de aves marinhas que freqüentam Boiçucanga. Passam grande parte de seu tempo no ar, seja plainando ou percorrendo grandes distâncias, voando muito alto. São excelentes pescadores, capazes de enxergar o peixe de muito longe e descer repentinamente em vôos razantes para apanhá-lo na superfície da água. Apelidamos o texto de CARAPIRÁ porque, lá do alto, ele é o primeiro a saber do peixe.E porque é 3 4 grande companheiro dos pescadores e dos barcos nas andanças mares afora. Pescada - Oveva - Roncador - Marialuiza Betara - Bicuda - Betaraçaba - Goete – Cascuda – Cam-bucu - Banana - Branca - Amarela - Tortinha – Lin-guado - Corvina - Gordinho - Porquinho - Bagre Sari - Gunguito - Guaivira - Enchova - Espada - Galo Palumbeta - Carapau - Xarelete - Xaréu - Olhete Bonito - Bacoara - Sororoca - Cavala - Dãodão – Sardinha - Sabelha Mole - Tainha - Parati - Barbudo - Garoupa - Sargo - Mero - Salema - Pampo Caranha – Mirasselo - Currupio - Jaguareçá Maimbá – Tiniúna - Sarambiguara - Garabebê Gudião – Frade - Caramuru - Robalo - Pirajica Panaguaiú - Timbale - Agulhão Bandeira - Voador Baiacu - Varanda - Prejereba - Barbudo - Cambeba Cação Anjo - Caçoa Sanhapê - Babaqueiro - Tintureira - Anequim – Ra-budo - Trepepô - Machote 4 5 Cabeçachata - Raia Chita -Raia Jamanta – Raia Manteiga - Emplastro . ...Tantos nomes de peixes da região... e pensar que até 1987 quando eu vim morar em Boiçucanga, eu acreditava que aqui só dava uns dez tipos de peixe ... Sou paulistana e durante muito tempo só conheci praias muito urbanizadas como as de Santos. Conheci Boiçucanga em 1977 e durante dez anos vim cada vez mais me aproximando, de cabeça e de coração. Desde a primeira vinda, alterno surpresas (com o que há de mais genuíno) com preocupações (com o tanto que há de ameaça). Depois que passei a morar aqui, participo mais intimamente do convívio com os caiçaras. Com algumas pessoas tenho uma proximidade familiar, outras conheço por relações profissionais. Sou Repórter Fotográfica, o que me proporciona travar conhecimentos bem variados. Nos primeiros anos 5 6 como moradora fui professora no curso Colegial da E.E.P.S.G. Valquir Vergani de Boiçucanga, único colegial da Costa Sul de São Sebastião. À medida em que venho aprendendo tantas coisas sobre a história local, vem aumentando dentro de mim um sentimento, uma necessidade e dever de informar às pessoas que vêm um pouco do que aprendi.... A Pesca já foi tudo por aqui. Hoje, ela ainda está viva para alguns, mas seriamente ameaçada. Para quem não conhece: Boiçucanga é uma vila do litoral norte do estado de São Paulo, 60 Km. ao norte de Bertioga, 35Km. ao sul de São Sebastião, de cujo município faz parte. Este trecho do litoral é caracterizado pela abundância de montanhas próximas ao mar, entrecortadas por praias dos mais variados aspectos. Em torno de cada praia cresceu uma vila e a maior delas é Boiçucanga. 6 7 7 8 Historicamente, sabe-se que neste lugar houve uma aldeia indígena, citada no livro do historiador Hans Staden, um prisioneiro dos índios que conseguiu retornar à Europa, no século XVI. Tupinambás e Tupiniquins travavam batalhas; o que restou foram sambaquis enterrados em algumas áreas e o nome, Boiçucanga. Aglutinação de M”BOIA (cobra), AÇÚ (grande) e CANGA (cabeça),entendida por alguns como "cobra da cabeça grande"e por outros como "cabeça da cobra grande,a cordilheira vista do mar".Os poucos índios remanescentes na região são Guaranis, vindos em épocas mais recentes. No século passado Boiçucanga era uma fazenda de café, movida a escravos, que pertencia a uma família portuguesa de nome Santana. Com o fim da escravidão, algumas famílias de colonos agricultorespescadores vieram se estabelecendo na área. Os primeiros foram os Ledo, depois Gurupava, Rodrigues, Furtado, Ferro. Vinham das praias vizinhas, 8 9 inclusive da Praia Brava, cujo acesso é difícil até hoje. São descendentes de portugueses, índios e negros e se auto-denominam caiçaras. A fazenda foi vendida aos Fernandes e Pontes, de Santos, que nunca moraram aqui, mas mantinham sempre um funcionário responsável por tudo no local.Para isto chegou Quintiliano de Matos com sua família, em 1915. Natural de São Sebastião, ele já conhecia bem a região, pois trabalhara na instalação das linhas de telégrafo. As estradas de então eram trilhas que se percorria a cavalo ou a pé. A alternativa era o mar e nessa época apareceram na região as primeiras canoas de voga. Eram canoas enormes, com vários remos duplos e duas grandes velas: o pano (quadrado) e a mezena (triangular). A família Matos chegou numa canoa de voga, trazendo muitas novidades, como redes de pescar cação. Moravam na "casa dos escravos", uma casa grande perto do rio e 9 10 da praia, que foi sede da primeira capela de Nossa Senhora da Conceição, abrigou a primeira escola e de onde saíram filhos ilustres, como seu Hilarião, que foi Inspetor de Quarteirão, Capataz da Capitania dos Portos de São Sebastião e durante décadas assistiu enfermos de todas as vilas próximas com os conhecimentos de homeopatia que herdou de seu pai. Nos anos 40 apareceram os barcos de cabotagem. Eram barcos grandes, motorizados, que passavam semanalmente percorrendo a linha Santos-Ubatuba. Transportavam passageiros, animais e mercadorias: banana, farinha de mandioca, peixe seco na ida; e sal, tecidos, remédios, tintas, na volta. Só não transportava o peixe fresco - este continuou sendo transportado nas canoas de voga até o porto de Santos, onde os pescadores daqui também faziam parte da Cooperativa de Pesca e vendiam, sem dificuldade, boas quantidades de peixe. Embora se 10 11 vendesse banana e farinha, o peixe era o fundamento da economia local. A vila crescia. As pessoas se alimentavam basicamente de peixe, farinha de mandioca e banana, mas também criavam porcos, patos, galinhas. As plantações se espalhavam, subiam morros, entravam pelos interiores, os caiçaras dominando suas roças, marcando suas posses. Plantava-se mandioca, abóbora, batata-doce, arroz, feijão, milho, maxuxo (xuxu), café, cana e muita banana prata, nanica e São Tomé. Muitas famílias tinham sua própria casa da farinha, onde produziam farinha de mandioca; era um processo demorado, que exigia o trabalho da família toda por dois dias pelo menos. Os caiçaras visitavam os compadres das vilas vizinhas nas ocasiões de festas religiosas, Folias, procissões, casamentos. Iam e vinham de canoa ou a pé. Andava-se muito. 11 12 Por volta de 1960 chegou a estrada para carros; de terra, obviamente. Com ela vieram os primeiros carros, o primeiro armazém (de Bruno Scarpa), o primeiro coletivo (de Josef Benes, o "Sopa"), os primeiros veranistas (como Walkir Vergani, que comprou muita terra). A energia elétrica veio com um gerador que funcionava somente até às 22:00 h.. Na pesca houve a presença do Padre Alberto, um francês que morou em Boiçucanga por muito tempo e tentou organizar os pescadores enquanto cooperativa local; esta não vingou, mas o padre marcou uma nova era: motorizou as canoas e os pescadores ficaram mais ágeis. O número de veranistas foi crescendo lentamente, graças à precariedade da estrada, já que estamos numa região de muita chuva. Os anos 70 ficaram marcados pela chegada dos campistas, turistas com muita disposição e pouco dinheiro. Por volta de 79, 80, acampar virou moda. Nos feriados de 12 13 verão a praia ficava lotada de barracas, foi aparecendo muita gente descuidada, sujavam a praia e transgrediam as regras da convivência pacífica a que o caiçara estava acostumado. Foi preciso proibir o camping livre. O começo dos anos 80 foi também a época das primeiras preocupações ambientalistas. Por volta de 84 chegou a Polícia Florestal; quem aguardava sua chegada para defender a Natureza local logo se decepcionou, pois os primeiros reprimidos foram os pescadores que não portavam licença no barco, canoeiros e marceneiros que já não podiam fazer uso das madeiras locais, agricultores que já não podiam roçar a própria plantação. Hoje ninguém quase planta mais, um pouco devido à repressão, mas muito, com certeza, porque a vida ficou bem mais fácil comprando os produtos nas mercearias e porque as terras foram vendidas. A Polícia Florestal, por outro lado, está empenhada em reprimir predadores 13 14 de verdade, já entende melhor o Caiçara, esse povo que sempre soube viver em harmonia com a Natureza. Algumas proibições foram aceitas e incorporadas; por exemplo, ninguém mais pensa em sair para pescar tartarugas. A década de 80 foi também a da chegada do asfalto. Aos poucos foram asfaltando as piores serras e a balsa de Bertioga foi substituída por estrada, com a ponte sobre o rio Itapanhaú. Em 1985, finalmente, o asfalto se completou. Não sobre a rodovia planejada, para a qual foram feitos diversos viadutos que hoje estão perdidos no meio da mata. Mas hoje podese vir de São Paulo em cerca de duas horas. Antes eram quatro horas de chão, mais os atoleiros, mais a fila da balsa ... era imprevisível. As transformações são cada vez mais rápidas. Como em todos os belos lugares litorâneos do mundo, o Turismo é hoje a atividade principal. A população residente em Boiçucanga é de aproximadamente 14 15 4000 pessoas, sendo que os caiçaras devem somar 500 indivíduos. Além dos veranistas, hoje se assiste a um processo intenso de migração de pessoas oriundas de regiões mais carentes. Em Boiçucanga, mais do que nos outros bairros de São Sebastião, alguns caiçaras resistem em suas atividades tradicionais, a maioria na Pesca. Hoje o turista chega aqui num repente, encontra bonitos hotéis, restaurantes requintados, lanchonetes, sorveterias ... aí vê o pescador vindo da praia, trazendo o peixe no carrinho de mão e se espanta com o preço do peixe: "Como é que um peixe que ainda nem foi pro gelo, não viajou quilômetros pra cidade grande, não foi revendido do transportador pro mercado, daí pra peixaria, como pode esse peixe custar quase o preço de São Paulo?" Na verdade ele não sabe que o peixe de São Paulo foi morto há mais de um mês, arrastado no fundo do mar durante horas com toneladas de outros 15 16 peixes, já foi congelado e descongelado no limite mínimo de qualidade. E este peixe que vem passando acabou de sair de um mar bem limpo e ainda está com sua qualidade máxima. E além disso, o pescador que vem trazendo este peixe encontra cada vez mais dificuldade pra continuar trazendo. Para entender melhor os peixes de Boiçucanga, vamos saber através de Xixico quais os tipos de pesca que se faz ou se fazia em Boiçucanga. Os tipos que ele conheceu e os que soube pelas histórias que seu avô contava. Xixico (Celso de Souza Filho) é um boiçucanguense cujo bisavô saiu de Ilha Bela e escolheu morar em Boiçucanga; ele era do tempo em que ia-se com os amigos até a ilha de Alcatrazes, a remo, na aventura de buscar um peixe que não tinha por aqui, como o cherne. 16 17 O avô, Benedito Rodrigues, pescou de todos os jeitos que se pescava por aqui e também no litoral sul, na Praia Grande, com barcos grandes que arrastavam redes puxadas por bois na praia. Os irmãos, os tios, os primos, uns mais, uns menos, estão todos envolvidos na pesca. Xixico pescou profissionalmente desde os nove anos de idade, em 1975, até 1991, de quando vem trilhando outros caminhos. Ele se lembra que durante sua infância o envolvimento das pessoas com o mar era muito maior, mas sempre relacionado com a pesca, enquanto hoje é mais com o banho de mar. Naquela época toda família tinha uma canoinha e mesmo os pais que trabalhavam em terra iam pescar no fim da tarde. Os filhos tinham o encargo de ir, mais cedo, pegar um camarão no rio pra fazer de isca. Às vezes iam pescar de linha no Caraguatá, corricar uma Espada ou largar uma redinha de espera. 17 18 Ainda pequeno, Xixico foi ganhar dinheiro pescando cação com Jair, depois arrastando camarão com Dami, pescando de espinhel com o tio Nino, caceando com Carioca e Anisio, trabalhando nos cercos de Filioca, de Zé Banana, de Dito Rita trabalhou com todos com quem teve oportunidade. Depois veio a própria canoa, as pescadinhas, o barco, os camarões, embarcou até na pesca de arrastão. É com muito amor que fala da pesca e dos peixes: A PESCA EM BOIÇUCANGA "Muita gente pensa que pescar é só ir ali no mar, largar uma rede e voltar mais tarde para colher os peixes. Pescar exige conhecer o mar, os ventos, as nuvens, as correntezas, o sentido das águas, os hábitos de cada peixe, os pesqueiros de cada espécie. E ter a rede certa, o anzol adequado, a isca especial, o barco de acordo. E arriscar. 18 19 Boiçucanga é uma praia de tombo, voltada para o sul, um porto excelente para pequenas embarcações. O lado do rio, a Barra, é o lado mais calmo. No lado sul da praia, que chamamos de Canto, o mar é aberto e agitado. 19 20 Em dia de onda alta, é preciso esperar o "jazigo" para sair ou chegar sem virar a canoa. Para entrar ou sair do rio de barco, deve-se obedecer o ritmo das marés. Antigamente o rio era bem mais fundo, só se atravessava de canoa. Nos anos 70, quando cortaram muito morro lá para dentro para fazer viadutos, o rio foi trazendo muita terra e mudou. Agora o pescador tem que ficar atento pra não perder a hora da maré alta, se não, fica sem ir pescar. A costeira entre a praia de Boiçucanga e a praia Brava é cheia de recortes e pequenas enseadas boas para se pescar. Atravessando o rio, logo se está na Pontinha. Segue-se o Pesqueirinho, o Saco do Bolo, a Poimbéba, o Saco da Banana, o Caraguatá, o Ribeirão d’Água, a Ponta do Calhéu, a Itaboca ou Limo Verde, onde há a Toca das Andorinhas, depois a Ponta do Cavalo, em frente à qual há uma Lage. Depois já é a Praia de Fora, que faz parte da Praia Brava 20 21 O Saco da Banana é o lugar de água mais calma, por isso é o único lugar onde se encontra Musarrat, um molusco saboroso, que vive enroladinho num caramujo que é um cone prateado. A costeira do lado de Camburi tem águas agitadas e é muito boa pra Marisco. O Parcel de Boiçucanga fica na direção do Calhéu, que é a ponta mais avançada da costeira. Parcel é uma região de pedras, submersas, mas de pouca profundidade (varia de um a quatro metros). Quando o mar está agitado, a cabeça do Parcel fica visível, pois ali o mar espuma. Quando está calmo, temos que localizá-lo usando como referência a aparição da Ilha das Couves por trás dos Gatos. As águas correm a Leste ou a Sul. Quando está a Leste, a água corre do Canto pra Barra,está mais clara e é bom pra capturar peixes de passagem. Quando acontece o Vento Leste, aquele que os surfistas chamam de Terral, suja a água, que passa 21 22 a correr para o Sul, ou seja, da praia para fora. Nos tempos em que se passava Picaré, o Vento Leste ou o Lestado era sinal de peixe na praia. Quando começava a soprar o vento a gente se reunia pra pegar Tortinhas, Dãodão, Sabelhas. Águas a Sul é bom para peixes de fundo. Geralmente no inverno as águas são mais agitadas e é muito melhor pra pesca. Se a água está muito clara, o peixe enxerga a rede e desvia. Quando as águas estão muito calmas, até mesmo os peixes de passagem estacionam sobre o parcel, que é onde tem mais alimento. Se as águas começam a se agitar, eles saem fora e acabam vindo em direção à praia. O pescador sabe que quando começa a vir muito peixe ou camarão é sinal que o tempo está ameaçado. Se Espadas e Raias, que são de fundo, ficam alvoroçadas e começam a aparecer saltando fora d’água, é sinal de que o tempo já está mudando. Se Toninhas 22 23 (golfinhos) ou Botos (maiores) se aproximarem, é sinal de mau tempo. O pescador deve olhar sempre no horizonte para saber dos ventos antes de sua chegada. Se ele avista no horizonte um "capelo" de nuvens - um paredão de nuvens paralelas ao mar, se deslocando por igual - e, àcima de sua cabeça vê nuvens passando bem alto e em velocidade, sabe que é um vento forte chegando. Se for à noite, vê que está "fuzilando" rente ao mar, isto é, relampejando. No verão, costuma vir vento Noroeste. Vem da direção d'As Ilhas, repentinamente. Em questão de meia hora, chega com força total, o capelo já disperso. Dura mais ou menos uma hora. Às vezes deixa chuva, mas o mar volta a ficar calmo. No inverno costuma vir o Sudoeste. Vem da direção dos Alcatrazes. Demora horas para chegar. Permanece de três a quatro dias, o mar fica grosso, às vezes causando prejuízos, estragando redes. 23 24 Se as águas estão bem calmas, é legal passar a noite sobre o Parcel, numa canoa, pescando de linha. Se o mar está um pouco agitado, tem muita correnteza sobre o parcel, melhor é pescar abrigado junto à costeira. ou em volta de uma das ilhas. A Ilha dos Gatos, na direção da Praia da Baleia, é a mais próxima. A Ilha das Couves e As Ilhas ficam na direção da Barra do Saí, sendo que As Ilhas é o melhor abrigo que temos na costa. Às vezes larga-se a rede de espera junto à costeira. Ribeirão D'Água e Itaboca são bons lugares para capturar Enxovas e Bonitos, mesmo com águas calmas. Quando o mar está correndo mais, é bom colocar a rede de espera perto da praia. No inverno se usa colocar a rede em forma de gancho, muito bom pra recepcionar Sororocas. Ninguém tem um ponto fixo pra essas redes. O pescador planeja um lugar, que ele considera 24 25 propício pra ocasião. Se já estiver ocupado, paciência, procura outro. Pontos fixos só os dos Cercos, que estão em três pontos estratégicos de passagem de peixes. Atualmente há um Cerco bem na frente do rio, na direção da Pontinha, um no Pesqueirinho e um no Saco da Banana. Os peixes vêm todos do Sul, subindo a costa do Brasil. A exceção é o Xarelete, que vem do Norte, acompanhando correntes de águas quentes. 25 26 OS TIPOS DE PEIXE 26 27 PEIXES DE PASSAGEM Também chamados de peixes de Comilação, são espécies que andam em cardumes, perseguindo o Comedío. Comedío são cardumes de peixes miúdos que se deslocam rapidamente, na superfície. São sardinhas miúdas, manjubinhas e "macarrão", um peixinho fininho e branco. Quando um cardume alcança o Comedío, acontece a "comilação", que produz um "sarceiro" na superfície do mar. De longe se pode ver a água agitada e é possível cercar o cardume, passando em volta com a canoa enquanto se larga a rede. Às vezes o comedio vem fugindo do peixe e acaba pulando na areia. No geral, os peixes de comilação são peixes de pele, isto é, sem escamas, como a Bacoara (ou Serra), o Bonito, a Sororoca (ou Sarda) e a Cavala, que são 27 28 parentes do longínquo Atum e aparecem mais no inverno, assim como o Galo, a Palumbeta, a Guaivira, o Xaréu e seus parentes de verão: Carapau, Xarelete e Xareletão. Os Peixes de Passagem são os maiores freqüentadores do Cerco e das Redes de Espera - ou Redes de Superfície. Enxovas e Espadas aparecem mais no inverno e se alimentam tanto na superfície, fazendo comilação, como no fundo. Podem ser apanhadas de todo jeito: Cerco, Rede de Espera, de Fundo ou no Corrico. PEIXES DE FUNDO Corvinas e Pescadas são peixes que andam em cardumes mais no fundo, atrás do camarão. Aparecem mais no verão e são pegas nas Redes de Fundo ou no Arrasto.São espécies de Pescada: Bicuda, Oveva, Betaraçaba, Betara Roncador, ou Perna Maria 28 de Luiza, Moça, Goete, Tortinha, Pescada 29 Cambucu, Pescada Branca, Pescada Banana, Pescada Amarela e Pescada Cascuda. Outra espécie que vem no verão, e no fundo, é o Porquinho, um peixe miúdo que tem um couro especialmente grosso. O Linguado é o que chamamos Peixe de Lama. Anda rente ao chão, mas mais longe da praia. Vem mais no arrasto, nas vezes em que se passa mais fora. O Gordinho é típico do inverno, parente do Galo. Também anda de cardume, só que no fundo. Vem muitas vezes no Arrasto. Inverno também é tempo de Bagres: Bagre Cabeçudo, Bagre Sari e Gunguito, uma espécie miúda e mais rara. Andam rente à lama e são pegos no Espinhel, como alguns cações. O Bagre tem um ferrão que exige muito cuidado ao pegá-lo, pois machuca pra valer. 29 30 O Cação Anjo, o Viola, o Babaqueiro, o Trepepô, o Martelo, o Sanhapê e a Caçoa são espécies de Cação que andam mais no fundo do que na superfície. Os menores andam em grupos mais numerosos. São pescados no Espinhel e nas redes de Fundo e quase nunca entram no cerco. Machotes e Cambebinhas aparecem nas redes de Fundo e às vezes nas redes de superfície. Os Cações mais perigosos como o Tintureira, o Anequim, o Rabudo e o Cabeça Chata andam mais fora, longe de nossa costa e são raros por aqui. A diferença entre Cação e Tubarão é simples: quando você come, ele é Cação; quando ele te come, é Tubarão. As Raias também são de Fundo. Por aqui aparecem Raias Jamanta, Raias Chita, Raias Manteiga e uma raia miúda que chamamos de Emplastro. A Raia Jamanta é enorme, como sugere o nome; é azulada e tem cauda longa, sem ferrão. A Raia Chita é também azulada, mas pintada de 30 31 branco em cima e tem um ferrão perigoso na cauda. A Raia Manteiga é menor, pesa de 5 a 10 Kg e é mais gostosa; é amarelinha e também tem ferrão na cauda; aparece no Cerco, geralmente no inverno. O Emplastro se pega quase sempre no arrasto de camarão, às vezes na Rede de Fundo. PEIXES DE PEDRA São peixes que andam sós ou em pequenos grupos, habitam muitas vezes territórios fixos -tocase se alimentam de polvos, siris, guaiás, mariscos, caranguejos, camarões, algas. São basicamente pescados na linha ou no Mergulho. A Garoupa é o peixe mais apreciado. A espécie local é marrom, diferente das do nordeste e chega a pesar 25 Kg. No frio quase não sai da toca, portanto para nós é um peixe de água quente. Depois de pescada, às vezes demora horas para morrer. 31 32 Satiro, Adijute, Crisante e Zé Banana vindo do cerco com Méro de 230kg. São parentes da Garoupa: a Caranha, o Méro e o Mirasselo. A Caranha é enorme e rara, e, ao contrario da Garoupa, aparece no inverno. O Méro também pode ser muito grande, pesando de 50 a 300 Kg. Aparece no verão, geralmente em par. O Mirasselo 32 33 também é de verão. É chamado também de Badejo, mas é uma espécie menor do que os Badejos que se come nos restaurantes. Come bichinhos e algas das pedras e sua isca predileta é camarãozinho de rio, de preferência ainda vivo. Existe ainda um outro parente da Garoupa, felizmente raro. É miudinho, mas muito perigoso: o Currupio. Ele é cheio de lanças fininhas, como alfinetes, que contém um veneno. Se alguém, desavisado, o segura, basta uma única ferroada para ter várias horas de indisposição. O Sargo, ou Salgo, é o peixe mais populoso atualmente. Um peixe médio chega a pesar 7 kg. Cai raramente no cerco, mais fácil é capturá-lo na linha ou no mergulho, principalmente à noite, quando é menos esperto. Existe Sargo de Beiço e Sargo de Dente e são seus parentes a Salema, o Jaguareçá e o Maimbá. 33 34 A Pirajica é um peixe que se alimenta principalmente de algas e aparece no Cerco ou na Rede de Espera principalmente no inverno, em dias de mar grosso. Com o mar mexido as algas se soltam e a Pirajica vem atrás. É um peixe de sabor e aroma muito fortes, nem todos a apreciam, mas é o preferido de muito pescador! Pampo, Sarambiguara, Garabebê, Tiniúna, Gudião são outros tipos de peixes de nossas pedras. Cherne e Vermelho Chiova são peixes de águas profundas, típicos de Alcatrazes; por eles nossos bisavós enfrentavam o alto mar a remo. Frade é um peixinho colorido, azul e amarelo, que consideramos ornamental. Não se come, não se pesca, por respeito. Caramuru (ou Moréia) é um peixe-cobra que se pega nas pedras. Não é nada comercial, mas é de grande valor para o caiçara que aprecia comê-lo seco. 34 35 OUTROS PEIXES DA REGIÃO O Robalo do mar, que é amarelo e chega a pesar 30 Kg., anda em cardume e geralmente no fundo, mas às vezes entra no Cerco. É muito encontrado no mergulho. É um peixe típico de águas limpas e gosta de ficar em boca de barra, isto é, em lugares onde o rio deságua. O Agulhão Bandeira é um peixe muito grande, tem nadadeiras como asas e um bico pontudo. Costuma vir no inverno, como seu parente menor, o Timbale. Menor ainda é o Panaguaiú ou Agulhinha, que passa no verão, em cardume e costuma cair no cerco. Voador é o parente sem bico; quando ele começa a aparecer muito, pulando fora da água,é sinal de águas claras. Varanda é um peixe mais solitário que aparece pouco, nas redes de espera; ele tem tanta espinha quanto uma Traira de rio, não presta para comer. 35 36 Prejereba é um peixe de mar aberto, vem na superfície e costuma entrar no Cerco. É um peixe solitário, de proporções médias. Baiacu é um peixe curioso. Quando é ofendido, ele se infla instantaneamente, vira uma esfera cheio de pontas como espinhos grossos. O Parati e a Tainha são parentes, mas não são da mesma espécie. Nascem no rio, quando estão com ovas se deslocam em cardumes, migrando para o norte pelo mar e quando está na época de desovar entram num rio. Ao contrário dos outros peixes, que têm bucho, Paratis e Tainhas têm moela, como as aves. Alimentam-se de limo, algas, cascalhos e ossos. É comum abrir uma tainha pra limpar e encontrar areia e pedrisco. Outro parente deles é o Barbudo, mas não entra nos rios. 36 37 OS TIPOS DE PESCA PESCA DE LINHA É a pesca mais simples que tem. O caiçara nunca precisou de carretilhas. Pesca só com a linha, na qual pode amarrar vários anzóis. A garoupa é o peixe mais cobiçado pela pesca de linha. Em noites de verão, quando o mar está muito calmo, lá vai o pescador na canoinha mergulhar suas iscas cuidadosamente escolhidas; podem ser de sardinha, camarão ou mesmo de polvo. Com a pesca de linha também de dia, pode-se corricar uma enchova ou uma espada. Neste caso, joga-se a isca acompanhada de um pequeno objeto que possa lembrar um peixinho, com o barco em movimento. Ou ainda, sem barco, pode-se pescar na costeira, em cima das pedras, segurando um caniço (vara de bambu). 37 38 AS REDES O pescador Satiro arrumando a rede Antigamente as redes eram tecidas por aqui, com fio de algodão. Os cabos eram feitos com corda de Imbira, trançados com ajuda de uma roda chamada Cambixo. Atualmente se compra cabos e panagem de rede tecida de nylon, industrializados. A rede de algodão é mais forte, segura mais os peixes maiores. A rede de nylon é mais frágil, se rompe facilmente e o peixe mais forte escapa. Mas 38 39 captura mais peixe porque é menos visível. Além disso, pode ter uma malha mais fina e é mais leve. Compra-se os panos de malha na quantidade desejada, cabos, chumbos na medida, "cortiças" de isopor e se entralha a rede no tamanho planejado. É muito importante que a rede seja bem entralhada. Com a ajuda de uma "tabuleta" padronizando o intervalo, vai-se prendendo a malha ao cabo com "arcalas" feitas com fio de algodão. Pode-se entralhar "duas a uma" ou "duas a duas", isto é, duas malhas para cada arcala, de modo a deixar a rede "morta", não esticada. Se o pano da rede ficar esticado, o peixe bate e volta, não enleia. Depois se emenda "cortiças" no cabo de cima e "chumbos" no cabo de baixo, ambos já presos à rede pelas arcalas. Antigamente se usava como cortiça alguns pedaços de madeira bem leves, provavelmente Caxeta. Para chumberar, se usava pedras amarradas com cordas ou se confeccionava pesos de 39 40 cimento. Hoje há um cabo especial, mais liso, que se pode abrir e prender dentro os chumbos, que já são vendidos na medida. Arzelha é o encontro do cabo de cima com o de baixo. Das arzelhas saem os cabos que prendem os "ferros" (âncoras) e dos "ferros" saem cabos que vão para as bóias. Nossos "ferros" são confeccionados com cimento, canos de PVC e ferros de construção. As bóias, que devem ser vistas de longe para se localizar as redes, são pedaços grandes de isopor com uma vara alta, de bambu, segurando uma bandeira de plástico preta. Embaixo do isopor há um contrapeso para manter a bóia na vertical. Às vezes pode-se "engaçar" várias redes, juntar uma rede na outra, economizando-se "ferros" e bóias. 40 41 TRESMALHO de ESPERA Ou REDE de SUPERFÍCIE É uma rede que se "larga" perto da costeira de preferência onde o mar é mais agitado e passa mais peixe. Pode pegar tanto os peixes de passagem que passam rente à costeira - enchova, sororoca, bonito -, como pode pegar os peixes de pedra, que moram por ali - pirajica, salgo, garoupa. Uma Rede de Espera tem até cinco braças de altura (uma braça é a medida de um homem de braços abertos). É bem encortiçada e leve no chumbo, para ficar estendida na vertical, mas rente à superfície. O cabo do ferro mais próximo à costeira tem que ser fino e frágil. Se vier mau tempo ele arrebenta e a rede “sai para fora”. O cabo de fora tem que ser capaz de sustentar, sozinho, a rede toda. Se o pescador tiver que colher a rede com mau tempo, é bom estar mais afastado da costeira. 41 42 Pescador indo largar o tresmalho REDE DE PESCADA ou REDE DE FUNDO É a maior fonte de renda de muitos pescadores de hoje, superada somente pelo cerco. A pescada é um peixe muito procurado pelo "povo de fora". Para o caiçara a pescada é apenas um peixe que pode ser consumido mesmo quando se está ferido ou indisposto. As redes de pescada têm malha fina e não são muito grandes, têm uma braça e meia de altura, por isso não são muito caras e por serem "largadas" 42 43 próximo à praia são menos roubadas (mas houve caso de até sete redes roubadas numa só noite). A rede de pescada deve ser "visitada" pelo menos duas vezes por dia, pois a pescada é um peixe frágil, se passar um pouco mais de tempo fora do gelo, apodrece. Acontece muito no verão, quando as águas estão mais quentes, ter que jogar fora grande parte da pescaria. PESCA DE ESPINHEL O espinhel é uma corda com uns 350 anzóis onde são colocadas iscas de peixe, geralmente sardinhas, sabelha mole ou uma isca especial que é uma cobra do fundo do mar e que às vezes vem arrastada com o camarão. Antigamente fazia-se o espinhel para cação, mas tinha que ser colocado muito fora da praia e por causa do roubo atualmente só se faz espinhel para bagre, no inverno. 43 44 Vários pescadores têm espinhel atualmente. É um tipo de pesca que tem matado muito peixe, embora o bagre não tenha muito valor comercial. O Espinhel A PESCA DO CAÇÃO Há quinze, vinte anos atrás era uma característica de ßoiçucanga a pesca de cações de grande porte (entre 50 e 150 Kg). A ela se dedicavam praticamente todos os pescadores daqui. As redes eram feitas aqui mesmo, com fio grosso e malha bem grande. Eram chamadas Redes de 44 45 Malhão e apelidadas de "Mata Diabo". Todo mundo sabia fazer essas redes, desde os meninos até os mais velhos. Os pescadores "iscavam" as redes com pedaços de corvina, peixe-espada, marialuiza. Embarcavam as redes de malhão em suas canoas motorizadas, às vezes sete, oito redes de uma vez e saiam à tarde para "largar" as redes longe da costa. Era uma pesca que exigia muita força dos pescadores. Acordavam muito cedo para ir "visitar" a rede. Iam em dois ou três companheiros. Era comum encontrar até três cações realmente grandes ou então uns trinta cações médios (mais ou menos 30 kg) emalhados na rede. Os que tinham caído há mais tempo estavam mortos, outros estavam vivos e furiosos. Neste caso tinha-se que fisgar o peixe com o bicheiro, que é uma espécie de anzol grande, com cabo de madeira; daí jogar o peixe pra dentro da canoa e dar cacetadas no seu focinho até morrer. 45 46 Visitando a rede de cação 46 47 Pescava-se muito Maxote, Babaqueira, Caçoa, Cação Anjo, Cambebas (cação-martelo). O cação era um peixe de muita procura e pouco preço, isto é, era procurado pelos peixeiros das cidades que vinham buscá-los de caminhão, mas pagavam pouquíssimo. Era uma época em que circulava muito pouco dinheiro por aqui e qualquer quantia parecia muito. Às vezes o mar "virava", vinha o mau tempo e ficava impossível navegar. Então se demorava muito para visitar a rede e acontecia de encontrar o peixe já podre. Outras vezes o mau tempo retardava o comprador, pois a estrada era de terra e ficava-se isolado por dias. Ninguém tinha freezer. Nesses dias estragavam peixes enormes, que precisavam ser enterrados. O cação é um peixe fácil de limpar, às vezes o pescador vinha limpando desde o pesqueiro, arrancando cabeças e barrigas. Mas sabia que se 47 48 jogasse as cabeças ali mesmo, afugentaria os outros cações e estragaria o pesqueiro. Jogava no pesqueiro das garoupas, perto das pedras, para engodá-las; ou no rio, onde cabeças e tripas eram rapidamente devoradas pelos "corvos" (urubus) que sempre foram bem quistos pelos pescadores. Muitas vezes se via o pescador levando a cabeça do cação grande para comer a mutacanga (guelra), muito apreciada. Certa época apareceram compradores de barbatanas de cação vindos de Santos. Eles as revendiam para virarem sopa no Japão. Levavam uns 40 kg de cada vez e pagavam bem. Há coisa de quinze anos este tipo de pesca foi diminuindo, começaram a ficar comuns as redes arrebentadas pelos barcos de arrasto, depois ficou comum o roubo de redes. Os cações grandes cada vez mais longe da costa e os ladrões cada vez mais perto. Hoje se pesca cambebinha e outros tipos de cação 48 49 miúdos (até 5 kg) nas redes mais arriscadas, cerca de duas horas afastadas da praia. As canoas grandes foram se acabando, foram substituídas por barcos de fundo chato, as redes de malhão substituídas por redes menores, de malha fina, que são "largadas" bem mais perto da costa e já não esperam grandes cações e sim as famosas pescadinhas. Tempo de canoas grandes com redes de malhão embarcadas 49 50 PESCA DE CACEIO É um tipo de pesca que já não se faz. Um outro jeito de matar cação. O barco sai à tarde com dois ou três homens e vai até encontrar uma correnteza. "Largam" a rede, que fica presa ao barco, desligam o motor e não ancoram. O barco vai navegando "na correnteza das águas", "à rola", até amanhecer o dia. Geralmente quando colhiam a rede havia algum cação. Mas era uma pesca muito arriscada, ficar solto no mar num barco sem estruturas. PESCA DA TAINHA Até 1985, junho era o mês da tainha. Nesta época a praia era da pesca, "Deus o livre" se um menino fosse brincar na água, pois a tainha é arisca, qualquer barulhinho afugenta. Bem cedinho ia o "espia" para a praia e ficava de olho no mar. Esperava o dia inteiro se fosse preciso, mas às vezes era contemplado até três vezes num só 50 51 dia pela visão de uma "manta". É uma visão que só os mais experientes conseguem perceber, um pedaço de mar encrespado diferente, denunciando o cardume. Nos últimos anos em que aconteceu esta pesca, podia-se ver o finado Manoel Rita com seu cachimbinho, embaixo do abricoeiro ali em frente ao posto de saúde. Andava ao longo da praia, voltava, outra vez, até avistar uma manta que prometesse uns mil peixes. Então ele soava a "buzina" – uma corneta de chifre de boi, que se ouvia das casas. Todo mundo largava o que estava fazendo e ia à praia ajudar, fosse velho, criança, mulher, mesmo quem era estranho participava. Uma canoa das grandes, sem o motor, já estava preparada no meio da praia com uns cinco homens. O espia ia comandando da terra e a canoa ia cercando o cardume. Soltava uma ponta da rede amarrada a uma corda na praia, ia entrando no mar, dava 51 52 a volta colocando o peixe dentro da rede e levava a outra ponta para a praia. Cercando a tainha na praia Na canoa, uns remavam, outros soltavam a rede. Uns caiam no mar – eram os "chumbereiros", que tinham que pisar no chumbo da rede, levá-la no fundo, rente à areia, ainda mais no lugar aonde a onda quebra e forma um vão, se não cuidar a tainha escapa. Era emocionante ser o chumbereiro e ficar nadando no meio do cardume, as tainhas pulando na cara. 52 53 Na praia, nas duas pontas, todo mundo puxava a corda. Já na areia as tainhas eram amontoadas. Um "lanço" grande podia ter entre 1000 e 5000 peixes, um lanço pequeno só 50. Daí os peixes eram divididos e cada um tinha seu "quinhão": primeiro o do dono da rede, depois o do Espia, depois dos pescadores da canoa, depois os dos homens da praia e depois os das mulheres e crianças. Era normal haver um pouco de confusão nesta hora, mas no fim sempre tinha peixe pra todo mundo. PESCA DE TRESMALHO DE RODA É um tipo de pesca usado hoje pra se pegar tainha. Um barco a motor reboca duas canoas com sete homens pra longe da praia, "espiando", procurando a manta. Então desliga o motor e as duas canoas se aproximam do cardume, e vão cercando até juntar as duas pontas. É uma rede menor do que a 53 54 que era usada na praia. Dito Rita faz este tipo de pesca, mas tem encontrado pouca tainha, provavelmente porque tem muito barco transitando. Usa-se a mesma técnica para cercar os peixes de Comilação. PESCA DE TRÓIA É um tipo de pesca que já ninguém mais faz, quem fazia já morreu. Iam os pescadores em duas canoas e cercavam o peixe, parecido com o tresmalho de roda, só que esta pesca era à noite. Tinha que ser noite escura, sem lua, quando é possível ver os "cinzeiros". "Cinzeiro" ou "incêndio" é uma luminosidade provocada no mar pelo cardume em movimento. Os "Antigos" contavam muitas estórias de como era possível escolher os peixes e as noites certas, mas também de tempestades repentinas que fizeram desaparecer canoas. 54 55 PESCA DE XUXAR A COSTEIRA Este é um outro tipo de pesca que já não se faz. Era feito também nas noites escuras. Cercavam as pedras da costeira com redes. Cortavam uns varejões de bambu e com eles ficavam "xuxando" (cutucando) nas tocas das pedras, o que espantava os peixes. Esses saiam de suas tocas e se emalhavam na rede. Assim se matava garoupas, salgos, pirajicas, pampos. Era uma pesca mais pro consumo próprio, raramente para a venda. PESCA DE CERCO A pesca de cerco é um tipo de pesca não muito antigo;foi trazido nos anos 30 por uns japoneses à Ilha Bela, de onde se espalhou por todo o litoral norte de São Paulo e sul do Rio de Janeiro. É uma pesca totalmente artesanal, não usa motor, só canoa a remo. 55 56 Visitando o cerco Em Boiçucanga existem três cercos. São redes fixas num lugar especial de passagem de peixes. As malhas podem ser levadas para a praia para serem reparadas ou pra serem protegidas dos temporais. Mas a estrutura do cerco, formada de um círculo e uma trilha de bóias e âncoras, permanece sempre lá, tem só que ir renovando os bambus a cada três meses mais ou menos. 56 57 A rede do Cerco forma uma espécie de viveiro dentro do mar. Os peixes que por ali passam são conduzidos pelo "caminho do cerco" para dentro da grande rede, mas permanecem ali soltos e vivos. Quatro vezes por dia, chova ou faça sol, as canoas vão visitar a rede. Geralmente vão às 6:00, às 10:00, às 14:00 e às 18:00 horas. Vão três homens numa canoa grande e um na canoa pequena, este com a missão de "fechar o cerco". Os homens vão puxando a rede até reunirem os peixes ao alcance das mãos. Então viram a rede por cima da canoa e novamente colocam a rede em seu lugar. E podem devolver os peixes pequenos também! É uma pesca muito boa porque é feita durante o ano todo e pega uma variedade enorme de peixes: sororoca, bonito, xarelete, guaivira, bacoara, enchova, galo, espada, porquinho, curuvina, caçonetes ... E é uma rede impossível de ser roubada porque é muito grande e fica muito perto da praia. Só mesmo 57 58 o mar numa grande viração pode estragar esta rede, mas isso é raro porque a sabedoria dos pescadores faz com que eles se previnam, recolhendo o cerco quando prevêem uma tempestade. Quem freqüenta a chegada do cerco na praia sabe que às vezes pode não vir nenhum peixe e noutro dia vem um cardume inteiro. REDE DE PICARÉ É uma rede que é passada na praia, geralmente à tarde ou à noite, muitas vezes pelas crianças, buscando peixe para consumo do dia. A rede é passada na beira do mar; uns seguram a rede em terra e outros dentro d'água. Vão arrastando, a rede vai por baixo, pelo fundo, não chega à superfície como a rede de praia, da tainha. Ela tem um "saco" no fundo que segura o peixe. É uma rede boa pra pegar pescadinha, marialuisa, roncador, tortinha, sabelha mole, dãodão 58 59 (manjuba) e outros peixes pequenos ou parati em maio, quando costuma subir o rio. Embora o picaré não seja uma pesca ofensiva, hoje ela é proibida por lei. Alguns ainda têm sua rede guardada como lembrança, outros ainda arriscam uma passadinha naqueles dias em que ninguém tem um peixe para comer. Arrastando o Picaré 59 60 PESCA DE TARRAFA A tarrafa é uma rede miúda; uma pessoa só, já dentro da água - no rio ou na beirinha da praia solta a rede, que imediatamente cerca uma pequena área. O que estiver por ali, já está pego. É bom pra Parati, também. PESCA DO CAMARÃO O camarão é pescado no pequeno arrasto. Um único barco lança a rede pro fundo do mar, com bastante chumbo. A rede é presa em duas "portas" – pranchas de madeira – uma de cada lado do barco para manter a rede aberta. O peso é tanto que mesmo com o motor ligado na potência máxima, o barco quase nem se move, a impressão que dá é que o barco está parado. Tem-se que arrastar às vezes horas até conseguir uma quantidade razoável de camarão. 60 61 Por ser um tipo de pesca mais predatório, esta atividade é suspensa todos os anos, de fevereiro a maio: é o "defeso", um período de trégua para os camarões crescerem e multiplicarem-se. PESCA DE ARRASTÃO É a pesca em escala industrial, que não é feita aqui a não ser quando os barcos desobedecem a Lei e vêm arrastar perto da costa. Mas de qualquer forma deve ser registrada aqui por seu papel na atual escassez de peixes. Esta pesca é feita com dois barcos, cada um segurando uma extremidade da rede, que vai varrendo o fundo do mar. Nesta operação vai matando peixes grandes, peixes miúdos e até a vegetação do solo que até então servia de alimentação para várias espécies. A rede arrasta horas e então é erguida por guindaste. São toneladas de peixes. Os que têm valor comercial são colocados no gelo imediatamente. O 61 62 restante, que muitas vezes é mais da metade, é jogado de volta pro mar, só que agora são toneladas de lixo. O PEIXE SECO Dona Rosalina seca uma variedade de peixes Quando não havia eletricidade e tinha peixe em quantidade, o único meio de conservar o peixe era salgá-lo e secá-lo no sol. 62 63 Cabia às mulheres o trabalho de "escalar" o peixe, isto é, limpar, abrir e fazer sulcos onde se passa bastante sal grosso. É importante salgar todos os sulcos, caso contrário pode acontecer do peixe ser visitado por moscas, que depositam ovos onde não há sal. Depois de escalado e salgado, estende-se o peixe no sol, sobre uma rede suspensa ou pendurado no varal. São precisos pelo menos três dias de sol forte para secar o peixe, que tem que ser exposto de manhã e recolhido no fim da tarde. Este peixe, depois de seco, pode ser conservado durante meses. Separava-se uma quantidade para o consumo da família e o restante levava-se para vender em Santos. Hoje já não há necessidade de secar peixe, pois todo mundo tem freezer e também porque raramente tem excesso de peixe, mas ainda se faz porque é muito saboroso. 63 64 AS CANOAS A canoa, esculpida num tronco só, é um dos meios de locomoção mais perfeitos que existem. É preciso muita sabedoria para se fazer uma canoa. A começar por escolher a árvore certa, que nunca o canoeiro saiu por aí derrubando qualquer árvore em qualquer tempo. O canoeiro corta o pau no meio da mata e ali mesmo começa a moldar a canoa. Ele tem que considerar o lado em que ela tomava sol, pra depois não ficar pensa. Tira uma primeira fatia, deixando reta a face que será côncava. Aí cuidadosamente calcula toda a geometria da canoa, riscando na madeira as linhas do corte, com o auxílio de um barbante tingido. Então começa a cavocar, fazendo sulcos diagonais. É muita madeira, são necessários bem uns três ou quatro dias de trabalho brabo até 64 65 que a canoa tenha começado a tomar forma. Isso se for uma canoa pequena, para uma ou duas pessoas. Quando a tora já está mais leve, arrasta-se a quase canoa até o rio e pela água se desce até a vila, para continuar o trabalho por aqui. E lá se vão mais alguns dias, moldando, lapidando ... Cada praia tem um feitio de canoa ideal para a forma das ondas do lugar. As canoas genuínas de Boiçucanga são bastante arredondadas, assim como a enseada. Biló, Seu Guilherme, Seu Benjamim e Seu os irmãos canoeiros, desenvolveram um desenho típico para Boiçucanga. Canoeiro Benjamim fazendo remo 65 66 Hoje, com as leis que protegem as matas, é muito difícil para o canoeiro conseguir a liberação da árvore adequada. A Lei permite trabalhar em troncos que caíram acidentalmente, mas o canoeiro precisa provar à Polícia Florestal antecipadamente, senão corre o risco de ser preso. Tem casos tão complicados, madeiras em lugares tão complicados da Florestal chegar, que acabam estragando. Houve o tempo das canoas de voga, imensas, dois metros de boca (largura). Eram movidas por seis remadores, auxiliados por duas velas diferentes, usadas de acordo com os ventos. Era o meio de transporte coletivo até a década de 30 e foram substituídas pelos barcos de cabotagem. Até uns dez anos atrás eram muitas as canoas motorizadas, grandes, com um metro, um metro e meio de boca. Foram sendo substituídas pelos barcos de fundo chato. Hoje a maioria das canoas são 66 67 pequenas e, do jeito que vai indo, em poucos anos só vendo em museu. Acredito que a pesca tem que ser mais valorizada, a pesca artesanal tem que ser defendida. Pescar é fundamental, a melhor parte da alimentação está dentro do mar. Se o homem perder o conhecimento dos “antigos”, vai demorar muitos e muitos anos para aprender de novo. Esse pessoal antigo aprendeu como pegar o peixe, como preservar, como não deixar acabar. Hoje o homem inventou métodos destruidores.” (Celso de Souza Filho, XIXICO) 67 68 ALIMENTAÇÃO Na fala do caiçara, quem come demais ou com avidez é TIANHO. Tinhaeza de lado, o caiçara sempre se alimentou bem, tendo como básico o Peixe, a farinha de mandioca e a banana. Variava-se na proteína comendo, vez ou outra, carne de caça - paca, tatu, cotia, coati, porco do mato, raposa, jacu, macuco - ou carne de criações - porco, pato, galinha e ovos. Até chegar a estrada, se tomou muito pouco leite e raras vezes se comeu carne de vaca. Além das bananas e da mandioca, cultivava-se arroz, milho, feijão, batata-doce, cará, abóbora, maxuxo, uma variedade de verduras e frutas - limão, laranja, mamão, jaca, abacate, ameixa, jabuticaba, carambola,.goiaba, araçá, abricó, canito. E tinham as 68 69 frutas silvestres, algumas difíceis de encontrar hoje em dia, abiu, papaguela, jambolão, bocupari, maracujá do mato, amora, pitanga. AS BANANAS Sempre se plantou muita banana por aqui e o clima quente e úmido sempre favoreceu. A Banana Branca ou Prata é a que mais tem. Uma banana leve, já engrossou a alimentação de muito nenê. Mais pesada, apesar de seu pequeno tamanho, é a Banana Ouro, que também se come crua. A Banana Nanica além de ser comida ao natural é excelente para o Azul Marinho, que pode ser preparado também com a Banana São Tomé, uma banana grande. A Banana Cinza e a da Terra devem ser cozidas ou fritas. Podem ser fritas e comidas junto à refeição, acompanhando peixe frito, ou serem cozidas e 69 70 acrescidas de melado na hora do lanche, pra acompanhar o café. Celso colhendo banana A FARINHA DE MANDIOCA Atualmente ninguém mais planta mandioca por aqui. As "Casas da Farinha" foram sendo desativadas, mas até há poucos anos atrás cada família tinha a sua. Um cômodo destacado da casa, com um enorme forno à lenha - com uma chapa grande de metal, especial pra se torrar a farinha-, uma prensa 70 71 de madeira parecendo um enorme parafuso, uma roda ou catitu, sevadeira, gamelas, tapitis, peneiras, serengas. A Produção da farinha era trabalho de dois dias, envolvendo a família toda: homens, mulheres, crianças, e se repetia uma ou duas vezes ao mês. O primeiro dia começava logo cedo, na roça, arrancando as raízes da mandioca. Trazia-se para casa e o primeiro passo era raspar as raízes, usando uma faquinha especial, a serenga. As crianças ficavam sentadas em círculo, raspando, enquanto os adultos iam cuidar do serviço mais pesado. Lavavam as raízes e colocavam no Catitu ou numa Roda maior, para ralar. Eram precisos dois homens fortes para girar a Roda. Do outro lado, uma mulher sentava na sevadeira, um banco alto ao lado do balaio onde estavam as mandiocas lavadas. A mulher colocava uma quantidade no colo, protegido da umidade por um pano limpo, e, aos poucos, ia 71 72 introduzindo as raízes na roda. Ralava-se de quatro a cinco balaios. Quando ralada, a mandioca ia virando uma massa depositada no Cocho, um recipiente grande, geralmente um pedaço de canoa velha. Daí ia sendo colocada, aos poucos, no tipiti ou tapiti, uma cesta trançada com palha de Timbó Peva, que olhando de cima tem o formato de um pneu. O tapiti era levado ao Fuso, uma grande prensa, na ponta do qual se enroscava o "Queijo", uma tábua circular, de madeira. O queijo prensava o tapiti, descendo à medida em que o fuso girava, apertando bem a massa e fazendo escorrer dela um caldo. O caldo ia caindo na gamela, um recipiente de madeira semelhante a uma canoa. O segundo dia começava ainda mais cedo, bem antes do sol raiar. Preparava-se o fogo, aquecendo-se o forno cuja temperatura ia sendo regulada durante todo o dia. 72 73 Da gamela, que ficara em repouso desde a véspera, tirava-se cuidadosamente o caldo, que podia ser jogado fora ou aproveitado mais tarde, azedo, como veneno contra saúvas nas plantações. fundo da gamela, depositado, encontrava-se No a tapioca, um polvilho grosso e branquinho. Acrescentava-se água limpa e ficava como um leite. Deixava-se novamente a gamela em repouso, pra assentar mais o polvilho. A massa da mandioca que ficara no tapiti era passada numa peneira de bambu ou de taquara, quadradinha. A massa mais fina que passou, era levada ao prato do forno e ali, com a ajuda de um rodo de madeira, era mexida incansavelmente, torrando até ficar uma farinha toda solta. Com uma Apá feita de Ubá, ia se jogando a farinha para cima, para não embolar, e com o rodo se mexia de um lado para o outro. 73 74 A farinha que ia ficando pronta ia sendo colocada numa caixa de madeira, padrão de medida, chamada de Meio Alqueire e daí ensacada para a venda, ou reservada para o consumo próprio. (Meio alqueire correspondia a 25 litros de farinha). Guardava-se um pouco da massa sem tostar, para fazer o bolo mais tarde. Na peneira restavam os resíduos mais grossos da mandioca, a quirera, que era torrada no fim de tudo quando o forno já esfriava e depois era dada às galinhas. Já no meio da tarde, quase no final do processo da farinha, voltava-se à gamela. Jogava-se fora a água e se coava o polvilho num pano até ele ficar bem seco. Com ele se fazia o Bolo e o Biju. Para o bolo, se misturava o polvilho com o pouco da massa que não fora forneada. Amassava-se bem, temperando com sal ou com açúcar e erva-doce. Cortavam-se pedaços de folha de bananeira e em 74 75 cada pedaço se colocava um pouco desta mistura. Fechava-se a folha, embrulhando bem e se colocava no forno, já não tão quente. Assava-se de um lado, virava e assava do outro. O biju era feito com o restante do polvilho, misturado com coco e temperado com açúcar ou com sal. Faziam-se bolinhos quadrados e se assava direto no forno. Dona Maria Pequena fazendo farinha 75 76 A PICUTA Picuta era outra espécie de bolinho pra se comer acompanhando o café, feito à base de Mandioca Puba. Enterrava-se a mandioca na areia do rio por uma semana. Aí se tirava toda a casca, já apodrecida e se ficava com a raiz mole. Lavava-se muito bem, depois se amassava e peneirava. Depois se misturava com ovo, manteiga, erva-doce, canela, coco e açúcar. Separava-se em bolinhos que eram enleados em pedaços de folha de bananeira, com as pontas torcidas. As trouxinhas, postas num caldeirão com água, ferviam por uma hora. As picutas podiam durar dias... se não fossem comidas antes. 76 77 PEIXES E FRUTOS DO MAR Tem muito caiçara que não come um peixe que já esteve na geladeira, porque sente que alterou o sabor. Pode-se preparar o peixe de todo jeito: frito, às vezes. Ensopado, muito. Na brasa, quando possível. DICAS PARA CONSERTAR UM PEIXE O segredo para consertar (ou limpar) bem um peixe é ter uma faca muito bem amolada, uma pedra de amolar -que vai sendo usada durante a operação para manter o corte- e uma tábua firme onde se apóie o peixe. Nunca limpe um peixe sobre pedra porque estraga o corte da faca. Segure o peixe pelo rabo e comece retirando os ferrões, depois as escamas ou o couro. Peixes com escamas devem ser escamados raspando-se a faca no sentido rabo-cabeça. Peixes de 77 78 coura devem ser descascados também no sentido rabo-cabeça, introduzindo-se a faca sob o couro e apertando-a para cima, de modo a tirar o couro bem rente, sem carne. Os peixes de graxa são os mais fáceis de limpar, pois já têm a pele lisa. Continue a segurar o peixe pelo rabo e corte fora as nadadeiras, depois a cabeça e o rabo se quiser. Aí abra a barriga e retire as vísceras. Lave bem, tirando todo o sangue. Depois corte em filés ou postas, no tamanho que desejar. Se a intenção for assar, deixe o peixe inteiro. Em vez de abrir um corte na barriga, abra-o pelas costas. Corte o peixe desde perto da cauda até a cabeça com um talho profundo no dorso, rente à espinha, cuidando para não atravessar toda a barriga, deixando a pele de baixo inteira. Um novo talho do outro lado da espinha e retire toda a espinha central e as vísceras. Lave bem e está pronto para ser recheado com os temperos e assado. 78 79 A Garoupa é um peixe especialmente difícil de se limpar. Ela tem escamas, mas é um peixe "liso", tem uma gosma que a faz escorregar da mão. A dica é passar um pouco de areia na mão e segurá-la firme pelo rabo. Ela pode ser só escamada, se for assar, ou "dicascada" para ensopar. Neste caso, aperte a faca sob as escamas, mas rente à pele e tire uma fatia desta, com todas as escamas juntas. Ela vai ficar ainda com uma pele branquinha. Aí corte em postas, de preferência com uns dois dedos de altura e dê talhos nas laterais, para penetrar bem o sal. Os cações são peixes que têm um fígado muito grande, o que é altamente perecível, por isso suas vísceras são tiradas imediatamente após serem pescados, na praia ou ainda no barco. São peixes de couro e precisam ser "dicascados" antes de se cozinhar. O couro do cação é uma lixa, se cozinhar ela se espalha e o cozido parece cheio de areia. Se não se conseguir tirar o couro com a faca, pode-se ir 79 jogando água 80 fervente e raspando com uma faquinha, até resultar uma pele fina e lisa. Mutirão de limpar cação A Guaivira é um peixe delicioso, mas de pouco valor comercial. Na verdade existem dois tipos de Guaiviras. A mais comum é amarelo-esverdeada com uma espécie de couro que, se cozido, resulta em infinitas espinhas minúsculas. Ela pode ser comida 80 81 de todo jeito: é boa de fazer filé e fritar, melhor ainda assar inteira na chapa, com couro e tudo. Ela tem só espinhas grossas, depois de assada dá para descolar tudo de uma vez como se fosse uma só espinha, e o couro também se descola da carne. O outro tipo é a Guaivira de mar grosso. Aparece raramente, só em ocasiões de mar revolto. É mais branca e não tem couro. É uma delícia de se fazer ensopada. Consertando peixe na beira do rio 81 82 PEIXE FRITO Para fritar, o método é tradicional: tempera-se com sal, passa-se na farinha de mandioca ou então no ovo e na farinha de trigo antes de fritar. É acompanhado de arroz, feijão, Banana Branca ao natural ou Banana da Terra frita e limão pra dar o tempero final. Qualquer tipo de peixe serve. Peixes bons para se fazer filé são: Linguados, Corvinas, Guaiviras, Pescadas, Bicudas. Peixes miúdos são fritos inteiros: Dãodão, Sardinhas e parentes da Pescada. Peixes de carne mais firme são fritos em postas: Cações, Sororocas, Enxovas, Cavalas. PEIXE ENSOPADO ou ESCARDADO Pode-se ensopar todo tipo de peixe. Alguns são consumidos quase sempre ensopados : Bagres, Pirajicas, Méros. 82 83 Corta-se o peixe em pedaços ou postas e se tempera com sal, de preferência horas antes de cozinhar. Pode-se temperá-lo também com limão mas há quem prefira colocar o limão só na hora de comer. Refoga-se com pouco óleo, cebola e tomate; depois acrescentam-se água, cebolinha, salsinha e coentro de folhas largas. No Cação se coloca Alfavaca em vez de Coentro. O AZUL MARINHO O azul marinho é um prato à base de peixe ensopado com banana. Tem esse nome por causa da cor resultante da banana cozida no molho. É o prato típico de toda a costa, mas em cada lugar é feito de modo um pouco diferente. Veja como se faz o de Boiçucanga: Pegue três ou quatro bananas São Tomé ou nanicas. Descasque-as, corte-as em rodelas e leve para cozinhar numa panela com água. 83 84 Quando começar a amolecer, pode começar a preparar o peixe em postas noutra panela. Pode ser qualquer peixe de carne firme, como Garoupa, Cavala, Enxova, Tainha. Refogue as postas na cebola, tomate, cheiro-verde, coentro. Acrescente sal e água, depois junte a banana e cozinhe por alguns minutos, tomando cuidado para queo peixe não desmanche. Em dias comuns, já se serve assim: cada um mistura a farinha no caldo, fazendo o pirão no próprio prato. Mas para uma “apresentação”, quer dizer, uma ocasião especial, depois de cozido separe as postas do peixe e reserve. Na panela ficam o caldo, os temperos e a banana. Acrescente aí a farinha de mandioca, lentamente, mexendo sempre até formar um pirão cremoso. Coloque numa travessa e, por cima do pirão, as postas do peixe. 84 O Azul 85 Marinho é considerado um prato completo, que não necessita complemento, mas pode ser comido também com arroz . O COZIDO DA VÓ JULíA (mãe de Dona Zilá) Corte um peixe de carne firme, de preferência Tainha, Sororoca ou Xarelete, em postas e coloque sal. Numa panela com um litro de água fervente coloque pedaços grandes de cebola, um punhado de coentro de folha larga, alguns tomates redondinhos, nativos. Ferva por alguns minutos. Passe o peixe na água corrente para tirar o excesso de sal e coloque-o na panela. Tampe e cozinhe em fogo brando. Na hora de comer, já no prato, misture farinha ao caldo pra fazer pirão. O PEIXE ASSADO NA BRASA Quando o clima permite, o peixe assado na brasa é motivo para confraternizações. Um bom lanço de xa85 86 reletes pode virar uma festa. Assim como com outros peixes assados na brasa, não se usa descascar ou descamar. Tire apenas a barrigada e faça alguns talhos no peixe, para penetrar o tempero. Sal, limão e pronto. Um bom lanço de xareletes O PEIXE ASSADO NO FORNO Para assar no forno, os melhores peixes são Enxovas, Baquaras, Bonitos, Sororocas, mas Corvi- 86 87 nas, Pescadas, Garoupas e tantos outros são também ótimos. O ideal é que o peixe seja aberto pelas costas quando for limpo. Prepare uma mistura de cebola, tomate e cheiro verde picadinhos com suco de limão e sal e recheie o peixe. Coloque um pouco de óleo numa assadeira e leve ao forno. Esborrife água de vez em quando. TAINHA ASSADA No forno ou na brasa, uma Tainha com ova merece um tratamento especial: mantenha as escamas, abra-a pelas costas, tempere com sal e deixe um tempo pra pegar o tempero. Numa panela pequena, cozinhe uma posta de uma outra Tainha, acrescente a ova picada, cheiro verde, cebola, sal, bastante água; quando estiver desmanchando a posta, coloque farinha de mandioca ou de milho, sempre mexendo até secar e virar farofa. Coloque esta farofa dentro do peixe e costure com um 87 88 aramezinho de pesca ou agulha e linha. Leve ao forno ou à brasa e coma com arroz. PIRUMÁ e OVAS Pirumá é a moela da Tainha, que tem carne tenra como a moela de galinha. Tem gente que faz um prato ensopado só de Pirumá. Difícil é conseguir juntar vários pirumás prá fazer essa iguaria. Melhor aproveitar o pirumá na farofa, junto com a ova. Mas, em vez de farofa, você pode preferir a ova da tainha frita, que é uma delícia. Neste caso, muito cuidado na hora de “consertar” o peixe. Abrindo-o pelas costas ou pela barriga, atenção para não furar a ova, que deve ser frita inteira, protegida por sua própria pele e temperada só com sal. PEIXE SECO ENSOPADO Geralmente o peixe seco é ensopado, cozido com banana verde, abóbora de vez (madura), mandioca 88 89 ou batata doce. Coloque o peixe de molho na água logo de manhã. Ao meio dia já estará bom pra ser cozido. Ferva e jogue fora a água, para tirar o excesso de sal. Desfie o peixe e refogue na cebola, cheiro-verde, tomate; cozinhe junto com um dos vegetais acima, cortado em pedaços. PEIXE SECO NO FORNO Deixe o peixe seco na água por algumas horas. Jogue fora esta água e coloque o peixe em água fervente. Escorra. Corte o peixe em pedaços e refogue com cebola. Depois coloque-o numa assadeira com batatas e azeitonas, bastante azeite e leve ao forno. COZIDO COM BANANA MADURA Deixe o peixe seco de molho na água por cerca de quatro horas. Depois afervente e jogue fora a água. 89 90 Corte o peixe em pedaços. Numa panela, refogue um pouco de tomate e cebola no óleo. Acrescente os pedaços de peixe e um pouco de água. Quando já estiver fervendo, cubra tudo com bananas maduras, inteiras. Pode ser qualquer banana: prata, ouro, nanica, contanto que estejam maduras. Tampe a panela e deixe cozinhar em fogo brando. Cozinhe por um quarto de hora, aproximadamente. As bananas se abrem, o caldo engrossa e o excesso de sal é cortado. BOLINHOS DE PEIXE SECO Assim como o bacalhau, qualquer peixe seco se presta muito bem pra virar bolinho. Deixe-o na água pelo menos por quatro horas. Leve ao fogo, quando ferver jogue fora a água. Desfie o peixe, jogando fora todas as espinhas. Para um quilo de peixe, faça uma mistura com três colheres de arroz cozido, duas batatas cozidas, 90 91 dois ovos frescos e farinha de trigo suficiente para dar liga. Amasse tudo até ficar uma mistura homogênea. Vá tirando de colherada pequenas porções e fritando numa frigideira com bastante óleo. SOPA D'ÁGUA Um outro jeito de se comer o peixe seco, muito usado pelos antigos era a "sopa d'água". Usavam muito em dias de mutirão, quando iam "barrear" uma casa, isto é, quando se juntava várias pessoas para ajudar a fazer uma casa de "pau-a-pique". O mutirão ocorria em clima festivo, num domingo seco, de sol, condição necessária para o barro secar e o pau-a-pique dar certo. Famílias inteiras participavam: homens, mulheres e crianças. A sopa d'água era um prato rápido e prático de se fazer: assava-se o peixe seco direto na brasa e cada um misturava no próprio prato um pouco do peixe, farinha de mandioca e água fervente. Como o 91 92 peixe já era salgado, a água fervente se encarregava de misturar o sal à farinha. Pronto. Nos dias em que a família toda almoçava na roça, no meio do dia de trabalho, se fazia a sopa d'água com água fria mesmo, e, em vez de prato, comia-se numa folha de caetê. FIOS DE CAÇÃO Como o cação é um peixe sem espinhas, ele era cortado em tiras compridas, e assim salgados por três dias no sol. Depois de secas, essas tiras muitas vezes eram assadas diretamente no fogão à lenha e comidas enquanto se tomava café. Salgadinhas, um excelente tira-gosto. ESCARDADO DE PEIXE SAPRESO Comum na mesa dos pescadores, o sapreso é um peixe que já foi escalado, salgado e exposto ao sol, mas apenas por um dia. 92 93 No dia seguinte é colocado na água fervente, escorrido e cortado em postas. Em seguida é refogado com vários temperos, cozido com um pouco de água, resultando num escardado maravilhoso. CAMARÃO À MODA CAIÇARA O camarão típico de Boiçucanga é o Sete-barbas miúdo. Mal chega à praia já é descabeçado, por que se for guardado com cabeça fica preto rapidamente (a menos que seja tratado com uma química, como os camarões de peixaria). Na cozinha, ele deve ser mais uma vez muito bem lavado (lembre-se de que o camarão vem arrastado no fundo do mar, chega na praia misturado com algas, águas vivas, peixinhos, siris, pedrinhas, conchas e lodo). Depois de limpo, pode ir ao fogo com casca. Misture o camarão no sal e pingue um pouco de limão. Refogue no óleo juntamente com pedaços de 93 94 alho, de cebola e de tomate. Ele solta um pouco de água. Vá remexendo tudo até ver o camarão mudar de cor e a mistura secar. Coma com arroz. LULAS BOIÇUCANGUENSES As lulas aparecem em Boiçucanga sem nenhuma regularidade. Pode passar ano sem aparecer, de repente vem de montão. Se a lula for grande é bom deixá-la inteira, quer dizer, dividida em duas partes por causa da limpeza. Pra se limpar a lula, arranca-se a parte dos tentáculos e vira-se a outra parte do avesso. As lulas têm uma bolsinha de "tinta" preta, que expelem à sua volta quando precisam se esconder. O ideal é tirar esta bolsinha sem derramar a tinta, mas se derramar não há mal algum. Em outros lugares "lula en su tinta" é um prato apreciado, mas aqui não se usa. 94 95 A lula tem um esqueleto que parece uma pena de plástico transparente e que deve ser tirado. Uma vez limpa, bom é salgá-la e colocá-la numa chapa quente sobre carvão em brasa. Se a lula for pouca e pequena, melhor é cortá-la em rodelinhas, fazer com elas um molho de tomate bem forte, de se comer com macarrão. LAGOSTAS As lagostas dessa região são grandes, de uma espécie diferente das nordestinas, que são mais conhecidas comercialmente. São apanhadas no mergulho ou, muito raramente, se deixam enlear numa rede de fundo. O mergulhador que se preza sabe respeitar uma lagosta de pouca idade. Ele deixa a lagosta pequena em sua toca e volta meses depois no mesmo lugar. O preparo da lagosta é fácil. Uma vez limpa, é colocada num caldeirão para ferver na água com um 95 96 pouco de sal, por cerca de quinze minutos. Daí é saboreada com o molho que se desejar. CUIDADOS COM A SAÚDE Os caiçaras conhecem muitas ervas nativas que curam doenças, como Pariparoba, Erva-de-Madre, Erva-Baleeira, Sete-Sangrias, Picão, Carqueja, Mentruz, Quebra-Pedra e muitas outras, usadas em infusão ou maceradas em emplastros. Do mar, sabem que a gordura da tartaruga, derretida, era um excelente bálsamo contra reumatismo. E a gordura do peixe Prejereba - um peixe meio raro de aparecer perto da costa e que tem a particularidade de ser encontrado em alto mar instalado dentro de barris ou pneus velhos - até hoje é reservada. Depois é derretida e guardada num 96 97 vidro para ser usada contra ferimentos causados por queimaduras. Quando é hora de comer, o caiçara tem muito respeito consigo próprio. Se ele tem um machucado feio, um corte de operação em convalescença ou uma ferida exposta, por exemplo, ele sabe que não pode comer peixes de graxa. Peixes de graxa são aqueles que têm uma gordura ou óleo muito forte na pele e em geral não têm escamas. Por experiência, sabe que a graxa ativa a infecção. Os mais carregados são os Bagres, o Bonito, a Espada, a Sardinha - que até tem escama mas também muito óleo - as Raias, os Xareletes. Camarão e outros moluscos também pedem muita saúde. Em compensação, há peixes que se pode comer em qualquer situação: Linguado, Pampo e qualquer tipo de Pescada. A Oveva, em especial, é o primeiro peixe que uma mulher que teve nenê pode comer. Atualmente as mulheres 97 que deram à luz 98 recentemente não têm consigo próprias os mesmos cuidados que as nativas tinham nos tempos em que não havia por aqui farmácias nem Posto de Saúde. Além de se resguardarem do frio, respeitavam a dieta, por 40 dias só comiam como mistura ensopados de Pescadinha, Oveva ou Bicuda. Comiam galinha, se tivesse. Peixes mais carregados nem pensar. Carne de porco, só depois de um ano. Comiam farinha, banana, legumes e verduras normalmente e enquanto amamentavam comiam muita taioba. A taioba é uma folhagem nativa que tem uma folha grande e bonita, com o formato de coração e talo verde. Sua parente de talo roxo chama-se taierão e é altamente venenosa. Com ela se faz um remédio para matar bicheiras em animais. 98 99 A FALA DE BOIÇUCANGA Por ser uma comunidade razoavelmente isolada até vinte anos atrás, Boiçucanga tem nos seus habitantes mais tradicionais várias expressões lingüísticas próprias, algumas semelhantes a outras de toda a Costa Sul, outras a todo o litoral. Até hoje pode-se distinguir os habitantes das vilas vizinhas pelo jeito de falar, em cada vila um sotaque, apesar dos poucos quilômetros de distância entre si. Comum nos caiçaras mais idosos de todas as vilas é o uso dos pronomes de tratamento na segunda pessoa, isto é, tratando-se por tu e vós – principalmente o vós -, com todo o respeito. Separei algumas expressões que tenho escutado, muitas delas usadas no texto, outras talvez inéditas: 99 À rola = solta 100 Apresentação = Cerimônia Ardentía = Clarão do mar em noites muito escuras Arrelá = Exclamação para exprimir pena Arriar ou Largar a rede = colocar a rede no mar, no local de captura Arrumar a rede = Consertar os furos causados pelo uso Barrear = Encher de barro uma parede de pau-apique. No sentido figurado: faturar, se dar bem Bicheiro = instrumento para retirar peixes grandes da água - um cabo de madeira com um gancho de ferro como um anzol enorme Boca de barra = local onde o rio deságua no mar Burgal = Fundo do mar cascalhado na divisa entre a costeira ou parcel com a areia Cadijubar = acobertar alguém ou ato mal feito, inocentar o culpado 100 101 Caiçara e Caipira = Na origem tupi-guarani Caiçara seria “pra cá da cerca” e caipira “pra lá da cerca”. Quem conservou o saber da língua de origem explica a “cerca” como sendo a Serra do Mar e, assim, caiçara é o povo das praias e caipira o povo da serra pra lá Cambixo = Peça de fazer cabo, torcendo corda Caniço = Vara de pesca grande, para adulto Capelo = Uma formação de nuvens, formando uma muralha no horizonte Casas de farinha = Cômodo separado da casa, destinado exclusivamente à fabricação de farinha Chumberar = Colocar pesos nas redes, ou, durante o ato da pesca, prender a rede no fundo Cinzeiro ou Incêndio = ardentía muito forte, uma claridade no mar à noite, provocada por um cardume em movimento Comedío = cardumes de peixes minúsculos, que servem de comida a peixes maiores 101 102 Comilação = comilança, ato de um cardume de peixes maiores comer um cardume de peixes menores Consertar o peixe = Limpar o peixe tornando-o comestível Coxar = enroscar, rosquear De vez = (a fruta) no tempo de ser colhida, a caminho do amadurecimento Dicascar = descascar Emalhar ou enlear = Ficar preso na rede (o peixe) Engaçar = engatar uma rede na outra Entralhar = transformar o “pano” em rede, colocando pesos e bóias Escalar o peixe = Fazer muitos sulcos no peixe, onde se passará sal antes de colocá-lo ao sol para secar Escamar = tirar as escamas Escardado = ensopado. No sentido figurado: experiente, calejado Estar fora = estar no mar Estar pândega = estar engraçado, fazer palhaçada 102 103 Fornear = torrar a massa de mandioca no forno ao fazer farinha Fuzilar = relampejar Imbira = fibra de madeira usada para fazer corda Jazigo = momento de calmaria no mar, entre uma série de ondas e outra Léi! = Olhai! Veja!! Mar doente = mar calmo demais, anunciando que o clima mudará de repente Mar grosso = mar revolto Mar novo = alto-mar, longe da costa Mar “puxou” = mar virou, ficou agitado Maxuxo = xuxu Misgalhar = esfarelar Mutacanga = guelra do cação Nó cego = nó que não se consegue desatar; sentido figurado: pessoa incompetente O espia = pescador que observa o movimento da superfície do mar para localizar cardumes 103 O Quá!!! = o quê !!! 104 O que é isso vosso??? = expressão de espanto muito usada Os Antigos = Caiçaras mais idosos, que mantém hábitos tradicionais Peixe de graxa = peixe sem couro nem escama, que tem oleosidade forte na pele lisa Peixe sapreso = peixe salgado mas ainda semi-seco Picumã = fuligem pendurada no teto, sobre o fogão de lenha Pinchar = jogar fora, se desfazer Pirumá = moela de tainha Povo de fora = turistas Quidélhe? = onde está? Quinhão = parte da pescaria que pertence a cada pescador que trabalhou na captura Rede de malhão ou “mata-diabo” = rede grande para capturar cações 104 105 Rede morta = rede frouxa, não esticada, que não prende peixes Samburá = balaio de palha trançada, ideal para carregar peixes Sapopema = madeira da táboa de lavar roupa; cada mulher tinha a sua, estacionada no rio Sarceiro = movimento de um cardume pulando para forta da água; sentido figurado: confusão,briga Tianho = guloso, afobado Trepar nas grimpas = subir no galho mais alto da árvore Tresmalho = rede de pesca Um lanço = quantidade de peixe do mesmo cardume, capturada de uma só vez Uma manta = um cardume em movimento, visto sutilmente Visitar a rede = colher os peixes capturados e tornar a deixar a rede no mar Xuxar = cutucar 105 106 VOLTANDO AOS CARAPIRÁS Fêmea Macho Os Carapirás são aves com asas enormes, sua envergadura (medida das asas abertas) é igual a uma braça (medida dos braços abertos de um homem). São muito leves, pesam menos de meio quilo. Não podem pousar em lugares planos pois têm as pernas curtas e as asas arrastariam no chão. Pousam somente em penhascos, de onde podem 106 107 decolar tranqüilamente, e é aí que fazem seus ninhos. A Ilha dos Alcatrazes, no arquipélago do mesmo nome, é o seu habitat essencial, pois lá as encostas são paredões muito íngremes. A Ilha lhes dá abrigo e eles lhe dão o nome. Além de Alcatrazes, também são chamados, cientificamente, de Fragatas (Fregata magnificem) e, mais popularmente, de Tesoureiro, porque têm a cauda dividida em duas pontas como uma tesoura. As crianças de Boiçucanga costumavam cantar, ao vê-los sobrevoar a vila: "Tesoureiro, Tesoureiro Cortai o meu cabelo." A fêmea tem a barriga branca e o macho é todo negro, com um papo vermelho que infla na época de acasalar, para chamar a atenção das fêmeas. Tanto o macho como a fêmea levam, no bico, quantidades de peixe para alimentar os filhotes nos ninhos. Estes ficam lá, gordos, esperando a asa crescer. 107 108 Os pescadores dos tempos em que se ia até a Ilha de Alcatrazes a remo para pescar, contavam que muitas vezes iam se abastecer de isca nos ninhos. Como naquela época não existiam geladeirinhas de isopor pra transportar a isca fresca, desenvolveram um método de irritar o filhote do Carapirá com pequenas ameaças até ele "vomitar" os peixes trazidos pelos genitores, ainda fresquinhos. Alguns filhotes cuspiam até um quilo de peixe! Os Carapirás não pousam nem mergulham na água. Dão vôos rasantes para pescar, mas molham somente o bico. Percebem os cardumes dos peixes de passagem quando o mar está borbulhando na superfície e descem certeiros para pescar o peixe escolhido. Para pescar um Bagre, peixe que tem três ferrões muito grandes, mergulha no ar quatro vezes: na primeira apanha o peixe, sobe com ele bem alto e solta; mergulha de novo no ar para apanhar o peixe 108 109 em queda livre, na posição certa que lhe permite quebrar o primeiro ferrão; sobe novamente, larga o peixe e, por duas vezes, repete a operação quebrando os outros ferrões. Quando os pescadores visitam suas redes e vão jogando na água os peixes não desejados, são cercados por Carapirás que fazem a maior folia. Os Carapirás são capazes de permanecer horas a fio planando nas correntes de ar quente. Imagina-se que até dormem no ar. Cruzam grandes distâncias, rapidamente, voando muito alto no céu. O Arquipélago de Alcatrazes, único lugar onde já foram vistos pousados, dista no mínimo 34 quilômetros da terra firme, em linha reta. Dona Rosalina, nativa de Boiçucanga, nos conta um fato curioso que lhe aconteceu há cerca de cinqüenta anos: Certo dia, lá na Soca, um lugar de Boiçucanga que hoje chamamos de Maquininha, estava ela trabalhando 109 na roça quando de 110 repente...paff...bem na sua frente surgiu uma pescada, bonita, fresca, vinda do nada. Olhou para o alto e teve dificuldade de localizar o Carapirá distraído que perdera parte de sua bagagem, tão alto ele estava. Ficou um tempo ali, atônita, tendo nas mãos uma pescada que caiu do céu. Há cerca de 50 anos, vários moços de Boiçucanga trabalharam na Ilha dos Alcatrazes, colhendo guano, excremento das aves, um ótimo fertilizante que estava sendo comercializado por um italiano no interior de São Paulo. Moraram lá por uns meses, mas a ilha não é adequada para seres humanos. Da parte da Marinha, que tem o controle Legal da Ilha, também nunca foi possível estabelecer ninguém. Em compensação, a Ilha é o paraíso dos Carapirás e dos Atobás. Também chamados de Mergulhões ou Patos do Mar, os Atobás são ótimos pescadores e muitas vezes seguem os barcos e aparecem por perto das praias. 110 111 Ao contrário do Carapirá, pousa na água, nadando tranqüilamente e, diretamente do vôo, pode mergujlhar para pegar o peixe dentro da água. As duas espécies combinam suas habilidades harmoniosamente. Muitas vezes o Carapirá, que enxerga melhor e mais do alto, localiza o peixe e fica rondando, esperando o peixe beirar a superfície..O Atobá vai atrás da dica e como tem a capacidade de mergulhar, acaba pegando o peixe primeiro. Pode se dar bem, mas muitas vezes o Carapirá rouba o peixe de sua boca. No final das contas, um acaba ajudando o outro e a dobradinha vem dando certo. Dividem a Ilha ainda em equilibrada harmonia com Gaivotas – apesar de estas serem suas predadoras – e com diversas outras espécies de aves marinhas. Têm resistido bravamente a bombardeios (literalmente) e continuam passando sobre nossas cabeças com toda a dignidade. 111 112 E VOLTANDO AOS PESCADORES A atividade pesqueira diminuiu muito. Por um lado, a vida de agora oferece outras fontes de trabalho, de lazer e os supermercados oferecem outros frutos de consumo. Por outro, ficou mais difícil pescar por causa da pirataria das redes, por causa do alto custo do material de pesca, pela repressão legal e pelo transitar de lanchas, jet-skis e banhistas. E ainda por cima tem a poluição geral do Planeta e o estrago da pesca predatória que faz o número de peixes baixar drasticamente! Apesar disso tudo, Boiçucanga continua sendo uma vila de muitos pescadores. Ainda há meninos – pequenos e adultos – sempre brincando com coisas da pesca: é isca, é rede, é mergulho, é canoa, é picaré, é caniço, é espinhel. . . E existe uma boa 112 113 turma batalhando sério na pesca, embora a maioria tenha também outro ganha-pão. Se você chegar à praia de madrugada, assim uma meia hora antes do dia clarear, vai ouvir e talvez ver a movimentação dos barcos, redes, remos, motores. Quando no meio do dia o "pessoal de fora" vem se estender na areia e vê aquele pessoal sentado na sombra embaixo da árvore, batendo papo, pensa que esses pescadores não fazem nada. Se for lá perguntar quantas coisas eles já fizeram ou viram acontecer. . . Tem dia que não chega um peixe, mas com certeza não é culpa do pescador. Se não saiu nenhuma canoa é porque o mar não está deixando. Mas pode contar que nesse dia tem vários pescadores por aí remendando rede ou limpando motor, às vezes esperando a primeira chance de correr lá para resgatar sua rede que o mar pode estar destruindo. 113 114 Agora, se os barcos saíram, mas os peixes não vieram, então "fracassou". Acontece. Pescadores voltando do cerco E pra finalizar, cito palavras do pescador Adijute, que sempre dava uma mensagem de otimismo aos colegas: "Peixe é como espuma do mar, cada hora num lugar, de repente aparece" 114 Aos Pescadores Adijuti; Agenor; 115 Anisio; Ari; Ari Sérgio; Arildo; Benedito; Benjamim ; Beto; Bode; Brasilino; Carioca; Carioquinha; Célio; Celso; Chicão; Chico; Chico Gurupava; Clides; Clóvis; Crisanti; Dailtom,; Dami; Daniel; Dito de Irene; Dito de Kida; Dito Rita; Donizeti; Ercílio; Fernandinho; Filioca; Gilberto; Gilmar ; Índio; Ion; Jair; Januario; Jerri; Junior; Jururuca; Kida; Léo; Maneco; Maneco Matos; Manoel Rita,; Maurício; Mimico; Mundéu; Netinho; Nino; Olinto; Oracio; Pedrinho; Pelé; Pimpe; Plácido; Rivelino; Romão; Satiro; Silmar; Tião de Estevo; Ugolino; Vagner; Vicentino; Xixico,; Zé Banana; ZéBagunça; Zeca e todos que não lembrei o nome, obrigada, Nicia Guerriero, Boiçucanga, 1994 115 116 (cartão postal inserido na dobra da capa na edição original) ILHA DOS ALCATRAZES - São Sebastião – SP Os Carapirás ou Alcatrazes não podem pousar em lugar plano, pois têm as pernas muito curtas. A ilha que leva seu nome oferece o abrigo ideal para seu repouso. 116 117 (cartão postal inserido na dobra da capa na edição original - 2) VISITANDO O CERCO AO AMANHECER Na pesca de cerco, os pescadores vão puxando a rede até reunirem os peixes ao alcance das mãos. Aí viram a rede por cima da canoa e depois recolocam a rede no mar 117 118 (cartão postal inserido na dobra da capa na edição original - 3) CHEGADA DO CERCO NUMA MANHÃ DE OUTONO A chegada do cerco das 10 horas da manhã é aguardada por caiçaras que apreciam almoçar um peixe que nunca esteve na geladeira. 118 119 (cartão postal inserido na dobra da capa na edição original - 4) FIM DE TARDE DE INVERNO Os pescadores visitam o cerco quatro vezes ao dia, em canoas a remo. Na chegada, todo caiçara que estiver na praia ajuda a puxar a canoa. 119 120 (cartão postal inserido na dobra da capa na edição original - 5) SOROROCAS NO VARAL Antigamente a única maneira de conservar o peixe era salgá-lo e secá-lo ao sol. Hoje é uma opção, cada vez mais rara por falta de peixe. 120 121 (cartão postal inserido na dobra da capa na edição original - 6) ÁREA DOS PESCADORES Algumas redes misturam panagem de algodão, tecidas e tingidas no local, com panagem de nylon. As âncoras são fabricadas pelos próprios pescadores com ferros e canos de PVC. 121 122 (cartão postal inserido na dobra da capa na edição original - 7) ENTRADA DA BARRA Antigamente o rio Boiçucanga era bem mais fundo, todo ele navegável. Agora, para chegar ou sair para o mar é preciso esperar a maré alta. 122 123 (cartão postal inserido na dobra da capa na edição original - 8) PÔR-DO-SOL DE VERÃO As águas calmas e mornas dos fins de tarde, no verão, são ideais para as pescarias de linha. 123 124 CAPA - fotomontagem 1- Xixico (com Cambebinha na mão) e Silmar visitam rede de fundo ao amanhecer 2- Carapirás rodeiam o barco CONTRA-CAPA 1- Antigos pescadores : Plácido (Táti), Benedito Rodrigo e Diógenes de Matos (1989) 2- Xixico passa numa canoa ao entardecer. Ao fundo Ilha Montão de Trigo, Ilha dos Gatos, Ilha das Couves e As Ilhas NARRAÇÃO SOBRE A PESCA e ILUSTRAÇÕES : Xixico – Celso de Souza Filho OUTRAS INFORMAÇÕES: Rosalina, Maisa, Zilá, Fátima, Lavínia, Celso, seu Benedito TEXTO e FOTOS: Nicia Guerriero COORDENAÇÃO EDITORIAL: Ana Maria Xavier/Via das Artes 124