Luz, câmera, jurisdição: tecnologia de comunicação e o mito da

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Luz, câmera, jurisdição: tecnologia de comunicação e o mito da
BOLETIM CEDES – JULHO-SETEMBRO 2013 – ISSN 1982-1522
Luz, câmera, jurisdição:
tecnologia de comunicação e o mito da justiça transparente no Brasil*
Joana de Souza Machado**
Ao tempo em que se coloca em questão, na pauta do congresso norte-americano1, a
conveniência de se inaugurar a prática de uma cobertura televisiva, ao vivo, das sessões abertas
de julgamento da Suprema Corte dos Estados Unidos; completa-se, no Brasil, uma década de
“TV Justiça”, experiência que de certo modo situa o país na vanguarda da administração do
serviço de justiça.
Entre os juízes da Suprema Corte norte-americana, prevalecem preocupações relativas
aos possíveis impactos das câmeras televisivas sobre o funcionamento da instituição2; o que em
boa medida contrasta com o tom positivo do balanço até o momento realizado no Brasil, sobre o
exercício de se produzir a justiça diante das câmeras3.
A TV Justiça corresponde a um canal público e não-lucrativo de televisão, administrado
pelo Supremo Tribunal Federal (STF), órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro. Tornou-se
possível por efeito da Lei 10461 de maio de 2002, curiosamente sancionada por um integrante do
próprio STF, Ministro Marco Aurélio, que, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, teve
a oportunidade de exercer interinamente a Presidência da República4. Prevista em lei a
necessidade de se reservar um canal ao Supremo Tribunal Federal, para divulgação dos atos do
Poder Judiciário e outros correlatos, a TV Justiça teve início em 11 agosto de 2012, tornando-se
*
Este trabalho desenvolve ideia já apresentada pela autora no I Simpósio Direito e Inovação da Faculdade de Direito
da Universidade Federal de Juiz de For a e recebe o título do resumo publicado nos anais do referido evento.
**
Professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora-MG. Doutoranda e Mestre em Direito
pela PUC-Rio. E-mail: [email protected]
1
Projeto de lei, janeiro de 2013: “Cameras in the Courtroom Act - Requires the Supreme Court to permit television
coverage of all open sessions of the Court unless it decides by majority vote that allowing such coverage in a
particular case would violate the due process rights of any of the parties involved”. Disponínel
em:http://www.govtrack.us/congress/bills/113/hr96#summary/libraryofcongress
2
Conferir coletânea de opiniões dos juízes, disponível em: http://www.c-span.org/The-Courts/Cameras-in-TheCourt/
3
Ver documentário produzido pela própria TV Justiça, em comemoração aos seus 10 anos, com manifestações
positivas de Ministros do STF, disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=CamBItfAuGQ
4
Informações disponíveis em: http://www.tvjustica.jus.br/
41
a primeira emissora no mundo a exibir uma programação exclusivamente relacionada ao Poder
Judiciário.
Com o propósito de proporcionar transparência e aproximação da justiça constitucional
com a sociedade, esse canal, de TV a cabo, transmite, ao vivo, sessões de julgamento e
audiências públicas do tribunal, entre outras investidas como telejornal, boletins jornalísticos,
programas didáticos, entrevistas e debates. Ao longo dessa década, também foram criados, com a
mesma finalidade, a Rádio Justiça (2004) e os canais institucionais "STF no YouTube" e " STF
no Twitter".
Entre as inovações construídas e/ou adotadas pelo Brasil para divulgação dos atos do
Poder Judiciário, a TV Justiça representa de longe a aposta mais alta, principalmente por permitir
que se vejam e ouçam, em tempo real, sessões de julgamento do STF, sem a necessidade de se
desbravar a capital do país, ou mesmo de sair de casa.
Mas qual o alcance dessa inovação? Qual seria o apelo da liturgia e dos bastidores de um
processo decisório do Poder Judiciário para além das partes diretamente envolvidas?
Fossem outros os tempos, de insulamento do Judiciário em relação à política5, não
haveria muito sentido em se investir tanto na aproximação entre sociedade e juízes. Nos países
mais inclinados historicamente à tradição jurídica6 da Civil Law, caso do Brasil, o culto à certeza,
segurança e à verdade7 pela via da codificação condenou a atividade judicial, por um longo
período, a uma natureza burocrática e mecânica, referenciada ao passado. Nada mais
compreensível, se considerada a forte influência do processo revolucionário francês sobre essa
compreensão normativa do juiz como “labouche de laloi”.
5
DELMAS-MARTY, Mireille. Les forces imaginantes du droit (III): la refondation des pouvoirs. Paris: Seuil, 2007,
p. 41.
6
Adota-se, no ponto, uma distinção entre sistema jurídico e tradição jurídica, na linha proposta por Merryman: “um
sistema jurídico [...] é um conjunto de instituições legais, processos, normas vigentes [...] em um mundo organizado
em estados soberanos e organizações de estados, há tantos sistemas jurídicos quanto forem os estados e organizações
internacionais [...] uma tradição jurídica é, na verdade, um conjunto de atitudes historicamente condicionadas e
profundamente enraizadas a respeito da natureza do direito e do seu papel na sociedade e na organização política,
sobre a forma adequada da organização e operação do sistema legal e, finalmente, sobre como o direito deve ser
produzido, aplicado, estudado, aperfeiçoado e ensinado. A tradição jurídica coloca o sistema legal na perspectiva
cultural da qual ele, em parte, é expressão”. MERRYMAN, John Henry. A tradição da Civil Law: uma introdução
aos sistemas jurídicos da Europa e da América Latina.Trad.: Cássio Casagrande. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris Editor, 2009, p. 21-23.
7
A Civil Law corresponde à mais antiga e difundida tradição jurídica, marcada pela ideologia da codificação, isto é,
pela pretensão de se concentrar em um único documento (o código), sem concorrência, todas as razões de Direito,
em processo de produção da verdade. Ver: GARAPON, Antoine; PAPAPOULOS, Ioannis. Julgar nos Estados
Unidos e na França: cultura jurídica francesa e Commom Law em uma perspectiva comparada. Trad.:Regina
Vasconcelos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 38.
42
Após a experiência de uma aristocracia de toga8, a França cultivou certa hostilidade à
figura do juiz9, zelou para que a separação de poderes prestasse longo serviço ao isolamento do
Judiciário relativamente à política. Sob o império dessa concepção despolitizada do juiz, era
lógica a defesa de uma independência institucional do Judiciário frente à própria sociedade,
frente à teia dos mais diversos interesses particulares. Não à toa, a deusa da Justiça, vendada e
equidistante em relação aos interesses em conflito, conferiu síntese estética tão perfeita ao Poder
Judiciário – ainda que provisoriamente.
Imersos em outra cultura jurídica, os E.U.A desenharam uma relação bem distinta entre
juízes e a política. O Judiciário não foi alvo da revolução americana, mas aliado dos indivíduos
na luta contra o abuso dos governantes10, firmando-se, desde então, ainda que não linearmente,
como personagem natural e necessário à cena política, ao aprofundamento do processo
democrático.
Já os países que se alimentaram por anos não apenas da prática, mas da ideologia da
codificação11, e da consequente ideia mecanicista de atividade jurisdicional, acostumaram-se ao
arranjo político-institucional em que o legislador delibera o futuro; o administrador lida com
problemas atuais, de modo circunscrito à lei; e o juiz age orientado pelo passado (deliberação
datada do legislador, veiculada por lei)12.
Para a construção do Estado de Bem Estar Social, esse repertório era insuficiente. A
atuação do Estado precisava adquirir o sentido de planejamento, isto é, de um processo político
com vistas à transformação ou à consolidação de determinada estrutura econômico-social, de
determinada estrutura política, o que não seria possível com uma prática jurídica retrospectiva13,
8
“Antes da Revolução Francesa, os cargos do sistema judicial eram considerados como propriedades que poderiam
ser compradas, vendidas ou legadas. O próprio Montesquieu herdou um destes cargos, ocupou-o por uma década e
depois o vendeu. Os juízes eram um grupo aristocrático que apoiava a aristocracia fundiária contra os camponeses,
os trabalhadores urbanos e a classe média [...] ”. MERRYMAN, John Henry , op. cit., p. 40.
9
GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia. Trad.: Maria Luiza de Carvalho. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 35.
10
MERRYMAN, John Henry , op. cit., p. 40.
11
“A quantidade de legislação e o seu grau de autoridade não são critérios úteis para distinguir os sistemas [das
tradições] da common lawe da civil law. Nem tampouco a existência de algo denominado „código‟ pode ser
considerado como critério de distinção [...] códigos existem em grande parte dos sistemas da civil Law, porém
também podem ser encontrados em países da common law corpos sistemáticos de leis sobre amplas áreas do direito
[...] se, entretanto, se considera a codificação não como forma, mas como expressão de uma ideologia e, além disso,
se se tenta compreender essa ideologia e porque ela se manifesta em forma de código, então se pode perceber como
faz sentido discorrer sobre códigos no direito comparado”. MERRYMAN, John Henry. Op. cit., p. 53-54.
12
HABERMAS, Jürgen. Between facts and norms: contributions to a discourse theory of law and democracy. Trad.:
William Rehg. Cambridge: The MIT Press, 1998, p. 245.
13
VIANNA, Luiz Werneck [et al.]. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro:
Revan, 1999, p. 20-21.
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orientada por razões políticas prévia e exaustivamente fixadas.
O Direito é compelido a alterar o seu próprio tempo de referência, do passado para o
futuro, o que impacta na maneira de se dizer o Direito e na composição dos atores que exercem
esse poder, de dizer14 o Direito e a política.
A legislação do Welfare State é aberta, comporta indeterminação. Transcende a fórmula
tradicional propagada pelos teóricos imperativistas15, de “ordem e coação” (que pressupõe uma
seleção prévia entre o certo e o errado), e veicula novas alternativas para a relação entre Estado e
Sociedade, para a política16.
Diante desse novo perfil de legislação, marcado pela presença de cláusulas abertas, por
normas de princípio, o juiz é desafiado a participar, juntamente com o legislador, da composição
de soluções para o presente e futuro, da deliberação de problemas que já não cabem no campo do
estritamente jurídico.
O Brasil não escapa a esse processo. Temas de grande apelo popular passaram a visitar
com razoável frequência a agenda da cúpula do Judiciário brasileiro, tais como pesquisas com
células-tronco embrionárias, aborto, cotas raciais, demarcação de terras indígenas, união
homoafetiva, entre outros.
De acordo com a literatura especializada, trata-se de tendência global de crescimento do
poder judicial17, de uma possível aproximação dos países da Civil Law com o padrão norteamericano de dizer e fazer o Direito. Um padrão que, seja por uma questão de princípio 18, ou por
uma perspectiva mais pragmática de Justiça19, não hesita em franquear ao juiz o papel de
14
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Trad.: Fernando Tomaz. 14 edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2010, p. 212.
15
Por todos, o modelo de “ordem baseada em ameaças” proposto em: AUSTIN, John. El Objeto de la
Jurisprudencia. Trad. de Juan Ramón de Páramo Argüelles. Madrid: Centro de Estudios Políticos y
Constitucionales, 2002.
16
“Constitui um dado da realidade que a legislação social ou de welfareconduz inevitavelmente o estado a superar
os limites das funções tradicionais de „proteção‟ e „repressão‟. O papel do governo não pode mais se limitar a ser o
de um „gendarme‟ ou „nightwatchman‟; ao contrário, o estado social – o „Étatprovidence’, como o chamam,
expressivamente, os franceses – deve fazer sua a técnica de controle social que os cientistas políticos chamam de
promocional. Tal técnica consiste em prescrever programas de desenvolvimentos futuros, promovendo-lhes a
execução gradual, ao invés de simplesmente escolher, como é típico da legislação clássica, entre „certo‟ e „errado‟,
ou seja, „justo‟ e „injusto‟, rightandwrong”. CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Trad.: Carlos Alberto de
Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris editor, 1999. p.41.
17
TATE, C. Neal; VALLINDER, Torborn.The global expansion of judicial power.New York: New York University
Press, 1995.
18
DWORKIN, Ronald. The moral reading of the constitution. In: The New York Review of Books, de 21 de março de
1996, p. 46-50.
19
NONET, Philippe; SELZNICK, Philip. Direito e Sociedade: a transição ao sistema jurídico responsivo. Trad.:
Vera Pereira. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 104
44
protagonista na criação do Direito.
Em países, como o Brasil, marcados por Constituições substantivas 20, a judicialização da
política é uma realidade imposta pela própria pauta constitucional 21. Seja este um caminho
desejável ou não, parece, em alguma medida22, irretratável: o Judiciário apresenta-se na cena
contemporânea como campo de novas possibilidades de representação política23.
Nesse contexto,passam a incidir sobre o Judiciário demandas antes restritas aos âmbitos
dos poderes tradicionalmente considerados políticos – legislativo e executivo. Os discursos pela
independência e distanciamento do Poder Judiciário cedem espaço às cobranças por
accountability24,transparência, publicidade, proximidade com a sociedade.
É natural, sob esse prisma, que se exija um acesso cada vez maior aos processos
decisórios do Poder Judiciário, que se incremente o interesse social pelas atividades e pelos
integrantes dessa instituição.
No Brasil, a própria Constituição da República prevê, em seu art. 93, IX25, a regra da
publicidade dos julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário. Ao contrário do que se passa em
muitos sistemas constitucionais, nos quais as ações de inconstitucionalidade são julgadas em
audiências privadas, as sessões de julgamento do Supremo Tribunal Federal possuem caráter
público e os votos dos magistrados, ao menos oficialmente, só podem ser revelados nesse
ambiente, ainda que venham a ser precedidos de pedido de vista26.
Ao fim do julgamento, o acórdão, redigido pelo relator do processo ou por um condutor,
20
Conferir Machado, Joana. Império da Constituição e atividade judicial: ecos do Caso Lüth sobre o novo
constitucionalismo brasileiro. In.: Boletim CEDES, out/dez/2011. Disponível em:http://www.cis.pucrio.br/cedes/PDF/out_2011/imperio.pdf
21
CITTADINO, Gisele. Judicialização da política, constitucionalismo democrático e separação dos poderes.
In.:VIANNA, Luiz Werneck. (org.). A democracia e os três poderes no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2002.
22
Analisei de modo mais detido essa questão em outro trabalho, no qual diferencio judicialização da política da
tendência de ativismo judicial, especificamente no âmbito do Supremo Tribunal Federal: MACHADO, Joana de
Souza. Ativismo judicial no Supremo Tribunal Federal. Dissertação de Mestrado em Direito, PUC-Rio, Rio de
Janeiro, 2008;
23
ROSANVALLON, Pierre. Democratic legitimacy: impartiality, reflexivity, proximity. Trad.: Arthur
Goldhammer. Princeton: Princeton University Press: 2011, p. 07;
24
FILGUEIRAS, Fernando. Accountability e Justiça. In.: AVRITZER, Leonardo [et al.]. Dimensões políticas da
justiça. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, p. 261-268.
25
Art. 93, IX, CF/88: “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas
as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus
advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo
não prejudique o interesse público à informação (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004).
26
MENDES, Gilmar Ferreira. Controle constitucional e processo de deliberação. In.:Revista Consultor Jurídico, 12
de maio de 2011. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2011-mai-12/controle-constitucionalidade-processodeliberacao
45
é publicado, em versão impressa e digital, no Diário da Justiça, jornal de publicação diária e de
circulação nacional da imprensa oficial brasileira. Além disso, disponibiliza-se o inteiro teor do
julgamento, isto é, a íntegra de todos os votos proferidos e a transcrição de eventuais debates
orais ocorridos na sessão, no site oficial do Supremo Tribunal Federal27. Para além disso, os
debates são transmitidos ao vivo pela “TV Justiça” e pela “Rádio Justiça”.
Nos E.U.A, embora a Suprema Corte já libere a transcrição diária dos julgamentos e as
gravações de áudio semanalmente, ainda há forte resistência por parte dos juízes em aceitar a
presença de câmeras de vídeo na sala do tribunal, postura que é alvo de incompreensão por boa
parte da sociedade, imprensa e comunidade acadêmica norte-americana. Diante de tantas
possibilidades de acesso às decisões da Suprema Corte, qual seria a razão de se fechar
exclusivamente a porta para as câmeras de vídeo, quando todos os outros meios de publicidade
tornam a Suprema Corte uma espécie de casa de vidro? 28
Como colocado no início desse ensaio, ainda impera entre os juízes da Suprema Corte
norte-americana o receio de que as câmeras de vídeo modifiquem a dinâmica da instituição. O
receio procede?
Uma resposta consistente a esse questionamento certamente exigiria uma pesquisa
empírica, em que se observassem os comportamentos dos juízes com e sem a presença das
câmeras.
Com uma década completa de “TV Justiça” no Brasil, ainda que não se tenha notícia de
uma pesquisa realizada nos termos acima, algumas impressões já começam a se colocar em
debate.
Um estudo quantitativo dos impactos da “TV Justiça” sobre os julgamentos do Supremo
Tribunal
Federal
apurou
dados
interessantes
no
âmbito
das
Ações
Diretas
de
Inconstitucionalidade: os votos tornaram-se mais longos na era “pós-TV Justiça”; a produção
coletiva do Tribunal sofreu redução, ao passo que a produção individual dos Ministros sofreu
aumento significativo. Esse estudo acertadamente teve o cuidado de não afirmar uma causalidade
inequívoca entre o funcionamento da “TV Justiça” e os dados obtidos, tendo em vista em que
27
www.stf.jus.br
WEST, Sonja R. The Monster in the Courtroom. In.: The Brigham Young University Law Review, 2013.
Disponível em: http://lawreview.byu.edu/articles/1361462114_09.west.fin.pdf
28
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não levou em conta outros possíveis fatores de impacto nas decisões analisadas29.
De todo modo, a partir dos dados apurados, o referido estudo conclui que os votos do
STF estão mais referenciados ao grande público, e que essa circunstância poderia contribuir para
uma maior legitimação do tribunal.
Pois é nessa derradeira conclusão, que o estudo parece assumir a delicada premissa de
que a legitimidade do Supremo Tribunal Federal passa por uma sintonia entre a opinião pública e
a opinião do magistrado, aparentemente desconsiderando a importante função contramajoritária
que o Poder Judiciário ainda está vocacionado a cumprir.
Reside nesse exato ponto o grande perigo de se exercer o poder judicial diante das
câmeras, isto é, o perigo da tentação populista, ou seja, de se tentar encarnar o sentimento mais
profundo e real do povo, compreendido como uma verdade que se basta, e dispensa os desvios
burocráticos da mediação processual30.
O público espectador corre, por sua vez, o risco de cair na armadilha da ilusão de um
acesso livre à verdade31 produzida pelos juízes, que no Brasil ainda têm visível dificuldade em
assumir a natureza política que em boa medida contorna a sua função.
A transmissão ao vivo dos julgamentos vende a sensação aos espectadores de
constituírem testemunhas oculares da produção da justiça, ofuscando-lhes a mediação realizada,
a diferença entre o olhar despido e o olhar aparelhado32.
Impõe-se uma lógica de espetáculo aos juízes e demais atores, que, sabidamente
observados, podem desencadear ações performáticas, administrando suas imagens e interesses
diversos, sem necessariamente fazer prevalecer razão pública sobre razões privadas. Juízes são
promovidos a celebridades, quase onipresentes pela via tecnológica. A aproximação prometida
por meio da presença de câmeras nos tribunais pode ser em última análise falaciosa, na medida
em que o objeto tende a se alterar diante do observador.
Neste histórico junho de 2013, em que o Brasil é tomado por um processo ainda não
decifrado de enxameamento social, reivindicatório de diversas alterações políticas e sociais, é ao
29
FONTE, Felipe de Melo. Votos do STF são cada vez mais para o grande público. In.: Revista Consultor Jurídico,
20 de maio de 2013. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-mai-20/felipe-fonte-votos-stf-sao-dirigidoscada-vez-grande-publico
30GARAPON, Antoine. Op. Cit., p. 66.
31
“Essas transmissões para mim representam transparência, porque não tem nada ali, senão a verdade, senão o
acontecimento real ali” (frase dita por um dos cidadãos entrevistados no já citado documentário produzido pela TV
Justiça, disponível em:http://www.youtube.com/watch?v=CamBItfAuGQ
32
GARAPON, Antoine. Op. Cit., p. 66.
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menos intrigante o resultado de uma pesquisa sobre a sucessão presidencial do Brasil, realizada
nas entranhas das manifestações33. Sem nunca ter se apresentado como candidato ao cargo,
figurou como favorito na opinião dos manifestantes o atual presidente do STF, o Ministro
Joaquim Barbosa, transformado em bastião da moralidade do país após “heroica”34 atuação na
relatoria da Ação Penal 470, o famoso julgamento do “mensalão”, acompanhado ao vivo por
muitos pela via da “TV Justiça”.
É preciso refletir mais e com urgência sobre o que se leva para casa ao se produzir a
justiça diante das câmeras. Ação...
33
Pesquisa realizada no dia 20 de junho de 2013, entre manifestantes de São Paulo, pelo Datafolha, conforme
noticiado
no
jornal
Folha
de
São
Paulo.
Informação
disponível
em:
http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/06/1299095-joaquim-barbosa-lidera-corrida-presidencial-entre-osmanifestantes.shtml
34
O Ministro Joaquim Barbosa, ao longo do julgamento do mensalão, foi apelidado nas redes sociais de “Batman
brasileiro”. Conferir a respeito: “a disparada de Joaquim Barbosa, o Batman brasileiro”, disponível em:
http://exame.abril.com.br/brasil/politica/noticias/a-disparada-de-joaquim-barbosa-o-batman-brasileiro
48