Chesney

Transcrição

Chesney
Marion
Chesney
A Perfeição de
Fiona
capítulo 1
Um jovem solteiro, de bom nascimento
E boa fortuna, tem um estranho papel a desempenhar;
Para a alta sociedade é apenas entretenimento,
«O real jogo dos parvos», poderia eu afirmar,
Onde existe um propósito particular em cada elemento,
Um fim a que responder, ou um plano a executar
As jovens solteiras ansiando por estar casadas,
E as casadas salvando as virgens de alhadas.
Lord Byron
S
er poupado era sinónimo de estar fora de moda. Por
essa razão, as duas acompanhantes profissionais, Effy e
Amy Tribble, rapidamente sentiram a pressão da penúria.
Ambas senhoras solteiras já de certa idade, a viver tempos difíceis, haviam decidido encarreirar um negócio após
terem recebido más notícias: uma pessoa da família que
falecera e não lhes deixara nada em testamento. Contudo,
as duas irmãs, sendo pessoas de boas relações e tendo um
bom endereço em Londres, decidiram colocar um anúncio no jornal, autoproclamando-se acompanhantes, não
de qualquer vulgar donzela, mas das donzelas difíceis, das
mimadas, das aparentemente impossíveis de casar.
Já tinham obtido um grande sucesso, mas, estranhamente, não houve um afluir de pedidos dos seus serviços.
A verdade é que, na mente dos membros da alta sociedade,
estava instalada a crença de que contratar os serviços das
irmãs Tribble era anunciar ao mundo ter em casa uma filha
«difícil», um eufemismo, por certo.
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O primeiro «trabalho» tinha rendido uma boa maquia,
proporcionando às irmãs Tribble o reviver de um luxo há
muito esquecido. Contudo, os preços inflacionários da
Regência depressa começaram a fazer mossa no capital de
ambas.
Assim, aconteceu que numa manhã fria de inverno,
quando Londres se encontrava sob um manto de nevoeiro
asfixiante, Effy acordou com os gritos de alegria da sua irmã,
Amy. Uma proposta tinha chegado no correio da manhã.
– Não faças tanto barulho, Amy – queixou-se Effy,
debatendo-se com as almofadas debruadas a renda quando
a irmã entrou de rompante no quarto.
Com a idade, Effy Tribble adquirira uma beleza e
delicadeza que estiveram ausentes na sua juventude. Os
caracóis da linda cabeleira cor de prata emolduravam um
rosto doce e apenas ligeiramente envelhecido. As mãos
mantinham-se ainda pequenas e alvas e os pés minúsculos
continuavam a arquear o suficiente para agradar ao mais
exigente dos membros da alta sociedade.
O mesmo não se podia dizer de Amy. De jovem sem
atrativos passara a mulher de meia-idade ainda sem atrativos, uma figura lisa e muito alta, as mãos e os pés enormes
e uma cara de cavalo manso.
Amy sentou-se pesadamente na ponta da cama e abriu
ruidosamente a carta de pergaminho.
– Ouve, mana – chamou ela a atenção –, vem de um
casal de seu nome Mr. e Mrs. Burgess, de Tunbridge Wells.
Eles têm uma sobrinha, Fiona, e dizem que, apesar de várias
propostas de casamento vantajosas, ela continua solteira.
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Os cavalheiros pedem licença para lhe fazerem a corte, são
deixados sozinhos com a tal Fiona, e os Burgess dizem que,
quando se dão conta, o pretendente desapareceu de casa
para nunca mais ser visto.
Effy suspirou.
– Oh, se ao menos pudéssemos recusar. Essa Fiona
parece-me ser um caso difícil.
Effy não concebia uma mulher capaz de recusar uma
proposta de casamento que fosse.
– Que disparate! – protestou Amy. – Tenho a certeza
de que tudo o que ela precisa é de uma mão firme. A nossa
tarefa seria muito mais difícil se a jovem fosse uma espécie
de antídoto, incapaz de atrair qualquer pretendente. Deixa-me ver: os Burgess são muito duros na descrição dela.
Dizem que é atrevida e descarada. Valha-me Deus! Mais
valia chamarem-lhe devassa! Mas nós havemos de conseguir dar a volta a isto.
– Não te ponhas a soltar obscenidades, Amy – criticou
Effy em tom afetado.
Amy corou e murmurou:
– Desculpa – e logo se pôs a estudar a carta novamente.
– Eles parecem mesmo desesperados. Vêm visitar-nos no
dia 14 de janeiro, daqui a quinze dias, portanto, e se considerarem tanto nós como o alojamento adequado, irão
«depositar» a Fiona connosco.
– Logo? – lamentou Effy.
– E já não era sem tempo! – retorquiu Amy com vigor.
– Ora pensa! Há bem pouco tempo tínhamos pouquíssimo
dinheiro e nenhum criado. Agora temos uma casa cheia
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de criados que têm de ser pagos no primeiro dia de cada
trimestre e...
– Nenhum dinheiro – concluiu Effy em tom abatido.
– Como conseguimos gastar tanto?
– Porque pertencemos à alta sociedade – respondeu
Amy –, e só o facto de estarmos inseridas nela custa
imenso dinheiro. Vê lá tu, mesmo quando o nosso último
cliente nos pagou, tínhamos pouco em comparação com
outros. Olha aqueles cavalheiros que são capazes de perder trinta mil libras numa noite no White’s sem um piscar
de olhos?
– Esses são cavalheiros – disse Effy em tom ditatorial.
– Só as senhoras sabem como equilibrar as contas e é por
isso que os cavalheiros casam connosco.
– Ai, sim? – respondeu Amy com ironia. – Pensei que
era porque preferiam cavalgadas legítimas em casa em vez
de passarem a vida na libertinagem pelos lupanares. Já
pensaste em quantos dos nossos dândis da alta sociedade
devem ter esquentamentos?
– AMY! – exclamou Effy, chocada, tapando os ouvidos
com as mãos. «Esquentamento» era o termo em calão para
contrair doenças venéreas.
Amy não fez caso da reação da irmã.
– Mr. Haddon vem visitar-nos hoje. Vai ficar feliz por
saber das novidades.
Effy tirou as mãos dos ouvidos.
– Mr. Haddon! Porque não me avisaste?
Mr. Haddon era um nababo, e um amigo das irmãs.
Effy tinha a permanente certeza de que Mr. Haddon estava
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prestes a pedi-la em casamento – uma suposição que nunca
deixava de enfurecer Amy.
– Tenho de falar com a Mamselle Yvette imediatamente – disse Effy, saindo da cama. – Ela tem de terminar
sem falta o vestido de merino escarlate que está a fazer
para mim.
Mamselle Yvette era outra das extravagâncias das irmãs:
uma costureira francesa residente.
– Mr. Haddon é um velho amigo – retorquiu Amy de
mau humor. – Não há necessidade de tantos enfeites e alarido.
– Há sempre necessidade – contrariou-a Effy, vestindo
um chambre rendado. Depois removeu delicadamente o
barrete de dormir, revelando uma cabeça cheia de papelotes. – Os meus esforços nunca foram em vão. Pensar que
poderia estar casada se não fosse... Enfim, não adianta
chorar sobre o leite derramado.
Amy bateu os grandes pés de embaraço. Effy nunca deixava passar uma oportunidade de alegar que o seu estado
de solteira se devia à sua determinação de não abandonar
Amy. Mas a verdade é que fora Amy que fora azucrinada
por Effy e praticamente obrigada a não aceitar duas propostas de casamento respeitáveis, um facto de que Amy,
que não se tinha em grande conta, muitas vezes se esquecia.
Aconchegou mais o xaile nos ombros, uma vez que o
vestido de musselina fina não era proteção adequada contra as correntes de ar invernosas que assobiavam por baixo
de todas as portas da casa de Holles Street. Yvette, a costureira francesa, tinha tentado convencer Amy a adotar
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o novo estilo militar de vestuário feminino, considerando
que uma forma mais masculinizada de vestir poderia valorizar-lhe a figura lisa. Mas depois de concordar relutantemente que ela lhe fizesse dois vestidos, Amy convenceu-se
de que, se se vestisse de uma forma jovem, então iria parecer
jovem, por isso usava um vestido de musselina cor-de-rosa
com um decote amplo e pequenas mangas de balão.
Suspirou e saiu para inspecionar os livros de contabilidade e ver se descobria uma maneira de cortar quaisquer
extravagâncias do orçamento da casa.
No entanto, as despesas das irmãs Tribble pareciam
absolutamente parcimoniosas quando comparadas com as
de outros membros da alta sociedade.
A capacidade do Príncipe Regente para gastar dinheiro
era partilhada por toda a sociedade. Uma senhora acometida pela febre da última moda em design de interiores e que
desejasse ver toda a casa remodelada ao estilo egípcio não
pensava duas vezes em empilhar todos os móveis velhos –
fossem eles de estilo Sheraton, Chippendale ou Wyatt – no
jardim relvado e fazer uma fogueira. Uma aparição intrépida a cavalo em Hyde Park era muito mais importante
para um cavalheiro do que o seu saldo bancário, e aristocratas como o corcunda Lord Sefton pagavam alegremente
mil guinéus no Tattersall’s por um puro-sangue.
Amy, que gostava de andar a cavalo, alugara um cavalo
a John Tilbury, o negociante de cavalos de Mount Street,
por doze guinéus ao mês, custo esse que não cobria o sustento do animal.
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O vestuário era outra extravagância. Um simples vestido de noite em musselina podia acabar por custar uma
fortuna, pois muitas vezes os colchetes do corpete eram
feitos de ouro e pedras preciosas e os bordados, a fio de
ouro e aljôfares. As rendas mais delicadas eram tão caras
que cada criada pessoal tinha uma caixa de rendas para
manter debaixo de olho, juntamente com a caixa de joias.
Amy depressa sentiu a cabeça doer ao examinar os livros
de contas. Mrs. Lamont, a governanta, pôs-se a barafustar,
dizendo que Amy não confiava nela e, tirando o avental pela
cabeça, atirou com ele e desatou num pranto, sendo necessário acalmá-la com uma boa dose de gin com água quente.
Sentindo-se exausta, Amy decidiu ir dar um passeio a
cavalo assim que a visita de Mr. Haddon terminou. Mudou
para um belo vestido de montar verde-garrafa de corte
masculino, o traje que melhor lhe assentava de todo o seu
guarda-roupa. Mas Amy nem sequer tinha noção disso.
Na sua cabeça, já tinha desistido de qualquer esperança de
atrair Mr. Haddon. O melhor era deixar Effy saracotear-se
na presença dele, namoriscar e provocá-lo. Amy decidiu
ser superior a isso tudo.
Sentou-se ao toucador e deixou Baxter, a criada pessoal, pentear-lhe o cabelo. Baxter era uma mulher alta e
descarnada, já de uma certa idade, que fora criada pessoal
da tal tia que não deixara nada em testamento às irmãs
Tribble. Era uma mulher conscienciosa e achava que Amy
era uma mancha perpétua no seu trabalho.
Pegou nas pesadas madeixas de cabelo grisalho de
Amy.
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– Alguma vez pensou em pintar o cabelo, minha
senhora?
– Não, nunca – resmungou Amy, que muitas vezes
pensara em pintar o cabelo mortiço, mas que nunca tivera
a coragem de o fazer.
– Ou um dos novos cortes? Não seria eu a fazê-lo,
é claro – assegurou Baxter, acendendo a lamparina para
aquecer o ferro de frisar. – Mas podia mandar chamar
Monsieur André, que...
– Basta! – disse Amy, irritada. Ela era uma mulher alta,
mas Baxter fazia-a sempre sentir-se diminuída, em tamanho
e em espírito. – Monsieur André é muito careiro, como a
Baxter bem sabe. Faz melhor em despachar-se com isso.
Baxter apertou os lábios em desaprovação e, depois
de pentear o cabelo de Amy com uma solução de água e
açúcar para o endurecer, começou a enrolá-lo com o ferro.
Yvette, a costureira, entrou silenciosamente e ficou a
observar a operação.
– Para o que está a olhar tão fixamente, Francesinha?
– resmungou Baxter.
– Acho que Miss Amy não devia fazer caracóis – disse
Yvette.
O peito de Baxter entufou-se de indignação. Ela sentia
inveja de Yvette, que era jovem e atraente, com a sua pele
pálida e olhos negros.
– Não se atreva a dizer-me como fazer o meu trabalho
– protestou ela.
Yvette suspirou e fez mais uma tentativa, apelando
diretamente a Amy.
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– Caracóis não são o mais indicado para si, minha
senhora. Talvez um dos novos estilos romanos, com o
cabelo puxado para trás e alguns cachos a cair do cimo da
cabeça, mas não caracóis.
– Deixem-me em paz, as duas! – exclamou Amy, levantando-se tão de repente que o ferro de frisar saiu disparado.
Marchou até à sala de estar, as faces muito coradas de
irritação, e viu que Mr. Haddon já lá se encontrava, sendo
entretido por Effy, que usava o seu novo vestido de merino
escarlate. Parece uma meretriz, pensou Amy, maldosa.
Mr. Haddon levantou-se com toda a cortesia à entrada
de Amy. Era um homem alto, magro, de costas ligeiramente
curvadas, o cabelo grisalho amarrado na nuca com uma
fita. Tinha partido para a Índia um jovem relativamente
pobre e regressara um nababo rico. Ele curvou-se numa
vénia sobre a mão de Amy, esperou que ela se sentasse e
voltou para a sua cadeira ao lado do tabuleiro de chá.
– Como vê – disse Effy –, estamos todas num grande
nervosismo. Receio que a nossa nova tarefa tenha de ser
essa tal Fiona, embora eu tivesse pensado que depois do
nosso último sucesso, iríamos ter hipótese de escolha.
– Leva o seu tempo a construir uma reputação – disse
Mr. Haddon. – Essa jovem tem um bom dote?
– É uma herdeira – esclareceu Amy rispidamente.
Effy ergueu as sobrancelhas depiladas.
– Não me disseste isso, Amy.
Amy encolheu os ombros, rude, e pôs-se a olhar para o
fogo como se fosse o mais interessante que já vira.
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– Então não irão ter dificuldades – continuou Mr.
Haddon. – Infelizmente, vivemos num mundo materialista.
Toda a gente fala de amor, mas ninguém se casa por ele.
– A nossa última protegida fê-lo – contrapôs Effy.
– Ah, bem, há sempre a exceção a confirmar a regra.
Effy bateu as pestanas enegrecidas a Mr. Haddon sobre
o rebordo do leque.
– O senhor casar-se-ia por dinheiro, Mr. Haddon?
– Eu sou um solteirão inveterado, mas se não fosse,
não me casaria por dinheiro.
Seguiu-se um momento de silêncio. Amy olhou de relance
para o lado e teve um vislumbre do seu próprio reflexo num
espelho mais distante. Uma mulher de meia-idade irritada,
com uma cabeça cheia de caracóis ridículos e juvenis, fitava-a de volta.
«Acabei de passar o meio século», pensou Amy com
amargura. «E pareço-o. A Effy e eu sonhamos com o casamento há tanto tempo que nem nos apercebemos do passar dos anos. Muitos dos nossos contemporâneos estão
mortos. Devíamos estudar os mais recentes padrões em
mortalhas em vez de as últimas modas em vestidos.» Os
olhos estavam brilhantes de lágrimas.
– Vejo que está vestida para ir andar a cavalo, Miss
Amy – disse Mr. Haddon em tom suave.
– Sim – respondeu Amy com voz rouca. Aclarou a garganta. – Sim – voltou a dizer. – O meu cavalo está a ser
trazido do Tilbury’s.
– Eu vim a cavalo – disse Haddon –, por isso podíamos
sair juntos.
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A repentina onda de euforia de Amy foi de curta duração. Effy levantou-se e tocou a campainha.
– Então eu também vou! – exclamou ela alegremente.
Quando o criado apareceu, ela mandou-o a correr ao
Tilbury’s buscar-lhe um cavalo.
– Mas tu não andas a cavalo! – protestou Amy, furiosa.
– Aliás, detestas. Tu própria o disseste.
– Ora essa, mana, que disparate! Eu adoro passear a
cavalo.
Enquanto Effy saiu para mudar para o traje de montar,
Mr. Haddon tentou conversar com Amy, mas ela sentia-se
tão infeliz que só foi capaz de lhe responder com monossílabos resmungados.
Effy apareceu finalmente, num gracioso vestido de
montar em veludo azul debruado a fio de prata.
Saíram, Effy conversando alegremente, pendurada no
braço de Mr. Haddon, enquanto Amy os seguia, desanimada, a arrastar os pés.
– Eu sou uma verdadeira Diana, Mr. Haddon – trinou
Effy. Parou de repente à porta, abrindo a boca de espanto
e o rosto empalidecendo. – Que cavalos tão altos – murmurou.
A disposição de Amy melhorou de imediato. Effy merecia ser castigada. Era um bálsamo para a alma ver o seu
terror enquanto cavalgavam ao longo de Oxford Street.
Mas quando chegaram ao parque e Amy quis galopar,
Effy reclamou, dizendo que não podia ser deixada sozinha,
e assim os cavalos mantiveram um andamento a furta-passo.
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– Deve achar-me um caso perdido, Mr. Haddon – disse
Effy suavemente. – A Amy não tem medo. É uma espécie
de amazona e não sofre de quaisquer das fragilidades do
nosso sexo frágil.
Amy deixou o cavalo atrasar-se, ficando atrás de Effy.
– Olhe ali, Mr. Haddon! – exclamou Amy. – Um dos
cervos escapou do cercado.
Assim que Mr. Haddon desviou o olhar, Amy inclinou-se para frente e estalou o chicote na garupa do cavalo
de Effy. O cavalo disparou como o vento, com Effy a agarrar-se desesperada ao animal e a gritar como louca. Mr.
Haddon partiu atrás dela e Amy também, determinada
a alcançar a irmã antes que Mr. Haddon pudesse fazer
algum tipo de salvamento romântico. Mas o cavalo de Mr.
Haddon era melhor. Ele alcançou Effy primeiro e agarrou nas rédeas do cavalo dela, forçando-o a parar. Effy
soluçava de pavor; Mr. Haddon desmontou e ajudou-a a
descer da sela.
– Pronto, Miss Effy – disse Haddon tentando acalmá-la. – Agora está em segurança. Não sei o que fez com que
o ridículo animal desatasse em tal galope desenfreado.
Effy escondeu o rosto choroso no casaco dele.
Amy, montada no seu cavalo, observava a cena. Em
vez de humilhar Effy como tinha planeado, só conseguira
transformar a sua gémea numa donzela em perigo. Sentiu-se uma velha desajeitada e cansada. Naquele momento
decidiu que de futuro se portaria devidamente. Nunca
tivera qualquer hipótese de atrair Mr. Benjamin Haddon e
era uma estupidez pensar de outra forma.
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Desmontou e ajudou Mr. Haddon a acalmar Effy. Precisaram de um bom bocado para a persuadir a voltar a
subir para o cavalo e, montados um de cada lado de Effy,
regressaram a Holles Street.
Effy retirou-se de imediato para o quarto. Mr. Haddon
ficou a conversar com Amy, aliviado por ver que a velha
amiga voltava a mostrar um estado de espírito mais ligeiro.
Ele não sabia que Amy tinha desistido de qualquer esperança de o conquistar, pela simples razão de nunca sequer
ter suspeitado que ela acalentara tais esperanças. Estava
apenas feliz por a velha amiga voltar a parecer normal e foi
com grande relutância que finalmente se despediu.
Amy evitou Effy o resto do dia, na esperança de adiar o
momento temido. Mas ele acabou por chegar quando Effy
apareceu para o jantar.
– Viste como ele me abraçou, Amy? – clamou Effy
assim que ambas se sentaram à mesa.
– Sopa de tartaruga – disse Amy, pousando a colher.
– Eu realmente preciso de ter uma conversa séria com Mrs.
Lamont. Não temos dinheiro para sopas de tartaruga.
– E o brilho eloquente nos seus olhos – continuou Effy,
sonhadora. – Foi a coisa mais romântica que se possa imaginar. Achei que a minha vida tinha chegado ao fim. Podia
ver as árvores a passar a grande velocidade, sentia-me
prestes a escorregar da sela e a ser esmagada pelos cascos
do cavalo. E de repente ali estava ele, a agarrar-me nos
seus braços fortes...
– Come a sopa, pelo amor de Deus! – gritou Amy de
repente. – Custou uma fortuna!
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–N
unca te esqueças de que as irmãs Tribble são
senhoras! – recomendou Mrs. Burgess duas semanas mais tarde, quando a carruagem em que seguiam se
aproximou dos arredores de Londres.
– Claro, tia – respondeu Fiona Macleod.
– E se elas encontrarem um cavalheiro adequado para
ti, vais ficar noiva dele e não causarás nem a mim nem a
Mr. Burgess mais problemas.
– Sim, tia.
Mrs. Burgess olhou desconfiada para a sobrinha, mas
o rosto de Fiona estava escondido pela aba do chapéu.
Mrs. Burgess não conhecia pessoalmente as irmãs Tribble. Mas a filha problemática de Lady Baronsheath saíra-se bem nas mãos delas e Lady Baronsheath tinha dito a
Mrs. Toddy, que vivia em Tunbridge Wells, e Mrs. Toddy
tinha contado a Lady Fremley, que, por sua vez, contara a
Mrs. Burgess, o que era praticamente o mesmo que Lady
Baronsheath tivesse confiado a informação diretamente a
Mrs Burgess. As irmãs Tribble deviam ser senhoras de alta
posição e de muito boas maneiras ou Lady Baronsheath
nunca teria contratado os seus serviços.
Talvez as Tribble conseguissem descobrir o que se passava com Fiona, que era capaz de atrair pretendentes perfeitamente aceitáveis, para logo os fazer fugir a sete pés
depois de uma conversa com ela. Talvez fosse o sangue
escocês nela, pensou Mrs. Burgess em desaprovação. Ela
já não se considerava escocesa, tendo casado muito nova
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e mudado para Inglaterra. Fiona era filha da sua falecida
irmã e tinha sido educada em Aberdeen, um lugar selvagem e remoto. Lord Byron era de lá e era uma pessoa sem
qualquer tipo de moral. Devia ter algo a ver com o clima.
Mrs. Burgess era de Ayrshire; a sua irmã, Alice, tinha
casado com George Macleod, um comerciante, e tinha-se
mudado para Aberdeen, no norte, enquanto Mrs. Burgess
se casara com um diletante e tinha ido para Tunbridge
Wells, no sul. Mas foram os Macleod que fizeram fortuna
com as suas fábricas de juta em Aberdeen. Ambos morreram de influenza, deixando Fiona, então com catorze anos
e uma herdeira muito rica, ao cuidado dos Burgess. Agora
estava com dezanove e já deveria estar casada e fora das
mãos dos Burgess há dois anos, altura em que recebera a
sua primeira proposta de casamento. Mr. e Mrs. Burgess
eram rigorosos, sisudos e maçadores, mas não eram mercenários. Tinham autorização para pedir o dinheiro que
quisessem aos advogados de Fiona até ao seu casamento,
mas sentiam uma certa relutância em manter aquela jovem
no seu lar sossegado e sem vida. Nunca sabiam o que ela
estava a pensar, mas sentiam que havia maldade e malícia
nela. Todos os seus acessos de fúria e discussões não pareciam perturbá-la nem um pouco. Ela era insolente.
Os pensamentos sombrios de Mrs. Burgess foram interrompidos pelo som de cascos que se aproximavam rapidamente. Apesar do barulho produzido pela carruagem em
que seguiam no pavimento empedrado, ela ouvia a rápida
aproximação ribombante, pontuada por gritos selvagens e
chamamentos em voz alta.
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Mr. Burgess, que estava a dormir, acordou com um
grito de alarme quando dois cabriolés, cada um deles com
duas parelhas de cavalos, ultrapassaram a toda a velocidade a carruagem, um de cada lado, a meros centímetros
de distância. Os cavalos dos Burgess empinaram-se e voltaram ao chão, fazendo a carruagem balançar perigosamente
e, em seguida, parar. Mrs. Burgess deixou escapar um gritinho débil.
Mr. Burgess abriu a portinhola do teto com a bengala
e, furioso, perguntou ao cocheiro:
– Está tudo bem, John? Estes arruaceiros mereciam
uma boa tareia.
– Tudo em ordem, sir. Eles pararam mais além na
estrada. Um deles virou para trás e vem na nossa direção.
Provavelmente para ver se estão todos bem.
– Então segue caminho, Jack – disse Mrs. Burgess em
tom estridente. – Não falamos com ralé desse calibre.
– Não posso, minha senhora. Ele atravessou a carruagem dele à frente da nossa.
– Fiona! – gritou Mrs. Burgess. – O que pensas que
estás a fazer?
Fiona tinha acabado de descer o vidro e estava debruçada da janela. Voltou a sentar-se graciosamente no assento
quando um homem alto apareceu.
Mrs. Burgess estremeceu. Um belo exemplo de libertino! Tinha um rosto fino e atraente, dissoluto certamente,
e uns olhos azuis cintilantes. Tirou a cartola de abas reviradas, revelando uma massa de cabelos negros espessa e
brilhante, artisticamente encaracolada, e fez uma vénia.
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