Chesney
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Marion Chesney A Perfeição de Fiona capítulo 1 Um jovem solteiro, de bom nascimento E boa fortuna, tem um estranho papel a desempenhar; Para a alta sociedade é apenas entretenimento, «O real jogo dos parvos», poderia eu afirmar, Onde existe um propósito particular em cada elemento, Um fim a que responder, ou um plano a executar As jovens solteiras ansiando por estar casadas, E as casadas salvando as virgens de alhadas. Lord Byron S er poupado era sinónimo de estar fora de moda. Por essa razão, as duas acompanhantes profissionais, Effy e Amy Tribble, rapidamente sentiram a pressão da penúria. Ambas senhoras solteiras já de certa idade, a viver tempos difíceis, haviam decidido encarreirar um negócio após terem recebido más notícias: uma pessoa da família que falecera e não lhes deixara nada em testamento. Contudo, as duas irmãs, sendo pessoas de boas relações e tendo um bom endereço em Londres, decidiram colocar um anúncio no jornal, autoproclamando-se acompanhantes, não de qualquer vulgar donzela, mas das donzelas difíceis, das mimadas, das aparentemente impossíveis de casar. Já tinham obtido um grande sucesso, mas, estranhamente, não houve um afluir de pedidos dos seus serviços. A verdade é que, na mente dos membros da alta sociedade, estava instalada a crença de que contratar os serviços das irmãs Tribble era anunciar ao mundo ter em casa uma filha «difícil», um eufemismo, por certo. ··9·· O primeiro «trabalho» tinha rendido uma boa maquia, proporcionando às irmãs Tribble o reviver de um luxo há muito esquecido. Contudo, os preços inflacionários da Regência depressa começaram a fazer mossa no capital de ambas. Assim, aconteceu que numa manhã fria de inverno, quando Londres se encontrava sob um manto de nevoeiro asfixiante, Effy acordou com os gritos de alegria da sua irmã, Amy. Uma proposta tinha chegado no correio da manhã. – Não faças tanto barulho, Amy – queixou-se Effy, debatendo-se com as almofadas debruadas a renda quando a irmã entrou de rompante no quarto. Com a idade, Effy Tribble adquirira uma beleza e delicadeza que estiveram ausentes na sua juventude. Os caracóis da linda cabeleira cor de prata emolduravam um rosto doce e apenas ligeiramente envelhecido. As mãos mantinham-se ainda pequenas e alvas e os pés minúsculos continuavam a arquear o suficiente para agradar ao mais exigente dos membros da alta sociedade. O mesmo não se podia dizer de Amy. De jovem sem atrativos passara a mulher de meia-idade ainda sem atrativos, uma figura lisa e muito alta, as mãos e os pés enormes e uma cara de cavalo manso. Amy sentou-se pesadamente na ponta da cama e abriu ruidosamente a carta de pergaminho. – Ouve, mana – chamou ela a atenção –, vem de um casal de seu nome Mr. e Mrs. Burgess, de Tunbridge Wells. Eles têm uma sobrinha, Fiona, e dizem que, apesar de várias propostas de casamento vantajosas, ela continua solteira. · · 10 · · Os cavalheiros pedem licença para lhe fazerem a corte, são deixados sozinhos com a tal Fiona, e os Burgess dizem que, quando se dão conta, o pretendente desapareceu de casa para nunca mais ser visto. Effy suspirou. – Oh, se ao menos pudéssemos recusar. Essa Fiona parece-me ser um caso difícil. Effy não concebia uma mulher capaz de recusar uma proposta de casamento que fosse. – Que disparate! – protestou Amy. – Tenho a certeza de que tudo o que ela precisa é de uma mão firme. A nossa tarefa seria muito mais difícil se a jovem fosse uma espécie de antídoto, incapaz de atrair qualquer pretendente. Deixa-me ver: os Burgess são muito duros na descrição dela. Dizem que é atrevida e descarada. Valha-me Deus! Mais valia chamarem-lhe devassa! Mas nós havemos de conseguir dar a volta a isto. – Não te ponhas a soltar obscenidades, Amy – criticou Effy em tom afetado. Amy corou e murmurou: – Desculpa – e logo se pôs a estudar a carta novamente. – Eles parecem mesmo desesperados. Vêm visitar-nos no dia 14 de janeiro, daqui a quinze dias, portanto, e se considerarem tanto nós como o alojamento adequado, irão «depositar» a Fiona connosco. – Logo? – lamentou Effy. – E já não era sem tempo! – retorquiu Amy com vigor. – Ora pensa! Há bem pouco tempo tínhamos pouquíssimo dinheiro e nenhum criado. Agora temos uma casa cheia · · 11 · · de criados que têm de ser pagos no primeiro dia de cada trimestre e... – Nenhum dinheiro – concluiu Effy em tom abatido. – Como conseguimos gastar tanto? – Porque pertencemos à alta sociedade – respondeu Amy –, e só o facto de estarmos inseridas nela custa imenso dinheiro. Vê lá tu, mesmo quando o nosso último cliente nos pagou, tínhamos pouco em comparação com outros. Olha aqueles cavalheiros que são capazes de perder trinta mil libras numa noite no White’s sem um piscar de olhos? – Esses são cavalheiros – disse Effy em tom ditatorial. – Só as senhoras sabem como equilibrar as contas e é por isso que os cavalheiros casam connosco. – Ai, sim? – respondeu Amy com ironia. – Pensei que era porque preferiam cavalgadas legítimas em casa em vez de passarem a vida na libertinagem pelos lupanares. Já pensaste em quantos dos nossos dândis da alta sociedade devem ter esquentamentos? – AMY! – exclamou Effy, chocada, tapando os ouvidos com as mãos. «Esquentamento» era o termo em calão para contrair doenças venéreas. Amy não fez caso da reação da irmã. – Mr. Haddon vem visitar-nos hoje. Vai ficar feliz por saber das novidades. Effy tirou as mãos dos ouvidos. – Mr. Haddon! Porque não me avisaste? Mr. Haddon era um nababo, e um amigo das irmãs. Effy tinha a permanente certeza de que Mr. Haddon estava · · 12 · · prestes a pedi-la em casamento – uma suposição que nunca deixava de enfurecer Amy. – Tenho de falar com a Mamselle Yvette imediatamente – disse Effy, saindo da cama. – Ela tem de terminar sem falta o vestido de merino escarlate que está a fazer para mim. Mamselle Yvette era outra das extravagâncias das irmãs: uma costureira francesa residente. – Mr. Haddon é um velho amigo – retorquiu Amy de mau humor. – Não há necessidade de tantos enfeites e alarido. – Há sempre necessidade – contrariou-a Effy, vestindo um chambre rendado. Depois removeu delicadamente o barrete de dormir, revelando uma cabeça cheia de papelotes. – Os meus esforços nunca foram em vão. Pensar que poderia estar casada se não fosse... Enfim, não adianta chorar sobre o leite derramado. Amy bateu os grandes pés de embaraço. Effy nunca deixava passar uma oportunidade de alegar que o seu estado de solteira se devia à sua determinação de não abandonar Amy. Mas a verdade é que fora Amy que fora azucrinada por Effy e praticamente obrigada a não aceitar duas propostas de casamento respeitáveis, um facto de que Amy, que não se tinha em grande conta, muitas vezes se esquecia. Aconchegou mais o xaile nos ombros, uma vez que o vestido de musselina fina não era proteção adequada contra as correntes de ar invernosas que assobiavam por baixo de todas as portas da casa de Holles Street. Yvette, a costureira francesa, tinha tentado convencer Amy a adotar · · 13 · · o novo estilo militar de vestuário feminino, considerando que uma forma mais masculinizada de vestir poderia valorizar-lhe a figura lisa. Mas depois de concordar relutantemente que ela lhe fizesse dois vestidos, Amy convenceu-se de que, se se vestisse de uma forma jovem, então iria parecer jovem, por isso usava um vestido de musselina cor-de-rosa com um decote amplo e pequenas mangas de balão. Suspirou e saiu para inspecionar os livros de contabilidade e ver se descobria uma maneira de cortar quaisquer extravagâncias do orçamento da casa. No entanto, as despesas das irmãs Tribble pareciam absolutamente parcimoniosas quando comparadas com as de outros membros da alta sociedade. A capacidade do Príncipe Regente para gastar dinheiro era partilhada por toda a sociedade. Uma senhora acometida pela febre da última moda em design de interiores e que desejasse ver toda a casa remodelada ao estilo egípcio não pensava duas vezes em empilhar todos os móveis velhos – fossem eles de estilo Sheraton, Chippendale ou Wyatt – no jardim relvado e fazer uma fogueira. Uma aparição intrépida a cavalo em Hyde Park era muito mais importante para um cavalheiro do que o seu saldo bancário, e aristocratas como o corcunda Lord Sefton pagavam alegremente mil guinéus no Tattersall’s por um puro-sangue. Amy, que gostava de andar a cavalo, alugara um cavalo a John Tilbury, o negociante de cavalos de Mount Street, por doze guinéus ao mês, custo esse que não cobria o sustento do animal. · · 14 · · O vestuário era outra extravagância. Um simples vestido de noite em musselina podia acabar por custar uma fortuna, pois muitas vezes os colchetes do corpete eram feitos de ouro e pedras preciosas e os bordados, a fio de ouro e aljôfares. As rendas mais delicadas eram tão caras que cada criada pessoal tinha uma caixa de rendas para manter debaixo de olho, juntamente com a caixa de joias. Amy depressa sentiu a cabeça doer ao examinar os livros de contas. Mrs. Lamont, a governanta, pôs-se a barafustar, dizendo que Amy não confiava nela e, tirando o avental pela cabeça, atirou com ele e desatou num pranto, sendo necessário acalmá-la com uma boa dose de gin com água quente. Sentindo-se exausta, Amy decidiu ir dar um passeio a cavalo assim que a visita de Mr. Haddon terminou. Mudou para um belo vestido de montar verde-garrafa de corte masculino, o traje que melhor lhe assentava de todo o seu guarda-roupa. Mas Amy nem sequer tinha noção disso. Na sua cabeça, já tinha desistido de qualquer esperança de atrair Mr. Haddon. O melhor era deixar Effy saracotear-se na presença dele, namoriscar e provocá-lo. Amy decidiu ser superior a isso tudo. Sentou-se ao toucador e deixou Baxter, a criada pessoal, pentear-lhe o cabelo. Baxter era uma mulher alta e descarnada, já de uma certa idade, que fora criada pessoal da tal tia que não deixara nada em testamento às irmãs Tribble. Era uma mulher conscienciosa e achava que Amy era uma mancha perpétua no seu trabalho. Pegou nas pesadas madeixas de cabelo grisalho de Amy. · · 15 · · – Alguma vez pensou em pintar o cabelo, minha senhora? – Não, nunca – resmungou Amy, que muitas vezes pensara em pintar o cabelo mortiço, mas que nunca tivera a coragem de o fazer. – Ou um dos novos cortes? Não seria eu a fazê-lo, é claro – assegurou Baxter, acendendo a lamparina para aquecer o ferro de frisar. – Mas podia mandar chamar Monsieur André, que... – Basta! – disse Amy, irritada. Ela era uma mulher alta, mas Baxter fazia-a sempre sentir-se diminuída, em tamanho e em espírito. – Monsieur André é muito careiro, como a Baxter bem sabe. Faz melhor em despachar-se com isso. Baxter apertou os lábios em desaprovação e, depois de pentear o cabelo de Amy com uma solução de água e açúcar para o endurecer, começou a enrolá-lo com o ferro. Yvette, a costureira, entrou silenciosamente e ficou a observar a operação. – Para o que está a olhar tão fixamente, Francesinha? – resmungou Baxter. – Acho que Miss Amy não devia fazer caracóis – disse Yvette. O peito de Baxter entufou-se de indignação. Ela sentia inveja de Yvette, que era jovem e atraente, com a sua pele pálida e olhos negros. – Não se atreva a dizer-me como fazer o meu trabalho – protestou ela. Yvette suspirou e fez mais uma tentativa, apelando diretamente a Amy. · · 16 · · – Caracóis não são o mais indicado para si, minha senhora. Talvez um dos novos estilos romanos, com o cabelo puxado para trás e alguns cachos a cair do cimo da cabeça, mas não caracóis. – Deixem-me em paz, as duas! – exclamou Amy, levantando-se tão de repente que o ferro de frisar saiu disparado. Marchou até à sala de estar, as faces muito coradas de irritação, e viu que Mr. Haddon já lá se encontrava, sendo entretido por Effy, que usava o seu novo vestido de merino escarlate. Parece uma meretriz, pensou Amy, maldosa. Mr. Haddon levantou-se com toda a cortesia à entrada de Amy. Era um homem alto, magro, de costas ligeiramente curvadas, o cabelo grisalho amarrado na nuca com uma fita. Tinha partido para a Índia um jovem relativamente pobre e regressara um nababo rico. Ele curvou-se numa vénia sobre a mão de Amy, esperou que ela se sentasse e voltou para a sua cadeira ao lado do tabuleiro de chá. – Como vê – disse Effy –, estamos todas num grande nervosismo. Receio que a nossa nova tarefa tenha de ser essa tal Fiona, embora eu tivesse pensado que depois do nosso último sucesso, iríamos ter hipótese de escolha. – Leva o seu tempo a construir uma reputação – disse Mr. Haddon. – Essa jovem tem um bom dote? – É uma herdeira – esclareceu Amy rispidamente. Effy ergueu as sobrancelhas depiladas. – Não me disseste isso, Amy. Amy encolheu os ombros, rude, e pôs-se a olhar para o fogo como se fosse o mais interessante que já vira. · · 17 · · – Então não irão ter dificuldades – continuou Mr. Haddon. – Infelizmente, vivemos num mundo materialista. Toda a gente fala de amor, mas ninguém se casa por ele. – A nossa última protegida fê-lo – contrapôs Effy. – Ah, bem, há sempre a exceção a confirmar a regra. Effy bateu as pestanas enegrecidas a Mr. Haddon sobre o rebordo do leque. – O senhor casar-se-ia por dinheiro, Mr. Haddon? – Eu sou um solteirão inveterado, mas se não fosse, não me casaria por dinheiro. Seguiu-se um momento de silêncio. Amy olhou de relance para o lado e teve um vislumbre do seu próprio reflexo num espelho mais distante. Uma mulher de meia-idade irritada, com uma cabeça cheia de caracóis ridículos e juvenis, fitava-a de volta. «Acabei de passar o meio século», pensou Amy com amargura. «E pareço-o. A Effy e eu sonhamos com o casamento há tanto tempo que nem nos apercebemos do passar dos anos. Muitos dos nossos contemporâneos estão mortos. Devíamos estudar os mais recentes padrões em mortalhas em vez de as últimas modas em vestidos.» Os olhos estavam brilhantes de lágrimas. – Vejo que está vestida para ir andar a cavalo, Miss Amy – disse Mr. Haddon em tom suave. – Sim – respondeu Amy com voz rouca. Aclarou a garganta. – Sim – voltou a dizer. – O meu cavalo está a ser trazido do Tilbury’s. – Eu vim a cavalo – disse Haddon –, por isso podíamos sair juntos. · · 18 · · A repentina onda de euforia de Amy foi de curta duração. Effy levantou-se e tocou a campainha. – Então eu também vou! – exclamou ela alegremente. Quando o criado apareceu, ela mandou-o a correr ao Tilbury’s buscar-lhe um cavalo. – Mas tu não andas a cavalo! – protestou Amy, furiosa. – Aliás, detestas. Tu própria o disseste. – Ora essa, mana, que disparate! Eu adoro passear a cavalo. Enquanto Effy saiu para mudar para o traje de montar, Mr. Haddon tentou conversar com Amy, mas ela sentia-se tão infeliz que só foi capaz de lhe responder com monossílabos resmungados. Effy apareceu finalmente, num gracioso vestido de montar em veludo azul debruado a fio de prata. Saíram, Effy conversando alegremente, pendurada no braço de Mr. Haddon, enquanto Amy os seguia, desanimada, a arrastar os pés. – Eu sou uma verdadeira Diana, Mr. Haddon – trinou Effy. Parou de repente à porta, abrindo a boca de espanto e o rosto empalidecendo. – Que cavalos tão altos – murmurou. A disposição de Amy melhorou de imediato. Effy merecia ser castigada. Era um bálsamo para a alma ver o seu terror enquanto cavalgavam ao longo de Oxford Street. Mas quando chegaram ao parque e Amy quis galopar, Effy reclamou, dizendo que não podia ser deixada sozinha, e assim os cavalos mantiveram um andamento a furta-passo. · · 19 · · – Deve achar-me um caso perdido, Mr. Haddon – disse Effy suavemente. – A Amy não tem medo. É uma espécie de amazona e não sofre de quaisquer das fragilidades do nosso sexo frágil. Amy deixou o cavalo atrasar-se, ficando atrás de Effy. – Olhe ali, Mr. Haddon! – exclamou Amy. – Um dos cervos escapou do cercado. Assim que Mr. Haddon desviou o olhar, Amy inclinou-se para frente e estalou o chicote na garupa do cavalo de Effy. O cavalo disparou como o vento, com Effy a agarrar-se desesperada ao animal e a gritar como louca. Mr. Haddon partiu atrás dela e Amy também, determinada a alcançar a irmã antes que Mr. Haddon pudesse fazer algum tipo de salvamento romântico. Mas o cavalo de Mr. Haddon era melhor. Ele alcançou Effy primeiro e agarrou nas rédeas do cavalo dela, forçando-o a parar. Effy soluçava de pavor; Mr. Haddon desmontou e ajudou-a a descer da sela. – Pronto, Miss Effy – disse Haddon tentando acalmá-la. – Agora está em segurança. Não sei o que fez com que o ridículo animal desatasse em tal galope desenfreado. Effy escondeu o rosto choroso no casaco dele. Amy, montada no seu cavalo, observava a cena. Em vez de humilhar Effy como tinha planeado, só conseguira transformar a sua gémea numa donzela em perigo. Sentiu-se uma velha desajeitada e cansada. Naquele momento decidiu que de futuro se portaria devidamente. Nunca tivera qualquer hipótese de atrair Mr. Benjamin Haddon e era uma estupidez pensar de outra forma. · · 20 · · Desmontou e ajudou Mr. Haddon a acalmar Effy. Precisaram de um bom bocado para a persuadir a voltar a subir para o cavalo e, montados um de cada lado de Effy, regressaram a Holles Street. Effy retirou-se de imediato para o quarto. Mr. Haddon ficou a conversar com Amy, aliviado por ver que a velha amiga voltava a mostrar um estado de espírito mais ligeiro. Ele não sabia que Amy tinha desistido de qualquer esperança de o conquistar, pela simples razão de nunca sequer ter suspeitado que ela acalentara tais esperanças. Estava apenas feliz por a velha amiga voltar a parecer normal e foi com grande relutância que finalmente se despediu. Amy evitou Effy o resto do dia, na esperança de adiar o momento temido. Mas ele acabou por chegar quando Effy apareceu para o jantar. – Viste como ele me abraçou, Amy? – clamou Effy assim que ambas se sentaram à mesa. – Sopa de tartaruga – disse Amy, pousando a colher. – Eu realmente preciso de ter uma conversa séria com Mrs. Lamont. Não temos dinheiro para sopas de tartaruga. – E o brilho eloquente nos seus olhos – continuou Effy, sonhadora. – Foi a coisa mais romântica que se possa imaginar. Achei que a minha vida tinha chegado ao fim. Podia ver as árvores a passar a grande velocidade, sentia-me prestes a escorregar da sela e a ser esmagada pelos cascos do cavalo. E de repente ali estava ele, a agarrar-me nos seus braços fortes... – Come a sopa, pelo amor de Deus! – gritou Amy de repente. – Custou uma fortuna! · · 21 · · –N unca te esqueças de que as irmãs Tribble são senhoras! – recomendou Mrs. Burgess duas semanas mais tarde, quando a carruagem em que seguiam se aproximou dos arredores de Londres. – Claro, tia – respondeu Fiona Macleod. – E se elas encontrarem um cavalheiro adequado para ti, vais ficar noiva dele e não causarás nem a mim nem a Mr. Burgess mais problemas. – Sim, tia. Mrs. Burgess olhou desconfiada para a sobrinha, mas o rosto de Fiona estava escondido pela aba do chapéu. Mrs. Burgess não conhecia pessoalmente as irmãs Tribble. Mas a filha problemática de Lady Baronsheath saíra-se bem nas mãos delas e Lady Baronsheath tinha dito a Mrs. Toddy, que vivia em Tunbridge Wells, e Mrs. Toddy tinha contado a Lady Fremley, que, por sua vez, contara a Mrs. Burgess, o que era praticamente o mesmo que Lady Baronsheath tivesse confiado a informação diretamente a Mrs Burgess. As irmãs Tribble deviam ser senhoras de alta posição e de muito boas maneiras ou Lady Baronsheath nunca teria contratado os seus serviços. Talvez as Tribble conseguissem descobrir o que se passava com Fiona, que era capaz de atrair pretendentes perfeitamente aceitáveis, para logo os fazer fugir a sete pés depois de uma conversa com ela. Talvez fosse o sangue escocês nela, pensou Mrs. Burgess em desaprovação. Ela já não se considerava escocesa, tendo casado muito nova · · 22 · · e mudado para Inglaterra. Fiona era filha da sua falecida irmã e tinha sido educada em Aberdeen, um lugar selvagem e remoto. Lord Byron era de lá e era uma pessoa sem qualquer tipo de moral. Devia ter algo a ver com o clima. Mrs. Burgess era de Ayrshire; a sua irmã, Alice, tinha casado com George Macleod, um comerciante, e tinha-se mudado para Aberdeen, no norte, enquanto Mrs. Burgess se casara com um diletante e tinha ido para Tunbridge Wells, no sul. Mas foram os Macleod que fizeram fortuna com as suas fábricas de juta em Aberdeen. Ambos morreram de influenza, deixando Fiona, então com catorze anos e uma herdeira muito rica, ao cuidado dos Burgess. Agora estava com dezanove e já deveria estar casada e fora das mãos dos Burgess há dois anos, altura em que recebera a sua primeira proposta de casamento. Mr. e Mrs. Burgess eram rigorosos, sisudos e maçadores, mas não eram mercenários. Tinham autorização para pedir o dinheiro que quisessem aos advogados de Fiona até ao seu casamento, mas sentiam uma certa relutância em manter aquela jovem no seu lar sossegado e sem vida. Nunca sabiam o que ela estava a pensar, mas sentiam que havia maldade e malícia nela. Todos os seus acessos de fúria e discussões não pareciam perturbá-la nem um pouco. Ela era insolente. Os pensamentos sombrios de Mrs. Burgess foram interrompidos pelo som de cascos que se aproximavam rapidamente. Apesar do barulho produzido pela carruagem em que seguiam no pavimento empedrado, ela ouvia a rápida aproximação ribombante, pontuada por gritos selvagens e chamamentos em voz alta. · · 23 · · Mr. Burgess, que estava a dormir, acordou com um grito de alarme quando dois cabriolés, cada um deles com duas parelhas de cavalos, ultrapassaram a toda a velocidade a carruagem, um de cada lado, a meros centímetros de distância. Os cavalos dos Burgess empinaram-se e voltaram ao chão, fazendo a carruagem balançar perigosamente e, em seguida, parar. Mrs. Burgess deixou escapar um gritinho débil. Mr. Burgess abriu a portinhola do teto com a bengala e, furioso, perguntou ao cocheiro: – Está tudo bem, John? Estes arruaceiros mereciam uma boa tareia. – Tudo em ordem, sir. Eles pararam mais além na estrada. Um deles virou para trás e vem na nossa direção. Provavelmente para ver se estão todos bem. – Então segue caminho, Jack – disse Mrs. Burgess em tom estridente. – Não falamos com ralé desse calibre. – Não posso, minha senhora. Ele atravessou a carruagem dele à frente da nossa. – Fiona! – gritou Mrs. Burgess. – O que pensas que estás a fazer? Fiona tinha acabado de descer o vidro e estava debruçada da janela. Voltou a sentar-se graciosamente no assento quando um homem alto apareceu. Mrs. Burgess estremeceu. Um belo exemplo de libertino! Tinha um rosto fino e atraente, dissoluto certamente, e uns olhos azuis cintilantes. Tirou a cartola de abas reviradas, revelando uma massa de cabelos negros espessa e brilhante, artisticamente encaracolada, e fez uma vénia. · · 24 · ·