Alberto Chamis Dissertação final mestrado

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Alberto Chamis Dissertação final mestrado
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ALBERTO CHAMIS
EDUCAÇÃO, SAÚDE E TRANSFORMAÇÕES CULTURAIS:
NARRATIVAS E COMPREENSÕES DE UM EDUCADOR EM SAÚDE
CANOAS, 2013
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ALBERTO CHAMIS
EDUCAÇÃO, SAÚDE E TRANSFORMAÇÕES CULTURAIS:
NARRATIVAS E COMPREENSÕES DE UM EDUCADOR EM SAÚDE
Dissertação
apresentada
à
banca
examinadora do Programa de PósGraduação em Educação do Centro
Universitário La Salle – UNILASALLE,
como exigência para a obtenção do título
de Mestre em Educação.
Orientação: Prof. Dr. Cleber Gibbon Ratto
CANOAS, 2013
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
C448e
Chamis, Alberto.
Educação, saúde e transformações culturais [manuscrito]:
narrativas e compreensões de um educador em saúde / Chamis
Alberto. – 2013.
86 f.: il.; 30 cm.
Dissertação (mestrado em Eduacação) – Centro Universitário La
Salle, Canoas, 2013.
“Orientação: Prof. Dr. Cleber Gibbon Ratto”.
1. Educação. 2. Saúde. 3. Educação em saúde. I. Ratto,
Cleber Gibbon. II. Título.
CDU: 614:37
Bibliotecário responsável: Melissa Martins - CRB 10/1380
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ALBERTO CHAMIS
EDUCAÇÃO, SAÚDE E TRANSFORMAÇÕES CULTURAIS:
NARRATIVAS E COMPREENSÕES DE UM EDUCADOR EM SAÚDE
Dissertação
apresentada
à
banca
examinadora do Programa de PósGraduação em Educação do Centro
Universitário La Salle – UNILASALLE,
como exigência para a obtenção do título
de Mestre em Educação.
Aprovado pela banca examinadora em 27 de março de 2013.
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
Prof. Dr. Cleber Gibbon Ratto
UNILASALLE
______________________________________________
Prof. Dr. Balduino Antonio Andreola
UNILASALLE
_____________________________________________
Profa. Drª. Rosa Maria Filippozzi Martini
UNILASALLE
_____________________________________________
Profª. Drª. Simone Edi Chaves
UNISINOS
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AGRADECIMENTOS
Obrigado professor Cleber Gibbon Ratto, pela dedicação que recebi ao longo
da minha caminhada no desenvolvimento deste mestrado;
Obrigado
professor
Balduino
Antonio
Andreola,
pelas
reflexões
e
ensinamentos;
Obrigado Niva, Raquel e Gabriel, pelo imerecido apoio incondicional;
Obrigado Leandro Minozzo e André Luiz Alves Silveira, pela transformação
que vivi;
Obrigado família, amigos e colegas, pela paciência;
Obrigado aos mestres, pelos momentos de convívio;
Obrigado Silvia Adriana Soares, pela competência e ajuda.
Obrigado!
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RESUMO
Esta dissertação vincula-se à linha de pesquisa “Culturas, Linguagens e Tecnologias
na Educação” e tem como problema central as mudanças culturais que incidiram
sobre a educação em saúde nas décadas de 1980, 1990 e 2000, desde a
perspectiva hermenêutica de compreensão, traçada por seu autor. O estudo buscou
compreender as transformações ocorridas nos sentidos atribuídos à educação em
saúde e à prática médica em saúde coletiva, tomando como referência as narrativas
autorreferentes de um médico, ao longo de seus trinta anos de prática profissional.
Além disso, esta investigação buscou ampliar a compreensão do processo educativo
em saúde, produzindo saberes úteis à qualificação das práticas de educação em
saúde junto às comunidades das periferias urbanas. Teoricamente, vincula-se ao
campo da “saúde coletiva” e da “educação em saúde”, servindo-se das principais
produções intelectuais geradas nas últimas décadas. Aproxima-se ainda, dos
referenciais da sociologia reflexiva, sobretudo no que se refere à compreensão das
transformações culturais vividas no século XX e seu impacto sobre a produção das
subjetividades e dos modos de existência. Metodologicamente, apresenta-se como
pesquisa narrativa-hermenêutica, servindo-se de material narrativo autorreferente,
produzido e acumulado a partir da prática profissional em saúde. Os resultados
apontam na direção de uma necessária radicalização da atitude dialógica
intercultural em saúde, para que as transformações expressas e preconizadas na
Política Nacional de Humanização sejam efetivamente encarnadas nas práticas e na
formação médica, tradicionalmente, marcada pelo tecnicismo e pelo cientificismo
reducionistas. A dissertação fomenta ao mesmo tempo em que defende a produção
de saúde enquanto processo hermenêutico e existencial que, cada vez mais na
cultura contemporânea, precisa marcar a busca por sentido de vida e de trabalho
entre os cidadãos, usuários e profissionais.
Palavras-chave: educação; saúde; cultura; narrativa; linguagens.
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ABSTRACT
This work is linked to the research line "Cultures, Languages and Technologies in
Education" and has as its central problem the cultural changes that focused on health
education in the 1980, 1990 and 2000, hermeneutics from the perspective of
understanding drawn by its author The study sought to understand the changes
occurring in the meanings attributed to health education and medical practice in
public health, with reference to the self-referential narratives self-referential to a
doctor over his thirty years of professional practice. In addition, we sought broaden
the understanding of the health education process, producing knowledge useful to
the assessment of the practices of health education to the communities of urban
peripheries. Theoretically linked to the field of "public health" and "health education",
serving up the main intellectual productions generated in recent decades.
Approaching still the benchmarks of reflexive sociology, particularly with regard to
understanding the cultural changes experienced in the twentieth century and its
impact on the production of subjectivities and modes of existence. Methodologically
presented as narrative-hermeneutic research, making use of narrative material selfreferential produced and accumulated from professional practice in health. The
results point towards a radicalization of attitude necessary intercultural dialogue on
health, that the transformations expressed and advocated in the National
Humanization Policy are effectively embodied in practices and in medical education
traditionally marked by technicality by scientism and reductionism. The dissertation
fosters both defending the health production process as hermeneutic and existential,
increasingly in contemporary culture, needs to make a search for meaning of living
and working among citizens, users and professionals.
Keywords: education; health; culture; narrative; language.
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LISTA DE SIGLAS
CEBES – Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
PNH – Política Nacional de Humanização
RS – Rio Grande do Sul
SIDA / AIDS – Síndrome de Imunodeficiência Adquirida
SAE – Serviço de Atendimento Especializado
SUS – Sistema Único de Saúde
UBS – Unidade de Atenção Básica de Saúde
UTI – Unidade de Terapia Intensiva
8
SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO.........................................................................................
9
2
METODOLOGIA......................................................................................
17
3
PRESSUPOSTOS TEÓRICOS................................................................
22
3.1
Modos de vida........................................................................................
22
3.2
Implicações para a educação...............................................................
27
3.3
Implicações para a saúde......................................................................
31
4
NARRATIVAS E INTERPRETAÇÕES.....................................................
38
4.1
Os anos 1980... Formação inicial e primeiros sobressaltos..............
38
4.2
Os anos 1990... A medicina comunitária em Novo Hamburgo/RS....
55
4.3
Os anos 2000... Acentuam-se as contradições e os desafios...........
68
5
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................
79
REFERÊNCIAS.......................................................................................
83
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1 INTRODUÇÃO
As coisas como são em si não são acessíveis à percepção e ao
entendimento. Contudo, as coisas como são para nós como
experimentadas, são compreendidas como estruturadas por nossa
percepção e por nosso entendimento. Sabemos que a coisa em si existe,
mas não o que ela é. Só conhecemos as coisas como as organizamos
perceptual e conceitualmente. Não podemos sair dos nossos sentidos ou da
nossa mente para ver como as coisas são quando não as estamos
percebendo nem pensar sobre como são as coisas independentemente do
nosso pensar sobre elas. (Kant)
Após 30 anos de exercício da medicina, percebi que meu sonho de
transformar o mundo por meio da saúde, não aconteceu da forma esperada. O
mundo mudou de tal maneira, que se transformou em algo diferente do que nós,
jovens estudantes do passado, pensávamos ser o “verdadeiro” caminho para a
libertação do homem. Mesmo sem entender bem seus significados, lutávamos, entre
tantas abstrações, pela liberdade, pela coletividade, pela felicidade, tudo com muita
determinação e convicção, uma convicção quase dogmática. Estávamos em meados
dos anos 1970 e início dos anos 1980. Vivíamos no período do regime ditatorial
militar em nosso país e, mesmo que afastados dos grandes centros, a faculdade de
medicina nos possibilitou a oportunidade de sermos protagonistas de algumas
discussões que se iniciavam em relação à saúde. Fundamentalmente, a saúde
passou a ser via para a democracia, um caminho para a transformação da realidade.
Na ausência de liberdade de organização política, a saúde, por intermédio da saúde
pública, era o instrumento para acontecer esse devir. A saúde era vista como
propulsora da democratização da sociedade e estimuladora da emancipação do
homem. Liberdade era o nome do sonho alcançável pela democracia – liberdade
para ler, ver, dizer, cantar.
Nós procurávamos obter o direito de acesso as mais básicas necessidades de
conhecimento e organização social. Éramos estudantes de medicina nessa época.
Formei-me em 1982 e terminei a residência médica, em pediatria, em 1984. O
ensino médico era – ainda é – positivista, biologicista, fragmentado e especializado.
Após oito anos aprendendo a ser médico, senti que a medicina não respondia a
todas as nossas inquietações sobre a existência humana. Procurávamos
entendimentos além da saúde física e mental e acabamos tentando o social.
Existiam poucos espaços para discussões, reunião era subversão e, para nós, o
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possível eram discussões acerca da “saúde”. Debatíamos os determinantes da
estrutura social sobre a saúde dos indivíduos. A partir das discussões sobre os
paradigmas da saúde, as quais aconteceram nos departamentos de medicina
preventiva e social e nas escolas de saúde pública, chegou-se à proposição da
reforma sanitária brasileira.
Segundo Paim (1997, p. 11),
o movimento pela democratização da saúde que tomou conta do Brasil
durante a segunda metade da década de setenta possibilitou a formulação
do projeto de Reforma Sanitária Brasileira, sustentado por uma base
conceitual e por uma produção teórico-crítica. Diversos estudos e artigos
publicados especialmente através do Centro Brasileiro de Estudos de
Saúde (CEBES) atestam a vitalidade desse movimento [...].
Fomos convidados para constituir um núcleo do Centro Brasileiro de Estudos
de Saúde (CEBES) em Santa Maria, Rio Grande do Sul. Tudo era legal, organizado
como pessoa jurídica e tolerado pelo poder. Fui eleito vice-presidente do núcleo.
Tínhamos como incumbências realizar reuniões reflexivas e propositivas sobre
saúde e vender a revista Saúde em Debate. Sonia Fleury (1997) comenta sobre o
espírito “cebiano”: a abertura de um diálogo, através de uma publicação que
pudesse socializar a polêmica desenvolvida por alguns autores, acerca das
questões que nos inquietam atualmente. Para tanto, seria necessário resgatar a
dialética relação entre produção do conhecimento e orientação da prática política.
As discussões teóricas levam-nos a
um paradigma alternativo em Saúde Coletiva centrado em dois conceitos
fundamentais: determinação social das doenças e processo de trabalho em
saúde. O entendimento de que a saúde e a doença na coletividade não
podem ser explicadas exclusivamente nas suas dimensões biológica
porquanto tais fenômenos são determinados social e historicamente,
enquanto componentes dos processos de reprodução social, permitia
alargar os horizontes de análise e de intervenção sobre a realidade (PAIM,
1997, p. 13).
A reforma sanitária propunha um modelo de democracia cujas bases eram a
formulação de uma utopia igualitária, a garantia da saúde como direito individual e a
construção de um poder local fortalecido pela gestão social democrática (FLEURY,
1997, p. 34).
A utopia igualitária em uma sociedade fortemente desigual e excludente era o
que tentávamos alcançar. Esse era o caminho para a libertação e a autonomia dos
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excluídos. A exclusão social e econômica e a ditadura militar, impossibilitavam a
cidadania. Entendo que lutar pela cidadania e pelo processo civilizatório é um ato
médico. O fim das utopias é uma característica do pós-modernismo. A utopia é como
a esperança, a possibilidade de transferir para o futuro o que não se consegue
resolver no presente. Hoje, o futuro é pensado amanhã.
Quando já me encontrava formado, a construção e a implementação do
Sistema Único de Saúde (SUS) passaram a ser o instrumento e a sistematização de
uma concepção de inclusão social e de descentralização de poder.
Voltando aos caminhos da história, em 1988 foi promulgada a Constituição
Federal brasileira, a qual reconhece o direito universal dos brasileiros à saúde,
regulamentando a criação do SUS (BRASIL, 1990). Os conceitos que regem o SUS
são abstratos, constituem-se em metas e o entendimento de cada um sobre como
realizá-las é o que define sua prática. A diferença é que a partir da promulgação da
Constituição, o SUS passa a ser um sistema estruturante do Estado brasileiro.
O SUS possui princípios e diretrizes. Segundo o artigo 198 da Constituição
Federal (BRASIL, 1988), as diretrizes são: a) descentralização – com direção única
em cada esfera de governo; b) participação da comunidade; c) equidade – é a
garantia de que todo cidadão é igual perante o SUS.
O objetivo da equidade é diminuir desigualdades. Isso não significa que
equidade seja sinônimo de igualdade. Apesar de todos terem direito e, por isso, têm
necessidades diferentes. Equidade significa tratar desigualmente os desiguais,
investindo mais onde a carência é maior. Para isso, a rede de serviços deve estar
atenta às necessidades reais da população a ser atendida. A equidade é um
princípio de justiça social.
Já os princípios são: a) universalidade – é a garantia de atenção à saúde, a
todo e qualquer cidadão, independentemente de sexo, etnia, renda, ocupação ou
outras características sociais ou pessoais. A saúde é um direito do cidadão e um
dever do Estado; b) integralidade – é a compreensão de que o homem é um ser
integral e deverá ser atendido por um sistema integrado, pelas ações que visam
promover, proteger e recuperar a saúde; c) autonomia das pessoas na defesa de
sua integridade física e moral; d) igualdade da assistência à saúde; e) direito à
informação - às pessoas assistidas - sobre sua saúde.
Os princípios e as diretrizes do SUS passaram, então, a dar concretude para
os sonhos de construção de uma “sociedade melhor”. O SUS instrumentalizou
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constitucionalmente a implementação da reforma sanitária brasileira, e é exatamente
pelos seus princípios e pelas suas diretrizes que se faz necessária a plena
democratização das relações de poder e da sociedade. Como todo processo
dialético, o SUS se complexifica, evolui e se metamorfoseia sem perder de vista a
meta de desenvolvimento humano. A partir de então, estamos amparados pela lei e
podemos exercer a democracia na prática médica.
A prática laboral do médico na rede pública de saúde, impõe o enfrentamento
de diversas
realidades. Entre outras, esse profissional carrega
inúmeras
responsabilidades de caráter educativo, conhecimentos que visam preencher
lacunas deixadas pelo núcleo familiar e pelo sistema educacional.
Faz-se necessário acompanhar as evoluções. Atualmente, há uma contínua
tentativa mundial de democracia; o desenvolvimento da tecnologia de informação,
com suas redes sociais e com acessibilidade ao conhecimento; a consolidação da
tendência à tecnocracia; a globalização; a clonagem de vacas e de ovelhas; o
telefone celular; a individualização das relações sociais e tantas outras que marcam
meus mais de trinta anos de profissão.
Nestas últimas três décadas, as mudanças no mundo trouxeram novas
demandas. Mudaram os paradigmas da saúde. O mundo, que para mim era binário
– capitalismo versus socialismo, democracia versus ditadura, esquerda versus
direita, ARENA versus MDB, Internacional versus Grêmio, ame-o ou deixe-o, Beatles
versus Rolling Stones – transforma-se na contemporaneidade. Atualmente é plural,
multifacetado, efêmero, e o homem é empoderado de seus direitos de dignidade, de
civilidade, de diversidade cultural e de relativa liberdade. A prática médica é binária
também. Existem demandas curativas e educacionais. Existem possibilidades
curativas e educacionais. O positivismo do ensino médico pode levar a uma prática
médica impositiva, coercitiva.
Ao se trabalhar em uma Unidade de Atenção Básica de Saúde (UBS), os
atendimentos são feitos com poucas tecnologias agregadas e são o mais dialógicos
possível.
Os
diálogos
possibilitam-nos
vivenciar
uma
troca
informal
de
conhecimentos que acontecem na relação médico-paciente. É uma relação sujeitosujeito: um procura, a partir do conhecimento técnico do outro, a cura para suas
doenças, a promoção e a manutenção de sua saúde; o outro procura entender e
interpretar os significados e a linguagem, para tentar identificar como é percebido
esse processo de estar saudável ou estar doente. Eterno aprendizado de medicina,
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essa troca cria novas interpretações e, com a alteridade, diferentes possibilidades de
soluções. O entendimento do processo saúde-doença possibilita que as proposições
sejam resolutivas e que aconteça o planejamento de ações promotoras de saúde.
Nos tempos modernos, em que as mudanças acontecem nas relações
dialéticas entre sujeitos autônomos, percebi que a relação médico-paciente sempre
foi dialética. São nessas trocas que aprendemos ensinando, ensinamos aprendendo
e ambos mudam valores e sentidos.
A educação popular em saúde possibilita a troca de concepções, de
linguagem, de conhecimentos, de emoções que, interagindo, transformam a
percepção da realidade. Acreditando que “saúde e educação fazem revolução”, tento
na educação a transformação – eterna busca de evolução.
A presente dissertação resulta de uma observação sobre a própria
experiência. A partir da narrativa de episódios vivenciados ao longo de muitos anos
de trajetória junto a comunidades que utilizam serviços públicos de saúde, busquei
identificar as mudanças nas percepções de sentido e de comportamento dessas
comunidades, e também identificar possíveis mudanças nos conteúdos educativos
na área da saúde, tanto em relação aos usuários dos sistemas de saúde quanto aos
trabalhadores de saúde.
De certo modo, percorreu uma linha histórica; a reforma sanitária, a luta pela
incorporação das bases da saúde coletiva na Constituição, a implementação do SUS
com seus conflitos atuais, a agregação de tecnologia, a educação em saúde com
seus paradigmas de conteúdos e práxis, a interface educação-saúde, a
individualização da organização social, e muitos outros temas emergentes desse
exercício hermenêutico de exame da minha própria trajetória profissional.
O interesse pelo tema surgiu de minha experiência profissional. Acredito que
a profissão de médico tem intrínseca a possibilidade de entender o outro em suas
determinações,
interpretando-as,
e,
através
da
troca
de
experiências
e
conhecimentos, ajudar o outro em suas fragilidades.
Ao chegar à terceira década de minha vida profissional, durante a qual
participei da gestão municipal das cidades de Novo Hamburgo e Campo Bom, do
serviço de epidemiologia, de plantões na UTI neonatal, da coordenação do SAE
(Serviço de Atendimento Especializado em SIDA - AIDS), da coordenação do Núcleo
de Informação em Saúde na 1ª Coordenadoria de Saúde em Porto Alegre, como
médico pediatra responsável pela saúde das crianças de duas casas de
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acolhimento, e também como membro do Conselho Municipal de Saúde, entre
outras atividades, não percebi minha prática suficientemente transformadora.
Busquei, por meio da reflexão das experiências ao longo da minha trajetória
profissional, compreender as transformações ocorridas nos sentidos atribuídos à
educação em saúde e à prática médica em saúde coletiva, tomando como referência
minha própria vivência. Com o mestrado, busquei ampliar a compreensão do
processo educativo em saúde, qualificando minha atuação junto à comunidade e
produzindo conhecimento que traduzisse a prática da saúde coletiva. Com o olhar
apurado na vivência da população de periferia urbana, na qual trabalho, aprendo e
ensino. Recuperei sonhos e compreendi a realidade vivida, acompanhando e
registrando as transformações que vêm surgindo em um novo tempo e diante de
novas configurações culturais.
A formação médica, ao supervalorizar a especialização e o tecnicismo, afasta
o profissional das ações e das intervenções comunitárias, preventivas e educativas.
Os médicos formados em áreas de saúde de família, comunidade e pediatria, por
exemplo, dedicam um tempo maior às atividades de educação e de promoção da
saúde, mas a demanda dos serviços pressiona para o atendimento curativo,
invadindo o espaço da vivência saúde-educação.
As
demandas
curativas
acabam
isolando
o
médico
de
equipes
multidisciplinares e dificultando sua inserção na educação em saúde. Esse
isolamento aumenta o risco de que o processo saúde-doença seja entendido e
dimensionado equivocadamente. A formação médica, mesmo que tenha novos
paradigmas sobre saúde-doença, continua tendo uma compreensão biologicista do
humano.
Compreendendo
muito
mais
os
aspectos
orgânicos,
acabam
subdimensionando os aspectos culturais, sociais e históricos. As demandas de
educação são pela construção compartilhada de conhecimentos, um aprendizado
mútuo e provocante.
O mundo transformou-se, mudou paradigmas, incorporou tecnologia,
concebeu novos valores nas relações entre indivíduos e entre coisas e alterou
maneiras de organização social. Tais mudanças alteram o entendimento de mundo
do homem contemporâneo e a sua relação com ele, cabendo ao profissional de
saúde
tentar
transformação.
entender
um
homem
multifacetado,
dialético,
em
contínua
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Minha prática médica sempre foi em serviços de saúde coletiva, tanto na
assistência como na gestão. Exerço minhas atividades assistenciais em Unidades
Básicas de Saúde (UBS), em comunidades de periferia urbana, nas quais, na minha
visão, os problemas coletivos são ainda prementes.
A prática da medicina é feita em muitas dimensões, sendo duas delas a
prática curativa e a educação em saúde. Assumo a Educação como construção
compartilhada de saberes para interferir sobre os modos de existir com os outros.
Procurei, através da reflexão sobre a práxis médica, entender como acontece o
processo de educação em saúde. Creio que o exercício da medicina curativa não
responde a todas as necessidades que acredito serem relevantes para a
compreensão e para o aprendizado em saúde. O entendimento de como acontecem
as “coisas”, dá às pessoas o poder de definirem caminhos e terapêuticas que melhor
lhes solucionem as dificuldades e os adoecimentos.
A educação em saúde tem como um dos objetivos, incentivar a autoestima e
o autocuidado das pessoas, levando-as a reflexões que modifiquem atitudes e
comportamentos. Creio que seja na educação em saúde que ocorre uma das mais
significativas e estimulantes facetas do exercício profissional da medicina, atitudes e
comportamentos que incentivam a construção da cidadania, e nisso investi ao longo
dessas três décadas de profissão.
Outro aspecto importante quanto à educação em saúde, refere-se às
condições e às possibilidades das populações periféricas tornarem reais as
orientações educativas e preventivas que recebem nos serviços de saúde. Como ser
saudável em regiões de segregação urbana, com deficiência de saneamento, de
áreas de lazer, de segurança e convivendo com a precariedade dos serviços de
saúde? (RODRIGUEZ et al., 2007).
Compreender e explicar as contradições, as transformações que vêm
ocorrendo na educação em saúde, ocupando o lugar de observador de minha
própria trajetória, aqui narrada e interpretada, as respostas possíveis como
profissional que foi se desenvolvendo nessa realidade e a partir deste estudo,
produzir conhecimento que interfira sobre o cotidiano do serviço de saúde e da
comunidade, são inquietações que me impulsionaram e que justificam esta
dissertação.
Ao longo do estudo, tive como questão norteadora a pergunta: como se
manifestam,
nas
práticas
educativas
em
saúde,
as
mudanças
culturais
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contemporâneas, vistas na perspectiva de um educador em saúde, ao longo de sua
trajetória profissional?
Tive como objetivos secundários ao propósito já expresso: a) identificar, a
partir do estudo da prática profissional cotidiana, mudanças significativas nas
práticas educativas em saúde; b) analisar algumas repercussões das mudanças nas
práticas educativas sobre a vida dos sujeitos e das suas comunidades; c) analisar
algumas repercussões das mudanças nas práticas educativas sobre a prática
profissional do educador em saúde.
A dissertação está organizada de modo a oferecer ao leitor as marcas do
percurso de narrativa e interpretação desenvolvidas. Assim, depois deste texto
introdutório, apresento as condições metodológicas e os pressupostos teóricos que
orientaram o trabalho. Na sequência, passo às três seções, nas quais desenvolvo as
narrativas e interpretações propriamente organizadas, sendo cada uma delas em
torno de uma década específica de formação/trabalho como médico. As três seções
de análise “costuram” as narrativas autorreferentes com as muitas leituras e estudos
que deram consistência ao trabalho interpretativo da minha própria vivência
profissional. Nas considerações finais, busco sintetizar as principais emergências do
trabalho de análise desenvolvido, pretendendo oferecer ao leitor uma espécie de
flashback das seções anteriores, e uma tomada de posição sobre o sentido de
educação em saúde, defendido por mim, como possível prática transformadora do
exercício e da formação médica.
17
2 METODOLOGIA
Trata-se de um estudo do tipo qualitativo, narrativo, autorreferente, servindose da reconstituição da própria história profissional do pesquisador, por meio da
memória e a partir de vinhetas da prática profissional, que serviram de substrato
(pré-texto) para as análises, construídas ao longo do trabalho, numa perspectiva
hermenêutica.
Para Minayo et al. (1999, p. 11),
na sociedade ocidental a ciência é a forma hegemônica da construção da
realidade [...]. Mencionaremos duas razões: a primeira [...] está na
possibilidade de responder a questões técnicas e tecnológicas postas pelo
desenvolvimento industrial, e a segunda consiste no fato de os cientistas
terem conseguido estabelecer uma linguagem fundamentada em conceitos,
métodos e técnicas para compreensão do mundo, das coisas, dos
fenômenos, dos processos e das relações.
Porém, a compreensão holística do homem apenas é possível com o
entendimento de como se dá a interação entre o indivíduo e a sociedade e suas
consequências. A maneira como as simbolizações e os conceitos sobre a vida
manifestam-se, é nosso campo de estudo. Minayo et al. (1999, p. 13-14) afirma:
O objeto de estudo das ciências sociais possui consciência histórica.
Noutras palavras, não é apenas o investigador que dá sentido a seu
trabalho intelectual, mas os seres humanos, os grupos e as sociedades dão
significado e intencionalidade a suas ações e a suas construções, na
medida em que as estruturas sociais nada mais são que ações objetivadas.
O nível de consciência histórica das ciências sociais está referenciado ao
nível de consciência histórico social.
Acredita-se que quando se trata de questões como violência, crenças,
ideologias, cultura, comportamento, moral, senso comum e outros, os métodos
científicos positivistas não conseguem responder com acurácia. A volatilidade e a
efemeridade desses processos, manifestados no comportamento e na linguagem,
faz com que eles sejam de difícil mensuração. As ciências sociais e a psicanálise,
por exemplo, têm sido poderosos instrumentos explicativos dos significados da
existência individual e coletiva.
Na vivência com usuários da periferia de Novo Hamburgo/RS, sabendo que a
“imagem de médico” me empodera, procuro interagir e aprender ensinando ou
ensinar aprendendo. Acredito que, por meio da educação em saúde, podemos fazer
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a intersecção do conhecimento técnico com o conhecimento popular, empírico.
Compreendo que alguns valores e conceitos, e que algumas interpretações e
crenças, não são quantificáveis com métodos utilizados nas ciências naturais. Nas
ciências sociais e na psicanálise, a quantificação não responde por fenômenos que
são muito mais sentidos, mais percebidos que quantificados. Nessa relação médicopaciente, o objeto em estudo também é sujeito, e essa relação com um objeto que é
sujeito, concomitantemente, oportuniza um envolvimento com cumplicidade e
alteridade.
Considerando que pesquisa qualitativa é aquela em que a interpretação dos
fenômenos e atribuições de significados são básicos no processo de pesquisa, não
requerendo o uso de métodos e técnicas estatísticas, o pesquisador é o instrumentochave. O processo e seu significado são os focos principais de abordagem e, no
meu caso, a adoção da narrativa como estratégia.
Procurei interpretar e analisar, em uma perspctiva hermenêutica, a minha
história profissional. A interpretação dos significados que aparecem como
manifestações culturais, comportamento, senso comum, moral e princípios
educacionais, tiveram como espaço de pesquisa os recortes da minha biografia
profissional, dos últimos 30 anos, no exercício da medicina; processo hermenêutico
em que fui sujeito e objeto da pesquisa, simultaneamente. Utilizei a narrativa
autorreferente e, reconstituindo a própria história profissional, procurei compreender
como acontecem as novas sociabilidades e as práticas educacionais em saúde
neste momento histórico.
Sem negligenciar a força das estruturas e a presença do poder, mas
também sem desconhecer o poder criador dos homens e da força
instauradora das narrativas […] que eles inventam e experimentam,
buscamos outra lógica para conhecer a natureza complexa da vida social –
não a da determinação, mas a da mobilidade. (GUIMARÃES, 2006, p. 8).
A opção por fazer uso de narrativas está ancorada no entendimento de que a
linguagem é o meio privilegiado de acesso aos sentidos atribuídos à realidade,
assim como dela dependem, diretamente, tais sentidos. Não há como separar
sentido e linguagem, na medida em que:
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quién somos como sujetos autoconscientes, capaces de dar un sentido a
nuestras vidas y a lo que nos pasa, no está más allá, entonces, de un juego
de interpretaciones. Lo que somos no es otra cosa que el modo como nos
comprendemos; el modo como nos comprendemos es análogo al modo
como construimos textos sobre nosotros mismos; y cómo son esos textos
depende de su relación con otros textos y de los dispositivos sociales en los
que se realiza la producción y la interpretación de los textos de identidad.
(LARROSA, 2004, p. 14-15).
Assim, ainda que meu objetivo não tenha sido narrar exaustivamente minha
história profissional, foi a narrativa de minhas vivências que permitiu compreender
muitos movimentos que constituíram essas décadas de trabalho. Certamente, muitos
outros profissionais contemporâneos de tais vivências, poderão identificar-se em
passagens de minha própria história, o que fortalece o caráter coletivo e polifônico
do meu próprio texto. A narrativa da “minha” história não é apenas minha, mas
reveladora de forças e movimentos que constituíram essas três décadas de
educação e saúde no país. Evidentemente, não pretendi narrar “a verdade” dessas
três décadas, mas a compreensão possível desde minha perspectiva, ela própria
construída pela historicidade que me constituiu.
De hecho, el sentido de lo que somos o, mejor aún, el sentido de quién
somos, tanto para nosotros mismos como para los otros, depende de las
historias que contamos y que nos contamos y, en particular, de aquellas
construcciones narrativas en las que cada un de nosotros es, a la vez, el
autor, el narrador y el carácter principal, es decir, de las autobiografías,
autonarraciones o historias personales. (idem, p.12-13).
A partir da hermenêutica, tentarei entender os processos sociais e individuais,
na busca de sentido de vida pela interpretação do “sentido do discurso”. Ghedin
(2004, p. 2) comenta que
transformamos a natureza em cultura; a cultura em conhecimento e agora
estamos projetando, pelo conhecimento, os significados da natureza que
estão impressos no ser [...]. O discurso é um modo de traduzir a imagem do
real, mas esta imagem traduzida não é a própria realidade, mas a fala dela.
Ao pensarmos que não somos o que somos, mas o que pensamos que
somos, poderemos entender quem somos interpretando o discurso produzido por
quem somos. Se a hermenêutica é conceituada como arte e ciência da
interpretação, é a partir dela que norteio esta dissertação.
Para Gadamer (apud Ayres, 2007), a hermenêutica é um processo
interpretativo-compreensivo, que elucida seus significados e só pode acontecer
20
nesse jogo interminável de idas e voltas da palavra ao conceito e vice-versa. É o
próprio Gadamer (2000, p. 18) quem afirma:
a hermenêutica, enquanto filosofia, não é qualquer disputa de métodos com
outras ciências, teorias das ciências ou coisas que tais, senão um modo de
mostrar que – e isso ninguém pode negar – em cada momento que pomos
nossa razão a trabalhar, não fazemos apenas ciência. Sem levar a falar os
conceitos, sem uma língua comum, não podemos encontrar palavras que
alcancem o outro. O caminho vai da palavra ao conceito – mas precisamos
chegar do conceito à palavra, se quisermos alcançar o outro.
A opção pela hermenêutica, neste caso, não é meramente uma escolha
metodológica, mas uma atitude ética e política, na medida em que implicou que me
dispusesse a rever minha própria experiência vivida, e com isso correr o risco de
transformar o que penso, sinto e faço, nisso está a dimensão ética. O caráter político
está no fato de que compreender, hermeneuticamente, fragmentos dessas três
décadas de trabalho, é produzir um novo discurso, um novo texto, disponível aos
olhares daqueles que se interessarem pelo que escrevi, e isso poderá interferir sobre
os modos de compreender a educação em saúde nas práticas sociais em que me
inscrevo como profissional.
Com esta investigação, corri o risco de transformar-me, e isso de fato ocorreu,
o que torna ainda mais válido o percurso de estudo ao longo desses dois últimos
anos.
Embora o foco das narrativas estivesse na minha trajetória profissional, essa é
indissociável de minha própria história de vida, o que deu ao trabalho um caráter
autobiográfico. Fiz, de certo modo, uma narrativa autobiográfica e por meio dela
tentei compreender como se dá e em que contexto histórico acontece a prática
profissional. Para Souza (2008, p. 42), “a revalorização das histórias de vida situa-se
na virada hermenêutica em que se compreendem os fenômenos sociais como textos
e a interpretação como atribuição de sentidos e significados às experiências
individuais e coletivas.” Ele reflete ainda o seguinte:
Através da abordagem biográfica o sujeito produz um conhecimento sobre
si, sobre os outros e o cotidiano, revelando-se através de subjetividade, da
singularidade, das experiências se dos saberes. [...] o ator parte de si,
questiona os sentidos de suas vivências e aprendizagens (auto)biografia.
(SOUZA, 2008, p. 45).
Foram construídas e apresentadas diversas vinhetas da prática profissional,
que serviram de substrato para as análises, sendo elas entremeadas por
21
interpretações teóricas. Cada seção de análise concentra as narrativas e análises de
uma década (1980, 1990 e 2000). Muitas dessas vinhetas foram compostas por
meio da recuperação de anotações, diários antigos, fotografias e lembranças
espontâneas que emergiram nas seções de orientação.
22
3 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS
3.1 Modos de vida
O filósofo e sociólogo alemão, Jürgen Habermas, associado à Teoria Crítica
da Escola de Frankfurt, comenta que nas sociedades industriais modernas, passa a
prevalecer a racionalidade instrumental, definida pela relação meios-fins, ou seja,
pela organização de meios adequados para atingir determinados fins, ou pela
escolha entre alternativas estratégicas com vistas à consecução de objetivos. Tenta
superar este conceito, ampliando o conceito de razão, para o de uma razão que
contém em si as possibilidades de reconciliação consigo mesma: a razão
comunicativa. (GONÇALVES, 1999).
Na sociedade capitalista moderna, uma racionalização das estruturas fazendo
com que as definições na esfera social passem a ser subordinadas a critérios
técnicos de decisão racional, isto é, a critérios técnicos e científicos. Há uma
racionalização da ação social e subordinação a uma racionalidade científica e
técnica. Racionalidade científica, entendida como neutra em valores, que afasta da
discussão da razão as questões sociais, subjetivas e irracionais. Acreditam os
filósofos de Frankfurt, que a ciência e a técnica, ao visarem o domínio da natureza e
sua submissão ao homem, trazem no seu bojo o germe da dominação.
(GONÇALVES, 1999).
A ciência é, geralmente, modelo fundamental ou paradigma da racionalidade.
A tecnologia, ciência aplicada, é também vista como parte da racionalidade da
sociedade moderna.
Gonçalves reflete que
na medida em que a racionalidade instrumental da ciência e da técnica
penetra nas esferas institucionais da sociedade, transforma as próprias
instituições, de tal modo que as questões referentes às decisões racionais
baseadas em valores, ou seja, em necessidades sociais e interesses
globais, que se situam no plano da interação, são afastadas do âmbito da
reflexão e da discussão. (GONÇALVES, 1999, p. 130).
Considerando que tecnocracia é uma teoria do governo por especialistas
técnicos, ela tem sido pensada por filósofos como Francis Bacon (1561-1625). Ele
foi um dos precursores das teorias da tecnocracia e acreditava que, por meio do
23
conhecimento da natureza e do poder tecnológico sobre a natureza, os humanos
poderiam recuperar a clareza da mente e a pureza de ação que Adão e Eva tinham
antes de serem expulsos do Jardim do Éden. Afirmou também, que conhecimento é
poder, e que a investigação da natureza é o caminho para a prosperidade e bemestar sociais está muito mais próximo da noção tecnocrática dos governantes
filosóficos de Platão.
Encontramos ainda que
com o crescimento das forças produtivas, modificaram-se as atribuições do
estado a empresa passou, de forma crescente, a intervir no planejamento
da vida econômica, direcionando decisões que anteriormente cabiam à
esfera social, e assumindo atribuições que eram tradicionalmente da
competência e do aparelho do Estado. Este, por sua vez, passou a intervir
diretamente na economia, assumindo, no capitalismo contemporâneo, a
função de preservar as relações de produção, submetendo-se às
determinações do capital global, com o qual busca conciliar os interesses
nacionais. (GONÇALVES, 1999, p. 129).
Buscando estabelecer compensação nas disfunções do sistema capitalista, foi
adotado o Estado de bem-estar pelas sociedades industriais desenvolvidas, que
busca condições para oferecer à população: saúde, educação, trabalho e habitação.
Esse programa estatal requer garantir "a forma privada de revalorização do capital" e
promover à população segurança social, oportunizando também a promoção
pessoal. (HEBERMAS apud GONÇALVES, 1999, p. 129).
Na contemporaneidade, Habermas considera que o desenvolvimento da
ciência e da técnica, ao responder às necessidades de crescimento e
aperfeiçoamento, alimenta o capitalismo de um mecanismo de manutenção. Assim,
“se institucionaliza a introdução de novas tecnologias e de novas estratégias”,
“institucionaliza-se a inovação enquanto tal”, “cumprindo ciência e à técnica o papel
de legitimar a dominação” (HABERMAS apud GONÇALVES, 1999, p. 129).
Para Gonçalves (1999, p. 130-131):
A subjetividade do indivíduo não é constituída através de um ato solitário de
autorreflexão, mas, sim, é resultante de um processo de formação que se
dá em uma complexa rede de interações. A interação social é, ao menos
potencialmente, uma interação dialógica, comunicativa. A penetração da
racionalidade instrumental no âmbito da ação humana interativa, ao produzir
um esvaziamento da ação comunicativa e ao reduzi-la à sua própria
estrutura de ação, gerou no homem contemporâneo, formas de sentir,
pensar e agir – fundadas no individualismo, no isolamento, na competição,
no cálculo e no rendimento-, que estão na base do problema social.
24
A tentativa de globalização da democracia, as lutas pela emancipação de
grupos considerados minoritários e o surgimento de novas tecnologias, acabam
alterando as estruturas de organização social. O espaço nos quais acontecem as
definições sobre a vida em sociedade, deixam de ser preponderantemente os
sindicatos, as associações comunitárias e os partidos políticos e passam muito a
acontecer nas redes sociais da internet. Há uma tendência de empoderamento do
indivíduo, determinando novos valores às novas necessidades.
A tentativa de empoderamento do indivíduo passa pela resposta às
necessidades de consumo, formatando um comportamento que lhe identifique como
pós-moderno.
Considera-se
que
“uma
sociedade
com
características
de
consumismo é uma resposta ao desejo individual de satisfação que muitas vezes
respondem a informações midiáticas e novas tecnologias”. (BAUMAN, 2009, p. 168).
Bauman, (2009, p. 168), referindo-se a Hanna Arendt, conclui que afastar-se
“da política e da esfera pública transforma-se então, na atitude básica do indivíduo
moderno, o qual, em sua alienação em relação ao mundo, só pode revelar-se
verdadeiramente na privacidade e intimidade dos encontros face a face”.
Houve um entendimento diferente dos valores na contemporaneidade, que
segundo Luc Ferry (2012, p. 34):
Era necessário que os valores e autoridades tradicionais fossem
desconstruídos pelos boêmios para que o capitalismo, também ele
moderno, pudesse entrar na era do grande consumo, sem o qual sua
expansão seria simplesmente impossível.
“O fato de que ao final visível, da história do individualismo revolucionária a
que o vanguardismo do século XX se resumiu, ao final da oposição entre burgueses
e boêmia, os irmãos inimigos se reconciliaram plenamente”. Hoje em dia, quem
patrocina e compra obras de arte moderna, se não a burguesia, os grandes
figurões? (FERRY, 2012, p. 44).
Nota-se que, nos tempos modernos, há uma individualização nos interesses e
nos
valores
sociais.
Essa
individualização
é
uma
característica
da
contemporaneidade, determinando diferentes formas de viver. Bauman (2009, p. 7)
denomina esses tempos de “vida líquida” ou “modernidade líquida”. Sua mais
definidora manifestação é:
25
uma sociedade em que as condições, sob as quais agem seus membros, mudam
num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação em hábitos e
rotinas das formas de agir.
“As realizações individuais não podem solidificar-se em posses permanentes porque,
em um piscar de olhos, os ativos se transformam em passivos, e as capacidades em
incapacidades”. (BAUMAN, 2009, p. 7)
Hoje, a individualidade significa, em primeiro lugar, a autonomia da pessoa, a
qual é precedida, simultaneamente, como direito e dever. Antes de qualquer coisa, a
afirmação: “eu sou um indivíduo” significa que sou responsável por meus méritos e
fracassos, e que minha tarefa é cultivar os méritos e reparar os fracassos.
(BAUMAN, 2009, p. 30).
Entretanto, coletivamente acabam se manifestando como cultura. Segundo
Cuche (2002, p. 179), “o indivíduo é levado a interiorizar os modelos culturais que
lhe são impostos, até o ponto de se identificar com seu grupo de origem”.
Ainda segundo o autor, “critérios determinantes, considerados como objetivos,
como a origem comum (a hereditariedade, a genealogia), a língua, a cultura, a
religião, a psicologia coletiva (“a personalidade básica”)”. (CUCHE, 2002, p. 180).
Esta individualização, na modernidade, determina valor à cultura, relativiza
esse valor e transforma-o em consumo e muitas vezes, essa individualização remete
a manifestações culturais. Considerando que “a cultura é a soma dos saberes
acumulados e transmitidos pela humanidade” e a manifestação simbólica do
comportamento humano, isto é, o conjunto de regras que orienta e dá significado às
práticas e à visão de mundo de um determinado grupo social. A cultura é tomada,
assim, por seu caráter simbólico. Ela é a forma que um determinado grupo social
estabelece para classificar as coisas e lhes atribuir um significado. (CUCHE, 2002, p.
21).
Para Cuche (2002, p. 175-176), “a recente moda da identidade é o
planejamento do fenômeno de exaltação da diferença, [...] a apologia da sociedade
multicultural, [...] a exaltação da ideia de que é cada um por si para conservar sua
identidade”.
26
[...] existe em todas as sociedades uma “consciência coletiva”, feita das
representações coletivas, dos ideais, dos valores e dos sentimentos comuns
a todos os indivíduos. Essa consciência coletiva precede o indivíduo, impõe
a ele, é exterior e transcende a ele: há descontinuidade entre a consciência
coletiva e a consciência individual, e a primeira é “superior” à segunda, por
ser mais complexa e indeterminada. É a consciência coletiva que realiza a
unidade a coesão de uma sociedade. (CUCHE, 2002, p. 57).
A velocidade de incorporação da tecnologia é, muitas vezes, o fator de
definição da hierarquia e da hegemonia entre sociedades. Bauman (2009) faz
referências à hierarquização da cultura:
As culturas nascem de relações sociais que são sempre relações desiguais
[...]. Em um dado espaço social, existe sempre uma hierarquia cultural. [...] a
força relativa de diferentes culturas [...] depende diretamente da força social
relativa dos grupos que as sustentam. Isso se dá porque as relações entre
símbolos não funcionam segundo a mesma lógica que as relações entre
grupos e indivíduos. (BAUMAN, 2009, p. 7).
Para Karl Marx, assim como Max Weber (apud Cuche, 2002, p. 145), [...], a
cultura da classe dominante é sempre a cultura dominante [...].
Os
indivíduos
adquirem
valor
de
mercado,
que
vai
se
alterando
continuamente para que novas criações e novos comportamentos sejam
consumidos. A relação entre os indivíduos é o espaço em que acontecem essas
trocas de entendimentos e de percepções sobre valores da vida. São relações que,
na troca com a alteridade, formulam regras de comportamento e de sentidos, as
quais respondem amiúde às necessidades ditadas pela rápida renovação, pelo
desenvolvimento e pela incorporação de tecnologia, e também pela velocidade com
que se consome o novo e se descarta o velho.
Através dos tempos, o homem vem tentando entender o sentido da vida, o
que a compõe, como ela se processa, como se inter-relacionam as vidas, enfim, em
um contínuo processo de questionamento sobre verdades postas. A concepção de
mundo em um momento histórico, sofre influência e determina o desenvolvimento da
racionalidade humana, a qual, por meio de valores, define necessidades para o
desenvolvimento científico, remetendo-nos à percepção de que a história da
humanidade tem sido uma eterna busca do conhecimento e de seu uso. As
demandas de poder, de território e de hegemonia, são determinantes de valores na
vida social, acarretando diferentes respostas de comportamento.
27
A consciência da incompletude leva o homem a buscar respostas,
transformando as suas relações com o conhecimento, com o poder, com a natureza,
com o outro, consigo mesmo. Os homens necessitam de princípios, de valores e de
justificativas para aceitarem a finitude e a desvalia. O humano acata conceitos de
moral para poder viver em sociedade, regras de convívio que respondem à
volatilidade e à efemeridade das relações, mas que mantenham a existência da
estruturação da organização social.
3.2 Implicações para a educação
Entendendo educação:
(...) como uma instituição social e histórica, que tem como fim gerar
transformações tanto em nível das consciências individuais, como em nível
mais amplo, da sociedade. Trazendo em seu bojo a concepção do homem
na dimensão da praxis- como um ser capaz de refletir sobre a realidade nela
atuar, ao mesmo tempo que esta atua sobre ele transformando-o-, a
Educação é vista aqui como uma possibilidade, ainda que limitada por
condicionantes
históricos(e justamente o desvelamento desses
condicionantes históricos é que possibilita o pensamento das
transformação), de uma ação transformadora, buscando modificar as
condições desumanizantes da sociedade industrial contemporânea e, em
especial, da sociedade brasileira.(GONÇALVES apud GONÇALVES, 1999,
p. 134).
O homem se transforma através do conhecimento. Um conhecimento que
racionaliza o imaginário define necessidades e desejos e empodera-o. Saber que,
na eterna busca da compreensão de mundo, vai evoluindo e respondendo às
inquietações humanas.
Para Brandão, (apud Rodriguez et al., 2007) a educação é um processo de
humanização que se dá ao longo de toda a vida e de modos diferentes, ocorrendo
em casa, na rua, no trabalho, na igreja, na escola, entre outros locais. Além de um
processo infinito, que acontece em múltiplos espaços e em diferentes situações de
vida, compreende-se que a educação está ligada à aquisição dos conhecimentos
popular e científico e à articulação deles, entendida como reorganização,
incorporação e criação do conhecimento.
Quando tomamos os conteúdos, estritamente técnico-científicos das práticas
de saúde, sabemos que contamos com critérios bastante definidos e validados, com
alto grau de objetivação e formalização sobre o que e como fazer - quais formas,
28
funções e riscos devemos preservar, favorecer ou controlar - no manejo biomédico
dos organismos. (AYRES, 2005).
Entende-se por educação em saúde, quaisquer combinações de experiências
de aprendizagem, delineadas com vistas a facilitar ações voluntárias conducentes à
saúde. A palavra combinação enfatiza a importância de combinar múltiplos
determinantes do
comportamento
humano,
com múltiplas experiências
de
aprendizagem e de intervenções educativas. A palavra "delineada" distingue o
processo de educação de saúde de quaisquer outros processos que contenham
experiências acidentais de aprendizagem, apresentando-o como uma atividade
sistematicamente planejada. Facilitar significa: predispor, possibilitar e reforçar.
Voluntariedade significa: sem coerção e com plena compreensão e aceitação dos
objetivos
educativos
implícitos
e
explícitos
nas
ações
desenvolvidas
e
recomendadas. Ação diz respeito a medidas comportamentais adotadas por uma
pessoa, grupo ou comunidade, para alcançar um efeito intencional sobre a própria
saúde.
A educação em saúde “procura desencadear mudanças de comportamento
individual”. (CANDEIRAS, 1997, p. 211). A educação em saúde, como área de
conhecimento, requer uma visão corporificada de distintas ciências, tanto da
educação como da saúde, integrando disciplinas como psicologia, sociologia,
filosofia e antropologia. Esse entendimento é reforçado ao se afirmar a educação em
saúde como campo multifacetado, para o qual convergem diversas concepções, as
quais espelham diferentes compreensões do mundo, demarcadas por distintas
posições políticos-filosóficas sobre o homem e a sociedade.
Dessa forma, o conceito de educação em saúde está ancorado no conceito
de promoção da saúde, que trata de processos que abrangem a participação de toda
a população no contexto de sua vida cotidiana e não apenas das pessoas sob o
risco de adoecer. (MACHADO, 2007).
Mesmo que o SUS proponha ações educativas, a prática social do médico é,
prioritariamente, o enfrentamento da doença. A população vive a expectativa da
cura, justificando, assim, a demanda pela prática médica. Busca a cura da dor, do
sofrimento, do déficit de atenção, da tosse, da febre, da malária, entre outras curas,
de um modo imediato e sem o entendimento da existência de uma história natural no
adoecimento e na cura. Como o ato médico garante a exclusividade da prescrição
29
medicamentosa, o trabalho médico em UBS acaba respondendo à demanda por
atendimento curativo.
Para Busquets et al. (apud Rodriguez et al., 2007), os objetivos da educação
em saúde na escola são: formar uma personalidade autônoma, capaz de levar o
indivíduo a construir seu próprio estilo de vida, e de conseguir um equilíbrio que lhe
proporcione bem-estar nos terrenos físico, psíquico e social; oferecer os meios para
que o aluno se conscientize de seus próprios estados físicos e psíquicos, dos seus
hábitos e das suas atitudes diante das diversas situações da vida cotidiana.
A educação em saúde pode ocorrer na Unidade Básica de Saúde (UBS), na
comunidade ou na escola. As UBSs são o espaço físico no qual acontecem as ações
assistenciais e educacionais em saúde, sistematizadas pelo SUS. Grupo-terapia,
reuniões de pais e da comunidade, palestras em escolas e consultas médicas, são
alguns dos espaços em que essa interface se dá.
A
“troca
de
saberes”
possibilitada
pelo
contato
profissional
entre
usuários/pacientes e profissionais de saúde, leva-nos a entender a “educação em
saúde como elemento produtor de um saber coletivo que traduz no indivíduo sua
autonomia e emancipação para o cuidar de si, da família e do seu entorno”
(MACHADO et al., 2007, p. 336).
A concepção crítica da educação, que pretende ser uma educação para a
conscientização, para a mudança, para a libertação, solicita uma relação de
proximidade entre os profissionais e a população. Nessa relação educativa, a
produção do conhecimento passa a ser coletiva, gerando uma modificação mútua,
porque ambos são portadores de conhecimentos distintos. (MACHADO et al., 2007).
A conformação do comportamento individual é adquirida por intermédio do
sistema educativo. A educação possibilita que valores e significados sejam
concebidos, entendidos e trocados. O homem tende a se educar por imitação e pelo
questionamento acerca do que lhe interessa.
Acredito no conhecimento como instrumento de libertação do indivíduo, na
educação como promotora desse processo e, mais ainda, que educação em saúde
seja minha ferramenta para participar dele. Libertação significando autonomia só é
possível quando o indivíduo compreende o que lhe origina, o que lhe dá sentido e
decide como viver isso. A compreensão de que esses saberes dependem das
relações de poder, da classe social, do gênero, da etnia, da historicidade, da mídia e
até do acaso, acabam definindo como acontece sua inserção social.
30
Nos ideais de Paulo Freire, os princípios da educação popular estão
relacionados à mudança da realidade opressora, ao reconhecimento, à valorização e
à emancipação dos diversos sujeitos individuais e coletivos. Contudo, além da
conscientização, a prática e a reflexão sobre a prática formam a categoria de
organização da educação popular e são elementos básicos para a transformação.
Nesse sentido, a sociedade civil organizada foi identificada como instância de
promoção e de sistematização da educação popular (BARBOSA, 2007).
Paulo Freire sugere cinco princípios – os quais considerava fundamentais –
aos educadores e às educadoras: saber ouvir, desmontar a visão mágica,
aprender/estar com o outro, assumir a ingenuidade dos educandos e viver
pacientemente impaciente.
Há de se evitar a prática idealizada, coercitiva, impositiva na educação em
saúde. A normatização dos conteúdos e a proposição de práticas são de definição
do Estado. Mesmo existindo flexibilização, o conhecimento é transmitido aos
usuários do SUS com materiais definidos e fornecidos pelo Estado, como folders e
objetos para educação sexual (filmes, preservativos e outros definindo os
conteúdos), por exemplo.
Por meio do diálogo, a educação popular busca possibilitar ao indivíduo, que
esse seja protagonista de sua inclusão social e também busca formar a consciência
de viver democraticamente em uma sociedade impregnada de exclusões, levando
todos, além da discussão crítica, a uma prática inclusiva. A educação popular, ao
cruzar a fronteira de escolarização, busca o resgate da cidadania e a necessidade
de inclusão em todos os sentidos.
A compreensão de que educação é um processo de construção de
conhecimento, o qual tem nas trocas entre os sujeitos e nas suas inserções sociais
seu espaço de concretização, possibilita o protagonismo desses sujeitos no
processo.
Habermas, em sua teoria comunicativa, teoriza que
as comunicações que os sujeitos estabelecem entre si, mediadas por atos
de fala, dizem respeito sempre a 3 mundos: o mundo objetivo das coisas, o
mundo social das normas e instituições e o mundo subjetivo das vivências e
dos sentimentos. As relações com esses 3 mundos estão presentes, ainda
que não na mesma medida, em todas as interações sociais.(GONÇALVES,
1999, p. 132).
31
É a partir desses “três mundos”, que acontecem as trocas entre educando e
educador. Percebemos que é na linguagem e nos signos, que os indivíduos se
identificam e se definem; e é através dessas diferenças que acontecem as
interações.
A linguagem tem papel essencial, pois “a legitimação dos valores-verdade,
correção normativa e veracidade-, não é alcançada por uma racionalidade meio-fim,
mas somente pela argumentação em função de princípios reconhecidos e validados
pelo grupo”. Através da utilização da linguagem, Habermas propõe que as pessoas
interajam e organizem-se socialmente, “buscando o consenso de uma forma livre de
toda coação externa e interna”. (GONÇALVES, 1999, p. 133).
Como educadores precisamos acreditar em possibilidades de mudança, e,
no âmbito de nossa ação profissional, tentar abrir espaços para a
emergência de uma nova racionalidade, que favoreça a reconstrução da
sociedade e a reinvenção da cultura. Esse processo somente será viável no
desenvolvimento de uma ética de responsabilidade social, que embase
ações que visem o bem coletivo, isto é, que tem por objetivo a criação de
possibilidade de vida a todos, incluindo as gerações futuras. (Gonçalves,
1999, p. 131).
3.3 Implicações para a saúde
Podemos considerar a saúde em três pontos de vista: do ponto de vista dos
indivíduos, do ponto de vista do sistema produtivo e do ponto de vista técnico.
(LEFÈVRE; LEFÈVRE, 2004).
Do ponto de vista dos indivíduos, saúde pode ser vista como uma qualidade
de um corpo/mente de um indivíduo, ou como uma parte do mesmo, ou ainda, de
uma soma de indivíduos, percebida por esses ou como bem-estar, ou como
ausência de mal-estar, ausência de doença, ausência de sintomas, ou como
qualquer outro estado considerado saudável, com base em algum critério
socialmente compartilhado, que os indivíduos podem ter, ser, estar, ou obter. Deste
ponto de vista, a saúde pode ser considerada como uma sensação, os indivíduos
sentem que são saudáveis. “Os indivíduos obtém saúde pelo consumo, direto ou
indireto, de algum tipo de produto ou serviço considerado com base ou não em
critério técnicos”. (LEFÈVRE apud LEFÈVRE; LEFÈVRE, 2004, p. 3).
“Do ponto de vista do sistema produtivo, saúde é um dos valores a ser
reificado em mercadorias ou serviços”. A saúde, do ponto de vista técnico, “pode ser
32
vista como um tipo específico de poder ou autoridade no sentido sociológico do
termo”. (BOURDIEU apud LEFÈVRE; LEFÈVRE, 2004, p. 3). “Estas três
perspectivas dão lugar, como seria de se imaginar, a um sistema dinâmico de
relações, onde os pontos de vista se interinfluenciam fortemente”. (LEFÈVRE;
LEFÈVRE, 2004, p. 3).
Diz ele que
o presente modelo triangular pode ser útil para entender a comunicação
social em saúde, no contexto da sociedade brasileira atual, como uma
situação altamente complexa decorrente das interações entre estes grande
sujeitos comunicacionais, que são conhecimento científico, com a sua
perspectiva técnica, o sistema produtivo de bens e serviços de saúde, com
sua perspectivas eminentemente mercadológica e o indivíduo do senso
comum, o portador da saúde e da doença ou o dono do corpo onde
acontece a saúde e a doença. (LEFÈVRE; LEFÈVRE, 2004, p. 7).
No Brasil, o ponto de vista técnico, assumido pelo Ministério da Saúde, é o
compromisso com a humanização no processo saúde-doença, na tentativa de
oportunizar espaços para que aconteça esse sistema dinâmico.
“Humanização como um compromisso das tecnociências da saúde, em seus
meios e fins, com a realização de valores contrafaticamente relacionados à
felicidade humana e democraticamente validados como Bem comum”. Tendo assim,
a pretensão de uma dilatação de “horizontes normativos, capaz de escapar à
restrição da conceituação de saúde ao problema tecnocientífico estrito dos riscos,
disfunções e dismorfias”. (AYRES, 2005, p. 550). Mas por outro lado, quer fugir de
um aumento desmedido desse horizonte, semelhante ao que aconteceu com a
definição da saúde clássica: “estado de completo bem-estar físico, mental e social”
difundidas pela Organização Mundial de Saúde, no final dos anos 70 (ALMA-ATA
apud AYRES, 2005, p. 550).
No Brasil, em 2003, em aditivo à lei orgânica 8.080 do SUS, cria-se a Política
Nacional de Humanização (PNH), e o Ministério da Saúde entende humanização
como a valorização dos diferentes sujeitos envolvidos no processo de produção de
saúde: usuários, trabalhadores e gestores. Os valores que norteiam esta política são
a autonomia e o protagonismo dos sujeitos, a corresponsabilidade entre eles, o
estabelecimento de vínculos solidários e a participação coletiva nas práticas de
saúde. (AZEVEDO, 2010).
O “HumanizaSUS”, como é chamado, tem princípios tais como:
33
Transversalidade
A Política Nacional de Humanização deve se fazer presente e estar inserida
em todas as políticas e programas do SUS. A PNH busca transformar as relações de
trabalho a partir da ampliação do grau de contato e da comunicação entre as
pessoas e grupos, tirando-os do isolamento e das relações de poder hierarquizadas.
Transversalizar é reconhecer que as diferentes especialidades e práticas de saúde
podem conversar com a experiência daquele que é assistido. Juntos, esses saberes
podem produzir saúde de forma mais corresponsável. (PENA; CARVALHO, 2010).
Indissociabilidade entre atenção e gestão
As decisões da gestão interferem, diretamente, na atenção à saúde. Por isso,
trabalhadores e usuários devem buscar conhecer como funciona a gestão dos
serviços e da rede de saúde, bem como participar ativamente do processo de
tomada de decisão nas organizações de saúde e nas ações de saúde coletiva. Ao
mesmo tempo, o cuidado e a assistência em saúde não se restringem às
responsabilidades da equipe de saúde. O usuário e sua rede sócio-familiar devem
também se corresponsabilizar pelo cuidado de si nos tratamentos, assumindo
posição protagonista com relação a sua saúde e a daqueles que lhes são caros.
(PENA; CARVALHO, 2010).
Protagonismo, corresponsabilidade e autonomia dos sujeitos e coletivos
Qualquer mudança na gestão e atenção é mais concreta se construída com a
ampliação da autonomia e vontade das pessoas envolvidas, que compartilham
responsabilidades. Os usuários não são apenas pacientes, os trabalhadores não
apenas cumprem ordens: as mudanças acontecem com o reconhecimento do papel
de cada um. Um SUS humanizado reconhece cada pessoa como legítima cidadã de
direitos e valoriza e incentiva sua atuação na produção de saúde. (PENA;
CARVALHO, 2010).
A Política Nacional de Humanização atua a partir de orientações clínicas,
éticas e políticas, que se traduzem em determinados arranjos de trabalho. O
PNH tem alguns conceitos que norteiam seu trabalho:
(...)
Acolhimento - O que é? Acolher é reconhecer o que o outro traz como
legítima e singular necessidade de saúde. O acolhimento deve comparecer
e sustentar a relação entre equipes/serviços e usuários/populações. Como
valor das práticas de saúde, o acolhimento é construído de forma coletiva, a
34
partir da análise dos processos de trabalho e tem como objetivo a
construção de relações de confiança, compromisso e vínculo entre as
equipes/serviços, trabalhador/equipes e usuário com sua rede sócio-afetiva.
(...)
Gestão Participativa e cogestão O que é? Cogestão expressa tanto a
inclusão de novos sujeitos nos processos de análise e decisão quanto a
ampliação das tarefas da gestão - que se transforma também em espaço de
realização de análise dos contextos, da política em geral e da saúde em
particular, em lugar de formulação e de pactuação de tarefas e de
aprendizado coletivo.
(...)
Ambiência O que é? Criar espaços saudáveis, acolhedores e confortáveis,
que respeitem a privacidade, propiciem mudanças no processo de trabalho
e sejam lugares de encontro entre as pessoas.
Clínica ampliada e compartilhada O que é? A clínica ampliada é uma
ferramenta teórica e prática cuja finalidade é contribuir para uma abordagem
clínica do adoecimento e do sofrimento, que considere a singularidade do
sujeito e a complexidade do processo saúde/doença. Permite o
enfrentamento da fragmentação do conhecimento e das ações de saúde e
seus respectivos danos e ineficácia.
(...)
Valorização do Trabalhador O que é? É importante dar visibilidade à
experiência dos trabalhadores e incluí-los na tomada de decisão, apostando
na sua capacidade de analisar, definir e qualificar os processos de trabalho.
(...)
Defesa dos Direitos dos Usuários O que é? Os usuários de saúde
possuem direitos garantidos por lei e os serviços de saúde devem incentivar
o conhecimento desses direitos e assegurar que eles sejam cumpridos em
todas as fases do cuidado, desde a recepção até a alta. (PORTAL DA
SAÚDE, 2013).
Tais princípios desenham, de modo bastante claro, a Política de Humanização
na qual o sujeito ganha um lugar de destaque e a concepção de práticas
profissionais efetivamente significativas, tanto para os profissionais quanto para os
usuários, fato que possibilitaria uma real produção de saúde com sentido.
Para Pasche (2010), ocorreu de imediato a compreensão de humanização
como
inclusão, como modo de fazer inclusivo e includente. Inclusão, na
perspectiva democrática, significa acolher e incluir as diferenças, a
diversidade e a heterogeneidade das singularidades do humano. Incluir o
outro, o que não sou eu, que de mim estranha, que em mim produz
estranhamento, e que provoca tanto o contentamento e a alegria, como o
mal estar e a tristeza. Portanto, a inclusão produz a emergência de
movimentos ambíguos contraditórios os quais devem ser sustentados por
práticas de gestão que suportem o convívio da diferença e a partir dela
sejam capazes de produzir o comum, que pode ser traduzido como projeto
coletivo. (PASCHE, 2010, p. 25).
Para incluir o outro, requer-se uma análise crítica daquilo que se leva para o
relacionamento. Assim, assume-se a posição de que toda relação é contestada, que
35
nos leva a pensar no compromisso que será formado e nas tarefas contatadas. Por
consequência é admitido como autêntico, “considerando determinados pressupostos
éticos e diretrizes políticas”. Portanto, a maneira como é feita a inclusão, não
demonstra um interesse ingênuo aquilo que o outro traz de si,
mas em uma atitude generosa, de acolher estas manifestações para,
imediatamente, confrontá-las com a multiplicidade dos interesses do outro,
do coletivo, para possibilitar a construção de processos de negociação, de
composição de contratualidades considerando orientações éticas, no caso,
daquilo que é desejável e aceitável no plano do cuidado do outro.
(POSCHE, 2010, p. 25).
Podemos destacar duas principais marcas identitárias da cultura biomédica,
ainda que já tenham sido bastante discutidas e abordadas, não se esgotaram. A
supervalorização da abordagem da doença no processo de cuidado é a primeira,
“em contraponto à valoração dada ao sujeito que sofre”. A segunda seria
o desequilíbrio entre o que se identifica como tecnicismo em detrimento da
importância dos critérios intersubjetivos, interpretativos, intuitivos
construídos a partir da experiência dos sujeitos e das trocas narrativas no
encontro clínico. (FERREIRA apud DESLANDES; MITRE, 2009, p. 645).
Tento interagir com os usuários para, em um processo de troca de saberes,
reinterpretar o conhecimento do processo saúde-doença junto às pessoas.
Sabedores do que nos compõem, sobre o relativismo dos poderes e o entendimento
de como acontecem as relações, é possível potencializar este intercâmbio entre o
técnico e o empírico. Uma relação entre sujeitos e não sujeito-objeto. A educação em
saúde tenta ocupar esse espaço.
Baseando-me nos princípios do SUS – integralidade, equidade, universalidade,
direito à informação, descentralização de poder e participação popular a partir de
minha prática médica –, procurei integrar-me ao processo de implementação do SUS
e à fomentação da educação em saúde.
Violência, drogadição, miséria, pedofilia, abuso sexual, corrupção, injustiças
sociais, etc., ficaram como graves manifestações da desorganização social e são,
muitas vezes, a realidade com a qual convivo. O indivíduo saudável, mental e
fisicamente, traz benefícios para a sociedade e vice-versa. É preciso, entretanto, que
nós, médicos, nos capacitemos para colaborar nesse processo plural, multicultural,
diversificado, multifacetado, inter-relacionado e interdependente.
36
Segundo a Oitava Conferência Nacional de Saúde (BRASIL, 1986), o conceito
de saúde é:
Em seu sentido mais abrangente, a saúde é a resultante das condições de
alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho,
transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a
serviços de saúde. É, assim, antes de tudo, o resultado das formas de
organização social da produção, as quais podem gerar grandes
desigualdades nos níveis de vida.
Procurei interpretar, por meio da hermenêutica, o entendimento das pessoas
com quem interagi, em meus 30 anos de profissão, sobre o processo saúde-doença
e como esse entendimento se manifesta nos modos de existência e convívio.
Para Ayres (2007, p. 60), saúde é
a busca contínua e socialmente compartilhada de meios para evitar,
manejar ou superar de modo conveniente os processos de adoecimento, na
sua condição de indicadores de obstáculos encontrados por indivíduos e
coletividades à realização de seus projetos de felicidade.
Penso que saúde é uma abstração individual de necessidades individuais para
se alcançar felicidade. É um estado de contínua busca por um sentido de vida, um
conceito individual de prazer. Ela é multifatorial, multidimensionada e em contínua
mutação e interação com seu contexto histórico.
A percepção de que saúde é multifatorial - determinada pelas interpretações
individuais e pelas simbolizações de vontades e sentidos - e o dimensionamento dos
efeitos disso sobre a pessoa, possibilita a sensação de sentir-se saudável. O saber
médico necessita responder à questão sobre o que é ser saudável; precisa conhecer
tanto a concretude quanto a interpretação do real, para então compartilhar o
entendimento de como é ser saudável e de como fazer para ser saudável.
Para que as ciências médicas possam transcender o conceito biologicista de
saúde como ausência de doença, é necessário que interprete a significância do
conceito de saúde para o indivíduo. No momento em que se entende essa
significância, aumenta muito a sua resolutividade. Em meu entendimento, a interface
entre os conhecimentos técnicos e os conhecimentos populares, se dá a partir da
educação em saúde. Ela oportuniza que, por meio do diálogo, sejam reinterpretados
os conceitos sobre saúde e seus determinantes, além de se definir como ser
saudável e ser feliz, necessitando, muitas vezes, de uma mudança de
37
comportamento por parte das pessoas envolvidas nessa busca pela felicidade.
(AYRES, 2007).
38
4 NARRATIVAS E INTERPRETAÇÕES
As três subseções que seguem, apresentam, respectivamente, três ensaios
teóricos desenvolvidos a partir de narrativas das três décadas de trabalho nas quais
venho constituindo minha profissionalidade como médico/educador, no campo da
Educação em Saúde.
Nomeio como ensaio, não propriamente a “forma” ou o “estilo” do texto, mas
a operação que o constitui, reveladora de uma atitude hermenêutica, onde são
indissociáveis a escrita, o pensamento e própria a existência. Trata-se de algo
próximo do que Larrosa (2004a) chama de uma “operação-ensaio”:
o ensaio é uma determinada operação no pensamento, na escrita e na vida,
que se realiza de diferentes modos em diferentes épocas, em diferentes
contextos e por diferentes pessoas. [...] o ensaio é o modo experimental do
pensamento, o modo experimental de uma escrita que ainda pretende ser
uma escrita pensante, pensativa, que ainda se produz como uma escrita
que dá o que pensar; e o modo experimental, por último da vida, de uma
forma de vida que não renuncia a uma constante reflexão sobre si mesma, a
uma permanente metamorfose. (LARROSA, 2004a, p. 32).
Nos ensaios que seguem, dou a ver, efetivamente, o trabalho da pesquisa
hermenêutica, que consistiu em favorecer o diálogo entre as experiências
recuperadas pela memória, o trabalho de busca por linguagens capazes de
encarnar os efeitos da rememoração e, por fim, o efeito daquilo que resultou
narrado sobre meus interlocutores.
4.1 Os anos 1980... Formação inicial e primeiros sobressaltos
Vinheta 1 - Éramos estudantes de medicina nesta época. Me formei em
1982 e terminei residência médica em pediatria em 1984. Como em tudo, a
maturação de um profissional de saúde é lenta e determinada pelas
experiências e trocas com o outro. Procurávamos ouvindo poder dizer e
nesta troca chegar a uma nova interpretação da vida que auxiliasse na
conscientização dos determinantes da estruturação do indivíduo e com isso
poder ter autonomia de escolha. A formação universitária não nos
oportunizou muitas experiências além das vividas nos ambulatórios e
hospital da própria Universidade. Tivemos que ir em busca de outros
caminhos. Cursei a faculdade na UFSM, morávamos em Santa Maria/RS,
cidade com uma grande concentração de militares, uma Universidade
Federal, comércio e serviços, portanto sem muita oportunidade de
empregos para pessoas sem formação. Em 1977 fomos convidados para
constituir um núcleo do CEBES em Santa Maria, RS. Fui eleito vicepresidente do núcleo. Tínhamos como incumbências realizar reuniões
reflexivas e propositivas sobre saúde e vender a revista Saúde em Debate.
Existiam poucos espaços para discussões. Reunião era subversão, e para
39
nós o possível eram discussões sobre “saúde”. Discutíamos os
determinantes da estrutura social sobre a saúde dos indivíduos. Nosso
grupo era formado basicamente por médicos recém-formados e estudantes
de medicina, o meu caso. (NARRATIVA AUTORREFERENTE)
Até o inicio da década de 1970, a assistência à saúde, existente no Brasil,
quase que se resumia à medicina curativa praticada nos consultórios particulares,
nos hospitais e nos grandes ambulatórios da Previdência Social. A medicina
preventiva e a educação em saúde eram atividades feitas por órgãos ou pessoas
isoladas, sem muitos recursos. A partir dessa época, muitas mudanças passaram a
ocorrer nos órgãos de saúde brasileiros. Os movimentos populares, que haviam
sido intensa e violentamente reprimidos pelos primeiros governos militares após a
revolução de 1964, começavam a se rearticular e a crescer, reivindicando melhores
condições de vida. O ano de 1974 foi marcante na expressão da crescente
insatisfação popular, pois o partido de oposição (MDB) conseguiu sua primeira
vitória parcial. A população vai aos poucos percebendo que o grande crescimento
da economia havia ocorrido à custa da piora de condições de vida.
Diante da ameaça de quebra de estabilidade social, o Estado brasileiro é
obrigado a preocupar-se mais com os problemas de saúde, educação, habitação e
saneamento da população. Mas a crise econômica já se iniciava, tornando
escassos os recursos financeiros disponíveis. Como levar a assistência médica a
parcelas crescentes da população, cada vez mais exigentes de seus direitos à
saúde, sem aumentar muito as despesas financeiras? A medicina curativa praticada
nos hospitais, nos consultórios e ambulatórios, com seus aparelhos sofisticados e
seus numerosos especialistas, já vinha assustando pelo seu preço cada vez mais
alto. Foi preciso encontrar um modelo alternativo de assistência médica. A Medicina
Comunitária, que já vinha sendo colocada em prática em outros países do mundo,
logo se mostrou a mais adequada às necessidades políticas do momento. O
modelo de Medicina Comunitária, na medida em que pregava a utilização de
técnicas simplificadas, de baixo custo e com participação da população, era bem
mais barata. Além disso, a valorização de ações preventivas e de alcance coletivo,
ao invés das ações unicamente individuais da medicina curativa, aumentava a sua
eficiência. Assim, as políticas de saúde do governo brasileiro foram criando projetos
cada vez maiores de expansão da medicina às populações mais pobres, dentro da
filosofia da Medicina Comunitária. Hoje são numerosos os centros e postos de
40
saúde espalhados pelos bairros, povoados e áreas rurais de todo o Brasil. São os
serviços de Atenção Primária à Saúde, pensados, atualmente, na forma de
Estratégia de Saúde da Família (ESF).
Vê-se claramente, que a formação médica nos anos 1970 respondia muito
timidamente a tais transformações e ao modelo da saúde comunitária, restringindose apenas a ações isoladas de estudantes mais engajados politicamente. A
formação “oficial” refletia a perspectiva predominante de currículos fortemente
tecnicistas e com pouquíssimos espaços para a formação humanística e sóciohistórica.
Ocorre que nestes novos serviços, os profissionais de saúde passaram a
conviver mais de perto com os problemas das classes populares. Novas formas de
atuação foram organizadas. Porém, a escassez de recursos a eles destinados e a
falta de referência sólida na formação médica inicial, tornou esta prática médica
muito limitada. Os baixos salários de seus profissionais e a quase ausência de
acompanhamento educativo, deixou-os desmotivados e não adaptados às novas
funções. Além disso, esses serviços foram transformados em oportunidades de
obtenção de votos, em função das constantes interferências dos políticos.
Este descaso e esta utilização eleitoreira dos novos serviços de saúde,
destinados aos trabalhadores por parte do governo, gerou, entretanto, muitos
descontentamentos. Associações de bairro, sindicatos e comunidades eclesiais de
base, começaram a lutar por melhorias desses serviços. Além disso, foram criados
comitês populares de saúde, que por sua vez, passaram a participar do
planejamento de suas atividades. Em muitas regiões, os profissionais de saúde se
organizaram em associações profissionais e sindicatos bastante reivindicativos. Um
grande número de médicos, enfermeiros, dentistas, descontentes com a prática
médica especializada, tecnificada e mercantilizada exercida nos hospitais e clínicas
privadas, passaram a buscar nos serviços de medicina Comunitária em
implantação, um espaço para a construção de uma medicina mais adequada às
classes populares. Começa então a surgir um número crescente de experiências,
onde seus profissionais e os movimentos populares se aliam na luta pela criação de
uma medicina mais apropriada aos seus interesses. Como consequência deste
processo, no inicio da década de 1980, surge o Movimento Popular de Saúde, uma
tentativa de articular uma rede de troca de conhecimentos entre estas experiências
alternativas de Medicina Comunitária, que cresciam em todo país.
41
A análise da prática destes centros e postos de saúde, onde seus
profissionais e os movimentos populares têm conseguido reorientar o descaso e a
utilização eleitoreira, pelo governo, dos serviços de saúde destinados aos
trabalhadores, tem revelado uma rica experiência em educação popular. Suas
atividades têm ajudado tanto os profissionais como a população, a compreenderem
melhor as raízes de seus problemas de saúde e a buscarem novos modos de viver
e de se relacionarem com a natureza e com a sociedade.
Educação em saúde vem sendo entendida, por muitos, como uma maneira
de fazer as pessoas do povo mudarem alguns comportamentos prejudiciais à
saúde. Para muitos, educar para a saúde é levar para a população, a compreensão
a
as
soluções
corretas
que
os
profissionais
conscientes,
politizados
e
conhecedores da ciência, já descobriram. É conscientizar o povo que ainda não se
conscientizou. No entanto, quanto mais estudamos a realidade de vida da
população, tanto mais percebemos como o saber popular, antes de ser um saber
“rudimentar”, é um saber bastante elaborado, com ricas estratégias de
sobrevivência e com grande capacidade de explicar parte da realidade. Ao mesmo
tempo, está cada vez mais claro como o saber dos cientistas e dos técnicos está
encharcado dos interesses das classes dominantes é ainda muito limitado para
explicar toda variedade da realidade. Assim, só cabe entender a educação em
saúde baseada no diálogo, ou seja, na troca de saberes. Um intercâmbio entre o
saber científico e o popular em que cada um deles tem muito a ensinar e aprender.
(VASCONCELOS, 2001).
A formação médica na atualidade, está organizada a partir de um modelo
técnico-científico. “No entanto, na contemporaneidade surgem propostas orientadas
por um projeto ético-humanista que tencionam esse modelo com vistas a sua
transformação”. (NOGUEIRA, 2009, p. 262).
Compreende-se que a designação de “novos cenários de prática, a
valorização das dimensões psicossocial e antropológica do adoecer e a
incorporação de tecnologias relacionadas na formação médica”, tornam possível
outro olhar sobre os “aspectos subjetivos” do estar doente, dando lugar a outro tipo
de compreensão, ampliando o “processo saúde-doença”. (NOGUEIRA, 2009, p.
262).
42
Estudos e avaliações do ensino médico no Brasil contemporâneo, contudo,
mostram que a maioria dos cursos de medicina se encontra ainda
1
organizada de acordo com as proposições do Relatório Flexner . Com a
reforma universitária de 1968, o conteúdo curricular das escolas médicas
ajustou-se ao modelo flexneriano, que tornou obrigatório o ensino centrado
no hospital e oficializou a separação entre ciclo básico e profissional.
Embora essa reformulação tenha modernizado o ensino médico, ao propor
uma formação com base científica, nele imprimiu características
mecanicistas, biologicistas e individualizantes. Assim, ficou estabelecido um
modelo formador que fragmentava o conhecimento por meio de estudo do
corpo humano, segundo órgãos e sistemas, estimulava a espacialização
profissional e atendia aos interesses do complexo médico-industrial.
(NOGUEIRA, 2009, p. 263).
Surge no Brasil, na segunda metade da década de 1970, um grande ator
social coletivo, que foi chamado de Movimento Sanitário e se caracterizou por lutar
contra a ditadura, contra a forma de zelo do complexo médico-industrial e a “favor
da necessidade de associar a saúde pública e a assistência medica em um só
ministério”. (NOGUEIRA, 2009, p. 263).
Entretanto, apenas:
A partir da realização da 8º Conferência Nacional de Saúde, em 1986,
desenhou-se, então, o projeto de construção de um sistema público de
saúde pautado numa concepção ampliada de saúde e no lema – ‘A saúde
de como direito de todos e dever do Estado’. A aprovação da nova
constituição de 1988 e das leis Orgânicas em 1990 garantiu legalmente o
SUS dentro dos princípios de universalidade, integralidade, equidade,
hierarquização da assistência e participação da comunidade. […] Em 2001,
como resultado de uma parceria entre os ministérios da saúde e da
educação, é lançado um programa de incentivos às mudanças nos cursos
de medicina - o Promed. (NOGUEIRA, 2009, p. 264).
O Promed propõe-se a dar assistência técnica e financeira às escolas
médicas, dispostas a fazer crescer os processos de transformação que busquem
uma articulação com os serviços de saúde, a adoção de metodologias ativas de
formação em saúde e uma atitude crítica e humanista do profissional médico. Além
desse programa, no Brasil, políticas mais recentes, como por exemplo,
os Polos de educação Permanente em Saúde e Educação e o Aprender
SUS, aproximam os ministérios da saúde e educação na coordenação de
ações que visam encurtar distâncias entre as escolas médicas, os serviços
e a comunidade. (NOGUEIRA, 2009, p. 264).
1Relatório Flexner: é considerado o grande responsável pela mais importante reforma das escolas
médicas de todos os tempos nos Estados Unidos da América (EUA), com profundas implicações para
a formação médica e a medicina mundial.
43
O SUS é considerado como principal campo de emergência de novas
demandas que fomentaram as transformações na formação médica. Entre as
primordiais questões que definirão uma concepção nova para a política de
formação de recursos humanos para o SUS, destacam-se:
- o ensino centrado no processo de trabalho e no princípio da integralidade
das ações em saúde; - a inserção do aluno na realidade social e sanitária
da população para um acompanhamento do processo saúde-doença em
suas mais variadas formas e manifestações; - a diversificação dos cenários
de aprendizagem-comunidade, família, unidades básicas de saúde, etc. - e
o deslocamento do hospital como único espaço de aprendizagem; - a
perspectiva da formação em saúde inserida na transdisciplinalidade e na
intersetorialidade; - a valorização das dimensões psicossocial e
antropológica do adoefer; a incorporação das tecnologias leves, visando
melhor atuação frente aos aspectos subjetivos e singulares do adoecimento
humano e a construção de uma clínica ampliada, capaz de lidar com a
polaridade entre a ontologia das doenças e a singularidade dos sujeitos.
(NOGUEIRA, 2009, p. 264).
Os anos 1980 em Santa Maria/RS, no curso de Medicina e nos primeiros
movimentos de aproximação efetiva com o paradigma da saúde coletiva nascente,
constituíram um rico laboratório de ruptura com a racionalidade médica
predominante, francamente instrumental e nada comunicativa.
Foi no inicio do século XIX, que deu-se o surgimento da racionalidade
médica moderna, com a chegada da “anatomia patológica, vem se consolidando o
projeto de situar o saber e a prática médica no interior do paradigma das ciências
naturais”. Nogueira (2009, p. 265) refere que
a medicina fez sua opção pela naturalização de seu objeto - a complexidade
e a singularidade do adoecimento humano - por meio do processo de
objetivação, ou seja, o de fazer surgir a objetividade da doença, com a
exclusão da subjetividade e a construção de generalidades.
Na biomedicina, verificou-se a prioridade da objetividade conduzida até as
“últimas consequências: sem lesão objetiva não há diagnóstico e, com isso, há um
processo de exclusão de pacientes que não se enquadram nas normas das
categorias diagnósticas”. (NOGUEIRA, 2009, p. 265).
Nessa perspectiva, foram obtidos progressos, mas entende-se que esse
“modelo de medicina baseado preponderantemente no objetivismo trouxe algumas
consequências indesejáveis e geradoras de impasses para a prática médica, ao
44
excluir as dimensões subjetivas do adoecer humano”. A relação entre paciente e
médico ficou marcada pela contradição de duas leituras diferentes sobre o
adoecimento, com a nítida prevalência do saber técnico sobre as concepções e
interpretações fenomenológicas do adoecer. (NOGUEIRA, 2009, p. 265).
A biomedicina tenta se adaptar ao modelo sustentado e idealizado pela
ciência, construindo um “imaginário científico”. No entanto, não se pode afirmar
sem se ver com dilemas epistemológicos bastante graves, que a atividade do
médico é “científica”. A clínica se ancora nas ciências biológicas e o médico as
utiliza como bases biológicas, como subsídio para um julgamento de valor e uma
intervenção terapêutica. Cada vez mais, se sabe que o processo saúde-doença
não pode ser devidamente explicado sem os referenciais das ciências humanas e
sociais.
Vinheta 2 – Decidimos que “deveríamos ir até onde o povo está” e através
de contatos com movimentos sociais e igreja foram combinados encontros
com moradores das vilas para discussões sobre saúde. Certa vez me coube
falar sobre educação sexual numa associação de vila. Era sábado à noite,
havia chovido todo dia e mesmo que numa rua escura e embarrada não
tínhamos receio, pois era um “acontecimento” quando os “doutores” fossem
dar uma “palestra”. Eram poucos os assuntos que se podia discutir e este
sempre despertava interesse. O pequeno espaço de reuniões estava cheio
e a maioria dos participantes eram adolescentes e suas mães. Mesmo que
a reunião não versasse sobre problemas estruturais da vila a troca de
saberes e a diversidade de linguagens foi muito estimulante para nós.
Conversamos tanto sobre o corpo como sobre preocupações culturais tais
como “lavar a cabeça naqueles dias enlouquece”, “engravida usar a toalha
dos rapazes” e por aí vai... Os jovens questionaram sobre fisiologia e
anatomia principalmente, mas com as mães a discussão foi sobre
contracepção. Uma sintetizou dizendo que elas não queriam ter tantos
filhos, pois era muito difícil alimentá-los e criá-los, “sempre tem um com
fome e outro doente. Se tem médico, não tem remédio!” Ou ainda... “Para
nós é difícil conseguir ‘comprimido’ e os homens não querem usar
camisinha”, concluiu. A preocupação com a linguagem foi importante para
mim, pois possibilitou que o entendimento acontecesse. Apesar de
predominar uma abordagem de “instrução” com base em saberes técnicocientíficos, o diálogo com as populações se mostrava como a grande
alternativa para uma ação efetiva de mudança das condições de vida. As
particularidades de linguagem foram entendidas e o diálogo transcorreu com
novos aprendizados. Lembro-me da sensação que tive após despedidas e
apertos de mãos. Foi à reunião mais “séria” da qual participei. Os únicos
homens adultos éramos nós. Eram tempos obscuros aqueles, uma reunião
era sempre cercada de preocupações, pois para o regime militar “gostar do
povo” era subversão. Ser lumpen e classe baixa era uma contingência do
capitalismo. Eles e nós deveríamos ficar longe do povo. (NARRATIVA
AUTORREFERENTE).
A educação é um processo de humanização que se dá ao longo de toda a
vida, de muitos modos diferentes, ocorrendo em casa, na rua, no trabalho, na igreja,
45
na escola, entre outros. Além de um processo infinito, que acontece em múltiplos
espaços e diferentes situações da vida, compreende-se que a educação está ligada
à aquisição e articulação do conhecimento popular e científico, entendido como uma
reorganização, incorporação e criação do conhecimento. (AYRES, 2007).
A linguagem faz com que os signos de um grupo sejam constituídos,
entendidos e transmitidos. “A educação não é um tesouro que se perde ao ‘entregar’
a outros. Ao contrário, é um tesouro que aumenta, ao ser repartido”. (GADOTTI, s/a,
p. 22).
Um dos princípios originários da educação popular tem sido a criação de
uma nova epistemologia baseada no profundo respeito pelo senso comum
que trazem os setores populares em sua pratica cotidiana, problematizandoo, tratando de descobrir a teoria presente na prática popular,
problematizando-a, incorporando-lhe um raciocínio mais rigoroso, cientifico
e unitário. (GADOTTI, s/a, p. 24).
Num paradigma teórico, a educação popular tem-se construído. Trata-se de
“codificar e descodificar os temas geradores das lutas populares”, pretende-se
assim, cooperar com os “movimentos sociais e os partidos políticos que expressam
essas lutas”. Diminuindo assim a pobreza com o impacto da crise social, “dar voz à
indignação e ao desapego moral do pobre, do oprimido, do indígena, do camponês,
da mulher, do negro, do analfabeto e do trabalhador industrial”. (GADOTTI, s/a, p.
24).
Conforme Gadotti (s/a, 24-25):
A ênfase nas condições gnosiológicas da prática de educação; a educação
como produção e não meramente como transmissão de conhecimento; a
luta por uma educação emancipadora que suspeita do arbitrário cultural o
qual, necessariamente esconde um momento de dominação; a defesa de
uma educação para a liberdade, precondição da vida democrática; a recusa
do autoritarismo, da manipulação, da ideologização que surge também ao
estabelecer hierarquias rígidas entre o professor que sabe (e por isso
ensina) e o aluno que tem que aprender (e por isso estuda); a defesa da
educação como um ato de diálogo no descobrimento rigoroso, porém, por
sua vez, imaginativo, da razão de ser das coisas: a noção de uma ciência
aberta às necessidades populares e um planejamento comunitário e
participativo.
A humanidade possui uma característica fundamental que é a diversidade.
Deve-se educar para os mundos possíveis, educar para conscientização, para
desfetichar, para desalienar. “O fetichismo da ideologia neoliberal é o fetiche da
46
lógica burguesa e capitalista que consegue solidificar-se a ponto de fazer crer que o
mundo é naturalmente imutável”. (GADOTTI, s/a, p. 26).
O que compreendíamos naqueles anos de 1980, era o fato de que seria
indispensável estar junto das comunidades para poder, efetivamente, compreender
suas necessidades que, em última análise, eram também as nossas, filhos de
famílias não muito distantes daquela realidade. Começava a desfazer-se a
“idealização” do saber médico como dono da verdade e saída única para as
problemáticas da população. O diálogo, cada vez mais próximo das comunidades,
fazia compreender a precariedade do discurso científico quando se tratava de
transpô-lo para o cotidiano, para a vida diária, para os dramas encarnados pelas
populações em sua condição ativa de recriadores e intérpretes do discurso científico.
Dialogar era, ao mesmo tempo, a perspectiva de uma saída para a impotência dos
saberes técnicos em sua pretensão de superioridade, e uma via de ampliação de
nosso repertório humano e social. Começávamos a nos encontrar com o que a
formação universitária não nos havia oferecido: a dimensão concreta e hermenêutica
do sofrimento humano. De certa maneira, pode-se dizer que encontrávamos
caminhos possíveis para romper com o fetichismo da superioridade científica que a
medicina universitária nos havia seduzido.
O fetichismo transforma as relações humanas em fenômenos estáticos,
como se fossem impossíveis de serem modificadas. Fetichizados somos
incapazes de agir porque o fetiche rompe com a capacidade de fazer.
Fetichizados apenas repetimos o já feito, o já dito, o que já existe. Educar
para outros mundos possíveis é educar para a emergência do que ainda
não é, o ainda-não, à utopia. É também educar para a ruptura, para a
rebeldia, para a recusa, para dizer “não”, para gritar, para sonhar com outros
mundos possíveis. (GADOTTI, s/a, p. 26).
A educação é concebida no neoliberalismo, como uma mercadoria, “reduzindo
nossas identidades às de mero consumidores, desprezando o espaço público e a
dimensão humanística da educação”. A intertransculturalidade é promovida pela
educação de outros mundos possíveis, respeita e valoriza a diversidade e convive
com a diferença. A negação do sonho e da utopia é o núcleo central da concepção
neoliberal da educação. (GADOTTI, s/a, p. 26).
No governo militar brasileiro, com esvaziamento dos partidos políticos e
sindicatos, a população busca, aos poucos, novas formas de resistência. A Igreja
Católica, que até então conseguira se preservar da repressão política, agora apoia
47
este movimento, “possibilitando o engajamento de intelectuais de diversas áreas”.
(VASCONCELOS, 2001, p. 68).
Sistematizado por Paulo Freire, o método de Educação Popular se torna
norteador da relação entre classes populares e intelectuais. “Muitos profissionais da
saúde, se engajaram nesse processo”. Essas experiências fazem com que
intelectuais tenham acesso e começam a “dinâmica de luta e resistência de classes
populares”. Assim, a participação de profissionais de saúde nas experiências de
Educação Popular, a partir dos anos 70 [e para nós estudantes nos anos 80 e
seguintes], trouxe para o setor de saúde uma cultura de relação com as classes
populares, que representou uma ruptura de relação com a tradição autoritária e
normatizadora da educação em saúde, como mera forma de instrução desde a
“superioridade” dos saberes técnicos. (VASCONCELOS, 2001, p. 68-69).
“A Educação Popular é um modo de participação de agentes eruditos
(professores, padres, cientistas sociais, profissionais de saúde e outros), e de
agentes
sociais
do
povo
neste
trabalho
político”.
Ela
procura
trabalhar
pedagogicamente com os indivíduos e os grupos envolvidos no processo de
participação popular, promovendo maneiras de aprendizado coletivo e estimulando o
“crescimento da capacidade de análise crítica sobre a realidade e o aperfeiçoamento
das estratégias de luta e enfrentamento. É uma estratégia de construção da
participação popular no redirecionamento da vida social”. O fato de tomar como
ponto de partida no processo pedagógico, o saber anterior que o educando traz,
torna-o um elemento fundamental do seu método. (VASCONCELOS, 2001, p. 71).
Vinheta 3 – A vida estudantil foi aos poucos nos absorvendo. O longo
aprendizado de medicina, são 6 anos de faculdade mais 2 anos de
residência médica, acontece no inicio da vida adulta e acarreta demandas
como aulas em 2 ou 3 turnos, plantões, seminários... À medida que íamos
nos formando o CEBES foi diminuindo e os mais jovens foram para o ME.
Eu, por exemplo, participei mais ativamente dele até o 3° ano da faculdade.
Participei do ME no diretório acadêmico até o 5° an o quando fui eleito Sec.
Geral. Resolvi não concluir o mandato, pois percebi que havia chegado a
hora de me dedicar exclusivamente à medicina. Dezembro de 82, há 30
anos, me formei em medicina, fui selecionado para a residência médica em
pediatria e fiquei sabendo que iria ser pai pela 1° vez (tenho 2 filhos).
Mesmo sabendo que o aprendizado de medicina é contínuo, a sensação de
incapacidade é grande e apostei na residência médica, pois assim tive mais
2 anos para o exercício dela supervisionado pelos professores. Para mim a
pediatria possibilitaria compartilhamentos com as famílias e melhor
entendimento dos determinantes sociais na saúde da criança. Afinal as
pessoas se mobilizam mais quando os filhos são afetados. A residência
médica é uma especialização onde temos as responsabilidades de médicos
e o aprendizado de estudantes. Estávamos em 1984, período de crise
48
econômica e o Brasil se mobilizava pela redemocratização. Começaram a
aparecer os reflexos na universidade e tínhamos receio que comprometesse
o ensino e assistência da faculdade. Tivemos reuniões com professores,
com estudantes, e encaminhamos nossa preocupação para os órgãos
competente da Universidade. A situação agravou, tivemos sucessivas
assembleias onde apareciam cada vez mais relatos da carência de
manutenção e reposição de material de consumo para a estrutura. A penúria
foi se prolongando e a nossa indignação também. Num entardecer fomos,
com um frio na barriga, para a assembleia que aconteceu no saguão da
Reitoria. Fiquei com a impressão de que só os que estavam doentes não
foram. Avistamos pessoas estranhas também. Lembro que falava do
descaso do governo Figueiredo com a população que utilizava a estrutura
da Universidade e a Educação, quando silenciei alguns instantes. O silêncio
era sepulcral quando alguém grita GREVE NELES, logo efusivamente
aplaudida. Fizemos a votação e quase que unanimemente entramos em
greve pedindo verbas para a Educação. Eram raras as greves até então e
naquela noite os bares faturaram mais que nunca na cidade. Ao amanhecer
a notícia teve impacto, distribuímos panfletos explicativos para população,
demos entrevistas no jornal, nas rádios e televisão. A greve foi nacional e
após três meses de intensas negociações com a Reitoria e com o Ministério
da Educação encerramos o movimento quando houve a suplementação de
verbas para as Universidades e foi reposto tudo que faltava para o bom
atendimento. (NARRATIVA AUTORREFERENTE).
O movimento social pela saúde, em 1970, se deu a partir de uma articulação,
em parte, estabelecida por um “pensamento crítico, definido por Escorel (1987)
como de caráter contra hegemônico”, efetivador das propostas de mudanças do
Sistema de Saúde estabelecido pelo regime autoritário, que concretizava a
“hegemonia da política de mercantilização de medicina” comandada pela
Previdência Social. (TEIXEIRA; MENDONÇA, 2006, p. 214).
A elaboração do II Plano Nacional de Desenvolvimento para o período de
1974 a 1979, indicou o reconhecimento de que o desenvolvimento social deve
andar, conjuntamente, com o desenvolvimento econômico e que para que isso
aconteça, é preciso progredir “na definição de políticas socais, com objetivos
próprios”. Referindo-se, em especial, aos problemas relacionados à área da
educação e saúde, que avançaram correspondentemente aos avanços econômicos
do país. Em 1974, foi criado o “Conselho de Desenvolvimento Social para
acompanhar a implementação das diretrizes do PND”. As linhas centrais do II PND e
as orientações nele definidas, foram as bases nas quais se assentaram as
transformações que o setor atravessou ao longo do governo Geisel. (ESCOREL
apud TEIXEIRA; MENDONÇA, 2006, p. 215).
Para Teixeira, (idem) essas transformações aconteceram
49
a partir de uma nova organização institucional para o setor: criação do
Ministério de Previdência e Assistência Social (1974), responsável pela
assistência médica governamental; a lei do Sistema Nacional de Saúde que
sacraliza a dicotomia do sistema, dando ao Ministério da Saúde caráter
eminentemente normativo e ações na área do interesse coletivo, e dando ao
MPAS a responsabilidade pelo atendimento médico individualizado.
A Previdência Social foi reforçando o modelo privatizante, que ao mesmo
tempo abriu espaço dentro da nova ordenação institucional para a discussão das
ações governamentais de saúde, tornando possível a organização de “programas
através
dos
quais
o
Movimento
Sanitário,
com
habilidade
política,
foi
experimentando suas propostas de forma localizada e marginal”. A utilização da rede
pública para uma atenção integral; a introdução de mecanismos de planejamento na
administração dos serviços; a introdução da perspectiva da cogestão entre órgãos
públicos; a participação dos profissionais e da população no controle da gestão de
serviços, foram as principais diretrizes desses programas. (TEIXEIRA; MENDONÇA,
2006, p. 215).
As instituições, como o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde - CEBES,
aparecem ainda no contexto ditatorial, mas já caracterizado pela reestruturação dos
movimentos sociais. Sua criação se deu por profissionais de saúde em 1976. “Esta é
a organização que vai apoiar a condução, em nível nacional, do processo de
divulgação, discussão e politização da proposta de reorganização do Sistema Único
de Saúde, a partir de redemocratização da saúde”. (TEIXEIRA; MENDONÇA, 2006,
p. 215-216).
Segundo os mesmos autores, o CEBES também se constituiu pela articulação
com outros movimentos sociais e dentro do próprio setor, como o sindicato dos
médicos e demais profissionais da saúde, outras entidades corporativas médicas e
com movimento sindical e popular.
A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), por sua vez, se
constituiu em 1979, em torno da crítica do modelo assistencial e das propostas de
sua reorganização e construção do SUS, passando a ocupar, até os dias de hoje,
um espaço de organização e diálogo permanente da prática acadêmica.
A Previdência Social ficou marcada, na década de 1980, por uma profunda
crise financeira, dada ao seu modelo de prestação de serviços, “e que exigia do
governo uma solução. Naquele momento, o Plano Prev-Saúde, que ‘incorpora as
principais teses de descentralização, hierarquização, regionalização e (dá) ênfase
50
aos serviços (básicos) de saúde’” (Rodrigues Neto apud Teixeira; Mendonça, 2006,
p. 216), configurando assim, a tentativa de incorporar novas propostas no
movimento à política pública.
Esse plano não chegou a ser posto em prática, porém,
observou-se a incorporação de alguns intelectuais do Movimento Sanitário
na burocracia estatal, buscando solução para a crise. No final de 1981, a
Presidência da república cria o Conselho Nacional de Administração da
Saúde Previdenciária - CONASP - criando um foro na instituição para o
confronto dos diferentes interesses em busca de resolver a crise da
previdência, principalmente quanto à necessidade de redução dos gastos
com a saúde. O trabalho do CONASP se consubstanciou num plano de
Reorientação da Assistência Médica da Previdência (agosto/1982), que
propunha oficialmente modificações no modelo privatizante, tais como
descentralização e utilização dos serviços públicos federais, estaduais e
municipais na cobertura assistencial da clientela. Dentro dele, o projeto
Ações Integrais de Saúde – AIS - avançou na adoção dos princípios de
universalidade, de equidade e integração dos serviços de saúde.
(RODRIGUES NETO apud TEIXEIRA; MENDONÇA, 2006, p. 216)
Politicamente, o Plano do CONASP surgiu numa conjuntura em que o
processo democrático vinha avançando e se realizavam modificações na correlação
de forças político-partidárias, após as eleições estaduais para governadores no final
de 1982. Em 1983, observa-se o crescimento do movimento pelas eleições diretas.
Assim, as AIS, em 1983/1984, podem assumir o caráter de uma proposta estratégica
intergovernamental, ou seja, que contemplava os interesses mais gerais dos novos
governos estaduais e municipais, extrapolando a perspectiva exclusiva da
Previdência e do poder central. As AIS aumentam a permeabilidade do aparelho do
Estado às propostas reformadoras.
Paim (apud Teixeira; Mendonça, 2006, p. 217) caracteriza as
AIS “como estratégia-ponte para a reorientação dos serviços”, dado que a
definia “como uma proposta (originalmente racionalizadora), mas com
espaços democráticos de reserva, ressaltava que poderia ser aprofundada
pela ação dos movimentos sociais e dos partidos políticos [...]”.
A partir de então, presente de forma mais orgânica no governo e no conjunto
das instituições de saúde, o núcleo do Movimento Sanitário, tendo como objetivo
“fortalecer o setor público na prestação do cuidado médico, se move em três
direções básicas: politização da questão saúde, alteração da norma constitucional e
mudança do arcabouço e das práticas institucionais”. (TEIXEIRA apud TEIXEIRA;
MENDONÇA, 2006, p. 217).
51
Na direção da politização da discussão sobre saúde, desencadeou-se, a
partir da convocação do Ministério da Saúde, o processo de preparação e
realização da 8º Conferência nacional de Saúde. O evento em nível
nacional foi, na realidade, o desfecho de um trabalho de organização, em
todas as unidades federadas, dos interesses em torno da questão saúde
por parte dos profissionais de saúde, intelectuais, sindicatos e centrais de
trabalhadores, movimentos populares e partidos políticos. Estas forças
sociais se fizeram representar no plenário da Conferência, garantindo à
proposta elaborada no relatório final a legitimidade e o apoio político de “um
verdadeiro programa para a Reforma Sanitária”, na medida em que resultou
de um exaustivo debate em torno das demandas específicas das diferentes
forças sociais presentes. Representou também um acordo político
importante entre essas mesmas forças, em função da necessidade de
implementação de mudanças na política de saúde, diante de interesses já
consolidados no interior do setor saúde. (TEIXEIRA; MENDONÇA, 2006, p.
217).
A definição do princípio do direito e dever do Estado, consagrado no texto do
relatório final, foi outro aspecto fundamental que colocou em cena a necessidade de
universalização da atenção à saúde e a constituição de uma base estatal para o
sistema de saúde no país. “O avanço na mobilização social pela definição de um
programa detalhado e aprofundado para a Reforma Sanitária apontada pela 8º
Conferência
se
reproduziu
durante os trabalhos da Assembleia
Nacional
Constituinte”. (TEIXEIRA; MENDONÇA, 2006, p. 218).
Os interesses que acontecem no setor saúde, basicamente dos grupos
ligados ao setor privado empresarial e suas representações, e as forças renovadoras
que se congregam na Plenária das Entidades de Saúde em torno da defesa de uma
emenda popular, se enfrentaram novamente com o governo na elaboração da
Constituição. Essa Plenária foi tão ágil, que conseguiu assegurar que o novo texto
constitucional aprovasse “boa parte das reivindicações do Movimento Sanitário, em
prejuízo do setor hospitalar, mas sem modificar a situação da indústria
farmacêutica”. A constituição do Sistema Único de Saúde (SUS) conseguiu assim,
assegurar que as ações e os serviços seriam “prioritariamente públicos e extensivos
a toda população”. (TEIXEIRA; MENDONÇA, 2006, p. 218).
Em 1987, com o objetivo de promover a Reforma Sanitária no plano da
alteração das práticas institucionais, surgiu a proposta do SUDS - Sistema Unificado
e Descentralizado, que aprofunda a política das AIS, revigorando-a e ultrapassando
seus limites. Apoiada na “organização descentralizada do Sistema de Saúde, com
base no setor público executor da política de saúde, complementando suas
necessidades da cobertura preferencialmente através de convênios com serviços
52
filantrópicos”, com contratos regidos pelas normas de direitos públicos, este
segmento foi privilegiado dentro do setor privado. Privilegiou-se, também, o uso de
“instrumentos de planejamento na administração de serviços, objetivando a
distribuição mais equânime dos recursos de saúde, participação da população e dos
profissionais na gestão, controle orçamentário e qualidade dos serviços de saúde”.
(TEIXEIRA; TEIXEIRA, 2006, p. 218).
No processo em curso da democratização da saúde, estas três abordagens
são concomitantes. “Nenhuma delas esgota os limites enfrentados pela Reforma
Sanitária; ao contrário, vão exercendo influências mútuas e se complementando,
nem sempre com uma visão unilinear”. (TEIXEIRA, 2006, p. 219).
Nossas vivências foram marcadas por toda essa movimentação política, que
avançava da aproximação com as comunidades e do aprendizado com a cultura
popular, na direção de uma luta política mais organizada, que resultou, em última
análise, na construção do Sistema Único de Saúde (SUS).
Vinheta 4 – Em 1984, após a greve, estava no 2º ano de minha residência
médica em pediatria na UFSM. Cumpria estágio curricular na UTI neonatal
do hospital universitário da UFSM. Eram aproximadamente 23hs, eu estava
de plantão, quando telefonam de Agudo/RS solicitando leito na UTI para
uma recém-nascida com 12h de vida e “muito ictérica”. Aceitei a internação,
o R2 era o responsável pelo plantão, e enquanto as técnicas de
enfermagem preparavam a incubadora, o pai viajava de Agudo para Santa
Maria com a filha recém nascida. A distância entre as duas cidades do
centro do RS é de aproximadamente 70 km. O pai acompanhado pela avó
materna chegou em torno da 1h da madrugada. Era uma família de
pequenos agricultores. A mãe estava se recuperando do parto e eles tinham
um outro filho. Um menino com 2 anos na época, que apresentava severo
atraso neurológico devido a um Kernicterus (encefalopatia bilirrubínica). A
situação se repetia com a menina. Realmente quando vi a criança ela
estava um “canário belga” com menos de 24hs de vida. Solicitei exames
laboratoriais para definirmos a conduta. Quando rebebemos o resultado dos
exames os níveis de bilirrubina indicaram uma exsanguinotransfusão.
Procedimento que consiste em trocar todo o sangue do recém nascido por
outro sem as bilirrubinas em excesso. No nível em que estava a bilirrubina
no sangue era grande a possibilidade de impregnar o cérebro da menina
com bilirrubinas e desencadear o Kernicterus nela também. A
exanguinotranfusão era um procedimento muito demorado que deve ser
feito muito lentamente, pois do contrário acarreta riscos de
descompensação cardiológica. Terminamos o procedimento lá pelas 6h da
manhã. Para nós o dia laboral começava às 7h da manhã não interessando
que horas se vai dormir na noite anterior. Os recém nascidos precisavam
ser avaliados todas as manhãs e reavaliados à tarde e à noite. Após 12h do
procedimento fizemos exames para controle. As bilirrubinas estavam
perigosamente aumentando novamente e estava indicada outra
exsanguinotransfusão. Terminamos o novo procedimento após 36 h quase
que ininterruptas de trabalho. Tudo foi compensado e a criança escapou do
Kernicterus. A felicidade dos pais transcendia o ato médico. Ganhei um bolo
depois que recusei o dinheiro que o pai colocou no meu bolso. Ofereceram
53
um churrasco em Agudo/RS e novamente colocaram dinheiro no meu bolso.
Mesmo explicando para eles que eu fiz o que tinha que ser feito e que
aprendi e vivi uma grande experiência
não mediam esforços para
agradecer. Devolvi o dinheiro outra vez. Percebi que o meu aprendizado
técnico junto ao conhecimento desenvolvido e a incorporação de tecnologia
pela ciência médica não tem sentido se não proporcionar a vivência e o
entendimento do que representa cuidar do outro. Para aquele casal ter um
filho normal, sem sequelas neurológicas de algo que tínhamos capacidade
de tratar foi muito bom. Conviver e testemunhar a felicidade de toda a
família e ser apontado como responsável por este momento me fez louvar
os avanços da ciência! Mesmo sabendo que a ciência biológica fragmentou
o conhecimento médico vivi a satisfação de através da técnica e tecnologia
proporcionar felicidade ao outro. Estes relacionamentos e experiências
fazem com que tenha sentido ser médico. Agora me senti capaz de
enfrentar o mundo, mesmo sabendo do que deveria enfrentar para nos
sentirmos médicos. Não se conformar com a dor e sofrimentos causados
pela vida e sociedade que os gera. E a luta continua... ou estava apenas
começando num outro patamar de empoderamento pessoal. Passagem por
Maravilha/RS e decisão de ir pra região metropolitana. Educação na vila
Urlândia [...] união de parte da igreja, movimentos sociais e estudantes na
busca da democracia, um microcosmos do que se passava no
Brasil.(NARRATIVA AUTORREFERENTE).
Segundo Ayres (2007, p. 44) “saúde e doença não são situações polares, os
extremos opostos, positivo e negativo, respectivamente de uma mesma coisa”. A
doença não é o contrário da saúde e vice-versa, ou seja, não falam da mesma coisa
e também não falam do mesmo modo.
Fazer equivaler saúde e doença a situações polares de uma mesma coisa,
identificadas segundo uma mesma racionalidade é tão limitante para a
adequada compreensão dessas duas construções discursivas e das
praticas a elas relacionadas, quanto negar as estritas relações que guardam
uma com a outra na vida cotidiana. (AYRES, 2007, p. 45).
Atualmente, vivemos uma revisão crítica das práticas de saúde, recusando
uma visão segmentada. É necessário que haja uma ruptura pragmática, a fim de
superar o modelo médico tradicional. (AYRES, 2007). Ao mesmo tempo, as
experiências de residência, tendo vivido toda a movimentação política que vivi, me
fizeram perceber que a tecnologia não é por si só um problema, senão que se trata
muito mais do problema de a tomarmos como fim e não como meio daquilo que
constitui, efetivamente, nossa competência profissional: favorecer a busca de
sentido e felicidade das pessoas.
Ao comparar o paradigma da promoção da saúde com o da prevenção de
doenças, dir-se-ia que o primeiro compreende “a saúde como um conceito positivo e
multidimensional”, enquanto a saúde, com a ausência de doença, seria o segundo.
Isto torna obscuro
54
o fato de a ausência ou redução de doença é, efetivamente, um dos
indicadores que usamos para avaliar se estamos conseguindo promover
saúde. [...] A polarização obscurece, portanto, que há uma dimensão
positiva de saúde por detrás do conceito supostamente negativo de doença.
(AYRES, 2007, p. 46).
“O importante não é saber qual paradigma está centrado na saúde e qual está
centrado na doença, mas saber a que se referem saúde e doença em cada um
deles”. Deve-se entender o que realmente se está “fazendo ao falar de saúde e de
doença em cada um deles”. (AYRES, 2007, p. 46). O que se questiona e critica no
paradigma biomédico - no plano de sua operação das práticas de atenção à saúde é o modo como o discurso da doença monopoliza os repertórios disponíveis para o
enunciado dos juízos acerca da saúde. (idem)
Essa assimetria deixa à margem tudo que não for subordinável de modo
sistêmico ao discurso biomédico. Saúde e doença têm seus sentidos já amplamente
validados e aceitos entre os participantes de qualquer diálogo a respeito, já está
validado intersubjetivamente. Conforme Ayres (2007, p. 50) “o contínuo e inexorável
contato com o novo desacomoda-nos e reacomoda-nos ininterruptamente” na
maneira como entendemos a nós mesmos, nossas relações e nosso mundo. Nisso
consiste a riqueza de pensar a saúde numa perspectiva hermenêutica, onde a
abertura aos múltiplos sentidos da saúde, garante que o conceito não se encerre
numa definição técnico-científica categórica, mas que possibilite sua constante
reconstrução como práxis humana e histórica.
A saúde é (re)conhecida a cada vez, enquanto e porquanto se vive. São,
portanto, da esfera da razão prática e não da razão instrumental, suas pretensões e
exigências de validade discursiva. (GADAMER apud AYRES, 2007, p. 50). Salientase ainda, que quanto mais o cuidado se parece com
uma experiência de encontro, de trocas dialógicas verdadeiras, quanto mais
se afasta de uma aplicação mecânica e unidirecional de saberes
instrumentais, mais a intersubjetividade ali experimentada retroalimenta
seus participantes de novos saberes técnico-científicos e práticos. (AYRES,
2007, p. 53).
O uso da tecnologia médica potencializa essa assimetria, que pode ser vivida
não apenas como forma de dominação e silenciamento do outro, mas como forma
de reinstalar a tensão e a contradição, fundantes da própria condição humana. De
55
certo modo, os anos 1980 possibilitaram, ainda que sem tamanha consciência disso
naquele
momento,
uma
aproximação
complexa
com
essa
condição
multideterminada do fenômeno “saúde”. Não se trata de, de um lado, demonizar a
tecnologia, tampouco de celebrá-la como redenção, de outro. O próprio desafio de
construção da saúde no país passa por aí: assumir a tensão entre processos de
modernização/tecnologização da saúde e a polissemia dos discursos sobre saúde e
felicidade emergentes do campo social, sem com isso deixar de lado ou suprimir a
variedade dos sentidos ligados ao tema. Conviver com a pluralidade dos discursos e
encontrar formas de convergência possíveis, parece continuar sendo nosso grande
desafio.
4.2 Os anos 1990... A medicina comunitária em Novo Hamburgo/RS
Vinheta 1 - No início dos anos 90 do século passado vivi uma experiência
impactante para meu entendimento de vida ao fazer o Trabalho de
Conclusão de Curso (TCC) para o Curso de Especialização em Saúde
Coletiva da Escola de Saúde Pública/RS. Éramos uma equipe de quatro
colegas: um odontólogo, uma veterinária, uma assistente social e um
médico. Era a época de implantação do SUS como sistema de saúde no
Brasil. Nossa monografia intitulou-se “Percepções e Expectativas de Saúde
dos Moradores Migrantes da Vila Palmeira”. Tentamos conhecer os
conceitos de saúde de um grupamento humano oriundo do êxodo rural que
veio à procura de emprego e moradia na indústria calçadista de Novo
Hamburgo/RS. Os empregos na indústria calçadista tinham poucas
exigências de qualificação. Podemos sintetizar as respostas obtidas na
pesquisa como “ter condições de trabalho”. Ouvimos manifestações do tipo:
[...] Podê trabalhá, não tê doença, não precisá ter remédio [...].
[...] saúde é importante pra trabalhá e não gastá com médico e
medicamento [...].
[...] Não precisá ir ao médico, não tomá remédio, precisa tê saúde para
sobrevivê [...].
Parte de população entende saúde como esperança de melhor qualidade de
vida.
[...] Saúde é prioridade em tudo. A pessoa que tem saúde é bem tratada,
boa alimentação, higiene, limpeza [...].
[...] É bom ter saúde pra ajudá os outros. É tê mais disposição, mais
energia, é felicidade tê saúde [...].
[...] Saúde é ter uma vida mais decente. A gente estar de bem com a vida,
com a família, na comunidade onde se vive. Saúde de corpo e mente, é
estar bem psicologicamente e fisicamente [...].
[...] Saúde é prevenção de doenças, todo tipo de vida que se leva,
habitação, trabalho e não só curativa. Mas a maioria das pessoas não
discute saúde [...].
Muitas das famílias visitadas eram de pacientes que eu atendia na UBS em
que trabalhava nessa época. Compartilhar do espaço em que vivem foi
gratificante. Muitas das moradias tinham precárias condições estruturais
sendo constituídas de um único cômodo. Mesmo assim, comemos muita
bolacha e bebemos muito refresco! Não foi possível não sairmos com a
sensação de que “é preciso mudar o mundo”. A questão era por onde
começar!? Entre várias possibilidades de atuação profissional, optei por ser
56
pediatra do SUS e tentar entender como acontece o processo saúdedoença nessas comunidades nas quais trabalho. Fui eu, médico,
denominado “soldado de Deus”, e de mim esperavam que fizesse um
correto diagnóstico e prescrevesse uma cura, mesmo que mágica. Os
profissionais de saúde são depositários da esperança de minimizar a
sensação de vazio estrutural que se relete em vazio existencial. Há uma
transferência para o outro, a busca da resolução das carências, eximindose, assim, do protagonismo dessas tentativas. Para essas pessoas, porém,
buscar o entendimento do porquê de suas vidas serem como são e querer
mudar é fundamental. (NARRATIVA AUTORREFERENTE).
Ao longo de sua história, as ciências da saúde definiram, segundo critérios
epidemiológicos, os temas de educação em saúde para apresentar às comunidades.
Tratou-se, inicialmente, de uma perspectiva instrucionista, pouco sustentada na
participação popular. Entretanto, para que possamos avaliar a adequação de
conteúdos, precisamos identificar necessidades e desejos de conhecimento
segundo as concepções de saúde de cada grupo humano. Nisso consiste o caráter
eminentemente hermenêutico da saúde e também da educação.
A educação
possibilita o enriquecimento das relações entre partes, esclarece interpretações
acerca da saúde dos indivíduos, estimula transformações de comportamentos e, a
partir da troca entre o empírico e o técnico, modifica o entendimento de sentido de
vida.
Para Laurell (1982, p. 11),
por processo saúde-doença da coletividade, entendemos o modo específico
pelo qual ocorre no grupo o processo biológico de desgaste e reprodução,
destacando como momentos particulares a presença de um funcionamento
biológico diferente como consequência para o desenvolvimento regular das
atividades cotidianas, isto é, o surgimento da doença. Definido desta
maneira, o processo saúde-doença manifesta-se empiricamente de
maneiras diversas. Por um lado, expressa-se em indicadores, tais como a
expectativa de vida, as condições nutricionais e a constituição somática e,
por outro, nos modos específicos de adoecer e morrer, isto é, no perfil
patológico do grupo, dado pela morbidade ou pela mortalidade.
Fazendo relatos de vivências nessa relação médico-paciente, tentamos
entender e conhecer as manifestações de princípios e moral, as quais determinam
comportamentos.
Nós, “filhos da ditadura”, ou aceitávamos as restrições impostas à liberdade
de expressão, às ideologias, à liberdade de organização social, de direitos
individuais, ou iríamos para o “enfrentamento”, o qual determinava concepções e
comportamentos. Achávamos que a “tal” felicidade seria alcançada a partir de uma
redistribuição de renda, da reforma agrária, da democratização do poder, do acesso
57
universal à educação e à saúde, dos direitos humanos e tantos outros. O importante
era que a autonomia, o desenvolvimento do indivíduo e o entendimento de que o
conhecimento somente é possível com liberdade, passariam obrigatoriamente por
uma socialização dos meios de produção e de toda a estruturação social, enfim, da
vida social. As “lutas” eram por sonhos abstratos, como liberdade, igualdade,
emancipação, paz e amor. Hoje me pergunto: será que o capitalismo, a
individualização e a tecnologia, formataram o homem livre e autônomo que
buscávamos? De qualquer maneira, os dois caminhos tiveram como fim a felicidade
do homem. O homem moderno não remete a tal felicidade para o futuro, pois o que
vale é ser feliz agora! Gozar o presente! Com a complexificação do conhecimento,
da tecnologia, a globalização do capitalismo e a emergência cada vez mais
marcante de uma psiquiatria biológica, parece que vivemos diante de novas formas
de atribuição de sentido às nossas próprias vidas. Temos uma aparente oferta infinita
de oportunidades, e quando temos muitas opções, precisamos usufruí-las na maior
quantidade possível, mesmo assim, ficando com a sensação de que não temos
tempo para usufruí-las em sua totalidade. Em resumo: a crescente oferta de
possibilidades de usufruir do presente, nos fez concomitantemente ansiosos e
inseguros, aparentemente esvaziados de projetos coletivos.
O entendimento dessa mutação do coletivo para o individual, do racional para
as relações dialéticas entre pessoas, é uma das procuras de um “dinossauro” que
sonhou com a felicidade conquistada pelas lutas utópicas; lutas pela libertação e
plenitude do outro. E a luta continua; porém, em vez da saúde, é a educação que me
possibilita a transformação da sociedade – sociedade feita de indivíduos
empoderados, mas sociedade.
A sensação que ficou é de que o capitalismo, financiando e estimulando o
conhecimento científico, acarretou grandes mudanças e facilidades na vida
cotidiana, especialmente as ligadas ao consumo. Contudo, operários e o “lúmpen”
foram excluídos de muitas das mudanças acarretadas pelas novas tecnologias. As
necessidades estruturais e o nível de educação e de renda, ainda são preocupações
prementes dos indivíduos moradores de periferia, ocasionando entendimentos e
comportamentos diferenciados.
Quando se fala em desigualdade social, de um modo geral estamos falando
de situações que implicam algum tipo de injustiça, diferenças estas que não são
justas porque estão ligadas a características sociais que, de alguma forma, colocam
58
alguns grupos em desvantagem em relação a oportunidades de ser e se manter
sadio. Segundo Barata (2009), as desigualdades sociais em saúde, de modo geral,
estão ligadas à organização social e refletem o grau de injustiça existente em uma
sociedade e se manifestam de maneiras diversas no que diz respeito ao processo
saúde-doença.
A equidade na oferta de serviços de saúde implica a ausência de diferenças
para necessidades de saúde iguais (equidade horizontal) e a provisão de
serviços prioritariamente para grupos com maiores necessidades (equidade
vertical). Isso significa que todos devem ter acesso e utilizar os serviços
indispensáveis para resolver as demandas de saúde, independentemente
do grupo social ao qual pertençam, e aqueles que apresentam maior
vulnerabilidade em decorrência da sua posição social devem ser tratados de
maneira diferente para que a desvantagem inicial possa ser reduzida ou
anulada. (BARATA, 2009, p.25)
Baseando-se na ideia de que saúde é um produto social, surgem as
explicações sócio-históricas das desigualdades. Algumas formas de organização
social são mais sadias do que outras. Assim, os mesmos processos que determinam
a estruturação da sociedade, são aqueles que geram as desigualdades sociais e
produzem os perfis epidemiológicos da saúde e doença. (BARATA, 2009).
O que se colocou em questão a partir dos anos 1990, foi uma crescente
individualização das problemáticas sociais, associada a um descrédito das lutas
políticas coletivas. Na contramão da tendência predominante, minha trajetória
continuava apontando para a necessidade de fortalecimento dos vínculos
comunitários e de uma perspectiva efetivamente coletiva de compreensão e práxis
da saúde.
Vinheta 2 – Certa feita, em novembro de 1993, estava eu e alguns colegas
tentando iniciar um contato com moradores de um bairro periférico de Novo
Hamburgo/RS, vila com sub-habitações, irregularidade da posse de terra,
com problemas de infraestrutura urbana, abastecimento de água,
saneamento, transporte, atendimento na saúde, lazer, etc. Através do posto
de saúde marcamos um encontro com o presidente da vila com a intenção
de explicar nossa inserção na comunidade. Fomos em dois carros, o fusca
do presidente e o meu! Ele foi na frente e parou logo adiante e disse para
um grupo que estava encostado num boteco: “vocês cuidem do carro dos
doutores, tirem as pedras da rua [...]”. Mais adiante uma mulher parou o
carro do presidente e relatou-lhe um problema de briga de família e pediu
sua intervenção. Ele respondeu que trataria do caso mais tarde e seguimos
percorrendo algumas ruas até chegarmos a sua casa para uma primeira
conversa. Conversamos sobre os propósitos de nosso trabalho e a
possibilidade de subsidiar futuros trabalhos da instituição municipal.
Enquanto tomávamos chimarrão chegou um morador da vila a fim de pedir
permissão para trazer a mudança de uma cunhada para a vila. O presidente
59
ouviu sua história e deu permissão. Disse-lhe que se os fiscais tentassem
impedir a mudança eles deveriam chamá-lo. Contou-nos sua história de
migrante, da própria vila e da associação. Falou da saúde de sua esposa
que iria receber a visita dos “irmãos da fé” para fazer uma reza por sua
recuperação. Estávamos dando por encerrada a visita quando ele diz de
sua boa receptividade com o trabalho proposto, pois achava que era preciso
conversar sobre isso e foi então que ele diz que tinha muitas coisas que lhe
davam saudade da colônia, mas que uma ele havia trazido junto! Nos leva
até o pátio da casa e fomos surpreendidos quando avistamos 10 gaiolas
com galos de rinha e um ringue para lutas. Este é meu lazer e meu
conhecimento (poder) na vila, eu crio galos de rinha [...]. Percebi que
estavam abertas as portas, mas o que fazer com o fato de ser um ringue de
galos?
Deixamos
os
acontecimentos
definirem.
(NARRATIVA
AUTORREFERENTE).
Ao se tornar consciente da finitude e principalmente da incompletude do ser, o
homem busca compreender o processo que é viver e o sentido da vida. Para que
ocorra a autonomia do indivíduo, o homem se utiliza da compreensão do que lhe
origina e compõe suas interpretações. Ao invés de determinismo, utiliza este saber
para definir e optar pelas oportunidades que a vida lhe oferece. A consciência de que
existem valores e verdades que, através da história, foram possibilitando a formação
de uma moral que regra e disciplina o comportamento humano na sua vivência em
agrupamentos humanos. A compreensão de que estes valores são determinados
pela hegemonia, pelas elites, grupos dominantes, possibilita a tomada de atitudes de
forma mais autônoma possível. O entendimento de que somos reflexos da história,
nos possibilita o arbítrio nas escolhas, e a racionalidade humana possibilita a
evolução do conhecimento, através da reflexão e das mudanças de paradigmas.
Na evolução do conhecimento, o paradigma aristotélico (idealização quase
ascética) dá lugar, na Modernidade, para um outro paradigma: a Ciência. As
concepções científicas acabam homogenizando o comportamento. No mundo
contemporâneo, acompanhamos o surgimento de um novo paradigma, segundo o
qual a divisão tão categórica e hierarquizada entre ciência e saberes comuns, já não
se sustenta. Santos (1987) refere que este paradigma chamado por ele de
“emergente”,
reúne
conceitos
sociológicos,
antropológicos
e
possibilita
a
compreensão de várias facetas do conhecimento, inclusive aquelas que denomina
como autobiográficas. Afinal, para ele, todo conhecimento apenas se legitima na
medida em que faz sentido no conjunto de uma existência singular, social, histórica e
subjetivamente determinada.
Procurando entender manifestações culturais e suas representações, temos
que considerar que a “noção de cultura, [...], é necessária, [...], para pensar a
60
unidade da humanidade na diversidade além dos termos biológicos”. Serve para
compreendermos identificações que servem para definir estrutura social. (CUCHE,
2002, p. 10). Conforme Cuche (2002, p. 45) “os comportamentos são orientados pela
cultura”. Os saberes acumulados e transmitidos pela humanidade são a soma da
cultura. Um determinado comportamento ou costume particular só pode se tornar
claro, “se relacionado ao seu contexto cultural. Trata-se assim de compreender como
se formou a síntese original que representa cada cultura e que faz a sua coerência”
(idem).
Ainda segundo o mesmo autor, “cada cultura é dotada de um “estilo” particular
que se exprime através da língua, das crenças, dos costumes, também da arte, mas
não apenas desta maneira” (idem, 2002, p. 45). Este estilo também vai influenciar
sobre o comportamento das pessoas, e não existe cultura sem sentido para aqueles
que se reconhecem nela.
Os indivíduos têm certas necessidades psicológicas como: alimentar-se,
reproduzir-se, proteger-se, etc., que determinam necessidades fundamentais. A
cultura constitui, precisamente, a resposta funcional a esses imperativos materiais
inarredáveis. A personalidade do individuo não se “explica apenas por seus
caracteres biológicos, [...], mas pelo “modelo” cultural particular a uma dada
sociedade que determina a educação da criança. Desde os 1° instantes da vida o
indivíduo é impregnado deste modelo, por todo um sistema de estímulos e
proibições”. (CUCHE, 2002, p. 81).
O que se modifica de uma cultura para outra é a predominância de um tipo de
personalidade. “[...] fundamento cultural da personalidade, [que] cada indivíduo o
adquire através do sistema educativo próprio de sua sociedade”. (CUCHE, 2002, p.
83). O conjunto de fenômenos, denominado de aculturação, “resulta de um contato
contínuo e direto entre grupos de indivíduos de culturas diferentes e que provocam
mudanças nos modelos (patterns) culturais iniciais de um ou dos dois grupos”
(idem).
Conforme Cuche (2002, p. 137), cada cultura sente, quando em “situação de
contato cultural o processo de desestruturação e depois de reestruturação, é em
realidade o próprio princípio da evolução de qualquer sistema cultural”. Toda cultura
é um processo de constante permanência de construção, reconstrução e
desconstrução, o que vai variar é a importância de cada fase.
61
Os anos 1990 representaram um importante momento de desconstrução das
referências culturais hegemônicas, até então marcadas especialmente pela crença
no discurso científico, com sua pretensão de superioridade e promessa de
progresso. Um certo desencanto diante dos grandes ideais políticos revolucionários
não realizados, uma crescente globalização do capitalismo, que passou a
desconhecer
fronteiras
ideológicas
claras
e
uma,
cada
vez
maior,
privatização/individualização das questões políticas, fez com que as estratégias de
educação popular em saúde se confrontassem muito claramente com contradições e
antinomias cada vez mais desafiadoras.
Os tempos de medicina comunitária, com aspirações quase “redentoras” dos
anos 1980, foram dando lugar a uma consciência, cada vez mais clara, de que os
valores de uma sociedade neoliberal se reproduzem também nas formas de
(des)organização popular entre os “oprimidos”. Os próprios saberes e organizações
populares incorporam, muito facilmente, os valores de um neoliberalismo capitalista,
que aposta na saída individualizada, onde o empoderamento comunitário, muitas
vezes, sucumbe ao poder pessoal de uma ou outra “liderança” carismática ou
autoritária, que passa a vender a (falsa) sensação de segurança em um mundo cada
vez mais desorientado e perigoso.
Vinheta 3 – Após este primeiro contato de familiarização e através de uma
amostragem intencional iniciamos nossas visitas à vila. Nossa intenção era
na troca de saberes. Tentarmos organizar ações que respondessem às
necessidades desta população. Ainda há um estranhamento do fato de o
espaço de acontecer este encontro com um médico ser fora do consultório.
Nesta época a população da vila, área invadida, era oriunda da zona rural e
o êxodo foi para Novo Hamburgo, pois as fábricas de calçado absorviam
muita mão de obra sem necessidade de qualificação. Eram costureiras,
passadores de cola, matrizeiros, etc.. Trouxeram seus sonhos e concepções
de vida. A visita ao presidente surtiu seus efeitos, pois quando fomos para
nossa primeira visita o fato de as ruas não serem identificadas e as
referências desconhecidas para nós, tivemos que buscar indicações. O bar
em que paramos para perguntar estava cheio de homens bebendo e
jogando bilhar. Sentimos o silêncio e uma certa apreensão conosco.
Pessoas estranhas não eram bem-vindas por lá! Após cumprimentá-los
perguntamos sobre a casa da moradora que procurávamos, depois de
instantes de vacilo um dos homens falou: - “é o dotôr do postinho”.
Desfizeram-se as faces tensas e com contida cordialidade nos explicaram
como chegar lá. Após idas e vindas aos poucos fomos nos familiarizando
com a vila. Conseguimos um mapa não oficial. Marcamos nossa visita com
Dona Maria, pois ela pertencia ao clube de mães, o qual era assessorado
por duas religiosas da pastoral da saúde da igreja católica. Tínhamos ido
em uma reunião deste grupo para explicar-lhes nosso trabalho e ela nos
convidou para visitá-la. A casa de Dona Maria ocupava um terreno maior
que o dos vizinhos e ao entrarmos pelo pequeno portão avistamos um
62
terreno com muitas plantas sendo cultivadas, identificamos margaridas,
roseiras, babosa, guaco, agrião e outras que não reconhecemos.
Encontramos Dona Maria, uma mulher de uns 50 anos, colhendo alguns
chás e prontamente largou de seus afazeres e veio nos receber. Era uma
tarde quente de verão e ela nos ofereceu um refresco, pois o ventilador da
sala não dava conta do calor. Gosto muito de falar sobre saúde, disse-nos:
“Saúde é prioridade em tudo! É bom ter saúde para ajudar os outros. É tê
mais disposição, mais energia, é felicidade tê saúde”. “Estou sempre lendo
estes folhetos que distribuem nos postos e ouvindo programas de rádio”.
Conversamos sobre suas plantas e ela conta-nos que aprendeu tudo lá fora
com sua mãe e avó. “Era muito difícil levar filho no médico, tudo é muito
longe e então a gente ia usando as plantas que se tem em casa. Aqui a
gente adoece mais, tem o problema do esgoto, dos mosquitos, do
alagamento e mesmo que tenha mais recursos na saúde é difícil conseguir
uma ficha. Tem-se que ir às 4-5 horas ou comprar um lugar na fila. As
crianças sempre tão com bronquite e gripe”. Percebemos que existia um
espaço vazio no conhecimento do SUS como conquista de cidadania. “Já vi
isso escrito na lataria de um carro da prefeitura” respondeu-nos ao indagarlhe sobre o SUS. A conversa corria solta quando bateram à porta. Elas
passaram para a cozinha e era uma mulher aflita, pois seu filho estava com
tosse e febre. Sem constrangimentos ela atendeu a mãe, lhe alcançou
algum chá, lhe orientou usar paracetamol se tivesse febre e se despediu
dizendo-lhe: “Se não melhorar leva ao médico!!! Explicando que ela só
atende “coisas simples” e que muitos vem na madrugada pedir ajuda,
sorria. Uso chá, benzedura, orações de cura e se precisar procuro um
médico. Ajudo os doentes da vila”. Sabíamos do “medo de falar” das
pessoas que exercem qualquer prática alternativa na vila, pois eles sabem
da resistência das ciências ao conhecimento empírico. Percebemos que ela
estava satisfeita com o fato de sermos da “Prefeitura”, como se nossa visita
respaldasse sua prática. Depois de mais algum tempo nos despedimos
prometendo outras visitas. Como contestar que a fitoterapia funciona, que
as benzeduras ajudam a espiritualidade, que uma prática empírica organiza
o conhecimento da sua comunidade? (NARRATIVA AUTORREFERENTE).
Dona Maria comentou: “Gosto muito de falar sobre saúde”, “Saúde é
prioridade em tudo!”. “É bom ter saúde para ajudar os outros”. “É tê mais disposição,
mais energia, é felicidade tê saúde”. Ela sinalizou a percepção de saúde como
sinônimo de felicidade. Ao refletirmos sobre felicidade, devemos considerar que
felicidade é um índice inteligível de orientação prática a formas de vida que nos
satisfazem desde uma perspectiva, simultaneamente, pessoal e compartilhada.
Para a humanização, a noção de “projeto de felicidade” remete a experiências
vividas,
valoradas
positivamente.
Experiências
essas
que,
frequentemente,
independem de um estado de completo bem-estar ou de perfeita normalidade
morfofuncional. É justamente essa referência à estreita relação entre experiência
vivida, valor e aspirações e às relações entre os diversos valores que nos orientam e
os processos de adoecimento e seu cuidado e prevenção, que parece ser o núcleo
mais essencial das propostas de humanização e seu ideal de transformação.
(AYRES, 2005).
63
É preciso assumir a noção de “projeto de felicidade” como uma construção
de caráter contrafático, neologismo de Habermas que lança mão da expressão
sempre que busca referir-se a “valores quase transcendentais”, isto é, a ideias ética
e moralmente norteadoras de aspirações universais, mas construídas a partir da
percepção do valor para a vida humana de determinadas ideias ou práticas, a partir
do momento, e na exata medida, em que estas são obstaculizadas, negadas por
alguma experiência concreta. Isto é, elas são percebidas justamente porque foram
negadas e, ao o serem, mostram-se fundamentais. (AYRES, 2005)
A noção deve ser entendida como uma construção contrafática, ou seja, que
deve recusar qualquer tentativa de definição a priori de seus conteúdos. Evitando
que se queira determinar, de modo objetivo e universalista, o que seja felicidade e
num outro extremo, um idealismo excessivamente abstrato, descolado das
experiências vividas. A felicidade não pode ser vista, enfim, como um bem concreto,
uma entidade. A vida em sociedade é que fornece para nós, seres racionais, as
referências objetivas pelas quais orientamos nossos projetos de felicidade.
Em contraponto, o paradigma biomédico tem as bases filosóficas com os
seguintes princípios componentes:
a) homem como manipulador da natureza, com direito a manipulá-la em seu
próprio proveito;
b) o homem separado do seu meio ambiente e elevado a objeto exclusivo
de investigação médica;
c) uma visão mecanicista do homem que exige enfoque manipulador da
engenharia para restaurar a saúde e que enfatiza o papel das ciências
naturais no estudo do homem e suas doenças;
d) o conceito ontológico da doença que fundamenta o estudo das doenças
sem ter em conta os fatores relacionados com o hospedeiro. (STOTZ, 1993,
p. 1).
“O modelo de ser humano da biomedicina é o organismo humano, uma
abstração analítico-mecanicista construída ao longo do tempo da modernidade”, isto
no modelo de organização de uma sociedade arraigada no “modo de produção
capitalista e no desenvolvimento correspondente das práticas científicas, políticas e
institucionais”, que lhe concederam formato e legalidade a partir do século XVII, até
nos dias atuais. (STOTZ, 1993, p. 2).
A busca de respostas na saúde coletiva foi o necessário para que o
entendimento fosse compreendido. A abordagem da Saúde Coletiva e a corrente da
Medicina Social, que está em sua origem (Laurell, 1989), diferencia-se das correntes
64
vinculadas ao paradigma da história natural da doença, pela afirmação da
historicidade do social na determinação da saúde da população (CARVALHO, 2002).
Para Paim (1980), a Saúde Coletiva tem que levar em conta a diversidade e
especificidade dos grupos populacionais e das individualidades com seus modos
próprios de adoecer. E que não passam, necessariamente, pelas instâncias
governamentais ditas responsáveis diretas pela saúde pública.
A Saúde Coletiva compreende um articulado conjunto de práticas científicas,
técnicas, ideológicas, culturais, econômicas e políticas, desenvolvidas no âmbito das
instituições de saúde, da academia, dos institutos de pesquisa e das organizações
da sociedade civil. (PAIM apud CARVALHO, 2002).
É neste contexto de agravamento das contradições sociais, que os anos 1990
nos fizeram encontrar a perspectiva da medicina comunitária atrelada à Saúde
Coletiva, já que não se trata apenas de pensar o médico “na comunidade”, mas de
uma reconstrução da própria noção de comunidade e de coletivo, a partir da qual é
possível
pensar
saúde
para
além
da
dicotomia
opressor/oprimido
ou
científico/popular. Saúde implica projetos coletivos de felicidade, que envolvem
necessariamente o enfrentamento das contradições da cultura contemporânea, a
saber, os desejos de satisfação individual, ascensão social e consumo, não
desvinculados do bem-estar comum e da reinvenção de instâncias coletivas de ação
política.
Vinheta 4– Passaram-se alguns dias até retornarmos à vila e nesta altura
as pessoas já sabiam que estávamos conversando sobre saúde na vila e a
cada dia se tornavam menos desconfiadas com nossa “bisbilhotice” nas
ruelas e becos. Desta vez fizemos diferente, pois fomos convidados para
participar de uma reunião do grupo de mães. Chegamos num pavilhão que
servia tanto para as reuniões da associação como para grupo de mães e
eventos religiosos. Antes que eu começasse a falar o pastor nos apresentou
como “o doutor e sua colega”. Senti que estava em casa quando o pastor
disse: -“Meus senhores e minhas senhoras, temos aqui o “doutor do
postinho”. Como sabem médico é um soldado de Deus, ele dá os conselhos
que Deus ensina nos livros. O “doutor” veio falar das doenças e das
“saúdes”. Ele fala o que é certo para a saúde dos irmãos de nossa
irmandade”. Aleluia irmão!!! O grupo estava reunido para costurar doações
de roupa para um brechó, mas prontamente largou suas agulhas para a
reunião. Fizemos uma rodada de apresentações e iniciei os debates falando
nos determinantes da saúde e dos direitos que a construção do SUS
possibilitaria à inclusão dos usuários na concepção de cidadania. Não foi
difícil falarem afinal algumas eram mães de pacientes que eu acompanhava
no posto. A 1° a falar foi dona A. V., esta geração foi a 1° a chegar da zona
rural, ela começa dizendo: “- Quando vim morá aqui, isso tudo era banhado
e mato, tinha uma e outra casa. Agora é um monte de casas e becos uns
por cima dos outros”. “- Lá fora a gente enxerga a terra encosta no infinito,
tem arvoredo e criação e a vida é mais tranquila”. Outras mulheres foram
65
relatando: “- Se o vizinho é recém-chegado da colônia a gente pode sair
tranquilo que eles reparam a casa da gente. Aqui tem tiroteio, brigas, balas
perdidas, assassinatos e assaltos. “- Quem vem do interior não conhece a
lei do silêncio”. Após alguns relatos percebemos que o cotidiano tranquilo do
interior aos poucos desenvolveu um medo às represálias e agressões e o
espírito comunitário acaba se transformando num “espírito de isolamento”. “Aqui na cidade a gente fica mais atacada dos nervos com esses tiroteios e
toda violência que tem”. “- Aqui se houve o barulho dos tiros, no interior se
ouve os passarinhos, se acalma”. Sentimos que se iniciava a cultura da
violência entre os moradores. A conversa foi muito participativa e aos
poucos as crianças foram chegando perguntando pelas mães. Depois de
alguns safanões retomamos nosso diálogo e dona R. segue falando: “Sabe dotôr, aqui é mais difícil criar os filhos, eles se tornam mais rebeldes”,
complementado por N. “- Na roça eles trabalham. Aqui saem pra rua e se
juntam com outras criançadas. A gente trabalha fora o dia todo, não
consegue controlá”. Lembro delas comentarem que o fato de terem casas
de poucas peças e a falta de um pátio as obrigavam a deixarem seus filhos
na rua. O menor convívio fazia com que “controlassem” menos as crianças,
“- Lá fora não tinha maconheiro e aqui nossas crianças andam por aí, nem
sabemos com quem, os maiores acabam ensinando coisas para os
pequenos”. A reunião já passava da hora e meia que havíamos programado
e o pastor começou a ficar impaciente pois haveria um culto após o término
da nossa atividade. Nos despedimos com a promessa de retornar numa
outra oportunidade. Tentamos através de uma pesquisa ação, reflexãoação-reflexão, trocarmos conhecimentos onde o dito não existia pronto para
ser dito e foi produzido na relação entre sujeitos que participaram de nossos
encontros. Após organizarmos nossos relatos, nos reunimos com técnicos
do posto de saúde para interpretarmos os relatos e produzimos uma
proposta de ações para os gestores. Visamos facilitar acesso e estimular a
autonomia através da educação popular. Fomos até a Secretaria da Saúde
municipal, mas naquela época os gestores nos desestimularam a levar
adiante nossa proposta, pois iríamos “mexer” com uma comunidade
irregular de invasão e a prefeitura não poderia agir. Segundo eles, éramos
funcionários do Município, antes de tudo. E eu que pensava que, antes de
tudo,
éramos
cidadãos.
A
burocracia
venceu!
(NARRATIVA
AUTORREFERENTE).
As percepções do processo saúde–doença, mesmo que não conceituado,
muitas vezes transcendem o conceito biologicista do processo pelos participantes da
reunião. As pessoas nos davam, muito claramente, o retorno de que saúde tem
relação direta com âmbitos da vida que em nada se restringem às alterações
morfofuncionais. Saúde tem a ver com projetos de felicidade, individuais e coletivos,
com modos de existir na cidade, com modulações das relações sociais mediadas
pelas compreensões que construímos a respeito do que estamos vivendo.
A equivalência de saúde e doença como situações polares opostas de uma
mesma natureza de fenômenos, identificados segundo uma mesma
racionalidade, é tão limitante para a adequada compreensão dessas duas
construções discursivas e das práticas a elas relacionadas, quanto negar as
estreitas relações que guardam uma com a outra na vida cotidiana.
(AYRES, 2007, p. 43).
66
Ao fazer-se comparação do “paradigma da promoção da saúde com o da
prevenção das doenças”, entenderíamos a “saúde como um conceito positivo e
multidimensional” e o segundo “seria a ausência de doença”. Entende-se que há por
traz do conceito de doença, uma dimensão obscura positiva. (AYRES, 2007, p. 46).
Ayres (2007, p. 60) define saúde como
a busca contínua e socialmente compartilhada de meios para evitar,
manejar ou superar de modo conveniente os processos de adoecimento, na
sua condição de indicadores de obstáculos encontrados por indivíduos e
coletividades à realização de seus projetos de felicidade.
Para a conceituação biomédica da doença, essa pode ser caracterizada,
sinteticamente, por um conjunto de juízos de caráter instrumental,
orientados normativamente pela noção de controle técnico dos obstáculos
naturais e sociais a interesses práticos e coletividades, tendo como base
material o conhecimento e domínio da regularidades causais no organismo
(corpo/mente/meio )e, como forma de validação, uma serie bem definida de
critérios a priori para o controle das incertezas. (CAMARGO JÚNIOR apud
AYRES, 2007, p. 46).
Segundo Ayres (2007, p. 50) deve-se “entender que pelos termos saúde e
doença estamos nos referindo a construções linguísticas oriundas de esferas
diversas de racionalidade em um mesmo campo da experiência humana”, a
entender de forma positiva que esses termos tratam de diferentes coisas e que ao
mesmo tempo são indissolúveis.
Pode-se considerar que
o fenômeno humano é uma complexidade não passível de ser reduzida a
elementos mais simples, mas um todo, que deve ser abordado como tal,
chegaremos à conclusão de que as diferentes ciências humanas, entre as
quais se deveria incluir a biologia humana, lidam com um mesmo e único
fenômeno. (BLEGER apud VAISBERG, (s/a), p. 3).
Como manifestação do humanismo, o projeto científico fundamentou-se em
dois propósitos. “O primeiro deles diz respeito à crença de que a ciência emanciparia
a humanidade de várias formas de superstição, obscurantismo e autoritarismos”. O
outro é a certeza de que um crescimento da extensão do mundo natural mudaria a
vida do ser humano, “trazendo mais conforto, segurança e qualidade”. (VAISBERG,
(s/a), p. 8).
67
Segundo Vaisberg (s/a, p. 9) a noção de progresso, devido a “vicissitudes do
sistema capitalista, designada como passagem da ciência à técnica, que consiste no
desaparecimento dos fins em proveito dos meios”. A psicopatologia se constituiu
como ciência moderna e aliou-se, preferencialmente, à crença já existente, “de que o
sofrimento psíquico teria, forçosamente, uma base material”. (VAISBERG, (s/a), p.
3). O desenvolvimento da ciência biomédica leva a um entendimento de saúde como
ausência de doença. Sou saudável porque não tenho diabetes, por exemplo. Essa é
uma concepção reducionista de saúde. Este mesmo desenvolvimento acarretou
conhecimentos de estar saudável, diferentemente de sentir-se saudável. A educação
em saúde oportuniza a discussão sobre estar/ser saudável e nos leva a
compreender saúde como constructo social multideterminado e interferido
diretamente pelas compreensões e interpretações que temos acerca de nossa
própria condição no mundo. Nesse sentido, saúde implica uma abertura para a
produção de modos de existir que reconhecem a pluralidade, a diversidade das
condições e dos projetos de vida e antes de tudo, uma abertura para a compreensão
sempre processual e inacabada da própria existência.
A diferença entre patológico e normal é consequência positiva do “saber
científico sobre a experiência da doença, da ciência do senso comum, afirmação
possível graças a conceitos genéricos como os de meio interno, de homeostase e de
metabolismo, vinculados ao modo de funcionamento do organismo”. (STOTZ, 1993,
p. 2).
Os anos 1990 permitiram avançar na direção de uma compreensão complexa
da noção de saúde e de cidadania, não mais resumida à superação da opressão
capitalista que se manifesta na infraestrutura social, mas também na desmontagem
dos modos como o capitalismo se insinua e se instala nas nossas sensibilidades e
modos de subjetivação. (GUATTARI; ROLNIK, 1993).
A luta
por
exercer
uma
medicina
efetivamente
comunitária,
passa
inevitavelmente por uma reconstrução das formas de participação política que
precisam reinventar a relação dos sujeitos com a cidade. Nessa década, ficaram
muito evidentes os efeitos de um processo de êxodo rural das populações que
passaram a habitar as periferias das grandes cidades, como promessa de progresso
e ascensão, quase nunca realizada. A expectativa de uma medicina comunitária,
atrelada à saúde coletiva e à educação em saúde se recoloca, e desta vez diante da
necessidade, não apenas, de reconhecer e legitimar os saberes populares, mas de
68
aliar-se a eles na reinvenção de nossa relação com a própria cidade e as formas de
existência possíveis.
Comentando o filme “Os inquilinos”, de Sérgio Bianchi (2009), Maria Rita Kehl
(2011) refere-se provocativamente a uma espécie bastante curiosa de sujeitos que
marcam a vida nas grandes periferias urbanas: os “sem-cidade”.
“O espectador percebe então que ali, onde o esforço individual parece
capaz de garantir algum futuro, ali onde não falta ao necessário para o que
se costuma chamar de uma vida decente, falta o essencial: uma cidade. A
casa vai cair porque ao redor dela não existe uma cidade. Existem outras
casas, muita gente, ruas e ruelas sem calçadas, ônibus passando,
motoqueiros a zombar e apavorar os pedestres – mas não uma cidade.”
(KEHL, 2011, p. 26).
Uma apologia das boas intenções individuais – sempre bem vindas, mas não
suficientes como ações isoladas – não pode substituir uma luta política, cada vez
mais urgente, para que o Estado assuma suas responsabilidades na proposição e
gestão de políticas, efetivamente, públicas capazes de tornar possíveis os projetos
coletivos de felicidade para a vida nas cidades. A produção coletiva de saúde passa
exatamente por aí.
4.3 Os anos 2000... Acentuam-se as contradições e os desafios
Vinheta 1 – A reforma sanitária brasileira através do SUS foi se
consolidando. A velocidade de implementação de um sistema de saúde
como este que tenta garantir direitos de cidadania tem uma gama de fatores
que lhe garantem um estágio mais ou menos implementado. Estratégias
como a saúde da família, rede cegonha, ECA, creche, escola em dois turnos
e outros são respostas da gestão pública às reivindicações sociais. Cônscio
da minha responsabilidade e tentando um atendimento o mais humanista
possível, paradoxalmente, fui levado a aumentar meu tempo com a
assistência em detrimento da participação mais efetiva na gestão das
políticas de saúde. Senti que o espaço de atendimento individual é sim um
espaço de muitas trocas e de mútuo educar. Durante os anos 2005- 2008
trabalhei na UBS da Vila Iguaçu em Novo Hamburgo/RS. Ao abrir a porta do
posto todos que precisam consultar entram para serem distribuídas as
consultas do dia. É um “monte de gente”. Após serem distribuídas as
consultas as pessoas sentam na sala de espera para serem chamadas pelo
profissional procurado. Tudo na normalidade quando entra um homem de
capacete na cabeça. Nada estranharam. Inesperadamente o homem com
um revolver na mão manda todos deitarem no chão. Gritaria! Crianças
chorando! Pedidos de misericórdia... rezas, ele quer saber quem é o
proprietário de um carro estacionado na frente, identificam o proprietário (o
ginecologista) e ele leva o veículo. Passado uns dois meses chamo uma
mãe e seu bebê para fazer a consulta de puericultura. Ao término da
consulta ela diz: - Doutor, eu sou vizinha do rapaz que roubou o carro do
médico daqui. Ele pediu para eu avisar vocês que ele vem buscar um
69
vermelho que está estacionado aí na frente. É seu?”. Para minha sorte o
meu carro era preto. Ele não veio. Os valores e a moral respondem muitas
vezes às necessidades dos indivíduos se inserirem na comunidade em que
vivem. Mesmo que a constituição brasileira defina como crime o roubo, não
impediu àquela senhora trazer o recado como se fosse uma contingência. O
que eu deveria ter respondido para aquela senhora? Dificilmente o ensino
médico responde a esta pergunta. (NARRATIVA AUTORREFERENTE).
Muitas vezes, o médico acaba respondendo por demandas que transcendem
questões técnicas. Através de relato de vivências que possuem valores dos mais
variados, muitos desses questionamentos necessitam de respostas de teor ético,
jurídico e cultural. “O médico foi um sacerdote na Babilônia, um artista ou artífice na
Grécia Antiga, um clérigo e erudito na Idade Média, um cientista nos tempos
modernos”. (GIGANTE, 2000, p. 233). E hoje? O médico, assim como o professor,
parece ocupar esse lugar vacante da autoridade perdida, do saber universal, de
alguma certeza buscada, incansavelmente, por pessoas desorientadas quanto ao
sentido de suas próprias existências. Assim, nunca tanto quanto hoje, o papel do
educador em saúde parece apontar na direção necessária de uma ação dialógica –
tensa e problemática, é verdade – de onde possam emergir sentidos possíveis para
a experiência de vida na cidade contemporânea. Vivemos a cultura da fragmentação
e do imediatismo, das promessas falaciosas de encontro da felicidade plena, através
da ascensão social e ampliação irrestrita do poder de consumo. No entanto, urge o
desempenho de práticas educativas em saúde que auxiliem os indivíduos e as
comunidades a reencontrarem algum sentido de vida comum, bem menos idealizado
que a redenção pelo consumo ou pelo progresso econômico, apesar de ser também
ele necessário.
Segundo Gigante (2000, p. 233) “cada sociedade exige que seus médicos
tenham conhecimentos, habilidade, dedicação aos pacientes, e qualidades outras a
essas relacionadas”. A cada período, as tarefas a ele designadas e as regras de
conduta que lhe são impostas mudam, assim como o papel do médico na sociedade.
“A posição do médico na sociedade tende a ser constantemente modificada em
decorrência de mudanças na cultura”. (GIGANTE, 2000, p. 233).
A especialização médica tem gerado uma separação entre educação e
saúde, binômio que, na atualidade, se retoma como uma articulação
necessária. A educação aperfeiçoa no médico sua comunicação, linguagem
e autonomia, além de facilitar seu relacionamento humano e contribuir no
processo de conscientização das pessoas resgatando, assim sua função de
educador. (RODRIGUEZ et al., 2007, p. 60).
70
O exercício da medicina é cada vez mais tecnicista, especializado,
fragmentado e curativo, em contraposição à sua essência humana, geral, preventiva
e educativa de que necessita a sociedade. Por sua vez, a educação tem estado à
mercê dos avanços técnico-científicos, preocupando-se com a formação do homem
para o mercado, no caso, competitivo e tecnocrático, mais do que para a vida, isto é,
criativo, humano e com uma visão holística do saber. Compreende-se que a
excessiva especialização médica favorece o distanciamento entre o médico e o
paciente, impedindo a concepção da saúde como um processo global e menospreza
o papel do médico como educador. (AYRES, 2007).
O papel que a educação tem para o desempenho do trabalho médico, vai
além da prevenção e responde três eixos que são: assistencial, psicológico, ético e
de ensino e pesquisa. No eixo assistencial, a educação favorece a função milenar do
médico como educador, promove sua comunicação com os pacientes e equipe de
trabalho e facilita conhecer as pessoas segundo o grau de instrução, elementos
cardinais para o acompanhamento médico e adesão terapêutica. No campo
psicológico, a educação permite aprender a ciência e arte da comunicação, como
requisito para obter uma boa relação médico-paciente. No campo ético, a educação
permite o aperfeiçoamento da ética narrativa, além de cultivar a linguagem, meios e
modalidade
de
comunicação,
indispensáveis
ao
melhor
entendimento
e
compreensão mútua na desigualdade e complexidade da relação médico-paciente.
(AYRES, 2007).
E, finalmente, no eixo ensino-pesquisa, todo médico é um professor e um
pesquisador em potencial. O trabalho do médico, como educador em saúde, precisa
passar pelo favorecimento da recuperação da “normatividade” dos indivíduos e dos
grupos, concebida aqui conforme lhe dá sentido Georges Canguilhem (2010). Tratase bem menos de atingir uma condição de saúde como sinônimo de plenitude e
ausência
de
sofrimento
ou
esforço
–
imagem
vendida
pelo
capitalismo
biotecnológico contemporâneo – e bem mais de reencontrar-se com critérios de
normatividade, capazes de recompor o sentido de nossas próprias existências,
recriando o próprio conceito de saúde hermeneuticamente.
Aquilo que é normal, apesar de ser normativo em determinadas condições,
pode se tornar patológico em outra situação, se permanecer inalterado. O
indivíduo é que avalia essa transformação porque é ele que sofre suas
71
consequências, no próprio momento em que se sente incapaz de realizar as
tarefas que a nova situação lhe impõe. (CANGUILHEM, 2010, p. 126).
A “tarefa” da cultura contemporânea parece consistir em reencontrarmos
sentidos para nossa existência em sociedade, buscando práticas de convívio que
possibilitem o crescimento humano e projetos coletivos de felicidade. O adoecimento
passa a ser tomado, não mais como mera categoria reveladora de disfunção
orgânica, mas como a perda do empoderamento sobre a ação. Nesse sentido, nós,
usuários, médicos, e outros profissionais da saúde, podemos nos reconhecer
adoecidos, justo porque somos reféns de redes de significação que nos oprimem,
impondo-nos ideais de saúde, beleza e felicidade, inatingíveis. Podemos estar
doentes, “no sentido de não tolerar nenhum desvio das condições em que a norma é
válida, por ser incapaz de se transformar em outra norma. O ser vivo doente está
normalizado em condições bem definidas e perdeu a capacidade normativa, a
capacidade de instituir normas diferentes em condições diferentes”. (Canguilhem,
2010, p. 127). Em resumo, o sujeito doente seria aquele que está aferrado a um
discurso único, a ideais únicos e opressores, a um modelo de vida que não se abre
para a afecção, pela alteridade e todas as transformações criadoras que disso
podem advir.
Vinheta 2 – Como sabemos cabe ao médico pediatra acompanhar o
nascimento das crianças na sala de parto. Após o nascimento é feita uma
avaliação do crescimento do recém-nascido intra útero através do índice
peso x idade gestacional. Os recém nascidos são então classificados como
AIG (adequado para a idade gestacional), GIG (grande) e PIG (pequeno).
Após a avaliação fui contente mostrar o bebezinho para a mãe e disse: Fulana, tua guriazinha nasceu muito bem porem é PIG! [porco, em inglês]
Sem me dar conta do que falei, ouvi ela gritar: “- Porca é tua mãe doutor!
Ela é bem limpinha... Minha sorte é que ela era velha conhecida e não
“esquentou a cabeça”. (NARRATIVA AUTORREFERENTE).
As pessoas falam e atuam sobre a saúde a partir de suas casas, de seus
escritórios, de suas fábricas, de seus serviços, de suas ruas. Enfim, fazem saúde em
sua própria língua! A problemática comunicativa está no centro das discussões sobre
educação em saúde nos anos 2000.
Nesse sentido é fácil perceber um poderoso conflito, na medida em que a
saúde e a doença entendidas de acordo com a representação social
dominante na época atual, como um assunto técnico-científico, a fala
profissional é uma fala legal, socialmente autorizada (Bourdieu,1982),
porque vinda de um espaço técnico-científico (Santos,1996), enquanto a
72
fala do individuo comum é uma fala leiga, desautorizada, prosaica, ilegal,
deseducada porque proveniente de um espaço vivencial, da cotidianidade.
(BOURDIEU; SANTOS apud LEFÈVRE; LEFÈVRE, 2004, p. 36).
Para Deslandes (et al., 2009, p. 644) “as desigualdades presentes nas trocas
comunicativas em sua eficácia simbólica não se constrói no encontro entre falantes,
mas se situam num conjunto de fatores que o antecede”. É numa relação dialógica
que a linguagem se apresenta com seus diferentes significados para que haja
entendimento entre o discurso médico e o não médico. Mas isso implica uma
abertura do profissional no sentido de deixar-se tocar por todas as formas de narrar
a existência e não a habitual exigência de tradução de todas as
linguagens à
gramática médica.
Conforme Gonçalves (1999, p. 135), existe uma “estreita relação de
interdependência e com os objetivos educativos de formação de cidadãos críticos e
participativos estão os objetivos diretamente ligados ao exercício do diálogo e ao
desenvolvimento da competência comunicativa”. É necessário que entendamos que
na ação comunicativa há um “acordo acerca da validade para suas emissões ou
manifestações, isto é, que reconheçam intersubjetivamente as pretensões de
validade que se apresentam diante dos outros”. (HABERMAS apud GONÇALVES,
1999, p. 135-136).
As pretensões de validade que o autor tem de colocar são:
a) que o enunciado seja verdadeiro; b) que a manifestação seja correta em
relação ao sistema de normas vigentes ou que o próprio contexto normativo
seja legítimo (legitimidade ou retidão); c) que a intenção expressa coincida
com a intenção do falante (veracidade). (GONÇALVES, 1999, p.136).
Tais condições tornam possível uma interação efetivamente comunicativa e
não instrumental, onde sujeitos são mutuamente interferentes e jogam de forma
tensa a construção de novos sentidos. Ghedin (2004, p. 2) refere que a “linguagem
não é o único instrumento de manifestação de existência, isto é, o discurso é uma
forma de manifestação do ser, mas nem por isso é a única maneira de manifestação
da realidade”. Por meio da linguagem, o discurso se processa e está cheio da
própria realidade que o gera, “neste sentido, o ser da linguagem e o ser como
linguagem já é, em si mesmo, um sentido dado pelo discurso”. Nossos modos de
existir dependem diretamente dos modos de narrar e compreender o que somos.
73
Isso se dá no processo de educação em saúde e também no processo de
investigação, como é o caso desta pesquisa.
“Transformamos a natureza em cultura; a cultura em conhecimento e agora
estamos projetando, pelo conhecimento, os significados da natureza que estão
impressos no ser”. (GHEDIN, 2004, p. 2). Segundo ele, “o modo de ser no mundo é
uma maneira de interpretá-lo e esta interpretação é uma tentativa de dar-lhe sentido
que faça compreender-nos como parte dele”. (idem)
O sentido produz os valores, ou seja, aquilo que satisfaz as necessidades, os
desejos e os interesses dos centros de interpretação. Conhecer significa avaliar
quais são as configurações que são necessárias e quais que são as prejudiciais.
(GHEDIN, 2004). Em última análise, significa fazer escolhas partilhadas que estarão
sempre sendo colocadas à prova por sua operação em uma prática social concreta.
Vinheta 3 – Apesar de a estrutura assistencial possuir muitas carências o
SUS nos possibilitou que ações respondendo pela atenção básica de saúde
criassem espaços para educação em saúde e para o dialogo irredutível das
diversidades culturais. Mesmo que dificilmente os médicos participem de
atividades educativas, pelas necessidades assistenciais, as estratégias de
Saúde da Família (ESF) estão tentando mudar este perfil. Participei de
grupos na minha Unidade Básica de Saúde (UBS) com mães que
procuravam o serviço. Tínhamos várias adolescentes entre as participantes
e numa das reuniões discutíamos sobre as possibilidades de crescimento
advindas da educação. A maioria delas abandou os estudos com a
maternidade e o sustento vem dos pais delas. Foi então que AF, 16 anos,
contou-nos um pouco de sua vida. Relatou que antes de ter seu filho, que
estava com 5 meses, ela cuidava dos irmãos, apanhava da mãe por não
cuidar direito deles, o padrasto queria “pegar” ela, na escola os guris
passavam a mão nela. Agora que é mãe, o pai da criança estava preso, mas
ela é respeitada, podia ir nas reuniões de mães, tinha consulta garantida e
ninguém a importunava mais. [...] Prá que estudar? [...]. E eu continuei
achando que deveriam... (NARRATIVA AUTORREFERENTE).
Faz-se necessário que entendamos os indivíduos na sua integralidade,
conhecendo seus condicionantes e determinismos, para numa troca dialética
encontrarmos respostas adequadas aos anseios de cada um. Machado (et al., 2007,
p. 336) aponta que “entendemos a integralidade no cuidado de pessoas, grupos e
coletividade tendo o usuário como sujeito histórico, social e político, articulado ao
seu contexto familiar, ao meio ambiente e a sociedade na qual se insere”. Os anos
2000 me fizeram encontrar realidades cada vez mais distintas da minha própria. O
espanto diante de formas insólitas de constituir a própria existência, tão diferentes
dos valores morais e das crenças políticas que alimentaram minha própria formação,
me fez reconhecer a complexidade da condição cultural contemporânea e reavivar a
74
importância das práticas dialógicas e interculturais em saúde. Para que aconteça o
processo de conscientização da realidade vivida, a relação dialógica possibilita a
tomada de definições e troca de conhecimentos.
Evidenciando a importância das ações de educação em saúde como
estratégia integradora de um saber coletivo que traduza no indivíduo sua maior
capacidade de empoderamento e normatividade. A educação em saúde requer o
desenvolvimento de um pensar crítico e reflexivo, permitindo desvelar a realidade e
propor ações transformadoras, enquanto sujeito histórico e social capaz de propor e
opinar nas decisões de saúde para cuidar de si, de sua família e da coletividade.
(MACHADO et al., 2007). Implica assim, que o médico coloque na berlinda sua
própria moral, para entrar no jogo trabalhoso, conflitivo e enriquecedor, de dialogar
com perspectivas de vida muito diferentes das suas.
“Ainda destaca-se a imagem subjetiva como elemento balizador no sistema
de saúde atrelado ao ideário do desejo, repleto de sentimento, de emoção e de
motivação para a construção coletiva na defesa da saúde”. (MACHADO et al., 2007,
p. 336).
A integralidade é um conceito que permite uma identificação dos sujeitos
como totalidades, ainda que não sejam alcançáveis na sua plenitude [...]. O
atendimento integral extrapola a estrutura organizacional hierarquizada e
regionalizada da assistência de saúde, se prolonga pela qualidade real da
atenção individual. (MACHADO et al., 2007, p. 336).
Machado (et al., 2007, p. 335) entende a “integralidade no cuidado de
pessoas, grupos e coletividade percebendo o usuário como sujeito histórico, social e
político, articulado ao seu contexto familiar, ao meio ambiente e à sociedade na qual
se insere”. Neste sentido, torna-se evidente a importância da articulação em ações
educacionais e em saúde, como recurso de produção de um saber coletivo que faz
manifestar no indivíduo, sua autonomia e emancipação para o cuidar de si, da
família e de seu entorno.
Se os anos 1990 ainda nos interpelavam com a aparente necessidade de
reconstrução dos grupos comunitários, das associações de bairro, dos organismos
de classe ao modo da política “disciplinar”, típica da modernidade, a cultura
contemporânea bem representada nos desafios dos anos 2000, parece desafiar-nos
com outras formas de luta e participação. O trabalho da educação em saúde, e do
médico nesse contexto, surge como aquele que precisa ocupar-se de interferir sobre
75
as máquinas de produção das subjetividades capitalísticas, em todos os níveis.
(GUATTARI, 1987). Seja na intervenção individual com cada usuário, nos grupos,
nas visitas domiciliares, na gestão das políticas públicas ou quaisquer outros níveis,
trata-se de reinventar os sentidos da vida em coletividade, fazendo emergir o desejo
de criar formas de existência disruptoras em relação à serialização “pós-moderna”,
típica do capitalismo contemporâneo. Inventar relações humanas e com o próprio
planeta, que valham a pena ser vividas e nos deem mais que uma “razão”, a
sensação de que valha a pena estar vivo.
Vinheta 4 – Mesmo que a interface entre as várias profissões da área de
saúde não oportunize desenvolvermos um trabalho multi e interdisciplinar
tão efetivo quanto gostaríamos, tentava participar de outras atividades além
do atendimento. Geralmente os médicos preferem atividades na assistência
e menos na educação e prevenção. Também por isso eram frequentes os
convites para eu participar das reuniões, que principalmente as assistentes
sociais da Secretaria faziam junto às associações de moradores. Numa
sexta-feira depois do expediente da assistência (como se tal atividade não
fizesse parte da função) fui convidado discorrer sobre saúde da criança e a
reunião estava marcada para acontecer na casa de uma das moradoras.
Quando chegamos a varanda estava com todos os assentos ocupados com
homens e mulheres, o que não era frequente acontecer. O presidente da
associação iniciou falando da importância de discutirmos as questões da
saúde e a dificuldade de acesso ao atendimento dos serviços de saúde foi
sua maior queixa. A.S. ressaltou as possibilidades e resultados obtidos
quando as pessoas se organizam em torno de um bem comum. E eu
aproveitei a deixa. Iniciei me apresentando e comentando da importância do
cuidar da saúde das crianças, da responsabilidade dos pais e do Estado em
oportunizar os avanços da ciência para elas. Como a acessibilidade me
pareceu ser a maior preocupação falei do SUS para ressaltar os direitos das
crianças ao cuidado e acesso universal aos serviços. Fui falando da
integralidade, da equidade e controle social garantidos na constituição de
1988. Demorei para perceber que na empolgação estava me prolongando
demais. Agradeci e imediatamente uma mulher levantou a mão dizendo: lá
em casa as crianças estão tomadas de piolhos e não consigo acabar com
eles, o que o senhor indica, hein?! Respondi e outra imediatamente
questiona “- Catapora e varicela é a mesma coisa?” e as perguntas foram se
sucedendo “- Como faço soro caseiro?”, ”- Bronquite tem cura?” “- Quem
tem asma tem mesmo que tirar o gato das crianças?”. Respondi por cerca
de 45min e ninguém falou e/ou perguntou sobre acesso, universalidade...
(NARRATIVA AUTORREFERENTE).
“Na busca de um modelo que mudasse o tradicional, flexneriano, o estado
brasileiro foi adotando aos poucos o modelo de vigilância da saúde, o qual mais
tarde foi proposto pelo ministério da saúde para o programa saúde da família (PSF)”.
(MARQUES; LIMA, 2004, p. 19).
76
O modelo da vigilância tem, como estratégias de intervenção, a promoção
da saúde (educação para a saúde, hábitos de vida, saneamento com
qualidade de vida), a prevenção das enfermidades (pré-natal, diagnóstico
precoce de doenças crônicas, vacinação) e a atenção curativa (tratamento
de doenças, prolongamento da vida, diminuição de sintomas e reabilitação
de sequelas). [...] Este modelo é alicerçado nos pressupostos de
territoriedade, intersetoriedade, integralidade, hierarquização. [...] O sistema
de saúde pensado como uma pirâmide composto por níveis de atenção,
com complexidade crescente e ascendente, cuja integração contribui para a
saúde da população. O primeiro nível, constituído pela ampla base, é o da
atenção primária, onde se estabelecem os contatos entre os indivíduos, as
famílias, o ambiente e os demais serviços; pode ser chamado de atenção
primária ou básica [...]. Os demais níveis, prestam serviços mais
especializados, cuja complexidade aumenta a cada nível. (MARQUES;
LIMA, 2004, p. 19-20).
A autonomia do usuário seria o resultado esperado na produção do cuidado, a
autonomização. (MARQUES; LIMA, 2004). Como o trabalho em saúde é fortemente
influenciado e comandado pelas relações entre sujeitos, há um diferente eixo
analítico para a organização de acesso aos serviços de saúde. Merhy classifica as
tecnologias em leves, leve-dura e dura.
As leves são as tecnologias de relações como o acolhimento, o vinculo, a
autonomização, a gestão como forma de orientar processos; as leve-duras
são os saberes estruturados como a clínica, a epidemiologia, a psiquiatria, o
taylorismo, o fayolorismo e as tecnologias duras são os equipamentos, as
normas e as estruturas organizacionais. (MARQUES; LIMA, 2004, p. 22).
Estas classificações não devem ser utilizadas hierarquicamente pela
complexidade e importância, mas pela necessidade. Em saúde, o objeto é a
produção do cuidado e, é por meio deste que se acredita obter a produção de saúde.
É importante ressaltar que “tais utilizações não podem ser consideradas como boas
ou más por si sós, ou ainda práticas sociais neutras, que não envolvem qualquer tipo
de escolha”. Elas se organizam, preferencialmente, como mediadoras de relações.
Por consequência, vale lembrar que o “ponto principal não é o uso preponderante na
tecnologia médica”, mas nas relações entre sujeitos, qual é o papel que essa
tecnologia significa na ordem do cuidado construído. (DESLANDES; MITRE, 2009,
p. 646). Cada vez mais sustento a concepção de que as tecnologias para o cuidado,
para a atenção básica, para as relações de produção de subjetividades disruptoras
em relação ao capitalismo contemporâneo, passam por esse estreitamento de laços
com os usuários, em qualquer nível. Falar do que efetivamente faz sentido no
cotidiano dos sujeitos e encontrar exatamente aí a via de acesso para refletir sobre a
77
existência
em
sua
complexidade.
O
educador
em
saúde
precisa
agir
hermeneuticamente.
As intervenções técnicas e tecnológicas, que atravessam nosso cotidiano,
não são exclusivas do universo biomédico ou prerrogativa apenas presente
nas ações de saúde. Utilizamos dispositivos técnicos de forma quase
ilimitada e automática, sem problematizarmos quanto delegamos a estes
dispositivos, como nos avisar de excessos. (DESLANDES; MITRE, 2009, p.
656).
Para Deslandes (et al., 2009, p. 641) “o desafio colocado é o de aprender,
reconhecer e negociar com o outro, que detém direitos, autonomia e estoque cultural
peculiares”. Habermas (apud Deslandes et al., 2009, p. 643) critica-se
as bases da racionalidade moderna, uma racionalidade instrumental que
historicamente identificou, como finalidade do conhecimento, a intervenção
e normatização, numa síntese de conhecer para dominar. Uma
racionalidade, portanto, voltada pragmaticamente para o domínio e incapaz
de viabilizar a emancipação humana.
Deslandes (et al., 2009, p. 643), na eteira de Habermas, propõe no trabalho
em saúde uma “racionalidade ancorada na comunicação, e em processos amplos de
argumentação de onde serão construídas as validades dos discursos e das ações”.
Desta forma, a razão comunicativa não se constrói somente pela lógica, envolve
decisões existenciais, “um agir no mundo e uma ética de solidariedade contra o
sofrimento e opressão. Situa-se como um modelo político em que a práxis e a
palavra estão em profunda sintonia”. (DESLANDES et al., 2009, p. 643).
É preciso estabelecer estratégias de aprendizagem que favoreçam o diálogo,
a troca, a transdisciplinaridade entre distintos saberes formais e não formais, que
contribuam para as ações de promoção de saúde a nível individual e coletivo. A
educação em saúde como área de conhecimento, “requer uma visão corporificada
de distintas ciências, tanto da educação como da saúde”. Ela é um campo
multifacetado para o qual convergem diversas concepções, as quais espelham
diferentes compreensões do mundo. (MACHADO et al., 2007, p. 339).
Na relação educativa, a produção do conhecimento passa a ser coletiva,
gerando uma modificação mútua, porque ambos são portadores de conhecimentos
distintos.
78
A tecnologia de informação foi o que mais nos faltou. Se tivéssemos as redes
sociais em vez de palanques, megafones e metralhadoras, usaríamos a internet para
“incitar as massas” com gritos de guerra como “povo unido jamais será vencido”,
“FMI fora daqui”, “diretas urgente para reitor e presidente”, “ianques go home”.
Convocaríamos uma grande passeata de protesto para acabar com a ditadura. Bem,
sonhar é livre; é liberdade de pensamento!
Durante o período entre as décadas da 1950 e 1970, as tendências
tecnocráticas foram influentes no mundo ocidental. Nos EUA e Alemanha, sociólogos
afirmavam que a ideologia política havia se tornado irrelevante e que o importante
era o ajuste da economia pelos economistas e o planejamento social pelos
especialistas tecnocratas em ciências sociais. Não era nossa intenção.
Esse passeio dos anos 1980 aos 2000, de modo geral, revela-se como uma
tentativa de superação dessa herança tecnocrática das décadas anteriores, onde
fomos levados a crer que a razão instrumental seria capaz de responder aos nossos
mais caros anseios de autonomia e felicidade.
79
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Optar pela narrativa como metodologia desta dissertação, possibilitou que,
pela memória, recuperasse momentos de minha história de vida e, em particular, da
minha trajetória profissional. A interpretação dos acontecimentos testemunhados ou
vivenciados nestes 30 anos de exercício da medicina, ajuda-me a entender os sinais
da mudança de comportamento na contemporaneidade e a seguir pensando.
A ampliação do conhecimento científico, a interpretação feita pela filosofia e
pelas ciências humanas, e o desenvolvimento das ciências biológicas e das
tecnologias, possibilitaram uma nova percepção da realidade às pessoas. A crença
de que a felicidade só seria possível a partir da redistribuição de riquezas, do
trabalho como transformador da natureza em arte ou utilitário, do coletivo
hierarquicamente superior ao indivíduo, modifica-se para a crença de que nas
relações entre sujeitos autônomos, encontra-se um espaço político no qual podemos
produzir felicidade e fazer revolução. Certamente não se tratou de abandonar os
sonhos de um mundo mais decente, justo e igualitário, mas de redimensioná-los e
rever estratégias para alcançá-los.
Ao vivenciar momentos de reflexão sobre existência, concepções de mundo,
inserção na sociedade e expectativas sobre práticas profissionais, percebi que,
enquanto exercia meu trabalho de cuidador do outro, o mundo transformou-se:
mudou paradigmas, incorporou tecnologia, concebeu novos valores nas relações
entre indivíduos e entre coisas e alterou maneiras de organização social. Tais
mudanças alteraram meu entendimento de mundo e minha relação com ele. Se
pensarmos que a vida é um processo de interações, qualquer alteração pode
modificar tudo e todos.
Mesmo que formatado com concepções positivistas e profundamente
arraigadas na racionalidade instrumental moderna, cabe ao profissional da medicina
tentar entender um homem multifacetado e em contínua transformação. E como não
são possíveis a identificação e a avaliação de tudo e de todos, por ser esse um
processo muito dinâmico, haverá sempre uma incompletude no conhecimento do
outro, graças ao fato de que a vida continua tendo algo de misterioso e instigante.
A medicina, na perspectiva das ciências naturais, na busca do entendimento
do processo saúde-doença, vai transformando o outro, o paciente, em objeto;
isolando-o e fragmentando-o, enquanto tenta avaliar e conhecer sua estrutura.
80
Porém, com isso acaba desarticulando o conhecimento médico que se desenvolve
em inúmeras especializações médicas. A especialização excessiva dificulta a visão
integral da pessoa. A incorporação de tecnologias duras pela saúde, também
favorece o afastamento entre os usuários dos serviços de saúde e os profissionais,
substituindo muitas vezes, a ação dialógica por solicitações de exames
complementares, encaminhamentos desnecessários, uso abusivo de tecnologias
bastante dispendiosas para o próprio Estado, além de um desperdício inestimável de
força de trabalho, que poderia ser bem melhor aproveitada.
Foucault já diz: “uma sociedade sem relações de poder somente pode ser
uma abstração” (1982, p. 217). Isso implica que qualquer grupamento humano
estará sempre permeado por relações de poder, visto que essa relação é resultante
da vida social e intrínseca ao jogo do estar vivo.
O que caracteriza o poder que estamos analisando é que traz à ação
relações entre indivíduos (ou entre grupos). Para não nos deixar enganar,
só podemos falar de estruturas ou de mecanismo de poder na medida em
que supomos que certas pessoas exercem poder sobre outras. O termo
‘poder’ designa relacionamentos entre parceiros (e com isto não menciono
um jogo de soma zero, mas simplesmente, e por ora me referindo em
termos mais gerais, a um conjunto de ações que induzem a outras ações,
seguindo-se uma às outras). (FOUCAULT, 1982, p. 217).
Para mim, um médico formado na tradição tecnicista, foi muito desafiador
tentar compreender como têm ocorrido as transformações nos conceitos
estruturantes da vida na contemporaneidade. Na atualidade – estamos no ano de
2013 –, a cultura torna-se um fator de identificação entre grupos humanos. Ela
influencia modos de organização social e, muitas vezes, transcende os conceitos de
Estado e de Nação. Manifestações comportamentais expressas em linguagens
diversificadas, comportamento sexual, educação, necessidades psicológicas,
alimentação, etc., determinam respostas próprias a cada cultura, identificando-as e
diferenciando-as simultaneamente. É com essa complexidade toda que trabalhamos
cotidianamente. A identificação cultural é o que possibilita a sensação de
pertencimento do indivíduo a um grupo social, e a maneira como esses signos são
interpretados e sentidos, define as personalidades e as relações.
Sabedores de que a cultura popular é uma tentativa de resistir à dominação
cultural, procuramos identificar, por intermédio das manifestações comportamentais
e morais, as concepções de vida de uma população de periferia urbana. As
81
manifestações aparecem na educação dos filhos dessa população: a partir dos
desejos que essa tem para o futuro dos filhos, identificamos suas significâncias e
seus conceitos. Como esta “troca de saberes” é dialógica, é importante observarmos
as
diversas
linguagens
utilizadas
pelos sujeitos
envolvidos.
Quando não
compreendida, a linguagem pode ser obstaculizadora dessa relação e, por isso, ela
precisa ser reconhecida e “traduzida” continuamente num processo hermenêutico
interminável. É um exercício de entendimento e de comunicação, e precisamos ser
simples sem perder o conteúdo.
No contato entre técnicos da saúde e comunidade, acontece a interação do
conhecimento científico com o empírico. É um espaço informal de educação, no qual
a educação popular pode responder às necessidades dessas trocas. Entendo que a
educação popular promove a interação entre os sujeitos e que a compreensão da
realidade possibilita a transformação.
Ainda separamos o doente da doença, muitas vezes tratando como objeto
que se dá a conhecer independentemente dos modos pelos quais o doente
singulariza no corpo e nas formas de significá-la. Ainda separamos as
técnicas e as tecnologias, empregadas na assistência à saúde, das razões
e dos valores a partir dos quais são produzidas, e das maneiras, ás vezes,
automatizadas pelas quais são utilizadas no diagnóstico e no tratamento de
agravos à saúde. Ainda separamos ciência, política e sociedade, afastando
formuladores das políticas de gestores e de profissionais, e estes dos
usuários da saúde, como se não houvesse relação e interdependência entre
suas posições, conhecimentos, competências e responsabilidades.
(SOUZA; MENDES, 2009, p. 684).
Assim, pude concluir, também, que a Política Nacional de Humanização se
apresenta como a expressão de um Sistema Único de Saúde (SUS) que pode dar
certo, cujo interesse organiza um conjunto de teorias e estratégias para a superação
de problemas e contradições que ainda caracterizam os serviços e práticas de
saúde. Um SUS que dá certo não porque já é o ideal ou por estar pronto, mas justo
porque se oferece como campo problemático de tensão entre diferentes culturas de
usuários e profissionais, possibilitando a criação de renovadas formas de existir e
conviver.
A Política de Humanização não pode, desta forma, ser apenas um valor
abstrato, algo sobre o qual se inspiram e se orientam práticas, mas deve instituir a
produção de mudanças concretas que reafirmem a humanização como um valor
prático, na produção das subjetividades e na comunicação humana. Ou seja, a
humanização se assenta sobre o binômio valor-prática social.
82
A experimentação e consolidação de políticas públicas mais equitativas,
inclusivas e solidárias, é uma tarefa da nossa cultura, porque aposta na capacidade
de enfrentamento das contradições sociais, cuja superação faz emergir novas
relações, novas atitudes éticas e políticas, sustentáculos para a qualificação da vida
e da experiência em sociedade. (PASCHE, 2009)
É tarefa para os próximos vinte anos do SUS manter vivas e fortalecidas,
manter pulsantes as forças sociais e políticas que criaram e sustentaram a
reforma sanitária brasileira. Radicalizar o interesse coletivo na ação do
Estado, afirmando a natureza pública das políticas sociais, convoca a
sociedade civil a “jogar o jogo da política”, a disputar as orientações na
condução da coisa pública, ação que se faz em todos os espaços singulares
da micropolítica, mas também em outros planos, no interior e nos limites da
máquina do Estado.” (idem, p.707).
O trabalho desenvolvido nesta dissertação, permitiu ampliar minha concepção
de saúde, abrindo-a para acolher a tensão própria da vida, que inclui faltas, conflitos,
desafios, contradições, sofrimentos, mas também alegrias, vitórias, superações e
conquistas. Enfim, uma concepção onde “estar curado não é, então, ser feliz – é ser
livre, ou seja, aprender a exercer um poder sobre si que permita pensar e viver
diferentemente”. (AGUIAR, 2004, p.156).
Com toda a complexidade que esses dois anos de mestrado comportaram, já
que a vida não cessa para o pensamento pensar, penso ter levado a bom termo a
pesquisa, conseguindo compreender as transformações ocorridas nos sentidos
atribuídos à educação em saúde e à prática médica em saúde coletiva, tendo como
referência minha própria vivência. E, além disso, tendo conseguido ampliar a
compreensão do processo educativo em saúde, qualificando minha atuação junto à
comunidade, numa produção hermenêutica de saberes atinentes à saúde coletiva e
à educação.
83
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