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George Sand e a crítica de arte:
a passagem do Romantismo ao Realismo
na arte francesa do séc. XIX
Daniela Kern*
Resumo
O presente artigo considera as relações da romancista George Sand com o cenário artístico
de sua época, enfocando sobretudo sua posição na transição entre a arte romântica e a arte
realista, que se dá nas décadas de 1840 e de 1850. Serão privilegiados, para fins de análise,
os textos La Mare au Diable e Quelques méres dans le grande monde, de Sand; Salon de 1846, de
Théophile Thoré; e Lettre à George Sand, de Jules Champfleury.
Palavras-chave: George Sand. Crítica de arte. Romantismo. Realismo.
Em 1888 os escultores Auguste Rodin (1840-1917) e Camille Claudel (1864-1943) se mudam para um novo ateliê, situado no Boulevard
d'Italie n. 68, uma antiga casa do século XVIII, denominada Folie Payen,
em Paris. O local tem um passado conhecido: fora ponto de encontro dos
escritores Alfred de Musset (1810-1857) e George Sand (1804-1876), como
Rodin e Claudel, também amantes (AYRAL-CLAUSE, 2002). Essa ligação
fortuita entre Sand e o célebre casal de escultores não resume, contudo, o
relacionamento da romancista com as artes plásticas.
George Sand, pseudônimo de Amandine-Aurore-Lucile Dupin, a
bisneta de Maurice de Saxe (1696-1750), um dos principais estrategistas
militares do século XVIII e também ele escritor, ainda que eventual, como o
atestam suas memórias, Mês reveries (1757), foi uma das figuras mais onipresentes no romantismo francês do século XIX, seja como musa, seja como
autora de romances socialistas extremamente influentes – Dostoiévski,
lembremos, era seu leitor devoto. Sand também obteve notoriedade por
seu envolvimento com artistas românticos: entre 1833 e 1834 manteve o já
mencionado caso com o poeta romântico Alfred de Musset. Entre as tantas
visitas recebidas na propriedade da escritora em Berry, destaca-se a de
Théodore Rousseau (1812-1867), amigo tanto de Sand quanto de Musset,
paisagista e líder da chamada École de Barbizon, pouco reconhecido na épo*
Doutora em Letras (PUCRS), professora do DAV/IA/UFRGS.
(E-mail: [email protected])
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ca pelo júri do Salon (SARLET, 1998). Lá ele pinta uma obra que intitula
La Mare, em 1842. Sand, por essa época, como tantos outros escritores seus
contemporâneos – o próprio Victor Hugo, por exemplo, excelente desenhista –, também se dedicava de modo amador às artes plásticas. Ela sabia
pintar e desenhar, e costumava esboçar em aquarela amigos e familiares.
Sand chegou a vender as tabaqueiras e os estojos de cigarro que pintava
com pássaros e flores.
Não apenas artista nas horas vagas, George Sand também foi retratada por vários artistas de seu tempo. Em 1838 inicia um relacionamento
com o compositor Frédéric Chopin (1810-1849), e no mesmo ano ambos são
retratados por Eugène Delacroix (1798-1863), muito amigo do casal. O retrato, provavelmente o mais célebre de George Sand, foi, anos depois, dividido, provavelmente a fim de que seus proprietários pudessem lucrar
mais com sua venda.
Tanto Chopin quanto Sand admiravam as pinturas românticas de Delacroix, mas em vários outros pontos os gostos e opiniões do casal divergiam. George Sand nessa época se cerca de amigos socialistas, o que irrita
Chopin, monarquista e politicamente conservador. Sobre isso Sand escreve
em carta a um amigo, Pierre Bocage, datada de 21 de fevereiro de 1845: "Tudo o agita e o faz sofrer, e em nome de seu repouso fiz imensos sacrifícios
com relação aos quais seria grata se ele pudesse se curar. Aí, caro amigo, está
a mais profunda tristeza de minha vida presente" (SAND, 1969, p. 803).
O filho de George Sand, Maurice (1823-1889), revelou-se um artista
talentoso. No começo da década de 1840, se tornou discípulo de Delacroix.
Maurice fazia marionetes e especializou-se como gravador – a gravura era
o gênero artístico preferido de George Sand –, sendo o responsável por
muitas das ilustrações das obras de sua mãe.
Em 1845 George Sand, como centenas de outros parisienses, e como
vários de seus amigos e conhecidos (Thoré, Delacroix, Victor Hugo e os
jovens Baudelaire e Champfleury) acorre à Indian Gallery, o conjunto de
mais de quinhentos retratos e paisagens dos territórios indígenas americanos realizados por George Catlin (1796-1872), acompanhado da exibição de
artefatos indígenas e de performances de dança e canto dos índios Iowa.
A Indian Gallery estava exposta na Salle Valentino, um vasto hall de concerto, que abrigava eventualmente obras de vanguarda e que se situava na rue
Saint-Honoré. A exposição é inaugurada em maio de 1845, e, neste mesmo
mês, George Sand, então com 41 anos, é convidada a visitá-la por seu amigo Alexandre Vattemare (1796-1864), o reconhecido ventríloquo e filantropo, amigo de Goethe (1749-1832) e de Walter Scott (1771-1832), promotor
da disseminação universal do conhecimento e o primeiro a propor um
sistema de troca cultural entre museus e bibliotecas. Desde a abertura da
exposição Vattemare dedicava duas horas diárias ao curso de história elementar que ministrava aos índios Iowa da trupe de Catlin. George Sand
percorre a exposição na Salle Valentino em 29 de maio de 1845 com o amigo, e no dia seguinte, profundamente impressionada com o que viu, retorna acompanhada de Chopin e Maurice.
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Nas duas primeiras visitas, Sand não conversa com os índios nem
com Catlin, mas na terceira, em 2 de junho, passa a tarde trocando experiências com os índios, e o resultado dessa troca seria minuciosamente
apresentado em seu texto Relation d'un voyage chez les Sauvages de Paris,
publicado em 1846, no Le Diable à Paris – talvez não seja coincidência o fato
de os índios que fizeram performances na exposição terem sido chamados,
entre outras designações, de “les nouvelles Diables à Paris”.
Sand percebe os índios como a encarnação do ideal romântico de
vigor, nobreza e ingenuidade. Admira seus costumes, lamenta seu triste
destino e destaca sua habilidade estética ao analisar as características gerais
de seu desenho, como neste trecho:
Sobre a pele de urso ou bisão que o cobre, sua mulher desenha e pinta seus principais fatos e gestos. Aqui, um urso
atingido por sua flecha; ao lado, o herói combatendo seus
inimigos; mais adiante, seu cavalo favorito. Esses desenhos
bárbaros são notáveis; formados de linhas elementares como aquelas que nossas crianças traçam nas paredes, indicam às vezes, no entanto, um sentimento muito elegante de
forma, e em geral de proporção. (SAND, 1846, p. 201-202).
Sand ecoa em seus comentários o crescente interesse de seus contemporâneos, cuja motivação se encontra em parte no culto romântico à
infância, pelos desenhos infantis, espontâneos, simples, essencialmente
originais – interesse que se materializaria apenas com a publicação póstuma das Réflexions et menus propos d'un peintre genevois ou essai sur le beau
dans les artes, de Rodolphe Töpffer (1799-1846), poucos anos depois, em
1849. Ainda que Sand recorra à comparação com a arte infantil, a identificação entre desenhos de criança e desenhos indígenas, como ela mesma
destaca, não é completa, devido ao elegante "sentimento de forma e de
proporção" visível nestes últimos. Segundo Fabre (2006), dez anos antes
da The Grammar of the Ornament de Owen Jones (1809-1874), Sand já
esboça um dos programas característicos da modernidade, o da passagem do simples ao complexo dentro da história da civilização. O engajado texto de Sand é ilustrado, ao final, por sete retratos dos índios da Indian Gallery feitos por Maurice, a seu pedido.
Nesse mesmo volume de Le Diable à Paris, em que publica o texto
sobre a Indian Gallery de Catlin, há um pequeno conto de George Sand em
que as discussões estéticas, ainda que incidentalmente, ressurgem. Trata-se
de Quelques mères dans le beau monde. Nesse conto o narrador, um jovem
recém-chegado da província, vai a seu primeiro baile na cidade de Paris,
acompanhado pelo amigo, o parisiense Arthur, que o apresenta à rica e
gorda tia, à coquete mãe e à solteira e desajeitada irmã, Emma. O narrador,
concentrando-se na análise dos trajes daqueles que se divertem no baile, se
choca com a feiúra e com a falta de decoro de boa parte deles. Sobre isso
conversa com um experiente pintor, velho amigo da família de Arthur.
O pintor expõe sua teoria sobre a relação entre a arte e a beleza nos seguintes termos:
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A natureza nada faz de tão feio que o artista não possa
embelezar ou enfear ainda mais; depende do artista. Todo
o ser humano é o artista de sua própria pessoa no plano
moral e no físico. Ele disso tira bom ou mau partido, conforme esteja no plano verdadeiro ou no falso. […]. Disse
que o belo era a harmonia, e que, como a harmonia presidiria as leis da natureza, o belo estava na natureza. Quando perturbamos essa harmonia natural, produzimos o
feio... (SAND, 1863, p. 27).
Nos bailes parisienses a harmonia natural é perturbada pela falta
de decoro no uso dos trajes, e por sua impropriedade. Dito de outro modo, Sand opina sobre um tema que seria discutido energicamente ainda
pela geração seguinte, a de Baudelaire: a moda. Para o pintor, encarnação
da voz de Sand, o belo pode se manifestar na moda, desde que sejam
respeitadas as convenções em termos de vestimenta apropriadas a cada
idade – a mãe de Arthur, o amigo do narrador, peca por querer parecer,
através de seus coloridos vestidos, mais jovem do que de fato é. Em busca de amparo, de argumentos que defendam esse seu princípio estético
aplicado à moda, o pintor invoca as obras de antigos mestres, como os
homens de barba branca de Rembrandt e as matronas de Van Dyck.
A moda, em suma, não deve ser entendida como instrumento de “distinção de castas”, mas como expressão da harmonia alcançada nas diferentes etapas da vida.
Uma obra de maior fôlego escrita por George Sand em 1845 e publicada no ano seguinte, em 1846, é La Mare au Diable, sua primeira novela campestre. O vínculo com a nova escola de paisagem na pintura já
havíamos percebido no início da década de 1830, através da amizade
mantida com Théodore Rousseau, o expoente da École de Barbizon. A ligação entre os romances campestres de Sand e a escola francesa de paisagem é, de resto, bem explicitada por Sarlet:
La Mare au Diable e, de uma maneira geral, as obras campestres de G. Sand são aparentadas ao movimento que,
dos anos 1830 a 1860, desenvolveu a representação da paisagem nacional, rural, democrática. Essa sucedia à paisagem real e principesca, ordenada em parques construídos
de sábias arquiteturas, herdeiros de Lorrain e de Poussin,
e que se manteve durante todo o século XVIII. (SARLET,
1998, p. 12).
George Sand, na Notice que escreveu em 12 de abril de 1851 para a
edição ilustrada de suas obras, publicada por Hetzel no ano seguinte,
retoma as origens da novela, os elementos que a motivaram a escrevê-la;
e, ao observarmos esse levantamento, novamente nos deparamos com o
universo das artes visuais como estímulo criativo e como pedra de toque
da reflexão romanesca:
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Para La Mare au Diable em particular, o fato que reportei
no Avant-Propos, uma gravura de Holbein, que me havia
chamado a atenção, uma cena real que tive sob os olhos no
mesmo momento […], eis tudo o que me levou a escrever
essa história modesta, situada em meio a humildes paisagens que eu percorria a cada dia. Se me perguntam o que
quis fazer, responderia que quis fazer uma coisa muito tocante e muito simples […]. Tudo o que o artista pode esperar de melhor é incitar os que têm olhos a ver também.
Vejam então a simplicidade […], vejam o céu e os campos,
e as árvores, e os camponeses no que têm de bom e de
verdadeiro [...]”. (SAND, 1998, p. 24).
Como já vimos, George Sand era afeiçoada a gravuras, e não causa
espécie que justamente uma gravura de Holbein sirva como elemento
propulsor de sua novela. O fato de o escolhido ser Holbein, e não um
artista contemporâneo, também é significativo: os artistas e intelectuais
de sua geração, na França, estavam em pleno processo de revalorização
dos chamados antigos mestres. Assim, Holbein, Dürer Michelângelo,
Callot, Goya e, principalmente, Rembrandt adquiriam um novo estatuto
simbólico, como uma espécie de alternativa romântica ao passado clássico e ao presente neoclássico, estatuto acompanhado, evidentemente, pela
valorização de mercado de suas obras.
No primeiro capítulo da novela, denominado L'auteur au lecteur,
Sand, como autora, apresenta a seu leitor uma gravura de Holbein em
que um trabalhador, conduzindo a charrete no meio de um campo, é
acompanhado de perto por um esqueleto com foice, o espectro da morte.
Os artistas de antigamente testemunhavam difíceis condições sociais e
religiosas, e recorriam com frequência aos memento mori, como esse de
Holbein. Contrastando o cenário antigo com o estado das artes na França
em sua época, a autora se pergunta:
Crime e infelicidade, eis o que o atingia; mas nós, artistas
de um outro século, que pintaremos? Buscaremos no pensamento da morte a remuneração da humanidade presente? A invocaremos como o castigo da injustiça […]? Não,
não temos mais compromisso com a morte, mas sim com a
vida. (SAND, 1998, p. 28-29).
Sand critica assim os artistas de sua época que pintam “a dor, a abjeção da miséria” (SAND, 1998, p. 29). Para ela “a missão da arte é uma
missão de sentimento e de amor” (SAND, 1998, p. 31). Já a finalidade do
artista deveria ser “fazer amar os objetos de sua solicitude, e, havendo
necessidade, eu não o repreenderia por embelezá-los um pouco” (SAND,
1998, p. 31). Por último, salientamos uma das frases mais marcantes desse
capítulo: “A arte não é um estudo da realidade positiva, é uma busca da
verdade ideal” (SAND, 1998, p. 32). Percebemos aqui, claramente manifesto, o limite que Sand impõe à realidade, tanto na política quanto na
literatura e na arte: socialismo sim, desde que utópico; realidade natural
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retratada no romance campestre, desde que mostrada pelo lado mais
brilhante; a natureza retratada na pintura de paisagem, desde que retrabalhada pela imaginação a fim de garantir harmonia e proporção, os fundamentos da beleza.
Tais características do pensamento estético e político de George
Sand, que rejeita a pura tematização da feiúra e da tristeza, são apreendidas por um dos grandes críticos de arte da época, Théophile Thoré (18071869), dileto de Delacroix e amigo de George Sand. É a ela que Thoré
dedica o seu Salon de 1846, a “George Sand e a sua imortalidade” (THORÉ, 1846, p. VIII). Thoré inicia seu breve prefácio, intitulado À George
Sand, comentando que antigamente os empreendimentos literários eram
dedicados aos deuses. Mas os grandes homens viveram mais do que os
deuses – Homero viveu mais do que Júpiter. E os antigos deuses estão
mortos. Ele decidiu dedicar o Salon de 1846 a Sand porque ela pertence ao
mesmo tempo, a sua época, a França de 1846, e à eternidade (antecipando
argumentos que Baudelaire usaria em 1855 para formular o conceito de
beleza histórica). Thoré elogia George Sand por não recorrer, em seus
romances, aos clichês românticos então em voga: a Idade Média e personagens históricos da França ou da Inglaterra. Sand prefere personagens
comuns, como uma florista – se ela quisesse “ressuscitar” uma figura
como Joana d'Arc, Thoré garante que encarnaria sua alma em uma camponesa.
Thoré elogia Sand também por possuir no domínio criativo a “originalidade verdadeira”, pois toma da natureza os personagens e os
transporta para o universo literário de modo autêntico, sem adorná-los
com uma “moldura gótica ou Pompadour” (THORÉ, 1846, p. X). Thoré
compara ainda a arte de Sand com a de outras referências máximas do
romantismo:
Uma frase sua, descobrimo-la a princípio por um certo
perfume que ela exala, mais ainda do que por sua forma:
há apenas o seu sentimento que floresce assim. O colorido
dessa flor poética resplandece como a pintura de Eugène
Delacroix, o tom muito alto, mas sem dissonância, graças a
seu instinto dos tons intermediários e do claro-escuro. Você possui o tom menor, como Beethoven em sua divina
música. Jamais negro ou branco, jamais tintas chapadas:
próximas a um tom fulgurante, gradações ricas, mas insensíveis devido a sua abundância, uma gama infinita,
como na criação natural, iluminada pelo sol. (THORÉ,
1846, p. X-XI).
Dando prova cabal de haver lido La Mare au Diable, a recémpublicada novela de sua amiga, pela citação que reproduz ao final do
trecho que iremos transcrever, Thoré continua a comparar George Sand
com os pintores:
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Você é pintora tanto quanto os maiores pintores, e você
tem as duas qualidades que nos apaixonam na arte, nós os
refinados pela pintura. Você tem a originalidade da cor e
da imagem, ao mesmo tempo que a significação do pensamento. "A arte não é, como você diz maravilhosamente,
um estudo da realidade positiva, mas uma livre busca da
verdade ideal". (THORÉ, 1846, p. XI).
Thoré compartilha em muitos pontos da sinestésica e idealista visão de George Sand sobre as artes, e concorda que a arte deve mesmo
visar à busca da verdade ideal. Ainda que o posicionamento estético
idealista de Sand parecesse aos seus amigos bastante claro, pelo menos a
partir de 1846 irão surgir as tentativas, cada vez mais enfáticas, de aproximá-la do incipiente movimento que surge na pintura francesa, o Realismo.
O principal responsável por essa iniciativa é Jules Champfleury
(1820-1889), que trava conhecimento com George Sand em 1846. Mencionamos anteriormente que o filho de Sand preparava marionetes, e a própria escritora tinha vivo interesse pelo universo teatral. Champfleury
será, já na década de 1840, um dos principais responsáveis pelo novo
fôlego que o Théâtre des Funambules, especializado em pantomimas,
receberá em Paris (o Théâtre será demolido em 1862, dentro do plano de
reformas de Paris, bem como a região em que se situava, o Ancien Boulevard du Temple). George Sand, assim como Théophile Gautier (18111872), entre outros, escreve sobre as pantomimas de Champfleury (BOUVIER, 1913, p. 14). Nesse período Champfleury e Charles Baudelaire
(1821-1867) são grandes amigos. Baudelaire nunca deu provas de admirar
George Sand, pelo contrário, e Champfleury muitas vezes lhe fez coro.
Conforme Bouvier, Champfleury "não amava nem sua personalidade,
nem suas obras" (BOUVIER, 1913, p. 210). Ainda assim, reconhecia Sand
como uma precursora da abordagem de problemas sociais nos romances,
característica que será fortemente vinculada ao realismo (ROSENTHAL,
1914).
Sand resiste às tentativas de Champfleury de inscrevê-la no Realismo. Em sua vida privada o envolvimento com as artes plásticas, nos
mais variados níveis, prossegue. Sua filha Solange, por exemplo, casou-se
com o escultor Auguste Clésinger (1814-1883) em 1847. No mesmo ano
em que se casou, Clésinger causou escândalo no Salão de Paris com sua
escultura Mulher mordida por uma serpente, elaborada a partir de um molde de gesso tirado de sua modelo Apollonie Sebatier, figura prestigiada
na vida mundana de Paris e amante, entre outros, de Charles Baudelaire.
O motivo do escândalo é, sobretudo, a extrema ousadia da pose da modelo. Também seria ele que faria, em 1850, a escultura de Euterpe, Musa
da Música, colocada no Père-Lachaise, na tumba de Chopin, morto em
1849.
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O momento decisivo na tentativa de Champfleury de converter
Sand ao Realismo será 1855, um ano particularmente difícil para a escritora. Em 13 de janeiro morre sua netinha, Jeanne Clésinger, a Nini, nascida em 1849, e a quem Sand era muito apegada. Entre 28 de fevereiro e 17
de maio de 1855, Sand reside na Itália, de luto. De volta a Paris, George
Sand visita o magnificente Palais des Beaux-Arts, que acompanha a Exposição Universal de Paris, rival da Grande Exposição de Londres de
1851. Lá admira as telas de Ingres, Vernet e Delacroix. Do outro lado da
avenida Montaigne, visita a pouco frequentada exposição de quarenta
telas realistas de Courbet, cuja participação no Palais havia sido recusada
em fevereiro. Em uma carta de 23 de maio, sobre os quadros de Courbet
Sand diz o seguinte: «Vi os quadros do famoso Courbet. Ele não é nem
surpreendente, nem tão excêntrico quanto se dizia. É insignificante e é
besta, nada mais» (SAND, 1969, p. 150).
Champfleury, como George Sand, partilhava do amor romântico
pelas artes "primitivas", para ele simbolizadas não necessariamente pelo
desenho infantil ou pela ornamentação indígena, mas sim pelas chamadas artes populares, como destaca Schapiro: "Em contraste com estas
opiniões, Champfleury encontrou nas artes populares primitivas e contemporâneas qualidades que justificavam sua comparação com a mais
elevada arte civilizada" (SCHAPIRO, 1944, p. 178). Por outro lado, assumiu o papel de advogado do Realismo, e em uma provável jogada
de marketing, na tentativa de defender Courbet, cuja exposição fora um
retumbante fracasso de público, Champfleury publica no periódico L'Artiste de 2 de setembro de 1855, a carta aberta Sur M. Courbet. Lettre à George Sand.
Na carta, George Sand é invocada em momentos estratégicos.
O parágrafo inicial, em que a exposição de Courbet é sucintamente
apresentada, começa com “No momento em que estamos, madame,
vemos a dois passos..." (CHAMPFLEURY, 1857, p. 270). Mais adiante
Champfleury justifica o fato de dirigir a carta a Sand: “Se lhe dirijo essa
carta, madame, é pela viva curiosidade repleta de boa fé que demonstrou por uma doutrina que toma corpo dia a dia e que tem seus representantes em todas as artes” (CHAMPFLEURY, 1857, p. 272). Champfleury se furta ainda à difícil tarefa de formular uma definição consistente de realismo: "Não lhe definirei, madame, o realismo: não sei de
onde ele vem, para onde vai, o que é; Homero seria um realista, uma
vez que observou e descreveu com exatidão os costumes de sua época”
(CHAMPFLEURY, 1857, p. 273). Ele insiste nos argumentos socialistas:
Courbet equivale em seus quadros os quebradores de pedras e os nobres, os camponeses e os burgueses. Como Sand já havia feito antes, em
Quelques mères, Champfleury critica os excessos da moda de sua época,
com a efusão de plumas e ornamentos caros. Ele antecipa também a
crítica que idealistas como Sand poderiam lhe dirigir: “seu pintor carece
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de ideal” (CHAMPFLEURY, 1857, p. 275). E a ela responde afirmando
que Courbet é tão pintor quanto os mestres flamengos e espanhóis, e
que, além disso, é dotado de bom senso, o qual transparece em seus
quadros. Quase ao final da carta, Champfleury a apresenta como a primeira de uma série: “Esta carta, madame, é apenas o anúncio de algumas outras cartas que tratarão mais diretamente das ideias novas que
estão no ar e que tentarei fixar, aplicando-me, sobretudo, àquelas relativas à literatura” (CHAMPFLEURY, 1857, p. 282). Intenção que, hoje o
sabemos, nunca foi concretizada.
Quase dois anos após a publicação da carta no L'Artiste, Champfleury, nas Quelques notes pour servir de préface, de 27 de março de 1857,
que acrescenta ao texto original, inserido em seu volume Le Réalisme,
insiste ainda uma vez em cortejar George Sand, na tentativa de situá-la
nas origens do movimento realista:
Os grandes espíritos sempre têm boa fé: eles pressentem a
marcha das coisas por muito terem refletido; eles conhecem o caminho que traçaram a seus sucessores, e não temem confessar que deram tudo o que podiam dar.
Madame Sand escrevia, já há sete anos, no começo de seu
drama Champy:
"Haverá uma escola nova que não será nem clássica nem romântica, e que talvez não vejamos, porque falta tempo para tudo; mas
sem dúvida essa nova escola sairia do romantismo, como a verdade sai mais imediatamente da agitação dos vivos do que do sono dos mortos". (CHAMPFLEURY, 1857, p. 7).
Outra vez seu desejo não obteve o eco esperado. O Realismo, assim como o Romantismo nas artes plásticas francesas, também passou.
Depois da fracassada exposição de 1855, Courbet vivenciou problemas
sérios com o álcool, ao mesmo tempo em que começou a produzir uma
arte mais palatável ao Salon de Paris. Baudelaire rejeitou os realistas com
todas as suas forças, e a amizade com Champfleury estremeceu. Champfleury dedicou-se cada vez mais à função de historiador das artes populares e gráficas.
George Sand, por sua vez, além de escrever, continuou a experimentar como artista amadora. Seguindo o modelo de Victor Hugo, a partir do início da década de 1860, criou paisagens oníricas por meio das
formas obtidas através da tinta aleatoriamente prensada pelas folhas
dobradas de um pedaço de papel, os chamados dendritos. Seu filho Maurice finalmente se casa, também ele com uma pessoa do universo das
artes, Lina Calamatta, filha do famoso gravador Luigi Calamatta; grande
amigo de George Sand e principal tradutor da obra de Ingres para a gravura, e da igualmente artista Joséphine Calamatta, pintora discípula de
Ingres, neta do escultor Houdon, filha do arqueólogo e helenista Désiré
Raoul-Rochette, e que abandonou o marido e a filha em 1852. Sand viveu
de 1849 a 1865 com o gravador Alexandre Damien-Manceau (1817-1865),
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que lhe fora apresentado por seu filho Maurice. Ainda assim, apesar desse convívio cotidiano com artistas mais jovens, Sand se manteve fiel aos
artistas românticos que admirava na juventude, e aos mais respeitados
pelo Salon. Assim, não deu importância ao Salon des Réfusés, de 1863, e em
1866, quando torna a ver os quadros de Courbet, agora bem-sucedidos, se
limita a especular sobre as causas desse, a seus olhos, inusitado sucesso:
"É porque não há figuras, provavelmente" (SAND, 1969, p. 223).
Recebido em abril de 2010.
Aprovado em abril de 2010.
George Sand and the Art Criticism: from Romanticism to Realism in the French Art of XIX Century
Abstract
This article considers the relations of the novelist George Sand with the artistic scenario of
her time, focusing especially on her position at the transition between romantic art and
realistic art, in the 1840s and 1850s. This analysis will give privilege to the following texts:
George Sand's La Mare au Diable and Quelques méres dans le grande monde, Théophile Thoré's
Salon de 1846, and Jules Champfleury's Lettre à George Sand.
Keywords: George Sand. Art Criticism. Romanticism. Realism.
Referências
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BOUVIER, Émile. La Bataille réaliste: 1844-1857. Paris: Fontemoing & Cie.,
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