2013/08/21 – Quem ri por último
Transcrição
2013/08/21 – Quem ri por último
Quem ri por último… Por onde começar… Desde Abril de 2013 que me têm faltado as oportunidades de fazer uma esperazita. Não tenho tido tempo para viver a modalidade como gosto, o que tira um pouco a mística da caça e, consequentemente, tem-me levado a adiar. Mas sempre foi um bom tempo de treino, de aperfeiçoamento do tiro, de conhecimento do material tradicional e dos seus limites cada vez mais exigentes. Ora bem. Este mundo dos arcos tradicionais tem muito que se lhe diga, em todos os aspectos. Na busca de aperfeiçoar a minha prestação, encomendei um quiver, umas flechas Arrow Dynamics, insert’s de 100 grains, penas novas e wraps reflectores. Após as afinações necessárias o meu conjunto ficou assim: Arco BW PSA V Ironwood, 60”, 53#@28” abrindo eu 29” o que dará, mais ou menos umas 56#. Flechas AD Trad Heavy cortadas a 29 ½ com insert de latão de 100 grains e pontas de 3 lâminas VPA Terminator de 200 grains. 4 Penas shield cut de 5” brancas e wraps branco reflector de 7” Isto dá exactamente 688 grains de peso da flecha completa com 23% F.O.C. Um martelo como deve de ser, portanto. Estas flechas, por serem bastante mais pesadas que as que estava a usar (e uso ainda) anteriormente, têm uma trajectória com mais queda, o que levou a bastante treino para que o subconsciente interiorizasse esta característica. O uso do quiver e o peso que trás ao arco não alterou a afinação do mesmo, embora fosse uma coisa com que estivesse a contar. Aproveitei estes meses de retiro para treinar e treinar e treinar. Fiz disso uma necessidade e obrigação, até porque quando fazemos uma coisa de que gostamos, nem sequer custa muito. Poucos foram os dias em que não atirei. Nem que fosse só umas 3 ou 4 flechas. Treinei de dia e de noite, sentado, de joelhos, de ângulos diferentes, distâncias diferentes (max. 15 m) e de cima para baixo. Todas estas posições trazem alguma coisa diferente a cada tiro. Se nalgumas a coisa estava controlada, noutras era o descalabro. E o pior é que era nessas mesmo que eu previa ir caçar!!! Consultando a agenda, preparei-me para, em Agosto, fazer uma espera. Elegi dois cevadouros que tratei de manter abastecidos e vigiados. As câmaras queixinhas começaram a fazer das suas. Fêmeas e crias era o que aparecia nas fotos, mas com horários incertos. Num dos cevadouros montei a minha tree stand enquanto no outro tratei de fazer uma remodelação para poder atirar do chão, em vez de estar a 4 metros de altura. A distância a que me estava a propor atirar é curta, de maneira que a atenção ao vento para colocação do posto de espera é fulcral, se não, somos descobertos antes de descobrirmos alguma coisa…! Dia 14 de Agosto, 2º dia do período legal de caça deste mês, apresentei-me ao serviço acompanhado do meu querido material, eram umas 20h. Fui para o palanque do chão prevendo que os javalis entrariam à hora do costume, algures entre as 21h e as 22h. Controlei o vento com o meu home made dispositivo (um frasco de Vic Vapor-Up cheio com o pólen do fungo conhecido como “Bufa de lobo”), estava tudo controlado. Só me restava esperar. O vento constante transformou-se em brisa e desta passou a nada! Nada, mas nadinha mesmo… Não sei o que se passou essa noite mas nem uma bufinha de rato ouvi… Fiquei ali, à espera de ouvir alguma coisa, até à 1 da manhã e nada! Nem restolhar, nem partir mato, nem uma bufadela, nem um ronquinho nem uma briga sequer… Nada! Desconfiado e pensativo retirei-me aos meus aposentos e reflecti sobre a coisa. Será que me sentiram chegar? Terei ido tarde? Será que já estariam nas imediações e deram pela minha chegada? Ou simplesmente não foram naquela direcção àquela hora?! Só as fotos do dia seguinte me iriram dizer alguma coisa. Caso lá estivessem e tivessem dado pela minha presença, apareceriam nas fotos depois de eu sair, pois não podiam ter ido embora sem que eu os ouvisse. Se lá aparecessem mais tarde, simplesmente teriam ir dado outra volta. No dia seguinte verifiquei as fotos e confirmei que lá tinham ido, mas às 6 da manhã… Nem pensar que, durante uma semana de trabalho, vou ficar à espera até essas horas! Entretanto, no cevadouro onde tinha a cadeira (tree stand), apareciam 2 fêmeas com pequenos a horas decentes. Dia 16, sexta feira, desloquei-me a este posto. Instalei-me cedo, pelas 19h, para que o sol queimasse algum do meu rasto, verifiquei o material e a posição de tiro que me seria possível, avaliei as moitas para que durante a noite, estes vultos escuros não me sobressaltassem, e esperei. Pelas 21h oiço restolhar ao longe. Boa, pelo caminho que traziam não me iam sentir. Vejo ao longe um vulto grande que, ao se deslocar pelo aceiro, fica atrás de uma copa de sobreiro. Aproveitei para me levantar para poupar nos movimentos. Sim, porque com a comida a 6 metros, todos os movimentos são óptimos para nos denunciar. Os porcos vêem mal mas ainda assim, 6 metros são 6 metros! Entra-me ao cevadouro um porcalhão de aproximadamente…. 1 kg! Não devia ter mais! A mãe vinha a ralhar com a imprudência dele e, com ela, vinha um farropo jovem. A porca, assim que se aproximou, olhou para a minha árvore e logo ficou desconfiada. Com esta ordem de cautela, o jovem acompanhante nunca chegou a entrar, mas o pequeno lá continuava a encher o bandulho! A porca não ficou contente e foi dar uma volta alargada encontrando, inevitavelmente, o meu cheiro, dando um ronco de alerta e pondo a malta toda a mexer. Ficaram nas minhas costas a rondar de um lado para o outro, mas não foram embora. E agora?! Estes já cá não vêm mas também não me posso ir embora, se não, dou de caras com eles e estrago o sitio para outra vez. Enquanto esperava que se pirassem de vez, oiço restolhar ao lado e vejo-os entrarem ao cevadouro. Eram os mesmos! O mesmo porcalhão de 1 kg, o jovem farropo e a porca. O pequeno afincou outra vez os dentes no milho e por lá ficou, o farropo parou numa sombra e a porca, numa corrida, passou pelo milho, encheu a boca e pirou-se para vir ralhar comigo outra vez… Uns minutos depois, ainda com estas 3 marias à minha frente, oiço nas costas um grunhido. A porca também ouviu, eriçou a crista, deu uma corrida (levando o seu grupo com ela) e foi dar umas trombadas nos porcos que lá vinham. Uma algazarra barulhenta. Lá se pelearam e piraram-se, juntos ou não, mas nada mais apareceu! Como o pequeno era pequeno demais para eu atirar, a porca não me interessava pois tinha o pequeno para cuidar e o farropo nunca se pôs a jeito, aproveitei para, além de apreciar este espetáculo, analisar a situação/posição da cadeira onde eu estava para, caso pudesse atirar, haveria alguma coisa que facilitasse o tiro. Deduzi que sim, poderia e deveria rodar a cadeira 90 graus para a direcção do vento e deveria baixa-la uns 2 metros. No dia seguinte assim fiz, tratei da cadeira e deixei o local sossegar em paz para que voltassem a entrar com confiança, até porque tinha o outro cevadoura em descanso à uns dias… e eles já tinham voltado a entrar a horas decentes! Terça-feira, dia 20. Voltei a eleger o posto do chão para ir passar o início da noite. A previsão dizia que iria haver mais vento. Fui cedo, ainda o sol aquecia. Quando cheguei, já com uma sensação de desespero por ver/ouvir/sentir alguma coisa, decidi subir as escadas. Talvez me desse alguma vantagem na entrada dos bichos. No tiro sabia que não ia dar, mas mais importante que o tiro era ver alguma coisa. Vai à bruxa, dizia o amigo PV por mensagem… Vai à capelinha! De certeza que te rogaram alguma… Pois voltou-se a repetir a mesma coisa… NADA!!! Passou lá uma lebre, de resto, só melgas! E a noite estava tão boa! Mais uma vez puxei a casa sem levar nada, só os “porquês” o “comos”! Dia 21, noite de lua cheia. Arrumei a ideia de voltar a insistir no posto do chão e virei a atenção para a tree stand. Já a tinha mudado de direcção e já tinha uma ou duas lições a tirar da noite em que lá tinha estado. Para atirar com arco é necessário que o porco se ponha a jeito para o tiro, ou seja, ou de ladecos, ou a ¾ com os traseiro virados para nós, de maneira a que a flecha tenha o caminho livre de ossos grandes (mão e omoplata). Em qualquer uma desta posições, os ossos que se encontram são as costelas que não oferecem m obstáculo por aí além às flechas. Como dispor a comida de maneira a que eles fiquem numa posição que me facilite o tiro?? Esta era a questão. Com o cevadouro numa descida já tinha aprendido que os porcos, caso consigam, não comem de cabeça para baixo. Como o meu posto está acima da comida na encosta, eles vão esta sempre virados de cabeça para mim… Como vou espalhar o milho para que me dêem oportunidade de atirar?! Fiz dois carreiros perpendiculares um ao outro e espalhei umas mãozadas aleatórias. Haveria milho espalhado para todas as posições! Lá me apresentei ao serviço, cedo outra vez. Não queria perder a oportunidade por chegar tarde. O frio apareceu quando o sol se escondeu, o que me obrigou a vestir um casaco. Fiz uma última avaliação da situação do tiro, caso esta se viesse a proporcionar, e esperei… Pouco depois das 22 horas, barulho… Vinham pela mesma estrada! Voltaram a ficar tapados, por momentos, pela mesma copa e eu, aproveitei para me levantar outra vez. Déjà vu… Entram ao cevadouro duas porcas e bastantes pequenotes. Ora bolas… Será que só entram estas porque sabem que não lhes atiro?? E se atirasse a um dos pequenos?! Bolas, a lua ainda não subiu e o cevadouro é escuro. Além disso, esta canalha pequenina junta-se toda e formam um vulto grande… Assim não dá para atirar!!! Nem os distingo uns dos outros! Onde acaba um e começa o outro?! Bem, é a minha sina, vou-me sentar e apreciar esta cena! A cadeira fez um nhéc metálico pequenino e, o que eram uns porquinhos passou a ser uma nuvem de pó! Quase me fazia tossir… Decidi espera mais um bocado. À meia noite piras-te. Nem meia hora depois oiço, longe, umas grunhidelas infernais. Não são os mesmos, pensei. Ainda há um minuto os ouvi a ralharem (outra vez) comigo aqui a trás de mim, não tiveram tempo de voar até tão longe. Levanto-me e olho lá para longe, onde vinha o barulho. Um vulto grande passa a estrada. E outro! E outro! E mais outro!!! Ai jasus o que prá’i vem… Fiquei de pé e a acompanhar o barulho enquanto este se aproximava de mim. Entram, a correr, 3 porquecos esfomeados, qualquer um deles um bom troféu para a minha estreia. Uma das coisas que recordei logo da experiência que tinha tidos momentos antes, é que, provavelmente, se iriam juntar todos cabeça com cabeça, a comer o já pouco milho que restava, e eu não iria distingui-los outra vez! Além disso, cada vez mais porcos se juntavam, ainda vinham outros a caminho e ainda ouvia outros ao longe… Bar aberto de porcos portanto! Tive alguma pressa em atirar a estes primeiros, pois ainda só se tinham juntado uns listados e estes maiorzitos ainda se distinguiam bem. Aponto e Záaassss… Nada! Falhei por cima do visado e nenhum deles se importou! Fiquei espantado, especialmente com duas coisas! Uma, eles não fugiram por ter uma flecha espetada no chão no meio deles (até acho que se coçaram nela!)(ver flecha na foto). Duas, o arco é tão silencioso que também não o ouviram! E os outros grandes a caminho! Eles não fugiram mas deram um saltinho, o que fez levantar muito pó e deixei de os ver por momentos. Enquanto metia outra flecha no arco, tentei perceber que outros porcos vinham lá. Consegui ver 4 porcas grandes e um grande vulto, bastante mais cauteloso e vagaroso na corrida. IIIII, que bicho grande. Só pode ser macho. Tem uma cabeçorra e uma conformação de corpo de macho. Uma espádua profunda e uma traseira a descer. Estava parado a uns 20 metros da comida enquanto o cevadouro se enchia de senhoras… Automaticamente pensei em deixa-lo entrar para lhe atirar, só que… Uma das porcas, assim que chegou ao cevadouro deu uma snifadela na flecha e ohhhh, parecia que tinha visto o diabo! Um ronco de alerta e foi ver aquela malta toda atrapalhada, a esbarrarem uns nos outros, para saírem dali depressa. Todos excepto um, o guloso mal educado da grupeta! Perante este cenário, voltei a atirar, ainda com muito pó à mistura. Oiço o sm da flecha a bater no porco imediatamente seguido de uma guincharia enorme. Ele leva o tiro e fica às voltas no mesmo sitio que enm um cao atrás da própria cauda. Mando a mão à lanterna para ver o sucedido e vejo a flecha cravada na garupa do porco… Oh meu Deus, que tiro de trampa… M****!!! Parou por momentos de girar e pôs-se a caminho, muito devagar, pelo trilho por onde tinha vindo. Com o tal wrap reflector da flecha, consegui acompanhar o seu trajecto até que o vejo entrar nas ervas altas e parar! Dita a regra da caça com arco que se deverá esperar para que o animal sossegue e se apague. Começou uma luta dentro de mim! Espero, como manda a regra, ou vou lá remata-lo correndo o risco de não me deixar aproximar e de se por a andar? A flecha, a reflectir a minha lanterna lá ao longe, de vez em quando abanava, mas não andava! Estás em choque, pensei eu! Vi que havia rasto de sangue e fui esperando a ver o que acontecia! De repente, a flecha anda mais um metro… Raios, estás a recompor-te do choque e vais-te embora com uma flecha cravada! Não pode ser… Saí da cadeira, fui buscar a flecha que estava cravada no chão e avaliei o que tinha de percorrer para o apanhar. Precisava de por o vento de frente e de lhe cortar o caminho. Havia um aceiro que me dava essa possibilidade. Em silêncio fui andando e controlando a flecha. Consegui passar para a frente dele e ficar com o vento a meu favor. Fui-me aproximando até conseguir vê-lo com alguma nitidez. Preparei-me e, ao ouvir-me, levantou-se. Levantou-se mas já estava a chegar uma flecha cheia de intenção de por fim ao seu sofrimento. Este tiro foi certeiro e não o deixou fazer mais nada senão cair para o lado e espernear mais um bocado! Entretanto ainda ouvia as porcas ali perto a recolher a miudagem tresmalhada. Deixei-me estar em silêncio, pus a mão no meu porquinho e apreciei, por momentos, a situação. Tinha cobrado o meu primeiro javali com arco tradicional. Sentado ao lado dele fiquei a moderar a briga de emoções que corriam dentro de mim. O meu primeiro javali com este arco e um tiro tão mau que, por momentos, provocou aflição neste pobre. Sim, porque acredito que, não sendo mortal o tiro, teve consciente do que estava a acontecer. Quando o tiro é mortal, penso que nem sabem o que lhes dá, mas este tentou fugir, ouviu-me chegar, enfim, coisas que nos passam cá dentro quando temos tempo para pensar nelas! Embora contente, não era assim que queria que tivesse sido a minha estreia! Depois de uns minutos, tirei umas fotos e fui buscar o carro para o carregar. Da autópsia retirei as seguintes conclusões: O primeiro tiro partiu-lhe a bacia e fez saltar o fémur da anca. A flecha ainda desfez os intestinos em papa. Parecia resultado de uma bala! Não sei que característica terão estas pontas, mas nunca vi tiro nenhum de flecha provocar este tipo de estragos. Talvez seja a cavitação que os seus criadores tanto apregoam! Como estava enviesado para mim, errei o meu alvo por 4 dedos, o que não é um tiro assim tão mau! O porco era pequeno e a distancia entre a garupa e o inicio das costelas é bastante reduzido. O segundo tiro foi ligeiramente alto. Com isto, atravessou a omoplata, cortou a coluna em duas partes e atravessou a outra omoplata. A coluna, ao ser literalmente migada, cortou os pulmões na parte superior. A carninha tem um aspecto delicioso, e tem as dimensões de qualquer forno caseio… Foi assim a minha estreia. Estou rendido à beleza e pureza que este material trás à caça, à sua dificuldade e à disciplina a que obriga. Mais um passo foi dado, e mais uma vez estou sempre a aprender. Cumprimentos cinegéticos. Diogo Oliveira e Sousa