Reflexões sobre práticas não naturais do vestir-se
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Reflexões sobre práticas não naturais do vestir-se
Reflexões sobre práticas não naturais do vestir-se1 Reflections on unnatural practice of dress Julia Salgado Valentini de Souza2 Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ Resumo: No presente artigo pretendemos discutir os conceitos de mito e tradição pensados no âmbito da indumentária, mais especificamente na indumentária associada a certos trabalhos, e propor uma perspectiva de estudo da moda e do costume que considere seu caráter histórico, sua dimensão ideológica e sua realidade social. Abstract: In this article we intend to discuss the concepts of myth and tradition of thought under clothing, especially in clothing associated with certain jobs, and propose a prospect of study of fashion and costume that considers its historic character, its ideological dimension and its social reality. Palavras-chave: mito, tradição, indumentária. Keywords: myth, tradition, clothing. Cena típica do Centro do Rio de Janeiro: dezembro, sob um sol de 39oC, um policial vestido da cabeça aos pés com um uniforme escuro e grosso corre pesadamente pela Av. Rio Branco com seu coturno abafado atrás do moleque que acabou de roubar doces de uma banca. 1 Trabalho apresentado no GT Moda, Cultura e Historicidade do V Colóquio de Moda. 2 Possui graduação em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e especialização em Cultura e Técnica do Costume e da Moda pela Università di Bologna. Atualmente é mestranda no Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ, pela linha “Mídias e Mediações Socioculturais” e bolsista Capes. Email: [email protected] 1 Aparte a questão física e da idade – o moleque é jovem e muito esguio, enquanto o policial, já nos seus 40 anos, exibe uma silhueta mais rechonchuda – a roupa de ambos também ajuda no desfecho da história. O policial, suando em bicas e sem fôlego, desiste da perseguição ao moleque que, de shorts, regata e descalço, foge sem problemas. Nesse mesmo momento, já na altura da Estação da Carioca, um grande grupo de freis franciscanos vestidos com longas e pesadas túnicas marrons param para assistir a cena, enquanto seguranças de uma joalheria, enfurnados dentro de ternos completos e de qualidade duvidosa, ficam atentos à movimentação da rua. O que todos os personagens dessa cena – exceto o moleque fujão – têm em comum? Todos (policial, freis, seguranças) estavam em pleno verão tropical do Rio vestindo roupas totalmente inadequadas – do ponto de vista funcional, cultural ou histórico. Ou, em outras palavras, estavam todos incorporando, através de sua indumentária, mitos e símbolos que não pertencem ao seu contexto histórico, não respeitam a funcionalidade exigida à sua profissão ou que, com o passar do tempo, simplesmente tiveram o seu conteúdo simbólico esvaziado. Algumas fundamentações teóricas Em História Social da Moda (2008), Calanca nos mostra que no estudo sociológico e histórico da moda dois críticos se destacam: Roland Barthes e Fernand Braudel. A contribuição de Barthes é riquíssima e vastamente conhecida, mas talvez seu maior mérito tenha sido apontar as deficiências dos estudos da área até então propostos: Ele parte da constatação de que os estudos da história do costume seguiram, primeiramente, uma linha arqueológica, inventariante; depois, a partir da segunda metade do século XIX, uma linha mais científica. Apesar disso, Barthes revela, tanto nos estudos do último período do século XIX, como naqueles contemporâneos, a falta de uma perspectiva histórica completa, que indague a dimensão ideológica, econômica, social e sensível da “indumentária”. (CALANCA, 2008, p. 21) Mais adiante, ela complementa: 2 A classe social, afirma Barthes, é reduzida a uma “imagem” (o senhor, a dama, etc.) destituída de seu conteúdo ideológico. Além disso, o costume nunca foi posto em relação com o trabalho desenvolvido por quem o veste; desse modo, todo o problema do caráter funcional da vestimenta deixa de ser tratado. (Ibid, p. 22) Levando conosco esse objetivo – de tratar a moda e o costume sob um olhar histórico, ideológico e social – teremos como base teórica do presente estudo dois conceitos centrais: o de mito, visto em Marx (1987) e Barthes (1980); e o de tradição, em Coutinho (2002). Aqui cabe defini-los para que não restem dúvidas quanto ao sentido em que serão empregados. Em Mitologias, Barthes é taxativo: “o mito é uma fala” (1980, p. 131). Mais adiante nos faz entender que essa fala, essa comunicação, é uma forma, um modo de significar algo, e, portanto não pode ter em si um conteúdo imutável ou um significado fixo. Todo signo (seja ele de moda, política ou gastronomia) é constituído de uma forma (significante) e um conteúdo (significado), e a associação de ambos é totalmente arbitrária, contextual e histórica. Assim, defende Barthes, ... pode conceber-se que haja mitos muito antigos, mas não eternos; pois é a história que transforma o real em discurso, e é ela e só ela que comanda a vida e a morte da linguagem mítica. Longínqua ou não, a mitologia só pode ter um fundamento histórico, visto que o mito é uma fala escolhida pela história: não poderia de modo algum surgir da „natureza‟ das coisas. (BARTHES, 1980, p. 132) A naturalização de algo histórico através dos mitos é colocada por Barthes como uma fala roubada e depois restituída, mas essa restituição não é plena: a fala perde seu significado original, deforma-se. Marx (1987) vai além: a história, tal como ela é, não se repete, e, portanto, o mito é uma farsa, uma apropriação falaciosa do passado, que naturaliza e universaliza significações contextuais e particulares. Ambos concordam, portanto, que o mito, como fala tornada forçosamente natural, constitui um processo hegemônico, de promoção de uma ideologia dominante. O outro conceito que embasará nossa argumentação é o de tradição. Coutinho nos ensina que a palavra tradição carrega consigo um duplo sentido: é ao mesmo tempo ação de transmitir algo (portanto processual, subjetiva) e aquilo que é transmitido (objeto, coisa). Esse objeto, porém, não pode ser compreendido como algo eterno e inerte, mas sim como uma manifestação pregressa que sofre constantes modificações, e 3 assim se mantém viva e presente. A idéia de uma tradição imutável é vista por ele como uma “tradição fossilizada” (ou concepção metafísica da tradição): “Em todos os níveis de conhecimento, do folclore à filosofia, a concepção metafísica da tradição está presente e é hegemônica. Seu procedimento típico consiste em abstrair a cultura do processo histórico e pensá-la como algo da ordem do natural.” (COUTINHO, 2002, p. 16). Para a fundamentação teórica e histórica da moda, serviram de base textos como Storia della Moda e del Costume (MAUGERI & PAFFUMI, 2005), Moda e Comunicação (BARNARD, 2003), A Cultura das Aparências (ROCHE, 2007) e História Social da Moda (CALANCA, 2008), além de sites de referência religiosa como Tenda Franciscana3. Voltemos então alguns séculos ao passado para podermos entender o presente. O hábito faz o monge (ou será o contrário?) Para compreender melhor de onde vem e quais transformações sofreu ao longo dos séculos, precisamos voltar ao início do século XIII, na cidade de Assis, onde São Francisco começa sua vida religiosa e inaugura o uso do hábito franciscano, composto por túnica larga, capuz e cordão. Francisco, filho de um próspero burguês casado com uma nobre, pertencia a uma das famílias mais ricas e tradicionais da cidade do centro da Itália. Nada – em termos materiais, que seja dito – lhe faltava, mas ainda assim o jovem de 25 anos decide abrir mão de tudo aquilo que pertencia e abraçar a pobreza, como um gesto de entrega a Deus e à vida religiosa. Despe-se de seus pertences e suas roupas, e adota como indumentária uma simples túnica de lã em formato de cruz com capuz, que é amarrada na cintura por um cordão com três nós, que simbolizam seus votos: pobreza, obediência e castidade. E, diferente do que é comumente sabido, não andava com sandálias, mas sim descalço, seguindo orientação do Evangelho: “Não leveis bolsa, nem alforge, nem sandálias...” (São Lucas 10, 1-9). Poderíamos, então, sugerir que a adoção dessa indumentária foi a maneira encontrada pelo Santo para externalizar a transformação que sofria internamente. Ou, 3 Disponível em: http://www.tendafranciscana.org.br. Último acesso: 11/07/2009. 4 em outras palavras, o seu hábito era a forma (símbolo) de representação de um conteúdo (significado): devoção, entrega, desprendimento. Aqui se torna importante sublinhar o sentido utilizado da palavra hábito: não é empregada como maneira de viver ou costumes diários, mas sim como peça de roupa, indumentária. Hoje, oito séculos depois, encontramos seguidores de S. Francisco em vários países do mundo, inclusive aqueles localizados em regiões com climas quentes, como na América Latina ou na África. A distância temporal e espacial entre essas duas realidades (Itália do século XIII e América Latina/África do século XXI), porém, não fez apagar a marca da tradição – ou será tradicionalismo? – na forma de se vestir: ainda hoje as vestes usadas por S. Francisco são reproduzidas e usadas, mesmo em climas diferentes do temperado frio italiano. A questão que se pretende levantar aqui é que a preservação da forma (hábito franciscano) não necessariamente constitui uma preservação de seu conteúdo (votos de pobreza, devoção e castidade), enquanto, por outro lado, esses mesmos votos podem ser preservados e mantidos através de outras formas, de outros símbolos. Como coloca Coutinho, ... a tradição, longe de ser um objeto natural ou uma revelação divina, é a objetivação da ação humana, e (...) a transmissão no tempo das formas culturais não se realiza como mera reprodução mecânica, objetiva, e sim como um processo de reconstrução no qual a cultura é afetada e redefinida pelo esforço do sujeito. (COUTINHO, 2002, p. 21). Um padre ou um frei pode perfeitamente usar camiseta, calça ou bermudas e ainda sim manter intactos seus votos e ideais. Com isso não se quer – de maneira alguma – sugerir que o uso de túnicas e hábitos franciscanos, na contemporaneidade, são sempre mitos, imagens falaciosas e esvaziadas de seu conteúdo original. Mas sim elucidar para o fato de que sua forma não carrega consigo, de forma intrínseca, o conteúdo que lhe foi conferido num dado momento da história. E assim propor que o monge faz o hábito, e não o contrário. Do Rei Sol ao Valet Park 5 O terno masculino, roupa composta de três peças do mesmo tecido e cor (e por isso o nome terno) nasceu na França do século XVII, mais precisamente na corte de Luís XIV, o Rei Sol. “... naquele momento se consolidaram ao uso os três vestuários base da indumentária masculina, constituída da justaucorps, colete e culote...”.4 (MAUGERI e PAFFUMI, 2005, p. 128). A justaucorps, espécie de casaca longa (bisavó do atual paletó), junto com o colete e o culote (que dá origem às calças masculinas) formavam a roupa básica dos nobres franceses, que era usada nos momentos de lazer e ociosidade. Mais tarde, no século XVIII, surge uma versão mais simplificada do trio anterior, que é batizada habit complet à la française, e usada pelos “homens de negócio” da próspera burguesia. No século XIX, sob uma maior influência inglesa, o terno ganha linhas mais sóbrias e ajustadas, mas mantém-se como “uniforme dos elegantes e endinheirados”. Da corte francesa aos círculos de negócio de toda a Europa, o terno masculino não perde, porém, seu status de distinção, como uma vestimenta pertencente às classes social e economicamente dominantes. Para o economista social Thorstein Veblen, em A Teoria da Classe Ociosa (1988), o valor de uma mercadoria (aqui, uma roupa) não adquire importância somente pela satisfação e utilidade intrínseca que traz, mas também como símbolo e sinal de status social e econômico. Esse status era demonstrável não somente através de um consumo conspícuo, ostentatório, mas também pela capacidade do indivíduo de demonstrar riqueza por meio da ociosidade. Se puder ser mostrado que uma pessoa não é obrigada a trabalhar, ou pelo menos não manualmente, “então a evidência do valor social é realçada a um grau bastante considerável” (VEBLEN, 1988, p. 23). Essa ociosidade laboral era demonstrada na indumentária masculina através de ternos justos que impediam grandes movimentos, cartolas difíceis de serem equilibradas nas cabeças e tecidos nobres que sujavam e amassavam facilmente. A respeito disso, Barnard faz uma observação sobre uma expressão bastante conhecida até hoje: Um colarinho branco, sendo mais difícil de manter-se limpo, e ao mostrar a sujeira mais claramente do que um colarinho azul, deve ter sido originalmente associado ao trabalho não-manual. Já o colarinho 4 Livre tradução da autora apartir do original: “…quel momento si consolidarono nell’uso i ter idumenti base dell’abbigliamento maschile costituiti da justaucorps, veste e cullottes...”. 6 azul teria sido originalmente associado ao trabalho manual. Sendo o trabalho manual a província das classes trabalhadoras e o não-manual a das classes médias e altas, “colarinho branco” sinaliza status mais elevado do que “colarinho azul.” (BARNARD, 2003, p. 164) Assim, podemos afirmar que o terno, tal como foi concebido no séc. XVII e evoluindo ao longo dos anos, nunca assumiu um posto efetivo como uniforme de trabalho manual, onde força e suor deveriam ser empregados para obter um retorno pecuniário. Ao contrário, o terno era associado ao mundo dos negócios, sejam eles comerciais, jurídicos, financeiros ou especulativos. É essa linha de raciocínio que nos leva, hoje, a pensar que o uso de ternos em atividades manuais tais como seguranças, motoristas e porteiros, por exemplo, não é natural, mas sim foi naturalizada, imposta. Se o terno é um tipo de vestimenta que não pertence ao presente (e nem ao passado) histórico dessas profissões, assim como também não pertence à cultura da classe trabalhadora, por que o seu uso? Da onde vem essa determinação (diria até imposição) para que esses trabalhadores se vistam dessa forma? Segundo matéria recentemente publicada pela Revista Exame (FAUST, julho 2009), o aumento no consumo e uso de gravatas (e, por tabela, de ternos), se dá tanto por uma flexibilização dos preços das peças, que se tornam mais accessíveis hoje, quanto da exigência dos patrões para que seus funcionários se vistam de uma forma mais “sofisticada e profissional”: A gravata também tornou-se peça do vestuário de profissionais menos qualificados e tradicionalmente desobrigados de qualquer rigor no vestir. Há dois anos, a direção da Ultraparking, empresa de valet de São Paulo, tornou obrigatório o uso da gravata entre seus manobristas. "Ela dá um ar de sofisticação ao serviço", diz Marcos Aubin, dono da empresa, que, por sinal, dispensa o uso da gravata. (...) A história se repete na empresa de segurança SuHai, também de São Paulo. "A gravata passa uma imagem de profissionalismo e segurança", diz Aristeu Butrico, diretor de serviços. "Hoje, cerca de 80% dos clientes exigem que nossos funcionários usem gravata". (FAUST, julho 2009, p. 129-130) O curioso é perceber que, na contramão disso tudo, o uso do terno e gravata entre os altos executivos e homens de negócio cai vertiginosamente, principalmente nos países mais desenvolvidos. “„A verdade é que, assim que as pessoas têm opção, elas 7 deixam de usar gravata‟, diz Ian Murray, presidente da Vineyard Vines, marca americana de gravatas - e ele próprio um ex-usuário”. (FAUST, julho 2009, p. 129). Essa reportagem consegue exemplificar, de forma bastante clara, um movimento hegemônico que acompanha a moda há séculos: a diferenciação diante da emulação. Quando símbolos de status como o terno e a gravata passam a estar à disposição das massas (tanto em termos financeiros quanto em termos legais, pois não existem mais leis suntuárias proibindo o seu uso) e essas massas efetivamente se apropriam desses símbolos, as elites os abandonam, em busca de novos símbolos. Como foi dito na matéria, aqueles que podem vão usar outro tipo de roupa que não ternos e gravatas, e exigir que seus seguranças, motoristas e porteiros passem a usar aquilo que já se esvaziou de seu conteúdo histórico. Ou, ainda nas palavras de André Faust, Os fãs mais fervorosos da peça costumam dizer que uma gravata pode ter significado totalmente oposto dependendo de quem a porta - estilo e opulência para uns, deselegância e subserviência para outros. Trata-se de uma diferença que atravessa a história. (FAUST, julho 2009, p. 130). Considerações finais A uma leitura mais rápida ou superficial pode parecer que esse trabalho tem a intenção de desconstruir símbolos e costumes antigos, tradicionais. Não é a verdade. A intenção aqui é a de promover tão somente um movimento de reflexão que nos leve a ler e trabalhar a moda como uma práxis viva, uma cultura em evolução e nunca como algo fadado a repetir e imitar símbolos do passado. Um uniforme, um hábito ou uma farda, assim como tantas outras indumentárias, podem ser pensados e elaborados levando em conta não apenas seu passado histórico e suas tradições, mas também o contexto social e a realidade ideológica de quem lhe faz uso. Barthes, em entrevista a Muniz Sodré, afirma que “a moda não evolui, ela apenas muda”. Ousamos discordar e sugerir que a moda pode evoluir sim, basta que seja concebida em consonância com seu agente principal, o usuário. Referências bibliográficas BARNARD, M. Moda e comunicação. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. BARTHES, R. Mitologias. São Paulo: Difel, 1980. 8 CALANCA, D. História social da moda. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2008. COUTINHO, E. G. Velhas histórias, memórias futuras: o sentido da tradição na obra de Paulinho da Viola. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2002. FAUST, A. A economia da gravata. Revista Exame. São Paulo, edição 946, pg.128-130, julho de 2009. MARX, K. & ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Hucitec, 1987. __________. Contribuição à crítica da economia política (Prefácio). São Paulo: Martins Fontes, 1977. MAUGERI, V. & PAFFUMI, A. Storia della moda e del costume. Milano: Calderini, 2005. ROCHE, D. A cultura das aparências: uma história da indumentária (séculos XVIIXVIII). São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2007. VEBLEN, T. A Teoria da Classe Ociosa: um estudo econômico das instituições. São Paulo: Nova Cultural, 1988. http://www.tendafranciscana.org.br/sub_voc_15.htm (Último acesso: 11/07/2009). 9