2. A arte literária

Transcrição

2. A arte literária
Literatura
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SUMÁRIO
DO
VOLUME
LITERATURA
1. Arte
2. A arte literária
3. A linguagem literária
4. Gêneros literários
4.1 Gênero épico
4.2 Gênero dramático
4.3 Gênero lírico
5. As diferentes épocas por meio da literatura
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Literatura
SUMÁRIO COMPLETO
VOLUME 1
1. Arte
2. A arte literária
3. A linguagem literária
4. Gênero literários
5. As diferentes épocas por meio da literatura
VOLUME 2
6. Trovadorismo
7. Humanismo
8. Classicismo
VOLUME 3
9. Quinhentismo no Brasil
10. Barroco
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Literatura
Literatura
Queridos(as) estudantes,
Começa agora na vida escolar de vocês uma etapa
significativa: o estudo da Literatura. Muitos devem estar se
perguntando o que isso significa; outros devem estar pensando
“lá vem aquele montão de livro pra gente ler” ou “o que tenho a
ver com isso tudo?”.
Calma! Vocês verão o quanto é enriquecedor e instigante
o olhar que lançaremos sobre essa manifestação artística.
As respostas virão naturalmente e esperamos que, com elas,
venham mais e mais perguntas, porque é isso que move o ser
humano: o desejo de saber, de conhecer, de compreender a si
mesmo e o mundo que o cerca. Aos poucos, vocês perceberão
que esse “estudo” não tem o pragmatismo esperado por conta
da ânsia de ser aprovado num vestibular. O que faremos ao
longo das três séries do Ensino Médio será falar de nós mesmos,
expondo nossos sentimentos; será uma viagem pelo nosso mundo
(o interior e também o exterior). Vocês verão quanto sentido
a literatura pode dar à nossa existência. Mas, para que isso
aconteça, é preciso que vocês se permitam viajar, mergulhar no
universo literário e por ele se apaixonar.
Boa viagem a todos.
O Livro Branco, René Magritte.
Disponível em: <http://cfile238.uf.daum.net> Acesso em: 20 set. 2012.
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Literatura
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Arte
1. ARTE
“A arte é muitas coisas. Uma das coisas que a arte é, parece, é uma transformação simbólica do mundo.
Quer dizer: o artista cria um mundo outro — mais bonito ou mais intenso ou mais significativo ou mais ordenado
— por cima da realidade imediata.
Naturalmente, esse mundo outro que o artista cria ou inventa nasce de sua cultura, de sua experiência
de vida, das ideias que ele tem na cabeça, enfim, de sua visão de mundo”.
GULLAR, Ferreira. Sobre arte. Rio de Janeiro: Avenir; São Paulo: Palavra e Imagem, 1982.
A palavra “Arte” é um termo que não se esgota, pois sua definição não é simplista. Há estudos que
apontam o surgimento da Arte para o homem tentar estabelecer o controle sobre a natureza, ou que ela
teria apenas função decorativa, ou que representaria as crenças e os rituais de grupos humanos. Da arte
pré-histórica até a dos dias atuais, o tema, o objetivo, a função social e os seus significados se modificaram,
entretanto ela segue firme como forma de expressão humana, de representação de ideias e de ideais, de
“transformação simbólica de mundo.” Veja um exemplo disso com uma pintura rupestre e um grafite dos
dias de hoje:
Disponível em: <http://www.haut-thorenc.com>. Acesso
PINTURA RUPESTRE.
em: 20 set. 2012.
Disponível em:
<http://incl.gree
nme.ie>. Acesso
em: 20 set. 2012
MOSS STENCI
L.
Exercícios de sala
Observe este quadro do pintor René Magritte e responda ao que se pede:
René Magritte: artista
surrealista belga,
criador de imagens
insólitas.
.
Literatura
Arte
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Qual objeto você vê nessa pintura?
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Há, nele, logo abaixo do objeto, a menção: “Ceci
n’est pas une pipe.” que significa: Isto não é um
cachimbo. Considerando o que foi tratado a respeito
de Arte, como pode ser entendida tal menção?
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Agora, observe esta outra obra de René
Magritte.
Disponível em: <http://4.bp.blogspot.com>. Acesso em: 20 set; 2012.
Clarividência, Renné Magritte, 1936, Galerie Isy
Grachot, Brussels-Paris.
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René Magritte é considerado um criador de
“imagens insólitas a partir de um tratamento
rigorosamente realista”. Nessa obra, o pintor
pinta a figura de uma ave, fugindo ao senso
comum, embora a representação da ave seja
fiel à realidade. Considere o título (e explique-o)
para dar sentido ao que o artista faz em sua obra.
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Agora, leia este texto:
A ARTE E SUAS FUNÇÕES
Andando pelas ruas de sua cidade, você
passa por uma praça e vê uma escultura, em
um edifício vê um mural de azulejos ou uma
pintura, em uma igreja vê mosaico ou um vitral
colorido. Se você é observador, sensível e tem
tempo, com certeza gosta de ficar olhando para
tudo isso.
Essas formas, diferentemente dos objetos
utilitários que você usa no dia a dia, têm a
função de encantar, de provocar a reflexão e a
admiração, de proporcionar prazer e emoção.
Essas sensações são despertadas por
um conjunto de elementos: a imaginação do
artista, a composição, a cor, a textura, a forma,
a harmonia e a qualidade da ideia. Nem todos
os objetos artísticos têm uma utilidade prática
imediata além de estimular o pensamento, a
sensibilidade ou causar prazer estético.
As obras de arte expressam um pensamento,
uma visão do mundo e provocam uma forma
de inquietação no observador, uma sensação
especial, uma vontade de contemplar, uma
admiração emocionada ou uma comunicação
com a sensibilidade do artista. A esse conjunto de
sensações chamamos de experiência estética.
Nem sempre essa experiência é ligada
unicamente ao prazer, pois às vezes ficamos
inquietos, pensativos, emocionados, tristes,
amedrontados ou assustados. E, muitas vezes,
principalmente na atualidade, há artistas
que procuram provocar o público, causar um
choque. O que nos atrai é a sensibilidade do
artista, sua imaginação, seu intelecto, sua
percepção especial da vida, mesmo quando
apresenta aspectos negativos.
O gosto e a sensibilidade para apreciar a
arte variam de pessoa para pessoa, de idade
para idade, de região para região, de sociedade
para sociedade, de época para época. Assim,
as manifestações artísticas trazem a marca do
tempo, do lugar e dos artistas que as criaram,
pois refletem essa variação no conceito de
beleza e na função do objeto artístico.
Em muitas sociedades, a arte é utilizada
como forma de homenagear os deuses, ou
seja, está ligada à religião. Observe como as
igrejas, os templos e os túmulos são locais em
que a arte se manifesta em todos os tempos.
Indumentárias, objetos que são usados em
rituais, instrumentos musicais, adereços,
imagens contemplam os cenários das
cerimônias religiosas.
Em outras culturas e épocas, a arte surge,
independentemente da religião, unicamente
como forma de expressão para quem produz,
e como oportunidade de experiência especial
para quem aprecia.
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Literatura
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Arte
Qualquer que seja sua direção, a arte está em
toda parte e é um elemento definidor de identidade
de um povo, de um grupo social e de um indivíduo.
O artista pode se manifestar de diversas
formas: pelo som (música), pela linguagem
verbal oral ou escrita (literatura), pela imagem
visual (pintura, desenho, escultura, gravura,
fotografia) ou pela linguagem corporal (dança).
Ou pode, ainda, expressar-se pela mistura de
várias linguagens.
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II) Os objetos artísticos têm sempre função
pragmática.
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Jô Oliveira e Lucília Garcez. Explicando a arte: uma iniciação para
entender e apreciar as Artes Visuais. Rio de Janeiro,
Ediouro, 2001. P. 10-3.
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Leia estas afirmações a respeito do texto Identifique
as que estão incorretas e reescreva-as, corrigindo-as.
I) A arte é uma representação da realidade.
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III) A imaginação do artista, sua visão e
compreensão de mundo e seus ideais compõem
a obra de arte.
No primeiro parágrafo do texto, os autores citam
algumas possibilidades de se encontrar arte. Faça
um passeio pela sua escola, pela sua cidade e
registre o que encontrou de manifestação artística
e o que sentiu em relação a ela(s).
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IV) A arte está limitada aos espaços dos museus
e é um elemento definidor de identidade de um
povo, de um grupo social e de um indivíduo.
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Agora, observe este quadro de Portinari.
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No segundo parágrafo, a que se referem os
autores com a expressão “objetos utilitários”?
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Disponível em: <www.portinari.org.br>. Acesso em: 14 ago. 2009.
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Segundo os autores, a arte pode despertar algumas
sensações. Você concorda com eles? Por quê?
Cândido Portinari: artista plástico
brasileiro, com cerca de cinco mil obras,
é considerado o pintor brasileiro de
maior projeção internacional.
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O que você vê representado nessa obra?
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Literatura
Arte
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Das funções da arte, mencionadas pelos autores no texto lido, qual você considera que a obra de Portinari
desperte?
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10 Sabendo que a arte é uma forma de representação da realidade, a qual fato real ela está ligada?
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Fatores constituintes da produção artística
A produção artística está ligada e condicionada a diversos fatores que participam de sua constituição, tais
como a vivência do artista e de sua época, a linguagem, o suporte, o público e a forma de circulação. Vamos
pensar numa obra artística e identificar seus fatores constituintes para esclarecer o que foi dito. Você conhece
a música Cálice, de Chico Buarque e Gilberto Gil? Leia sua letra e, se possível, ouça a música.
CÁLICE
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
De muito gorda a porca já não anda (Cálice!)
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, Pai, abrir a porta (Cálice!)
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade?
Mesmo calado o peito resta a cuca
Dos bêbados de centro da cidade
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor e engolir a labuta?
Mesmo calada a boca resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa?
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada, pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Talvez o mundo não seja pequeno (Cale-se!)
Nem seja a vida um fato consumado (Cale-se!)
Quero inventar o meu próprio pecado (Cale-se!)
Quero morrer do meu próprio veneno (Pai!
Cale-se!)
Quero perder de vez tua cabeça! (Cale-se!)
Minha cabeça perder teu juízo. (Cale-se!)
Quero cheirar fumaça de óleo diesel (Cale-se!)
Me embriagar até que alguém em esqueça
(Cale-se!)
Composição: Chico Buarque e Gilberto Gil
Respectivamente, nas imagens:
• Chico Buarque: Músico, dramaturgo e escritor brasileiro, conhecido como um dos
maiores nomes da música popular brasileira. Foi, na década de 70, um dos artistas mais
críticos em relação à política brasileira e um defensor da democratização do País.
• Gilberto Gil: Músico e político brasileiro, conhecido principalmente por composições
instigantes ao lado de Caetano Veloso, nome de relevo no movimento tropicalista,
cuja preocupação central eram os problemas sociais do País, aliada a uma ideologia
libertadora, a um inconformismo frente à maneira de viver do povo brasileiro.
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Arte
Cálice foi composta em 1973 por Chico Buarque e Gilberto Gil. Este compôs o refrão “Pai, afasta de
mim este cálice / de vinho tinto de sangue”, uma referência à agonia de Cristo no Calvário, mas Chico
foi além e percebeu a possibilidade ambígua em cálice/cale-se. A partir daí, a música foi composta. Nela
há um jogo de palavras de objetivo bem claro: despistar a censura da ditadura militar. Naquela época, o
Brasil viva sob tal regime e era comum o veto a qualquer manifestação de oposição a ele. A canção foi
levada a censura e os artistas foram recomendados a não cantá-la. Porém, no show Phono 73, no Palácio
das Convenções do Anhembi, São Paulo, em maio de 1973, Gil e Chico tentaram cantá-la, mas seus
microfones foram desligados. A música só foi liberada em 1978 no álbum de Chico Buarque.
Exercícios de sala
11 Considerando as informações anteriores, podemos construir um diagrama com os fatores constituintes
da canção Cálice.
Meio de
circulação
CÁLICE
Estrutura
Contexto
histórico
Linguagem
Suporte
Literatura
A arte literária
2. A
ARTE LITERÁRIA
A literatura é a arte cuja matéria-prima é a palavra oral ou escrita.
Segundo o crítico Alceu Amoroso Lima,
“A distinção entre literatura e demais artes vai operar-se nos seus elementos intrínsecos, a matéria e a
forma do Verbo.
De que se serve o homem de letras para realizar seu gênio inventivo? Não é, por natureza, nem do
movimento como o dançarino, nem da linha como o escultor ou o arquiteto, nem do som como o músico, nem
da cor como o pintor. E sim — da palavra.
A palavra é, pois, o elemento material intrínseco do homem de letras para realizar sua natureza e alcançar
seu objetivo artístico.”
LIMA, Alceu Amoroso. A estética literária e o crítico. Rio de Janeiro: Agir, 1954.
Alceu Amoroso Lima: Crítico literário, professor, pensador, escritor e líder católico brasileiro. Publicou
dezenas de livros e tornou-se símbolo de intelectual progressista na luta contra os exageros do regime
militar imposto a partir de 1964 no Brasil.
A literatura existe numa, dentre tantas, função (o termo função aqui tem o sentido de papel social
desempenhado) muito peculiar: a representação da realidade. Tal representação é extremamente complexa
porque o escritor não tem a pretensão de fotografar ou de copiar a realidade tal qual ela é: cabe a ele a
criação de um espaço ficcionalizado, em que os seres, as coisas e as palavras mantenham uma relação que
permita a reinvenção do real. E para que isso?
A resposta pode estar em diversas perspectivas, mas uma das possibilidades nos é apontada por Mario
Vargas Llosa:
A literatura, ao contrário, diferentemente da ciência e da técnica, é, foi e continuará sendo, enquanto existir,
um desses denominadores comuns da experiência humana, graças ao qual os seres vivos se reconhecem e
dialogam, independentemente de quão distintas sejam suas ocupações e seus desígnios vitais, as geografias,
as circunstâncias em que se encontram e as conjunturas históricas que lhe determinam o horizonte. Nós,
leitores de Cervantes ou de Shakespeare, de Dante ou de Tolstói, nos sentimos membros da mesma espécie
porque, nas obras que eles criaram, aprendemos aquilo que partilhamos como seres humanos, o que
permanece em todos nós além de amplo leque de diferenças que nos separam. E nada defende melhor os
seres vivos contra a estupidez dos preconceitos, do racismo, da xenofobia, das obtusidades localistas do
sectarismo religioso ou político, ou dos nacionalismos discriminatórios, do que a comprovação constante que
sempre aparece na grande literatura: a igualdade essencial de homens e mulheres em todas as latitudes e a
injustiça representada pelo estabelecimento entre eles de formas de discriminação, sujeição ou exploração.
Nada, mais do que os bons romances, ensina a ver nas diferenças étnicas e culturais a riqueza do patrimônio
humano e a valorizá-lo como uma manifestação de sua múltipla criatividade. Ler boa literatura é divertir-se,
com certeza; mas, também, aprender, dessa maneira direta e intensa que é a da experiência vivida através
das obras de ficção, o que somos e como somos, em nossa integridade humana, com os nossos atos e os
nossos sonhos e os nossos fantasmas, a sós e na urdidura das relações
que nos ligam aos outros, em nossa presença pública e no segredo de
ficção (espaço ficcionalizado):aquilo
nossa consciência, essa soma extremamente complexa de verdades
que é criado, imaginado, fantasiado.
contraditórias — como as chamava Isaiah Berlin — de que é feita a
condição humana.
LLOSA , Mário Vargas. É possível pensar o mundo sem romance? In: MORETTI, Franco (org.)
A cultura do ramance. São Paulo: Cosac Naify. 2009.
Mário Vargas Llosa: Escritor dramaturgo, poeta, ensaísta, crítico literário, jornalista e político peruano,
ganhador do prêmio Nobel de Literatura em 2010.
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Literatura
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A arte literária
Exercícios de sala
Texto para as questões 01, 02 e 03
GOL DE LETRA
O ex-jogador Tufão, personagem de Murilo
Benício na novela “Avenida Brasil”, descobre o
prazer da leitura com Kafka, Flaubert e Freud
Divulgação
Murilo Benício como Tufão em Avenida Brasil
ELISANGELA ROXO
MARCO RODRIGO ALMEIDA
DE SÃO PAULO
A conversa a seguir é coisa de novela.
“Tá lendo o quê?” “Um livro que a Nina me
emprestou. Madame Bova... de Bovári.” “Qual é
a dessa madame aí?” “Essa é louca. Sabe que
ela trai o marido, mas não gosta de amante?
Vai entender!” “Coisa de intelectual.”
Quem experimenta ler pela primeira vez o
clássico “Madame Bovary”, de Gustave Flaubert,
é o ex-jogador de futebol Tufão (Murilo Benício),
de Avenida Brasil, no ar às 21h na Globo.
Na cama, antes de dormir, ele conversa
sobre suas leituras com a mulher, a vigarista
Carminha (Adriana Esteves).
“O sonho é a estrada real que leva ao
inconveniente”, declamava ele, no capítulo da
última terça, ao ler um trecho de A Interpretação
dos Sonhos. Mas só o próprio Freud, ou “Fred”,
como Tufão diz, pode explicar a licença poética
de trocar o “inconsciente” do original por
“inconveniente”.
A mansão de Tufão tem biblioteca, mas
os livros eram apenas decorativos, todos
ocos. Os reais chegaram pelas mãos de Nina
(Débora Falabella), que busca vingança contra
Carminha e, para atingir seu objetivo, trabalha
como cozinheira da família.
Os livros são usados por ela para abrir os
olhos do ex-jogador sobre o mau-caratismo da
mulher, que o trai com o próprio cunhado.
“Ela usa a cultura e a culinária para seduzir
as pessoas da casa. É uma inversão de
valores. A criada tem mais cultura do que os
patrões”, explica João Emanuel Carneiro, autor
de Avenida Brasil.
DE OLHOS BEM ABERTOS
A leitura não é um hábito comumente retratado
em novelas. Neste caso, porém, além de Flaubert
e Freud, Tufão também ficou vidrado no livro A
Metamorfose, de Franz Kafka (leia acima).
É a literatura que desperta o personagem
de Benício. “Tufão vai ficar mais sensível, Nina
mostrou um novo mundo a ele, o que vai fazê-lo
se apaixonar por ela. Mais do que isso eu não
falo nem bêbado”, brinca Carneiro.
O autor criou relações entre as tramas dos
livros e da novela, um artifício divertido que
chamou a atenção dos pesquisadores.
“Estamos diante de uma metalinguagem,
uma narrativa telenovelesca com referência
a uma literária”, diz Mauro Alencar, doutor em
teledramaturgia pela USP.
Para Nilson Xavier, autor de Almanaque
da Telenovela Brasileira, a narrativa traz uma
mensagem quase subliminar. “Espero que Nina
dê o romance O Conde de Monte Cristo, de
Alexandre Dumas, a Tufão, para lhe revelar sua
vingança”, torce.
O autor adianta, porém, que o próximo
exemplar da estante de Tufão será o clássico
da literatura nacional Memórias Póstumas de
Brás Cubas, de Machado de Assis.
Especialistas em literatura acreditam que
as citações em Avenida Brasil podem atrair a
atenção do público para obras canônicas.
“Não importa o meio, o importante é
estimular o contato com essas obras. Quem
sabe não pode estimular o nascimento de
leitores ou até de escritores?”, pergunta Leyla
Perrone-Moisés, professora de literatura
francesa na USP.
Essa, porém, não é a intenção primordial de
Carneiro. “Acho excelente que novela tenha um
papel social, mas não sou engajado. O uso da
literatura é uma questão da trama, e não um
merchandising social”, explica.
Tércio Redondo, professor de literatura
alemã da USP, diz que livros não são manuais
de repostas simples e diretas. “A literatura abre
os nossos olhos para o que a indústria cultural
ignora.” Ao que tudo indica, eles já estão abrindo
também os de Tufão.
“É PRECONCEITO DIZER QUE SÓ JOGADOR
NÃO LÊ”
DE SÃO PAULO
Caso não fosse um personagem de novela,
Tufão poderia conseguir bons conselhos de
leitura com seu colega de profissão Paulo André.
Literatura
A arte literária
Zagueiro do Corinthians, Paulo não só é
um devorador de livros como já se arriscou a
escrever um para chamar de seu.
Em março, ele lançou O Jogo da Minha Vida
(ed. Leya; 304 págs; R$ 39,90), que aborda os
bastidores e dilemas da carreira de um atleta
profissional de forma bem divertida do clichê
“dinheiro-mulher-fama”.
Em seu site, www.pauloandreoficial.com.br,
também publica textos sobre futebol e política
esportiva no Brasil.
“Por causa do futebol, saí de casa
cedo. Como ficava muito tempo sozinho na
concentração, criei o hábito de ler”, conta.
Entre seus livros prediletos, ele cita Cem
Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, O
Príncipe, de Maquiavel, e O Banquete, de Platão.
“As pessoas em geral leem pouco no Brasil.
É preconceito dizer que só atleta não lê.”
Nas categorias de base, no início da
carreira, ele costumava emprestar inúmeros
livros aos colegas de alojamento, sobretudo
obras de Sidney Sheldon.
No Corinthians, o papo com os colegas William
Capita e Wallace é mais cabeça. “A gente falava de
psicologia e filosofia. No elenco atual, a maioria leu
o meu livro e fiquei feliz com os comentários”.
Folha de São Paulo, 13 maio de 2012. Ilustrada, p. E1.
Exercícios de sala
1
Em “O sonho é a estrada real que leva ao
inconveniente”, os autores dizem que só Freud
poderia explicar a licença poética de trocar o
“inconsciente” do original por “inconveniente”.
Levando em consideração o que foi dito sobre
literatura nas páginas anteriores, você poderia
tentar explicar essa licença poética?
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Qual é o papel atribuído à literatura em relação
ao personagem Tufão?
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3
E você? Há alguma lembrança de leitura que
também tenha lhe revelado algo?
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4
Avalie as seguintes afirmações:
I) Cada época literária tem seu estilo próprio
que, ao desaparecer, nunca deixa vestígios.
II) Uma obra literária resulta exclusivamente da
maneira individual que o autor tem de enxergar
o mundo. Essa maneira individual, por sua vez,
não sofre interferências do meio.
III) Uma obra literária pode retratar e questionar
o momento histórico em que foi criada.
Agora, assinale a alternativa que apresenta
a análise correta.
a) Todas estão certas.
b) Todas estão erradas.
c) Estão certas somente as afirmativas I e II.
d) Está certa somente a afirmação III.
e) Estão certas somente as afirmações II e III.
5
(ENEM) Érico Veríssimo relata, em suas
memórias, um episódio da adolescência que teve
influência significativa em sua carreira de escritor.
“Lembro-me de que certa noite — eu teria uns
quatorze anos, quando muito — encarregaramme de segurar uma lâmpada elétrica à cabeceira
da mesa de operações, enquanto um médico
fazia os primeiros curativos num pobre-diabo
que soldados da Polícia Municipal haviam
‘carneado’. [...] Apesar do horror e da náusea,
continuei firme onde estava, talvez pensando
assim: se esse caboclo pode aguentar tudo
isso sem gemer, por que não hei de poder ficar
segurando esta lâmpada para ajudar o doutor a
costurar esses talhos e salvar essa vida? [...]
Desde que, adulto, comecei a escrever
romances, tem-me animado até hoje a ideia
de que o menos que o escritor pode fazer,
numa época de atrocidades e injustiças como
a nossa, é acender a sua lâmpada, fazer luz
sobre a realidade de seu mundo, evitando
que sobre ele caia a escuridão, propícia aos
ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim,
segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do
horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica,
acendamos o nosso toco de vela ou, em último
caso, risquemos fósforos repetidamente, como
um sinal de que não desertamos nosso posto.”
VERÍSSIMO, Érico. Solo de clarineta. Porto Alegre: Globo, 1978. t. l.
Nesse texto, por meio da metáfora da
lâmpada que ilumina a escuridão, Érico
Veríssimo define como uma das funções do
escritor e, por extensão, da literatura:
a) criar a fantasia.
d) criar o belo.
b) permitir o sonho.
e) fugir da náusea.
c) denunciar o real.
13
14
Literatura
A arte literária
Disponível em: <http://cinemaedebate.files.wordpress.com>. Acesso em: 28 set. 2012.
Disponível em: <www.cinematecaveja.com.br>. (Adaptado)
Agora, leia este outro texto para responder às questões propostas a seguir.
Carta a um jovem poeta
“O homem é um deus quando sonha e um mendigo quando pensa”. (Hölderlin)
No princípio é o sonho. E, depois dele — mas implicando-o, necessariamente —, é o contato, o
contraste e o confronto com a estranheza das coisas. O movimento humano se faz da fantasia para
a concretude do mundo. Temos que perder o macio inimaginável do sonho, sua diáfana gentileza de
pés de lã, para ancorar no concreto. Temos que saltar de paraquedas, na direção da realidade. Tornase indispensável, nesta hora, um aparelho minimamente capaz de amortecer o choque contra a terra:
Literatura
A arte literária
tranco fundador. É, porém, ilusório supor que
tal passagem possa processar-se sem ruptura
— e sem vertigem. Machado de Assis, do alto
de sua ironia, garante que é melhor cair das
nuvens do que de um terceiro andar. Não estou
seguro de que este aforismo possa adequar-se,
com propriedade, ao tema que examinamos.
Os sonhos não são nuvens, mas a primeira
pátria do homem. Cair deles é — literalmente —
perder o paraíso, vicissitude com certeza mais
dolorosa do que partir uma perna, após a queda
de um terceiro pavimento.
O poeta, o ficcionista dão o salto do
sonho para o signo compartilhado. Existe,
fora de dúvida, um sofrimento na agonia da
criação artística, na medida em que ela é um
parto — e um nascimento. Pulamos do avião,
abandonamos o grande bojo narcísico pela
aventura de recortar em palavras, imagens e
metáforas aquilo que é nosso mistério original.
Não obstante, na dor universal desse processo
de objetivação, por cujo intermédio o ser
humano se eventra, para conhecer-se, o artista
fica com a melhor parte. Ele consegue construir
um sonho — ou um voo — dirigido, cujo
destino se consuma na obra de arte. O artista
conquista e preserva, portanto, sua condição de
fazendeiro do ar, permanecendo no território da
semiótica — lugar onde o humano se embriaga
da insustentável leveza do ser.
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O que significa o aforismo de Machado de
Assis?
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8
O que o autor considera a respeito disso?
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HÉLIO PELLEGRINO.
A burrice do demônio. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
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Busca
Aforismo: afirmação curta que estabelece
uma regra prática.
Consumar-se: resultar.
Diáfano: muito fino, transparente; difícil de
reter.
Eventrar-se: expor as vísceras do próprio
ventre.
Narcísico:
narcisista,
excessivamente
centrado em si mesmo.
Semiótica: ciência que estuda os signos
(letras, gestos, desenhos, etc.) e seus
significados.
Vicissitude:
acontecimento
imprevisto,
geralmente defavorável.
Fazendeiro do ar: referência a um famoso
livro de poemas de Carlos Drummond de
Andrade, lançado em 1954.
Insustentável leveza do ser: referência ao
livro A insustentável leveza do ser, do tcheco
Milan Kundera. Clássico da literatura mundial
contemporânea, o romance se passa na
cidade de Praga, Tchecoslováquia, em 1968,
ano de intensa agitação política. Por meio da
interpretação filosófica de fatos concretos,
Kundera nos leva a crer que a felicidade
humana está na própria busca da felicidade.
Para o autor, “os sonhos não são nuvens, mas a
primeira pátria do homem”. Qual seria o sentido
dessa comparação?
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9
E você? O que acha a respeito?
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10 Já vimos que a criação artística compartilha a
vivência do artista e, por extensão, do homem
em geral. O escritor expõe seus sentimentos
por meio das palavras e compartilha com este
o que sente.
Transcreva o trecho do texto que representa
isso.
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