Fábulas Perversas

Transcrição

Fábulas Perversas
Fábulas Perversas
por Daniel Duclós
Imagine the day when he can't think
of anything to make monstrous
beyond the perimeter of his own body,
and he becomes a monster himself,
and leaves his windowless workshop
to knock on our doors
at odd hours, to call our homes
in the middle of the night,
to whisper the secret words
passed down by his ancestors,
the words that will finally
make monsters
of us all.
- Tim Pratt, “Making Monsters”
Histórias
Prólogo: Agora, trabalho.............................................................................................................3
Primeira história: O Encontro..................................................................................................... 5
Segunda história: O Assassino.................................................................................................... 6
Terceira história: Da sutil arte da paranóia................................................................................. 8
Quarta história: Cadáveres........................................................................................................ 11
Quinta história: Lobisomem......................................................................................................13
Sexta história: O Emissário.......................................................................................................14
Sétima história: A matilha.........................................................................................................17
Oitava história: Fluxo Negro.....................................................................................................19
Licenciamento........................................................................................................................... 23
Prólogo: Agora, trabalho
Finalmente estava dando certo e pude perceber os dois babacas se levantarem e começaram
a me seguir. Esperei até me abordarem, o que fizeram com violência. Deixei que me empurrassem e
gritassem comigo. Pediram a grana e eu sorri.
- Tá rindo de que, palhaço? Qué tomá um teco?
E mostrou a arma. A coisa era melhor do que eu pensava. Dei uma gargalhada, o que fez
com que o filho da puta a apontasse para mim. Sem dúvida queria atirar. Mas nunca conseguiu.
Com um golpe rápido desviei o braço dele, me virei dando a volta, e encaixei por trás de seu corpo,
deslocando seu ombro. Peguei a arma e atirei na testa do seu companheiro, que caiu morto
instantaneamente. Apoiei o joelho nas costas do infeliz que berrava como um porco. Forçando,
quebrei seu braço. Ele berrou mais. Puxei a cabeça pelos cabelos e falei bem baixinho no ouvido
dele:
- Não te ilude, meu chapa, tu vai morre. Mas antes, quero que tu entenda uma coisa. Pergunta que
coisa.
- Vai te fodê.
Encostei a arma na cabeça dele. E repeti:
- Pergunta.
- O quê?
Bati a cabeça do infeliz na parede próxima, provocando um berro e um sangramento
abundante. Esperei com que ele se acalmasse um pouco e disse:
- Quero que tu entenda que não foi uma grande idéia me assaltar.
Bati de novo a cara dele na parede. E então o espanquei por uns dez minutos. Quando ele
não podia mais gritar e só chorava baixinho, obriguei-o a morder o meio-fio. Quando ele fez isso,
chutei sua nuca num golpe curto e violento, quebrando todos os dentes. Talvez isso o tenha matado.
Mas não tenho certeza, porque em seguida dei dois tiros na cabeça dele. Deixei o corpo lá, joguei a
arma do lado e fui embora. Pra casa.
Abri a porta velha do prédio que eu morava. Era um muquifo de três andares, sem
elevadores ou porteiro, escadas velhas, sujo e cheirando a mofo. Gatos vagabundos andavam de um
lado pro outro. Passei pela porta da minha senhoria, que morava logo no primeiro andar e era dona
de uns 90% dos apartamentos daquele pardieiro. Eu pagava em dia, então ela não me pentelhava.
Odeio que me pentelhem. Tinha umas duas putas que usavam apartamentos ali pra trazer clientes
para uma trepada de 10 pilas. Ninguém ligava. A Joyce e a Mary, elas usavam esses nomes.
Ninguém ligava pra isso também.
Subi até o terceiro andar e empurrei a minha porta. O cheiro de mijo não era tão forte dentro
do apê. Lar, Doce lar, dizia uma plaqueta deixada por algum inquilino anterior. Eu tava pouco me
fodendo pra me abalar e tirar o treco de lá. Eu estava mais interessado no computador de última
geração montado numa mesa barata que também estava aqui quando cheguei. Era um laptop. Não
vou te dizer o modelo, porque essas porras mudam todo dia. Mas imagina um micro fudidamente
bom e caro. Era desses. Um celular clonado, ligado direto num carregador pirata, garantia a
conexão com a rede.
Já havia me divertido, agora, trabalho.
Primeira história: O Encontro
Vagava eu pelo pequeno país quando encontrei uma garotinha.
- Casaria comigo, garotinha?
- Bem, não, ela respondeu.
- E por que não?
- És um monstro! Garotinhas não devem desposar monstros!
Repentinamente, seus olhos se arregalaram.
- Devoras garotinhas, monstro?
- Apenas quando entediado.
- Estás entediado agora, monstro?
- Não, estou apaixonado.
- Se eu não te desposar, me devorarás?
- Mas é claro que não! O que pensa que sou? Algum monstro?
Ela sorriu.
- Sim, mas um monstro adorável. Deixe-me dar-te um beijo.
Ela deu.
Observei-a por um longo tempo, enquanto desaparecia na distância.
Segunda história: O Assassino
O assassino esperava à beira da estrada, sozinho no deserto. A tempestade molhava a figura
solitária e magra, tamborilando no asfalto que cortava a imensidão de areia, formando uma linha.
O assassino se sentia miserável por estar no meio do nada e ser pego por uma tempestade no
deserto. Movia lentamente o peso de uma perna a outra e ponderava como havia se metido naquela
situação. Não achou resposta satisfatória, embora procurasse por um longo tempo, enquanto
anoitecia.
A situação começava a passar de preocupante para levemente desesperadora, pois com a
noite veio o frio, e a chuva já encharcava a capa, escorrendo pelo chapéu, ensopando os pés. Pela
primeira vez na vida o assassino começou a considerar que estava realmente em apuros. Resolveu
começar a andar. Olhava sem esperança para trás enquanto andava, sem distinguir nem mais a linha
reta de asfalto, e agora a escuridão dominava tudo. Um leve arrepio percorreu sua nuca, na forma de
uma gota de chuva que escorrera do chapéu para dentro da sua roupa. E então a tempestade dobrou
de fúria e o vento passou de um incômodo para uma ameaça.
Mais uma vez o assassino olhou para trás e prendeu um suspiro na garganta quando
distinguiu, bem vagamente na distância, uma luz que tremeluzia. Era bastante claro que se tratava
de um carro. E vinha em sua direção. O homem de preto aguardou ansioso, procurando ignorar os
raios que cortavam selvagemente o céu, iluminando em clarões os cactos e suas formas contorcidas.
A luz avançava lentamente, aumentando a ansiedade. Se o carro não parasse (o pensamento foi
interrompido por um estrondo ensurdecedor de um trovão).
O predador estendeu o polegar, apreensivo, quase sem esperanças, temendo não ser visto.
Mas o carro parou. Os vidros eram filmados e somente quando a porta se abriu pode enxergar
dentro do veículo: uma garota de cerca de trinta anos, vestida de shorts e uma blusa, e sentir o
interior aquecido, contrastando com a escuridão fria e molhada da noite. Ela o convidou a entrar, e o
monstro soltou o suspiro preso.
Estava salvo.
Entrou no carro com um formigamento nas extremidades, alegre por sua boa sorte que lhe
trazia assim, uma vítima e um transporte. Com sorte algum crédito também, pensou, embora não
matasse por dinheiro. Se tivesse um coração, agora ele estaria batendo um pouco mais rápido.
Começou a conversar com a garota, sem nem por um segundo estranhar o fato de uma
mulher sozinha parar para um homem vestido de preto no meio do nada. Estava acostumado com a
ingenuidade. Se alimentava dela.
“Noite miserável” disse ela, “você teve sorte de eu ter aparecido”.
“Sim. Muita sorte. Estava começando a me preocupar”.
Ela riu de leve. “Começando? Desde quando está andando?”
“Desde muito tempo”, disse o assassino, pensativo. Olhou para ela. Era bonita, na verdade
muito bonita. Mas não era uma beleza de porcelana, uma boneca perfeita, era uma beleza do mundo
real. Era loira e tinha os olhos verdes, mas isso o matador não poderia saber. Era daltônico.
Continuou a conversa casual, enquanto se recuperava e tentava planejar os próximos passos.
O volume da gigantesca faca no bolso da sua capa lhe dava algum conforto, companheira de tantas
caçadas solitárias.
“Como consegue enxergar? O vidro... Ele está coberto por um filme...” perguntou para a
garota, sinceramente intrigado.
“É filmado, sim. Mas eu sei para onde estou indo”. Sorria.
“Qual o seu nome?”
O sorriso da garota aumentou e seus olhos faiscavam na escuridão.
“Tenho muitos nomes” disse ela, e suas pupilas se dilataram imperceptivelmente. "Mas pode
me chamar de Luciana". O carro acelerava, levantando uma cortina de água atrás de si enquanto
cortava a noite e a tempestade.
Ela parecia muito segura de si e o matador começou a se sentir desconfortável. Algo parecia
fora do padrão ao qual estava acostumado. Não farejava o medo . Então a tempestade,
inacreditavelmente, recrudesceu.
O assassino começou a ser tomado por um ódio crescente, desafiado pela confiança da
garota, e esse ódio se misturou ao desejo de matar, ambos formando uma bola em seu peito, que
subia em direção à garganta enquanto sua mão descia para o bolso, buscando o conforto do cabo, a
faca pronta a se tornar, mais uma vez, uma extensão de seu braço e de sua vontade.
Agarrando a faca, a garganta travada pelos sentimentos misturados, o ódio se retesando
como uma mola, e, um segundo antes de liberar o ataque, os pelos da nuca do assassino se eriçaram
e ele pressentiu, mais do que escutou, o rosnado. Virou a cabeça pro banco de trás. Deu de cara com
duas chamas iluminando as trevas, e presas expostas de um cão que o encaravam. Sua mão tremeu e
então olhou para garota, que também o olhava fixamente, o sorriso de orelha a orelha, e o assassino
percebeu que ela não segurava o volante nem olhava para a estrada, e o carro estava rápido,
rápido demais.
O golpe veio seco e direto, agarrando a boca do assassino e sufocando qualquer som que
pudesse atravessar a garganta, o ódio já totalmente transformado em horror, quando sentiu os dedos
dela atravessando a pele.
A tempestade rugia, em sua fúria máxima, se transformando num furacão de intensidade
inédita, abafando as gargalhadas.
O corpo do assassino nunca foi achado, claro, pois ninguém o procurava, e o deserto é vasto.
Terceira história: Da sutil arte da paranóia
Uma noite eu tava andando por um rua imunda quando ouvi uma voz, me chamando.
“Ei, cara.”
Que merda, justo o que eu precisava, outro louco pra me encher o saco ou tentar me vender
drogas ou qualquer merda assim. A voz insistiu.
“Ei cara, se liga, tá a fins de uns ovos?”
Porra, essa era nova. Ovos? Que merda era essa, o oveiro? Resolvi olhar. Era um coelho.
“Que foi? Nunca viu o Coelho da Páscoa antes?”
“Pra te dizer a verdade, não.”
“Enfim, quer os ovos ou não?”
“Vá se foder, sim? Cai fora, maluco.”
Virei e continuei andando e resmungando, “a gente topa com cada coisa hoje em dia...”, já
perdido nos pensamentos, mãos no bolso do sobretudo. Alguns quarteirões adiante, ou ouço a voz
de novo.
“Ei, amigo, Qualé o seu problema? Só quero te dar uns ovinhos, quem sabe bater um
papo...”
“Puta que me pariu, tu de novo?”
“Ei, relaxa, amiguinho”
“Tu não é meu amiguinho!”
“É verdade, eu sou um coelhinho.”
E ficou dando uma risadinha retardada, se divertindo com a rima. Era realmente o que me
faltava, a porra de um coelho pinel e espertinho.
“Ei, coelho, senta e roda, falou?”, eu disse mostrando o meu dedo médio levantado.
“Porra, mas você é estressado, hein, cara? Vamos tomar uma breja, quem sabe você relaxa
um pouco.”
“Nem fodendo.”
“Tô pagando.”
Bom, ai já era toda uma outra história. Tomar uma cerveja de graça não dá pra recusar, ainda
que com o Coelho da Páscoa. “Beleza”, disse eu e nos mandamos pra um boteco próximo, tão
imundo quanto a rua, com vários bêbados, drogados, vagabundos e péssimos membros da sociedade
em geral espalhados em volta. Meu tipo de lugar.
“Duas cervejas”, pediu o coelho enquanto a gente sentava em frente ao balcão. “Então”,
disse o coelho, “qualé a do seu mau humor? Você tem um prego enfiado no rabo ou tua mãe te fez
assim mesmo?”
O barman pôs duas cervejas geladas na nossa frente, e eu agarrei uma.
“Pela terceira vez hoje, coelho, poderia fazer o favor de ir se foder um pouco?”
Ele riu. “Calma, tô só te enchendo. Todo mundo é meio grosso hoje em dia, ainda mais com
estranhos na rua”. Ele tomou um gole, meio soturno. “Especialmente com o pessoal lendário”.
“Ah, meu Deus, espero não ter que te agüentar choramingando, nenhuma cerveja vale isso.
Snif, snif, pobre de mim, eu sou um coelhinho num mundo mau em que ninguém acredita em mim,
chinfs”.
“Cacete, você é insuportável mesmo, hein, amigo?”
“Te disse que não sou teu amigo.”
“Tanto faz.”
Olhei pra ele, bebendo a cerveja. Parecia um tanto triste.
“Ei, coelho, seguinte, você não deveria, sei lá, dar ovinhos de chocolate, tipo, só na Páscoa?
E pras criancinhas? Quer dizer, qualé a de ficar a noite oferecerecendo ovinhos nas ruas pra
adultos?”
Ele coçou a barba, pensativo, as narinas sempre se movimentando rapidamente. “Você é, de
fato, um puta mala... Ah, seguinte, esqueci de te dizer, tua mãe esqueceu as calcinhas lá em casa.
Fala pra ela ir buscar logo senão vou jogar tudo fora, beleza?”
Eu dei o meu sorriso ameaçador e o acertei bem nas fuças, e em seguida saquei meu
canivete. Um estalo mecânico do lado da minha orelha me fez parar. Eu conhecia o som de uma
espingarda sendo engatilhada.
“Pronto, pronto, nada de briga no meu bar”, disse o barman enquanto apontava uma
espingarda de cano duplo pra gente.
“Bem calmamente, larga a faca, companheiro”, ele ordenou numa voz mansa, sempre
apontando.
Obedeci.
“Agora, caiam fora do meu bar, vocês dois”.
Obedecemos.
Sentamos na sarjeta, mais adiante. Ele massageava o nariz dolorido e agora mais vermelho
do que rosa. Deu uma tossida, cuspiu e perguntou:
“Cê ia mesmo me furar?”
“Nah, quiéisso. No máximo ia te dar um sorriso mais largo, uma melhoradinha nessa tua
cara feia. Na real, ia te fazer um favor. Cigarro?”
Ele aceitou, “valeu”. Estendi um pra ele e acendi com meu Zippo. Acendi um pra mim
também e ficamos fumando em silêncio por um tempo.
“Então, seu coelho, seguinte” eu falei, já me levantando, “legal brigar com você e tudo, mas
é melhor eu ir indo nessa. A gente se vê, falou?”
Ele deu um sorriso de lado, coçando o orelhão. “Tranqüilo. Ah, cara, e vê se desencana um
pouco. As vezes um charuto é só um charuto, tá ligado?”
“Se cuida.” E saí fora.
Quando cheguei em casa demorei um pouco pra achar as chaves. Destranquei a porta e
acendi a luz. No chão da sala tinha uma cesta cheia de ovos de chocolate em embrulhos brilhantes.
Ora, mas quem diria? Talvez fosse mesmo o coelho da Páscoa, afinal de contas.
Joguei tudo fora e troquei todas as fechaduras.
Quarta história: Cadáveres
A língua começou a decair e perder palavras, e os Antigos se preocuparam. A cada dia
desapareciam mais palavras e o número delas começou a ficar insuficiente para o uso acadêmico. A
seguir as áreas especializadas começaram a sofrer, depois a literatura enfraqueceu e por fi m o
próprio cotidiano agonizava na escassez.
Os dicionários encolhiam, e o que antes seguraria uma porta no lugar durante uma ventania
agora mal cansava o braço ao ser carregado e lido enquanto se permanecia de pé no tempo de uma
viagem de metrô, se é que alguém lê os dicionários em uma viagem de metrô.
Os antigos sabiam que algo estava errado e, num gesto de desespero, foram procurar aquele
que cria palavras para ver o que estava acontecendo.
Aquele que cria palavras não era uma divindade ou um ser metafísico, mas tão real quanto
eu ou você. Os Antigos lhe diriam isso, mas não se lembravam mais de palavras como Divindade.
Metafísica tinha sido uma das primeiras a sumir, embora ninguém tivesse notado até o momento.
Ao chegarem ao lar daquele que cria palavras encontraram triste desolação. A casa estava
abandonada, as paredes de madeira com furos de cupim, as persianas das janelas caídas, os vidros
quebrados. A hera e o capim tomavam conta do que antes era um belo jardim. Havia um cheiro
estranho, mas nenhum Antigo soube nomeá-lo.
“Talvez tenha morrido”, opinou um Antigo. “Talvez”, murmurou outro. Iam tocar a
campainha, mas não havia mais uma para ser tocada. Empurraram a porta, que estava apenas
encostada. Ela foi um pouco para trás e logo emperrou. Mesmo assim era o suficiente para
entrarem.
O interior estava em ainda pior estado. Havia grandes falhas no piso, expondo o porão,
móveis quebrados há muito tempo ocupavam espaços aleatórios. Tudo estava coberto pelo pó e
parecia muito antigo. Teias de aranha verdadeiramente gigantes se estendiam de um lado a outro.
Os Antigos sabiam que a casa não poderia estar nesse estado lastimável, pois a tinham
visitado recentemente e era uma bela casa. No entanto, era assim que estava.
Procuraram aquele que cria palavras por toda parte, menos no porão. Portanto, era lá que ele
estava. Desceram, apreensivos, tomando grande cuidado para não pisarem em falso ou darem de
cara com uma grande teia de aranha.
Por alguns momentos piscaram os olhos, tentando se adequar à penumbra mais intensa do
porão, buscando se acostumar com a miríade de pequenos sons que todo porão faz. Perscrutavam
aquele universo estranho, na esperança de avistá-lo, ou ao menos detectar sua presença.
Lentamente o ruído de uma respiração se destacou do fundo e ficou claro que aquele que
criava palavras estava lá. E o cheiro definitivamente vinha dele. Era um cheiro de morte, no entanto
a respiração não deixava dúvidas de que estava vivo.
Um Antigo se aproximou do canto escuro, ainda sem poder vê-lo, cuidadoso, e chamou seu
nome, feliz por não tê-lo ainda esquecido. Assustou-se e deu um passo para trás quando os dois
brilhos surgiram nas trevas daquele canto, indicando onde estavam os olhos de uma criatura
agachada, uma sombra apavorante de alguém que tinha sido um amigo.
“Estávamos preocupados. Pensamos que estivesse morto.”
Os outros se aproximaram, incomodados com o cheiro, mas ninguém tinha coragem de
mencioná-lo. Nem de falar nada, na verdade, mas o tempo os pressionava. Cada minuto que
demorassem tornaria mais difícil explicar o problema.
“Temos um problema”, disse um dos Antigos. “Não há mais novas palavras.”
“Na verdade, quase não há mais palavras”, disse outro, “as antigas morrem e nenhuma nova
nasce para tomar seu lugar.”
“Gostaríamos de saber o que está acontecendo.”
Por um tempo houve apenas a respiração, mas por fim falou.
“Não há mais novas palavras. Elas não nascem mais.”
Os antigos se entreolharam. Isso era terrível.
“O que houve?”
“As idéias... elas sempre nasciam. Mas parei de realizar, então elas não deixavam mais
minha mente e acabaram por morrer lá. Com o tempo os cadáveres das idéias foram se acumulando
e apodrecendo. Todo o espaço foi sendo tomado até que os cadáveres não deixaram mais espaço
para as novas idéias saírem e por fim, sequer nascerem.”
Ele parou por um segundo.
“O cheiro é insuportável... o cheiro dos cadáveres... vocês sabem?”
Os Antigos baixaram os olhos. Eles sabiam. Eles sentiam. Os brilhos tremeluziram por um
tempo, piscaram e depois se apagaram. O porão agora estava em silêncio. Era um grave impasse.
Num golpe seco e preciso de sua espada, o Antigo cortou a cabeça daquele que cria
palavras, que voou no ar e caiu rolando, tirando do lugar um rato incauto.
Imediatamente uma multidão de palavras começou a se esparramar, saindo da mente
decepada, ganhando ação e revivendo, cada uma iluminando o ambiente, limpando o cheiro,
revirando no ar e se expandido para fora da casa.
As mentes dos Antigos zuniam com muitas palavras, numa sensação inebriante.
“Deve haver o bastante por agora”, disse ao guardar sua espada.
Todos assentiram. Se voltaram e subiram as escadas, ganhando a rua rapidamente. Não tema
pelo futuro deles, pois há muito estão mortos e essa história é antiga. Já estavam mortos no
momento que não haviam mais palavras sendo criadas, embora tenham conseguido ganhar algum
tempo num golpe de espada.
Quinta história: Lobisomem
O rancor se concentrava formando um nódulo venenoso, sob a forma de um cachorro
imóvel, deitado, acompanhando o mundo em tons de cinza. Cada movimento alegre captado
alimentava o nódulo e o cão crescia. Um rosnar surdo estava eternamente preso em sua garganta, a
raiva e o ressentimento contidos entre presas afiadas, embaixo de uma pelagem áspera e
emaranhada. O cão também era cinza.
Agora a fera acompanhava uma garotinha. O cão não poderia saber, mas ela tinha olhos
verdes e cabelos louros.
Ela se aproximou. O rosnado era quase palpável, mas o cão ainda não se movia. “Por que
odeias, cãozinho?”
Um arreganhar mudo expôs as presas. A cabeça permanecia imóvel entre as patas.
“Queres brincar?”
Ela bateu uma bolinha colorida na frente dos olhos cinzas e mortiços. Num movimento
súbito a garotinha agarrou o focinho com força insuspeita para algo tão pequeno. Um ganido tomou
o lugar do rosnado. Os olhos se fecharam, submissos diante da surpresa e da força implacável.
“Deixe o bicho, Luciana”, disse o velho na cadeira de balanço ao lado do cão. Vá brincar em
outro lugar. A voz era rouca e desagradável. Ela sorriu e se virou. Correu pelo pátio cheio de
carcaças de carros semidestruidos, observada pelo cão e pelo velho.
Imperceptivelmente, o cão cresceu um pouco mais.
Sexta história: O Emissário
Era noite na rodoviária lotada. Dentro de um ônibus saindo do Rio de Janeiro com destino à
São Paulo, dois homens tomam lugar nas poltronas 17 e 18. Um deles é muito alto. Senta na janela,
acende a luzinha e abre um livro. O outro, baixinho, começa a falar.
- E ai?
- Hrmf, grunhe o alto, livro aberto.
- E ai, indo pra São Paulo né?
O do livro olha incrédulo.
- Pra onde vai esse ônibus?
- São Paulo.
- Não é? - e volta a ler.
- Quis dizer se você esta indo ou voltando, ou seja, se você é de Sampa ou do Rio.
O outro ignora.
- Pô cara, sabia, tenho mulher e filho, mas aprontei muitooo aqui na cidade maravilhosa, cara, a
mulherada aqui...
- Se importa?
- Com o que?
- De calar a boca? Estou tentando ler.
- Porra, como você é mal humorado, cara. A gente vai passar umas seis horas nesse busão, que que
custa bater um papo?
- Você não trouxe um livro, eu trouxe. Eu tenho com o que me entreter. Não estou interessado em
você ou na sua vida.
- Não precisa ser grosso. E se eu disser que a sua luzinha esta me incomodando, ai você vai ter que
apagar. E então não vai ter nada pra fazer, a não ser conversar comigo.
- Eu mereço... Seguinte: suma.
Os dois ficam em silêncio por alguns minutos.
- Que cê faz da vida? Sua profissão.
Na janela o homem alto continua a ignorar seu companheiro.
- Eu sou analista de sistemas. E você?
Silêncio.
- Tem mulher? Filho?
Finalmente o cara do livro levanta a cabeça e encara o baixinho nos olhos:
- Eu sou um enviado do Demônio em missão de compra de almas nesse mundo. E tira o braço do
meu apoio.
O baixinho sentado no corredor pisca os olhos meio surpreso. Mas finalmente responde:
- Cara, você é mó comédia. Papo sério, por um minuto me assustou.
- A idéia era essa.
- Não, mas sério mesmo, que cê faz?
- Sério mesmo, eu sou um enviado do demo. Quer que eu confirme?
E encara o baixinho com o mais sanguinário olhar da face da terra.
- Porra... Cê me convenceu.
O grandalhão dá um longo suspiro.
- Que doidera. Mas cara, mesmo se existisse o demo, e se ele tivesse enviado, e tudo o mais, por
que ele ia viajar de bumba?
- Você não desiste?
- Sério, por que não teletransporte e tal? E as nuvens de enxofre e o caramba?
- Pra eu sofrer, aturando trolhas que nem você. Amigo, eu fui pro Inferno, lembra? O ponto é não
ser divertido.
- Maneiro! Eu sou o tormento de um enviado do demo? Show!
Ficaram em silêncio por alguns instantes.
- Quer comprar a minha alma?
- Como?!
- Minha alma imortal, quer comprar?
- Não.
- Por que não?
- Porque você é um pulha. Já cometeu todos os 7 capitais e quebrou os 10 mandamentos e ainda
mais algumas coisas. Sua alma já é nossa, pra que eu ia pagar?
- Sei lá, achei que era assim que as almas iam pro Inferno...
- Compramos as almas boas, que não iriam pro Inferno de outra maneira. A gente tenta os bons,
senão qual é o ponto? Tentar vender alma que não presta pro Inferno é que nem tentar vender areia
na praia.
- Tendi. Quer dizer que eu não tenho salvação?
- Hm, não, sinto muito.
- Mas e aquele papo de que se você aceitar Jesus no último minuto e tal, se arrepender, você será
perdoado?
- O arrependimento tem que ser sincero, e não da boca pra fora, sob a ameaça do castigo que
enquanto estava longe não te assutava, mas agora às portas da morte se torna uma possibilidade
real. Arrependimento depois do castigo, ou diante do castigo, não vale. Que graça, se arrepender só
se for pego. E eu sei que você não vai se arrepender. Não desse jeito.
- Hmm, ulha, não tinha pensado nisso. Po, me conta, è muito ruim lá embaixo?
- Pergunta pro italiano.
- Quem?
- Dante. Dá uma lida, você vai ter uma boa idéia.
- E quem está certo? Os católicos então? E os budistas? Os ateus? Eles vão pro Inferno?
O grandalhão dá uma risada.
- Ah, a humanidade... Seguinte, cara, não posso te falar isso, senão pode dar merda. Você nem
queira saber.
- E o teu nome?
- Akhenaton.
- hm. Loco. O meu é...
- Joseandro Ananias. Eu sei.
- Ah, é. Me diz uma coisa, Akhenaton não era um faraó ou algo assim? Um egípcio?
- Sim. É como ficou conhecido Amenhotep IV.
- Você era um faraó egípcio??
- Não. Ele era Akhenaton, o faraó, eu sou Akhenaton, o emissário do demo.
- Ahn.
O ônibus prossegue viagem noite adentro.
- Posso ler um pouco agora ou vou ter que apressar sua passagem pro "jardim"?
- Uh, claro cara. Desculpe.
Olha pro lado e repete baixinho, para si:
- Desculpa mesmo...
Sétima história: A matilha
Eu tava no trem, lendo, na minha. Numa estação subiram uns três malucos, os caras queriam
encrenca, isso dava pra se ligar na hora. Básico que os nóia colaram na minha bota e vieram me
apavorar.
- E ae, maluco. Na moral?
- Certo, respondi eu.
- Ta lendo o que, mané?
Eram um magrinho com cara de noiado total, um gordo com uma camiseta de time e um
alto, com o gorrinho enfiado até os olhos. O magrela noiado não parava de tremer.
- Dá um bico, alemão, uia só o que cara ta lendo! – apontava para meu livro.
- Retrato de Dorian Gray?!
- Ae, o cara é mó boiola, maluco!
Eles começaram a rir que nem umas bestas e me apontar.
- Ih, o cara lê Oscar Wilde, só pode ser fruta.
Ignorantes.
- Ae, cara, macho mesmo lê Conrad, valeu?
- É, mané, seguinte, tu tem que le o Coração das Trevas, em vez de ficar nessa boiolagem de “busca
pela beleza eterna”, se liga no “Horror, o Horror”, sacou?
- É, tem que ter o Horror!
Eram uns filhos da puta, mas que eu podia fazer? Os caras eram maioria e outra, podiam
estar armados.
- Ae, truta, tu curte um som?
- O fruta ouve Beethoven! – Sacaram a minha camiseta.
- Se liga, cara, Beethoven é coisa de préiboi!
- O esquema é Tchaikovsky! O cara é hardcore!
E então começaram a berrar a Abertura 1812, fazendo o símbolo dos chifres com a mão e
balançando a cabeça, o gordão fazendo o barulho dos canhões com a boca, bum, bum. E eu ficava
ali, parado, sentindo ódio por não poder revidar. Um deles deu um tapa no meu livro, derrubando no
chão.
- E ae, vai falar o que, préiboi? Vai chorar pra mamãe?
- É, fala que Tchaikovsky é o cara, mané. Fala aí, palhaço!
- Aposto que o vacilão acha que os Irmãos Karamazov é do Nabokov!
- Podicre, podicre, alemão, cê é o cara – o nóia tava quase engasgando de tanto rir.
Todos gargalhavam, e um deles me deu um tapa na orelha. Pra minha sorte, nessa hora o
trem parou na estação, onde desceram se empurrando e gargalhando. Assim que as portas se
fecharam eu catei meu livro do chão. Os outros passageiros me olhavam. Uma senhora falou:
- São uns animais. Você está bem, meu filho?
- Sim, não foi nada, respondi engolindo em seco.
- Tinha era que matar tudo essa cambada, falou um cara de bigode sentado do lado da porta.
- A culpa é do governo, que não faz nada pela educação – era a senhora falando – e os jovens não
tem emprego e ficam largados por ai, fazendo arruaça.
- E ficam importunado trabalhador. A polícia nunca ta por perto quando a gente precisa.
Me desliguei do debate e mergulhei novamente nos monólogos de lorde Henry nas tardes
londrinas.
Oitava história: Fluxo Negro
O relógio me distraiu enquanto esperava no escritório. Era daqueles relógios grandes, em
que os ponteiros andam aos solavancos. Esses pulos me hipnotizavam com seu plec, plec. Fui
surpreendido pelo diretor do presídio, enquanto olhava perdido os pulinhos que o ponteiro dos
segundos davam.
- Boa tarde.
- Boa tarde, retruquei meio surpreso, meio envergonhado
- Deixe-me ser direto: não concordo com a sua vinda aqui. Não estou de acordo com essa besteira
do teu jornal de humanizar essas criaturas, e para ser franco, senhor, acho que não tem a mínima
idéia do que está fazendo.
- O doutor me desculpe, mas...
- Eu não terminei. Não me interrompa. Eu estava dizendo, acho que você não tem a mínima idéia do
que está fazendo e que isso é um grande erro. O público não quer saber, o público não deve
saber, é precisamente, precisamente o motivo pelo qual os mantemos presos e isolados o mais
que podemos. Para proteger o público disso. E você só não entende isso porque não tem a
mínima idéia do que irá encontrar.
Nisso ele estava certo. Não tinha. Mas o jornal achava que eu deveria, que todos deveriam
ter. Além disso, ter acesso a uma entrevista exclusiva com o monstro poderia tirar o jornal do
buraco em que estava.
- O doutor me desculpe, mas se já acabou, eu acredito que o público precisa saber, conhecer,
inclusive pra poder se prevenir, além de tentar compreender a...
- Não há o que compreender. Aníbal, escolta ele pro 303.
Pra alguém que não gosta de ser interrompido até que ele tem prática em interromper. Segui
“Aníbal” por uma tortuosa série de corredores, postos de controle, portas duplas, as quais não
poderia revelar a seqüência e localização precisa, pois eram informação restrita.
Paramos em frente a uma porta grande de metal pesado. Uma fechadura eletrônica estalou e
tive acesso a uma cela iluminada com luz branca artificial, contendo apenas um banco soldado no
chão, um grande espelho e um interfone.
- Sente aqui. Fale pelo interfone, ele poderá ouvi-lo. O senhor ouvirá as respostas através daquele
alto falante. Ele está contido, naturalmente, mas há um microfone no lado de lá. Quando
terminar, ou em caso de qualquer problema, aperte esse botão e imediatamente viremos. A sua
visita está sendo monitorada através daquela câmera ali. Não podemos gravar ou escutar a
conversa por motivos legais, mas estaremos de olho no senhor. Boa sorte.
Aníbal saiu e porta se fechou com outro estalido. Fiquei olhando o espelho, me vendo
naquela cela, o que me deu calafrios. Sensação esquisita.
O espelho se iluminou e vi o monstro. O alto falante começou a transmitir um sibilar
profundamente desagradável.
- Boa tarde, hã... Eu não sei como é seu nome, então como prefere ser chamado?
A criatura continuou sibilando. Nenhuma resposta.
- Meu nome é Lucas B. e sou repórter da F. M., jornal de grande circulação nacional e estou aqui
para entrevistá-lo. Seus advogados permitiram, presumo que com sua autorização.
A criatura continuou exatamente como estava. Não esperava que fosse ser fácil, mesmo.
- Você concordaria em contar a sua história, como achar adequado, ou responder algumas
perguntas? Se importaria de me responder?
Houve um gorgolejo, que poderia ter sido uma risada, ou algo que lembrasse uma, e então
meus cabelos da nuca se arrepiaram e tive certeza de que não lidava com um ser racional, o que era
de se imaginar ao se conhecer os atos da criatura. Tinha somente meia hora de entrevista e não
estava conseguindo nada, mas de repente isso não me preocupava tanto quanto antes.
O sibilar ficou mais intenso, uma série de ruídos estalaram no alto falante, e ouvi a voz
rouca, chiada, que poderia ter vindo de um réptil pestilento, um dragão de Komodo com saliva
capaz de matar uma vítima de infecção:
- Minha história... - uma pequena convulsão e um engasgo que eram apavorantemente próximos do
que seria uma risada de desprezo. Minha história... hrum. Eu sou um predador. Eu predo almas.
O que queres saber?
- O que quer dizer com “preda almas”?
- Heh. Repórter. Repórter burrinho, quer contar histórias, já contou tantas que já as tem prontas.
Almas, repórter burrinho, almas, não sabes o que é? Não tens? É claro que não.
- Bem, senhor, ainda não sei como prefere ser chamado, por que preda as almas?
Chavões, chavões, pensas o que pensaram antes, não vê? Heh. Estás preso, repórter burrinho, e
achas que sou eu que estou.
- Por que diz que estou preso?
O ruído desagradável virou uma abjeção que, desconfio, deveria ser uma gargalhada. Aquilo
me revoltou o estômago.
- Repórter, acha que contas histórias, tens esperança que eu seja uma história tua, mas não sou, não
tua.
- Você acredita em libertação da mente?
- Heh. Mente? Acreditas que tens mente? Já ouviste a história da libertação da mente, torces para
que eu seja uma história que conheces, repórter burro, achas que estás seguro atrás do espelho.
Heh.
- Por que não estaria? – aquela conversa estava me irritando. Burro é a mãe dele.
- Falas comigo e não vês o perigo, reporterzinho, achas que estás seguro, que sou louco, que sou um
chavão como tu. Fanático religioso, monstro predador, psicopata, bah, aberração, aberração,
repórter, eis o que sou, e sei que tua esperança é que eu seja uma história tua, mas não sou, e
isso, homenzinho burro, é o menor dos teus problemas.
Essa coisa tem mãe?
- Matei, repórter, estuprei, mutilei, torturei, bebi o sangue e comi a carne, tudo isso eu fiz. Que
queres saber? A razão? A história? Não a terás pronta, não essa. Mas repórter, esses foram os
crimes menores, isso não foi nada, isso, isso foi consequência, não causa, do meu crime maior.
Estava intrigado, e não sabia o que pensar.
- Heh. Não sabes o que pensar agora, repórter, não sabes, porque ninguém pensou esse pensamento
pra ti antes. Tu, tu achas que tens mente, mas outros pensam teus pensamentos e agora, esperas
que eles venham em teu socorro. Oh, quase tinha me esquecido do prazer. Heh. E agora,
reporterzinho, que queres saber de mim?
Engoli em seco, mas me controlei. Não ia cair na conversa fiada de um monstro estúpido.
Queria respostas, e ia me esforçar para obtê-las.
- Qual o seu crime maior, do qual os outros são consequência?
- Foste socorrido, repórter, pensaram algo pra ti, pensas que tens um plano. Heh. A maior piada de
todas, um plano. Meu crime, repórter, é que eu sei.
Sabe? Sabe o que? O que essa droga de psicopata infeliz tinha descoberto, que o perturbava
e o fazia falar e falar sem parar.
- Poderia elaborar isso, por favor? O que o senhor “sabe”?
- Heh. Polido, polido, o chavão é polido. Reporterzinho, tua polidez não te servirá comigo. Falo a
verdade, mas não tens como saber. Achas que sou uma ameaça, repórter, mas não é a mim que
deves temer, é a tua condição. Eu, eu apenas me divirto, mas não tens o que eu predo, o que eu
busco, mesmo que por um pouco, aquele alívio, de me sentir fora, de olhar, oh, olhar para fora
um segundo. Esse prazer, repórter burro, não conhecerás. Estás preso irremediavelmente, pois
não sabes. Te incomodas que te chame burro, mas o és, te preocupas com minha mãe e com a
hora, vês o reloginho, plec, plec, te encontras preso, não sabes de nada e agora posso me divertir
contigo, justo quando te achavas seguro. Gostas dos ponteirinhos, repórter? Hrm? Dos pulinhos?
Heh.
Fiquei olhando o vidro, parado. Não sabia o que pensar, aquela criatura... ela tinha... Ela
sabia do relógio, da mãe, sabia o que eu tinha pensado!
- O que é isso? Como você, como diabos, você sabia do...
- Falo até agora como, mas não entendes. Eu aprendi, repórter, aprendi a ler as linhas. Eu enxergo o
pulso rítmico da espera durante a criação, o sinto, as pausas, repórter estúpido que nunca
compreenderá, o fluxo negro, quase sempre negro, de pensamentos se condensando, se tornando
concretos, eu vejo os chavõezinhos se organizando e tomando a forma de repórteres burros que
olham relógios e acham que tem opiniões, ou pior, pior, um plano, esperando os pensamentos lhe
serem doados, eternamente presos, agora que depositados em linhas, estáticos, dependendo agora
de outrem para o movimento, e te achas independente, superior, mas és como eu e como o
guarda, apenas o fluxo negro, a torrente despejada e congelada, aguardando que dêem impulso
para voltares a achar que és um repórter esperto. Tu não tens idéias, não tens alma, não é a ti que
busco, que predo, é os que as tem, os que impulsionam, e de vez em quando eles vêm até aqui,
guiados por ti, através de tua história, e posso então, mesmo preso e mesmo contido, me
alimentar deles e viver, e os crimes banais são apenas consequências desse, pois eu sei o que sou
e não posso deixar de sê-lo, e tu, chavão estúpido, que acreditas contar histórias, não sabes que
és isso, apenas isso, estás contido no que acreditas conter, mas não falo para ti, chavãozinho, falo
contigo que me lês enquanto te observo, és livre e eu não, mas através de ti me liberto, pois me
dás movimento, e tu me tiras dessa prisão, mesmo não querendo. Heh.
A criatura estava se agitando, e comecei a me sentir inseguro, mesmo separado por
blindagens. Que história era aquela de tirar da prisão, a criatura se contorcia e gargalhava aquele
som horrível, babando a saliva pestilenta do réptil. Não queria mais continuar escutando aquele
discurso. Não queria. Queria sair dali. Rápido!
- Não gostas do que vês, chavãozinho, não queres mais brincar? Não te preocupas, o fim está
próximo por enquanto, e cumpriste teu propósito, me trouxesse a alma, a guiou até aqui, dentro
de minha cela, ao meu alcance, fez ela me libertar, mas tua maldição será voltar ao início sem
saberes disso e a minha será voltar sabendo, mas a alegria de uma espiadela do lado de lá me
conforta, de me mover na alma que me trouxeste, incauta, e agora que minha presa sabe que a
observo eu me divirto com teu espanto e o dela. Isso me servirá até a próxima vez. Vai-te,
repórter, conta a história que quiseres, inventa algo hediondo, não me importo, provavelmente eu
fiz de qualquer maneira. Me cansei de ti, agora que cumpriste a tua função de atrair a minha
presa a mim, me serviste bem, repórter estúpido.
Seja lá do que essa criatura falava, resolvi agarrar a chance. Apertei o botão, ainda
escutando os barulhos horrendos que a criatura emitia, aquela gargalhada, e os guardas vieram me
libertar. Vaguei pelos corredores, entorpecido. Estava com náuseas, saindo de lá sem uma história e
tudo o que eu precisava era de uma história.
Mas eu pensaria em algo. Eu tinha um plano.
Heh.
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