desta edição - Escola Paulista de Magistratura

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desta edição - Escola Paulista de Magistratura
CADERNOS JURÍDICOS
ESCOLA PAULISTA DA MAGISTRATURA
Volume 3 - número 8 - mar./abr.2002
São Paulo - 2002
ESCOLA PAULISTA DA MAGISTRATURA
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Diretor Financeiro e Administrativo
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CADERNOS JURÍDICOS
ESCOLA PAULISTA DA MAGISTRATURA
Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 1-132, mar./abr.2002
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Volume 3
Número 8
Mar./Abr.
2002
I – Decisões, Sentenças e Acórdãos
1. Sentença. Pedido de Falência. Indeferimento da inicial.
Falta de interesse de agir. Análise doutrinária
e jurisprudencial do instituto. ............................................................ 9
Manoel Justino Bezerra Filho
2. Sentença. Cartão de crédito. Abusividade
dos juros praticados pela administradora.
Análise de cláusulas contratuais frente ao
Código de Defesa do Consumidor. Procedência parcial. ................ 21
Rodrigo Marzola Colombini
3. Sentença. Administrativo e constitucional.
Ação de cobrança. Preclusão do direito
de juntar documento. Nulidade do contrato
por inexistência de licitação. Improcedência. ................................. 27
Francisco Glauber Pessoa Alves
4. Sentença. Extinção de fideicomisso. Nulidade de
citação afastada. Legitimidade ativa reconhecida.
Nulidade de fideicomisso instituído
além do segundo grau. Procedência. ............................................... 33
José Antonio Tedeschi
5. Sentença. Indenização por danos morais.
Prática de adultério. Procedência parcial. ........................................ 41
Bruno José Berti Filho
6. Sentença. Progressão para regime semi-aberto
obstada por força de decreto de prisão cautelar
em razão de pronúncia. .................................................................... 45
Carlos Fonseca Monnerat
7. Sentença. Inventário. Pretendida interpretação
de cláusula de testamento público em benefício
dos sucessores da herdeira instituída, pré-morta,
por força de instrumento particular. Indeferimento.
Conversão em herança jacente. ........................................................ 47
Daniela Maria Cilento Morsello
Acórdão de confirmação em recurso de apelação .......................... 50
Relator: des. Ênio Santarelli Zuliani
Acórdão em Recurso Especial.
Não-conhecimento do recurso por maioria ..................................... 53
Relator: min. Sálvio Figueiredo Teixeira
8. Sentença. Indenização por danos morais e materiais.
Assédio sexual no trabalho. Improcedência. ................................... 63
Paulo Alcides Amaral Salles
9. Sentença. Registro de Imóveis. Averbação direta
de Bula Papal independentemente de
ato translativo de domínio. Procedência. ............................................ 67
Sérgio Araújo Gomes
10.Sentença. Pretendida condenação do Estado ao
fornecimento de medicamentos, materiais hospitalares
e produtos de higiene e limpeza.
Antecipação da tutela. Procedência. .................................................... 73
Carlos Alberto M. S. M. Violante
II – Análise de Jurisprudência
1. Disputa de bens na separação de fato do casal ................................... 79
Euclides de Oliveira
2. A ação de investigação de paternidade. ............................................... 83
Alexandre Betini
III – Estudos
1. Meio ambiente do trabalho e a
responsabilidade civil e penal das empresas. .................................... 117
Renzo Leonardi
2. Da necessidade de nomeação de curador à lide
nos pedidos de alvarás para realização de aborto. ............................ 127
Louri Geraldo Barbiero
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29ª VARA CÍVEL CENTRAL DA CAPITAL DO ESTADO DE SÃO PAULO.
VISTOS.
IPIRANGA COMERCIAL QUÍMICA S/A ajuizou PEDIDO DE FALÊNCIA contra a
empresa individual FABIANA PRADO FILHO, alegando que esta está a dever-lhe a
importância de R$ 6.700,00, relativa à venda de mercadorias e que, embora tenha
empreendido todos os esforços para solução do problema, não logrou qualquer êxito,
razão pela qual pede seja a requerida citada para responder aos termos da presente,
sob pena de lhe ser decretada a falência. Com a inicial (fls. 2/3), juntou documentos
(fls. 4/16). Em atendimento ao despacho de fls. 17, veio aos autos a certidão de fls. 18,
informando não haver qualquer outro requerimento de falência contra a empresa.
É o relatório.
PASSO A DECIDIR:
Está em formação corrente de pensamento que poderia ser rapidamente resumida
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no seguinte postulado: o requerimento de falência não é ação de cobrança e, portanto,
não se presta a funcionar como meio de cobrança à disposição do credor; por isso mesmo,
o pedido não pode prosperar quando está sendo manejado por credor único, que instrui
seu pedido com débito de pequeno valor. Como resultado final de tal forma de encarar
a questão, se houver requerimento de falência em tais condições, deverá ele ser indeferido, por carecer o credor de interesse jurídico para o pedido apresentado.
A falência não é meio de cobrança, e sim, um instrumento colocado à disposição
do credor para afastar do meio comercial aquele que não tem condições de nele
permanecer, por estar em estado de insolvência. A credibilidade que o comércio em
geral necessita ostentar é de interesse público, a ser preservado para que a própria
segurança da economia do País seja preservada. Qualquer um que tenha conhecimento
que seu devedor comerciante está em estado de insolvência deve colaborar com o meio
no qual vive, levando ao Judiciário tal notícia e propiciando assim o imediato afastamento deste insolvente do meio comercial, para que se evitem as perniciosas conseqüências que daí podem advir, especialmente para a confiabilidade que se exige da
vida comercial de uma nação, um dos pilares de sua vida econômica. Daí, dizer RUBENS
REQUIÃO (Curso de Direito Falimentar, Saraiva, 17ª ed., v. 1, 1998, São Paulo, p. 25/
6) que ninguém “põe dúvida de que a falência, em seu procedimento, está determinada
pelo interesse coletivo. O instituto é marcadamente de ordem pública, muito embora
vise resolver em massa questões de interesse essencialmente privado”. Lembra a seguir
a existência da corrente que “objetiva concretamente a eliminação das empresas
econômica e financeiramente arruinadas, em virtude das perturbações e perigos que
podem causar ao mercado, com reflexos em outros organismos”. É verdade que o
venerando mestre REQUIÃO acaba concluindo que tanto o interesse marcadamente
privado do par condicio creditorum quanto o “saneamento do meio empresarial” são,
ambos, elementos que norteiam o processo falimentar, dizendo que “tudo isso a lei
falimentar pretende realizar”.
NELSON ABRÃO (Curso de Direito Falimentar, Leud, 5ª ed., 1997, São Paulo, p.
73) demonstra sua simpatia pelo entendimento de que não se deveria entender a
falência como meio de cobrança, dizendo da inconsistência do preceito que autoriza
ajuizamento do pedido de falência quando ocorre uma simples impontualidade. O
insigne mestre testemunha a tendência dos juízes de primeiro grau, dizendo: “Temos
visto reiteradas manifestações dos juízos, uma vez que, dada sua natureza, os pleitos
falimentares raramente chegam aos tribunais, no sentido de que a falência não se
constitui em meio de cobrança”. Sem embargo, conclui seu pensamento, lembrando
que, enquanto se permitir o requerimento de falência com base na impontualidade, e
não na insolvabilidade, sempre será permitido o decreto de falência com a existência
de credor único.
AMADOR PAES DE ALMEIDA (Curso de Falência e Concordata, Saraiva, 17ª ed.,
1999, São Paulo, p. 109) diz expressamente que “a falência não é, como acentua a
melhor doutrina e remansosa jurisprudência, meio regular de cobrança, mas um processo de execução coletiva contra devedor comerciante insolvente”. SAMPAIO DE
LACERDA (Manual de Direito Falimentar, Freitas Bastos Editora, 14ª ed., 1999, Rio de
Janeiro, p. 54) discrepa deste entendimento, lembrando que “a falência é uma garantia, uma medida acautelatória e um meio de execução mais seguro e eficaz que o meio
ordinário. Não se pode negar o direito a um credor por ele ser o único”.
Enfim, como se vê, a discussão permanece acesa entre os doutrinadores; no
entanto, repita-se, forma-se atualmente, no Estado de São Paulo, forte corrente dos
juízes monocráticos, no sentido de entender que falência não é meio de cobrança e
que, dessa forma, havendo credor único e crédito de pequeno valor, não deve a falência
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ser decretada. Anote-se também que o Tribunal de Justiça de São Paulo, a quem
compete julgar os processos falimentares em Segunda Instância, ainda mantém ponto
de vista contrário a tal entendimento, de forma absolutamente majoritária.
Quando algum credor requer a falência do comerciante, este pode efetuar o
depósito elisivo, que será levantado pelo requerente, declarando-se elidida a falência.
Esta sentença, ao declarar elidida a falência, condenará o requerido a pagar custas,
honorários, juros, correção e outros consectários acaso devidos. Tal sistema de procedimento apenas aparentemente permitiria ver, no requerimento de falência, uma ação
de cobrança. Tanto não é ação de cobrança que o pedido de “falência”, depois do
depósito, já estará elidido, de tal forma que a falência não pode mais ser decretada.
Os autos prosseguem em andamento normal, agora sim como ação de cobrança, para
recebimento dos consectários, os quais só passaram a existir no momento em que não
mais existia a possibilidade de decreto falimentar, eis que o pedido foi elidido com o
depósito. É possível assim precisar o momento no qual deixa de existir o “pedido de
falência” e passa a existir uma “ação de cobrança”. Ou seja, pedido de falência não
é ação de cobrança.
Outro aspecto ainda parece indicar que efetivamente o requerimento de falência
não pode ser considerado meio de cobrança, o que se verifica a partir do exame das
decorrências de celebração de acordo em pedido de falência. Havendo acordo nos
autos, será ele homologado pelo juiz da causa; porém, caso ocorra descumprimento
do acordo, o feito não prosseguirá mais como requerimento de falência, e sim, como
execução do acordo judicial descumprido. Em tal caso, não mais haverá possibilidade
de decretar-se a falência, fixando-se também aqui o momento em que deixa de existir
o requerimento de falência e passa a existir uma ação de cobrança.
O artigo 8o da Lei de Falências determina que o comerciante que deixar de pagar
obrigação líquida no vencimento deve, dentro de trinta dias, requerer ao juiz a declaração de sua falência. Ora, seria contraditório admitir-se que alguém pudesse interpor,
contra si mesmo, uma ação de cobrança. Este artigo 8o demonstra que efetivamente
não se pode confundir o requerimento de falência com uma ação de cobrança.
Ressumbra como truísmo lembrar que, em ação de cobrança, o credor deve pedir
que o devedor seja citado para pagar, sob pena de ser condenado ao pagamento, uma
vez que este é o típico pedido que deve ser feito em qualquer ação na qual se objetive
a cobrança de uma dívida. Pois bem, examinando-se os artigos 11 e 12 da Lei de
Falências, os quais referem-se ao pedido inicial do requerimento de falência, com
fundamento respectivamente nos artigos 1o e 2o da Lei de Falências, observa-se que
ambos determinam que o devedor deve ser citado para “apresentar defesa” (art. 11)
ou “para defender-se” (art. 12), mostrando o legislador, mais uma vez, que o instituto
da falência não é meio de cobrança. Não há, no requerimento de falência, como ocorre
em ação de cobrança, citação para pagar, e sim, citação para apresentar defesa.
Este ponto ainda não encontrou pacificação jurisprudencial, encontrando-se julgados muito bem fundamentados, em ambos os sentidos. Assim é que, na Apelação
Cível nº 254.314-1/5, afirma o relator, desembargador LINO MACHADO: “...vejo o
processo falimentar sim, também, como ação de cobrança (não fosse também ação de
cobrança, qual seria o sentido de ser possível o levantamento da quantia depositada
pelo falido se suas razões não forem acolhidas? Tivesse o depósito elisivo a finalidade
exclusiva de mostrar a solvência do devedor, uma vez feito tal depósito, o autor haveria
de ser declarado carecedor de ação falimentar uma vez que evidenciado o estado de
solvabilidade do réu”. Da Jurisprudência do Tribunal de Justiça, v. 216, p. 71, extrai-se
o excerto: “De fato, o pedido de quebra fundamentado no citado artigo, do ponto de
vista do credor, é uma ação de cobrança, se houver o depósito elisivo ou se instaurado
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o concurso universal, o que é admitido pelo artigo 11, § 2o. da Lei de Falências”.
O e. relator ACLIBES BURGARELLI, conceituado professor de Direito Comercial, no
julgamento de Apelação nº 260.990-1, 6ª Câmara do E. Tribunal de Justiça de São
Paulo, assim ementou o entendimento: “A falência não é ação de cobrança e, se o
magistrado imprime atos que dizem respeito à natureza executiva, cria dificuldade à
parte e a inércia desta, quanto ao impulso regular não pode ser considerada, para o fim
de extinção do feito. Apelo provido”. Reconhecendo que requerimento de falência é
ação diversa de execução ou de “ação de cobrança”, o rel. ROBERTO STUCCHI, ao
denegar a falência porque teria havido recebimento parcial, diz: “Os títulos não perderam a liquidez, certeza e exigibilidade. Basta deduzir o que foi pago de seu montante.
Mas esse raciocínio é válido se se cuidasse de execução contra devedor solvente ou de
ação de cobrança”. Contrario sensu, o julgado afirma que requerimento de falência não
é ação de cobrança.
No julgamento da Apelação Cível nº 120.449-4/9, por maioria de votos, relator
o des. JOSÉ GERALDO DE JACOBINA RABELLO, a 4ª Câmara de Direito Privado, em
julgamento de 19.8.99, entendeu: “O pedido de falência não é meio de cobrança, e
sim, forma pela qual o detentor de crédito líquido, constante de título que legitime
processo de execução, não saldado na data aprazada, prevendo a possibilidade de
insolvência de seu devedor em prejuízo dos credores, requer a declaração de sua
falência, não só no interesse de salvaguardar seus direitos, como também os direitos
dos demais credores do comerciante em estado pré-falimentar”. No julgamento da
Apelação Cível nº 110.768.4/6-00, 4ª Câmara do TJSP, em 12.8.99, em seu voto
divergente, o des. CUNHA CINTRA diz: “Finalmente, o pedido de falência não é meio
de cobrança e sim, forma pela qual...“.
No julgamento do RE nº 108.642-PR, o ministro relator RAFAEL MAYER faz precisa
diferenciação entre “requerimento de falência” e “ação de cobrança”, fixando que
“...o requerimento de falência, com o depósito elisivo, transforma-se em processo de
cobrança...” (RTJ 118/376) (o grifo é nosso). No corpo deste julgado, vem a menção ao
recurso extraordinário extraído de RTJ 105/865, do qual transcreve: “quanto à condenação em honorários advocatícios, o depósito elidiu o pedido de falência e transformou
a causa em ação de cobrança sujeita aos princípios da sucumbência”. No RE nº 108.1562, relator o ministro CARLOS MADEIRA, novamente vem a consignação de que “requerida a falência, se o devedor, citado, deposita o valor do débito, o processo se transforma em mera ação de cobrança”. Como se vê, o STF diferencia o requerimento de
falência da ação de cobrança, estabelecendo que o feito apenas se transforma em
ação de cobrança, após o depósito elisivo, com isso firmando o entendimento de que,
antes do depósito elisivo, outra é a ação, que não de cobrança.
No julgamento do REsp. nº 355-RJ, o relator ministro BUENO DE SOUZA verbera
o procedimento daqueles que pretendem utilizar o requerimento de falência como
meio de cobrança, dizendo: “Por outro lado, para que o credor se utilize do pedido de
falência pelo sistema da lei brasileira, parece-me não ser suficiente o fato de possuir
um crédito, não basta nem mesmo o fato de ter título protestado. É preciso que se
disponha a demonstrar a insolvência do devedor estabelecido como comerciante. O
emprego indiferente de uma ou outra via, se encorajado pela jurisprudência, cria, para
o trato comercial, uma situação de fraqueza para o devedor. O devedor não é nenhum
autor de ilícito, pois o débito é experiência normal da vida mercantil. Logo, como pode
ser citado com prazo curtíssimo para elidir o crédito alegado pelo credor, sob pena de,
não o fazendo ou deixando de apresentar defesa compatível, ter a falência decretada?
Isto é, o credor, ao seu talante, se utiliza de um método mais favorável e expedito que,
no entanto, dificulta ou agrava a situação do devedor”. No REsp. nº 1712/RJ, o relator,
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ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO, firmou o entendimento de que “a opção pela via
falimentar como meio de cobrança, em detrimento da via executiva, constitui, inúmeras vezes, abuso de direito, a merecer redobrada atenção do julgador, que não a deve
prestigiar ou estimular”.
Desde que se admita que falência não é meio de cobrança, poder-se-ia passar
para uma segunda fase do exame do ponto em discussão, perquirindo-se agora a
natureza de concurso de credores, que o requerimento de falência supõe. Isso porque,
se efetivamente a falência é concurso de credores, pode constituir também óbice ao
decreto falimentar o fato de não existirem outros credores. Por isso mesmo, o despacho
de fls. 57 determinou que se certificasse se há outros requerimentos de falência contra
o mesmo requerido, sendo certificado a inexistência de qualquer outro (fls. 58). Por isso
mesmo, mais um motivo passa a existir para que não se permita o manejo do abrangente instituto falimentar para a “cobrança” de um único débito, eis que inexistente
a possibilidade de instauração de concurso de credores, concurso que é da própria
natureza do instituto da falência.
No presente caso, o requerente da falência, além de único credor conhecido, é
ainda titular de crédito de pequeno valor, ocorrendo assim mera impontualidade do
comerciante, sem que tais elementos sejam suficientes para demonstrar a insolvabilidade. A propósito, não é incomum encontrar-se requerimento de falência por importância que não chega a superar o valor de dois salários mínimos; um simples levantamento nos requerimentos de falência que correm atualmente no Foro Central de São
Paulo comprova tal assertiva.
Com relação a este específico ponto, há precisa análise feita pelo brilhante
componente do Tribunal de Justiça de São Paulo, AGUILAR CORTEZ, no julgamento
feito em 22.12.98, da Apelação Cível nº 087416.4/0, na Quarta Câmara de Direito
Privado. Neste caso, o acórdão reformou a sentença do juiz monocrático que havia
indeferido a inicial porque o valor era pequeno; no entanto, a reforma deu-se porque
ficou demonstrado que havia outros requerimentos, deixando o julgado fixado que, se
não houvesse outros requerimentos, a sentença deveria ser confirmada. Embora relativamente longo, vale a pena transcrever parte do julgado: “Na verificação da situação
do comerciante devedor, conseqüentemente, não afronta a lei a determinação de
juntada de certidão dos cartórios distribuidores cíveis e de protestos para constatação
da existência de outros débitos e da presença de fortes indícios da insolvência, para
efeito de abertura da execução coletiva. Crescente tem sido, a propósito, o número de
casos em que o Juízo monocrático, próximo das partes e vivendo diretamente o calor
dos acontecimentos, nega-se até a processar pedido de falência fundado em dívida de
pequeno valor, como aqui ocorreu. Essa tendência da jurisprudência não implica adoção de teses ‘alternativas’ ou subjetivas, mas demonstra preocupação em aplicar a lei,
com a visão do tempo presente. Observe-se, não obstante, que, se a lei não fixa valor
mínimo para o ajuizamento de tal pedido, cabe ao Juízo valer-se de outros meios de
convicção para decretar a quebra, de modo a evitá-la quando desnecessária. É que o
processo de falência não tem por fim apenas declarar o estado de insolvência, mas
também e principalmente abrir o concurso de credores, como já dito. Daí o caráter
constitutivo e não apenas declaratório da sentença”.
Enfim, se se admitir que pedido de falência não é meio de cobrança e que o
processo de falência é essencialmente concurso de credores, pode-se chegar à conclusão de que o pedido de falência deve ser indeferido, com fundamento no inciso IV e
no inciso VI do artigo 267 do CPC, podendo alternativamente ocorrer ausência de
pressupostos processuais ou de interesse processual para o pedido; ou ainda com
fundamento nos incisos III e V do artigo 295 do mesmo CPC.
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Mais objetivamente, parece falecer interesse ao requerente da falência pois “é
caracterizado o interesse de agir pela necessidade e utilidade do provimento jurisdicional, demonstrado por pedido idôneo lastreado em fatos e fundamento jurídico hábeis
a provocar a tutela do Estado” (JOÃO BATISTA LOPES, “O Interesse de agir na ação
declaratória”, RT 688/255). Segundo JOSÉ FREDERICO MARQUES (Manual de Direito
Processual Civil, 2ª ed., v. 1, p.58), “há interesse de agir sempre que a pretensão
ajuizada, por ter fundamento razoável, se apresente viável no plano objetivo. Interesse
de agir significa existência de pretensão objetivamente razoável”.
O princípio da economia processual também interfere de forma acentuada na
atividade judiciária, principalmente nos dias atuais, com o freio da nova Lei de Responsabilidade Fiscal, a impedir qualquer gasto extra. A relação custo/benefício, em determinados casos (como no caso de falência), deve ser examinada, para que se possa
aquilatar a existência ou não de interesse processual. Neste ponto, é CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO (Execução Civil, RT, São Paulo, v. 2, p. 229) que diz inexistir interesse
processual quando a “atividade preparatória do provimento custe mais, em dinheiro,
trabalho ou sacrifícios, do que valem as vantagens que dele é lícito esperar”. Parece
indiscutível que esta lição aplica-se exatamente a casos de requerimento de falência,
por crédito único, de valor irrisório.
Mesmo que o pedido de falência tenha tido regular processamento, ainda no
momento da sentença pode (e deve) o juiz reconhecer a ausência de interesse processual, se vem aos autos a demonstração do desconhecimento da existência de outros
credores, pois “a opinião geralmente admitida e correta, todavia, é que o interesse
deve existir no momento em que a sentença for proferida. Portanto, se ela existiu no
início da causa, mas desapareceu naquela fase, a ação deve ser rejeitada por falta de
interesse” (CELSO AGRÍCOLA BARBI, Comentários ao Código de Processo Civil, Forense, 6ª ed., Rio/São Paulo, p. 31). Em casos como o ora examinado, não há possibilidade
de, já ao despachar a inicial, verificar-se se existe ou não interesse, o que apenas será
possível em momento posterior, nada obstando assim que, mesmo no momento da
sentença, venha a ser declarada a inexistência de interesse processual para o pedido.
Finalmente, embora este aspecto seja mais prático do que jurídico, para o próprio
credor que tenha ajuizado o requerimento de falência como substitutivo de ação de
cobrança, interessa tal declaração de falta de interesse e conseqüente extinção do
feito. É que, como sabem todos, se efetivamente for decretada a falência, a probabilidade de que o credor venha a receber a importância em aberto é muito distante; valeuse ele do requerimento de falência como verdadeiro “blefe”, que não deu certo e do
qual não estaria mais em condições de desistir, tendo em vista que os autos estariam
conclusos para sentença. Assim, para o próprio credor, é mais recomendável que não
se decrete a falência e que se lhe dê a oportunidade de cobrar seu crédito pelas vias
ordinárias. De qualquer forma, repita-se, este argumento não é propriamente jurídico.
PAULO FERNANDO CAMPOS SALLES DE TOLEDO (Dissertação de Mestrado,
1987, Biblioteca da Faculdade de Direito de Universidade de São Paulo) ressalta que
o diploma falimentar brasileiro “mostra sinais inescondíveis de velhice, causados por
uma profunda inadequação à realidade, mal de que padece desde o nascimento”,
acrescentando ainda que “a inadequação e a premência (de reforma da lei) vêm sendo
ressaltadas pela Doutrina desde o início da década de 1970”. As legislações mais
modernas caminham no sentido de apenas possibilitar o decreto de falência, após
tentativa de recuperação da empresa, ante o interesse social prevalecente da manutenção da empresa, em oposição ao interesse particular do credor. Tanto é assim que
o artigo 37 do último substitutivo (junho de 2000) do projeto de Lei nº 4.376/93
estabelece: “Art. 37:- A recuperação judicial é a ação judicial destinada a sanear a
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situação de crise econômico-financeira do devedor, salvaguardando a manutenção da
fonte produtora, do emprego de seus trabalhadores e os interesses dos credores,
viabilizando, dessa forma, a realização da função social da empresa”.
Como se observa, a preocupação do legislador, colocada em ordem de prioridade,
menciona em primeiro lugar a manutenção da empresa, para, logo em seguida, falar
em manutenção do emprego de seus trabalhadores. Esta ordem não existe por acaso,
demonstrando a clara opção do legislador por colocar em primeiro lugar o interesse
social existente na manutenção da empresa; salvaguardado este interesse que se
sobrepõe a todos os demais, em seguida o interesse do legislador é pela manutenção
do emprego, o qual só poderá ser garantido se a empresa for mantida. Por último é que
o legislador alinha os interesses dos credores, direito que será devidamente garantido
depois que os direitos anteriores estiverem preservados. O artigo termina deixando
claro que a escolha foi por salvaguardar a realização da função social da empresa.
Feita esta clara opção, o legislador mostra, em outros artigos, que a falência,
chamada de “liquidação”, não poderá ser decretada se o débito for de pequeno valor
e se não estiver provada a existência de protestos de outros credores. Ou seja, o projeto
de lei prevê exatamente o que, de forma precursora, impulsiona a tendência jurisdicional ora sob exame. Quanto a débito de pequeno valor, diz o artigo 77 do projeto: “Art.
77 - Será decretada a liquidação judicial do agente econômico que:- I - sem relevante
razão de direito, não paga, no vencimento, dívida líquida constante de título executivo
que ultrapasse a soma correspondente a R$ 10.000,00 (dez mil reais), considerado o
valor originário;”. Estabelece assim este artigo que débito de pequeno valor não será
hábil para instruir pedido de falência. Além de determinar o valor mínimo do débito,
o projeto exige a demonstração da existência de pelo menos outros dois credores que
tenham protestado títulos contra o requerido em data recente. Diz o artigo 81 do
projeto: “Art. 81 - Na hipótese do art. 77, I, desta lei, para requerer a liquidação judicial
daquele que não paga no vencimento dívida líquida constante de título executivo,
deverá o credor instruir o pedido com instrumento representativo desta dívida, cujo
valor originário deverá ser superior a R$ 10.000,00 (dez mil reais), representado por um
ou mais títulos executivos, devidamente protestados, acompanhado de certidão de
protesto de dois ou mais títulos de credores distintos, tirados contra o devedor no
período de 90 (noventa) dias anteriores à data do pedido”.
Como se vê, a tendência legislativa é no sentido de impedir que o nobre e
abrangente instituto da falência venha a ser desvirtuado, para se transformar em
simples ação de cobrança, à disposição de qualquer isolado credor, por valor irrisório.
Esta nova legislação que se projeta acompanha a visão moderna do Direito Falimentar
já vigente em Portugal, no chamado “Código dos Processos Especiais de Recuperação
da Empresa e de Falência” (Decreto Lei nº 132/93, de 23.4.93, com as alterações
introduzidas pelo Decreto Lei nº 315/98, de 20.10.98); ou como no Direito Italiano, pelo
Real Decreto RD 267, de 16.3.42. Esta mesma visão moderna que se encontra na
França, no reglement amiable, instituído pela Lei nº 148, de 1984, posteriormente
aperfeiçoada pela Lei nº 98, de 1985, que trata do reerguimento e liquidação das
empresas; ou, finalmente, nos EUA, o Título XI do U.S. Code que desde l978, embora
fale em bancarrota (bankruptcy), trata da reorganização das empresas em dificuldade.
O que esta legislação mais moderna tem de novo e extremamente oportuno é
lição que se aplica ao tema presente, afastando a idéia de que o falido é um criminoso
(falliti sunt fraudatores) e anulando a idéia de que a finalidade do processo falimentar
é colocar o Judiciário à disposição do credor para arrecadar, o mais rápido possível, os
bens do falido com o intuito prevalecente de pagar os credores. Sem embargo do direito
do credor de receber o que lhe é devido, parece que cada vez mais se afasta a idéia
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de que a falência se destina ao pagamento de dívidas particulares, pois, para estas,
sempre pode o credor valer-se da execução. A falência, nos dias atuais, é processo
voltado ao interesse público geral e apenas deve ser concedida naqueles casos em que
efetivamente a permanência do falido de fato está a causar insegurança no meio
comercial, como um todo, por existência clara de insolvência. Em conseqüência, podese concluir que, sendo o débito de pequeno valor e não havendo outros credores, o
pedido de falência deve ser extinto por falta de interesse por ele.
Não se desconhece que a posição absolutamente majoritária do Tribunal de
Justiça de São Paulo é em sentido contrário, tendo sido reformada a maioria das
decisões monocráticas em tal sentido. Evidentemente, os juízes, sempre reconhecendo
nos componentes do Tribunal de Justiça aqueles seus colegas mais experimentados,
valem-se normalmente da orientação jurisprudencial, para nortear suas decisões. No
entanto, a jurisprudência sempre é tomada como orientação, respeitável porém não
vinculante. Sem que se negue a preciosa orientação que vem da jurisprudência — que,
na grande maioria dos casos, é sempre seguida —, ainda assim são freqüentes os casos
nos quais a nova orientação emergente dos juízes monocráticos vem provocar a mudança de uma posição jurisprudencial já consolidada. Tantos e tão freqüentes são os
exemplos, que não há, certamente, necessidade de trazê-los.
Aliás, este é exatamente o aspecto enriquecedor do exercício da magistratura
como um todo, cabendo ao juiz monocrático e aos tribunais colegiados o constante
exame das condições sociais e da posição das partes ante o direito positivo, para
adaptá-los a cada caso sob exame e para mudar posicionamentos já consolidados
anteriormente. Não fosse assim e não haveria sequer necessidade de juízes; bastaria,
como sempre se lembra, alimentar um sistema informatizado com os julgados anteriores e introduzir nele os dados do processo, para que a sentença fosse prolatada em
seguida.
Dentro dessa visão é que transcrevo abaixo os dois únicos julgados do Tribunal de
Justiça de São Paulo, acatando julgados no sentido ora indicado, lembrando novamente
que todos os demais julgados são em sentido contrário. Mesmo estes dois únicos
julgados encontrados foram por maioria de votos; não se esqueça, porém, que toda
mudança jurisprudencial começa, sempre, com o primeiro acórdão que, por ser primeiro, é sempre isolado, isolamento que persiste até que ocorra a mudança do entendimento e a pacificação do novo entendimento.
Um dos julgados, aliás já anotado acima a propósito de outro ponto, é o da
Apelação Cível nº 120.449-4/9, julgamento por maioria de votos tomado em 19.8.99,
relator designado des. JOSÉ GERALDO DE JACOBINA RABELLO, voto concordante do
juiz AGUILAR CORTEZ, com voto vencido e declarado do des. CUNHA CINTRA. Relata
o v. acórdão da 4ª Câmara do TJSP: “Cuida-se de recurso de apelação interposto contra
a r . sentença de fls. 19/22, com relatório adotado, que, indeferindo a petição inicial,
extinguiu o processo de pedido de falência, com fundamento no artigo 95, III e V, do
Código de Processo Civil. Entendeu a sentença que, embora a Lei de Falências não
estabeleça valor mínimo da obrigação para fundar a pretensão do credor, tem-se como
impossível a formulação do pedido com base em obrigação que não alcance determinado montante”. O julgado negou provimento ao recurso, fundamentando:- ´Sem
embargo do peso da argumentação desenvolvida no voto vencido, quer parecer que
mais razoável é o entendimento exposto na sentença sobre a matéria. De se ressaltar
que o projeto da nova lei de falências prevê um limite mínimo de R$ 5.000,00 para as
obrigações que possam autorizar pedido de quebra” (o último substitutivo do projeto
aumentou este limite para R$ 10.000,00).
Houve embargos infringentes, com base no voto vencido, declarado pelo des.
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CUNHA CINTRA. Os embargos foram rejeitados, com o voto vencido dos des. CUNHA
CINTRA (presidente e 3o juiz) e com os votos vencedores dos des. JACOBINA RABELLO,
AGUILAR CORTEZ , JOSÉ OSÓRIO e do relator FONSECA TAVARES, em julgamento de
25.11.99, com a seguinte ementa: “Pedido de falência - Inviabilidade diante do reduzido valor de seu objeto - Ausência de demonstração da existência de outros débitos
ou títulos protestados que caracterizariam a insolvência do credor - Atendimento à
norma do art. 5o da LICC - Embargos rejeitados”. Embora longos, alguns excertos do
corpo do acórdão devem ser transcritos, por espelharem exatamente o ponto de vista
que estamos a defender.
Diz o rel. FONSECA TAVARES, como fundamento de sua decisão: “Com máxima
vênia, meu voto está a rejeitar os embargos, submisso às razões invocadas na sentença
e no voto majoritário do sr. desembargador delator designado. De um lado, há de ser
salientado que toda a incidência de norma, que refuja à sua destinação específica, pode
conduzir a uma situação de abuso de direito. Como tal se tem aquela incidência que,
embora literalmente possa ser tida como subsumida ao preceito, na realidade constituise em exorbitância de pretensão, de tal modo que aquele contra quem seja posta,
venha a suportar drasticamente os efeitos dessa interpretação meramente literal. Invoca-se a esse princípio, a parêmia dos romanos, summum jus, summa injuria. ... No
caso dos autos, o débito corresponde a R$ 759,02, isto é, a 5,5 salários mínimos. ...
Razoável que se admitisse a incidência do estatuto falimentar, qualquer que fosse o
valor do débito, se, como firma o acórdão, inúmeros outros existissem, com títulos
devidamente protestados, algo a demonstrar, de plano, a insolvência do devedor. ... Os
excessivos dispêndios exigidos em processo falimentar, constituem-se em argumento
que também não pode ser desconsiderado. Finalmente, não há possibilidade de permitir fujam os intérpretes da norma ao preceito ao art. 5o da LICC; ‘Na aplicação da lei,
o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum’“.
No julgamento da Apelação Cível nº 87.416-4/0, a mesma Quarta Câmara, rel.
o juiz AGUILAR CORTEZ, votos vencedores dos des. OLAVO SILVEIRA e JOSÉ OSÓRIO,
o v. acórdão deu provimento ao recurso interposto contra sentença que havia indeferido
a inicial de requerimento de falência com base em título de pequeno valor. No entanto,
embora reformando a sentença, o julgado deixou fixado o entendimento no sentido de
que, se ao pequeno valor do título também se adicionasse a inexistência de outros
credores, seria então o caso de indeferimento da inicial. Transcrevemos parte do
julgado, que fere diretamente o ponto ora sob exame: “A evolução do instituto da
falência tem registrado gradativa ênfase a seu sentido econômico-social, posto que o
próprio conceito da empresa assim tem evoluído. Não existe mais direito do credor de
provocar a quebra do devedor, sobrepondo-se de modo egoístico ao interesse coletivo;
prevalece, sim, o interesse público na sobrevivência da empresa como instituição
social, ou na sua liquidação, se for o caso, em nome sempre do interesse maior da
coletividade. ... Na verificação da situação do comerciante devedor, conseqüentemente, não afronta a lei a determinação de juntada de certidão dos cartórios distribuidores
cíveis e de protestos para constatação da existência de outros débitos e da presença
de fortes indícios de insolvência, para efeito de abertura da execução coletiva”. Como
se vê, embora reformando a sentença extintiva, ainda assim o julgado fixa posição no
sentido de indeferimento da inicial em caso de débito de pequena monta e ausência
de outros credores.
Evidentemente, ante o caso posto frente a seu julgamento, o juiz que resolver
adotar o presente entendimento fixará o que é “pequeno valor”. Dependendo da
região do País, dependendo do momento econômico, tal fixação poderá variar, sempre
dentro do princípio de que, frente ao caso posto no momento, é que o juiz decide. No
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entanto, o des. FONSECA TAVARES, no julgado acima transcrito (Embargos Infringentes
nº 120.449-4-/0-01), sugere um parâmetro que é de extrema razoabilidade, dizendo:
“O Juizado de Pequenas Causas, disciplinados pela Lei nº 9.099, de 26.9.95, estabelece
como seu limite de competência valor que não exceda quarenta salários mínimos,
abrangente que é também de títulos executivos judiciais e extrajudiciais, excluída da
competência as causas de natureza falimentar. Ora, estatuir-se que possa advir pedido
de falência por valor inferior a tal alçada, seria tornar possível o afastamento da
competência para tais execuções do Juizado Especial, restando apenas a manifesta
opção feita pelo credor pela justiça comum, com o que em nada ficaria prejudicado”.
Assim, poderia entender-se que atende o princípio da razoabilidade a fixação como de
pequeno valor daqueles débitos inferiores a quarenta salários mínimos.
No entanto, e sem embargo da reconhecida autoridade da fonte acima citada, já
verificamos que o último substitutivo do Projeto da Lei de Falências, de junho de 2000,
estabelece R$ 10.000,00 como valor mínimo para justificar a liquidação judicial. Na
data deste substitutivo, ou seja, junho de 2000, esse valor de R$ 10.000,00 correspondia
a 66,2 salários mínimos de R$ 151,00. Assim, pareceria mais razoável, por se aproximar
mais da opção legislativa consubstanciada no projeto, a fixação do valor de 70 (setenta)
salários mínimos como o piso abaixo do qual estaria justificada a decisão judicial que
extinguisse o feito na forma acima proposta.
No entanto, no presente caso, qualquer que seja a opção em termos de valor, deve
a inicial ser indeferida por falta de interesse processual para o pedido feito.
Ademais, no presente caso, o próprio credor recusa-se a informar que assumirá
o cargo de síndico, se houver decreto falimentar, outro fundamento que leva também
ao indeferimento da inicial. A propósito: “Pedido de Falência - Desinteresse do requerente em assumir o encargo de síndico - Extinção do feito. Recurso do Requerente.
Improvimento” (Apelação nº 110.768-4/6-00, julgado em 12.8.99, TJSP, rel. JOSÉ
OSÓRIO, maioria de votos).
No entanto, mesmo que todo o acima não estivesse correto, ainda assim a inicial seria
indeferida, tendo em vista que o protesto tirado o foi de forma irregular. Tratando-se de
falência — exatamente por suas gravosas conseqüências — o instrumento do protesto
obrigatório deve identificar perfeitamente a pessoa intimada, o que não ocorreu no presente caso (fls.12 e 13), tendo a intimação sido feita, por carta “AR”, a pessoa não
identificada. Neste sentido, o e. STJ vem se manifestando de forma repetitiva. A propósito:
“Falência - Protesto Irregular - Pedido Desacolhido - O protesto
cambial e o pedido de falência têm sido desvirtuados de suas
finalidades legais, constituindo-se, não raro, meios coercitivos de
pagamento. Pelos graves efeitos que deles resultam, notadamente
da quebra, impõe-se que os requisitos formais sejam rigorosamente
observados. ‘O protesto irregular do título cambial, de cujo instrumento não consta certidão de ter sido pessoalmente intimado o
representante legal da devedora com endereço conhecido, nem
juntado o aviso de recebimento na hipótese da intimação ter sido
processada por via postal, não autoriza a decretação da falência
(RT 567/92)’. Ap. Civ. nº 47.683, de Tubarão’” (REsp nº 129.364/
SC, 3ª Turma, relator min. CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO,
julgado em 25.9.2001, DJ de 5.11.2001).
“Falência - Protesto - Intimação feita ao devedor - Recebimento por
pessoa não identificada - Irregularidade - Do instrumento de protesto
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deve constar, pelo menos, o nome da pessoa que recebeu a intimação, uma vez que somente quando identificada a pessoa intimada
é que se considera que o devedor foi intimado a pagar e não o fez.
Inexistência de contrariedade ao art. 11 da Lei de Falências. Recurso
Especial não conhecido” (REsp nº 172.847/SC, 4ª Turma, rel. min.
BARROS MONTEIRO, julgado em 18.2.99, DJ de 24.5.99).
“Falência - Protesto - Sendo o protesto precedido de notificação, a
regularidade dessa exige seja identificada a pessoa que a recebeu.
A falta leva a que não se possa, com base naquele título, pedir
falência” (REsp nº 109.678/SC, 3ª Turma, rel. min. EDUARDO RIBEIRO, julgado em 24.5.99, DJ de 23.8.99).
Pelo exposto, julgo extinto o presente feito, sem apreciação do mérito, na forma
do inciso VI (falta de interesse processual) do artigo 267 do CPC. Sem honorários,
responde o autor pelas custas. Se houver requerimento para desentranhamento de
documentos, fica desde já deferido, a ser efetuado após o trânsito em julgado, permanecendo xerox nos autos.
P.R.I.
São Paulo, 8 de fevereiro de 2002.
MANOEL JUSTINO BEZERRA FILHO*
Juiz de Direito
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* Nota: o mesmo magistrado escreveu artigo sobre o tema, publicado em RT 793/103.
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6ª VARA CÍVEL CENTRAL DA CAPITAL DO ESTADO DE SÃO PAULO.
VISTOS.
EDVALDO RAMOS NEVES move a presente ação declaratória de nulidade de cláusulas contratuais c/c repetição de indébito contra CREDICARD S/A ADMINISTRADORA DE
CARTÕES DE CRÉDITO, aduzindo, em síntese, ser titular de cartão de crédito junto ao réu
e que referido contrato de adesão se encontra eivado de cláusulas abusivas, a saber: I)
irresponsabilidade da administradora de cartão até a data da efetiva comunicação pelo
usuário do roubo, furto ou extravio do cartão; II) irresponsabilidade da administradora
sobre a qualidade dos bens e serviços adquiridos através do sistema de cartão de crédito;
III) abusividade da assinatura “em arquivo”, ou seja, que independe da efetiva assinatura
do usuário; IV) nulidade da cláusula-mandato e estipulação de empréstimos em nome do
usuário; V) abusividade da prestação de contas; VI) encargos excessivos, em desconformidade com o estabelecido no Código de Defesa do Consumidor; VII) abusividade do
prazo de 30 dias para a resilição unilateral. Diz que a ré não constitui instituição financeira
e, portanto, encontra-se sujeita às limitações da Lei de Usura. Com tais fundamentos,
pede a declaração da nulidade das cláusulas contratuais apontadas, redução da multa
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para 2%, assim como afastamento da capitalização dos juros. Pede, ainda, devolução em
dobro dos valores cobrados a maior. Junta documentos.
Citada, a ré apresentou contestação a fls. 69/99, sem preliminares. Quanto ao
mérito, assegurou sempre aplicados os índices contratados, não ilegais, impondo-se, a
seu viso, o respeito ao ajuste livremente pactuado. Em linhas gerais, sustenta que as
taxas de juros observaram as disposições legais atinentes à espécie, ausente a alegada
capitalização. Com essas considerações, requereu o julgamento final de improcedência do pedido, com a condenação do autor nas cominações de estilo.
Réplica a fls. 158/171.
Determinada a especificação de provas (fls. 190), as partes requereram o julgamento antecipado da lide (fls. 191 e 193).
A fls. 195/196, requereu o autor a exibição de documentos, o que foi deferido pelo
juízo. A ré juntou referidos documentos a fls. 194/208, facultada manifestação do autor
(fls. 210/212).
É o relatório.
FUNDAMENTO E DECIDO:
As questões suscitadas e controvertidas nos autos constituem matéria a desnecessitar da produção de qualquer outra prova além daquelas já expressamente constantes
dos autos, motivo pelo qual se conhece diretamente do pedido, nos termos do artigo
330, inciso I do Código de Processo Civil.
Trata-se de ação declaratória de nulidade de cláusulas de contrato de cartão de
crédito, sendo impositiva a procedência parcial do pedido.
Tendo em vista as particularidades do caso, plenamente aplicáveis as disposições
do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90).
Não se olvida da dicção do art. 3º, § 2º de mencionada diploma legislativo, que
estatui que serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante
remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária.
A disposição legal há que ser aplicada, caso a caso, de forma coerente com o
espírito e o sistema introduzidos pelo próprio Código de Defesa do Consumidor, a que
visa, em atenção a comando constitucional expresso (art. 5º, XXXII e 170, V, da CF),
regular as relações de consumo (art. 2º, da Lei nº 8.078/90).
Grande parte dos contratos bancários está abrangida pelas disposições da Lei nº
8078/90, sendo de mister, para tanto, a caracterização da relação de consumo, fator
determinante de sua incidência. Dessa forma, cumpre perquirir se a celebração de
contrato bancário entre as partes traduz, na forma da lei protetiva, relação de consumo.
Assim, se a contratação de crédito prestar-se a uma forma intermediária de uso,
não voltada ao consumo estrito, mas ao fomento da atividade produtiva — pouco
importando, aqui, tratar-se de atividade agrícola, pecuniária, industrial ou de prestação
de serviços — estará fora da relação de consumo e, por conseguinte, subtraída da
incidência da Lei nº 8.078/90.
O contrato de cartão de crédito ora em apreço foi firmado pela pessoa física do
autor e não há qualquer prova nos autos de que os valores ali exigidos eram utilizados
para desenvolvimento de alguma atividade econômica.
A relação jurídica é, portanto, plenamente regida pelo Código de Defesa do
Consumidor.
Em que pese, ainda, a existência de acesa discussão jurisprudencial, tenho que
as administradoras de cartão de crédito não estão excluídas do chamado Sistema
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Financeiro Nacional, pelo que inaplicável a limitação de juros anuais (12% a.a.) imposta pela Lei de Usura (Decreto nº 22.626/33).
Isso porque, na definição ampla constante do artigo 17 da Lei nº 4.595/64, são
consideradas instituições financeiras as pessoas jurídicas que tenham como atividade
principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros
próprios ou de terceiros.
No caso dos autos, a administradora de cartão firma financiamentos em nome de
terceiros (usuários) no mercado, com supedâneo na cláusula mandato constante do
contrato de cartão de crédito e objetivando o custeio do parcelamento do usuário, em
caso de inocorrência de pagamento à vista da fatura.
Com o advento da Lei nº 4.595/64, que regulamentou o sistema financeiro, foi
editada súmula (nº 596) pelo E. Supremo Tribunal Federal, que dispõe: “As disposições
do Decreto nº 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos
cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram
o sistema financeiro nacional”.
Assim, não há se falar em submissão da empresa administradora de cartão de
crédito aos limites da Lei de Usura. Neste sentido, vem exatamente decidindo o Egrégio
Superior Tribunal de Justiça, in verbis:
“Comercial. Cartão de crédito. Juros. Limitação (12% a.a.). Lei de
Usura (Decreto nº 22.626/33). Não incidência. Aplicação da Lei nº
4.595/64. Disciplinamento legislativo posterior. Súmula nº 576-STF.
I. Não se aplica a limitação de juros de 12% ao ano prevista na Lei
de Usura aos contratos de cartão de crédito.
II. Recurso especial conhecido e provido.”
(STJ, REsp. nº 297.500/RS; Recurso Especial (2000/0143869-7),
fonte DJ, data:30/04/2001, p. 00139, relator(a) min. ALDIR PASSARINHO JUNIOR (1110), data da decisão 13/03/2001, órgão julgador
T4 - 4ª TURMA, Ementa).
É fato incontroverso a relação jurídica entre as partes. O autor, titular de cartão
de crédito emitido pelo réu, passou a utilizá-lo na aquisição de bens e serviços. Recebida
a fatura para pagamento, em alguns meses o autor deixou de pagar o valor total das
despesas. O valor não pago, segundo o contrato de adesão, é financiado pelo réu junto
a instituições financeiras por ele (réu) escolhidas, a taxas de mercado e em decorrência
de cláusula contratual autorizadora (cláusula mandato), cobrando ainda do usuário
uma remuneração pela intermediação de referido crédito.
Este procedimento está previsto na cláusula décima do contrato e, não obstante
se alegue que o sistema de cartão de crédito sem ele não possa existir, configura prática
notoriamente abusiva e ilícita.
O réu celebra contrato de financiamento com os bancos, para financiamento dos
saldos devedores dos titulares de cartão de crédito, a taxas de juros substancialmente
mais baixas do que aquelas efetivamente repassadas aos usuários do cartão de crédito.
Neste sentido, verifica-se dos documentos de fls. 194/208 que as taxas de juros
obtidas no mercado variaram de 19 a 20% ao ano, enquanto as taxas de juros efetivamente repassadas pela ré aos usuários atingem percentuais superiores a 11% ao mês.
E o réu, para sustentar que a taxa cobrada deve ser paga, argumenta que o titular
do cartão estava ciente desta taxa no mês anterior e livremente optou pelo financiamento.
Este não é, contudo, o enfoque a ser observado.
A relação entre autor e réu é de consumo porque o autor é destinatário final
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do serviço, enquanto a ré é prestadora de serviço no mercado de consumo.
Ora, na relação de consumo é necessário transparência e não pode haver, por
parte do fornecedor, vantagem exagerada em detrimento do consumidor (artigo 51,
caput, inciso IV, e § 1º, do Código de Defesa do Consumidor).
A remuneração exigida do usuário não é clara para esse, uma vez que a administradora do cartão não informa, destacadamente, nos extratos mensais, o valor da
taxa de juros do contrato firmado com os bancos e o valor de sua remuneração pela
intermediação e garantia que presta.
O contrato de adesão também não especifica o percentual da remuneração
decorrente da intermediação e garantia (cláusula 10ª).
O consumidor não sabe que está pagando pouco pelo financiamento propriamente dito, mas muito para a administradora do cartão, pela garantia por ela prestada.
A abusiva remuneração do réu, obtida através do mau uso da cláusula-mandato,
não pode prevalecer, estando o Juiz autorizado por lei a reduzir a vantagem exagerada,
reestabelecendo o equilíbrio contratual (artigo 6º, inciso V da Lei nº 8.078/90).
Nesse diapasão, o artigo 51, do Código de Defesa do Consumidor, em seu inciso
IV, comina de nulidade absoluta “as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de
produtos e serviços que estabeleçam obrigações iníquas, abusivas, que coloquem o
consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou
eqüidade”. O § 1º, inc. III, do mesmo dispositivo legal, estabelece que “se mostra
excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do
contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares do caso”.
Diante destas considerações e das circunstâncias do caso, tenho por reduzir o
percentual dos juros para 24% ao ano, incidentes de forma unicamente linear
(não capitalizada).
Se, por um lado, a administradora de cartão não está limitada ao percentual de juros
estipulado pela Lei de Usura (12% a.a.), por outro lado incabível a incidência dos juros
a taxa livres, sem qualquer esclarecimento ao consumidor — em especial acerca da
diferença entre o valor obtido no mercado e o valor efetivamente repassado ao usuário.
Como mencionado, a administradora de cartão firma empréstimos em nome dos usuários na faixa dos 20% ao ano e repassa aos mesmos encargos superiores a 11% ao mês.
O percentual ora fixado (24% a.a.) atende a finalidade de remuneração econômica do garantidor, assim como encontra-se compatível com o sistema de defesa do
consumidor. Diante do mau uso da cláusula-mandato pela ré, impositiva a intervenção
judicial para restabelecer o equilíbrio da relação jurídica firmada.
Não se olvida, ainda, que a abusividade e conseqüente nulidade da cláusula-mandato constante do contrato de adesão vem sendo reiteradamente reconhecida pela
jurisprudência pátria, em especial no Egrégio Superior Tribunal de Justiça (Súmula nº 60).
Nesse sentido, dentre outros:
“Cláusula mandato é inválida, assim como inválidos e ineficazes os
títulos criados por mandatário assim constituído, nos termos da
súmula nº 60/STJ” (REsp. nº 188.712/RS, rel. min. RUY ROSADO DE
AGUIAR, 4ª Turma, DJU 22/03/99). No mesmo sentido: REsp. nº
82.262, rel. min. WALDEMAR ZVEITER; REsp. nº 1.641/RJ, rel. min.
ATHOS CARNEIRO e REsp. nº 109.006/MG, rel. min. SÁLVIO DE
FIGUEIREDO TEIXEIRA).
“A jurisprudência do STJ consolidou entendimento no sentido de
que a outorga de mandato pelo mutuário à pessoa integrante do
Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 21-26, mar./abr.-2002
grupo mutuante ou a ele próprio, em regra, não tem validade, face
ao manifestou conflito de interesses, a sujeição do ato ao arbítrio
de uma das partes e a afetação da vontade.
O princípio, assim consubstanciado no verbete 60-STJ é revigorado
pelo legislador, que, com a vigência do Código do Consumidor,
passou a coibir cláusulas, cuja pactuação importe no cerceio da
livre manifestação da vontade do consumidor” (RESP nº 210.031/
PR, rel. min. WALDEMAR ZVEITER, DJU 04/05/98).
Nestes termos, de rigor a declaração da nulidade da cláusula-mandato, assim
como a fixação judicial dos juros em 24% ao ano, incidentes, ainda, de forma unicamente linear (não capitalizada).
Relativamente à capitalização de juros, um exame dos extratos da conta também
revela que juros (ou encargos) não pagos pelo autor eram incorporados ao principal
devido em determinado mês e, no mês seguinte, os juros (ou encargos) eram cobrados
sobre o saldo devedor mais os juros dos mês anterior.
O Supremo Tribunal Federal já possuía antiga orientação sumulada de que é
vedada a capitalização mensal de juros, ainda que expressamente convencionada
(Súmula nº 121).
Como sede final de pronunciamento judicial acerca de disposições de lei federal,
o STJ fixou entendimento de que a capitalização mensal dos juros é permitida apenas
nas hipóteses de cédulas de crédito rural, comercial e industrial, posteriormente, sumulando a matéria da seguinte forma: “A legislação sobre cédulas de crédito rural,
comercial e industrial admite o pacto de capitalização de juros”.
Ainda, no sentido do exposto:
“Mútuo bancário - Contrato de abertura de crédito - Taxa de juros
- Limitação - Capitalização mensal - Proibição - Precedentes.
I. No caso de mútuo bancário vinculado a contrato de abertura de
crédito, a taxa de juros remuneratórios não está sujeita ao limite
estabelecido na Lei de Usura (Decreto nº 22.626/33).
II. A capitalização dos juros somente é permitida nos contratos previstos em lei, entre eles as cédulas e notas de créditos rurais, industriais e comerciais, mas não para o contrato de mútuo bancário.
III. Precedentes.
IV. Recurso conhecido em parte e, nessa parte, provido”
(REsp. nº 146.333/RS, rel. min. WALDEMAR ZVEITER, DJU 121:165,
de 29.06.98).
Dessa forma e em conformidade com tais entendimentos, impossível a cobrança de
juros capitalizados do autor, procedendo, neste aspecto, a irresignação colocada na inicial.
As demais afirmações envolvendo nulidade de cláusulas contratuais improcedem.
Não se verifica a alegada abusividade na cláusula contratual que limita a responsabilidade da administradora do cartão à prévia comunicação pelo usuário do furto,
roubo ou extravio do cartão. Isso porque é justamente o usuário quem se encontra na
posse efetiva do cartão e que tem o dever jurídico de zelar pela sua conservação.
Razoável, assim, que ele responda pelos eventuais prejuízos até que informe concretamente a administradora do cartão acerca do infortúnio ocorrido, a fim de que o cartão
seja bloqueado junto ao sistema.
A administradora não pode, também, ser responsável pela qualidade dos produtos
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ou serviços adquiridos pelo usuário através do sistema de cartão de crédito oferecido,
ao contrário do que pretende o autor.
A denominada “assinatura em arquivo” (cláusula 8ª) configura mera faculdade
oferecida ao usuário e, conforme consta do próprio contrato de adesão, deve ser prévia
e expressamente solicitado pelo usuário. Mencionada cláusula não se afigura, prima
facie, abusiva, sendo o caso de reconhecimento de eventual ineficácia diante de
determinada situação concreta e específica.
Inexiste, em tese, a alegada nulidade.
O contrato prevê a prestação de contas pela administradora, com discriminativo
nas respectivas faturas. Prevê, ainda, o prazo de 90 dias para impugnação, o que se
mostra razoável e compatível com o sistema de defesa do consumidor. Nesses aspectos,
também, improcede o pedido do autor.
Outrossim, ao contrário do que alega o autor, o contrato prevê cláusula penal moratória
nos limites previstos pelo Código de Defesa do Consumidor (2% - cláusula 17, letra “a”).
A cláusula penal compensatória de 10% fixada no contrato (cláusula 17, letra “b”)
incide unicamente no caso de cancelamento ou rescisão do cartão e não no caso de
mera utilização do financiamento. Não se verifica a alegada inobservância ao artigo 52,
§ 1º do Código de Defesa do Consumidor, o qual é específico para “multas de mora”
e não para cláusula penal compensatória.
Também não se verifica a nulidade envolvendo a cláusula 18ª, relativamente a
despesas de cobrança e honorários advocatícios. As despesas de cobrança devem ser
comprovadas no caso concreto, quando eventualmente exigidas pela ré; e os honorários advocatícios são fixados judicialmente.
Finalmente, tratando-se de contrato fixado por tempo indeterminado, plenamente justificável a previsão de resilição unilateral pelas partes (denúncia), conforme cláusula 21ª. Também não se verifica qualquer abusividade no prazo de 30 dias de antecedência, prazo esse impugnado pelo autor.
Incabível, outrossim, a devolução em dobro das quantias pagas pelo usuário. Assim
como para a aplicação do artigo 1.531 do Código Civil, a repetição de indébito em dobro
prevista no artigo 42 do Código de Defesa do Consumidor depende da má fé do fornecedor na sua exigência, nos exatos termos da Súmula nº 159 do STF (“cobrança excessiva,
mas de boa-fé não dá lugar às sanções do artigo 1.531 do Código Civil”).
No caso dos autos, a administradora informava mensalmente os encargos que
incidiriam no mês seguinte, os quais, embora ora reconhecidos como abusivos, não
permitem a incidência da penalidade de devolução em dobro dos valores. Eventual
compensação e devolução de valores deve ocorrer unicamente de forma simples.
Posto isso e considerando o que mais dos autos consta, julgo parcialmente
procedente o pedido, declaro a nulidade da cláusula-mandato (cláusula 10ª) e fixo o
percentual dos juros em 24% ao ano, incidentes de forma unicamente linear (não
capitalizada mensalmente), com revisão do saldo devedor do autor nos termos do
acima decidido, abatendo-se eventuais diferenças mediante compensação.
Ante a sucumbência recíproca, cada parte arcará com metade das custas e
despesas processuais, assim como dos honorários dos respectivos patronos, na forma
do artigo 21, caput do Código de Processo Civil.
P.R.I.C.
São Paulo, 27 de dezembro de 2001.
RODRIGO MARZOLA COLOMBINI
Juiz de Direito
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2ª VARA DA COMARCA DE IGUAPE DO ESTADO DE SÃO PAULO
VISTOS.
I - Relatório
Cuida-se de Ação de Cobrança proposta por GBL CONSULTORIA EMPRESARIAL
S.C. LTDA. em face do MUNICÍPIO DE IGUAPE.
A autora alega que: a) celebrou contrato de prestação de serviços técnicos especializados com o réu; b) a remuneração seria devida pelo aumento no repasse do
percentual do réu na arrecadação de ICMS; c) executou os serviços, que não foram
pagos. Pugna por R$ 274.123,95 (duzentos e setenta e quatro mil cento e vinte e três
reais e noventa e cinco centavos), corrigidos e com juros moratórios.
Juntou documentos (fls. 7-74).
O réu contestou aduzindo: a) os serviços executados não lhe trouxeram o benefício prometido; b) o repasse de recursos é feito pela própria Secretaria Estadual da
Fazenda, independentemente da intervenção de terceiros; c) não houve comprovação
do valor cobrado.
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Réplica às fls. 101-139.
As partes foram instadas a indicarem as provas que queriam ver produzidas (fl.
101), vindo as manifestações pelo julgamento antecipado (fls. 133-134 e 140).
Determinação de vinda do certame licitatório por duas vezes (fls. 141 e 143), sem
cumprimento (fls. 142 e 144-145).
Era o que cabia detalhar.
II - Fundamentação
O feito já comporta julgamento, nos termos do art. 330, I, do Código de Processo
Civil, e consoante a longa mas necessária fundamentação que se seguirá.
Como medida prodrômica ao julgamento em si, cumpre consignar que o contrato
originário destes autos foi lavrado ainda sob a égide do Dec.-Lei nº 2.300/86, de onde
que, em prol da irretroatividade das normas como regra geral constitucional (art. 5º,
XXXVI), inaplicáveis os preceitos da Lei nº 8.666/93.
Previamente
Não se descura que é dado ao juízo requisitar documentos (art. 399, do CPC),
quando, embora de encargo originário das partes, o acesso reste inviabilizado.
Só que aqui isso não ocorreu.
Embora público o documento (art. 3º, § 3º, do Dec.-Lei nº 2.300/86 - retratado no
art. 3º, da Lei nº 8.666/93), limitou-se a autora a dizer que enfrentou resistência para
isso, sem nenhuma prova disso. Como? Em que circunstâncias? Chegou a protocolar
algum pleito administrativo? Se sim, porque não o acostou?
É jurisprudência firme e de há muito pacificada que só excepcionalmente e quando comprovadamente a parte não tenha conseguido suas pretensões por meios próprios
é que haverá a requisição judicial. Do contrário, estar-se-á valendo indevidamente do
aparato jurisdicional. Por todos e in verbis:
“Não demonstrada, ainda que perfunctoriamente, a impossibilidade da parte obter diretamente a documentação que entende lhe
ser útil, descabe a sua requisição pelo juiz” (RSTJ 23/249).
Quis a autora transferir para o juízo o encargo originário seu, porque era e é seu
o onus probandi, em face do princípio dispositivo.
Causa mais espécie ainda é que uma empresa de consultoria empresarial, que
visa otimizar trâmites e rotinas de trabalho, não tenha observado o cuidado de arquivar
uma via do certame licitatório que diz ter existido.
Isso é estranho também porque diversamente tem em mãos uma via do contrato
(cópia acostada nos autos). Este, por sua vez, não faz nenhuma menção ao processo
de licitação (o que seria de rigor - art. 51 do Dec.-Lei nº 2.300/86 e art. 61 da Lei nº
8.666/93), provavelmente porque nunca existiu.
Por isso é que declaro preclusa a oportunidade para a autora produzir a prova
pendente (cópias do certame licitatório ou de dispensa/inexigibilidade).
No mérito
A administração pública rege-se, dentre outros, pelos princípios da legalidade e
moralidade (art. 37, da Constituição Federal).
O primeiro diz respeito “à completa submissão da Administração às leis. Essa deve
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tão-somente obedecer-lhes, cumpri-las, pô-las em prática. Daí que a atividade de todos os
seus agentes, desde o que lhe ocupa a cúspide, isto é, o Presidente da República, até o
mais modesto dos servidores só pode ser a de dóceis, reverentes, obsequiosos cumpridores
das disposições gerais fixadas pelo Poder Legislativo, pois essa é a posição que lhes compete
no direito brasileiro” (CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, Curso de Direito Administrativo, 8ª ed., São Paulo: Malheiros, 1996, p. 57). Já o segundo resulta que a “administração
e seus agentes têm de atuar na conformidade dos princípios éticos” (autor e ob. cits., p. 69).
Tem-se, pois, que estes dois princípios são de irrenunciável observância pela
pública administração.
E, “ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras
e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure
igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei,
o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento de obrigações” (art. 37, XXI, da Carta Política).
Portanto, obras, serviços e compras serão sempre precedidas de licitação pública,
ressalvados os casos especificados na legislação. Acerca da importância da licitação, é
de ouro a lição autorizada de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO: “A licitação visa
alcançar duplo objetivo: proporcionar às entidades governamentais possibilidades de
realizarem o negócio mais vantajosos (pois a instauração de competição entre ofertantes
preordena-se a isso) e assegurar aos administrados ensejo de disputarem a participação
nos negócios que as pessoas governamentais pretendam realizar com os particulares.
Destarte atendem-se três exigências públicas impostergáveis: proteção aos interesses públicos e recursos governamentais — ao se procurar a oferta mais satisfatória;
respeito ao princípio da isonomia e impessoalidade (previstos nos arts. 5º e 37, caput)
— pela abertura de disputa do certame e, finalmente, obediência aos reclamos de
probidade administrativa, imposta pelos arts. 37, caput e 82, V, da Carta Magna
brasileira” (ob. cit., p. 316, os destaques não são do original).
As exceções são justamente aquelas previstas nos arts. 22 e 23 do Dec.-Lei nº
2.300/86 (arts. 24 e 25, da Lei nº 8.666/93), que tratam das hipóteses de dispensa e
inexigibilidade.
Na primeira, a “licitação é dispensada, como se pode ver, em situações descritas
pela legislação, nas quais se perderá, em tese, realizar o procedimento licitatório, mas
que, pelas razões em cada caso apontadas, entende-se desnecessário o certame, já
que sua realização não propiciaria ao Poder Público a escolha de proposta economicamente mais adequada, nem o pronto atendimento do interesse público (nacional,
estadual ou local) que requer providências imediatas” (cfr. ANTÔNIO ROQUE CITADINI,
Comentários e Jurisprudência sobre a Lei de Licitações Pública, 3ª ed., Max Limonad,
p. 183). Na segunda, preceitua “a lei que é inexigível licitar quando ocorreu a inviabilidade de competição, podendo isto se dar por algumas razões: quando, comprovadamente houver somente um fornecedor do produto desejado pela Administração, portanto, é o caso de fornecedor exclusivo; quando forem contratados serviços técnicos
enumerados no art. 13 desta lei, que sejam de natureza singular e realizados por
profissionais ou empresas notoriamente especializadas (exceto publicidade e divulgação); e, finalmente, se se tratar de contratação de profissionais do setor artístico” (cfr.
ANTÔNIO ROQUE CITADINI, ob. cit., pp. 217-218).
Entretanto, ainda que configurada hipótese legal de dispensa ou inexigibilidade
de licitação, necessário o ato que as autorizou, nos termos do § 2° do art. 44 do Dec.Lei n° 2.300/86 (processo de justificação com os requisitos previstos, nos termos do art.
26 e seu parágrafo único da Lei n° 8.666/93).
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Ora, ausente procedimento licitatório próprio e ilegítimo o contrato, não há falar
em pagamento de valores, posto que não há responsabilidade contratual (art. 1.056,
do Código Civil). Afigura-se ausente a forma prescrita em lei, o que é causa de nulidade
dos atos jurídicos (art. 145, III, do Código Civil). Com efeito, é tido por nulo “o contrato
realizado sem concorrência, quando a lei a exigir, ou mediante concorrência fraudada
no seu procedimento ou julgamento ou, ainda, quando o ajuste contraria normas legais
em pontos fundamentais de seu conteúdo negocial. A nulidade da licitação induz à do
contrato” (cfr. HELY LOPES MEIRELLES, ob. cit. p. 217). Aliás, sobre a imprescindibilidade da licitação, já se decide à sociedade a tal respeito:
“Licitação - Dispensa - Empresa de notória especialização - Inocorrência - Serviço que nada tem de especializado - Existência de outras
empresas habilitadas - Especialidade que não é imprescindível à
Administração - Dispensa, ademais, que não veio devidamente fundamentada - Ação procedente - Recurso não provido. A notória especialização há de ser aferida para critério de ausência de comparação
com os demais. O grau de especialização há de ser incomparável com
os demais profissionais da área” (STF, 2ª T., Recurso Extraordinário nº
160.381-0, São Paulo, rel. MARCO AURÉLIO, v.u., 29.03.94).
“Ação popular - Procedência - Inocorrência de nulidade diante da
ausência de despacho saneador - Afastada a preliminar jurídica do
pedido, baseada na desnecessidade de licitação para o contrato Houve contratação de serviço de publicidade, em valores de vulto
e com cláusula de acréscimo ulterior incomensurável, sem licitação
e sem exposição motivada de razões convincentes de dispensa da
licitação - Honorários advocatícios adequadamente fixados - Recursos não providos” (TJSP, Apelação Cível nº 239.980/1, Guarujá, 9ª
Câmara de Direito Público, rel. SIDNEI BENETI, 17.04.96, v.u.).
“Ação popular - Obra pública - Ausência do procedimento seletivo prévio
- Ofensa às disposições legais - Pleito recursal inacolhido.
Atuando como fator de eficiência e moralidade, objetiva a licitação assegurar igual oportunidade para os que pretendem contratar com o Poder Público, respeitada a ordem jurídica e as regras
previamente fixadas.
Patente a inexistência do certame, indispensável na espécie, e
demonstrada a lesividade, a par da ilegalidade e da condição de
eleitor, o pacto celebrado é ineficaz” (TJSC, Apelação Cível nº
96.000643-5, de Joaçaba, rel. FRANCISCO OLIVEIRA FILHO).
Tivesse ocorrido certame, teria a autoria do edital e do procedimento administrativo. De toda sorte deveria tê-lo juntado desde a inicial (art. 283 c/c 396, do CPC), não
lhe socorrendo pugnar pela utilização do art. 399, do Código de Processo Civil, quando
o documento é público e a todos acessível (art. 3º, § 3º, e 53, ambos do Dec.-Lei nº
2.300/86 - art. 3º da Lei nº 8.666/93).
Perceba-se mais outros vícios do pacto: 1) não tem prazo de duração, transfigurando-se em de duração indeterminada, o que é vedado não só em sede de direito
administrativo (art. 47, do Dec.-Lei nº 2.300.86 - art. 57, § 3º, da Lei nº 8.666/93), mas em
toda a teoria geral dos contratos; 2) não há indicação do preço (condicionado ao aumento
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da arrecadação e atribuindo-se parcela do erário público a um ente particular) (art.
46, do Dec.-Lei nº 2.300/86).
Por outro lado, também não poderia haver a prorrogação do contrato. Primeiramente, porque se válida não era a avença, ilegítima seria sua prorrogação. Segundo,
porque em não tendo prazo certo de vigência, estaria em aberto sua vigência ad
infinitum. Terceiro, porque esta pressupõe a necessária justificação legal (art. 65, da Lei
nº 8.666/93, já aplicável porque o aditamento se deu sob sua vigência - fls. 21-22).
Não socorre à autora a confissão parcial do débito por conta do réu, uma vez que
indisponível os direitos em litígio (art. 302, II, do CPC), tanto mais no caso em
concreto. Em tal trilhar:
“Prova - Confissão ficta - Revelia - Inadmissibilidade - Artigo 351 do
Código de Processo Civil - Ente público, no caso, a Fazenda Pública
- Impossibilidade de extração ficta pela revelia - Direitos fazendários considerados indisponíveis - Aplicação do artigo 320, II, do
Código de Processo Civil - Anulação da sentença - Recurso provido
para esse fim. Em se tratando de pessoa jurídica de Direito Público
(União, Estado, Território ou Município) a revelia não induzirá a que
se reputam verdadeiros os fatos alegados pelo autor. É que, quando
se trate de uma daquelas entidades, seus representantes ou administradores não têm a disponibilidade dos direitos, que são, assim,
indisponíveis situando-se a hipótese na alínea II do artigo 320”
(TJSP, Apelação Cível nº 219.305-1, Serra Negra, rel. GUIMARÃES
E SOUZA, CCIV 1, v.u., DJ 16.12.94).
“Revelia - Fazenda Pública - Direitos indisponíveis - Inaplicabilidade do
art. 319 do Código de Processo Civil - Circunstância entretanto, que
não impede o julgamento antecipado da lide, ante a suficiência das
provas apresentadas pelo autor - Sentença confirmada” (JTJ 129/253).
O eventual direito há de ser buscado ao agente público que deu causa ao contrato
nulo, sendo certo que dentre os poderes que lhe foram conferidos pelo povo não
estavam a dilapidação do patrimônio público.
Fala-se ainda, para fundamentar reflexos patrimoniais derivados de contratos
inválidos, no princípio da vedação do enriquecimento sem causa, sufragado parcialmente no art. 59 da Lei nº 8.666/93, em alguns arestos e em certa doutrina (como na
excelente monografia de JACINTHO DE ARRUDA CÂMARA, Obrigações do Estado
Derivadas de Contratos Inválidos, São Paulo: Malheiros, 1999).
E aqui vem uma pergunta nevrálgica: o princípio do enriquecimento sem causa
é compatível com o regime jurídico da administração pública?
Ora, perceba-se que se positiva a resposta em nada adianta o zelo constitucional
aos princípios da legalidade e moralidade. Isso porque a sua observância finda por
prejudicar a quem mais os mesmos (princípios) se prestam a proteger — a sociedade
e o patrimônio dela — e ainda porquanto referenda a continuidade de tal prática pelos
administradores públicos e os que com eles contratem.
Por isso que raciocinar assim significa que todo administrador pode sair por aí,
contratando indevidamente quem quer que seja, fazendo avenças de idoneidade duvidosa, enfim, administrando como com certeza não faz em casa própria, que ainda
assim surgirá alguém invocando a tal vedação do princípio do enriquecimento sem
causa e pior, retirando a proteção normativa à supremacia do interesse público.
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É, em uma singela expressão, mais ou menos como “você não pode fazer isso assim,
mas, se fizer, o erário suportará e, portanto, não se preocupe”. Só que a segunda parte
da afirmação não tem previsão normativa e, principalmente, esvazia a primeira.
O argumento fulcral na fundamentação da sua aplicabilidade diz respeito à boa
fé do contratante (cfr. JACINTHO DE ARRUDA CÂMARA, ob. cit., p. 100). Ora, venhamos e convenhamos: alguém, em sã consciência, crê que alguma empresa, hoje em
dia, desconhece que é necessária licitação para contratar com a administração pública,
tanto mais uma da envergadura da autora, consultora empresarial????
Esforço-me muito e é necessária muita falta de lucidez para não perceber duas coisas
simples: 1) todo mundo, hoje em dia, sabe que a contratação com a administração pública
deve ser precedida de uma licitação ou uma justificação para sua ausência; 2) reconhecer
a indenizabilidade por contratos administrativos nulos para os quais o postulante contribuiu é jogar por terra os princípios constitucionais da administração pública (art. 37) e
antes é dar carta branca para sua inobservância reiterada e costumeira.
De toda sorte, ainda que se transponha e vença todos os óbice indicados, mais
precisamente no caso concreto tenho que não se deu a prova de que os serviços da
autora se prestaram ao aumento das repasses de ICMS ao réu.
Os documentos nos autos constantes demonstram que ela existiu, mas daí a dizer
que houve algum nexo de causalidade (um dos elementos etiológicos da responsabilidade civil - art. 1.056 do Código Civil) é algo absolutamente diverso.
É só atentar que, embora tenham sido feitas reclamações administrativas pela
autora em nome do réu (fls. 23-73), não se constatou em que medida a Secretaria
Estadual da Fazenda alterou os percentuais cabíveis ao réu por tal conduta.
E, mesmo que assim tenha procedido o órgão estadual, esse aumento de arrecadação não poderia ser vinculado a um ente particular, como consta no contrato.
Destarte, improcede a inaugural.
III - Dispositivo
Ante o exposto, julgo improcedente a presente ação proposta por GBL CONSULTORIA EMPRESARIAL S.C. LTDA. em face do MUNICÍPIO DE IGUAPE, e, em conseqüência, extingo o processo com julgamento do seu mérito, nos conformes do art. 269,
I, do Código de Processo Civil.
Fixo os honorários advocatícios de sucumbência em 10% (dez por cento) sobre o
valor da causa (art. 20, § 4º, do CPC), sendo que a autora também deverá arcar com
as despesas processuais, incluídas as custas (art. 20, § 2º, do CPC), tudo devidamente
atualizado e corrigido.
Somente não se determinam as providências do art. 40, do Código de Processo
Penal, c/c 102, da Lei nº 8.666/93, porque o delito previsto no art. 89 da Lei nº 8.666/
93 foi criado posteriormente à formalização do contrato, bem como, com relação a
eventual improbidade administrativa, pelo fato do então alcaide já ser pessoa falecida.
De qualquer forma, abra-se vista destes autos ao Ministério Público, para seu
conhecimento e para suas eventuais providências.
Publique-se. Registre-se. Intime-se.
Iguape, 10 de agosto de 2001.
FRANCISCO GLAUBER PESSOA ALVES
Juiz de Direito
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8ª VARA CÍVEL DA COMARCA DE CAMPINAS DO ESTADO DE SÃO PAULO
VISTOS.
CONCEIÇÃO APARECIDA LEITE ALMEIDA, qualificada nos autos, requereu, na
qualidade de fideicomissária dos bens de CORINA PEIXOTO MENDONÇA, situados nesta
cidade e descritos na inicial, havidos por testamento daquela, a extinção do fideicomisso
sobre eles instituído pela autora da herança, em razão do nascimento de sua filha,
MARCELLA MAYARA ALMEIDA ARGIERI, bem como com fulcro no art. 1.739 do Código
Civil Brasileiro, e ainda autorização para substituição de um dos bens fideicometidos.
Indeferida a pretendida substituição do bem (fl. 137 e vº), ao pedido opôs-se
PATRÍCIA PEIXOTO CORBI SILVA, a pretexto de que o fideicomisso só poderia ser
extinto, nos termos da cláusula testamentária que o instituiu, quando do falecimento
da autora, argüindo ainda preliminares de nulidade da citação e de ilegitimidade ativa
de parte (fls. 151/157).
Parecer ministerial a fls. 177/186, em que opinou o representante do Parquet
oficiante no feito, doutor ALEXANDRE ROCHA ALMEIDA DE MORAES, pelo deferimento do pedido inicial.
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Relatados.
DECIDO:
Não se pode tachar de nulo o ato citatório realizado, o qual, de mais a mais, se
aperfeiçoou sem prejuízo à demandada. Tanto assim é que a orientação pretoriana
estabeleceu ocorrer nulidade, na hipótese, quando a citação é feita na pessoa de
empregado sem poderes para presentar a empresa citanda, e esta não comparece ao
processo, caso em que não é comprovada de modo inequívoco a ciência da demanda
por parte daquela.(1) E bem assim já se decidiu, em hipóteses parelhas, que é válida a
citação de pessoa jurídica, mesmo não tendo sido efetivada na pessoa de seu representante legal, se o ato atinge o seu objetivo.(2) É a ensinança de HUMBERTO THEODORO JÚNIOR,(3) que, com sua autoridade, dirime propriamente a questão, assentando
que a citação é indispensável como meio de abertura do contraditório, na instauração
da relação processual. Mas, se esse se estabeleceu, inobstante a falta ou vício da
citação, não há que se falar em nulidade do processo, posto que o seu objetivo foi
alcançado por outras vias. A nulidade do processo, em razão do art. 247, só ocorre,
portanto, plenamente, no caso de revelia do demandado e admite, portanto, suprimento pelo comparecimento da parte, desde que não tenha sofrido prejuízo em sua defesa
pela deficiência do ato.(4)
Assim se dá em razão da regra cristalizada na parêmia pas de nullité sans grief,
cristalizada no ordenamento jurídico pátrio por força do comando inserto na letra do
art. 244, do CPC. Sendo a citação o ato processual que apresenta a importância de
assinalar o aparecimento da relação processual,(5) por ser o ato pelo qual se chama a
juízo o réu ou o interessado, a fim de se defender,(6-7) indispensável se faz, para a
validade do processo, sua efetivação (CPC, art. 214, caput), anotando, a respeito,
MONIZ DE ARAGÃO(8) que, mesmo cominada a nulidade, não haverá por que invalidar o ato, se o resultado pretendido houver sido alcançado, até porque, bem lembra
ERNANE FIDÉLIS DOS SANTOS, a norma processual é meio e não fim em si mesma.
A citação é indispensável para a validade do processo, mas o comparecimento espontâneo do réu a supre (art. 214, § 1º), completando a relação processual.(9)
Tampouco há falar em ilegitimidade ativa de parte da autora, que é fideicomissária dos bens fideicometidos, advindo daí, claramente, o seu interesse jurídico processual, na modalidade “necessidade”, na obtenção do provimento jurisdicional invocado.
Diz-se a respeito da legitimidade de parte ou legitimação para agir, na lição de
JOSÉ FREDERICO MARQUES,(10) que aquele que pede a tutela jurisdicional em relação
a um litígio deve ser o titular da pretensão formulada ao Judiciário, e deve apresentála em face de quem é o sujeito passivo dessa mesma pretensão e, citando a denominação de BUZAID, diz ser a pertinência subjetiva da ação, porquanto consiste na
STJ, 4ª Turma, REsp. nº 16.125-0/SP, rel. min. Athos Carneiro, j. 16.2.93, v.u., in DJU 22.3.93, p. 4.547, 2ª col., em.
Bol. AASP 1.683/supl., p. 4, 1ª col., com farta jurisprudência.
In Curso de Direito Processual Civil, 18ª ed., Forense, 1996, I/254.
(4)
THEODORO JÚNIOR, Humberto, ob. cit., p. 284.
(5)
CHIOVENDA, Giuseppe, in Instituições de Direito Processual Civil, 1ª ed., Bookseller, 1998, 2/369.
(6)
MARQUES, José Frederico, in Manual de Direito Processual Civil, 1ª ed., Bookseller, 1997, 1/442.
(7)
BARBOSA MOREIRA, José Carlos, in O Novo Processo Civil Brasileiro, 18ª ed., Forense, 1996, pp. 31-2.
(8)
In Comentários ao Código de Processo Civil, 9ª ed., Forense, 1998, II/275-6.
(9)
In Manual de Direito Processual Civil, 7ª ed., Saraiva, 1999, 1/261.
(10)
In Manual de Direito Processual Civil, 1ª ed., Ed. Bookseller, 1997, nº 139, p. 237.
(1)
(2)
(3)
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individualização daquele a quem pertence o interesse de agir e daquele em frente ao
qual se formula a pretensão levada ao Judiciário.(11)
Essa, também, a ensinança de ARAÚJO CINTRA, ADA GRINOVER e CÂNDIDO
DINAMARCO,(12) para quem, ainda como desdobramento da idéia da utilidade do
provimento jurisdicional pedido, (...) é titular de ação apenas a própria pessoa que se
diz titular do direito subjetivo material cuja tutela pede (legitimidade ativa), podendo
ser demandado apenas aquele que seja titular da obrigação correspondente (legitimidade passiva).
A respeito, com toda a sua autoridade, ensina também HUMBERTO THEODORO
JÚNIOR(13) que legitimados ao processo são os sujeitos da lide, isto é, os titulares dos
interesses em conflito. A legitimação ativa caberá ao titular do interesse afirmado na
pretensão, e a passiva, ao titular do interesse que se opõe ou resiste à pretensão.
Repilo, pois, as preliminares argüidas.
No mais, tenho que o pedido inicial reclama acolhida, dada a natureza eminentemente declaratória desta demanda.
Na lição de CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, o fideicomisso... consiste na instituição de herdeiro ou legatário, com o encargo de transmitir os bens a uma outra pessoa
a certo tempo, por morte, ou sob condição pré-estabelecida. O herdeiro ou legatário
instituído denomina-se fiduciário ou gravado, e o substituto ou destinatário remoto dos
bens chama-se fideicomissário.(14)
Colhe-se do testamento encartado no apenso (fls. 07/08) que o fideicomisso fora
instituído pelas cláusulas 3ª e 4ª daquela manifestação derradeira de vontade, assim
redigidas:
“3ª) que é seu desejo e determina, que todos os seus bens caibam
e venham a pertencer à sua irmã, dª DÉA PEIXOTO, brasileira,
solteira, maior, professora primária aposentada, residente e domiciliada nesta cidade, à rua Cônego Cipião, número 797 - apartamento nº 41, portadora da C.I.R.G. nº 936060-SP e CIC nº
036474638, e, na sua falta, deixa a CONCEIÇÃO APARECIDA LEITE
ALMEIDA (fideicomissária);
4ª) Que, ocorrendo o falecimento da fideicomissária CONCEIÇÃO
APARECIDA LEITE DE ALMEIDA sem deixar filhos ou marido, os
bens passarão para a sobrinha de CORINA PEIXOTO MENDONÇA,
PATRÍCIA PEIXOTO CORBI, nascida em Araraquara, Estado de São
Paulo, aos 2 de fevereiro de 1971, filha de VENILDO RUBENS CORBI
e de ANA MARIA PEIXOTO CORBI;”
O raciocínio de PATRÍCIA PEIXOTO, quando se opõe ao pedido, vem calcado na
premissa de inocorrência de violação do art. 1.739, da lei civil básica, que dispõe, verbis:
“Art. 1.739. São nulos os fideicomissos além do segundo grau.”
Entende PATRÍCIA PEIXOTO que, sendo fideicomissária em segundo grau, a
MARQUES, José Frederico, ob. cit., p. 238.
In Teoria Geral do Processo, 14ª ed., Ed. Malheiros, 1998, nº 158, p. 258.
In Curso de Direito Processual Civil, 18ª ed., Ed. Forense, 1996, v. I, § 7º, nº 53, pp. 56-8.
(14)
In Instituições de Direito Civil, 6ª ed., Forense, 1991, VI/294,
(11)
(12)
(13)
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instituição do fideicomisso não pode ser tida por nula, já que não restou ofensa ao
dispositivo legal suso transcrito; e que, ante a expressa redação da cláusula 4ª da
disposição de última vontade deixada pela autora da herança, a caducidade do fideicomisso só poderá ser reconhecida por ocasião do falecimento da primeira fideicomissária, ora autora.
Nesse passo, porém, labora em equívoco, por calcar sua tese em premissa falsa.
Comentando a letra do art. 1.739, do Código Civil Brasileiro, ensina CLÓVIS
BEVILAQUA:(15)
“Há quem suponha que o Código Civil permite a substituição fideicomissária além do segundo grau, até o terceiro. Escreve FERREIRA
ALVES: ‘O Código permite o fideicomisso em dois graus; e, a este
respeito, estatui o art. 1.739 que nulos são os fideicomissos além
do segundo grau; e, assim, admite dois substitutos, o primeiro, que
sucede ao fiduciário, o herdeiro instituído, e o segundo, que sucede
ao primeiro referido substituto.’ Esta interpretação deve ser recusada por contrária à letra e ao espírito do Código, assim como á
história da sua formação.
O fideicomisso supõe dois herdeiros: um do primeiro grau, que é o
instituído, com o encargo de entregar a herança à pessoa designada no testamento; e outro, do segundo grau, que é a pessoa designada, no testamento, para receber a herança do instituído. Em
duas palavras: o fiduciário e o fideicomissário. O fiduciário é herdeiro em primeiro grau, e o fideicomissário é herdeiro em segundo
grau. Além deste segundo grau, não admite o Código fideicomisso.
A obrigação de entregar a herança a outrem não pode ser imposta
ao fideicomissário.
É este o pensamento do Código, e está claramente expresso.
O projeto primitivo propusera dizer-se: ‘São nulas as substituições
além do segundo grau’ (art. 1.905). Supôs-se, aliás, sem fundamento, que essa fórmula poderia impedir que, na substituição
vulgar, pudessem ser chamadas duas ou mais pessoas para receber
a herança, e preferiu-se a fórmula atual, que provém de emenda
de ALENCAR GUIMARÃES (‘Trabalhos’, da Câmara, VI, p. 513).”
Colhe-se, a respeito, vívida lição de WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO,(16) de
inteira aplicação à hipótese em exame:
“São nulos os fideicomissos além do segundo grau (art. 1.739). Não
se permite ao testador determinar que o fideicomissário entregue
os bens a terceira pessoa. Por exemplo, anular-se-á a seguinte
disposição, visto incidir na proibição do citado art. 1.739: deixo
minha casa a Pedro, e, quando este falecer, passará a Paulo, o
qual, por sua vez, a transmitirá a João. Fideicomisso não pode
ultrapassar o segundo grau. A passagem dos bens a terceira pessoa
(15)
(16)
In Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado, 3ª ed., Francisco Alves, 1935, VI/214-5.
In Curso de Direito Civil - Direito das Sucessões, 25ª ed., Saraiva, 1989, pp. 238-9.
Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 33-40, mar./abr.-2002
importa estabelecimento de novo grau, formalmente proscrito pelo
direito. O fideicomissário pode assim alienar os bens fideicometidos, como transmiti-los desembaraçados de quaisquer ônus aos
seus herdeiros legítimos.
Observe-se, todavia, que a nulidade da substituição ilegal não
prejudicará a instituição que valerá sem o encargo resolutório (art.
1.740); a existência de novo grau, além dos admitidos, acarreta
apenas a limitação do ônus às lindes legais. Como ensina o prof.
LINO LEME, reduz-se a instituição ao limite legal, como se reduzem
as disposições testamentárias ao limite disponível. No exemplo
acima apontado, valerá a instituição no tocante a Pedro e Paulo;
a nulidade só atingirá a disposição na parte que ordene atribuição
dos bens a João, beneficiário em terceiro grau.”
Bem esclarece, também, a respeito do thema decidendum, ORLANDO GOMES:(17)
“O abuso das vinculações sucessivas levou o legislador a proibir o
fideicomisso além do segundo grau.
A determinação dos graus na substituição fideicomissária tem de
fazer-se de modo preciso, para correta aplicação da lei. Cumpre
distinguir os graus da vocação dos graus da substituição. Há dois
graus na vocação; no primeiro, encontra-se o fiduciário, chamado
para receber diretamente a herança, ou o legado; no segundo, o
fideicomissário, chamado para substituí-lo e recolher, por via oblíqua,
os bens fideicometidos em plena propriedade. Na substituição só se
admite um grau, correspondente ao segundo da vocação. Quando,
pois, se refere a lei à nulidade do fideicomisso, tem em vista o
segundo grau da substituição e não o segundo grau da vocação, não
validando o fideicomisso além do segundo grau a seqüência de
fiduciários, impedindo segundo grau na substituição, que equivale a
terceiro grau na vocação. Postulou, em suma, o princípio pelo qual
o substituto, isto é, o fideicomissário, deve receber os bens fideicometidos sem obrigação de transmiti-los a outrem. Assim, é defeso ao
testador dispor que os bens transmitidos pelo fiduciário ao fideicomissário devam ser conservados por este para restituição, colocando-o,
pois, na posição de segundo fiduciário.
........
Outra conseqüência a inferir-se dos termos da proibição legal é a
de que os bens fideicometidos devem passar à propriedade do
fideicomissário sem qualquer limitação.” (omissis).
É a sempre autorizada lição de CARLOS MAXIMILIANO(18) que os adverte:
“O Código Civil dispõe: ‘Art. 1.739. São nulos os fideicomissos além
do segundo grau’. Deste preceito não se infere haver dois fideicomissos sucessivos; é contemplado em primeiro grau o fiduciário;
(17)
(18)
In Sucessões, 7ª ed., Forense, 1998, pp. 201-2.
In Direito das Sucessões, 2ª ed., Freitas Bastos, 1943, III/91-2.
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em segundo, o fideicomissário. Há dois herdeiros, ou legatários;
um no primeiro, outro no segundo grau. O fideicomissário é o
segundo beneficiário instituído e o primeiro substituto, que recebe
a liberalidade depois de se verificar a condição suspensiva, ou de
falecer o fiduciário.
Refere-se a expressão do Código a segundo grau da instituição, que
é o primeiro da substituição; segundo da substituição seria o terceiro da instituição. O sentido exato da regra positiva é este: são nulos
os fideicomissos além do segundo grau da instituição. Não é lícito
mandar o fideicomissário entregar a terceiro o que receber do
fiduciário. (omissis).
As Ordenações Filipinas esclareciam tudo, com definir assim a
substituição: ‘é instituição de herdeiro feita pelo testador em segundo grau’. O segundo grau é, pois, da instituição; seria da substituição — primeiro e único.
O admitir substituições sucessivas teria o inconveniente de restabelecer, pelo menos em parte, os morgados irregulares, os vínculos,
eliminados em virtude da lei de 6 de Outubro de 1835, em sua
essência encorporada ao Código Civil.”
É de mesmo teor o magistério de ARTHUR VASCO ITABAIANA DE OLIVEIRA:(19)
“Nulidade do fideicomisso - São nulos os fideicomissos além do
segundo grau, porque a substituição de substituição implicaria instituição de vínculo, e os vínculos foram proibidos pela lei de 6 de
outubro de 1835, proibição esta mantida pelo Cód. Civil.
Os graus do fideicomisso - Os graus, no fideicomisso, são os seguintes: a) o primeiro grau da instituição - o fiduciário é o primeiro
herdeiro, ou legatário, instituído e o único substituído; b) o segundo
grau da instituição, que é o primeiro grau da substituição - o fideicomissário é o segundo herdeiro, ou legatário, instituído e o primeiro e único substituto.
Fideicomisso além do 2º grau - Além do segundo grau da instituição
(primeiro grau da substituição), não há fideicomisso, porque importaria em um vínculo. A expressão — além do segundo grau —
usada no art. 1.739 do Cód. Civil refere-se ao segundo grau da
instituição e não ao segundo grau da substituição, porque este viria
a ser, então, o terceiro grau da instituição.”
Dúvida alguma ainda houvesse, em face dos ensinamentos doutrinários trazidos
à colação, seria espancada pelo sempre autorizado escólio de CARVALHO SANTOS:(20)
“1. São nulos... Não somente anuláveis, convém lembrar, de sorte
que, mesmo sem ser alegada, pode a nulidade ser decretada pelo
juiz, ao tomar conhecimento do testamento, para fazer executá-lo.
(19)
(20)
In Tratado de Direito das Sucessões, 5ª ed., 1986, pp. 297-8.
In Código Civil Brasileiro Interpretado, 13ª ed., Freitas Bastos, 1988, XXIV/217-8.
Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 33-40, mar./abr.-2002
A nulidade, porém, só alcança o fideicomisso além do segundo
grau, o que importa dizer que prevalece e é válido quanto ao
primeiro fideicomissário designado.
2. Os fideicomissos além do segundo grau. Na figura do fideicomisso exige-se a existência de dois herdeiros: um, que é o instituído,
com o encargo de entregar a herança, em determinada época, à
pessoa designada no testamento, sendo, evidentemente, esse o
herdeiro contemplado em primeiro grau; outro, que é a pessoa
designada no testamento, para receber a herança do instituído, e
figura como contemplada em segundo grau.”
Bem se está a ver, portanto, que o segundo grau a que alude o texto legal supra
é o da instituição, equivalente ao primeiro da substituição. Donde a conclusão: não vale
a disposição por meio da qual o testador determina que o fideicomissário entregue a
terceiro o que receber do fiduciário.
FERREIRA ALVES, é verdade, diverge dessa opinião, mas ficou isolado.
Sua opinião é esta:
“O Código permite o fideicomisso em dois graus; e a este respeito
estatui o art. 1.739 que são nulos os fideicomissos além do segundo
grau; e, assim, admite dois substitutos, o primeiro, que sucede ao
fiduciário, o herdeiro instituído, e o segundo, que sucede ao primeiro referido substituído”.
Logo se percebe onde está a confusão do mestre. Ele faz desaparecer da figura
do fideicomisso a pessoa do fiduciário, só levando em conta a do fideicomissário. Daí
enxergar o fideicomissário como sendo instituído em primeiro grau.
Como muito bem adverte CARLOS MAXIMILIANO, refere-se a expressão do
Código ao segundo grau da instituição, que é o primeiro grau da substituição; segundo
da substituição seria terceiro da instituição. O sentido exato da regra positiva é este:
são nulos os fideicomissos além do segundo grau da instituição.
Nem outra coisa ensina, com outras palavras, o egrégio CLÓVIS BEVILAQUA.
Se o testador determina, portanto, que o fideicomissário entregue a terceiro o que
recebeu do fiduciário não prevalece a disposição; o terceiro nada poderá reclamar, nem
mesmo por ocasião da morte do fideicomissário, pois aos herdeiros deste é que vem
a tocar a herança ou o legado.
Sem maiores esforços, vê-se bem que a autora da herança instituíra sua irmã
fiduciária dos bens fideicometidos, e a autora desta ação, a respectiva fideicomissária
(cláusula 3ª).
A obrigação instituída pela testadora, para que proceda a fideicomissária a entrega a terceira pessoa, no caso Patrícia Peixoto, dos bens fideicometidos, é insubsistente,
porque malfere a vedação legal (CC, art. 1.739) sem invalidar a própria instituição do
fideicomisso (CC, art. 1.740).
Em via de conseqüência, a fideicomissária, autora deste pedido, recebeu os bens
fideicometidos livres de qualquer gravame, e daí impõe-se o decreto de procedência
do pedido, para declarar extinto o aludido fideicomisso.
Posto isso e considerando o mais que dos autos consta, julgo procedente o pedido,
para o fim de declarar extinto o fideicomisso instituído pela testadora, o que faço nos
moldes e pelos fundamentos constantes do corpo deste julgado.
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Comunique-se ao C.R.I. local, para as providências, se o caso.
Oportunamente, arquivem-se.
Custas ex lege.
P.R.I.C.
São Manuel / Campinas, 22 de setembro de 2000.
JOSÉ ANTONIO TEDESCHI
Juiz de Direito
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1ª VARA DA COMARCA DE FERNANDÓPOLIS DO ESTADO DE SÃO PAULO.
VISTOS.
MARCO ROBERTO DE LOLLO propôs ação de indenização por danos morais em
face de ADEMIR COUTO ANGELO e SILVIA ANDRÉIA INOCENCIO DE SOUZA LOLLO.
Alegou, em síntese, que é casado com a segunda requerida, mas esta cometeu
adultério com o primeiro requerido, o que o expôs ao ridículo e lhe provocou danos
morais; por isso, pediu condenação dos requeridos ao pagamento de uma indenização
por danos morais, no valor de 140 salários mínimos (fls. 02/04).
Citados (fls. 16 verso), os requeridos apresentaram contestação (fls. 18/26), quando alegaram ilegitimidade passiva do primeiro requerido, porque não contribuiu para
a publicidade do adultério, e, no mérito, que o casamento do autor era uma farsa
porque faltava amor, união, carinho, afeto, e que houve o flagrante, mas o autor
cometeu maus tratos à esposa, agiu com desleixo da vida conjugal, com frieza do
tratamento, com mau humor constante e com situações humilhantes para a esposa no
seio familiar, sendo ínfimo o dano do autor.
Houve réplica (fls. 32/34) e restou infrutífera a audiência para tentativa de conciliação entre as partes (fls. 39).
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É o relatório.
DECIDO:
Trata-se de pedido de indenização de danos morais, decorrentes de adultério.
As questões a decidir são apenas de direito, o que dispensa a instrução e permite
o julgamento antecipado da lide, nos termos do artigo 330, inciso I, do Código de
Processo Civil.
A preliminar de ilegitimidade passiva do primeiro requerido é rejeitada, uma vez
que a responsabilidade dele deve ser apurada quanto aos fatos que praticou (artigo 159
do Código Civil), como se verá a seguir.
Dessa forma, ele é titular da obrigação de direito material posta nos autos,
revelando sua legitimidade ad causam.
Presentes as condições da ação e os pressupostos de constituição válida e regular
do processo, passo à análise do mérito, quando se verifica a procedência parcial do
pedido.
Começo a apreciar os fatos.
O autor alegou que é casado com a requerida e que esta praticou adultério com
o requerido, o que lhe causou dano moral diante da situação vexatória.
Os requeridos admitiram o adultério, mas trouxeram várias alegações impeditivas
do direito do autor, consistentes na ausência de amor no casamento, em que o autor
deu publicidade ao evento e em que o dano foi ínfimo.
Por isso, os fatos são incontroversos, o que dispensa a produção de prova testemunhal a seu respeito, consoante a regra do artigo 400, inciso I, do Código de Processo
Civil.
Resta saber se é cabível a indenização no presente caso, sendo necessária, para
tanto, a existência cumulativa dos seguintes elementos: ato (ação ou omissão) do
agente, dano efetivo (patrimonial ou moral), nexo de causalidade entre ato e dano, e
culpa em sentido lato (culpa e dolo), nos termos do artigo 159 do Código Civil.
Com efeito, determina a lei que “aquele que, por ação ou omissão voluntária,
negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado
a reparar o dano” (artigo 159 do Código Civil).
No caso dos autos, houve ação dos requeridos em praticarem o crime de adultério
(artigo 240 do Código Penal), que ainda existe.
Note-se que também pratica o crime de adultério o co-réu (§ 1o do dispositivo
citado), uma vez que se trata de um crime de concurso necessário, ou seja, somente
pode ser praticado por mais de um agente.
Os requeridos aduziram que foi o autor quem deu causa à publicidade do caso,
ao surpreendê-los em flagrante.
No entanto, os requeridos se esquecem de que, se eles não estivessem praticando
o adultério contra o autor, jamais teria ocorrido o flagrante.
Diante disso, se algum fato relevante houve, este fato é atribuído exclusivamente
a eles, por praticarem o adultério.
Observe-se, ainda, que o autor agiu dentro da esfera de atuação que lhe permite
a lei, uma vez que ninguém é obrigado a suportar uma traição e permanecer quieto,
podendo fazer uso dos meios legais para a apuração dos fatos, inclusive da Polícia, se
houver a prática de um crime, como no caso dos autos.
Assim, houve ato exclusivo dos réus, sendo indiferente, para a responsabilidade
deles, o fato de o autor ter tornado público o caso.
Também houve dano moral ao autor, que se viu vítima de um crime contra o
Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 33-40, mar./abr.-2002
casamento e contra a família, sendo inegável a dor moral que passa uma pessoa que
se vê traída pelo cônjuge.
A divergência que havia a respeito da possibilidade da reparação do dano moral foi
afastada, de uma vez, pela vigente Constituição da República (artigo 5º, incisos V e X).
Válida, pois, a conclusão de CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA,(1) pois “agora, pela
palavra mais firme e mais alta da norma constitucional, tornou-se princípio de natureza
cogente o que estabelece a reparação do dano moral em o nosso direito. Obrigatório
para o legislador e para o juiz”.
Segundo WILSON MELO DA SILVA ,(2) “danos morais são lesões sofridas pelo
sujeito físico ou pessoa natural de direito em seu patrimônio ideal, entendendo-se por
patrimônio ideal, em contraposição a patrimônio material, o conjunto de tudo aquilo
que não seja suscetível de valor econômico”.
Os requeridos alegaram que não houve dano moral ao autor porque o casamento
dele era uma farsa e, se dano houve, esse foi ínfimo.
Não se pode dizer que o casamento era uma farsa, tendo em vista que “o casamento válido somente se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio”
(parágrafo único do artigo 2o da Lei nº 6.515/77).
Além disso, as partes estão casadas desde 12 de setembro de 1992 (fls. 13), não
se podendo falar em uma farsa que dura mais de cinco anos.
Na verdade, o que os requeridos quiseram dizer é que o autor também não estava
cumprindo seus deveres conjugais, pois o autor teria cometido maus tratos à esposa,
agiu com desleixo da vida conjugal, com frieza do tratamento, com mau humor constante e com situações humilhantes para a esposa no seio familiar.
Ora, se era essa a situação, deveria a requerida ter pedido a separação (artigo 2o,
inciso III, combinado com o artigo 5o, ambos da Lei nº 6.515/77).
Em outras palavras: se um dos cônjuges eventualmente não cumpre seus deveres
conjugais, o cônjuge inocente deve se valer da lei para obter a separação, e não
também começar a descumprir os deveres conjugais.
Assim, o que temos é que o autor ainda estava casado com a requerida e ambos
tinham o dever de fidelidade recíproca (artigo 231, inciso I, do Código Civil), que foi
descumprido pela requerida.
O cônjuge que se vê traído sofre, inegavelmente, um dano moral, sendo que um
cônjuge sempre espera, se não existem mais os requisitos para a manutenção da vida
em comum, que seja pedida a separação, e não que haja uma traição.
Diante disso, houve prejuízo à honra do autor, que se viu humilhado perante a
sociedade.
O fato de os requeridos alegarem que foi ínfimo o valor do dano moral serve como
confissão da existência de dano moral e será apreciado quando da fixação da indenização, se presentes os demais requisitos.
Vale notar que YUSSEF SAID CAHALI(3) observa a possibilidade de indenização por
danos morais decorrentes da infração dos deveres conjugais, citando doutrina e jurisprudência nesse sentido, esclarecendo que “já se admitiu, entre nós, que a prática de
infidelidade pela mulher na constância da sociedade conjugal pode, em tese, configurar causa de responsabilidade civil por danos morais”.
Também está presente o nexo causal, pois o dano alegado nos autos foi decorrente
(1)
(2)
(3)
Responsabilidade Civil, 2ª ed., Editora Forense, 1990, p. 65.
O Dano Moral e Sua Reparação, 1ª ed., Editora Foresne, 1955, p. 11.
Na obra Dano Moral, 2ª ed., Editora Revista dos Tribunais, 1998, p. 664.
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Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 41-44, mar./abr.-2002
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do adultério, e não de outra causa, não alegada pelos requeridos (artigo 326 do Código
de Processo Civil).
Por fim, entramos na análise da existência da culpa em sentido lato, que abrange
a culpa propriamente dita (imprudência, negligência e imperícia) e o dolo.
No caso dos autos, os requeridos agiram com dolo ao praticarem o adultério, tendo
em vista que eles sabiam que a requerida era casada e ainda assim mantiveram
relacionamento amoroso e sexual.
Dessa forma, estão presentes os requisitos da responsabilidade civil, restando
apreciar o valor da indenização devida ao autor.
Não existe norma legal que fixe o valor da indenização em tais casos, sendo que
a fixação deve ser feita por eqüidade pois, até hoje, não se descobriu uma fórmula
segura para se fazer tal fixação.
Nessa fixação, deve-se observar um patamar máximo, para que se evite o enriquecimento indevido da vítima, e um patamar mínimo, para que a indenização não seja
inexpressiva e, assim, perca sua função de inibir outros atos de violação de direitos
individuais.
Assim, devem ser observadas as circunstâncias do caso concreto, bem como a
situação das partes envolvidas e as conseqüências para o autor, decorrentes do ato
ilícito praticado.
Na legislação pátria, temos a previsão máxima de indenização dos danos morais
na Lei de Imprensa, que vai de dois a duzentos salários mínimos de indenização (artigos
51 e 52 da Lei nº 5.250/67).
Por isso, no caso dos autos, o mais justo é fixar a indenização em dez vezes o valor
do salário mínimo, tendo em vista que a maior indenização admitida em lei é de
duzentos salários mínimos, que deve ser reservada para os casos mais graves.
Acrescente-se que tal fixação servirá para inibir a prática de novos atos lesivos e
atenderá ao dano sofrido pelo autor, observando que ele não esclareceu a intensidade
do seu sofrimento e ajudou na publicidade do adultério praticado pelos requeridos.
Tal quantia deverá ser corrigida a partir da prática do ato ilícito pela tabela prática
de atualização de débitos judiciais, divulgada mensalmente pelo Tribunal de Justiça de
São Paulo, e será acrescida de juros de mora calculados à base de 6% (seis por cento)
ao ano a contar da citação.
Ante o exposto, julgo procedente em parte o pedido na ação de indenização
por danos morais que MARCO ROBERTO DE LOLLO propôs em relação a ADEMIR
COUTO ANGELO e SILVIA ANDRÉIA INOCENCIO DE SOUZA LOLLO, para o efeito de
condenar os requeridos a pagarem ao autor uma indenização no valor de R$ 1.300,00
(mil e trezentos reais), corrigida a partir da data dos fatos pela tabela de atualização
de débitos judiciais divulgada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo e acrescida de juros
de mora de 6% (seis por cento) ao ano a contar da citação.
Como houve sucumbência recíproca (artigo 21, caput, do Código de Processo
Civil), cada parte arcará com metade das custas processuais e com os honorários
advocatícios de seus respectivos patronos.
Publique-se, registre-se, intimem-se.
Fernandópolis, 16 de novembro de 1998.
BRUNO JOSÉ BERTI FILHO
Juiz de Direito
Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 33-40, mar./abr.-2002
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VARA DE EXECUÇÕES CRIMINAIS,
CORREGEDORIA DOS PRESÍDIOS E POLÍCIA JUDICIÁRIA
DA COMARCA DE SÃO VICENTE DO ESTADO DE SÃO PAULO
VISTOS.
LÚCIO QUIRINO DE SOUZA, RG nº 28.484.450/0, teve seu pedido de progressão de
pena deferido por este juízo em 25 de junho de 2001 (fls. 21 do apenso de progressão),
com trânsito em julgado.
A direção da penitenciaria onde se encontra o reeducando, solicitou orientação
quanto ao procedimento de progressão do regime, uma vez que consta mandado de prisão
por pronúncia contra a pessoa do reeducando. (fls. 29).
O Ministério Público manifestou-se requerendo que o reeducando permaneça no
regime fechado (fls. 30).
Regularizados vieram os autos conclusos para decisão.
É o relatório.
PASSO A FUNDAMENTAR E DECIDIR:
Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 45-46, mar./abr.-2002
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A Lei nº 7.210/84 regula a execução das penas criminais. Cuida, portanto, entre
outros assuntos, da aplicação da prisão-pena decorrente da prática de crime. A prisão-pena
não se confunde com prisão de natureza processual, pois têm objeto e fundamento próprio.
Para a prisão-pena, conseqüência de decisão condenatória com trânsito em julgado,
é previsto o instituto da progressão do regime de penas, visando à readaptação gradativa
do reeducando à liberdade.
A prisão por pronúncia, por outro lado, é uma prisão processual de natureza cautelar,
que não é regulada pela Lei nº 7.210/84. A prisão processual é imposta sem título executivo, pelo que não há que falar em aplicação da Lei de Execução Penal.
Ora, ao reeducando, que progrediu de regime de cumprimento de pena, também foi
imposta prisão em virtude de pronúncia em processo que responde perante a 2ª Vara do
Foro Distrital de Vicente de Carvalho (fls. 32).
Assim, pela prisão-pena, poderia passar a cumprir sua reprimenda em regime mais
brando. Mas, pela prisão cautelar, deverá ficar recolhido em regime fechado.
Isso, devido a diferença de natureza entre uma prisão e outra. Aquela é satisfativa,
essa é provisória e cautelar. Aquela objetiva a reinserção, essa objetiva assegurar a persecução penal pelo novo crime.
O E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo já decidiu em caso parelho:
“Agravo - Progressão de regime - Réu que, cumprindo pena de oito
anos de reclusão por homicídio, obteve parecer favorável da Comissão Técnica de Classificação - Nada obstante, em razão de ter sido
pronunciado, com trânsito em julgado, por outro homicídio, não faz
jus efetivamente à progressão, mesmo porque incompatível com a
prisão decretada na sentença de pronúncia - Agravo desprovido”
(Agravo nº 254.585-3, 3a. Câmara Criminal, relator WALTER GUILHERME, 15.09.98, v.u.).
Ao que parece, o magistrado do processo de cognição entendeu que deveria o
reeducando permanecer preso durante a fase de aguardo entre a pronúncia e a data do
julgamento no Tribunal de Júri. Para atacar tal prisão processual, deve ser utilizado o
remédio próprio, no processo de conhecimento.
Para espancar qualquer dúvida, basta ver que, estivesse solto e fosse pronunciado,
se emitido o mandado de prisão, passaria o réu a cumprir essa sanção provisória em cárcere
fechado, e não em colônia agrícola ou penal.
Anoto, por oportuno, que tal suspensão não pode prejudicar o reeducando com
relação a novo prazo para benefício. Seus lapsos contarão a partir da decisão que deferiu
a progressão ao regime intermediário, posto que provisória a decisão de pronúncia. Caso
haja condenação no processo em que pronunciado, a nova pena será somada ao restante
das anteriores, aplicando-se as regras atinentes à unificação para a execução.
Isso posto, e por tudo mais que consta nos autos, determino que se suspenda o
pedido de vaga ao regime semi-aberto do reeducando LÚCIO QUIRINO DE SOUZA,
RG 28.484.450/0, enquanto vigente o mandado de prisão.
Passado mais 1/6 do restante da pena, deverão ser feitos os exames para o regime
aberto. Anote-se.
Oficie-se em resposta à direção do presídio, com cópia desta decisão.
P.R.I. e C.
São Vicente, 21 de agosto de 2001.
CARLOS FONSECA MONNERAT
Juiz de Direito
Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 45-46, mar./abr.-2002
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4ª VARA DA FAMÍLIA E DAS SUCESSÕES CENTRAL
DA CAPITAL DO ESTADO DE SÃO PAULO
VISTOS.
ILDEU LARA DE ALBUQUERQUE, qualificado nos autos, requereu o inventário dos
bens deixados por ocasião do falecimento de HILDEGARD FODITSCH, alegando, em
síntese, que a finada faleceu em 14 de outubro de 1993, tendo deixado um testamento
público, no qual instituiu, como sua herdeira, a amiga MARLY BONTEMPO DE ALBUQUERQUE.
Ocorre que a herdeira testamentária faleceu em 21 de maio de 1993, ou seja,
antes da data do óbito da testadora. Salientando que, após a morte daquela herdeira,
a falecida manifestou vontade de instituir as filhas destas, como sua herdeiras universais, postula o requerente a abertura da sucessão da suplicada (fls. 2/4).
A petição inicial foi instruída com documentos (fls. 6/18).
O representante do Ministério Público opinou pela conversão do delito em
herança jacente, tendo em vista a ineficácia do testamento deixado pela falecida
(fls. 55/57).
O requerente insurgiu-se contra a manifestação ministerial (fls. 59/61).
Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 47-62, mar./abr.-2002
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É o relatório.
DECIDO:
O caso sub judice versa sobre o tema da instituição de herdeiro pela via testamentária.
Referida no artigo 1.664 do Código Civil, é o objeto por excelência da testamentificação, nela se concentrando, segundo GOYENA COPELLO, a mais completa demonstração de potestade que a lei civil reconhece à vontade humana (in Tratado del
Derecho de Sucesión, Buenos Aires, 1972, t. II, p. 199).
O eminente desembargador NEY DE MELLO ALMADA, na obra Direito das Sucessões, Brasiliense, 1991, t. II, p. 115, conceitua a instituição de herdeiro como sendo “a
disposição testamentária pela qual o de cujus atribui a uma pessoa, física ou jurídica,
vocação hereditária, abrangente do todo ou de parte do patrimônio sucessível”.
Disciplinando, outrossim, a capacidade testamentária passiva, o artigo 1.717,
dispõe que “podem adquirir por testamento as pessoas existentes ao tempo da morte
do testador, que não forem por este Código declaradas incapazes”.
Portanto, no Direito pátrio, não podem herdar ou receber legado as pessoas que
não estão vivas por ocasião da abertura da sucessão.
PINTO FERREIRA, assevera que “A regra é a da capacidade dos existentes, regulando-se a matéria pelo princípio da coexistência (Grundsatz der Koexistenz), que tanto
rege a sucessão legítima como a sucessão testamentária. É preciso que tenham coexistido testador e herdeiros testamentários, quer-se dizer, que, ao morrer o testador,
esteja ainda vivo o herdeiro testamentário” (in Tratado das Heranças e dos Testamentos, Saraiva, 1983, p. 651).
Excepcionalmente, admite-se que possa herdar, em virtude da permissão expressa
no artigo 1.718 do Estatuto Civil, a prole eventual de pessoas designadas pelo testador
e existentes ao tempo da abertura da herança.
Do requisito da existência do instituído no momento da morte do testador, se
deduzem, segundo CLÓVIS BEVILÁQUA, a caducidade da disposição, quando o mesmo
falece antes do defenestramento da sucessão (in Código Civil dos E.U.B., 7ª ed., v. II,
Faculdade de Direito Estácio de Sá, p. 909).
Ora, na hipótese em tela, não se vislumbra a testamenti factio passiva, na medida
em que a herdeira instituída no testamento faleceu antes da testadora (fls. 8, 18),
invalidando, pois, a decantada disposição de última vontade.
Doutra banda, em que pesem as respeitáveis ponderações do suplicante, não é
o caso de se aplicar o disposto no artigo 1.666 do Código Civil.
Com efeito, a cláusula testamentária que institui herdeira MARLY BONTEMPO DE
ALBUQUERQUE não é suscetível de interpretação diversa. Vale dizer, dela não se
conclui que a testadora pretendia beneficiar, na ausência da herdeira instituída, suas
filhas, KATHIA e KARLA.
E a pretendida utilização de elementos extrínsecos ao testamento, a fim de
pesquisar a vontade da falecida, como pretende o requerente, com a apresentação de
documento particular (fls. 11), somente seria possível se dúvida houvesse na interpretação contextual da disposição de última vontade.
Deveras, o jurisconsulto PAULO já afirmava: “Cum in verbis nulla ambiquitas est,
non debet admitti voluntates quaestio” (D., Liv. III, parág. 1, frag. 25, de Legatis et
Fideicomissis).
Ademais, ainda que, hipoteticamente, se admitisse o emprego do mencionado
elemento externo, melhor sorte não assistiria ao requerente, pois jamais teria o condão
Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 47-62, mar./abr.-2002
de substituir, por si só, a pretérita manifestação de vontade, inserta no testamento.
Nesse sentido, aliás, é o pacífico entendimento doutrinário. Senão vejamos.
O desembargador NEY DE MELLO ALMADA leciona que “a valia da prova externa
é subsidiária e relativa, não podendo contradizer, substituir ou infirmar a disposição em
foco, nem podendo o magistrado substituir o próprio pensamento ao do disponente, como
faz sentir TITO PRATES DA FONSECA (‘Sucessão Testamentária’, p. 19)” (ob. cit., p. 87).
Idêntico é o espólio de ORLANDO GOMES, asseverando que “não se consente,
contudo, que o intérprete leve a pesquisa da intenção do testador ao ponto de construila, ainda que vários elementos presuntivos possam conduzir a descobrir uma vontade
que não foi, todavia, declarada. Há de estar expressa no testamento, somente se
admitindo investigação aliunde, para esclarecê-la” (in Sucessões, 6ª ed., Forense,
1986, p. 154).
Por derradeiro, não se pode admitir eventual argumentação concernente à revogação do testamento da finada, pela superveniência do documento por ela firmado,
posteriormente (fls. 11).
De fato, a disposição de última vontade da requerida somente poderia ser revogada por outro testamento, não podendo valer, para tal fim, ex vi do estatuído no artigo
1.746 do Código Civil, simples instrumento de mandato, no qual a falecida manifestou
intento de instituir outras herdeiras.
Frise-se, também, que referido documento sequer contém os elementos formais
inerentes a qualquer uma das modalidades de testamento.
Sobre o tema, o desembargador NEY DE MELLO ALMADA salienta que “o instrumento revogatório há de ser um testamento, como o determina o art. 1.746. Não é
indispensável guardar-se a mesma forma anteriormente optada, suficiente sendo que
a revogação se traduza em alguma das forma legalmente sancionadas. É, assim, regra
que só se revogam testamentos por testamentos” (ob. cit., p. 132).
No mesmo diapasão é o entendimento de PINTO FERREIRA: “O testamento é um
ato personalíssimo e revogável. O preceito dominante é o seguinte - ‘Art. 1.746. O
testamento pode ser revogado pelo mesmo modo e forma por que pode ser feito. Mas
a revogação só pode ser feita mediante uma das formas autorizadas por lei, isto é, por
outro testamento, público, cerrado, particular, marítimo ou militar. O codicilo não pode
revogar nem invalidar um testamento, pois não é possível fazer um testamento por
meio de escritura pública” (ob. cit., p. 608).
Cumpre frisar, ainda, que o mero processamento do testamento público da falecida, com seu registro e cumprimento, não implicou o reconhecimento de sua validade,
posto que, naquela oportunidade, somente, foram analisados seus aspectos estritamente formais.
Destarte, considerando-se a manifesta caducidade do testamento deixado pela
requerida, decorrente da pré-morte da herdeira instituída, a existência de bens e a
ausência de sucessores, é de rigor a conversão do presente inventário em herança
jacente.
Ante o exposto, com fulcro no artigo 1.591 do Código Civil e artigo 1.142 do
Estatuto Adjetivo, considero jacente a herança deixada por HILDEGARD FODITSCH,
determinando a arrecadação de todos os seus bens (fls. 63) e nomeando curador o
procurador municipal JOSÉ LUIZ, sob compromisso.
Defiro os requerimentos descritos nos itens “c”, “d”, “e” e “f”, da petição de fls.
63/64.
Providencie a zelosa serventia as devidas retificações, inclusive, comunicando ao
distribuidor.
Intimem-se.
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Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 47-62, mar./abr.-2002
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São Paulo, 4 de setembro de 1995.
DANIELA MARIA CILENTO MORSELLO
Juíza de Direito
ACÓRDÃO DE CONFIRMAÇÃO EM RECURSO DE APELAÇÃO
3ª CÂMARA DE DIREITO PRIVADO
DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
Exige-se, para admitir como substitutos os herdeiros de pessoa
contemplada em testamento público que veio a falecer antes do
testador, formalização de cláusula testamentária com os mesmos
rigores que asseguram eficácia dos atos de última viagem (arts.
1.729, 1.717, 1.629 e 1.631, do Código Civil). Procuração ad judicia imprestável para a finalidade. Agravo improvido.
VISTOS.
HILDEGARD FODITSCH faleceu aos oitenta e quatro anos (14.10/93), sem deixar
herdeiros conhecidos, embora três anos antes tivesse firmado testamento público instituindo, sem o critério da substituição, sua amiga MARLY BONTEMPO DE ALBUQUERQUE,
herdeira de todos os seus bens (cf. Livro 17-T, fls. 182, do 27º Cartório da Capital - fls. 47).
Ocorreu que MARLY faleceu cinco meses antes da morte da testadora (21.5.93)
e, justamente por conta dos efeitos da peridiciocidade de tais acontecimentos, foi
proferida a respeitável decisão que motivou o presente recurso de apelação, processado como agravo de instrumento.
Aberto o inventário dos bens (dois imóveis e depósito bancário estimado em R$
200.000,00) por ILDEU LARA DE ALBUQUERQUE, viúvo de MARLY BONTEMPO DE
ALBUQUERQUE, requereu-se contemplação de suas herdeiras, KATHIA MARIA BONTEMPO DE ALBUQUERQUE e KARLA MARIA BONTEMPO DE ALBUQUERQUE LIRA, por
ter a falecida perpetuado, em vida, escrito particular consubstanciado o desejo de
aquinhoá-las (fls. 49).
A ilustre juíza, dra. DANIELA MARIA CILENTO MORSELLO, acolhendo ponderações da Promotoria de Justiça, no entanto, declarou a caducidade do testamento e
considerou jacente a herança de HILDEGARD FODITSCH (fls. 112/113).
Daí a irresignação em busca da nulidade do ato judicial, pela impropriedade de
se transformar inventário em processo de declaração de vacância e/ou para o reconhecimento da qualidade de herdeiras das postulantes, o que viria a coroar o ideal do intuitu
familiae que marcou o propósito testamentário.
Instrumento apto a permitir completo discernimento da matéria e que chega ao
tribunal com proposta de improvimento firmado pela douta Procuradoria geral de Justiça.
É o relatório.
Contra o que se chamou de indeferimento implícito da nomeação de ILDEU ao
cargo de inventariante, tirou-se o agravo retido de fls. 99, mas, apesar da reiteração
em busca de seu julgamento prévio, não é o incidente digno de um capítulo reservado,
por encontrar-se compreendido na própria relação substancial.
Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 47-62, mar./abr.-2002
Rejeita-se a preliminar de nulidade.
Na concepção de COUTURE (Interpretação das Leis Processuais, Forense, 1994,
p. 59), o princípio de impulso processual carrega o seguinte enunciado: “promovido o
processo, o juiz tomará as medidas tendentes a evitar sua paralisação, a não ser que
um texto de lei confiada à atividade das partes a continuação do mesmo”.
De acordo com o art. 1.142 do Código de Processo Civil, compete ao juiz arrecadar
os bens da herança jacente que lhe é dado conhecer, de sorte que a disposição judicial
criticada nada mais representa do que fiel observância da norma direcional derivada
da inexistência de testamento e herdeiros (art. 1.591 do Código Civil).
É dever de ofício do juiz arrecadar os bens e nomear curador, dispõe autorizada
doutrina (ALCIDES DE MENDONÇA LIMA, Comentários ao Código de Processo Civil,
série “RT”, 1982, XII/305). O importante da resolução judicial consiste em proteger o
patrimônio até localização de herdeiros e atribuição aos órgãos públicos preferenciais.
Inocorreram atropelos de forma a caracterizar ofensa aos artigos 998 e 990, II, do
Código de Processo Civil. A rejeição do posicionamento passivo das herdeiras de
MARLY, irmanada com a inexistência de herdeiros de HILDEGARD, transforma, pelo
interesse público na destinação da herança, o procedimento, antes voluntário e sujeito
à vontade das partes, em instrumental de seqüência forçada e no qual não cabe a
nomeação de ILDEU como inventariante.
Agora o ponto central.
Pretendem os agravantes, com fundamento nos artigos 85, 126, 1.666 do Código
Civil e 5º, XXX e XXXVI, da Constituição Federal, que se dê ao histórico de uma
procuração ad judicia que HILDEGARD assinou um mês antes de falecer (fls. 49 e 74)
a mesma eficácia de um ato informador da substituição vulgar (art. 1.729 do Código
Civil).
Embora muito bem elaborado o raciocínio desenvolvido, a construção jurídica que
atribui ao escrito particular um complemento do testamento público desafia todo o
sistema de segurança das relações testamentárias e conflita até com a conduta oficial
da finada, data venia.
Toda a doutrina consultada converge, na hipótese da pré-morte da pessoa contemplada, para a incidência do art. 1.718 do Código Civil como fonte de caducidade
do testamento (des. NEY DE MELLO ALMADA, Direito das Sucessões, ed. Brasiliensi,
1991, II/103).
PONTES DE MIRANDA evita empregar a terminologia “caducidade” para informar, com sua precisão habitual, a ineficácia da deixa da pré-morte do favorecido pela
falta do pólo passivo da relação jurídica que constrói o legado (Tratado de Direito
Privado, ed. Borsoi, 1973, LVII/340).
Em seu Manual de Direito Civil Brasileiro, publicado em 1920, SPENCER VAMPRÉ
expressou-se acerca do tema (ed. F. Briguiet, III/414):
“A morte do legatário, antes do testador, faz caducar o legado,
porque se entende que a intenção deste era somente beneficiar a
pessoa designada. Daí decorre que não caducará o legado quando
o testador houver disposto que, pré-morrendo o legatário, passe o
legado a outra pessoa.”
Não contraria a velha doutrina os modernos conceitos, como o de CAIO MÁRIO
(Instituições, Forense, VI/203): “Falecendo o legatário antes do testador, caduca o
legado, que se torna insubsistente por falta de sujeito (CLÓVIS BEVILÁQUA). Não há
transmissão aos sucessores porque se não constituiria ainda nenhuma relação jurídica
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para o legatário. Demais disso, como todas as liberalidades testamentárias, o legado
é feito intuitu personae, não podendo ser recolhido outrem”.
Ocorreu uma queda da intenção testamentária válida com a sobrevida da testadora que, ao contrário do que foi reafirmado ao longo do processo, não elegeu substitutos para assunção da titularidade de MARLY, quer pela morte prematura desta, quer
por improvável indignidade ou por eventual renúncia do legado.
Recorre-se novamente aos estudos do des. NEY ALMADA, cuja intervenção dignifica a Turma Julgadora, para consignar a importância da forma como subsídio do
proveito do fenômeno da substituição, que é uma cláusula testamentária por excelência. São suas as palavras a seguir transcritas (Direito das Sucessões, ed. Brasiliensi,
1991, II/206):
“Há que fazer-se a substituição em testamento: no mesmo em que
se inserem as disposições primárias, ou em outro, ulteriormente
elaborado pelo de cujus. São indispensáveis expressões sacramentais, bem assim motivação”.
Há uma tendência de liberalização das formas testamentárias — “não se deve
alimentar a superstição do formalismo obsoleto, que prejudica mais do que ajuda”,
asseverou o min. GUEIROS LEITE do colendo STJ, in RT 673/168) —, mas, daí a admitir
que o conteúdo de uma procuração ad judicia represente vontade de completar testamento caduco ou ineficaz pela morte da pessoa indicada com exclusividade, existe uma
distância que nem mesmo a flexibilidade jurisprudencial é capaz de superar.
Exigem os agravantes uma interpretação condizente com a amizade que unia a
falecida com a família de MARLY, o que significaria o propósito de transferir, na falta
dela, os bens às suas filhas. Este seria o espírito da outorga de poderes ao advogado
HÉLIO COLETTO.
Segundo fórmulas usuais, o fenômeno da substituição decorre da inserção de
cláusulas claras, objetivas e com redação do tipo: nomeio herdeira MARLY e, na falta
desta, designo as suas filhas, KATHIA e KARLA. Aí, sim, estaria sacramentada a vontade de aquinhoar as duas agravantes, que, apesar do contato mantido com a falecida,
não compartilhavam dos sentimentos que uniram as duas mulheres mortas durante as
fases existenciais.
Uma procuração assinada sem testemunhas e sem firma reconhecida não consubstancia instituição de substituto testamentário, especialmente para ressuscitar testamento perdido pela morte da pessoa contemplada. Não há falar-se em ofensa ao
direito de herança (art. 5º, XXX, da CR) ou em direito adquirido por ato jurídico perfeito
(art. 5º, XXXVI, da CR).
Em verdade, não se cogita de má ou injusta interpretação da vontade do testador
(arts. 85, 126 e 1.666, do Código Civil), pois falta intenção para interpretar. Trata-se
de hipótese em que não é permitido conferir efeito jurídico ao escrito particular, por
absoluta impropriedade do objeto (arts. 1.629 e 1.631 do Código Civil).
Ademais, a procuração não tem validade para os fins consignados, em face da
indispensabilidade da presença física da outorgante para eficácia do testamento público, cerrado ou particular (arts. 1.362, IV; 1.638, I; 1.645, I, do Código Civil).
Frustrou-se, com o passamento prévio de MARLY, o desejo de HILDEGARD de criar
uma herdeira legítima para absorver seus bens. Esta é a pura realidade documentada
e o debate, que se estabelece fora das regras testamentárias, não passa de ficção
criada pelo interesse, fruto do imaginável e de conjecturas de quem força a premiação
sem ser oficialmente escolhido para tal.
Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 47-62, mar./abr.-2002
Bem rejeitada a pretensão dos agravantes, pelo que não comporta a respeitável
decisão qualquer censura.
Nega-se provimento.
ÊNIO SANTARELLI ZULIANI
Relator
ACÓRDÃO EM RECURSO ESPECIAL.
NÃO-CONHECIMENTO DO RECURSO POR MAIORIA.
Exposição
HILDEGARD FODITSCH, sem possuir herdeiros necessários ascendentes ou descendentes, deixou todos os seus bens à amiga MARLY BONTEMPO DE ALBUQUERQUE,
por meio de testamento público. Com o prévio falecimento da herdeira, a testadora
outorgou poderes a um advogado — por procuração ad judicia, em instrumento particular — para proceder à transferência dos direitos previstos no testamento às duas filhas
da herdeira já falecida.
Morrendo a testadora logo depois, o marido de MARLY, ora recorrente, deu início
ao inventário, indicando como herdeiras as próprias filhas, também recorrentes, nos
termos da procuração.
A juíza de primeiro grau converteu o inventário em herança jacente e nomeou
curador dos bens o procurador do Município de São Paulo, à vista da caducidade do
testamento, seja porque inexistente a herdeira à época da abertura da sucessão, seja
porque a disposição de última vontade somente poderia ser revogada por outro testamento, e não pela procuração.
Contra essa decisão os ora recorrentes interpuseram apelação, recebida como
agravo de instrumento, por aplicação da fungibilidade recursal.
O Tribunal de Justiça de São Paulo desproveu o agravo, com os seguintes fundamentos:
a) inexiste nulidade na conversão do inventário em herança jacente, por se tratar
de dever de ofício do juiz;
b) “na hipótese de pré-morte da pessoa contemplada, [incide o] art. 1.718 do
Código Civil como fonte de caducidade do testamento” (fls. 153);
c) “uma procuração assinada sem testemunhas e sem firma reconhecida não
consubstancia instituição de substituto testamentário, especialmente para ressuscitar
testamento perdido pela morte da pessoa contemplada” (fls. 155);
d) “em verdade, não se cogita de má ou injusta interpretação da vontade do
testador (arts. 85, 126 e 1.666 do Código Civil), pois falta intenção para interpretar.
Trata-se de hipótese em que não é permitido conferir efeito jurídico ao escrito particular,
por absoluta impropriedade do objeto (arts. 1.629 e 1.631 do Código Civil)” (fls. 155).
O recurso especial aponta violação dos arts. 85, 128, 1.666 e 1.670 do Código
Civil. Sustentam os recorrentes que: a) não se trata de substituição, porque a instituição das filhas da pré-falecida como herdeiras decorre do próprio testamento, uma
vez que, à época deste, existia a mãe contemplada; b) não se aplica a caducidade
quanto à herdeira universal, mas somente aos legatários; c) não sendo o caso de
substituição, a vontade da testadora poderia ser manifestada de qualquer forma, já
que estaria apenas a confirmar as declarações testamentárias; d) “a instituição de
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herdeiro testamentário equivale à legitimação como necessário, a quem não o tem,
daí porque não se trata de ficção criada pelo interesse, mas sim de ser dado cumprimento à vontade de quem o instituiu” (fls. 169); e) inexiste norma que preveja a
conversão de inventário em herança jacente.
Contra-arrazoado pelo curador da herança e não admitido o recurso na origem,
provi agravo, “em face da relevância da matéria” (fls. 211).
O Ministério Público Federal opinou pelo não-conhecimento do apelo.
Após a subida dos autos, os recorrentes salientam, em petição, a manifesta
vontade da testadora em transmitir seus bens às filhas da finada herdeira testamentária.
É o relatório.
VOTO:
O sr. ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA (relator):
1. É de afastar-se, inicialmente, o exame da insurgência em relação à afronta ao
art. 128 do Código Civil, no sentido de que “o encargo não suspende a aquisição, nem
o exercício do direito, salvo quando expressamente imposto no ato, pelo disponente,
como condição suspensiva”. O acórdão não abordou a questão à luz desse dispositivo,
razão pela qual carece o recurso do prequestionamento, atraindo a incidência do
Enunciado 282 da Súmula/STF.
2. Esta a ementa do acórdão de origem:
“Exige-se, para admitir como substitutos dos herdeiros de pessoa
contemplada em testamento público que veio a falecer antes do
testador, formalização de cláusula testamentária com os mesmos
rigores que asseguram eficácia dos autos de última vontade (arts.
1.729, 1.717, 1.629 e 1.631, do Código Civil). Procuração ad judicia imprestável para a finalidade. Agravo improvido”.
Da fundamentação do voto condutor, extrai-se:
“Pretendem os agravantes, com fundamento nos artigos 85, 126,
1.666 do Código Civil e 5º, XXX e XXXVI, da Constituição Federal,
que se dê ao histórico de uma procuração ad judicia que HILDEGARD assinou um mês antes de falecer (fls. 49 e 74) a mesma
eficácia de um ato informador da substituição vulgar (art. 1.729 do
Código Civil).
Embora muito bem elaborado o raciocínio desenvolvido, a construção jurídica que atribui ao escrito particular um complemento do
testamento público
desafia todo o sistema de segurança das relações testamentárias e
conflita até com a conduta oficial da finada, data venia.
Toda a doutrina consultada converge, na hipótese de pré-morte da
pessoa contemplada, para a incidência do art. 1.718 do Código Civil
como fonte de caducidade do testamento (des. NEY DE MELLO ALMADA, Direito das Sucessões, ed. Brasiliense, 1991, II/103).
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PONTES DE MIRANDA evita empregar a terminologia ‘caducidade’
para informar, com sua precisão habitual, a ineficácia da deixa na prémorte do favorecido pela falta do pólo passivo da relação jurídica que
constrói o legado (Tratado de Direito Privado, ed. Borsoi, 1973, LVII/340).
Em seu Manual de Direito Civil Brasileiro, publicado em
1920, SPENCER VAMPRÉ expressou-se acerca do tema (ed.
F. Briguiet, III/414):
‘A morte do legatário, antes do testador, faz caducar o legado, porque se entende que a intenção deste era somente
beneficiar a pessoa designada. Daí decorre que não caducará o legado quando o testador houver disposto que, prémorrendo o legatário, passe o legado a outra pessoa’.
Não contraria a velha doutrina os modernos conceitos, como o de
CAIO MÁRIO (Instituições, Forense, VI/203):
’Falecendo o legatário antes do testador, caduca o legado,
que se torna insubsistente por falta de sujeito (CLÓVIS BEVILÁQUA). Não há transmissão aos sucessores porque se não
constituiria ainda nenhuma relação jurídica para o legatário.
Demais disso, como todas as liberalidades testamentárias, o
legado é feito intuitu personae, não podendo ser recolhido
outrem’.
Ocorreu uma queda da intenção testamentária válida com a sobrevida da testadora que, ao contrário do que foi reafirmado ao longo
do processo, não elegeu substitutos para a assunção da titularidade
de MARLY, quer pela morte prematura desta, quer por improvável
indignidade ou por eventual renúncia do legado.
Recorre-se novamente aos estudos do des. NEY ALMADA, cuja
intervenção dignifica a Turma Julgadora, para consignar a importância da forma como subsídio do proveito do fenômeno da substituição, que é uma cláusula testamentária por excelência. São
suas as palavras a seguir transcritas (Direito das Sucessões, ed.
Brasiliensi, 1991, II/206):
‘Há que fazer-se a substituição em testamento: no mesmo
em que se inserem as disposições primárias, ou em outro,
ulteriormente elaborado pelo de cujus. São dispensáveis
expressões sacramentais, bem assim motivação”.
Há uma tendência de liberalização das formas testamentárias —
‘não se deve alimentar a superstição do formalismo obsoleto, que
prejudica mais do que ajuda’, asseverou o min. GUEIROS LEITE do
Colendo STJ, in RT 673/168) —, mas, daí a admitir que o conteúdo
de uma procurado ad judicia represente vontade de completar
testamento caduco ou ineficaz pela morte da pessoa indicada com
exclusividade, existe uma distância que nem mesmo a flexibilidade
jurisprudencial é capaz de superar.
Exigem os agravantes uma interpretação condizente com amizade
que unia a falecida com a família de MARLY, o que significaria o
propósito de transferir, na falta dela, os bens às suas filhas. Este seria
o espírito da outorga de poderes ao advogado HÉLIO COLETTO.
Segundo fórmulas usuais, o fenômeno da substituição decorre da
inserção de cláusulas claras, objetivas e com redação do tipo:
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nomeio herdeira MARLY e, na falta desta, designo as suas filhas,
KATHIA e KARLA. Aí, sim, estaria sacramentada a vontade de
aquinhoar as duas agravantes, que, apesar do contato mantido
com a falecida, não compartilhavam dos sentimentos que uniram
as duas mulheres mortas durante as fases existenciais.
Uma procuração assinada sem testemunhas e sem firma reconhecida não consubstancia instituição de substituto testamentário,
especialmente para ressuscitar testamento perdido pela morte da
pessoa contemplada. Não há falar-se em ofensa ao direito de
herança (art. 5º, XXX, da CF) ou em direito adquirido por ato
jurídico perfeito (art. 5º, XXXVI, da CF).
Em verdade, não se cogita de má ou injusta interpretação de vontade do testador (arts. 85, 126 e 1.666, do Código Civil), pois falta
intenção para interpretar. Trata-se de hipótese em que não é permitido conferir efeito jurídico ao escrito particular, por absoluta
impropriedade do objeto (arts. 1.629 e 1.631 do Código Civil).
Ademais, a procuração não tem validade para os fins consignados,
em face da indispensabilidade da presença física da outorgante
para eficácia do testamento público, cerrado ou particular (arts.
1.362, IV; 1.638, I; 1.645, I, do Código Civil).
Frustrou-se, com o passamento prévio de MARLY, o desejo de
HILDEGARD de criar uma herdeira legítima para absorver seus
bens. Esta é a pura realidade documentada e o debate, que se
estabelece fora das regras testamentárias, não passa de ficção
criada pelo interesse, fruto do imaginável e de conjecturas de quem
força a premiação sem ser oficialmente escolhido para tal” (fls.
152-156).
3. Dois dos dispositivos indicados pelos recorrentes como ofendidos dizem respeito
ao prestígio da vontade em relação à interpretação literal, nestes termos:
• “Art. 85. Nas declarações de vontade se atenderá mais à sua
intenção que ao sentido literal da linguagem”.
• “Art. 1.666. Quando a cláusula testamentária for suscetível de
interpretações diferentes, prevalecerá a que melhor assegure a
observância da vontade do testador”.
Na espécie, as disposições do testamento, conforme assentaram as instâncias
ordinárias, refletem claramente a intenção da testadora em deixar todos os seus bens
para a amiga MARLY, sem tocar no eventual falecimento da herdeira, nem na sua
substituição. Ante a evidência da cédula testamentária, não cabe a aplicação desses
arts. 85 e 1.666, que prevêem a prevalência da vontade do testador somente na
hipótese de a cláusula comportar interpretações distintas, o que não se ajusta ao caso
em exame. Aliás, não se questiona que o testamento dá como certa e indubitável a
vontade de instituir herdeira a amiga MARLY.
Por outro lado, não prospera o argumento de que a herdeira existia à época da
elaboração do testamento. A lei civil expressa, no art. 1.717, CC, que “podem adquirir
por testamento as pessoas existentes ao tempo da morte do testador, que não forem
por este Código declaradas incapazes”, ou seja, a capacidade passiva de adquirir por
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testamento tem como regra fundamental a existência do legatário, ou herdeiro, na
ocasião do falecimento do testador.
Destarte, o ponto de enfoque refere-se, na verdade, à vontade de substituir a
amiga falecida pelas filhas desta, o que restou manifestado por meio de uma procuração de instrumento particular, assinada pela testadora, um mês antes da própria
morte. Nesse particular, a intenção encontra óbice no rigor formal peculiar da sucessão
testamentária.
É cediço que, se de um lado é necessário amainar o rigor na aplicação estrita da
forma, de outro é de ter-se em conta que os requisitos expressos em lei, como necessários à validade do ato, resultam, em última análise, na garantia das próprias partes.
Assim, torna-se imperiosa a observância da solenidade, cujo rigor deve ser abrandado
pela interpretação dos textos legais, notadamente as disposições da lei civil, com o
acréscimo de outros critérios de hermenêutica, sem contentar-se com literalidade da
norma. Entretanto, no caso das disposições de última vontade, deve-se redobrar o zelo
na observância da forma, tanto por não viver o testador no momento de esclarecer suas
intenções, quanto pela suscetibilidade de fraudes na elaboração do instrumento e,
conseqüentemente, na deturpação da vontade de quem dispõe dos bens para após a
morte. No ponto, a lição de PONTES DE MIRANDA:
“A nulidade dos atos jurídicos de intercâmbio ou inter vivos é,
praticamente, reparável: fazem-se outros, com as formalidades
legais, ou se intentam ações que compensem o prejuízo, como a
ação de in rem verso. Não se dá o mesmo com as declarações de
última vontade: nulas, por defeito de forma, ou por outro motivo,
não podem ser renovadas, pois morreu quem as fez. Razão maior
para se evitar, no zelo do respeito à forma, o sacrifício do fundo”
(Tratado de Direito Privado, t. LVIII, 2ª ed., Rio de Janeiro: Borsoi,
1969, § 5.849, p. 283).
A propósito da solenidade essencial, cuja inobservância enseja a nulidade absoluta, ou insanável, do ato, elucida PONTES, ao dissertar sobre o art. 145, III, e IV, do
Código Civil:
“1. Natureza das regras jurídicas sobre pressuposto forma — A
regra jurídica que exige algum pressuposto formal (art. 145, III), ou
material, para a validade do negócio jurídico, é regra cogente
impositiva. A infração dela acarreta a nulidade, como a infração da
regra jurídica cogente proibitiva. Ali, minus; aqui, plus. Há proposição jurídica impositiva; donde a nulidade, se o que se impôs, ou
se pressupôs, para a validade do negócio jurídico, falta. A conseqüência jurídica do art. 145, IV corresponde ao que se há de esperar, conceptualmente, de toda regra cogente impositiva, ou se
conceba como ‘é preciso que’, ‘terá de’, ‘é essencial’, ou como “se
não, então’, ou ‘para que valha, é mister que’. No fundo, o art. 145,
IV apenas contém tautologia” (Tratado..., ob. cit., tomo IV, 2ª ed.,
Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, § 404, p. 190).
E, no caso, a inclusão das filhas da herdeira pré-falecida no testamento significaria
a revogação parcial do anterior, obrigatoriamente feita pelo mesmo modo e forma,
como reza, com exatidão, o art. 1.746 do Código Civil:
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“Art. 1.746. O testamento pode ser revogado pelo mesmo modo e
forma por que pode ser feito”.
Em outras palavras, o “pressuposto formal” referido por PONTES, diz a lei, seria
outro testamento público, e não procuração por instrumento particular.
4. Diz o art. 1.670, CC, cuja violação também se apontou:
“Art. 1.670. O erro na designação da pessoa do herdeiro, do legatário,
ou da coisa legada anula a disposição, salvo se, pelo contexto do
testamento, por outros documentos, ou por fatos inequívocos, se
puder identificar a pessoa ou coisa, a que o testador queria referir-se”.
Não houve erro na designação da herdeira. Ao contrário, como já se viu, o
testamento evidencia a instituição da amiga e não de suas filhas, denotando claramente que a testadora “queria referir-se” a essa amiga MARLY, sem substituí-la em caso
de morte.
5. Sobre a alegada inaplicabilidade das normas da caducidade somente aos
legatários, e não à herdeira, diz respeito a espécie à incapacidade de quem não existe
adquirir por testamento, vale dizer, a herdeira nomeada pela testadora não mais vivia
à época da morte desta, tornando ineficaz o ato de última vontade.
6. Por fim, a discussão em torno da possibilidade ou não de conversão do inventário em herança jacente restou prejudicada, em face da invalidade da cédula testamentária. Ainda que assim não fosse, iniciado o inventário e, no seu curso, verificada
a inexistência do herdeiro testamentário, é de considerar-se jacente a herança, nos
termos do art. 1.592, II, CC, caso em que “o juiz, em cuja comarca tiver domicílio o
falecido, procederá sem perda de tempo à arrecadação de todos os seus bens” (art.
1.142, CPC). A conversão do procedimento e a nomeação do curador, como fez a juíza
de primeiro grau, dá cumprimento a essa norma e atende ao princípio da economia
processual, nele expressamente assentado.
7. À luz do exposto, não conheço do recurso especial.
Preliminar
VOTO:
O sr. ministro BARROS MONTEIRO: Sr. Presidente, vou acompanhar o voto do sr.
ministro-relator, considerando que, à falta de elementos, a interpretação das disposições testamentárias há de ser restritiva. Também não conheço do recurso especial.
É como voto.
Exposição
Civil. Testamento. Designação de herdeiros.
Pelas peculiaridades da espécie, dá-se provimento ao recurso.
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VOTO VISTA:
O exmo. sr. ministro CESAR ASFOR ROCHA:
1. O eminente ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA assim relatou o feito:
“HILDEGARD FODITSCH, sem possuir herdeiros necessários ascendentes ou descendentes, deixou todos os seus bens à amiga MARLY
BONTEMPO DE ALBUQUERQUE, por meio de testamento público.
Com o prévio falecimento da herdeira, a testadora outorgou poderes a um advogado — por procuração ad judicia, em instrumento
particular — para proceder à transferência dos direitos previstos no
testamento às duas filhas da herdeira já falecida.
Morrendo a testadora logo depois, o marido de MARLY, ora recorrente, deu início ao inventário, indicando como herdeiras as próprias filhas, também recorrentes, nos termos da procuração.
A juíza de primeiro grau converteu o inventário em herança jacente
e nomeou curador dos bens o procurador do Município de São
Paulo, à vista da caducidade do testamento, seja porque inexistente a herdeira à época da abertura da sucessão, seja porque a
disposição de última vontade somente poderia ser revogada por
outro testamento, e não pela procuração.
Contra essa decisão os ora recorrentes interpuseram apelação,
recebida como agravo de instrumento, por aplicação da fungibilidade recursal.
O Tribunal de Justiça de São Paulo desproveu o agravo, com os
seguintes fundamentos:
a) inexiste nulidade na conversão do inventário em herança jacente, por se tratar de dever de ofício do juiz;
b) ‘na hipótese de pré-morte da pessoa contemplada [incide o] art.
1.718 do Código Civil como fonte da caducidade do testamento’
(fls. 153);
c) ‘uma procuração assinada sem testemunhas e sem firma reconhecida não consubstancia instituição de substituto testamentário, especialmente para ressuscitar testamento perdido pela morte
da pessoa contemplada’ (fls. 155);
d) ‘em verdade, não se cogita de má ou injusta interpretação de
vontade do testador (arts. 85, 126 e 1.666 do Código Civil), pois falta
intenção para interpretar. Trata-se de hipótese em que não é permitido conferir efeito jurídico ao escrito particular, por absoluta impropriedade do objeto (arts. 1.629 e 1.631 do Código Civil’ (fls. 155).
O recurso especial aponta violação dos arts. 85, 128, 1.666 e 1.670
do Código Civil. Sustentam os recorrentes que: a) não se trata de
substituição, porque a instituição das filhas da pré-falecida como
herdeiras decorre do próprio testamento, uma vez que, à época
deste, existia a mãe contemplada; b) não se aplica a caducidade
quanto à herdeira universal, mas somente aos legatários; c) não
sendo o caso de substituição, a vontade da testadora poderia ser
manifestada de qualquer forma, já que estaria apenas a confirmar
as declarações testamentárias; d) ‘a instituição de herdeiro testa-
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mentário equivale à legitimação como necessário, a quem não o
tem, daí porque não se trata de ficção criada pelo interesse, mas
sim de ser dado cumprimento à vontade de quem o instituiu’ (fls.
169); e) inexiste norma que preveja a conversão de inventário em
herança jacente.
Contra-arrazoado pelo curador da herança e não admitido o recurso
na origem, provi agravo, ‘em face da relevância da matéria’ (fls. 211).
O Ministério Público Federal opinou pelo não-conhecimento do
apelo.
Após a subida dos autos, os recorrentes salientam, em petição, a
manifesta vontade da testadora em transmitir seus bens às filhas da
finada herdeira testamentária.”
2. O eminente ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, em judicioso voto, não
conheceu o recurso.
Pedi vista dos autos para melhor examinar a matéria.
3. A sra. HILDEGARD FODITSCH, que era viúva e sem herdeiros, instituiu, por
testamento público, a sra. MARLY BONTEMPO DE ALBUQUERQUE, mãe das recorrentes, como sua herdeira.
Contudo, a sra. MARLY faleceu cinco meses antes da sra. HILDEGARD e esta, um
mês antes de falecer, firmou uma declaração de vontade exposta no contexto da
cogitada procuração, determinando que todos os direitos que haviam sido por ele
conferidos à sra. MARLY fossem transferidos para as filhas dessa então herdeira.
Sobre a lisura e a autenticidade desses documentos nenhum questionamento foi
levantado pelo r. aresto hostilizado, que apenas não conferiu ao último a possibilidade
de transmitir, como ato de última vontade, os bens deixados pela sra. HILDEGARD às
afirmadas herdeiras.
4. A discussão aqui instalada mais uma vez gira em torno da extensão que se deve
dar às formalidades que revestem a elaboração dos documentos testamentários.
Não ponho nenhuma dúvida quanto à compreensão de que o testamento é um
ato solene que deve se submeter a numerosas formalidades que não podem ser descuradas ou postergadas, sob pena de nulidade ou até de inexistência.
Contudo, como salientado no voto do ilustrado ministro relator, “não se deve
alimentar a superstição do formalismo absoluto, que prejudica mais do que ajuda”, na
observação do eminente ministro GUEIROS LEITE.
Mas todas essas formalidades não podem ser consagradas de modo exacerbado,
pois a sua exigibilidade deve ser acentuada ou minorada em razão da preservação dos
dois valores a que elas se destinam — razão mesma de ser do testamento —, na
seguinte ordem de importância: a primeira, para assegurar a vontade do testador, que
já não mais poderá, após o seu falecimento, por óbvio, confirmar a sua vontade ou
corrigir distorções, nem explicitar o seu querer que possa ter sido expresso de forma
obscura, imprecisa ou confusa; a segunda, para proteger o direito dos herdeiros necessários do testador, mais ainda o dos seus filhos.
Assim ocorre, por exemplo, dentre muitos outros, se a vontade do autor do
testamento não for claramente manifestada; se ela se apresentar contraditória; se for
de encontro à ordem natural das coisas abstraídas dos fatos da vida; se excluir da
herança algum filho; se incluir algum herdeiro testamentário que possa despertar, por
certas razões, surpresa ou espanto; se estabelecer cotas hereditárias desproporcionais
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entre os filhos, ainda que protegida a legítima; se estabelecer cláusulas injustificáveis
a afetar a legítima, visivelmente prejudiciais a alguns herdeiros etc.
Por outro lado, como disse, e creio que todos aqui acordamos nesse ponto, “não
se deve levar o formalismo dos testamentos ao extremo, não se justificando interpretação apenas literal. O formalismo se põe como forma de dar maior segurança à
declaração de vontade, cuja eficácia se realiza após a morte do declarante”, segundo
lição de MARCO AURÉLIO S. VIANA (Curso de Direito Civil, v. 6, Belo Horizonte: Del
Rey, pac. 7, nº 7, pp. 97/98), trazida à baila do eminente ministro relator.
ORLANDO GOMES (in Sucessões, Forense, RJ, 1978, pp. 141 e 143) igualmente
leciona que, como ato solene, o testamento “está rodeado de numerosas formalidades,
que dificultam sua prática, com vistas, porém, à garantia indispensável de sua autenticidade e à tutela da independência da vontade do testador, a fim de assegurar
plenamente o resultado jurídico por ele pretendido”, pois esse “formalismo é imposto
também para que se conserve a exata compreensão da vontade declarada pelo de
cujus, e consubstanciada sob forma de regulamento”.
5. Na hipótese, sem dúvida que o questionado documento visto em posição
isolada não conferiria às recorrentes o direito por elas pretendido.
Todavia, data venia, não é assim que ele deve ser visto, senão como uma peça
de um painel a ser interpretado em sua inteireza e observado em maior amplitude.
E, nesse contexto, verificar-se-á, com facilidade, que a real intenção da autora da
herança foi efetiva e indiscutivelmente a de fazer das recorrentes as suas herdeiras.
O art. 1.666 do Código Civil estabelece que, na interpretação da cláusula testamentária, prevalecerá a que melhor assegure a observância da vontade do testador.
Na particularíssima hipótese dos autos, em que se evidencia que a sra. HILDEGARD pretendeu mesmo estender às recorrentes os direitos hereditários que haviam
sido por ela conferidos à sra. MARLY, não se antepondo nenhuma dúvida sobre isso, os
rigores das exigências quanto à formatação de que deveria se revestir o documento
cogitado devem ser abrandados para, visto no seu contexto mais amplo, aqui também
deixar prevalecer a última vontade da testadora.
6. Diante de tais pressupostos, data venia dos eminentes ministros SÁLVIO DE
FIGUEIREDO TEIXEIRA e BARROS MONTEIRO, ouso discordar de seus judiciosos votos
para conhecer do recurso e lhe dar provimento.
EMENTA:
Direito civil. Testamento público. Falecimento da herdeira testamentária antes da testadora. Nomeação posterior das filhas da
herdeira por procuração particular. Impossibilidade. Rigor formal.
Solenidade essencial. Arts. 1.592, II, 1.717 e 1.746, CC. Conversão
de inventário em herança jacente. Possibilidade. Economia processual. Art. 1.142, CPC. Recurso desacolhido.
I - A mitigação do rigor formal em prol da finalidade é critério que
se impõe na interpretação dos textos legais. Entretanto, no caso
dos testamentos, deve-se redobrar o zelo na observância da forma,
tanto por não viver o testador no momento de esclarecer suas
intenções, quanto pela suscetibilidade de fraudes na elaboração do
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instrumento e, conseqüentemente, na deturpação da vontade de
quem dispõe dos bens para após a morte.
II - A revogação parcial do testamento, para substituir a herdeira
anteriormente nomeada e já falecida, deve dar-se pelo mesmo
modo e forma do anterior (art. 1.746 do Código Civil), não tendo
a procuração ad judicia por instrumento particular esse condão
revogador.
III - A capacidade para adquirir por testamento pressupõe a existência do herdeiro, ou legatário, à época da morte do testador. Tendo
falecido antes o herdeiro, perde validade a cédula testamentária.
IV - Na lição de PONTES, ‘a nulidade dos atos jurídicos de intercâmbio ou inter vivos é, praticamente, reparável: fazem-se outros, com
as formalidades legais, ou se intentam ações que compensem o
prejuízo, como a ação de in rem verso. Não se dá o mesmo com
as declarações de última vontade: nulas, por defeito de forma, ou
por outro motivo, não podem ser renovadas, pois morreu quem as
fez. Razão maior para se evitar, no zelo do respeito à forma, o
sacrifício do fundo” (Tratado de Direito Privado, t. LVIII, 2ª ed., Rio
de Janeiro: Borsoi, 1969, § 5.849, p. 283).
V - Iniciado o inventário e, no seu curso, verificada a inexistência
de herdeiro testamentário, é de considerar-se jacente a herança,
nos termos do art. 1.592, II, CC, caso em que ‘o juiz, em cuja
comarca tiver domicílio o falecido, procederá sem perda de tempo à arrecadação de todos os seus bens’ (art. 1.142, CPC). A
conversão do procedimento e a nomeação do curador dá cumprimento a essa norma e atende ao princípio da economia processual,
nele expressamente assentado.
ACÓRDÃO:
Vistos, relatados e discutidos estes autos, prosseguindo no julgamento, acordam
os ministros da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e
das notas taquigráficas a seguir, por maioria, não conhecer do recurso, vencidos os
ministros CESAR ASFOR ROCHA e RUY ROSADO DE AGUIAR. Votaram com o relator
os ministros BARROS MONTEIRO e ALDIR PASSARINHO JÚNIOR.
Brasília, 14 de dezembro de 2000 (data do julgamento).
Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR
Presidente
Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA
Relator
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12ª VARA CÍVEL CENTRAL DA CAPITAL DO ESTADO DE SÃO PAULO
VISTOS.
ANA MARIA VICTÓRIO, qualificada nos autos, por seu procurador, propôs a presente ação de indenização por danos morais e danos patrimoniais, rito ordinário, contra
ABRIEL KOCH. Contou que começou a trabalhar na empresa “Zorba Têxtil S.A.” no dia
7 de janeiro de 1991, na função de secretária, e que, com o tempo, seu local de trabalho
tornou-se insuportável, em virtude do comportamento do requerido, que lhe dispensava
tratamento libertino.
Narrou que ele várias vezes a chamou a sua sala para indagar sobre sua vida
pessoal e sua intimidade, fazendo perguntas maliciosas. Às vezes, era convocada para
trabalhar na casa dele, ocasiões em que ele impunha suas condutas desrespeitosas,
fazendo seus comentários indecorosos, deixando sempre em evidência a ameaça de
seu emprego.
Contou que sofria humilhações, já que constantemente, na frente de outros
empregados, era agredida verbalmente com palavras de baixo calão: “vagabunda”,
“animal” e “burra”.
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Considera que foi exposta a evidente assédio sexual e moral por parte do requerido, que exacerbou sua condição de superior hierárquico.
Relatou, ainda, que, certa vez, foi chamada à sala, oportunidade em que ele
ordenou-lhe que trancasse a porta e abrisse sua blusa. Em outra oportunidade, foi
indagada se, entre eles, haveria ou não relações sexuais.
Diante da negativa, acabou sendo demitida.
Após considerações a respeito de promessas de benefícios que teriam sido feitas
pelo requerido, sobre o seu estado de saúde e tecer considerações doutrinárias e
jurisprudenciais a respeito do tema, pediu a procedência, condenando-se o réu ao
pagamento de uma indenização de danos morais e materiais, no valor de R$
1.500.000,00. Formulou os protestos de praxe (fls. 2/15). Juntou os documentos de fls.
16/127.
Em sua contestação (fls. 138/163), que veio instruída com documentos, em preliminar, o réu sustentou sua ilegitimidade, a incompetência do Juízo, que a autora é
carecedora da ação e que o pedido é inepto. No mérito, a improcedência da pretensão.
Para tanto, manifestou-se no sentido de não ter agido de forma irregular, não tendo
causado dano à autora. Pediu a improcedência.
Réplica a fls. 190/197.
Em audiência, prejudicada a conciliação (fls. 218/219). Na oportunidade, as preliminares foram rejeitadas.
Durante a instrução foram colhidos os depoimentos pessoais (fls. 254/256 e 257/
258) e inquirida a testemunha arrolada pelo requerido (fls. 279/281).
Através de memórias, as partes reiteraram seus pedidos (fls. 283/311 e 313/317).
Em apenso, incidente de impugnação ao valor da causa, julgado procedente.
Processo formalmente em ordem; sem vícios ou nulidades.
É o relatório.
DECIDO:
Não havendo necessidade de mais provas, conheço do pedido.
A autora sentiu-se atingida pelo comportamento do requerido, que teria atentado
contra sua honra e dignidade.
Esclareceu que ele a tratava de forma indecorosa e lhe dirigia palavras de baixo
calão.
Em seu depoimento pessoal, a requerida contou que era secretária e que o
requerido, após algum tempo, costumava perguntar se tinha namorado e se ia ao motel
com ele. Dizia que esse assunto não lhe interessava. Acrescentou que ele a chamava
de “burra” e “vagabunda” e que, certa vez, mordeu seus seios (fls. 254/6).
Conforme RUI STOCO, “o assédio sexual consiste num ato de insinuação sexual
que atinge o bem-estar de uma mulher ou de um homem, ou que constitui um risco para
sua permanência no emprego. Ele pode assumir a forma de proposta ou de insinuações
persistentes, tanto verbais quanto gestuais” (Tratado de Responsabilidade Civil, 5ª ed.,
RT, pp. 1411/2).
Ainda, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), por ele
citada, “o assédio sexual configura-se por insinuações, contatos físicos forçados, convites ou pedidos impertinentes, desde que apresente uma das seguintes características:
a) ser claramente uma condição para dar ou manter o emprego; b) influir nas promoções na carreira do assediado; c) prejudicar o rendimento profissional, humilhar, insultar
ou intimidar a vítima” (ob. cit., p. 1.412).
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Depreende-se de tais conceitos que o comportamento a ser punido deve ser grave,
ofensivo e desrespeitoso; capaz de intimidar o ofendido, colocando-o em situação
vexatória.
No caso dos autos, apesar dos argumentos apresentados pela autora, as provas
estão a demonstrar a inexistência de conduta irregular por parte do requerido.
O ilustre civilista, citando DÁRCIO GUIMARÃES DE ANDRADE, a respeito do
tema, alertou: “há dificuldade no provimento de uma ação desse tipo pela necessidade
de segura comprovação do fato, pois o assédio é normalmente praticado às escondidas,
em locais isolados, sem testemunhas” (ob. cit., p. 1.417).
A autora mencionou que o réu a chamava para o interior de sua sala e que, certa
vez, pediu que ela fechasse a porta e que abrisse a sua blusa. Noutra oportunidade,
teria perguntado se com ela não seria possível manter relações sexuais.
As provas a respeito deixam a desejar.
Apesar de trabalhar com outras secretárias, a autora não apresentou nenhuma
que pudesse, ao menos, demonstrar que esses fatos ocorreram.
Com certeza, após o réu ter feito tais pedidos, a autora deveria ter retornado a
sua sala bem abalada. Não é possível que nenhuma de suas colegas tivesse presenciado
o seu estado.
Ainda, se as secretárias anteriores também sofreram de assédio, nada mais justo
que trazê-las a Juízo para depor.
Apesar de tais considerações, o que mais chama a atenção é o comportamento
passivo da autora, que se submeteu às tentativas do requerido por sete anos, aproximadamente, sem que um comportamento de resistência, de repulsa fosse efetivamente verificado.
Não se pode considerar como razoável a colocação da autora, no sentido de que
a necessidade do emprego fez com que suportasse esse estado de coisas por tantos
anos.
Além disso, significativa a omissão dos fatos por ela feita na petição inicial da
reclamação trabalhista, se considerarmos que esse acontecimento poderia ter reflexo
no desfecho da causa.
Isso posto, e pelo mais que dos autos consta, julgo improcedente a presente
ação.
A autora arcará com as custas e despesas processuais, além de honorários advocatícios, que, nos termos dos §§ 3º e 4º do artigo 20 do CPC, fixo em 15% do valor da
condenação.
P. R. e Intimem-se.
São Paulo, 12 de novembro de 2001.
PAULO ALCIDES AMARAL SALLES
Juiz de Direito
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CORREGEDORIA PERMANENTE
DO REGISTRO DE IMÓVEIS DA COMARCA DE SERRA NEGRA
VISTOS.
A DIOCESE DE AMPARO deduziu pretensão de averbar a Bula Papal que a instituiu
em matrículas e transcrições do Registro de Imóveis desta comarca, em que figura como
titular de domínio a Arquidiocese de Campinas, a Diocese de Campinas ou a Mitra
Diocesana de Campinas, com vistas à regularização de sua administração, alegando,
para tanto, que o oficial daquela serventia se recusou a proceder a averbação, argumentando que há necessidade de outorga de escritura pública, por se tratar de transferência de domínio, com o que não se conforma a requerente, por negar a existência
de qualquer venda, doação ou alienação de qualquer espécie.
Postula, assim, a averbação direta da Bula Papal nos referidos registros prediais,
independentemente de ato translativo de domínio.
Concedida oportunidade de o oficial de Registro de Imobiliário manifestar-se,
sobreveio ratificação da nota de devolução (fls. 23).
O Ministério Público opinou pela extinção terminativa do feito (fls. 24).
Este, o relatório.
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DECIDO:
O pedido é procedente.
Trata-se de procedimento administrativo que busca a averbação de Bula Papal nas
matrículas e nas transcrições do Registro de Imóveis desta comarca, nas quais figura
como titular de domínio a Arquidiocese de Campinas, a Diocese de Campinas ou a
Mitra Diocesana de Campinas, a fim de que o novo titular de domínio passe a constar
a Diocese de Amparo, instituída por aquele mesmo decreto.
Antes da análise da pretensão formulada, cumpre apreciar a preliminar levantada
pela Curadoria de Registros Públicos.
Ao reverso do invocado pelo nobre representante do Ministério Público, o caso não
se ressente de ilegitimidade de parte nem de impossibilidade jurídica do pedido.
Com efeito, o procedimento de dúvida não seria aplicável à hipótese, pois não se
busca registro em sentido estrito, mas mera averbação.
Como para essa última modalidade registrária inexiste previsão legal de dúvida
a ser suscitada pelo registrador, apenas cabe a via administrativa direta do interessado,
tal como o fez corretamente a requerente.
Com essas considerações, fica rejeitada a extinção terminativa do feito, alvitrada
pelo Ministério Público, impondo-se o exame do mérito nos termos que se seguem.
A questão central a ser dirimida diz respeito à possibilidade jurídica de proceder-se
à averbação de Bula Papal em registros imobiliários pertencentes à Arquidiocese de
Campinas, desmembrada, com o surgimento de nova Diocese de Amparo, a requerente.
O oficial de Registro Imobiliário opina pela negativa, considerando necessária a
lavratura de escritura pública de doação entre as Dioceses de Campinas e de Amparo.
Todavia, razão não lhe assiste.
Para a correta solução do impasse, mostra-se recomendável primeiramente especificar a natureza jurídica do ato que se busca averbar, qual seja, a Bula Papal, cuja
tradução está reproduzida às fls. 9/10.
Em verdade, tem-se aí autêntico ato de império ou de autoridade, através do
qual a Administração usa de sua supremacia para impor coercitivamente sua vontade,
de cumprimento obrigatório.(1)
Vale dizer, é a expressão de vontade de um Chefe de Estado, que precisa e deve
ser respeitada, em virtude da soberania, aqui tomada como expressão consagrada de
poder político e jurídico.
Nessa ordem de idéias, o problema que aqui se coloca assume contornos de
Direito Internacional Público, cuja evolução aponta para o bom convívio entre as
Nações, dentro da conceituação jurídica de soberania que “se baseia na igualdade
jurídica dos Estados e pressupõe o respeito recíproco, como regra de convivência”.(2)
Dessa forma, na qualidade de Chefe de Estado da Cidade do Vaticano, a manifestação livre e soberana do Sumo Pontífice precisa ser acatada, sem retardo.
Feita essa abordagem superficial da questão no plano do Direito Internacional
Público, passa-se ao enfoque da peculiaridade da requerente.
A Diocese de Amparo pertence e integra a Igreja Universal Católica, a qual é
regida fundamentalmente pelo Código de Direito Canônico.
Em outras palavras, ao lado do ordenamento jurídico pátrio e das convenções
(1)
(2)
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 15ª ed., RT, 1990, p. 142.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado, 16ª ed., Saraiva, 1991, p. 72.
Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 67-71, mar./abr.-2002
internacionais, a correta aplicação da lei aos assuntos atinentes à Igreja Católica não
pode olvidar a existência e a vigência entre nós do Código de Direito Canônico, que
a disciplina em diversos aspectos.
E o primeiro preceito do aludido Código de Direito Canônico que nos interessa é o
Cânon 122, mencionado no próprio decreto do Sumo Pontífice que se pretende averbar.
Eis o texto:
“Cân. 122 - Se uma universalidade, que tem personalidade jurídica
pública, se dividir de tal modo que ou uma parte dela venha a unirse a outra pessoa jurídica, ou venha a erigir-se com a parte desmembrada uma nova pessoa jurídica pública, a autoridade eclesiástica, à
qual compete fazer a divisão, deve cuidar pessoalmente ou por um
executor, respeitados em primeiro lugar a vontade dos fundadores e
doadores, os direitos adquiridos e os estatutos aprovados:
1º - que os bens comuns, suscetíveis de divisão, os direitos patrimoniais, as dívidas e os outros ônus sejam divididos entre as pessoas
jurídicas em questão, na proporção devida ex aequo et bono, levando me conta todas as circunstâncias e as necessidades de ambas;
2º - que o uso e usufruto dos bens comuns, não suscetíveis de
divisão, aproveitem a ambas as pessoas jurídicas, e os ônus próprios
deles sejam impostos a ambas, respeitada também a devida proporção determinada ex aequo et bono”.(3)
A melhor compreensão dessa norma revela que, com a divisão de uma diocese
ou de uma província religiosa, os bens patrimoniais (móveis e imóveis) transferem-se
ipso iure por conta do desmembramento.
Foi exatamente o que ocorreu.
A autoridade eclesiástica competente, ou seja, o Papa JOÃO PAULO II, por decreto
próprio, fundou a Diocese de Amparo, desmembrando, para tanto, a Arquidiocese de
Campinas e a Diocese de Limeira, dotando aquela do acervo patrimonial imobiliário
existente nos limites territoriais que outrora era das porções desmembradas.
Por força desse preceito canônico, cuja observância, reitere-se, não pode ser
desprezada, houve simultânea criação da Diocese de Amparo e respectiva dotação
patrimonial.
Isso significa que o ato papal basta por si mesmo.
Em outra palavras, a formalização da doação sugerida pelo oficial de Registro
Imobiliário é desnecessária e não condiz com a essência do ato praticado.
Outro dispositivo afeto à faceta patrimonial da Igreja, que aqui nos interessa, é o
Cânon 1.257, § 1º, pelo qual “todo os bens temporais pertencentes à Igreja Universal,
à Sé Apostólica ou a outras pessoas jurídicas públicas na Igreja são bens eclesiásticos
e se regem pelos cânones seguintes e pelos estatutos próprios”.(4)
Tal preceito reforça a idéia já exposta de que a análise do intento da requerente
deve considerar obrigatoriamente os preceitos canônicos, justamente pela natureza
eclesiástica do patrimônio em questão.
(3)
(4)
Código de Direito Canônico - Codex Iuris Canonici. Tradução: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, 2ª ed., Loyola,
1987, pp. 49 e 51.
Ob. cit., p. 545.
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Além de regular a face patrimonial de toda a Santa Igreja, o Código de Direito
Canônico disciplina também a sua própria hierarquia.
Dentre os dispositivos sobre essa tema, revela transcrever o Cânon 333:
“Cân. 333 - § 1º - O Romano Pontífice, em virtude de seu múnus, não só tem poder sobre a Igreja Universal, mas obtém
ainda a primazia do poder ordinário sobre todas as igrejas particulares e entidades que as congregam, pelo qual é, ao mesmo
tempo, reforçado e defendido o poder próprio, ordinário e imediato que os bispos têm sobre as igrejas particulares confiadas
a seu cuidado.
§ 2º - O Romano Pontífice, no desempenho do múnus de pastor
supremo da igreja, está sempre unido em comunhão com os outros
bispos e até com toda a igreja; entretanto, ele tem o direito de
determinar, de acordo com as necessidades da igreja, o modo
pessoal e colegial de exercer esse ofício.
§ 3º - Contra uma sentença ou decreto do Romano Pontífice,
não há apelação, nem recurso” (5) (destaquei).
Bem se vê que igualmente, pelo prisma hierárquico da Igreja Universal, a Bula
Papal deve ser cumprida, pois esgota-se em si mesma, preenchedora que é dos requisitos legais para que produza efeitos no mundo do Direito, não admitindo revisão.
Firmadas todas essas considerações, e tendo em vista que, para a segurança que
os registros públicos visam resguardar, é necessária a consonância entre seus dados e
a realidade fática, plenamente justificável a averbação reclamada, nos exatos termos
do permissivo contido na norma invocada pela requerente, qual seja, o artigo 246,
caput, da Lei nº 6.015/73:
“Art. 246 - Além dos casos expressamente indicados no item II do
artigo 167, serão averbadas na matrícula as sub-rogações e outras
ocorrências que, por qualquer modo, alterem o registro”.
A melhor interpretação que se tem dado a esse dispositivo é de que as hipóteses
de averbação previstas no artigo 167, II, da Lei nº 6.015/73, são meramente exemplificativas (numerus apertus).
O mesmo não se dá com as situações de registro, em sentido estrito, contempladas
no rol do artigo 167, I, da Lei nº 6.015/73, as quais são taxativas (numerus clausus).
Dentre as demais exigências do registrador constam: ausência de prova da existência jurídica de ambas as dioceses e falta de reconhecimento de firma; ausência de
prova de que o subscritor da petição de averbação seja o representante legal da
requerente; ausência de referência, na Bula Papal, aos bens imóveis; divergência de
denominação das titulares de domínio das transcrições nºs 9.256, 5.668 e 14.892, bem
como da matrículas nºs 21.156, 14.820 e 20.354.
Contudo, também aqui razão não assiste ao registrador.
Em primeiro lugar, o reconhecimento de firma é desnecessário quando se trata de
documento estrangeiro, ao teor do artigo 221, III, da Lei nº 6.015/73.
(5)
Idem, p. 153.
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Em segundo lugar, a própria Bula Papal comprova a existência jurídica das Dioceses de Limeira e de Campinas.
Em terceiro lugar, é público e notório que o bispo diocesano é dom FRANCISCO
JOSÉ ZUGLIANI, mostrando-se dispensável a prova exigida.
Em quarto lugar, se não há menção expressa do repasse imobiliário, também não
há ressalva desse ponto.
Ademais, com a nova delimitação geográfica, o contexto do decreto do Sumo
Pontífice se harmoniza com a dotação imobiliária para a nova Diocese de todos os bens
situados em seus limites territoriais, conforme já expedido.
Por fim, a discrepância na nomenclatura utilizada para a Arquidiocese de Campinas, Diocese de Campinas e Mitra Diocesana de Campinas, é absolutamente irrelevante, de vez que todas essas expressões têm sentido único, referindo-se à mesma
entidade, prescindindo-se de qualquer retificação registrária.
Conclui-se, portanto, que a averbação deve ser procedida como pleiteado, em
que pese a cautela e o zelo costumeiros com que se houve o registrador.
Diante do exposto, acolho a representação formulada pela DIOCESE DE AMPARO
para determinar que o Registro Imobiliário desta Comarca de Serra Negra proceda a
averbação da Bula Papal, nas transcrições nºs 9.256, 5.668 e 14.892, bem como nas
matrículas nºs 21.156, 14.820 e 20.354, a fim de que os imóveis nelas retratados
passem a ter a requerente como titular de domínio.
Transitada em julgado, faculto à interessada o desentranhamento dos documentos juntados, mediante traslado, encaminhando-se cópia da presente ao oficial de
Registro Imobiliário desta comarca para efetivo cumprimento.
P.R.I.C.
Serra Negra, 23 de novembro de 1999.
SÉRGIO ARAÚJO GOMES
Juiz de Direito
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8ª VARA DA FAZENDA PÚBLICA DA CAPITAL DO ESTADO DE SÃO PAULO
VISTOS.
PAULO SÉRGIO DE SOUZA, incapaz representado por sua tutora VALQUÍRIA DE
OLIVEIRA MARTINS, ajuizou ação ordinária contra a FAZENDA DO ESTADO DE SÃO
PAULO, alegando ser portador de doenças várias, sem recursos para custear o seu
tratamento e pleiteando que o Estado lhe forneça, além da assistência médica que já
vem recebendo, os medicamentos, material hospitalar, alimentação adequada, produtos de higiene e limpeza.
Com a petição inicial vieram os documentos (fls. 14/71).
Ouvido o Ministério Público (fls. 72/vº), concedeu o Juízo a tutela antecipada,
ordenando à ré que forneça ao autor os medicamentos, materiais de higiene, produtos
sanitários e alimentos especificados na petição inicial, para o atendimento das necessidades do autor (fls. 73/vº).
A Egrégia Presidência do Tribunal de Justiça, acatando pedido da Fazenda do
Estado, suspendeu a decisão do Juízo a quo que concedeu a antecipação da tutela
jurisdicional (fls. 100/104), restabelecida, em seguida, pelo v. acórdão proferido em
agravo regimental (fls. 159/162).
Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 73-76, mar./abr.-2002
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A Fazenda Estadual foi citada (fls. 91/vº) e contestou a ação (fls. 119/133),
trazendo documentos (fls. 134/144).
Diz a ré que o autor está pedindo o fornecimento de medicamentos, alimentação,
produtos de higiene e sanitários, em quantidades excessivas. Não concorda que o
Estado seja compelido a fornecê-los ao autor e, se procedente o pedido quanto aos
medicamentos, que sejam fornecidos somente aqueles adequados ao tratamento e nas
quantidades corretas, especificados em receituário médico.
Alega a ré pela inviabilidade do fornecimento dos insumos hospitalares, bem
como a assistência médica na residência, que implicaria o deslocamento de médicos
e enfermeiros para acompanhamento do autor, fiscalização das suas necessidades, dos
materiais efetivamente consumidos, até de difícil implementação, com readequação
dos plantões, deslocamento de funcionários etc. O fornecimento ao autor, de alimentos
e material de higiene, se constituiria em grave precedente com lesão à ordem e às
finanças públicas.
O atendimento ao pleito do autor é, segundo a contestação, dar-lhe tratamento
privilegiado em detrimento da coletividade. Diz a ré que o autor não corre risco de vida,
apresentando os problemas de saúde desde 1997.
Os dispositivos constitucionais que obrigam o Poder Público a garantir a saúde do
cidadão, são de ordem programática, sem auto-executividade. Cabe ao Poder Executivo, sem a interferência do Judiciário, definir os planos, prioridades e metas de ação
na área da saúde, segundo o poder discricionário do administrador. Por fim, o fornecimento dos medicamentos, alimentação, material hospitalar e produtos de higiene e
limpeza carece de prévia autorização e previsão orçamentária.
Por todos esses argumentos, nega-se o Estado a atender o pleito do autor, posicionando-se pela improcedência da ação.
Réplica (fls. 171/185), rebatendo o autor os argumentos da contestação.
Em seu parecer final, opina o Ministério Público pela procedência da ação, determinando-se ao Estado a internação do autor em estabelecimento público adequado ou,
alternativamente, o fornecimento dos medicamentos, alimentação e produtos pleiteados.
Por força da antecipação da tutela jurisdicional, o autor foi submetido a avaliações
médicas e de enfermagem, apresentados nos autos relatórios diagnosticando as suas
doenças e ministrando-lhe os medicamentos adequados, bem como os materiais hospitalares (fls. 134/140).
É o relatório.
FUNDAMENTO E DECIDO:
O feito comporta julgamento antecipado, desnecessária a dilação probatória (CPC,
art. 330, II, segunda parte).
A Constituição Federal (arts. 23, II e 196) assegura a todos os direito à saúde, ao
mesmo tempo em que impõe ao Poder Público o dever de prestá-la. Não se pode
pretender retirar a força de tão importante princípio constitucional, com o argumento
de que a norma é programática, não dotada de executoriedade.
É cristalino o dever do Estado de prestar atendimento ao doente, e não o atendimento precário, inadequado e incompleto, que, lamentavelmente, defende a Fazenda-ré. Pretende não atender as justas reivindicações do autor, sob o pequeno e mesquinho argumento de que estaria abrindo perigoso precedente, com grave risco às
finanças públicas e que, então, o autor seria um privilegiado em detrimento de toda a
coletividade.
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Se precedente houvesse, seria um salutar precedente, pois atender à saúde de
todos é não negar atendimento adequado a cada um dos cidadãos necessitados.
Não se compreende bem, mas consegue a Fazenda Estadual concluir que o
atendimento às necessidades do autor, reconhecidamente enfermo e carente, seja
contrário ao interesse público.
Bem maior do que a vida humana não há. Prestar atendimento à saúde do autor
é proteger-lhe a vida, com indubitável apoio no interesse público da coletividade,
superior a qualquer dificuldade de ordem financeira e orçamentária, aliás solucionável.
Não se trata de o Judiciário interferir na política de ação governamental na área
da saúde, nem tampouco nas diretrizes orçamentárias do setor, de competência do
Poder Executivo. Trata-se de impor ao Estado o cumprimento da lei, que exige a
satisfação adequada do tratamento das doenças.
É muito simplista a posição da ré, de eximir-se de prestar o adequado tratamento
à saúde do autor, para ele questão de vida ou morte, para a Fazenda a preocupação
com o orçamento.
Por recomendação do sr. secretário estadual da Saúde, o autor submeteu-se a
avaliações psiquiátrica, clínico-geral e de enfermagem, apresentados pelos médicos e
enfermeira do Estado os relatórios (fls. 134/140), que atestam o grave estado de saúde
do autor:
“1) O paciente é deficiente auditivo (surdo-mudo) congênito.
2) O paciente é portador de seqüelas neurológicas de traumatismo
crânio encefálico ocorrido em 1997, segundo descrições dos médicos assistentes.
3) O paciente é portador de distúrbios psiquiátricos, também secundários ao traumatismo craniano.
4) É portador de bexiga neurogênica, patologia que o coloca na
condição de usuário contínuo de sonda vesical de demora.
5) O paciente não deambula, e, portanto, requer cuidados especiais de higiene.
6) Paciente necessita de alimentação (dieta especial, balanceada,
visando corrigir os efeitos da inatividade física e dos distúrbios
neurológicos secundários ao traumatismo crânio encefálico).”
Os mesmos relatórios indicam os medicamentos adequados ao tratamento do
autor, bem como o material hospitalar, nas quantidades recomendadas, com a advertência quanto à necessidade de “reavaliação periódica em serviço público ambulatorial
para acompanhamento das patologias e revisão da medicação prescrita” (fls. 134).
Prestar atendimento à saúde do autor, na grave e infeliz condição em que se
encontra, engloba a prestação da alimentação pertinente à recomendada dieta balanceada, os materiais hospitalares, os produtos de higiene e limpeza. Não se entende a
tamanha oposição da ré quanto a esses itens do pedido, porquanto os prestaria normalmente ao autor se fosse ele internado num hospital adequado da rede pública, internação esta que fica facultada ao Estado.
Ante o exposto, julgo procedente a ação para condenar a FAZENDA DO ESTADO
DE SÃO PAULO a prestar ao autor, PAULO SÉRGIO DE SOUZA, o atendimento adequado
à sua saúde, da seguinte forma, alternativamente, à escolha do Estado:
1ª opção — internar o autor em estabelecimento adequado da rede pública de
saúde, se aconselhável a internação, neste caso prestando-lhe diretamente a assistência
médico-hospitalar, os medicamentos prescritos, a alimentação indicada, os cuidados de
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higiene e limpeza, enfim ministrando-lhe o correto tratamento de que necessita;
ou
2ª opção — permanecer o autor em sua residência, se não aconselhável a internação em estabelecimento adequado da rede pública de saúde, obrigando-se o Estado,
neste caso:
a) a prestar ao autor permanente atendimento médico, na residência ou ambulatorial;
b) a fornecer-lhe, mensalmente, os medicamentos prescritos pelos médicos indicados pelo Estado e nas quantidades especificadas nos relatórios de fls. 135/136 e 137/
138, sujeitos a revisões, pelos médicos, conforme a evolução das patologias e adequação do tratamento;
c) a entregar-lhe os alimentos necessários à dieta balanceada, a serem definidos
(os tipos de alimentos, respectivas quantidades e a freqüência de entrega: diária,
semanal, quinzenal ou mensal), por médico ou profissional indicado pelo Estado;
d) a fornecer-lhe, mensalmente, os materiais hospitalares assinalados no Relatório
de Enfermagem elaborado por enfermeira indicada pelo Estado (fls. 139/140), sujeito
a revisões conforme o acompanhamento do paciente;
e) a entregar ao autor, mensalmente, os produtos de higiene, sanitários ou de
limpeza necessários aos permanentes cuidados com a higiene do autor, cujos tipos de
produtos e respectivas quantidades serão definidos por profissional a ser indicado pelo
Estado, sujeito a revisões conforme o evoluir das necessidades do autor;
f) todos os medicamentos, alimentos e produtos serão entregues por representante do Estado em mão da tutora do autor, contra recibo.
Argumenta-se pela impossibilidade jurídica de antecipação da tutela jurisdicional
contra a Fazenda Pública. Não é essa a posição do Juízo, ausente previsão legal nesse
sentido. Verificadas a verossimilhança das alegações e a urgência de seu atendimento,
ante o receio de dano irreparável ou de difícil reparação, cabível a antecipação da
tutela, no caso imprescindível, diante do sério risco de vida que corre o autor, pela
gravidade de seu quadro de saúde (ao contrário do que alega a ré, em sua contestação,
sem base alguma). Não concedê-la, pode acarretar a perda do objeto durante o longo
tramitar da ação e recursos previstos na lei processual, ante a delicadeza e gravidade
da situação.
Confirmo, pois, a decisão que concedeu a antecipação da tutela jurisdicional,
intimando-se, de imediato e independentemente do trânsito em julgado da sentença,
a Fazenda do Estado, por seu procurador-chefe, do inteiro teor da sentença e para que,
em 10 dias, formalize nos autos a opção de atendimento à saúde do autor (1ª opção
ou 2ª opção), sob pena de a escolha passar ao autor ou ser definida pelo Juízo. A
mesma intimação deverá ser feita, pessoalmente, ao sr. secretário de Estado da Saúde.
Reembolsará a ré as custas e despesas processuais eventualmente suportadas
pelo autor, e arcará com os honorários advocatícios de R$ 3.000,00 (três mil reais) —
CPC, art. 20, § 4º.
Sujeita a sentença ao duplo grau de jurisdição, processados eventuais recursos
voluntários, subam os autos à Egrégia Segunda Instância para o reexame necessário.
P.R.I.C.
São Paulo, 20 de março de 2001.
CARLOS ALBERTO M. S. M. VIOLANTE
Juiz de Direito
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EUCLIDES DE OLIVEIRA
Juiz aposentado do 2º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo
Meu bem, meus bens.
Casamento é ato de amor, não um jogo de interesses patrimoniais. Desde o
mágico momento inicial em que prepondera a atração física (“amor à primeira vista),
desenvolve-se natural afeição entre os enamorados, com amadurecimento e desponte
na união de vida a dois, podendo oficializar-se pelo cerimonial da lei.
Para que o casamento perdure e se torne realmente uma união feliz, necessita do
cultivo de mútua afeição. Há de subsistir entre os cônjuges a affectio societatis, na
busca de realização do projeto de vida familiar que envolve, também, a conquista de
um patrimônio comum (“quem casa quer casa”).
Desde os bens que cada um traz para o enriquecimento do lar, até os adquiridos na constância da vida em comum, múltiplos interesses se põem em confronto, seja quanto à administração do patrimônio ou no que respeita a atos de
disposição.
Disso cuida a lei ao prever modelos de regimes matrimoniais de bens. Deixa aos
nubentes certa margem de escolha, pela celebração do pacto antenupcial, mas contempla regras básicas que devem ser observadas, sob pena de se considerarem não
escritas (CC, arts. 256 e 257). Na falta de contrato, aplica-se o regime da comunhão
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parcial de bens (CC, art. 258). Tudo o que for adquirido durante o casamento, a título
oneroso, pertence a ambos os cônjuges.
Mas na hora em que cessa a mútua afeição, quando vira cinzas o fogo do amor,
abre-se campo, não raro, a lamentáveis guerrilhas domésticas. A controvérsia poderá
crescer e se avolumar em caso de dissolução da sociedade conjugal, pela incontornável
disputa na partilha dos bens amealhados.
Nesse entretempo, ainda, não raro acontece de virem os cônjuges a romper a vida
em comum, mantendo-se casados apenas no papel. O homem larga da mulher, ou esta
simplesmente sai de casa. Cada qual passa a viver sozinho, ou quem sabe se une a outra
pessoa, mantendo, no entanto, o primitivo laço conjugal.
Nessa situação, cessada a convivência entre marido e mulher, e a partir desse
tempo, como ficarão os bens adquiridos individualmente pelos separados de fato?
Aplica-se a eles o regime de bens adotado por ocasião do casamento? Haverá partilha
igualitária de tais bens se vigorava o regime da comunhão?
São questões difíceis, das mais tormentosas no estudo dos efeitos materiais do
casamento. Põe-se em confronto, de um lado, a regra legal de que o regime de bens
somente termina com a dissolução da sociedade conjugal e, de outro, o princípio
jurídico do não enriquecimento sem causa, desdobramento da justiça como sinônimo
de “dar a cada um o que é seu”, a exigir, sob este aspecto, que não se reparta, com
o cônjuge separado, aquilo que o outro adquiriu com esforço exclusivamente próprio.
Término da comunhão de bens
Os efeitos da separação judicial se operam a partir do trânsito em julgado da
sentença que julgar a separação ou a da decisão que tiver concedido a separação
cautelar (Lei nº 6.515/77, art. 8º). Cessam os deveres pessoais, de fidelidade e de
coabitação, e também o regime patrimonial, de modo que finda, inexoravelmente, a
regra da comunhão de bens no casamento desfeito.
Os fundamentos desse dispositivo repousam na presunção de colaboração entre
os cônjuges na formação de seu patrimônio, enquanto casados e mantendo a vida em
comum. Os bens pertencem aos dois porque adquiridos pelo esforço conjunto, o que
se presume pelo só fato da convivência. Desde o momento em que a sociedade
conjugal deixa de existir, claro está que também desaparece o regime patrimonial entre
os descasados. A mesma conseqüência se dá, em caráter retroativo, desde que autorizada a separação de corpos (alvará judicial). Daí ser possível afirmar que refogem à
partilha, pelas mesmas razões, os bens adquiridos individualmente por este ou aquele
cônjuge, sem mútua colaboração, após longo tempo de separação de fato do casal,
mesmo sem prévia medida cautelar.
Entende-se por separação de fato a ruptura da vida em comum, em caráter
prolongado e contínuo, que denote intenção de rompimento da sociedade conjugal.
Prolongando-se por mais de um ano, serve de motivo para separação judicial, independentemente de quem seja o cônjuge culpado (Lei nº 6.515/77, art. 5º, § 1º). Se superior
a dois anos, motiva o divórcio direto (Lei nº 6.515/77, art. 40). Trata-se de quebra do
dever de coabitação, praticada por um ou por ambos os cônjuges, independentemente
de autorização judicial.
O regime da comunhão pressupõe efetiva convivência do marido e da mulher,
fazendo presumir a colaboração na aquisição dos bens, se o regime era o da comunhão.
Diante da separação de fato, cada um passando a agir isoladamente na prática do esforço
para aumento do patrimônio, não faz sentido, a não ser por puro rigor formal, exigir
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partilha dos bens dos separados de fato, especialmente quando já tenham novas uniões.
Como assinala SÉRGIO GISCHKOW PEREIRA, criticando a posição de resistência
em admitir cesse a regra da comunhão após prolongada e indiscutível separação de
fato, “se o essencial desapareceu, ou seja, o amor, o respeito, a vida em comum, o
mútuo auxílio, que sentido de justiça há em privilegiar o secundário, que é o prisma
puramente financeiro, patrimonial, material, econômico?”(1)
Sem sociedade não há comunhão
Essas lições foram bem lembradas em acórdão da 3ª Câmara de Direito Privado
do Tribunal de Justiça de São Paulo, relator des. SILVÉRIO RIBEIRO, ressaltando: “...não
coaduna com os princípios de Justiça efetuar a partilha de patrimônio auferido por
apenas um dos cônjuges, sem a ajuda do consorte, em razão de separação de fato
prolongada, situação que geraria enriquecimento ilícito àquele que, de forma alguma,
teria contribuído para a geração de riqueza. O fundamental no regime da comunhão
de bens é o animus societatis e a mútua contribuição para a formação de um patrimônio
comum. Portanto, sem a idéia de sociedades e sem a união de esforços do casal para
a formação desse patrimônio, afigurar-se-ia injusto, ilícito e imoral proceder ao partilhamento de bens conseguidos por um só dos cônjuges, estando o outro afastado da
luta para a aquisição dos mesmos”.(2)
A casuística se estende a inúmeras situações que deixam patente o sentido do
justo em não mais aplicar regras de comunhão de bens quando falte, entre os cônjuges
separados de fato, aquele vínculo associativo inerente à constância da vida em comum.
Não raro a aquisição de determinado bem se dá com a ajuda de terceiro, com quem
o separado passou a viver maritalmente.
Assim, em caso de pedido de alvará para alienação de bem não mencionado no
processo de divórcio, comprovada a aquisição pela mulher após a separação de fato
do casal, sem qualquer contribuição do marido, o tribunal entendeu que não houve
comunicação de referido bem, o que autoriza sua venda pela titular, pois “os bens
adquiridos por um dos cônjuges, no período de comprovada separação de fato, não se
comunicam, independentemente do regime”.(3)
De igual forma, em hipótese de bem recebido pela mulher por herança paterna,
após vários anos de separação, entendeu-se não caber ao marido qualquer direito de
meação sobre aquele quinhão hereditário.(4)
Mesmo em caso de bigamia, não obstante a nulidade do segundo casamento,
admitiu-se meação exclusiva do bem pela segunda mulher, já que a primeira se achava
separada de fato do marido há muitos anos, sem qualquer colaboração na aquisição
do patrimônio em disputa. Na fundamentação do acórdão constou que “a lide deve ser
solucionada não pelo dogma da moralidade do matrimônio, mas sim pelo direito das
obrigações...” e que decorre da “juridicidade da coabitação e pela lógica do sentido
familiar” inerente à segunda união, quando adquiridos os bens.(5)
(1)
(2)
(3)
(4)
(5)
“Tendências Modernas do Direito de Família”, RT 628/30.
TJSP, 3ª Câm., Ap. Cível nº 188.670-1/4, j. 11.05.93, v.u. No mesmo sentido: TJSP, 7ª Câm., Ap. Cível nº 170.028-1, rel.
CAMPOS MELLO, v.u., j. 05.08.92, RJTJESP 141/82. Confirmando a tese: STJ, 4ª Turma, REsp. nº 86.302/RS, rel. min.
BARROS MONTEIRO, j. 17.06.99, v.u.
TJSP, 1ª Câm. de Direito Privado, Ap. nº 53.656-4, rel. LAERTE NORDI, j. 08.09.98, v.u., JTJ 213/9.
TJSP, 8ª Câm. de Direito Privado, Ap. Cível nº 6.994-4, rel. CESAR LACERDA, j. 11.02.98, v.u., JTJ 213/17.
TJSP, 3ª Câm. de Direito Privado, Ap. nº 041.784-4/1, rel. ÊNIO SANTARELLI ZULIANI, j. 11.08.98, v.u., RT 760/232.
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Do Superior Tribunal de Justiça colhem-se reiterados julgamentos nesse mesmo
tom de incomunicabilidade dos bens em casos de longa separação de fato do casal,
sempre em resguardo ao princípio de que o casamento, “para dar azo aos efeitos
jurídicos do regime matrimonial estabelecido, pressupõe coabitação. Sem convivência,
inexiste casamento gerando direitos e obrigações”.(6)
Como bem pondera TEREZA ARRUDA ALVIM, em lúcido parecer sobre o tema, “a
ratio essendi das regras relativas à comunhão de bens entre cônjuges é a existência real
e concreta da vida em comum”, por isso que “carece de sentido, quer jurídico, quer moral,
aplicar-se um regime de comunhão a um ‘casal’ que nem mais ‘casal’ é, ou era, por
ausência absoluta de affectio maritalis...”. Anota que “a doutrina e a jurisprudência mais
atuais têm propendido, embora às vezes de forma não expressa, a estabelecer uma
diferenciação nítida entre o casamento que existe formalmente e de fato (= casamento
formalizado + vida em comum) e o casamento que não existe, senão formalmente”.(7)
Com efeito, já não há contemplar regras de comunhão quando “a separação de
fato representa a ruptura do elemento ético” no casamento.(8)
Dar a cada um o que é seu
Trata-se, simplesmente, de aplicar a Justiça, dando-se adequada resposta aos
casos concretos, como bem justifica MARIA ARACY MENEZES DA COSTA, após lembrar as diversas tendências da jurisprudência, relativamente ao regime de bens na
separação de fato. Ressalta que a regra quanto ao momento para cessação do regime
de bens é a separação judicial. Mas subsiste a exceção da separação de fato, que, não
sendo eventual nem provisória, merece atenção do julgador, para que não se comuniquem os bens adquiridos durante esse tempo.(9)
Nas sábias palavras de ROLF MADALENO, “o animus dissociativo da sociedade
conjugal, rota pelos corpos e espíritos que se afastam e dispersam, quando os casados
se desgarram, confere ao ato da fática separação efeitos que se operam tão sólidos
como se da própria separação já se antecipasse”.(10)
Em suma, ressalvado o entendimento da doutrina tradicional que, apegado à
regra da irrevogabilidade do regime de bens (CC, art. 230), via no casamento subsistência de todos os efeitos matrimoniais enquanto não ocorresse a sua efetiva dissolução,(11) tem-se a concluir, na esteira dos precedentes e dos ensinamentos mais atuais,
que não faz sentido perpetuar a regra da comunicabilidade dos bens diante de casamento que já se encontre desfeito na prática, pela separação de fato do casal, sob pena
de indébito locupletamento do cônjuge que não deu colaboração ao ato aquisitivo do
patrimônio acrescido.
REsp. nº 86.302/RS, 4ª Turma, rel. min. BARROS MONTEIRO, j. 17.06.99, v.u., lembrando precedentes: REsp. nº 60.820-1/
RJ e REsp. nº 127.077/ES, relatados pelo min. RUY ROSADO DE AGUIAR.
“Menção de patrimônio adquirido por um dos cônjuges durante a separação de fato”, parecer na Revista de Processo 70/
166.
(8)
MOURA, Mario Aguar. “Separação de fato dos cônjuges e efeitos do regime de bens”, Repertório IOB de Jurisprudência nº
12/91, p. 252. Sua conclusão: “Se qualquer dos cônjuges adquire bens, a título oneroso ou a gratuito, os bens deverão
pertencer-lhe com exclusividade, não entrando no elenco dos bens, porventura comunicáveis, por terem sido adquiridos ao
longo do casamento íntegro”.
(9)
“O regime de bens na separação de fato”, Ajuris nº 68/191.
(10)
“Casamento - Regime de bens. Efeito patrimonial da separação de fato”, RJ 234/5.
(11)
Para EDUARDO DE OLIVEIRA LEITE, invocando lições doutrinárias, os efeitos do casamento prosseguem até a separação ou
o divórcio judicial, não gerando efeito algum a mera separação de fato (“Aquisição de bens durante a separação de fato”,
Revista de Direito Civil nº 59/139).
(6)
(7)
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ALEXANDRE BETINI
Juiz de Direito/SP
1 - Introdução
O reconhecimento da filiação pode se dar de forma voluntária ou coativa, também
chamada de judicial. Será voluntário quando a declaração ocorrer no próprio termo de
nascimento, mediante escritura pública, por testamento (Código Civil, artigo 357), por
escrito particular ou quando declarada a paternidade perante o juiz no procedimento
previsto na Lei nº 8.560/92. Será coativo ou judicial quando proposta a ação de investigação de paternidade, que compete aos filhos em face dos supostos pais, seus herdeiros ou legatários para que haja a declaração da filiação.
Os filhos adulterinos ou incestuosos não podiam manejar o reconhecimento
do status familiae quando entrou em vigor o Código Civil de 1916, visto que o
artigo 363 ressalvava os casos do artigo 183, I a VI, como impeditivos para a
propositura da ação. Da mesma forma, o pedido não podia ser formulado durante
a constância da sociedade conjugal do investigado. No entanto, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, tais discriminações foram afastadas, uma
vez que o artigo 227, § 6º proibiu qualquer designação ofensiva à filiação, seja ela
proveniente de casamento ou não. Referido dispositivo constitucional foi complementado pelo artigo 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), que
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determinou que o direito ao reconhecimento da filiação não sofra qualquer restrição.
2 - Escorço histórico
O tema em análise sofreu diversas interpretações durante séculos. O estudo de sua
evolução é de suma importância para a compreensão de seu estágio atual e para a
interpretação dos dispositivos que lhe são peculiares, além de servir de base para as
legislações futuras. Segundo ORLANDO GOMES,(1) “a proibição de investigar a paternidade ilegítima foi estabelecida em algumas legislações sob o fundamento principal
de que abriria a porta a explorações que atentariam contra a paz e a tranqüilidade das
famílias. O receio de abusos e o temor de escândalos determinaram a interdição
absoluta, prevalecendo sobre outras razões inspiradas no interesse social, que indicavam apenas a necessidade de cautelas maiores para a permissão”. A princípio, o Direito
Canônico previa a investigação estritamente para fins alimentares, mesmo para os
filhos espúrios, sob o fundamento de corresponder tal direito a uma norma natural.(2)
Contudo, o fortalecimento da Igreja importou em tratamento mais rigoroso, sendo
restringidos pelo Papa LEÃO III os direitos que lhes concedera a codificação justinianéia,
a pretexto de combater o concubinato.(3)
No Direito romano, o filho natural pertencia à família materna, sendo-lhe reconhecido posteriormente o direito a alimentos e a sucessão legítima e testamentária.
O Direito português das Ordenações dispensava tratamento diverso entre a família
aristocrática e a plebéia. Para a primeira, prevalecia o interesse do Estado em impedir
o reconhecimento do direito sucessório dos filhos naturais, apenas sendo isso possível
para fins alimentares. Para a segunda, reconhecia o direito a herança e alimentos.(4)
No Direito francês, a Lei 12 de Brumário proibiu a investigação da paternidade.
O artigo 340 do Código Napoleão também a vedou, salvo em caso de rapto, admitindo,
porém, o reconhecimento voluntário dos filhos pelos pais. Protegia-se a família em
detrimento dos filhos. Tal situação perdurou até o advento da Lei francesa de 16 de
novembro de 1912, que modificou o artigo 340 do Código Civil, admitindo a investigação de paternidade em casos especiais, como quando a mãe vivia em concubinato
com o pai na época da concepção do filho.
O Código Civil português de 1867 proibia a investigação de paternidade, salvo em
caso de escrito do pai, posse de estado, estupro ou rapto coincidente com a concepção,
admitindo, entretanto, o reconhecimento espontâneo, à exceção dos filhos espúrios. O
Código Civil italiano de 1865 admitiu o reconhecimento espontâneo dos filhos naturais,
vedando a perquirição da paternidade. O Código chileno admitia o reconhecimento dos
ilegítimos, possibilitando a investigação de paternidade apenas para fins de alimentos. Já
o Código argentino de 1860 possibilitou a pesquisa da paternidade. O Código uruguaio
reconheceu a possibilidade da investigação nas hipóteses de rapto ou violação.(5)
A legislação alemã assegurou a investigação para efeito de garantir ao filho natural
exclusivamente o direito a alimentos. Na Suíça, previram-se duas espécies de investigação
de paternidade, uma com rigor na produção de provas para reconhecimento da filiação
(1)
(2)
(3)
(4)
(5)
Direito de Família, p. 345.
WALD, Arnoldo, O Novo Direito de Família, p. 174.
CAIO MARIO, Instituições de Direito Civil, p. 197.
WALD, Arnoldo, ob. cit., p. 174.
VIANA, Marco Aurélio S., Direito de Família, p. 235.
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com todos os direitos e outra, mais célere e simples, para fins estritamente alimentares.(6)
Destarte, com o passar do tempo, as legislações começaram a admitir, ainda que
de forma restritiva, a investigação de paternidade, verificando-se uma tendência generalizada de ampliar os casos em que se admitia seu reconhecimento. Assim é que
a jurisprudência francesa ampliou as hipóteses acima referidas para os casos de sedução por promessa de casamento, abuso de autoridade e manobras dolosas. A lei
portuguesa de 25 de dezembro de 1910, seguindo essa tendência, permitiu a investigação de paternidade.(7)
No Brasil, vigorou o sistema português das Ordenações até o advento da Lei nº
463, de 2 de setembro de 1847, que admitiu o direito sucessório dos filhos naturais,
desde que reconhecidos por escritura pública ou testamento. Posteriormente, o Decreto
181, de 1890, autorizou a investigação de paternidade em determinados casos.(8)
Ao elaborar o anteprojeto do Código Civil, CLÓVIS BEVILÁQUA, seguindo a tendência liberal da época, defendeu a causa dos filhos naturais, possibilitando o reconhecimento coativo da filiação por meio da ação de investigação de paternidade, embora
com as restrições aos adulterinos e incestuosos, tudo em nome da paz doméstica, em
detrimento da dignidade da pessoa humana, nos casos previstos no artigo 363 do
Código Civil de 1916.
Assim, no dizer de ORLANDO GOMES,(9) “prosperou, afinal, o sistema permissivo,
apoiado na razão fundamental de que era absurdo isentar os pais do dever de amparar
os filhos, privando estes do direito de obterem judicialmente a declaração da paternidade”. MARCO AURÉLIO S. VIANA abona a tese: “Não se pode negar que estamos
diante de uma nova ordem em matéria de filiação, tendo havido um deslocamento da
tutela jurídica no âmbito do direito de família. A disciplina jurídica da família e da
filiação antes se voltava para a máxima proteção da paz doméstica, considerando-se
a família um bem em si mesmo. Hoje mantém-se inalterada a importância da família
para a formação da personalidade do indivíduo, mas prevalece a tutela da dignidade
humana. A toda evidência que não se pode mais solucionar questões envolvendo a
filiação sem ter em mente as transformações havidas” (ob. cit., p. 236).
Contudo, a evolução não parou por aí, uma vez que os ordenamentos jurídicos,
dentre os quais o brasileiro, caminham para uma abertura cada vez maior, admitindo,
sem restrições, a propositura da ação de investigação de paternidade sem delimitação
dos casos, possibilitando a ampla discussão dos casos concretos.
Como dito alhures, o artigo 363 do Código Civil brasileiro delimitava as hipóteses
em que se permitia a perquirição da paternidade, à exceção dos filhos adulterinos e
incestuosos. Além disso, não era possível o ajuizamento da ação em face do suposto
pai durante a constância de seu matrimônio.
O Decreto-Lei nº 4.737, de 24 de setembro de 1942, e a Lei nº 883, de 21 de
outubro de 1949, admitiram a investigação movida pelos filhos adulterinos, desde
que dissolvida a sociedade conjugal do investigado, modificando em parte a regra do
artigo 363 do Código Civil, o que significou alguma evolução em relação ao Direito
anterior. O artigo 2º da Lei nº 883/49 concedia ao filho adulterino metade da herança
a que tinha direito o filho legítimo, mas o artigo 51 da Lei nº 6.515, de 26 de dezembro
de 1977, deu nova redação ao dispositivo e determinou que o direito à herança seja
(6)
(7)
(8)
(9)
WALD, Arnoldo, ob. cit., p. 175.
VIANA, Marco Aurélio S., ob. cit., p. 235.
WALD, Arnoldo, ob. cit., p. 175; CAIO MARIO, ob. cit., p. 198.
Ob. cit., p. 345.
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reconhecido em igualdade de condições, seja qual for a natureza da filiação.
Com o advento da Constituição Federal de 1988 (artigo 227, § 6º), bem como com
a revogação do artigo 358 do Código Civil (este impedia o reconhecimento de filhos
adulterinos e incestuosos) pela Lei nº 7.841, de 17 de outubro de 1989, o reconhecimento dos filhos, mesmo os adulterinos e os incestuosos, ainda que não esteja dissolvida a sociedade conjugal do investigado, tornou-se possível mediante a propositura da
ação de investigação de paternidade, tendo em vista que não mais prevaleciam as
restrições anteriormente existentes.
O eminente ministro do Superior Tribunal de Justiça, SÁLVIO DE FIGUEIREDO
TEIXEIRA, relatou brilhante Acórdão no Recurso Especial nº 7.631, de 17 de setembro
de 1991, citado por ARNOLDO WALD,(10) do seguinte teor: “I - Em face da nova ordem
constitucional, que obriga o princípio da igualdade jurídica dos filhos, possível é o
ajuizamento da ação investigatória contra genitor casado. II - Em se tratando de direitos
fundamentais de proteção à família e à filiação, os preceitos constitucionais devem
merecer exegese liberal e construtiva, que repudie discriminações incompatíveis com
o desenvolvimento social e a evolução jurídica”.
Mais um excelente avanço foi dado pelo legislador pátrio, ao dispor no artigo 27
do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90) que o reconhecimento do
estado de filiação pode ser exercitado sem qualquer restrição.
Com isso, entendo que os casos de investigação de paternidade previstos no artigo
363 do Código Civil, e que serão mais bem abordados no tópico seguinte, não são
apresentados em rol numerus clausus, ou seja, exaustivos, visto que o artigo 27 do
Estatuto da Criança e do Adolescente impediu qualquer espécie de restrição ao pedido
de investigação de paternidade.
Outro argumento em favor dessa tese é o avanço da biologia genética que permite
apontar a paternidade com quase nenhuma margem de erro. Assim se manifestou o
insigne SÍLVIO DE SALVO VENOSA em sua recente e brilhante obra:(11) “Os princípios
tradicionais, concubinato, rapto, relações sexuais, início de prova escrita, devem ser
vistos atualmente não mais como numerus clausus, mas como elementos subsidiários
e somente devem ser utilizados isolada ou conjuntamente quando se torna impossível,
falível ou incerta a perícia genética. Em síntese, a prova técnica coloca em segundo
plano a prova das relações sexuais ou qualquer outra em matéria de paternidade”.
Tanto é assim, que a jurisprudência tem alargado os casos em que se permite investigar
a paternidade, como ocorre na chamada posse do estado de filho.
Essa tese também é defendida por MARCO AURÉLIO S. VIANA,(12) nos seguintes
termos: “Confrontando o enunciado do artigo 27 com a norma contida no art. 363 do
Código Civil, não é difícil constatar que houve significativo avanço. Na 1ª edição sustentamos a plena vigência do art. 363, e, por via de conseqüência, que prevalecia a enumeração taxativa contida no dispositivo legal. O diploma civil estatuía que só se permitia litigar
em juízo nos casos que o art. 363 contempla, e que eram: concubinato, rapto, relações
sexuais no período da concepção e escrito do suposto pai, reconhecendo a paternidade.
Parece-nos, contudo, que devemos rever nossa posição, alertados pela lição de GUSTAVO
TEPEDINO, que, estudando a espécie, observou que não mais se faz necessário prefigurarem as condições enunciadas no art. 363, desde que possa ser evidenciada a paternidade. Efetivamente o art. 27 diz textualmente que o direito de ver, reconhecido o estado de
(10)
(11)
(12)
Ob. cit., pp. 182 e 183.
Direito de Família, pp.246 e 247.
Ob. cit., p. 242.
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filiação pode ser exercitado sem qualquer restrição. A nosso ver, prevalece a livre investigação da paternidade, sem a necessidade da prova da existência dos pressupostos
objetivos ou condições de admissibilidade anteriores, que o art. 363 consagrava”.
Outros autores, porém, entendem que o rol do artigo 363 do Código Civil é
taxativo, não possibilitando interpretação extensiva, tais como ARNOLDO WALD, CAIO
MARIO DA SILVA PEREIRA, ANTÔNIO JOSÉ DE SOUZA LEVENHAGEN e ORLANDO
GOMES. Este último autor, em que pese seu notável conhecimento e inegável autoridade, entra em contradição ao afirmar que o direito pátrio adotou o sistema da enunciação taxativa, eis que posteriormente acaba por admitir que a posse do estado de
filho, a ser analisada adiante, além do preceituado na Lei nº 8.069/90, inovou-se a
respeito do tema, admitindo-a como fundamento da ação investigatória,(13) o que em
última análise, significa dizer que o rol do artigo 363 do Código Civil não é exaustivo.
Por fim, acompanhando a evolução histórica e a tese mais liberal e mais moderna no sentido de ampliar os casos de propositura da ação de investigação de paternidade, com a inexistência de qualquer restrição, o que se pode fazer com a nãoespecificação dos casos em que seu ajuizamento é cabível, o novo Código Civil (Lei
nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002), que entrará em vigor em 11 de janeiro de 2003
e será objeto de melhor análise em tópico separado, previu a investigação de paternidade sem elencar os casos em que é possível a propositura da ação, o que, como
vimos, é um avanço inafastável.
3 - Hipóteses
Como vimos no tópico anterior, as hipóteses em que cabe a propositura da ação de
investigação de paternidade não se encerram naquelas previstas no rol do artigo 363 do
Código Civil brasileiro. Além disso, atualmente também os filhos adulterinos e incestuosos, ainda que na vigência do matrimônio do suposto pai, poderão manejar o pedido.
Perdeu muito a importância a previsão dos casos legais e os meios de defesa, uma
vez que os exames de HLA e DNA praticamente solucionam a questão, tanto para
concluir pela paternidade como para excluí-la, como veremos no tópico seguinte.
Contudo, iremos tratar dos casos legais e citar algumas outras situações em que
é cabível referida ação.
Em primeiro lugar, vale ressaltar que a demonstração pelo investigante de qualquer das hipóteses legais gera uma presunção iuris tantum, ou seja, relativa de paternidade, cabendo ao demandado demonstrar por todas as provas admitidas em direito
que não é o pai do requerente.
A primeira das hipóteses legais é a prevista no inciso I do artigo 363 do Código
Civil: se ao tempo da concepção a mãe estava concubinada com o pretendido pai.
PONTES DE MIRANDA(14) definiu concubinato como “união prolongada daqueles
que não se acham vinculados por matrimônio válido ou putativo”. SÍLVIO RODRIGUES(15)
definiu-o como “a união do homem e da mulher, de caráter mais ou menos prolongado,
para o fim de satisfação sexual e assistência mútua, que implica uma presumida
fidelidade da mulher ao homem”. ARNOLDO WALD(16) entende concubinato como
Ob. cit., pp. 346 e 347.
Tratado de Direito Privado, p. 88.
Direito de Família, p. 322.
(16)
Ob. cit., p. 176.
(13)
(14)
(15)
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“uma convivência sexual duradoura e notória entre um homem e uma mulher, que
mantêm uma certa fidelidade recíproca”.
Seja qual for a definição, o concubinato pode ser demonstrado por diversas formas, sendo relevantes a existência de relações sexuais, fidelidade da mulher e notoriedade da união. O Supremo Tribunal Federal dispensou o requisito da coabitação para
a caracterização do concubinato ao editar a Súmula 382, do seguinte teor: “A vida em
comum sob o mesmo teto, more uxorio, não é indispensável à caracterização do
concubinato”.
Importante também que fique delineado que a mulher não manteve relações
sexuais com outro homem e que o período da concepção coincide com o do concubinato da mãe do investigante com o suposto pai.
Comprovada a existência do concubinato, aparece a presunção legal da paternidade, mas atualmente a prova técnica demonstra de forma praticamente inequívoca
a realidade dos fatos, e tal situação, o concubinato, deverá ser reforçada pelo exame
pericial, que dirá se o investigado é pai ou não do investigante.
Normalmente o réu se defende mediante a alegação de inexistência de concubinato, não coincidência do seu período com o da concepção, impossibilidade física de
ser o pai do autor em razão de internamento em hospital, viagem ou impotência
acidental no momento da concepção(17) e pela chamada exceptio plurium concubentium. Esta última defesa consiste na alegação de que a mãe do investigante mantinha
relações sexuais com outro ou outros homens no período da concepção. O ônus da
prova desse fato é do réu, na forma do artigo 333, II, do Código de Processo Civil. Tal
defesa também pode ser apresentada nos demais casos legais. Sobre a exceptio, assim
se manifesta SÍLVIO DE SALVO VENOSA:(18) “Como já afirmamos, perante os modernos
métodos de investigação biológica, mormente o DNA, a exceptio perdeu a importância
que teve no passado. A exceção de plúrimas relações sexuais cumpriu sua função,
enquanto a ciência não atingiu o grau de evolução atual, que permite a perfeita
identificação da paternidade. No entanto, não sendo possível o exame genético, o
recurso aos princípios da exceção deve ser utilizado. Cabe a quem alega, portanto ao
réu, o ônus da prova, nesse caso”.
A segunda hipótese é o rapto da mãe pelo suposto pai no período da concepção
(art. 363, II, Código Civil).
Como lembra CARLOS ROBERTO GONÇALVES,(19) “o rapto tem, em regra, fim
libidinoso. Se coincidiu com a época da concepção, faz presumir a paternidade, tenha
sido violento ou consensual (a lei não distingue)”. O que deve ficar demonstrada é a
ocorrência do rapto no período da concepção, não a existência de relações sexuais, já
presumida pela lei. Não há necessidade da condenação criminal do raptor. O rapto pode
ocorrer por violência, fraude, sedução ou emboscada.
A terceira hipótese, e a mais comum, é a existência de relações sexuais entre a
mãe do investigante e o suposto pai no período da concepção (Código Civil, art. 363,
II, 2ª parte). Basta apenas uma relação sexual, desde que essa coincida com o período
da concepção; o pedido deverá ser processado e o juiz deverá analisar os demais meios
probatórios, dentre os quais a perícia hematológica.
Segundo CAIO MÁRIO,(20) “levada a exigência a rigor, ter-se-ia de dar a prova
DINIZ, Maria Helena, Curso de Direito Civil Brasileiro, p. 333.
Ob. cit., p. 247.
Sinopses Jurídicas, p. 116.
(20)
Ob. cit., pp. 201 e 202.
(17)
(18)
(19)
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direta do comércio sexual. Como é praticamente impossível, admite-se a prova indireta,
ou indiciária. A tendência liberal de nossos juristas, propensos à abertura ao reconhecimento judicial da paternidade, manifesta-se na aceitação cada vez maior das facilidades de prova das relações sexuais como fundamento da sentença. Daí a recomendação de prudência ao julgador, para que a liberalidade na apreciação das provas não
se converta em estímulo a ações que se articulem como assaltos ousados às fortunas,
como observava AFRANIO PEIXOTO”.
Mesmo que as relações sexuais tenham ocorrido com um prostituta, provado que
sua existência se deu no período da concepção, a ação é admissível.
A exceptio plurium concubentium também poderá ser alegada como defesa nessa
hipótese, embora a prova pericial possa esclarecer definitivamente a questão. Essa
defesa só serve atualmente para afastar a presunção legal da paternidade, mas será
analisada em conjunto com as demais provas dos autos. Além disso, o investigado
poderá provar a impotência, devendo esta ser contemporânea ao período da concepção e demonstrada por perícia médica. No dizer de ARNOLDO WALD,(21) “em que pese,
no entanto, a dificuldade na prova da existência das relações sexuais ou, ainda, a
comprovação de que a mulher não era honesta, mantendo relações sexuais com outras
pessoas na mesma época, a moderna ciência dirime, hoje, qualquer controvérsia a
respeito da afirmada ou negada paternidade. Os exames genéticos através dos métodos modernos HLA e DNA tornam secundárias, mesmo inúteis, outras provas, pois as
probabilidades de afirmar ou negar a paternidade são de mais de 99%. Além do
sangue, os exames podem ser feitos também em fios de cabelo, pedaços de pele,
sêmen etc.”.
Por fim, prevê a lei como última hipótese o escrito do suposto pai reconhecendo
expressamente a paternidade. Pode ser carta, bilhete, nota particular ou qualquer declaração, desde que o reconhecimento fique demonstrado de forma expressa. A doutrina
também cataloga os testamentos nulos, anulados e revogados e quaisquer outros documentos públicos ou particulares. Além disso, é importante que a declaração emane do
pai. Pode ter sido escrita por outra pessoa, ou até mesmo a máquina, desde que o pai
tenha assinado o documento. LEVENHAGEN(22) nos dá o seguinte exemplo: “Um depoimento prestado em juízo, por exemplo, em que a pessoa expressamente tenha declarado
ser o pai do investigante, será um documento válido, para instruir a ação”. Contudo, “um
documento em que a pessoa apenas implicitamente tenha deixado transparecer sua
paternidade, será imprestável, porque a Lei exige que a declaração seja expressa, isto é,
que tenha força de confissão, feita de maneira categórica e cabal”.
Assim, a declaração não pode ser ambígua, vaga, equívoca, incerta, duvidosa,
mas clara, precisa, exata, transparente e expressa, formal e séria.
O réu poderá demonstrar a falsidade material e ideológica da declaração e, ainda,
defeito da declaração de vontade.(23)
É necessário que a declaração não seja voluntária, eis que não estaríamos diante
da hipótese legal. Aliás, se o escrito particular com o reconhecimento expresso da
paternidade estiver autenticado, ou com firma reconhecida, constitui por si só modo
voluntário de reconhecimento do filho, podendo ser averbado no registro civil, nos
termos do artigo 1º, II, da Lei nº 8.560/92.(24)
Ob. cit., p. 178.
Ob. cit., p. 212.
CAIO MÁRIO, ob. cit., p. 202.
(24)
GONÇALVES, Carlos Roberto, ob. cit., pp. 116 e 117.
(21)
(22)
(23)
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Entretanto, como já dito insistentemente neste estudo, as hipóteses de investigação de paternidade não param por aí.
O fundamento mais lembrado pela doutrina e que não consta do Código, embora
conste de outras legislações alienígenas, é a chamada posse do estado de filho. É a
situação típica em que o suposto pai trata o investigante como seu filho, mantendo-o,
custeando seus estudos, comprando-lhe roupa, dispensando-lhe carinho e mantendo
este comportamento perante a sociedade, fazendo crer àqueles com quem convive,
vizinhos, amigos, parentes, que é mesmo o pai do investigante. Para a configuração
desta situação de fato são necessários alguns requisitos, como o nomen, ou seja, o filho
usa o nome do pai, tratactus, recebendo o investigante tratamento de filho pelo suposto
pai, e fama, gozando no meio social em que vive a fama de filho do investigado.
O projeto de CLÓVIS BEVILÁQUA previa, no artigo 427, I, a posse do estado de
filho como fundamento para a investigatória. Como prova isolada, não poderá ser
declarada a paternidade, mas sim se em conjunto com os demais elementos probatórios. O juiz deve ficar atento se realmente se trata de posse do estado de filho ou se
a conduta do investigado em relação ao investigante permaneceu em nível de solidariedade humana, piedade cristã ou sentimento de amizade.(25)
Podemos lembrar, como casos não previstos no Código Civil e que podem fundamentar o pedido de investigação de paternidade em conjunto com outras provas, a
sedução mediante fraude ou abuso de autoridade, promessa de casamento e estupro,
hipóteses previstas nos Códigos do México (1927), Peru (1936) e Itália (1942).(26)
O artigo 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente, ao vedar restrições à ação
de investigação de paternidade, autorizou a propositura dessa demanda em qualquer
dessas hipóteses citadas e não previstas na Código Civil brasileiro, em seu artigo 363.
4 - Provas
Todos os meios legais, além dos moralmente legítimos, ainda que não previstos,
são hábeis para provar a filiação, na forma do artigo 332 do Código de Processo Civil.
A prova testemunhal deve ser acolhida com certa reserva, uma vez que as testemunhas podem ser influenciadas pelo sentimento de amizade em relação à parte que
a arrolou.(27) Isso exige do julgador cautela ao analisar os depoimentos. Dependendo do
fundamento utilizado, poderá até ser usada com exclusividade, principalmente se o
demandado se recusa a participar do exame pericial.
O exame prosopográfico consiste na ampliação de fotografias do investigante e
do investigado, justapondo-se uma a outra para comparação de traços de fisionomia,
mas não autoriza o reconhecimento da relação de parentesco, visto que a semelhança
não induz a afirmação do vínculo jurídico.
Também serviu como base de prova o exame odontológico, hoje completamente
em desuso, ao menos para a identificação da paternidade, já que continua sendo
utilizado em outros ramos da medicina legal.
No que tange ao exame de sangue, MARIA HELENA DINIZ,(28) apoiada na lição de
SÍLVIO RODRIGUES, alega que serve para excluir a paternidade se investigante e
CAIO MÁRIO, ob. cit., p. 203.
SILVIO RODRIGUES, ob. cit., p. 320.
DINIZ, Maria Helena, ob. cit., p. 334.
(28)
Ob. cit., pp. 334/335.
(25)
(26)
(27)
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investigado pertencem a diverso grupo sangüíneo e, apenas e tão-somente, é aceito
como mera possibilidade de relação biológica da paternidade, sob o fundamento de que
os tipos sangüíneos e o fator RH são encontrados em milhões de pessoas. Contudo, o
próprio mestre SÍLVIO RODRIGUES admite que tal asserção, já há algum tempo, não é mais
verdadeira. Segundo este,(29) “isso porque, com a descoberta do fator HLA (Human Leucocytes
Antigens), e hoje com o teste DNA, esse quadro se alterou fundamentalmente, pois aquela
prova incerta e duvidosa se tornou precisa e praticamente indiscutível. Ou seja, a prova
testemunhal e circunstancial, que era ordinariamente aquela em que se baseava o julgador, tornou-se totalmente secundária, pois a comparação do sangue dos genitores leva a
um grau de probabilidade enorme, tanto para excluir, como para incluir a paternidade”.
No mesmo sentido as lições de SÍLVIO DE SALVO VENOSA(30) e CAIO MÁRIO.(31)
Realmente. O exame com base na análise do sangue aponta com probabilidade
superior a 98 % a existência da relação de parentesco, podendo chegar a 99,99% tal
probabilidade.
Por fim, o avanço da ciência chegou ao grau máximo em matéria de identificação
da paternidade com a descoberta de um fator baseado na determinação da paternidade por intermédio das impressões digitais do DNA (ácido desoxirribonucléico) que
permite concluir com absoluta certeza e excluir a paternidade. É a chamada impressão
digital genética. O material para exame pode ser colhido em qualquer parte do corpo
que o contenha, como sêmen, raiz do cabelo, pele, placenta, mas o mais comum é a
utilização do sangue, por ser mais fácil sua obtenção. A probabilidade nesse exame é
superior a 99,99%, o que significa grau de certeza absoluta de paternidade.
Sobre o assunto, assim se manifestou a jurisprudência: “Na investigação de paternidade, a prova científica relativa à perícia médica feita pelo método DNA, direta que é,
na medida em que seus resultados se mostram categoricamente afirmativos, ou excludentes da paternidade, tem ela peso incontestável na formação do livre convencimento do
julgador, mormente quando vem completar farta prova indiciária” (TJ/MG, 2ª Câmara,
Ap. nº 11.223, rel. des. BERNARDINO GODINHO, Ac. 24.03.1994, RF 332/331).
Não se pode perder de vista que ninguém pode ser obrigado a se submeter ao
exame, fornecendo sangue, eis que não existe previsão legal para coagir o demandado
a tanto, na forma do artigo 5º, II, da Constituição Federal. Sua integridade física deve
ser preservada. No entanto, essa conduta será levada em consideração como receio da
descoberta da verdade, e cria uma presunção a favor da paternidade, ainda mais se
existem outros elementos indiciários. Neste sentido: “Embora ninguém possa ser coagido a exame ou inspeção corporal, o investigado que se recusa ao exame pericial de
verificação da paternidade deixa presumir, contra ele, a veracidade da imputação
(Código de Processo Civil, art. 359, II), por aplicação analógica (Código de Processo
Civil, art. 126). Presunção harmoniosa com o conjunto da prova”.(32)
Em caso de demonstração das relações sexuais, a prova direta é muito difícil,
quase impossível, vez que essas geralmente se realizam às ocultas, o que possibilita a
aceitação de indícios e presunções, desde que certos e seguros. Obviamente, a prova
deverá ser analisada com a cautela que o caso concreto requer. Assim, o magistrado
não deve ser rigoroso no exame das provas da relação sexual, mas deve ter prudência
redobrada em tais casos.
Ob. cit., p. 326.
Ob. cit., pp. 249 e 250.
Ob. cit., pp. 204 e 205.
(32)
WALD, Arnoldo, ob. cit., p. 468.
(29)
(30)
(31)
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De qualquer forma, no caso de realização da perícia, por se tratar de prova
técnica, poderão as partes indicar assistentes técnicos e apresentar quesitos (Código de
Processo Civil, artigo 421, §1º, I e II).
Não se pode perder de vista, também, que o exame de DNA praticamente afastou
qualquer discussão sobre a chamada exceptio plurium concubentium, eis que demonstra de forma absoluta a paternidade perquirida.
5 - Eficácia e efeitos do reconhecimento
A eficácia da sentença que julga procedente a ação de investigação de paternidade
é erga omnes e produz efeitos ex tunc, ou seja, retroativos à data do nascimento, ou, se
o caso, à data da concepção, isto porque a tutela judicial nesta ação é meramente
declarativa, produzindo a coisa julgada material com o trânsito em julgado. Por isso, a
sentença que julga a ação improcedente por falta de prova impede o ajuizamento de nova
demanda para a realização do exame de DNA (TJ/MG, Ap. nº 9.909/3, 2ª T., rel. des.
SÉRGIO LELLIS SANTIAGO, Ac. nº 22.06. 1993, Jur. Mineira 123/151). Da mesma forma,
o réu declarado pai em ação de investigação de paternidade, não pode tentar desfazer
tal situação por meio de ação negatória para provar sua impotência generandi (TJ/SP, Ap.
nº 146.814-1/4, rel. des. OLAVO SILVEIRA, Ac. nº 02.04.1992, RF 322/185).(33)
A decisão poderá ordenar que o filho se crie e eduque fora da companhia do pai
que lhe negou a qualidade de filho (Código Civil, artigo 366, 2ª parte).
O reconhecido adquire o direito de usar o nome do pai, que é imprescritível e
poderá ser solicitado seu acréscimo a qualquer tempo.(34) Contudo, o filho reconhecido
por um dos cônjuges não poderá residir no lar conjugal sem o consentimento do outro
(Código Civil, artigo 359). Nesse caso, o pai deverá prestar-lhe, fora de seu lar, toda a
assistência necessária, suportando os encargos alimentares correspondentes à condição social em que vive iguais aos que prestar ao filho do casal (Decreto-Lei nº 3.200,
de 19/04/1941, artigo 15).
O filho menor sujeitar-se-á ao pátrio poder e ficará sob o poder do genitor que o
reconheceu. Se ambos o reconheceram, ficará sob o poder da mãe, salvo se de tal
solução advier prejuízo ao menor, caso em que o juiz poderá deferir a guarda a outra
pessoa, de preferência da família dos genitores, ou mesmo poderá decidir de outro
modo, sempre no interesse do menor (Decreto-Lei nº 3.200/41, artigo 16).
O reconhecimento gera efeitos patrimoniais, equiparando-se o filho reconhecido
aos demais, sem soluções discriminatórias, criando para si o direito sucessório, de
pleitear alimentos, herança e ajuizar ação de nulidade de partilha.
6 - Questões processuais
A ação de investigação de paternidade se processa pelo rito ordinário, devendo
atender os requisitos do artigo 282 do Código de Processo Civil. A participação do
Ministério Público é obrigatória, devendo ser requerida sua intimação na inicial, nos
termos do artigo 82, II, do Código de Processo Civil, por se tratar de causa relativa ao
(33)
(34)
GOMES, Orlando, ob. cit., p. 356.
VENOSA, Sílvio de Salvo, ob. cit., p. 255.
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estado da pessoa. Quando a ação for cumulada com a de alimentos, a competência
será do foro do domicílio ou da residência do alimentando, conforme preceitua a
Súmula 1 do Superior Tribunal de Justiça. O autor deve protestar pela produção da prova
testemunhal, quando for o caso, e pela prova pericial, esta atualmente capaz de
concluir pela paternidade ou sua exclusão de forma absoluta.
Trata-se de ação de estado, personalíssima, indisponível e imprescritível, podendo
ser proposta contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, na forma do artigo
27 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
A legitimidade ativa é do filho. Caso seja menor impúbere, será representado pela
mãe ou tutor; se for menor púbere, será assistido; se for absolutamente incapaz por
demência, será representado pelo curador (Código Civil, artigos 7º e 84). Isso porque
o artigo 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente dispôs que o direito ao reconhecimento do estado de filiação é personalíssimo. Se porventura o interessado vier a
falecer antes da propositura da ação, seus herdeiros e sucessores não poderão ajuizála. Se após o ajuizamento, estes terão legitimidade para prosseguir na demanda no pólo
ativo. Não se pode perder de vista que a causa pode ser manejada, atualmente, por
qualquer filho, seja adulterino ou incestuoso, tendo em vista que o artigo 27 do Estatuto
da Criança e do Adolescente impede qualquer restrição ao pedido e o artigo 227, § 6º
da Constituição Federal vedou discriminações relativas à filiação.
No entanto, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu como válida a pretensão
dos filhos, substituindo o pai, em investigar a filiação deste, junto a avô (relação
avoenga), dirigindo a lide contra os herdeiros deste, especialmente em face da nova
Constituição e da inexistência de qualquer limitação no art. 363 do Código Civil (Superior Tribunal de Justiça, REsp. nº 269-RS, rel. min. WALDEMAR ZVEITER, DJU, 7 jun.
1990).(35) O Ministério Público só poderá propor a ação no caso do artigo 2º, § 4º da Lei
nº 8.560/92, como substituto processual.
A ação pode ser proposta para salvaguardar os interesses do nascituro, mesmo
antes do nascimento, mas após a concepção, na forma do artigos 4º, 2ª parte, 357,
parágrafo único do Código Civil e artigo 26, parágrafo único do Estatuto da Criança e
do Adolescente.
A legitimidade passiva é do pai ou de seus herdeiros. Caso o suposto pai tenha
falecido, deverão figurar como réus os herdeiros. Assim, se não tiver deixado descendentes ou ascendentes, a mulher será herdeira e deverá ser ré na respectiva ação. Da
mesma forma, se o indigitado pai também não era casado ao falecer, os bens serão
transferidos ao Município ou Distrito Federal (Código Civil, artigos 1603, V e 1619), caso
em que deverão figurar no pólo passivo. Se toda a herança vier a ser entregue aos
legatários, esses constarão do pólo passivo, salvo se concorrerem com outros herdeiros,
visto que o legado não será afetado pelo reconhecimento da filiação. O espólio jamais
possuirá legitimidade passiva por não ter personalidade jurídica, devendo ser citados
todos os herdeiros. Caso não sejam conhecidos, o investigante pedirá a citação por
edital, caso em que deverá ser nomeado curador especial aos supostos herdeiros, nos
termos do artigo 9º, II, do Código de Processo Civil. Neste sentido: RT 581/59.
Qualquer pessoa que tenha interesse econômico ou moral, ainda que não tenha
sido citada para a demanda, poderá contestar a ação, conforme previsão do artigo 365
do Código Civil, em consonância com o artigo 76 do mesmo estatuto. Assim, basta o
interesse econômico ou moral para que haja resistência ao pedido. Como exemplo,
(35)
GONÇALVES, Carlos Roberto, ob. cit., p. 114.
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poderá outro qualquer parente sucessível ter interesse econômico no desfecho da
demanda, caso em que poderá contestar a ação. Nesse caso, o interessado ingressará
na lide como assistente litisconsorcial (Código de Processo Civil, artigo 54).
Tratando-se de ação de estado, é imprescritível. Não se deve confundir a imprescritibilidade da ação com a prescritibilidade de seus efeitos patrimoniais. Assim, por
exemplo, se for proposta ação de investigação de paternidade cumulada com petição
de herança, aquela é imprescritível por determinação legal e por se tratar de ação de
estado, mas o efeito do reconhecimento da filiação que é possibilitar a petição de
herança, de fundo patrimonial, prescreve em 20 anos, na forma do artigo 177 do
Código Civil. Neste sentido, dispõe a Súmula 149 do Supremo Tribunal Federal: “É
imprescritível a ação de investigação de paternidade, mas não o é a de petição de
herança”. CARLOS ROBERTO GONÇALVES(36) entende que o prazo vintenário se inicia
no momento em que foi reconhecida a paternidade, já que, nesse momento, surge o
direito de ação. Contudo, existe entendimento no sentido de que o prazo se inicia na
data do falecimento do suposto pai, por não existir herança de pessoa viva.
Além disso, ela é indisponível, o que significa dizer que não gera o efeito da
revelia, conforme prevê o artigo 320, II, do Código de Processo Civil, impedindo o
julgamento antecipado da lide. Por isso, não pode ser objeto de renúncia nem de
transação. Porém, é válida a desistência da ação.
A sentença deverá ser averbada no Registro Civil, à margem do assento do
investigante, com o nome do pai e dos avós paternos.
Poderá ser cumulada com petição de herança, caso em que está implícita a
anulação da partilha se os bens já foram inventariados, devendo haver mesmo assim
pedido expresso, anulação de registro civil e alimentos. Neste último caso, doutrina e
jurisprudência divergem se os alimentos são devidos a partir da sentença ou da citação,
mas, como veremos no item relativo à jurisprudência comentada, tal debate se trava,
a meu ver, pela errônea interpretação do artigo 13, § 2º da Lei nº 5.478/68 (Lei de
Alimentos) e outros motivos que serão ali abordados.
O processo tramita em segredo de justiça (Estatuto da Criança e do Adolescente,
artigo 27 e Código de Processo Civil, artigo 155, II).
7 - Inseminação artificial
A questão da inseminação artificial é hoje um dos mais modernos temas do Direito
e exige do legislador a elaboração de normas consentâneas com a realidade atual.
Normalmente a filiação é proveniente do relacionamento sexual entre um homem
e uma mulher. Contudo, alguns fatores impedem a procriação, tais como a impossibilidade de cópula decorrente da impotência, esterilidade, vaginismo etc. As famílias que
desejam ter filhos, diante desse quadro, utilizam-se de modernas técnicas científicas
para que o esperma fecunde o óvulo da mulher e possibilite a gestação.
Ocorre que o problema não é tão simples assim. O sêmen, muitas vezes, pode não
ser do marido, mas de terceiro conhecido ou até mesmo desconhecido. E se a fecundação
se deu sem a concordância do marido, como resolver o problema da paternidade? E no
caso das mães de aluguel? São questões que o Direito deve prever e regular para
solucionar eventuais conflitos de forma a dar um tratamento especial aos casos concretos.
(36)
Ob. cit., p. 113.
Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 83-113, mar./abr.-2002
Quando o sêmen é cedido pelo próprio marido, a inseminação é homóloga;
quando por terceiro, é heteróloga.
O Código Civil brasileiro em vigor não soluciona o problema. No entanto, como
veremos no próximo tópico, o novo Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002)
regulou a matéria em alguns aspectos, podendo servir ao julgador, até antes de sua
entrada em vigor, como parâmetro para solucionar os casos que surgirem de lege ferenda.
Atualmente, se o marido não consentiu na inseminação heteróloga, poderá impugnar a paternidade; se com seu consentimento, não poderá impugná-la. Porém, o
filho poderá investigar a paternidade sem restrições, conforme prevê o artigo 27 do
Estatuto da Criança e do Adolescente, o que significa que poderá fazê-lo ainda que o
marido tenha consentido na inseminação heteróloga.
SÍLVIO DE SALVO VENOSA(37) aborda a questão com maestria e lembra que o
legislador deve tomar o cuidado de regular o tema sem dificultar a doação de esperma
por terceiros, para não inviabilizar a filiação pelos casais que têm problemas. Cita o
projeto preliminar da União Européia por intermédio de EDUARDO A. ZANNONI, do
seguinte teor: “Nenhuma relação de filiação poderá se estabelecer entre os doadores
de gametas e o filho concebido como resultado da procriação. Nenhum procedimento
por iniciativa do filho poderá ser dirigido contra um doador ou por este contra um filho”.
No que tange às chamadas “barrigas de aluguel”, onde a fecundação ocorre em
ventre alheio, se houver contrato nesse sentido, esse será nulo, porque imoral seu objeto
e a obrigação dele decorrente pode ser, considerada, no máximo, obrigação natural.(38)
É importante frisar mais uma vez: em caso de inseminação heteróloga, havendo ou
não o consentimento do marido, o filho poderá investigar a paternidade, uma vez que o
artigo 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente vedou qualquer restrição a tal direito.
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8 - Novo Código Civil
A Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, publicada no Diário Oficial da União no dia
11 de janeiro de 2002, instituiu o novo Código Civil brasileiro e entrará em vigor um ano após
sua publicação (artigo 2.045), ou seja, no dia 11 de janeiro de 2003. Possui 2.046 artigos.
Acompanhando a tendência mais moderna e liberal já explicitada, o novo Códex
previu a ação de investigação de paternidade sem delimitar os casos legais, ou seja,
corroborou o entendimento de que essa demanda pode ser exercitada sem qualquer
restrição de texto legal, restringindo seu cabimento aos casos previstos, o que afasta,
ao menos neste tópico, as injustas afirmações de que o novo estatuto “já nasceu velho”.
O capítulo relativo à filiação contém 11 artigos, ou seja, do 1.596 ao 1.606. Já o
relativo ao reconhecimento dos filhos contém o mesmo número de artigos, ou seja, do
1.607 ao 1.617.
A seguir, transcrevo referidos artigos, comentando-os, se o caso for.
“CAPÍTULO II
Da Filiação
Art. 1.596. Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou
por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas
quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.”
(37)
(38)
Ob. cit., p. 252.
VENOSA, Sílvio de Salvo, ob. cit., p. 253.
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Esse dispositivo repete o disposto no artigo 227, § 6º da Constituição Federal,
vedando qualquer espécie de diferenciação entre os filhos naturais, adulterinos, incestuosos e os adotados.
“Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento
os filhos:
I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;
II - nascidos nos trezentos dias subseqüentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação
do casamento;
III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;”
A fecundação artificial homóloga, como dito alhures, é aquela em que o próprio
marido cede o sêmen. O inciso firma uma presunção iuris tantum, ou seja, relativa de
paternidade em favor deste. No entanto, se já falecido o marido, antes da concepção
pela fecundação artificial, o filho não terá direito sucessório, visto que o pai falecera
antes desse momento e o direito protege os direitos do nascituro apenas após a concepção.
“IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões
excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;
V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha
prévia autorização do marido.”
A inseminação artificial heteróloga é aquela em que o sêmen é cedido por terceira
pessoa que não o marido. No caso de autorização do marido, esse se presume o pai,
mas, como havíamos dito e com base no artigo 27 do Estatuto da Criança e do
Adolescente, tal presunção relativa pode ser ilidida pela comprovação em regular ação
de investigação de paternidade proposta pelo filho, visto que o direito do exercício
dessa ação não pode sofrer restrição.
“Art. 1.598. Salvo prova em contrário, se, antes de decorrido o prazo
previsto no inciso II do art. 1.523, a mulher contrair novas núpcias e
lhe nascer algum filho, este se presume do primeiro marido, se
nascido dentro dos trezentos dias a contar da data do falecimento
deste e, do segundo, se o nascimento ocorrer após esse período e já
decorrido o prazo a que se refere o inciso I do art. 1597.
Art. 1.599. A prova da impotência do cônjuge para gerar, à época
da concepção, ilide a presunção da paternidade.”
Tal possibilidade já era aceita por doutrina e jurisprudência, mesmo antes dessa
previsão legal.
“Art. 1.600. Não basta o adultério da mulher, ainda que confessado, para ilidir a presunção legal da paternidade.”
O legislador exige provas mais concretas do que o adultério da mãe para ilidir a
presunção relativa de paternidade prevista na lei.
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“Art. 1.601. Cabe ao marido o direito de contestar a paternidade
dos filhos nascidos de sua mulher, sendo tal ação imprescritível.”
Afigura-se-nos justa a disposição. Afinal de contas, não pode o interesse maior do
marido, e até mesmo do filho, em saber a realidade da filiação ficar sujeito a prazo legal.
“Parágrafo único. Contestada a filiação, os herdeiros do impugnante têm direito de prosseguir na ação.”
Isso no caso de o impugnante vir a falecer no curso da demanda.
“Art. 1.602. Não basta a confissão materna para excluir a paternidade.”
Da mesma forma que no artigo 1600, o legislador exige provas mais concretas
do que a mera confissão da mãe para ilidir a presunção relativa de paternidade
prevista na lei.
“Art. 1.603. A filiação prova-se pela certidão do termo de nascimento registrada no Registro Civil.
Art. 1.604. Ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta
do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do
registro.
Art. 1.605. Na falta, ou defeito, do termo de nascimento, poderá
provar-se a filiação por qualquer modo admissível em direito:
I - quando houver começo de prova por escrito, proveniente dos
pais, conjunta ou separadamente;
II - quando existirem veementes presunções resultantes de fatos já
certos.”
Esse artigo repete o disposto no artigo 349 do Código Civil de 1916.
“Art. 1.606. A ação de prova de filiação compete ao filho, enquanto viver, passando aos herdeiros, se ele morrer menor ou incapaz.”
Esse artigo repete o disposto no artigo 350 do Código Civil de 1916.
“Parágrafo único. Se iniciada a ação pelo filho, os herdeiros poderão continuá-la, salvo se julgado extinto o processo.
CAPÍTULO III
Do Reconhecimento dos Filhos
Art. 1.607. O filho havido fora do casamento pode ser reconhecido
pelos pais, conjunta ou separadamente.
Art. 1.608. Quando a maternidade constar do termo do nascimento
do filho, a mãe só poderá contestá-la, provando a falsidade do
termo, ou das declarações nele contidas.
Art. 1.609. O reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento
é irrevogável e será feito:
I - no registro do nascimento;
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II - por escritura pública ou escrito particular, a ser arquivado em
cartório;
III - por testamento, ainda que incidentalmente manifestado;
IV - por manifestação direta e expressa perante o juiz, ainda que
o reconhecimento não haja sido o objeto único e principal do ato
que o contém.
Parágrafo único. O reconhecimento pode preceder o nascimento
do filho ou ser posterior ao seu falecimento, se ele deixar descendentes.
Art. 1.610. O reconhecimento não pode ser revogado, nem mesmo
quando feito em testamento.
Art. 1.611. O filho havido fora do casamento, reconhecido por um
dos cônjuges, não poderá residir no lar conjugal sem o consentimento do outro.”
Esse artigo repete o disposto no artigo 359 do Código Civil de 1916.
“Art. 1.612. O filho reconhecido, enquanto menor, ficará sob a
guarda do genitor que o reconheceu, e, se ambos o reconheceram
e não houver acordo, sob a de quem melhor atender aos interesses
do menor.
Art. 1.613. São ineficazes a condição e o termo apostos ao ato de
reconhecimento do filho.
Art. 1.614. O filho maior não pode ser reconhecido sem o seu
consentimento, e o menor pode impugnar o reconhecimento, nos
quatro anos que se seguirem à maioridade, ou à emancipação.
Art. 1.615. Qualquer pessoa, que justo interesse tenha, pode contestar a ação de investigação de paternidade, ou maternidade.”
Previsão idêntica à do artigo 365 do Código Civil de 1916, já explicado.
“Art. 1.616. A sentença que julgar procedente a ação de investigação produzirá os mesmos efeitos do reconhecimento; mas poderá ordenar que o filho se crie e eduque fora da companhia dos pais
ou daquele que lhe contestou essa qualidade.”
Mesma disposição prevista no artigo 366 do Código Civil de 1916.
“Art. 1.617. A filiação materna ou paterna pode resultar de casamento declarado nulo, ainda mesmo sem as condições do putativo.”
9 - Jurisprudência comentada
Passo a citar acórdãos de alguns tribunais estaduais e do Superior Tribunal de
Justiça sobre dois temas importantes: recusa do réu em se submeter ao exame pericial
e momento a partir do qual são devidos alimentos quando cumulados com a ação de
investigação de paternidade.
Para isso, citarei alguns trechos dos respectivos votos e emitirei minha opinião
pessoal sobre eles.
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a) Recusa do réu em se submeter a exame pericial
a1) Tribunal de Justiça do Espírito Santo - RT 791/344-346
“Investigação de paternidade - Prova - Perícia - Exame de DNA Investigado que não pode ser obrigado, coercitivamente, a submeter-se ao exame - Recusa injustificada, no entanto, em submeterse à prova pericial que estabelece presunção de veracidade dos
fatos alegados pelo investigante, notadamente quando, em razão
do progresso científico, o referido exame pode indicar ou excluir,
com segurança, a questionada ascendência”.
Ap. nº 85.822-0, Segredo de Justiça, 2ª Câm., j. 23.08.2000, rel.
des. DARCY NASSER DE MELO.
Nas razões do recurso, dentre outras alegações, o apelante afirmou que sua
recusa em se submeter ao exame pericial é garantida constitucionalmente. O relator,
sobre tal recusa, assim deixou assentado: “A recusa de submeter-se ao exame de DNA,
no entanto, volta-se contra o próprio recorrente, pelo simples raciocínio de que, em
negando a paternidade, teria ele, em seu favor, essa prova para demonstrar a veracidade da sua negativa. Realmente, segundo vem entendendo a jurisprudência, a recusa
da realização do exame de DNA implica a inversão do ônus da prova e a presunção
contra quem se recusou, porquanto a não submissão ao exame, que se sabe bastante
preciso, é inconcebível por quem dele, certamente, tiraria proveito”.
O eminente relator ainda cita julgado da 2ª Câmara Civil daquele tribunal de
Justiça, nos seguintes termos: “Se o investigado não consegue demonstrar qualquer
causa impediente da paternidade e nem favorece essa demonstração, aparece, em
favor do investigante, a presunção pater is est. Em ação de investigação de paternidade, o investigado não pode ser obrigado, coercitivamente, a submeter-se a exame
pericial, mas a sua recusa estabelece a presunção de veracidade dos fatos alegados
pelo investigante, notadamente quando, em razão do progresso científico, as perícias
modernas (DNA - HLA) podem indicar, neste caso, com segurança, a ascendência
pretendida” (Acórdão 10845).
Finalmente, o argumento do apelante, de que estaria desobrigado de submeterse ao exame de DNA, por força de preceito constitucional, não tem a mínima consistência, tal como foi bem analisado e rejeitado pelo douto juiz a quo, quando assim
asseverou: “A discussão, no âmbito da ação investigatória sobre os conceitos constitucionais predominantes, na letra do art. 5º, II, onde ninguém será obrigado a fazer ou
deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei, colide, no caso, com o inciso IV,
onde é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte
quando necessário ao exercício profissional, bem como a igualdade preconizada no
inciso I, onde homens e mulheres são iguais em direito e obrigações, pelo que o
constrangimento é mútuo na hipótese presente face à marginalização da autora,
impossibilitado-a de aferir sua ascendência genética”.
Realmente assiste razão não só ao relator, mas também ao ilustre magistrado de
1º grau, uma vez que sequer se cogita da possibilidade de coagir alguém a ceder
material para o exame pericial, visto não existir texto legal prevendo tal dever, mas tal
recusa só pode ser interpretada em desfavor do suposto pai, já que o alto grau de
certeza dos exames de HLA e DNA, como já estudado neste trabalho, poderia ser
utilizado a seu favor, caso o resultado fosse o da exclusão da paternidade. Tem cabimento aqui aquele velho adágio popular: “Quem não deve não teme!”. Obviamente
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que devem existir nos autos outros elementos que corroboram as alegações do autor.
Esta é a única interpretação que pode ser dada, utilizando-se como fundamento os
artigos 359, II e 126, ambos do Código de Processo Civil.
a2) Tribunal de Justiça de São Paulo - RT 778/266-267
“Investigação de paternidade - Exame hematológico - Recusa imotivada do requerido em comparecer ao exame pericial - Ato que
leva a presunção da paternidade, mormente se aliado a provas que
corroboram a existência de relacionamento amoroso entre o investigado e a genitora da investigante”.
Ementa da redação: Presume-se a paternidade de quem se recusa,
imotivadamente, a realizar exame hematológico, traduzindo temor do resultado, mormente quando há, nos autos, provas que
corroboram ter existido relacionamento amoroso entre o investigado e a genitora da investigante.
Ap. nº 139.554-4/1, Segredo de Justiça, 10 ª Câmara, j. 14.03.2000,
rel. des. RUY CAMILO.
Nas razões recursais, o apelante aduziu ter direito de não se submeter a exame
pericial hematológico, não havendo razões para que o não comparecimento seja
interpretado em seu desfavor.
Em seu voto, o relator concluiu, pelos depoimentos das testemunhas, que a
concepção se deu em período em que a mãe da investigante e o suposto pai teriam
mantido relações sexuais, e, no que toca à recusa de submissão ao exame ,assim
consignou: “Mas causa espanto que o requerido, convencido de não ser o pai da menor
porque sequer conhecia a genitora da autora, tenha se escusado a fazer o exame
pericial hematológico, temendo que, com a coleta de sangue intravenosa, pudesse ser
contagiado com alguma doença fatal. Se a Constituição Federal, nos incisos II e X,
protege a individualidade do cidadão, estabelecendo que: ‘Art. 5º (...) II - ninguém será
obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;’ ... ‘X - são
invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado
o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação...’, essa
mesma Carta assegura ao menor e ao adolescente, em seu artigo 227, o direito à
família, à dignidade, entre outras coisas, daí decorrendo o direito da autora de ver
reconhecida a paternidade, que lhe é negado pelo requerido. E sua recusa da realização do exame pericial, aqui, o desfavorece, pois traduz temor do resultado, induzindo
à presunção de veracidade das alegações da inicial”.
Assim, como bem fundamentado, o direito a não se submeter ao exame pericial,
na forma do artigo 5º, II, da Constituição Federal, pela falta de norma legal prevendo tal
obrigação, colide com outro preceito constitucional, qual seja, o artigo 227 que prevê,
dentre outros direitos, ao menor e ao adolescente, o direito à família e à dignidade.
Ora, existe maior insulto à dignidade do que não conhecer o próprio pai? Creio
que não.
Portanto, bem andou o relator ao negar provimento a esta parte do recurso.
a3) Tribunal de Justiça de São Paulo - JTJ 210/203-204
“Investigação de paternidade - Prova - Perícia - Recusa do réu -
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Direito de não comparecer - Ausência, entretanto, que poderá ser
interpretada em favor dos pedidos formulados na inicial - Recurso
não provido”.
Agravo de Instrumento nº 53.311-4 - O julgamento teve a participação dos senhores desembargadores VASCONCELLOS PEREIRA
(presidente sem voto), THEODORO GUIMARÃES e CEZAR PELUSO,
sendo relator OSVALDO CARON.
Na minuta do agravo de instrumento tirado dos autos de ação de investigação de
paternidade, cumulada com alimentos, constou que o agravante se insurgiu contra
decisão interlocutória de saneamento dos autos, onde foi deferida a produção de prova
pericial, sob o argumento de não existir lei que possibilite a violação de seu corpo para
a realização da prova.
No voto do eminente relator, assim ficou consignado: “A prova pericial, na hipótese dos autos, é necessária à comprovação, pela menor, da afirmação de ser o réu,
ora agravante, o seu pai biológico. A Constituição da República não só manteve o
acesso ao Poder Judiciário como direito do cidadão (artigo 5º, inciso XXXVI), como
ainda lhe assegurou ampla defesa (artigo 5º, LV). Mas, à evidência, o agravante não
será conduzido para ser submetido ao exame. Terá o direito de não comparecer. Sua
ausência, contudo, no conjunto das provas, poderá ser interpretada em favor dos
pedidos formulados na petição inicial. Isso, à semelhança do que ocorre com o acusado,
no interrogatório (artigo 186 do Código de Processo Penal)”.
Deve ser acrescentado ao voto também o fundamento de que o investigante tem
o direito à dignidade de tomar conhecimento de sua ascendência paterna (Constituição
Federal, artigo 227), sem prejuízo da interpretação do artigo 359, II, do Código de
Processo Civil, uma vez que a recusa do comparecimento ao exame não é legítima,
visto que demonstra temor do investigado da descoberta da verdade. Afinal de contas,
se tivesse certeza absoluta de que não é pai do investigado, provaria tal situação pela
exclusão da paternidade na prova pericial. Além disso, outros elementos devem constar
dos autos para corroborar os indícios de paternidade, trazendo segurança ao julgador.
O único reparo que deve ser feito, com a mais respeitosa vênia, é a citação do artigo
186 do Código de Processo Penal, uma vez que a recusa em responder às perguntas
formuladas ao acusado não pode mais ser interpretada em seu desfavor, já que tal conduta
está englobada em seu direito à ampla defesa (Constituição Federal, artigo 5º, LV).
b) Momento a partir do qual são devidos alimentos quando
b) a ação é cumulada com a investigação de paternidade
b1) Tribunal de Justiça do Espírito Santo - RT 748/344-347
“Investigação de paternidade - Cumulação com alimentos - Verba
alimentícia que retroage a partir da sentença de primeira instância
favorável ao pedido, independentemente de haver recurso de
apelação pendente - Inteligência do art.5º da Lei 883/49”.
Ap. nº 035940053032, 1ª Câm., j. 12.08.1997, rel. des. ARIONE
VASCONCELOS RIBEIRO.
O relator fez constar de seu voto o seguinte: “A fixação da verba alimentícia deve
obedecer ao parâmetro estabelecido no art. 5º, da Lei 883/49, isto é, retroagindo a
partir da sentença de primeira instância favorável, ainda que pendente de julgamento
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eventual recurso de apelação, o que, a um só tempo, inibe o desafio de lide temerária
e possibilita ao filho reconhecido a satisfação do seu sustento no curso do processo”.
E cita aresto tirado da obra de WILSON BUSSADA, do seguinte teor: “Execução por
título judicial. Ação de investigação de paternidade cumulada com alimentos. Filiação
natural. Procedência dos pedidos em ambas as instâncias. Os alimentos não são devidos
a partir da citação, por aplicação do art. 13, § 2º, da Lei Especial de Alimentos, nem
do trânsito em julgado da sentença. Aplica-se, por analogia, o art. 5º da Lei nº 883/49,
para declarar que os alimentos são devidos a partir da sentença favorável em 1ª
Instância e no percentual que prevaleceu. Provimento em parte do recurso”.
A questão gera uma das maiores discussões perante os tribunais. É preciso discutir
o tema, que não é pacífico, com argumentos sólidos e irrefutáveis, para que a jurisprudência pátria tome um rumo determinado e possa gerar maior certeza e tranqüilidade
nos julgamentos dessa espécie de caso.
Embora ainda cite no corpo deste singelo e simples trabalho outras jurisprudências
em sentido não só contrário, mas também no mesmo sentido, passo a alinhar meus
fundamentos, tomando posição específica, para o fim de demonstrar que o entendimento mais correto, com o devido respeito àqueles que entendem em sentido contrário, é aquele que dispõe que os alimentos são devidos a partir da sentença de 1º grau
quando cumulados com investigação de paternidade, jamais a partir da citação.
Em primeiro lugar, aqueles que entendem que são devidos a partir da citação
utilizam como fundamento o artigo 13, § 2º, da Lei de Alimentos, que dispõe o seguinte:
“Em qualquer caso, os alimentos fixados retroagem à data da citação”.
Penso que o fundamento está equivocado, já que o dispositivo está sendo mal
interpretado.
O § 2º do artigo 13 da Lei Especial só é aplicável aos casos do respectivo caput,
ou seja, ação de separação, nulidade e anulação de casamento, revisão de alimentos
e respectivas execuções, não se referindo especificamente à ação de alimentos propriamente dita. Reza o dispositivo legal: “O disposto nesta lei aplica-se igualmente, no que
couber, às ações ordinárias de desquite, nulidade e anulação de casamento, à revisão
de sentenças proferidas em pedidos de alimentos e respectivas execuções”.
Assim, o § 2º sequer deve ser utilizado para a ação de alimentos propriamente
dita. Qualquer disposição legal dispõe situações específicas em parágrafos, mas esses
estão necessariamente ligados a seu caput, eis que regulam melhor a matéria ali
disposta. Portanto, a frase “em qualquer caso” não tem o condão de estender aquilo
que o próprio caput não previu. Ora, se o caput não previu nada no sentido de ter
aplicação o disposto em sua norma, jamais poderia fazê-lo o § 2º. Destarte, os alimentos fixados retroagem à data da citação nos casos previstos no artigo 13, caput, da Lei
de Alimentos, dentre os quais não consta a ação de alimentos propriamente dita.
Dirão aqueles que entendem contrário: “mas então o que quis o legislador dizer?”. É muito simples. Nos casos previstos no artigo 13, caput, quando não forem
fixados alimentos provisórios, aqueles fixados na sentença retroagem à data da
citação. Afinal de contas, para quê servem os alimentos provisórios fixados na inicial
pelo juiz ao despachá-la? Apenas para manter o alimentando durante a tramitação do
feito, uma vez que o direito aos alimentos nasce não com a propositura da ação
propriamente dita, mas com a sentença condenatória que dispuser nesse sentido.
Então, se o juiz pode fixar alimentos provisórios ao despachar a inicial, como então
retroagiriam estes à data da citação?
Assim, o artigo 13, § 2º só tem cabimento nos casos previstos no caput, dentre
os quais não se inclui a ação de alimentos, e isso se não tiverem sido fixados alimentos
provisórios ao despachar o juiz a inicial.
Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 83-113, mar./abr.-2002
O segundo argumento em favor da tese aqui defendida diz respeito à questão do
procedimento. A utilização da Lei nº 5.478/68 tem cabimento apenas no caso de prova
pré-constituída de paternidade ou parentesco e segue um procedimento especial, em que
é possível o arbitramento de provisórios. Já a ação de investigação de paternidade cumulada com alimentos segue o rito ordinário, não podendo os dispositivos daquela lei serem
aplicados neste último caso, que tem procedimento próprio e diverso, até porque não
existe prova pré-constituída na ação de investigação de paternidade cumulada com
alimentos, visto que a paternidade será declarada apenas na sentença. Ademais, o título
judicial é que institui a prova da paternidade para efeito de alimentos. Destarte, ainda que
os alimentos retroagissem à data da citação, em caso de utilização do procedimento
especial para propositura de ação de alimentos com base em prova pré-constituída,
esquecendo-se tudo o que dissemos acima em relação à aplicação do artigo 13, § 2º, tal
disposição não teria aplicação à investigação de paternidade cumulada com alimentos,
que segue o rito ordinário justamente por não haver a prova pré-constituída.
Terceiro argumento. Confundem-se aqueles que entendem em sentido contrário
ao dizer que a ação de investigação de paternidade cumulada com alimentos gera
efeitos ex tunc, ou seja, retroativos, uma vez que pretendem que as duas ações
tenham o mesmo efeito de apenas uma. Melhor explicando. Quando se diz que uma
ação é cumulada a outra, quer-se dizer que duas ações estão sendo propostas ao
mesmo tempo, só que conjuntamente. Pois bem. Cada ação tem um provimento
jurisdicional específico, ou seja, declaração, condenação ou constituição. A sentença
declaratória gera efeitos ex tunc, ou seja, que retroagem à data da citação ou mesmo
da propositura, pois apenas declaram uma realidade fática já existente. Já as condenatórias geram efeitos ex nunc, ou seja, a partir da sentença, pois o indivíduo só pode
ser condenado a alguma coisa a partir do momento em que o órgão assim determinado
pela Constituição Federal, ou seja, o Poder Judiciário, determinar.
Seguindo esse raciocínio para o caso aqui discutido, temos que a sentença, na
ação de investigação de paternidade, por ter cunho declaratório, gera efeitos ex tunc,
ou seja, retroage à data da citação, pois que somente declara um fato já existente no
mundo real, já a ação de alimentos tem cunho condenatório, ou seja, gera efeitos
ex nunc, visto que o demandado só pode ser obrigado a cumprir algo após tal mandamento ser determinado na sentença. Exceção a isso são os alimentos provisórios, a
tutela antecipada e os provimentos cautelares.
Portanto, por ter cunho condenatório, a parte da decisão que determina que o
demandado pague alimentos só pode ter aplicação a partir da sentença, pois gera
efeitos ex nunc.
Aliás, o caráter condenatório da ação de alimentos é reforçado pelo artigo 520,
II, do Código de Processo Civil ao determinar que a apelação da sentença que condenar à prestação de alimentos será recebida apenas no efeito devolutivo.
O equívoco da corrente contrária é justamente querer dar efeitos retroativos não
só à parte da decisão relativa à investigação de paternidade, mas também à parte da
decisão relativa à ação de alimentos, o que é um erro, já que dizem respeito a duas
ações distintas e com efeitos diversos, devendo cada parte da sentença ser tratada de
forma diferente. Tanto é assim que, se houver apelação da sentença que julgou procedente ação de investigação de paternidade cumulada com alimentos, o recurso será
recebido em ambos os efeitos na parte relativa à investigação de paternidade e apenas
no efeito devolutivo na parte relativa aos alimentos (Código de Processo Civil, artigo
520, II), ou seja, cada parte da sentença terá tratamento diverso.
Quarto argumento. O fundamento utilizado pelo nobre relator do acórdão acima. Quando os alimentos são devidos a partir da sentença, fica inibido o desafio de
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lide temerária e é possibilitado ao filho reconhecido a satisfação do seu sustento no
curso do processo.
Aqueles que entendem de forma diversa poderão dizer, então, que o raciocínio
é injusto, visto que não protege o investigante, já que a ação pode tramitar por vários
anos e, em conseqüência, causar prejuízo ao requerente, que não recebe nada até a
data da sentença. Contudo, tal alegação não convence. O Código de Processo Civil
coloca à disposição dos interessados todos os meios legais para que o indivíduo possa
se proteger contra os efeitos do tempo da tramitação do processo.
Desse modo, caso o investigante queira que o investigado contribua com sua
criação durante a tramitação do feito, poderá seguir dois caminhos: solicita a antecipação dos efeitos da tutela, com fundamento no artigo 273 do Código de Processo Civil,
no próprio bojo dos autos; ou, então, interpõe ação cautelar de alimentos provisionais
incidentalmente à ação principal, com base no artigo 852, II do Código de Processo
Civil. Ambas as hipóteses são possíveis, uma vez que os alimentos, ainda que a ação
seja julgada improcedente, são irrepetíveis.
Fica, dessa forma, afastada a tese de injustiça do raciocínio.
Quinto argumento. O artigo 5º da Lei nº 883/49 prevê que o autor da ação de
investigação de paternidade terá direito a alimentos a partir da sentença que lhe for
favorável. Destarte, o legislador previu especificamente o direito a alimentos em caso
de procedência de ação de investigação de paternidade apenas a partir da sentença
favorável ao autor investigante, ou seja, existe previsão legal regulando a questão.
Mas não é só.
Entendo que o artigo 7º da Lei nº 8.560/92 botou fim à discussão que se trava na
jurisprudência, eis que, da mesma forma que o artigo 5º da Lei nº 883/49, novamente regulou
o legislador a questão, dispondo mais uma vez que a sentença de 1º grau que reconhecer
a paternidade deverá fixar alimentos provisionais ou definitivos ao reconhecido.
Em vários julgados, como veremos em alguns casos que citarei, os defensores da
corrente contrária alegam que não se pode dar tratamento diferente ao reconhecido
voluntariamente e àquele que foi reconhecido pela via judicial.
No entanto, a tese não vinga.
Não está sendo dado tratamento diferente. Se o pai reconhece voluntariamente
e não presta alimentos também voluntariamente, o filho deverá propor ação de alimentos e seu genitor será condenado a pagá-los também somente a partir da sentença, já
que, como vimos anteriormente ao defendermos o terceiro e quarto argumentos, os
efeitos da sentença na ação de alimentos são ex nunc, ou seja, passam a valer a partir
daquele momento, sendo os alimentos provisórios apenas e tão-somente para sustento
do alimentando durante a tramitação do feito e os meios legais previstos no Código de
Processo Civil também possibilitam o pagamento de alimentos durante o curso do feito
quando for cumulada a ação com a investigação de paternidade por intermédio da
tutela antecipada (Código de Processo Civil, art. 273) e da cautelar de alimentos
provisionais (Código de Processo Civil, art. 852, II).
Dessa forma, não há qualquer tratamento diferente e o fundamento da corrente
contrária não tem cabimento.
Por tais argumentos, entendo, com o devido respeito àqueles que defendem tese
contrária, que, na ação de investigação de paternidade cumulada com alimentos, esses
são devidos a partir da sentença, jamais da citação.
b2) Tribunal de Justiça do Paraná - RT 755/369-373
“Investigação de paternidade - Cumulação com alimentos - Termo
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inicial para pagamento das verbas alimentícias que retroage à data
da citação - Aplicação do art.13, § 2º, da Lei nº 5.478/68 - Voto
vencido”.
Ementa oficial: Nas investigatórias de paternidade cumuladas com
alimentos, tem aplicação o § 2º do art. 13 da Lei de Alimentos, que
prevê a retroação dos alimentos fixados à data da citação, não
havendo qualquer distinção entre filhos havidos ou não da relação
de casamento.
Ementa do voto vencido, pela Redação: ‘Nas ações de investigação
de paternidade combinada com ação de alimentos serão estes
devidos a partir da sentença que os concedeu’.”
Ap. nº 56.403-0, Segredo de Justiça, 2ª Câm., j. 04.03.1998, rel.
des. RONALD ACCIOLY.
Vejamos o voto do relator: “Referentemente ao termo inicial dos alimentos, é de
ser aplicado o § 2º do art. 13 da Lei nº 5.478/68: Em qualquer caso, os alimentos fixados
retroagem à data da citação. E, como proclamado pela jurisprudência, esse preceito
é também aplicado às investigações de paternidade cumuladas com alimentos, notadamente depois da nova Constituição, que estabeleceu igualdade de direitos entre os
filhos havidos ou não da relação de casamento (Constituição Federal, art. 227, § 6º)”.
Consoante decidiu este E. Tribunal, por seu 1º Grupo de Câmaras Cíveis: “Investigação de paternidade cumulada com alimentos - Dies a quo da prestação alimentícia Retroatividade à citação do réu - Embargos infringentes - Voto vencido que estipulava os
alimentos a partir da sentença. O termo de início da obrigação alimentar, quando reconhecida em juízo a paternidade, é a citação do réu, precedentes do Superior Tribunal de
Justiça (in REsp nº 19.428-0-SP). A sentença que julga ação de investigação de paternidade cumulada com alimentos é meramente declaratória, pois apenas proclama o estado
de filiação, que é precedente existindo desde o nascimento, em tais caso, os efeitos se
operam ex tunc, retroagindo à data da citação do réu. Embargos rejeitados”.
Igualmente a E. 1ª Câm. Cív. (rel. des. PACHECO ROCHA) decidiu que: “Investigação de paternidade - Alimentos - Termo inicial - Valor. Procedente a investigação
de paternidade, os alimentos fixados pela respectiva sentença são devidos desde a data
da citação, à vista do § 2º do art. 13 da Lei nº 5.478/68, de 25.07.1968 (em qualquer
caso, os alimentos fixados retroagem à data da citação), aplicável por força do § 6º do
art. 227 da Constituição Federal” (Ac. nº 11.461, na Ap. Civ. nº 40.020-4).
Anote-se, ainda, que sobre a questão, YUSSEF SAID CAHALI, fazendo revisão do
seu posicionamento consignado em edições anteriores da sua clássica obra Dos Alimentos, salienta que, na composição dos dispositivos em confronto (art. 13, § 2º, da Lei nº
5.478/68 e arts. 4º e 5º da Lei nº 883/49), que originaram “inconciliáveis dissensões na
sua aplicação pelos tribunais”, em especial em face da alteração constitucional (art.
227, § 6º, da Constituição Federal de 88), que não mais admite qualquer tratamento
discriminatório decorrente da natureza da filiação, conclui: “a) são devidos alimentos
ao filho ilegítimo desde a citação do devedor na ação ordinária de alimentos, cumulada
ou não com investigatória de paternidade, desde que ocorrida a citação posteriormente
a 05.10.1988, data da nova Constituição” ... “A sentença que acolhe ação de investigação de paternidade não tem caráter constitutivo, sendo que apenas declara uma
situação de fato que já existia e que o réu, injustificadamente, voluntariamente não
reconheceu, nem antes, nem imediatamente após a citação. Até o art. 219 do Código
de Processo Civil justifica essa conclusão que, também, evita protelações injustificáveis
do investigado em detrimento dos gastos alimentares, portanto da sobrevivência do
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alimentando. E o art. 5º da Lei nº 883/49 não desabona essa conclusão, pois apenas
trata de alimentos provisionais, que, para serem deferidos, segundo a lei, exige-se
sentença favorável de primeira instância; os alimentos definitivos, à evidência, derivam
também da sentença de procedência, mas, como decorrem do reconhecimento da
paternidade de caráter declaratório, com efeitos ex tunc, retroagem à data da citação,
como é comum em qualquer ação de alimentos. Tem-se em conta, ainda, que é uma
injustiça terrível tratar mais severamente um pai que, voluntariamente, reconheceu a
paternidade, do que aquele que, não cumprindo com seu dever, necessitou ser acionado por meio da investigatória”... “Em resumo: se, com relação ao filho legítimo ou
reconhecido, são deferidos alimentos desde a data da citação na ação especial da Lei
nº 5.478/68 (art. 13, § 2º), não só a eqüidade como também agora o princípio constitucional da igualdade asseguram ao filho ilegítimo reconhecido judicialmente o direito
aos alimentos definitivos, que assim se constituem a partir do trânsito em julgado da
sentença que julgou procedente a investigatória de paternidade, e desde a citação do
réu” (Dos Alimentos, 2ª ed., 2ª tiragem, RT, 1994, pp. 491, 494 e 500).
Com a devida vênia não só ao nobre relator, e em que pese a autoridade do mestre
YUSSEF SAID CAHALI, ambos usam argumentos equivocados para a defesa de sua tese.
Em primeiro lugar, tanto o julgador como o mestre argumentam a utilização do
artigo 13, § 2º da Lei de Alimentos). Tal utilização, como vimos ao apresentar o primeiro
e o segundo argumento de que o marco inicial é a sentença, é descabida pela inexistência de prova pré-constituída para utilizar o dispositivo especial em caso de ação pelo
rito ordinário, cuja sentença será o título, ou seja, a prova para efeito de alimentos.
Ademais, o dispositivo é aplicável somente aos casos do caput, dentre os quais não está
a ação de alimentos propriamente dita.
O segundo equívoco é querer dizer que está sendo dado tratamento diferenciado
entre o voluntariamente reconhecido e o judicialmente. Ledo engano. A decisão de
alimentos é condenatória e esses são devidos a partir da sentença, já que os alimentos
provisórios servem, apenas e tão-somente, para sustentar o autor no curso da demanda,
não havendo qualquer diferenciação entre os dois casos.
Aliás, o terceiro erro é dizer que é injusto fazer o autor esperar a sentença para
receber alimentos. Ora, mas se é assim na ação de alimentos pelo rito especial, onde a
questão é solucionada com a sentença, podendo o requerente ser sustentado com os
alimentos provisórios, por que não ser assim naquela cumulada com investigação de
paternidade pelo rito ordinário, em que também o autor pode solicitar a tutela antecipada
ou interpor cautelar incidental de alimentos provisionais? Por falar em procedimento,
jamais o dispositivo de um texto especial poderia ser aplicado ao procedimento ordinário.
Portanto, não existe nenhuma diferenciação.
Mais um argumento descabido. Efeitos ex tunc tanto para a ação de investigação
de paternidade como para a ação de alimentos, o que, como vimos, é errado, já que
são duas ações diferentes com efeitos diferentes, sendo uma declaratória com efeitos
ex tunc (investigação) e outra condenatória com efeitos ex nunc (alimentos).
Por fim, esqueceu-se o eminente doutrinador de que a eqüidade só pode ser
utilizada em caso de autorização legislativa, nos termos do artigo 127 do Código de
Processo Civil. Pergunto: Qual dispositivo permite a aplicação do art. 13, § 2º da Lei nº
5.478/68 às ações de investigação de paternidade cumulada com alimentos pelo rito
ordinário? Absolutamente nenhum!
Portanto, os argumentos expendidos não convencem.
Vejamos agora o teor do voto vencido da lavra do desembargador ALTAIR PATITUCCI: “Em voto prolatado, o eminente des. OTO LUIZ SPONHOLA assim se pronunciou: ‘Não reconhecida a paternidade; só a partir do momento processual em que se
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proclama judicialmente começa o alimentando a ter legitimidade para sua concessão.
Se a relação de parentesco inexiste antes da sentença, não se pode deferir a data
da citação como termo inicial para o cômputo dos valores econômicos atinentes a alimentos. A sentença do reconhecimento da paternidade é o título que habilita a pretensão.
Antes dela e sem ela, inexiste direito a alimentos de filho ilegítimo ou adulterino.
Tanto é verdade que o filho (se casado o pai indigitado) só perceberá alimentos acaso
provada, incidentalmente, a alegada paternidade’”.
Conclui-se, pois, que, sendo o esteio jurídico da ação de alimentos os arts. 4º e
5º da Lei nº 883/49, inicia-se a obrigação alimentar a partir da sentença que deu pela
procedência do pedido declaratório da paternidade.
Em recente julgado, nesta 2ª Câm. Cív. Na Ap. nº 50.922-6, em que foi relator
o des. SIDNEY MORA, colhe-se, verbis:
“A discussão sobre o momento inicial da fluência dos alimentos, se
a partir da citação ou da sentença, parece estar agora superado
com a edição da Lei nº 8.560/92. Referida lei dispõe no seu art. 7º:
‘Sempre que na sentença de primeiro grau se reconhecer a paternidade, nela se fixarão os alimentos provisionais ou definitivos do
reconhecido que deles necessite’.”
Na sentença, portanto, identifica-se o marco inicial para fluência dos alimentos
concedidos em ação de investigação de paternidade cumulada com alimentos.
O Superior Tribunal de Justiça, modificando entendimento anterior, adotado no
julgamento do Resp. nº 2.203-SP (Lex, JSTJ e TRF, 19/85), passou a entender que:
“Na ação de investigação de paternidade cumulada com pedido de
alimentos, serão estes devidos desde a sentença que o concedeu,
inobstante pendente recurso, eis que, consoante dispõe o art. 520,
II, do Código de Processo Civil, a apelação que condenou à prestação de alimentos será recebida no efeito devolutivo” (Resp. nº
36.066-8-SP, in Lex, JSTJ e TRF 74/154) (Ac nº 13.394-2).
Desse modo, entendo que a razão está com o defensor do voto vencido.
b3) Tribunal de Justiça do Acre - RT 750/336-343
“Investigação de paternidade - Cumulação com alimentos - Pensão
alimentícia - Fixação da verba a partir da data da citação - Inteligência do art.13, § 2º, da Lei nº 5.478/68”.
Ap. nº 97.001555-0, Segredo de Justiça, j. 27.10.1997, rel. des.
JERSEY NUNES.
No corpo do acórdão, o relator defendeu a tese de que cabível é a aplicação do
disposto no artigo 13, § 2º, da Lei de Alimentos, o que, como já visto, é equivocado.
Reporto-me ao que foi dito antes sobre a não-aplicação deste dispositivo para não me
tornar repetitivo.
b4) Tribunal de Justiça de São Paulo - JTJ 214/122-125 - 2ª Câmara
b4) de Direito Privado - desembargadores THEODORO GUIMARÃES,
b4) J. ROBERTO BEDRAN, VASCONCELOS PEREIRA e CEZAR PELUSO (relator)
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“Investigação de paternidade - Cumulação com alimentos - Procedência - Prestações devidas a partir da citação no processo de
conhecimento - Aplicação do artigo 13, § 2º, da Lei Federal nº
5.478, de 1968 - Inteligência do artigo 7º da Lei Federal nº 8.560,
de 1992 - Sentença confirmada”.
Os eminentes julgadores entenderam que o artigo 7º da Lei nº 8.560/92 regula a
data da fixação, não da exigibilidade das prestações, sob o seguinte fundamento: “O
disposto no artigo 7º da superveniente Lei Federal nº 8.560, de 29.12.92, deve ser
entendido apenas como referência à data de fixação, não de exigibilidade dos alimentos, até por não conduzir, contra o princípio da isonomia (artigos 5º, caput, e 227, § 6º,
da Constituição da República), à interpretação e ao resultado absurdos de deixar sem
explicação lógico-jurídica o tratamento normativo mais severo ao pai que tenha espontaneamente reconhecido a paternidade, o qual responde sempre, desde a citação,
pelos alimentos exigidos, e a uma classe particular de filhos, a dos não reconhecidos
espontaneamente, os quais só teriam direito a alimentos a partir da sentença que lhes
declare a filiação!”.
Com o devido respeito, o raciocínio não deve prosperar.
Como já argumentei alhures, não existe tratamento diferenciado entre o que
reconhece a filiação voluntariamente ou judicialmente.
Proposta a ação de alimentos contra o pai que reconheceu seu filho voluntariamente, esse só será condenado a prestar os alimentos a partir da sentença, visto que
se trata de uma ação condenatória, como demonstra o artigo 520, II, do Código de
Processo Civil (condenar à prestação de alimentos), com efeitos ex nunc. O artigo 13,
§ 2º da Lei nº 5.478/68 não é aplicável à ação de alimentos propriamente dita, mas às
de separação, nulidade e anulação de casamento, revisão de alimentos e respectivas
execuções, hipóteses previstas no caput do dispositivo ao qual está intimamente ligado,
só tendo cabimento a aplicação desta norma nestas ações citadas e, ainda assim, em
caso de não haver fixação de provisórios. Portanto, o dispositivo tem sua aplicação
restrita àquelas ações previstas no caput do artigo 13. Sendo assim, não só no caso de
reconhecimento voluntário, mas também no de reconhecimento judicial, os alimentos
são devidos a partir da sentença. A questão dos provisórios na lei especial tem por fim
garantir o sustento do autor durante a tramitação do feito. Ora, no caso da ação de
alimentos cumulada com investigação de paternidade, pode o requerente solicitar a
antecipação da tutela (Código de Processo Civil, art. 273) nos próprios autos ou incidentalmente propor a cautelar de alimentos provisionais (Código de Processo Civil, art.
852, II), e, portanto, não será prejudicado de forma alguma, não vingando a tese de
tratamento diferenciado.
Até porque não vejo como aplicar um dispositivo ligado a um procedimento
especial ao processo que tramita pelo rito ordinário. Além disso, como utilizar a Lei
5.478/68 que exige prova pré-constituída, se o título judicial do reconhecimento de
paternidade é que possibilitará o pedido de alimentos definitivos? Absolutamente
injurídico e inviável, não havendo se falar em ferimento ao princípio da isonomia.
b5) Tribunal de Justiça de São Paulo - JTJ 220/206-208 - 3ª Câmara
b5) de Direito Privado - desembargadores TOLEDO CÉSAR,
b5) ALFREDO MIGLIORE e FLÁVIO PINHEIRO
“Investigação de Paternidade - Cumulação com alimentos - Fixação
de provisórios - Não cabimento - Verba devida somente a partir da
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sentença de procedência da ação investigatória - Recurso provido”
Agravo de Instrumento nº 110.747-4 (Voto nº 15.481).
Os julgadores entenderam que o pressuposto lógico para o pagamento de alimentos definitivos é a procedência da investigação de paternidade. A própria Procuradoria
de Justiça entendeu que os alimentos são devidos a partir da sentença. Vejamos o teor
de parte da fundamentação:
“No mais, como consta da decisão que atribuiu efeito suspensivo
ao agravo, decisões superiores têm entendido que, nas ações de
investigação de paternidade, os alimentos devem ser fixados a
partir da sentença de procedência, e não desde a citação. Na
ponderação da douta Procuradoria-Geral de Justiça, ‘se a paternidade forçada fica reconhecida necessariamente com a prolação da
sentença ou acórdão, o que anteriormente existe é mera expectativa de direito que se torna realidade quando o autor da demanda
é proclamado ganhador. Tem-se, pois, data venia, que mais coerente será admitir que os alimentos devem ser pagos somente da
data da decisão em diante’” (fls. 85).
Mesmo porque a previsão inserta na Lei nº 5.478, de 1968, especificamente no
artigo 13, § 2º (“em qualquer caso, os alimentos fixados retroagem à data da citação”),
não tem aplicabilidade às ações de alimentos que dependem, como pressuposto, da
própria investigação da paternidade.
O relator ainda cita julgado do Superior Tribunal de Justiça (4ª Turma):
“Alimentos - Investigação de paternidade - Termo a quo. De acordo
com orientação atualmente predominante nesta Quarta Turma, o
termo a quo da pensão alimentícia fixada na sentença que julga
procedente ação de investigação de paternidade deve corresponder à data da publicação da sentença. Inaplicação da regra do
artigo 13 da Lei de Alimentos, que pressupõe prova pré-constituída
da filiação” (Recurso Especial nº 131.715-SP, DJU de 1º.12.97).
Dessa forma, não só os julgadores, mas também o próprio parquet entendeu que
os alimentos são devidos a partir da sentença, não da citação, posto que a declaração
de paternidade é pressuposto lógico do pedido de alimentos.
b6) Superior Tribunal de Justiça - RT 759/190-195 - 4ª Turma
b6) - ministros SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA (relator),
b6) CÉSAR ASFOR ROCHA, RUY ROSADO DE AGUIAR
b6) e BARROS MONTEIRO
Este julgamento foi deixado para ser o último a ser citado, justamente em razão
da riqueza da explanação do eminente ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA
defendendo a tese da qual comungo no sentido de os alimentos serem devidos a partir
da sentença, quando o pedido for cumulado com a investigação de paternidade, visto
que seus fundamentos coincidem com vários dos argumentos que defendi ao analisar
o primeiro julgado relativo a este tema.
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“Alimentos - Pedido cumulado com investigação de paternidade Inexistência de prova pré-constituída da paternidade - Verba devida
a partir da sentença, ainda que sujeita a apelação - Inaplicabilidade
do art. 13 da Lei nº 5.478/68 - Voto vencido.
Ementa Oficial: A Lei nº 5.478/68 (art. 13), pela sua própria teleologia, não incide nas ações em que se postulam alimentos inexistindo
prova pré-constituída da paternidade. Destarte, em não se aplicando
a referida lei, o dies a quo da incidência dos pretendidos alimentos
não pode ser a data da citação, mas sim da sentença, mesmo que
sujeita a apelação (Código de Processo Civil, art. 520, II)”.
REsp. nº 152.895-PR, Segredo de Justiça, 4ª T., 21.05.1998, rel.
min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, DJU 08.09.1998.
O brilhante ministro, dentre outras colocações, cita o julgado extraído da 3ª Turma
do Superior Tribunal de Justiça e arrolado pelo interessado a seu favor, no sentido de
os alimentos serem devidos a partir da sentença, assim se manifestando: “Fundou-se
aquele r. aresto na natureza declaratória da ação de investigação de paternidade,
trazendo a lume lições de CARLOS MAXIMILIANO, PONTES DE MIRANDA e ARNOLDO
MEDEIROS DA FONSECA, que, data venia, não se ajustam ao instituto dos alimentos,
sobretudo porque a ação de alimentos é de natureza condenatória, e não meramente
declaratória, pelo que dá ensejo a execução por quantia certa (Código de Processo Civil,
art. 732), além das hipóteses especiais previstas nos arts. 733-734 do mesmo diploma.
Como se vê, não há identidade ou similitude de situações”.
A bela argumentação desenvolvida naquele julgado, se ajustável ao reconhecimento da paternidade, com eficácia retroativa da decisão por força da sua natureza
declaratória, pertinência alguma tem com a ação de alimentos, de carga condenatória,
como já anotado.
Com efeito, a Lei nº 5.478/68, art.13, trata das hipóteses de “desquite, nulidade
e anulação de casamento, à revisão de sentenças proferidas em pedidos de alimentos
e respectivas execuções”, consoante expressa o seu caput, motivo pelo qual, em
qualquer desses casos, de prova pré-constituída, os alimentos retroagem à data da
citação. Já o artigo 5º da Lei nº 883/49 se insere em um diploma caracterizado pela
constante evolução verificada, através dos anos, no Direito de Família, daí suas freqüentes alterações. Diz ele:
“Na hipótese de ação investigatória da paternidade, terá direito o
autor a alimentos provisionais desde que lhe seja favorável a sentença de primeira instância, embora se haja, desta, interposto recurso”.
Como se nota, de plano, o que objetivou o legislador, sabiamente, diga-se de
passagem, foi amparar aqueles que, embora sem a prova pré-constituída, alcançassem
uma sentença favorável, mesmo que sujeita a recurso, porque, então, já disporiam de
um dado concreto, e não simples afirmações de filiação.
Ademais, não foi por outro motivo que o legislador de 1973, ao editar o Código
de Processo Civil, ao disciplinar os alimentos provisionais no Livro do processo cautelar,
previu também o seu deferimento “nos demais casos expressos em lei” (Código de
Processo Civil, art. 852, III), dentre os quais, como lembra THEODORO JR. (Processo
Cautelar, Leud, 1983, cap. X, nº 258), se coloca a hipótese do art. 5º da Lei nº 883/49.
Em suma, segundo a sistemática vigente, em casos de prova pré-constituída incide
a Lei nº 5.478/68, com a imposição dos provisionais, salvo dispensa; para os casos de
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inexistência daquela, o art. 5º da Lei nº 883/49; para as hipóteses de pretensão cautelar,
o disposto no art. 852, Código de Processo Civil.
Na doutrina, infelizmente, parcos são os pronunciamentos, limitando-se esses a
mencionar ou transcrever os textos legais.
MARCO AURÉLIO S. VIANA (Teoria e Prática do Direito de Família, Saraiva, 1983, nº
157, p. 219), porém, é explícito, ao escrever: “Na hipótese de ação investigatória da paternidade, o autor terá direito aos alimentos provisionais apenas quando a sentença de primeira
instância lhe seja favorável, ainda que interposto recurso (art. 5º da Lei nº 883/49)”.
Nesse mesmo sentido, ainda mais enfático é o magistério de YUSSEF CAHALI (Dos
Alimentos, Ed. RT, 1984, cap. X, nº 3, p. 556), verbis:
“Quanto aos descendentes, sem a prova pré-constituída da relação
de parentesco, o ilegítimo não terá ação fundada na Lei nº 5.478/
68; resta-lhe, apenas, as vias ordinárias da ação de alimentos da
Lei nº 883/49 (art. 4º), com o seu pedido cumulado ou incidente de
investigação de paternidade.
Neste caso, a rigor, os alimentos provisionais somente poderão ser
concedidos com a sentença de procedência da ação, embora pendente o recurso (art. 5º da Lei nº 883/49)”.
Em se tratando da tese ora em debate, todavia, de alimentos cumulados com
investigação de paternidade, esta Turma, no REsp. nº 56.905-RS (DJ 29.05.1995),
mudou, por 4 votos a um, sua jurisprudência. A ementa desse precedente proclamou:
“Investigação de paternidade. Alimentos. Início. Os alimentos, na
ação de paternidade julgada procedente, são devidos desde a sentença. Peculiaridade do caso. Art. 5º da Lei nº 883/49. Voto vencido”.
Assinalou, na tese, o voto condutor, da relatoria do min. RUY ROSADO DE AGUIAR:
“2. A regra do § 2º, do art. 13 da Lei nº 5.478/68: ‘Em qualquer
caso, os alimentos fixados retroagem à data da citação’, refere-se
especificamente às situações criadas nos processos regulados pela
Lei de Alimentos, a qual pressupõe uma prova pré-constituída da
obrigação alimentar e, por isso mesmo, impõe ao juiz o dever de
fixar alimentos provisórios já ao despachar a inicial (arts. 2º e 4º).
Como, nos processos submetidos a esta lei, sempre serão deferidos
alimentos provisórios, a eventual revisão deles, na forma do § 1º,
do art. 13, implicará a retroação, não integral (à data do despacho
inicial), mas à da citação (§ 2º do art. 13).
Diferentemente ocorre na ação de investigação de paternidade,
onde se está em busca da prova da relação de filiação, suporte do
dever alimentar. Para estes, não se deferem provisórios, nomenclatura restrita à Lei nº 5.478; sobrevindo sentença favorável ao investigante, o art. 5º da Lei nº 883/49 autoriza a concessão de provisionais. Penso eu que apenas a partir da sentença, uma vez que
não existe, para o caso, regra semelhante àquela do art. 13, que
favorece os que encontram abrigo na lei especial.
O sistema legal, assim interpretado, merece aplausos. Enquanto na
hipótese da Lei nº 5.478 haveria apenas a necessidade de reajustar
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prestações devidas desde a citação, nas ações de investigação de
paternidade o réu seria confrontado, ao final de um processo sabidamente demorado, com o dever de pagar o valor equivalente a
30, 40 ou mais prestações, relativas ao tempo pretérito, o que
significa a constituição de uma dívida dificilmente suportável pelo
comum dos cidadãos, à qual se acrescenta a pena de prisão.
Nessa linha de raciocínio pondero, ainda, que o investigante chegou à sentença de primeiro grau independentemente do deferimento dos provisionais e a sua concessão a posteriori, com efeito
retroativo, mais servirá para indenizar o autor do que para alimentálo, o que parece ser um desvio de finalidade.
O caso dos autos evidencia em a gravidade da situação que resultará
do deferimento da pensão desde a citação inicial, para a qual chamo
a atenção da E. Turma: o réu, que é garçom, está sendo condenado
a pagar uma dívida de 96 salários mínimos, correspondente ao tempo
pretérito, desde março de 1987, pois a ação se arrasta há mais de oito
anos, além das prestações vincendas. É fácil deduzir que o investigado não tem condições econômicas para fazer frente a esse débito,
criando-se, com isso, uma situação insustentável, com a constituição
de dívida impagável, cujo descumprimento, porém, pode resultar em
prisão. Se o devedor percebe 4,5 salários mínimos por mês, deverá
passar os próximos três anos reservando a totalidade da sua renda
para resgatar o débito já vencido e pagar a prestação mensal vincenda, que é de um salário mínimo mensal’.”
Mais recentemente, o mesmo posicionamento foi fixado no REsp. nº 142.569-SP
(DJ 16.02.1998), da relatoria do min. RUY ROSADO DE AGUIAR, assim ementado:
“Os alimentos em favor do filho que tem sua paternidade em
sentença de procedência de ação de investigação de paternidade
devem ser pagos a partir da data da sentença, e não da citação”.
E assim, pois, votou o ministro SÁLVIO, expondo a realidade dos fatos e citando
posicionamentos que bem mostraram a inaplicabilidade do artigo 13, § 2º, da Lei de
Alimentos, tese também defendida pelos ministros RUY ROSADO DE AGUIAR e CÉSAR
ASFOR ROCHA.
10 - Bibliografia
1. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil, v. V - Direito de Família, 1ª ed., Editora Atlas,
2001, pp. 244 a 255.
2. VIANA, Marco Aurélio S. Curso de Direito Civil, v. 2, Direito de Família, 2ª ed., Editora
Del Rey, 1998, pp. 234 a 247.
3. RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil, v. 6, Direito de Família, 25ª ed., Editora Saraiva, 2000,
pp. 318 a 327.
4. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, 5º v., Direito de Família, 14ª ed.,
Editora Saraiva, 1999, pp. 330 a 340.
5. SILVA PEREIRA, Caio Mário da. Instituições de Direito Civil, v. V, Direito de Família, 11ª
ed., Editora Forense, 1998, pp. 197 a 208.
6. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil, 2º v., Direito de Família, 34ª
ed., Editora Saraiva, 1997, pp. 260 a 265.
Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 83-113, mar./abr.-2002
7. GOMES, Orlando. Direito de Família, 11ª ed., Editora Forense, 1999, pp. 345 a 356 e
364 a 367.
8. WALD, Arnold. Curso de Direito Civil Brasileiro - O novo direito de família, 12ª ed.,
Editora Revista dos Tribunais, 1999, pp. 173 a 184, 423 a 443, 454 a 460 e 468 a 471.
9. LEVENHAGEN, Antônio José de Souza. Código Civil, 2, Direito de Família, 7ª ed., Editora
Atlas, 1996, pp. 211 a 214.
10. PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito Privado, tomo IX, Direito de Família, Editora
Borsoi, 1955, pp. 86 a 98.
11. RT 748/344-347.
12. RT 755/369-373.
13. RT 750/336-343.
14. RT 759/339-343 e 190-195.
15. RT 778/266-267.
16. RT 791/344-346.
17. JTJ 210/203-204.
18. JTJ 220/206-208.
19. JTJ 214/122-125.
20. JTJ 208/254-256.
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RENZO LEONARDI
Juiz do 2o Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo
1. Meio Ambiente
Pode-se dizer que meio ambiente é o habitat, o local onde os seres vivos
habitam. Em análise mais apurada, é o conjunto das condições ecológicas de um
lugar.
É matéria de interesse da ciência da vida. O ramo da Biologia que estuda as
relações dos seres entre si e o meio ambiente é a Ecologia. Surge a Ecologia com o
biólogo alemão ERNEST HEINRICH HAECKEL (1834-1919) propondo, em seu Morfologia Geral dos Organismos (1866), os delineamentos marcantes e o nome da disciplina,
uma junção das palavras gregas oikos (casa) e logos (estudo).
Para o legislador ordinário, meio ambiente é “…o conjunto de condições,
leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite,
abriga e rege a vida em todas as suas formas” (art. 3º, I, da Lei nº 6.938, de 31
de agosto de 1981).
É importante dizer que o legislador pátrio, como já se vislumbra, sobretudo quando
investido de poderes constitucionais originários, axiologicamente considerou o meio
ambiente digno de proteção jurídica, pois reconheceu a sua exauribilidade e a dependência da existência humana da manutenção do seu equilíbrio. Segundo dispõe a
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Constituição Federal do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988, em seu Título VIII
- Da ordem social, Capítulo VI - Do meio ambiente, art. 225:
“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade
o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras
gerações.”
1.1. Meio Ambiente do Trabalho. Abrangência.
Se o local em que os seres vivos habitam é o meio ambiente, o local onde os
homens labutam é o meio ambiente do trabalho, objeto de estudo da primeira parte
da nossa pesquisa.
Nesse diapasão, a CF, em seu art. 200, VIII, inseriu, explicitamente, o ambiente
de trabalho dentro do conceito amplo de meio ambiente. A doutrina mais autorizada,
por seu turno, há tempos compreende o ambiente laboral como parte integrante do
meio ambiente, e JOSÉ AFONSO DA SILVA, ao analisar a matéria, nomeou o ambiente
laboral como sendo uma espécie de meio ambiente artificial (Direito Constitucional
Ambiental, Malheiros, 4ª ed., 1995).
A preocupação hodierna com o local de trabalho e as suas influências sobre os que
nele obram, e mesmo sobre os estão em área circunvizinha à atividade econômica, é tão
acentuada que a Lei Maior, ao iniciar o Título VII - Da ordem Econômica e Financeira - no
inciso VI, art. 170, assegura, como princípio, a defesa do meio ambiente. Senão vejamos:
“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho
humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os
seguintes princípios:
...
VI - defesa do meio ambiente.”
Desta feita, e como há de se inferir da conjugação dos mencionados dispositivos
constitucionais, a defesa e proteção do ambiente trabalhista ultrapassa o âmbito de
interesses dos obreiros, individual ou coletivamente considerados, açambarcando a
toda a sociedade.
1.2. Proteção do Meio Ambiente do Trabalho.
O direito ao meio ambiente seguro e adequado é um dos primeiros a constituir o
conteúdo do contrato de trabalho, devendo ser assegurado de várias maneiras, como
veremos a seguir.
O meio ambiente do trabalho pode ser protegido, a priori ou a posteriori, afora sua
preocupação conscientizadora-participativa.
Na primeira modalidade as atitudes têm caráter eminentemente preventivo. Procura-se evitar a degradação ambiental antes que essa aconteça. É o que preceitua,
além da CF, art. 225, § 1º, IV, o art. 192, § 2º, da Constituição do Estado de São Paulo,
ao condicionar a concessão e renovação de licença ambiental — necessária à explo-
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ração econômica de alguma atividade — à aprovação em Estudo Prévio de Impacto
Ambiental. Outros métodos preventivos são a adoção de controle de poluição,(1) de
planos de contingência a serem usados em momentos catastróficos, de políticas educacionais formadoras de consciência ecológica, de EPCs e de EPIs etc.
A segunda modalidade de proteção, de enfoque reparador ou recuperador, objetiva o status quo ante do meio ambiente à lesão provocada. Tal desiderato pode ser
alcançado, dentre outras formas, mediante a responsabilização dos causadores da
degradação ambiental, seja na esfera civil, seja na penal, seja na administrativa. É o
que reza o § 3º, do art. 225, da CF:
“§ 3º. As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio
ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a
sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.”
Assim, aplicando-se esses norteamentos genéricos ao ambiente laboral, temos
que o empregador está obrigado a promover a adequação do local da atividade segundo os lineamentos fixados em lei, diminuindo a sua periculosidade e insalubridade tanto
aos obreiros como ao ambiente externo. Caso contrário, ficará à mercê das sanções
legais, muitas das quais são extremas.
As normas protetivas do meio ambiente do trabalho, afora as dispostas na Lei nº
6.938/81, são encontradiças na CLT, em todo o seu Capítulo V, do título II (da segurança
e da medicina do trabalho), e nas Leis de nos 8.212 e 8.213, ambas de 24 de julho de
1991, e regulamentos.
Talvez o mais importante dos regulamentos, pelo menos sob o prisma do trabalhador, seja a Norma Regulamentadora nº 9, com a redação dada pela Portaria nº 25,
de 29 de dezembro de 1994, a qual se destina ao Programa de Prevenção de Riscos
Ambientais. Dita norma ordena “a obrigatoriedade da elaboração e implementação,
por parte de todos os empregadores e instituições que admitam trabalhadores como
empregados, de Programa de Prevenção de Riscos Ambientais - PPRA, visando à
preservação da saúde e da integridade dos trabalhadores, através da antecipação,
reconhecimento, avaliação e conseqüente controle da ocorrência de riscos ambientais
existentes ou que venham a existir no ambiente de trabalho, tendo em consideração
a proteção do meio ambiente e dos recursos naturais”.
Ainda, na dicção dessa norma, os riscos ambientais são assim definidos:
“Constituem risco ambiental os agentes físicos, químicos e biológicos existentes em ambientes de trabalho que, em função
de sua natureza, concentração ou intensidade e tempo de exposição, são capazes de causar danos à saúde do trabalhador
(item 9.1.5).
Consideram-se agentes físicos as diversas formas de energia a
que possam estar expostos os trabalhadores, tais como ruído,
vibrações, pressões anormais, temperaturas extremas, radiações
(1)
Conforme dispõe o art. 3º, III, da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, poluição é a degradação da qualidade ambiental
resultante de atividades que, direta ou indiretamente, prejudiquem a saúde, a segurança, o bem-estar da população,
afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente, incluindo o ambiente laboral e as conseqüências nefastas,
daí resultantes, aos trabalhadores.
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não-ionizantes, radiações ionizantes, bem como o infra-som e o
ultra-som.
Agentes químicos são substâncias, compostos ou produtos que
possam penetrar no organismo pela via respiratória, nas formas de
poeiras, fumos, névoas, neblinas, gazes ou vapores que, pela natureza da atividade de exposição, possam ter contato ou ser absorvidos pelo organismo através da pele ou por ingestão.
Agentes biológicos podem ser bactérias, fungos, bacilos, parasitas,
protozoários, vírus, entre outros.”
Por fim, mister é salientar que, enquanto que o direito ambiental volta a sua
atuação à leitura coletiva, meta-individual (uso de filtros nas chaminés, p. ex.), o
direito do trabalho atua mormente sobre o indivíduo. Todavia, como se vê nas
regras das edificações, iluminações, conforto térmico, instalações elétricas etc.
(arts. 170 a 188, da CLT), já havia, mesmo que subliminarmente, preocupação
com o meio ambiente do trabalho, pelo menos no que concerne ao conforto e
bem-estar do obreiro.
No pertinente, importante observação de ordem processual há que ser feita.
A despeito da natureza do bem jurídico ofendido, o resultado danoso pode ser
causa de enorme gama de conseqüências jurídicas, atingindo a uma pessoa ou a
toda a sociedade, e cada qual estará abrigado por uma medida judicial específica.
O direito lesado, porém, continua sendo único, somente se alterando a pretensão
da parte interessada frente aos demais. Nesse sentido, o escólio do preclaro NÉLSON NERY:
“Interessante notar o engano em que vem incorrendo a doutrina, ao pretender classificar o direito segundo a matéria genérica, dizendo, por exemplo, que meio ambiente é direito difuso,
consumidor é coletivo etc. Na verdade, o que determina a classificação de um direito como difuso, coletivo, individual puro
ou individual homogêneo é o tipo de tutela jurisdicional que se
pretende quando se propõe a competente ação judicial. O
mesmo fato pode dar ensejo a pretensão difusa, coletiva e individual. O acidente com o Bateau Mouche IV, que teve lugar
no Rio de Janeiro no final de 1988, poderia abrir oportunidade
para a propositura de ação individual por uma das vítimas do
evento pelos prejuízos que sofreu (direito individual), ação de
indenização em favor de todas as vítimas ajuizada por entidade associativa (direito individual homogêneo), ação de obrigação de fazer movida por associação de empresas de turismo
que têm interessa na manutenção da boa imagem desse setor
da economia (direito coletivo), bem como ação ajuizada pelo
Ministério Público, em favor da vida e segurança das pessoas,
para que seja interditada a embarcação a fim de se evitarem
novos acidentes (direito difuso). Em suma, o tipo de pretensão
é o que classifica um direito ou interesse como difuso, coletivo
ou individual” (NELSON NERY JÚNIOR, Princípios do Processo
Civil na Constituição Federal, ed. RT, 1992).
Outra importante distinção, que se impõe comentar, é o fato de que o trabalhador,
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enquanto ser unitário, quando vitimado por algum mal decorrente de pernicioso meio
ambiente laboral, pode buscar a tutela jurídica das suas pretensões pessoalmente,
individualmente.
Todavia, se a agressividade apresentada(2) pelo meio ambiente laboral atinge não
só um indivíduo, por ser este mais suscetível do que a média dos homens, mas uma classe,
uma coletividade ou toda a sociedade, perfazendo-se o dano em razão de desrespeito às
regras regulamentares de preservação ou adequação do meio, a proteção transcenderá
o operário e deverá ser promovida pelo órgão do Ministério Público competente (ou
promotor natural) ou pelas entidades legitimadas, que, no caso, seriam os sindicatos. In
casu, o instrumento pelo qual se daria a proteção coletiva dos trabalhadores é a Ação Civil
Pública, que está disciplinada pela Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985.
Em apertada síntese, concluímos que o meio ambiente do trabalho deve ser
preservado ou recuperado de dois modos:
1) pelo trabalhador, com a qualificação profissional e destreza necessária que deve possuir para manejar os instrumentos de sua atividade, além de organizar apropriadamente o seu local de atividades;
2) e pelo implemento de adequado meio ambiente laboral, que
depende dos empresários (custeio dos ônus sociais), dos sindicatos
(representação e defesa das categorias) e do Estado (agente fiscalizador da higiene e segurança do trabalho).
2. Acidente do Trabalho
A antiga Lei nº 6.367, de 19 de outubro de 1976, a cognominada Lei da Infortunística, conceituava, com exatidão, em seu art. 2º, o que é acidente do trabalho, relacionando, nos seus incisos, os eventos a ele equiparados. O atual diploma legal, a Lei nº
8.213, de 24 de julho de 1991, no seu art. 19,(3) também conceitua o que é acidente do
trabalho. Podemos, entrementes, sem olvidarmos os textos mencionados, apresentar um
conceito conciso, que objetiva abranger todas as hipóteses elencadas em lei.
Assim, pode-se dizer que “acidente do trabalho é o evento danoso que ocorre com
o obreiro no exercício dos misteres que lhe são atribuídos enquanto a serviço da
empresa. Portanto, é o fato que provoca, imediata ou mediatamente, lesão corporal,
perturbação funcional ou do doença que leve à morte, à perda total ou parcial, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho, o que engloba, também, os
acidentes suportados no ir e vir do trabalho para o lar, e vice-versa. Esta última modalidade se denomina acidente in itinere”.
O que verdadeiramente caracteriza o acidente do trabalho, independentemente do evento ser típico ou atípico, como veremos abaixo, é o fato de ser ele o
resultado do nexo entre uma ocorrência (causa) e uma lesão corporal ou perturbação funcional (efeito), havendo, portanto, uma indispensável conexão entre o acidente e a vítima.
(2)
(3)
Observe-se que a ofensa, in concreto, não precisa existir. Basta o risco de dano, que se configura pelo desatendimento às
normas, estar evidenciado para justificar a propositura da inquinada ação, pois presente a necessária causa petendi.
“Art. 19. Acidente do trabalho é o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço da empresa ou pelo exercício do trabalho
dos segurados referidos no inciso VII do art. 11 desta lei, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause
a morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho.”
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2.1. Modalidades de Acidente do Trabalho.
Quando o acidente do trabalho decorre de um acontecimento súbito, violento,
externo e involuntário na prática do trabalho, constituindo elemento central a lesão, a
qual atinge ou debilita o corpo ou o espírito, temos o que se convencionou chamar de
acidente do trabalho típico.
Por seu turno, o acidente do trabalho atípico, ou por equiparação, é o que decorre
de doença profissional (latu sensu), sendo esta entendida como a inerente ou peculiar a
determinado ramo de atividade e constante de relação organizada pelo Ministério da
Previdência e Assistência Social. Assim, as doenças profissionais são deficiências que
surgem nos operários em função de sua vida profissional, ou por estarem em permanente
contato com substâncias que provocam sérias debilidades no organismo ou por exercerem
tarefas diárias que envolvam fatos ligados ao que a lei entende por insalubre.
Por derradeiro, sobre as doenças profissionais latu sensu, também chamadas de
ergopatias, são elas subdivididas em tecnopatias (doenças advindas do trabalho especializado) e mesopatias (doenças que acometem o trabalhador em virtude das próprias
condições mesológicas em que atua). A primeira é doença profissional classificada pela
lei como tal, ao passo que a segunda é moléstia não classificada pelo regramento
jurídico como profissional, mas a sua eclosão decorre de condições específicas do
trabalho ou de fatores físicos, químicos, mecânicos, psíquicos etc., sendo assimilada a
sua ocorrência como integrante da acidentária laboral.
Sob esse ângulo, a título de observação elucidativa, cumpre estabelecer um liame
com a parte primeira do nosso estudo. Quando as doenças profissionais advêm da
poluição no ambiente de trabalho, devem ser aplicadas as penalidades definidas na Lei
de Política Nacional do Meio Ambiente, as quais podemos destacar:
•
•
•
•
•
•
Multa;
Perda ou restrição de incentivos e benefícios fiscais
concedidos pelo Poder Público;
Perda ou suspensão de participação de sua atividade;
Indenização ou reparação de danos; ou,
Reclusão.
E, nesse lanço, é preciso ressaltar o que informa a infortunística, o ramo da
Medicina Legal que estuda os riscos e acidentes oriundos do trabalho, compreendendo
as doenças profissionais, apontando vários fatores para o grande índice de vítimas do
trabalho entre nós. Podemos destacar as máquinas que não oferecem segurança em
seu manuseio, estando disconformes às regras que as disciplinam, os locais de trabalho
que não atendem ao mínimo de segurança e higiene, e, por fim, o não fornecimento
de EPCs e EPIs pelos empregadores.
2.2. Responsabilidade
Todos as pessoas são responsáveis, em maior ou menor grau, pelas conseqüências
dos seus atos, salvo as exceções legais, nas quais, comumente, atribui-se a outrem o dever
de indenizar. O fundamento da responsabilidade civil repousa sobre o neminem laedere
(não lesar o próximo) e pode ter origem em ato ilícito (responsabilidade por ato ilícito),
na inexecução de contrato (responsabilidade contratual) ou na própria lei (responsabilidade legal). As três espécies têm, em comum, a indenização pelo dano causado.
Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 117-126, mar./abr.-2002
2.2.1. Noções Fundamentais dos atos ilícitos
Os elementos do ato ilícito são: a conduta, que pode ser comissiva ou omissiva;
o componente volitivo, que pode ser culposo ou doloso; a ocorrência do resultado
danoso, atingindo o patrimônio econômico ou moral da vítima, ou a ambos; o nexo
causal, liame existente entre a conduta e o dano perpetrado.
A vontade, que vimos se subdividir em dolo e culpa, pode ser estudada com maior
riqueza de detalhes. Comecemos pelo dolo. O dolo pode ser direto, quando o agente
buscou o resultado (art. 18, I, primeira parte do CP), ou pode ser indireto, quando o
agente assumiu o risco da produção do resultado (art. 18, I, parte última). Este comporta
duas classificações: o alternativo, quando, havendo a previsibilidade de vários resultados, o agente quer um ou outro; e o eventual, quando o agente verdadeiramente
não quer o resultado, mas o assume.
A culpa ocorre quando o agente, transgredindo dever preexistente, procede imprudente (agir sem cautela), imperita (agir sem a habilidade necessária) ou negligentemente (omitir-se, menosprezando o momento em que devia agir). Há várias modalidades de culpa. Podemos destacar a culpa in eligendo (má escolha de representante
ou preposto), a culpa in vigilando (originada da atividade de empregados ou prepostos)
e a culpa in custodiendo (quando algo ou alguém se encontra sob os cuidados do
agente). A culpa, ainda, configura-se em vários graus. A culpa grave pode ser explicada como aquela em que o ato foge ao senso comum dos homem (afronta ao princípio
do homo medius). Diz-se culpa leve quando o resultado era evitável com cuidados
ordinários. Culpa levíssima, por derradeiro, é aquela cujo resultado somente se podia
evitar com atenção extraordinária.
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2.3. A Responsabilidade e o Acidente do Trabalho
A responsabilidade em matéria acidentária pode ser penal, administrativa e civil.
A responsabilidade penal.
A responsabilidade penal do empregador e prepostos encontra-se prevista nos
arts. 121, §§ 3º e 4º, 129, 130, 132, todos do Código Penal, no art. 19, da Lei nº 8.213/
91e no art. 15, da Lei nº 6.938/81. Pode-se afirmar que, basicamente, a responsabilidade criminal decorre não só pelo acidente do trabalho, quando o preposto ou empregador agem com dolo ou culpa, mas, outrossim, pelo fato de não cumprirem com
as normas de segurança e higiene do trabalho, periclitando a vida de outrem. A
competência para apreciar tais questões é da Justiça Comum Estadual.
A responsabilidade administrativa.
O § 3º, do art. 225, da CF estabelece que as condutas e atividades lesivas ao meio
ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. Como exemplos
de sanções administrativas, é bastante reportar-se ao item 2.2.1. do presente estudo.
A responsabilidade de natureza civil.
Há três teorias acerca da responsabilidade civil: a subjetiva (responsabilidade civil
aquiliana), a objetiva e a do risco.
A teoria subjetiva acarreta a reparação do dano sempre que o elemento
volitivo possa ser provado. Há, pois, a necessidade da apuração da culpa latu sensu.
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Esta é a teoria acolhida pelo nosso Código Civil, originada na lex aquilia.
A teoria da responsabilidade objetiva dispõe, porém, que quem lucra com certa
atividade tem o dever de indenizar o dano decorrente do seu exercício, excetuandose os casos fortuitos ou de força maior. Origina-se, pois, da simples causalidade material, não se indagando da existência de culpa.
Pela teoria do risco, contudo, o exercente da atividade, por colher os frutos
lucrativos dessa, sempre assume todos os riscos advindos da produção desse lucro. Não
admite qualquer exclusão de responsabilidade.
2.3.1. Diferenças Gerais entre o Seguro-previdenciário
2.3.1. e a Responsabilidade Civil do Empregador.
É cânone constitucional que os trabalhadores urbanos e rurais têm direito ao
seguro contra acidente do trabalho, este a cargo do empregador, sem, porém, que haja
a exclusão da indenização a que esse, em caso de dolo ou culpa, está obrigado (art.
7º, XXVIII, da CF).
Antes havia a Súmula 229 do STF, que dizia que a “indenização acidentária não
exclui a do direito comum, em caso de dolo ou culpa grave do empregador”, de caráter
mais restritivo. Mas, com o advento da Carta Magna de outubro de 1988, essa orientação mudou, pois a antiga súmula foi superada pelo maior alcance do dispositivo
declinado, que só menciona a culpa em sentido genérico, abrangendo, logo, além da
culpa grave, as modalidades leves e levíssimas de conduta.
A reparação infortunística decorre da teoria do risco (a qual é própria dos institutos
que se valem das regras gerais atinentes a seguros), amparada pelo seguro social a
cargo da Previdência Social, enquanto que a responsabilidade civil comum tem como
supedâneo a culpa do patrão ou seu preposto. Portanto, as causas e os sujeitos passivos
da obrigação de reparar são distintos.
A diferença entre as duas ações revela-se também clara em seus aspectos teleológicos. Na acidentária, a vítima ou seus beneficiários recebem uma prestação tarifada
na lei, ou seja, os benefícios correlacionam-se ao salário-contribuição, limitado a um
teto. Quando o acidente perfaz-se dentro do natural risco do exercício da labuta, a
reparação infortunística resulta satisfatória, visto que, pela teoria do risco adotada pela
lei, o trabalhador recebe menos, mas recebe sempre.
No entanto, se o infortúnio ocorrer em virtude da inexecução de diligência a que
o empregador está obrigado na prevenção de acidentes, incide a regra do art. 159, do
CC. Assim, detectado o dolo ou a culpa, pode o acidentado, ou seus beneficiários, em
caso de óbito, receber as duas reparações, sem compensação.
São esses direitos ressarcitórios autônomos e fundados em pressupostos diferentes: a prestação pecuniária acidentária é coberta pelas contribuições e paga pela
previdência social, que responde por obrigação própria, e a indenização civil é reparadora de dano decorrente de ato ilícito.
Da responsabilidade objetiva.
Alguns entendem, a contrario sensu, que a reparação civil, pelo menos quando
a atividade ou o serviço explorados são patentemente perigosos, faz-se pela forma
objetiva, pois, nesses casos, há enorme dificuldade em o autor provar a culpa, do
empregador ou do preposto, em agir com falta de precaução elementar ou de manutenção de maquinário, por exemplo.
Data venia, acreditamos não ser esse o entendimento mais acertado. As normas
Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 117-126, mar./abr.-2002
são claras e, sobretudo, a Constituição Federal fixa a necessidade da prova do dolo ou
culpa do patrão, não abrindo espaço para a presunção de sua culpa e nem de inversão
do ônus da prova, o que, aliás, é tema mais afeito às ciências processuais do que
propriamente materiais.
A responsabilidade objetiva é adotada, tão-somente, quando o acidente ocorrido
no meio ambiente do trabalho violar o direito coletivo ou difuso. Desse modo, não só
o trabalhador, e sim toda a sociedade, sofrerá com as conseqüências da fonte poluidora,
autorizando o Ministério Público e outros entes legitimados a fazer uso da ação civil
pública, cuja sentença fará coisa julgada erga omnes. E, de acordo com os ditames do
decisum, o trabalhador vitimado e incapacitado não precisará provar o dolo ou culpa
do empregador, mas, apenas, o nexo causal entre o evento poluidor (conduta) e a
incapacidade laborativa (dano).
3. O Meio Ambiente do Trabalho e o Acidente do Trabalho.
O primeiro reflexo dos danos ambientais trabalhistas é o risco potencial ou concreto de ofensa ao trabalho. Nada custa rememorar que o seguro contra acidentes do
trabalho, integrado ao sistema previdenciário social, é mantido e lastreado pela sociedade em geral, consoante dispõe a CF, em seus arts. 194, 195 e 201, e a Lei nº 8.212/
91, no art. 10.
Dessarte, a continuar com o diuturno e perverso acontecimento de acidentes do
trabalho, a sociedade brasileira perderá duas vezes: primeiro, terá subtraída parte
substancial de sua força de trabalho, condição sine qua non de geração de riquezas;
por último, desembolsará mais com contribuições sociais e impostos para sustentar o
sistema previdenciário, cujos fundos, como é público e notório, são insuficientes para
prover a demanda que clama por um digno esteio de seus segurados.
Conforme tudo o que foi estudado, ao mesmo tempo em que se deve defender
a saúde do trabalhador, cuidando do meio onde ele desempenha as suas atividades,
tem-se que a exposição ao risco é indissociável a certas profissões em nosso atual
estágio de desenvolvimento tecnológico. Em contrapartida, não se deve ser conivente
com a livre agressão à saúde do trabalhador.
Assim, dada a impossibilidade da extinção do risco, o legislador constitucional
garante a percepção de adicional remunerativo e, tanto em nível constitucional, como
no infraconstitucional, promulga leis no sentido de fiscalizar e controlar a insalubridade
e o perigo da atividade, regulando o meio ambiente laboral. Procura, também, fomentar a redução dos riscos da atividades, e assim atua para evitar que se concretize a
célebre frase do revolucionário Papa LEÃO XIII:
“A matéria inorgânica sai da fábrica engrandecida; o homem,
criado à imagem e semelhança de Deus, dela sai envilecido”.
4. Bibliografia
1. AGUIAR DIAS, José de. Da Responsabilidade Civil, 5ª ed., vol. II, Editora Forense, Rio de
Janeiro, 1992.
2. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional, 6ª ed., Livraria Almedina, Coimbra,
1993.
3. CASTRO, Amílcar de. Comentários ao CPC, 2ª ed., Ed. RT, vol. VIII, 1973.
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..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura
4. FIORILLO, Celso Antônio Pacheco e RODRIGUES, Marcelo Abelha. Manual de Direito
Ambiental e Legislação Aplicável, 1ª ed., Max Limonad editores, São Paulo, 1997.
5. MENDES, René. Medicina do Trabalho e Doenças Profissionais, Sarvier S/A Editora de
Livros Médicos, São Paulo, 1980.
6. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao Direito do Trabalho, 23ª ed., Editora LTR,
São Paulo, 1997.
7. PAZZIANOTTO, Almir. Direito Ambiental do Trabalho, Revista CEJ, vol. 1, nº 3, dezembro/97, pp. 5/11.
8. PINTO MARTINS, Sérgio. Direito da Seguridade Social, 8ª ed., Editora Atlas S/A, São
Paulo, 1997.
9. POHLMANN SAAD, Teresinha Lorena. Responsabilidade Civil da Empresa nos Acidentes
de Trabalho, LTR Editora Ltda., São Paulo, 1993.
10. SALEM NETO, José. Acidentes do Trabalho, 2ª ed., Editora Universitária do Direito
Ltda., São Paulo, 1985.
11. SILVA, José Afonso da. Direito Constitucional Ambiental, 4ª ed., Malheiros Editores
Ltda., São Paulo, 1995.
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LOURI GERALDO BARBIERO
Juiz de Direito em São Paulo
Registro, prima facie, que a meta principal deste trabalho é a de demonstrar, diante
das regras processuais já existentes, que o nascituro é detentor de direitos processuais no
pedido de alvará para autorização de aborto e de sugerir inovações e modificações
legislativas, tudo com o objetivo final de proteger o maior de todos os direitos: o direito
à vida. O trabalho se restringe a aspectos processuais, sem qualquer exame quanto ao
mérito do pedido, ou seja, se deve ou não ser deferido o pedido e em quais casos.
1) Da impossibilidade jurídica do pedido
O pedido de alvará para autorização de aborto, na verdade, no nosso modesto
pensar, não deveria sequer ser conhecido, posto que:
— trata-se de pedido juridicamente impossível diante da falta de previsão legal
em nosso ordenamento jurídico;
NOTA: Artigo publicado na Revista Panorama da Justiça, nº 26, Boletim IBCCRIM nº 101 e Revista Justiça e Poder, nº 24.
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— a hipótese não se enquadra em nenhum dos casos de competência das Varas
Criminais, conforme definidos no art. 28 do Código Judiciário do Estado de São Paulo
(Decreto-Lei Complementar nº 3, de 28.08.1969);
— a hipótese também não se enquadra na competência das Varas da Família e
Sucessões e da Infância e Juventude (arts. 37 e 39 do Código Judiciário);
— não se trata de ação cautelar penal, pois não está vinculado a nenhum processo
futuro ou em curso;
— o exame do pedido, como procedimento administrativo, usurpa e frustra a
competência jurisdicional própria, que é a do Juízo penal, ex post facto (RT 734/537);
— o artigo 128 do Código Penal não contempla, entre os requisitos para o aborto
legal, a autorização judicial;
— a lei vigente não contempla o chamado aborto eugênico como legal e, portanto, não há que se falar em autorização judicial para a sua prática;
— o maior direito do nascituro, protegido pelo sistema jurídico nacional, é o de
nascer com vida, mesmo que venha a ocorrer o óbito no período neonatal;
— nenhum juiz está autorizado a permitir o cometimento de um crime (não
importa que eximido de pena), ou, mesmo não sendo crime, de um ato ilícito, de uma
ação contrária à lei (RJTJESP 99/25).
Como ensina GERALDO BATISTA DE SIQUEIRA (in Aborto Humanitário: Autorização Judicial, RT 675/301), “A autorização judicial, a cuja exigência a imprensa nacional
tem emprestado tanto destaque nos mais variados recantos do País, é figura absolutamente alheia, estranha aos requisitos da tipicidade especial, insculpidos na moldura da
norma descrita no art. 128, I e II, do CP.”
Segundo ANTÔNIO CHAVES, a autorização judicial para que o médico realize o
abortamento é absolutamente desnecessária, “ficando a intervenção ao inteiro arbítrio
do médico” (cf. Direito à Vida e ao Próprio Corpo, ed. Revista dos Tribunais, 2ª ed., p. 29).
O mesmo entendimento foi externado pelo magistrado WANDERLEY JOSÉ FEDERIGH, em artigo publicado no O Estado de S.Paulo, de 30.3.1986, p. 40: “Não havendo
menção expressa na lei à necessidade de autorização judicial para a prática do aborto,
não há justa causa para a invocação da prestação jurisdicional. A função do juiz é a de
vigilante e aplicador da lei. Se esta já é clara, nada há a ser interpretado. O juiz,
chamado a autorizar um aborto, nada mais pode fazer além de declarar que, nos casos
dos incisos I e II do artigo 128 do Código Penal, não há crime, mas não lhe cabe conceder
a referida autorização”.
2) Do Juízo competente
Apesar da falta de previsão legal, tanto material como processual, o pedido de
alvará para autorização de aborto vem sendo conhecido. Em alguns estados pelas varas
cíveis e em outros pelas varas criminais e, no caso especial da Comarca de São Paulo,
pelo DIPO - Departamento de Inquéritos Policiais (no decorrer deste ano 2000, foram
autorizados pelo DIPO 33 casos - 30 relacionados com os abortos eugênico e terapêutico
e 3, com o chamado humanitário).
Uma vez conhecidos os pedidos, como tem ocorrido, mister que sejam processados pelo Juízo competente.
Não há dúvida de que a matéria é penal e de competência do Tribunal do Júri, a
quem compete julgar os crimes dolosos contra a vida, consumados ou tentados, dentre
eles o de aborto (art. 5º, inciso XXXVIII, da CF. e 74, § 1º, do CPP).
Assim sendo, faz-se necessário a edição de norma processual penal, que preveja
Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 127-130, mar./abr.-2002
a necessidade de alvará judicial para a prática do aborto legal, bem como o juízo
competente para a sua apreciação, com a necessária intervenção de curador de incapazes e de curador especial ao nascituro, como adiante se verá, tendo em vista o
evidente conflito de interesses existente entre o nascituro e a gestante.
Sugere-se, assim, a criação de parágrafos no artigo 128 do Código Penal atual ou
no artigo 127 do Projeto da parte especial do Código Penal, em trâmite no Congresso
Nacional, de mais um inciso nos artigos 497 e 574 e de nova redação ao artigo 612,
todos do Código de Processo Penal, com a seguinte redação:
“Art. 128 ou 127 do Código Penal...
I - ...
II - ...
§ 1º - Nas hipóteses acima, a gestante, ou seu representante legal,
deverá requerer ao Presidente do Tribunal do Júri autorização para
o abortamento, em pedido devidamente instruído.
§ 2º - O juiz, sob pena de nulidade, nomeará curador especial ao
nascituro.
§ 3º - Após a oitiva dos interessados e da realização da prova
pericial, com a manifestação do curador especial nomeado e do
Ministério Público, este na função de curador de incapazes e de
dominus litis, o juiz deferirá ou não o pedido.
§ 4º - Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito
senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença que conceder
o alvará. Neste caso, o juiz ordenará a remessa dos autos ao tribunal, haja ou não apelação voluntária da parte vencida; não o fazendo, poderá o presidente do tribunal avocá-los.
§ 5º - O deferimento do alvará não obstará futura ação penal pelo
crime de aborto, nos casos de dolo, fraude ou má fé na formulação
do pedido.
Art. 497 do Código de Processo Penal ...
...
...
XII - apreciar e decidir pedidos de autorização de aborto, nos termos
do artigo 128 e seus parágrafos do Código Penal.
Art. 574 do Código de Processo Penal ...
...
...
III - da sentença que conceder alvará para a realização de aborto
(art. 128, § 4º, do Código Penal).
Art. 612. Os recursos de habeas corpus e a apelação previstos no
artigo 128, § 4º, do Código Penal, designado o relator, serão julgados na primeira sessão.”
3) Da necessidade de nomeação de curador à lide
A Constituição Federal, em seus artigos 5º e 227, garante e assegura a todos a
inviolabilidade do direito à vida, inclusive a intra-uterina.
A legislação infraconstitucional brasileira, como não poderia deixar de ser ante a
norma constitucional, também protege o bem jurídico fundamental da vida, a começar
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pela criminalização do aborto, em seus artigos 124 a 127 do Código Penal vigente.
Por sua vez, o Código Civil Brasileiro dispõe que: “A personalidade civil do homem
começa do nascimento com vida: mas a lei põe a salvo desde a concepção os
direitos do nascituro” (art. 4º).
Como sabemos, nascituro é o ser já concebido, mas que ainda se encontra no
ventre materno. O Código Civil protege as expectativas de direito do nascituro, que se
confirmam se houver nascimento com vida, ou se desmentem, como se nunca tivessem
existido, no caso contrário. Não tem personalidade, mas, desde a concepção, é como
se tivesse. Assim, o nascituro é herdeiro, pode receber doações e legados, pode ser
adotado, reconhecido e legitimado. Pode agir através de seu curador. Pode figurar
como sujeito ativo e passivo de obrigações. A eficácia de tudo, porém, fica na dependência do nascimento com vida.
Em numerosos textos, o legislador volta sua atenção para aquele que apenas foi
concebido (Cód. Civil, arts. 353, 357, parágrafo único, 372, 377, 458, 462 e 1.718;
Cód. Proc. Civil, arts. 877 e 878; Cód. Penal, arts. 124 e 128).
O Código de Processo Civil, a seu turno, determina no seu artigo 9º, inciso I, que:
“O juiz dará curador especial ao incapaz, se não tiver representante legal, ou se os
interesses deste colidirem com os daquele;”. O curador especial a que se refere o
Código é também chamado curador à lide para distingui-lo do curador representante
legal do incapaz nos atos da vida civil.
É evidente que, nesse caso, o conflito de interesses pode acarretar prejuízo para
o incapaz. Não importa a idoneidade do representante; a lei, para resguardo dos
interesses do incapaz, afasta seu representante e o substitui por curador especial, que
servirá apenas para a causa.
Ao curador especial incumbe defender o incapaz, velar pelos seus interesses, no
que diz respeito à regularidade de todos os atos processuais, cabendo-lhe ampla defesa
dos direitos da parte representada, tais como contestar e recorrer de todas as decisões.
Embora, em princípio, os incapazes, a que se refere o dispositivo, sejam aqueles
enumerados nos artigos 5º e 6º do Código Civil, dentre os quais não figura o nascituro,
forçoso reconhecer que, se a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro, nos termos do art. 4º do Código Civil, sendo o direito à vida o mais importante
deles, tem ele direito à nomeação de curador especial sempre que os seus
interesses colidirem com os do representante legal. E não há dúvida de que, no
pedido de alvará para realização do aborto, qualquer que seja ele (necessário, sentimental ou eugênico), há uma colidência de interesses. O nascituro quer nascer e a
gestante quer abortá-lo.
Frise-se, embora desnecessária, que a nomeação, pelo juiz, de um curador especial não exclui a necessidade de intervenção do Ministério Público, na função de
dominus litis, exercida no processo penal, e nem com a de custos legis, na causa
em que houver interesse de incapazes, e que está prevista no art. 82, inciso I, do Código
de Processo Civil, porque a função desse curador à lide equivale à do pai ou tutor de
menor ou curador de louco, surdo-mudo, ou pródigo.
Com a nomeação do curador à lide, o nascituro ficaria devidamente representado
e defendido. E o curador, na hipótese de concessão do alvará para realização do aborto,
poderia recorrer, assegurando o exame do pedido em segundo grau de jurisdição.
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Coordenação Geral
Claudia de Lima Menge
Capa
Escola Paulista da Magistratura
Diagramação
Ameruso Artes Gráficas
Formato
175 x 245 mm
Mancha
130 x 223 mm
Tipologia
Frutiger
Papel
Capa: Cartão Revestido 250g/m2
Miolo: Offset Branco 90g/m2
Acabamento
Cadernos de 16pp.
costurados e colados - brochura
Tiragem
3.500 exemplares
Impressão
Imprensa Oficial do Estado
Abril de 2002
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