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CADERNOS JURÍDICOS ESCOLA PAULISTA DA MAGISTRATURA Volume 3 - número 8 - mar./abr.2002 São Paulo - 2002 ESCOLA PAULISTA DA MAGISTRATURA Diretor DESEMBARGADOR HÉLIO QUAGLIA BARBOSA Vice-Diretor DESEMBARGADOR CARLOS AUGUSTO GUIMARÃES E SOUZA JÚNIOR Coordenação CLAUDIA DE LIMA MENGE Comissão Coordenadora ANTONIO CARLOS VILLEN JEFERSON MOREIRA DE CARVALHO PEDRO PAULO FERRONATO RUI PORTO DIAS IMPRENSA OFICIAL DO ESTADO Diretor Presidente SÉRGIO KOBAYASHI Diretor Vice-Presidente LUIZ CARLOS FRIGERIO Diretor Industrial CARLOS NICOLAEWSKY Diretor Financeiro e Administrativo RICHARD VAINBERG Coordenador Editorial CARLOS TAUFIK HADDAD CADERNOS JURÍDICOS ESCOLA PAULISTA DA MAGISTRATURA Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 1-132, mar./abr.2002 COMO PARTICIPAR: Magistrados de todo o país que queiram enviar trabalho ou decisão para publicação nestes “Cadernos”, acerca de temas atuais de interesse para toda a comunidade jurídica, julgados recentes de todas as instâncias, comentários e estudos sobre novas tendências jurisprudenciais e alterações legislativas diretamente ligadas à atividade jurisprudencial, devem fazê-lo por e-mail, malote ou correio, juntando, ao material impresso, gravação em disquete, na versão do aplicativo Word (ambiente Windows). Os endereços são os seguintes: Escola Paulista da Magistratura - Rua da Consolação, 1483 - 2º e 3º andares, CEP 01301100, São Paulo - SP, a/c César Lacerda; e-mail: [email protected] Os trabalhos e decisões passarão pela avaliação da Comissão Organizadora, que poderá ou não recomendar sua publicação, tendo em vista os objetivos dos “Cadernos”, implicando essa publicação a remessa em cessão à EPM dos direitos autorais correspondentes. CADERNOS JURÍDICOS / Escola Paulista da Magistratura V. 1, n. 1 (2000) - São Paulo: Escola Paulista da Magistratura/ Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2000 Bimestral 2000, V. 1 (1 - 2) 2001, V. 2 (3 - 4 - 5 - 6) 2002, V. 3 (7 - 8 Direito Jurisprudência CDU 34(05) CDU 35(05) Escola Paulista da Magistratura Imprensa Oficial do Estado Rua da Consolação, 1483 - 2º e 3º andares Rua da Mooca, 1921 01301-100 - São Paulo - SP 03103-902 - São Paulo - SP Tels. (0xx11) 3255-0815/3257-8954 Tel. (0xx11) 6099-9800 www.epm.org.br www.imprensaoficial.com.br e-mail:[email protected] [email protected] SAC 0800-123401 Volume 3 Número 8 Mar./Abr. 2002 I – Decisões, Sentenças e Acórdãos 1. Sentença. Pedido de Falência. Indeferimento da inicial. Falta de interesse de agir. Análise doutrinária e jurisprudencial do instituto. ............................................................ 9 Manoel Justino Bezerra Filho 2. Sentença. Cartão de crédito. Abusividade dos juros praticados pela administradora. Análise de cláusulas contratuais frente ao Código de Defesa do Consumidor. Procedência parcial. ................ 21 Rodrigo Marzola Colombini 3. Sentença. Administrativo e constitucional. Ação de cobrança. Preclusão do direito de juntar documento. Nulidade do contrato por inexistência de licitação. Improcedência. ................................. 27 Francisco Glauber Pessoa Alves 4. Sentença. Extinção de fideicomisso. Nulidade de citação afastada. Legitimidade ativa reconhecida. Nulidade de fideicomisso instituído além do segundo grau. Procedência. ............................................... 33 José Antonio Tedeschi 5. Sentença. Indenização por danos morais. Prática de adultério. Procedência parcial. ........................................ 41 Bruno José Berti Filho 6. Sentença. Progressão para regime semi-aberto obstada por força de decreto de prisão cautelar em razão de pronúncia. .................................................................... 45 Carlos Fonseca Monnerat 7. Sentença. Inventário. Pretendida interpretação de cláusula de testamento público em benefício dos sucessores da herdeira instituída, pré-morta, por força de instrumento particular. Indeferimento. Conversão em herança jacente. ........................................................ 47 Daniela Maria Cilento Morsello Acórdão de confirmação em recurso de apelação .......................... 50 Relator: des. Ênio Santarelli Zuliani Acórdão em Recurso Especial. Não-conhecimento do recurso por maioria ..................................... 53 Relator: min. Sálvio Figueiredo Teixeira 8. Sentença. Indenização por danos morais e materiais. Assédio sexual no trabalho. Improcedência. ................................... 63 Paulo Alcides Amaral Salles 9. Sentença. Registro de Imóveis. Averbação direta de Bula Papal independentemente de ato translativo de domínio. Procedência. ............................................ 67 Sérgio Araújo Gomes 10.Sentença. Pretendida condenação do Estado ao fornecimento de medicamentos, materiais hospitalares e produtos de higiene e limpeza. Antecipação da tutela. Procedência. .................................................... 73 Carlos Alberto M. S. M. Violante II – Análise de Jurisprudência 1. Disputa de bens na separação de fato do casal ................................... 79 Euclides de Oliveira 2. A ação de investigação de paternidade. ............................................... 83 Alexandre Betini III – Estudos 1. Meio ambiente do trabalho e a responsabilidade civil e penal das empresas. .................................... 117 Renzo Leonardi 2. Da necessidade de nomeação de curador à lide nos pedidos de alvarás para realização de aborto. ............................ 127 Louri Geraldo Barbiero 8 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. 9 29ª VARA CÍVEL CENTRAL DA CAPITAL DO ESTADO DE SÃO PAULO. VISTOS. IPIRANGA COMERCIAL QUÍMICA S/A ajuizou PEDIDO DE FALÊNCIA contra a empresa individual FABIANA PRADO FILHO, alegando que esta está a dever-lhe a importância de R$ 6.700,00, relativa à venda de mercadorias e que, embora tenha empreendido todos os esforços para solução do problema, não logrou qualquer êxito, razão pela qual pede seja a requerida citada para responder aos termos da presente, sob pena de lhe ser decretada a falência. Com a inicial (fls. 2/3), juntou documentos (fls. 4/16). Em atendimento ao despacho de fls. 17, veio aos autos a certidão de fls. 18, informando não haver qualquer outro requerimento de falência contra a empresa. É o relatório. PASSO A DECIDIR: Está em formação corrente de pensamento que poderia ser rapidamente resumida Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 9-19, mar./abr.-2002 10 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura no seguinte postulado: o requerimento de falência não é ação de cobrança e, portanto, não se presta a funcionar como meio de cobrança à disposição do credor; por isso mesmo, o pedido não pode prosperar quando está sendo manejado por credor único, que instrui seu pedido com débito de pequeno valor. Como resultado final de tal forma de encarar a questão, se houver requerimento de falência em tais condições, deverá ele ser indeferido, por carecer o credor de interesse jurídico para o pedido apresentado. A falência não é meio de cobrança, e sim, um instrumento colocado à disposição do credor para afastar do meio comercial aquele que não tem condições de nele permanecer, por estar em estado de insolvência. A credibilidade que o comércio em geral necessita ostentar é de interesse público, a ser preservado para que a própria segurança da economia do País seja preservada. Qualquer um que tenha conhecimento que seu devedor comerciante está em estado de insolvência deve colaborar com o meio no qual vive, levando ao Judiciário tal notícia e propiciando assim o imediato afastamento deste insolvente do meio comercial, para que se evitem as perniciosas conseqüências que daí podem advir, especialmente para a confiabilidade que se exige da vida comercial de uma nação, um dos pilares de sua vida econômica. Daí, dizer RUBENS REQUIÃO (Curso de Direito Falimentar, Saraiva, 17ª ed., v. 1, 1998, São Paulo, p. 25/ 6) que ninguém “põe dúvida de que a falência, em seu procedimento, está determinada pelo interesse coletivo. O instituto é marcadamente de ordem pública, muito embora vise resolver em massa questões de interesse essencialmente privado”. Lembra a seguir a existência da corrente que “objetiva concretamente a eliminação das empresas econômica e financeiramente arruinadas, em virtude das perturbações e perigos que podem causar ao mercado, com reflexos em outros organismos”. É verdade que o venerando mestre REQUIÃO acaba concluindo que tanto o interesse marcadamente privado do par condicio creditorum quanto o “saneamento do meio empresarial” são, ambos, elementos que norteiam o processo falimentar, dizendo que “tudo isso a lei falimentar pretende realizar”. NELSON ABRÃO (Curso de Direito Falimentar, Leud, 5ª ed., 1997, São Paulo, p. 73) demonstra sua simpatia pelo entendimento de que não se deveria entender a falência como meio de cobrança, dizendo da inconsistência do preceito que autoriza ajuizamento do pedido de falência quando ocorre uma simples impontualidade. O insigne mestre testemunha a tendência dos juízes de primeiro grau, dizendo: “Temos visto reiteradas manifestações dos juízos, uma vez que, dada sua natureza, os pleitos falimentares raramente chegam aos tribunais, no sentido de que a falência não se constitui em meio de cobrança”. Sem embargo, conclui seu pensamento, lembrando que, enquanto se permitir o requerimento de falência com base na impontualidade, e não na insolvabilidade, sempre será permitido o decreto de falência com a existência de credor único. AMADOR PAES DE ALMEIDA (Curso de Falência e Concordata, Saraiva, 17ª ed., 1999, São Paulo, p. 109) diz expressamente que “a falência não é, como acentua a melhor doutrina e remansosa jurisprudência, meio regular de cobrança, mas um processo de execução coletiva contra devedor comerciante insolvente”. SAMPAIO DE LACERDA (Manual de Direito Falimentar, Freitas Bastos Editora, 14ª ed., 1999, Rio de Janeiro, p. 54) discrepa deste entendimento, lembrando que “a falência é uma garantia, uma medida acautelatória e um meio de execução mais seguro e eficaz que o meio ordinário. Não se pode negar o direito a um credor por ele ser o único”. Enfim, como se vê, a discussão permanece acesa entre os doutrinadores; no entanto, repita-se, forma-se atualmente, no Estado de São Paulo, forte corrente dos juízes monocráticos, no sentido de entender que falência não é meio de cobrança e que, dessa forma, havendo credor único e crédito de pequeno valor, não deve a falência Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 9-19, mar./abr.-2002 ser decretada. Anote-se também que o Tribunal de Justiça de São Paulo, a quem compete julgar os processos falimentares em Segunda Instância, ainda mantém ponto de vista contrário a tal entendimento, de forma absolutamente majoritária. Quando algum credor requer a falência do comerciante, este pode efetuar o depósito elisivo, que será levantado pelo requerente, declarando-se elidida a falência. Esta sentença, ao declarar elidida a falência, condenará o requerido a pagar custas, honorários, juros, correção e outros consectários acaso devidos. Tal sistema de procedimento apenas aparentemente permitiria ver, no requerimento de falência, uma ação de cobrança. Tanto não é ação de cobrança que o pedido de “falência”, depois do depósito, já estará elidido, de tal forma que a falência não pode mais ser decretada. Os autos prosseguem em andamento normal, agora sim como ação de cobrança, para recebimento dos consectários, os quais só passaram a existir no momento em que não mais existia a possibilidade de decreto falimentar, eis que o pedido foi elidido com o depósito. É possível assim precisar o momento no qual deixa de existir o “pedido de falência” e passa a existir uma “ação de cobrança”. Ou seja, pedido de falência não é ação de cobrança. Outro aspecto ainda parece indicar que efetivamente o requerimento de falência não pode ser considerado meio de cobrança, o que se verifica a partir do exame das decorrências de celebração de acordo em pedido de falência. Havendo acordo nos autos, será ele homologado pelo juiz da causa; porém, caso ocorra descumprimento do acordo, o feito não prosseguirá mais como requerimento de falência, e sim, como execução do acordo judicial descumprido. Em tal caso, não mais haverá possibilidade de decretar-se a falência, fixando-se também aqui o momento em que deixa de existir o requerimento de falência e passa a existir uma ação de cobrança. O artigo 8o da Lei de Falências determina que o comerciante que deixar de pagar obrigação líquida no vencimento deve, dentro de trinta dias, requerer ao juiz a declaração de sua falência. Ora, seria contraditório admitir-se que alguém pudesse interpor, contra si mesmo, uma ação de cobrança. Este artigo 8o demonstra que efetivamente não se pode confundir o requerimento de falência com uma ação de cobrança. Ressumbra como truísmo lembrar que, em ação de cobrança, o credor deve pedir que o devedor seja citado para pagar, sob pena de ser condenado ao pagamento, uma vez que este é o típico pedido que deve ser feito em qualquer ação na qual se objetive a cobrança de uma dívida. Pois bem, examinando-se os artigos 11 e 12 da Lei de Falências, os quais referem-se ao pedido inicial do requerimento de falência, com fundamento respectivamente nos artigos 1o e 2o da Lei de Falências, observa-se que ambos determinam que o devedor deve ser citado para “apresentar defesa” (art. 11) ou “para defender-se” (art. 12), mostrando o legislador, mais uma vez, que o instituto da falência não é meio de cobrança. Não há, no requerimento de falência, como ocorre em ação de cobrança, citação para pagar, e sim, citação para apresentar defesa. Este ponto ainda não encontrou pacificação jurisprudencial, encontrando-se julgados muito bem fundamentados, em ambos os sentidos. Assim é que, na Apelação Cível nº 254.314-1/5, afirma o relator, desembargador LINO MACHADO: “...vejo o processo falimentar sim, também, como ação de cobrança (não fosse também ação de cobrança, qual seria o sentido de ser possível o levantamento da quantia depositada pelo falido se suas razões não forem acolhidas? Tivesse o depósito elisivo a finalidade exclusiva de mostrar a solvência do devedor, uma vez feito tal depósito, o autor haveria de ser declarado carecedor de ação falimentar uma vez que evidenciado o estado de solvabilidade do réu”. Da Jurisprudência do Tribunal de Justiça, v. 216, p. 71, extrai-se o excerto: “De fato, o pedido de quebra fundamentado no citado artigo, do ponto de vista do credor, é uma ação de cobrança, se houver o depósito elisivo ou se instaurado ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 9-19, mar./abr.-2002 11 12 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura o concurso universal, o que é admitido pelo artigo 11, § 2o. da Lei de Falências”. O e. relator ACLIBES BURGARELLI, conceituado professor de Direito Comercial, no julgamento de Apelação nº 260.990-1, 6ª Câmara do E. Tribunal de Justiça de São Paulo, assim ementou o entendimento: “A falência não é ação de cobrança e, se o magistrado imprime atos que dizem respeito à natureza executiva, cria dificuldade à parte e a inércia desta, quanto ao impulso regular não pode ser considerada, para o fim de extinção do feito. Apelo provido”. Reconhecendo que requerimento de falência é ação diversa de execução ou de “ação de cobrança”, o rel. ROBERTO STUCCHI, ao denegar a falência porque teria havido recebimento parcial, diz: “Os títulos não perderam a liquidez, certeza e exigibilidade. Basta deduzir o que foi pago de seu montante. Mas esse raciocínio é válido se se cuidasse de execução contra devedor solvente ou de ação de cobrança”. Contrario sensu, o julgado afirma que requerimento de falência não é ação de cobrança. No julgamento da Apelação Cível nº 120.449-4/9, por maioria de votos, relator o des. JOSÉ GERALDO DE JACOBINA RABELLO, a 4ª Câmara de Direito Privado, em julgamento de 19.8.99, entendeu: “O pedido de falência não é meio de cobrança, e sim, forma pela qual o detentor de crédito líquido, constante de título que legitime processo de execução, não saldado na data aprazada, prevendo a possibilidade de insolvência de seu devedor em prejuízo dos credores, requer a declaração de sua falência, não só no interesse de salvaguardar seus direitos, como também os direitos dos demais credores do comerciante em estado pré-falimentar”. No julgamento da Apelação Cível nº 110.768.4/6-00, 4ª Câmara do TJSP, em 12.8.99, em seu voto divergente, o des. CUNHA CINTRA diz: “Finalmente, o pedido de falência não é meio de cobrança e sim, forma pela qual...“. No julgamento do RE nº 108.642-PR, o ministro relator RAFAEL MAYER faz precisa diferenciação entre “requerimento de falência” e “ação de cobrança”, fixando que “...o requerimento de falência, com o depósito elisivo, transforma-se em processo de cobrança...” (RTJ 118/376) (o grifo é nosso). No corpo deste julgado, vem a menção ao recurso extraordinário extraído de RTJ 105/865, do qual transcreve: “quanto à condenação em honorários advocatícios, o depósito elidiu o pedido de falência e transformou a causa em ação de cobrança sujeita aos princípios da sucumbência”. No RE nº 108.1562, relator o ministro CARLOS MADEIRA, novamente vem a consignação de que “requerida a falência, se o devedor, citado, deposita o valor do débito, o processo se transforma em mera ação de cobrança”. Como se vê, o STF diferencia o requerimento de falência da ação de cobrança, estabelecendo que o feito apenas se transforma em ação de cobrança, após o depósito elisivo, com isso firmando o entendimento de que, antes do depósito elisivo, outra é a ação, que não de cobrança. No julgamento do REsp. nº 355-RJ, o relator ministro BUENO DE SOUZA verbera o procedimento daqueles que pretendem utilizar o requerimento de falência como meio de cobrança, dizendo: “Por outro lado, para que o credor se utilize do pedido de falência pelo sistema da lei brasileira, parece-me não ser suficiente o fato de possuir um crédito, não basta nem mesmo o fato de ter título protestado. É preciso que se disponha a demonstrar a insolvência do devedor estabelecido como comerciante. O emprego indiferente de uma ou outra via, se encorajado pela jurisprudência, cria, para o trato comercial, uma situação de fraqueza para o devedor. O devedor não é nenhum autor de ilícito, pois o débito é experiência normal da vida mercantil. Logo, como pode ser citado com prazo curtíssimo para elidir o crédito alegado pelo credor, sob pena de, não o fazendo ou deixando de apresentar defesa compatível, ter a falência decretada? Isto é, o credor, ao seu talante, se utiliza de um método mais favorável e expedito que, no entanto, dificulta ou agrava a situação do devedor”. No REsp. nº 1712/RJ, o relator, Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 9-19, mar./abr.-2002 ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO, firmou o entendimento de que “a opção pela via falimentar como meio de cobrança, em detrimento da via executiva, constitui, inúmeras vezes, abuso de direito, a merecer redobrada atenção do julgador, que não a deve prestigiar ou estimular”. Desde que se admita que falência não é meio de cobrança, poder-se-ia passar para uma segunda fase do exame do ponto em discussão, perquirindo-se agora a natureza de concurso de credores, que o requerimento de falência supõe. Isso porque, se efetivamente a falência é concurso de credores, pode constituir também óbice ao decreto falimentar o fato de não existirem outros credores. Por isso mesmo, o despacho de fls. 57 determinou que se certificasse se há outros requerimentos de falência contra o mesmo requerido, sendo certificado a inexistência de qualquer outro (fls. 58). Por isso mesmo, mais um motivo passa a existir para que não se permita o manejo do abrangente instituto falimentar para a “cobrança” de um único débito, eis que inexistente a possibilidade de instauração de concurso de credores, concurso que é da própria natureza do instituto da falência. No presente caso, o requerente da falência, além de único credor conhecido, é ainda titular de crédito de pequeno valor, ocorrendo assim mera impontualidade do comerciante, sem que tais elementos sejam suficientes para demonstrar a insolvabilidade. A propósito, não é incomum encontrar-se requerimento de falência por importância que não chega a superar o valor de dois salários mínimos; um simples levantamento nos requerimentos de falência que correm atualmente no Foro Central de São Paulo comprova tal assertiva. Com relação a este específico ponto, há precisa análise feita pelo brilhante componente do Tribunal de Justiça de São Paulo, AGUILAR CORTEZ, no julgamento feito em 22.12.98, da Apelação Cível nº 087416.4/0, na Quarta Câmara de Direito Privado. Neste caso, o acórdão reformou a sentença do juiz monocrático que havia indeferido a inicial porque o valor era pequeno; no entanto, a reforma deu-se porque ficou demonstrado que havia outros requerimentos, deixando o julgado fixado que, se não houvesse outros requerimentos, a sentença deveria ser confirmada. Embora relativamente longo, vale a pena transcrever parte do julgado: “Na verificação da situação do comerciante devedor, conseqüentemente, não afronta a lei a determinação de juntada de certidão dos cartórios distribuidores cíveis e de protestos para constatação da existência de outros débitos e da presença de fortes indícios da insolvência, para efeito de abertura da execução coletiva. Crescente tem sido, a propósito, o número de casos em que o Juízo monocrático, próximo das partes e vivendo diretamente o calor dos acontecimentos, nega-se até a processar pedido de falência fundado em dívida de pequeno valor, como aqui ocorreu. Essa tendência da jurisprudência não implica adoção de teses ‘alternativas’ ou subjetivas, mas demonstra preocupação em aplicar a lei, com a visão do tempo presente. Observe-se, não obstante, que, se a lei não fixa valor mínimo para o ajuizamento de tal pedido, cabe ao Juízo valer-se de outros meios de convicção para decretar a quebra, de modo a evitá-la quando desnecessária. É que o processo de falência não tem por fim apenas declarar o estado de insolvência, mas também e principalmente abrir o concurso de credores, como já dito. Daí o caráter constitutivo e não apenas declaratório da sentença”. Enfim, se se admitir que pedido de falência não é meio de cobrança e que o processo de falência é essencialmente concurso de credores, pode-se chegar à conclusão de que o pedido de falência deve ser indeferido, com fundamento no inciso IV e no inciso VI do artigo 267 do CPC, podendo alternativamente ocorrer ausência de pressupostos processuais ou de interesse processual para o pedido; ou ainda com fundamento nos incisos III e V do artigo 295 do mesmo CPC. ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 9-19, mar./abr.-2002 13 14 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura Mais objetivamente, parece falecer interesse ao requerente da falência pois “é caracterizado o interesse de agir pela necessidade e utilidade do provimento jurisdicional, demonstrado por pedido idôneo lastreado em fatos e fundamento jurídico hábeis a provocar a tutela do Estado” (JOÃO BATISTA LOPES, “O Interesse de agir na ação declaratória”, RT 688/255). Segundo JOSÉ FREDERICO MARQUES (Manual de Direito Processual Civil, 2ª ed., v. 1, p.58), “há interesse de agir sempre que a pretensão ajuizada, por ter fundamento razoável, se apresente viável no plano objetivo. Interesse de agir significa existência de pretensão objetivamente razoável”. O princípio da economia processual também interfere de forma acentuada na atividade judiciária, principalmente nos dias atuais, com o freio da nova Lei de Responsabilidade Fiscal, a impedir qualquer gasto extra. A relação custo/benefício, em determinados casos (como no caso de falência), deve ser examinada, para que se possa aquilatar a existência ou não de interesse processual. Neste ponto, é CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO (Execução Civil, RT, São Paulo, v. 2, p. 229) que diz inexistir interesse processual quando a “atividade preparatória do provimento custe mais, em dinheiro, trabalho ou sacrifícios, do que valem as vantagens que dele é lícito esperar”. Parece indiscutível que esta lição aplica-se exatamente a casos de requerimento de falência, por crédito único, de valor irrisório. Mesmo que o pedido de falência tenha tido regular processamento, ainda no momento da sentença pode (e deve) o juiz reconhecer a ausência de interesse processual, se vem aos autos a demonstração do desconhecimento da existência de outros credores, pois “a opinião geralmente admitida e correta, todavia, é que o interesse deve existir no momento em que a sentença for proferida. Portanto, se ela existiu no início da causa, mas desapareceu naquela fase, a ação deve ser rejeitada por falta de interesse” (CELSO AGRÍCOLA BARBI, Comentários ao Código de Processo Civil, Forense, 6ª ed., Rio/São Paulo, p. 31). Em casos como o ora examinado, não há possibilidade de, já ao despachar a inicial, verificar-se se existe ou não interesse, o que apenas será possível em momento posterior, nada obstando assim que, mesmo no momento da sentença, venha a ser declarada a inexistência de interesse processual para o pedido. Finalmente, embora este aspecto seja mais prático do que jurídico, para o próprio credor que tenha ajuizado o requerimento de falência como substitutivo de ação de cobrança, interessa tal declaração de falta de interesse e conseqüente extinção do feito. É que, como sabem todos, se efetivamente for decretada a falência, a probabilidade de que o credor venha a receber a importância em aberto é muito distante; valeuse ele do requerimento de falência como verdadeiro “blefe”, que não deu certo e do qual não estaria mais em condições de desistir, tendo em vista que os autos estariam conclusos para sentença. Assim, para o próprio credor, é mais recomendável que não se decrete a falência e que se lhe dê a oportunidade de cobrar seu crédito pelas vias ordinárias. De qualquer forma, repita-se, este argumento não é propriamente jurídico. PAULO FERNANDO CAMPOS SALLES DE TOLEDO (Dissertação de Mestrado, 1987, Biblioteca da Faculdade de Direito de Universidade de São Paulo) ressalta que o diploma falimentar brasileiro “mostra sinais inescondíveis de velhice, causados por uma profunda inadequação à realidade, mal de que padece desde o nascimento”, acrescentando ainda que “a inadequação e a premência (de reforma da lei) vêm sendo ressaltadas pela Doutrina desde o início da década de 1970”. As legislações mais modernas caminham no sentido de apenas possibilitar o decreto de falência, após tentativa de recuperação da empresa, ante o interesse social prevalecente da manutenção da empresa, em oposição ao interesse particular do credor. Tanto é assim que o artigo 37 do último substitutivo (junho de 2000) do projeto de Lei nº 4.376/93 estabelece: “Art. 37:- A recuperação judicial é a ação judicial destinada a sanear a Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 9-19, mar./abr.-2002 situação de crise econômico-financeira do devedor, salvaguardando a manutenção da fonte produtora, do emprego de seus trabalhadores e os interesses dos credores, viabilizando, dessa forma, a realização da função social da empresa”. Como se observa, a preocupação do legislador, colocada em ordem de prioridade, menciona em primeiro lugar a manutenção da empresa, para, logo em seguida, falar em manutenção do emprego de seus trabalhadores. Esta ordem não existe por acaso, demonstrando a clara opção do legislador por colocar em primeiro lugar o interesse social existente na manutenção da empresa; salvaguardado este interesse que se sobrepõe a todos os demais, em seguida o interesse do legislador é pela manutenção do emprego, o qual só poderá ser garantido se a empresa for mantida. Por último é que o legislador alinha os interesses dos credores, direito que será devidamente garantido depois que os direitos anteriores estiverem preservados. O artigo termina deixando claro que a escolha foi por salvaguardar a realização da função social da empresa. Feita esta clara opção, o legislador mostra, em outros artigos, que a falência, chamada de “liquidação”, não poderá ser decretada se o débito for de pequeno valor e se não estiver provada a existência de protestos de outros credores. Ou seja, o projeto de lei prevê exatamente o que, de forma precursora, impulsiona a tendência jurisdicional ora sob exame. Quanto a débito de pequeno valor, diz o artigo 77 do projeto: “Art. 77 - Será decretada a liquidação judicial do agente econômico que:- I - sem relevante razão de direito, não paga, no vencimento, dívida líquida constante de título executivo que ultrapasse a soma correspondente a R$ 10.000,00 (dez mil reais), considerado o valor originário;”. Estabelece assim este artigo que débito de pequeno valor não será hábil para instruir pedido de falência. Além de determinar o valor mínimo do débito, o projeto exige a demonstração da existência de pelo menos outros dois credores que tenham protestado títulos contra o requerido em data recente. Diz o artigo 81 do projeto: “Art. 81 - Na hipótese do art. 77, I, desta lei, para requerer a liquidação judicial daquele que não paga no vencimento dívida líquida constante de título executivo, deverá o credor instruir o pedido com instrumento representativo desta dívida, cujo valor originário deverá ser superior a R$ 10.000,00 (dez mil reais), representado por um ou mais títulos executivos, devidamente protestados, acompanhado de certidão de protesto de dois ou mais títulos de credores distintos, tirados contra o devedor no período de 90 (noventa) dias anteriores à data do pedido”. Como se vê, a tendência legislativa é no sentido de impedir que o nobre e abrangente instituto da falência venha a ser desvirtuado, para se transformar em simples ação de cobrança, à disposição de qualquer isolado credor, por valor irrisório. Esta nova legislação que se projeta acompanha a visão moderna do Direito Falimentar já vigente em Portugal, no chamado “Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência” (Decreto Lei nº 132/93, de 23.4.93, com as alterações introduzidas pelo Decreto Lei nº 315/98, de 20.10.98); ou como no Direito Italiano, pelo Real Decreto RD 267, de 16.3.42. Esta mesma visão moderna que se encontra na França, no reglement amiable, instituído pela Lei nº 148, de 1984, posteriormente aperfeiçoada pela Lei nº 98, de 1985, que trata do reerguimento e liquidação das empresas; ou, finalmente, nos EUA, o Título XI do U.S. Code que desde l978, embora fale em bancarrota (bankruptcy), trata da reorganização das empresas em dificuldade. O que esta legislação mais moderna tem de novo e extremamente oportuno é lição que se aplica ao tema presente, afastando a idéia de que o falido é um criminoso (falliti sunt fraudatores) e anulando a idéia de que a finalidade do processo falimentar é colocar o Judiciário à disposição do credor para arrecadar, o mais rápido possível, os bens do falido com o intuito prevalecente de pagar os credores. Sem embargo do direito do credor de receber o que lhe é devido, parece que cada vez mais se afasta a idéia ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 9-19, mar./abr.-2002 15 16 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura de que a falência se destina ao pagamento de dívidas particulares, pois, para estas, sempre pode o credor valer-se da execução. A falência, nos dias atuais, é processo voltado ao interesse público geral e apenas deve ser concedida naqueles casos em que efetivamente a permanência do falido de fato está a causar insegurança no meio comercial, como um todo, por existência clara de insolvência. Em conseqüência, podese concluir que, sendo o débito de pequeno valor e não havendo outros credores, o pedido de falência deve ser extinto por falta de interesse por ele. Não se desconhece que a posição absolutamente majoritária do Tribunal de Justiça de São Paulo é em sentido contrário, tendo sido reformada a maioria das decisões monocráticas em tal sentido. Evidentemente, os juízes, sempre reconhecendo nos componentes do Tribunal de Justiça aqueles seus colegas mais experimentados, valem-se normalmente da orientação jurisprudencial, para nortear suas decisões. No entanto, a jurisprudência sempre é tomada como orientação, respeitável porém não vinculante. Sem que se negue a preciosa orientação que vem da jurisprudência — que, na grande maioria dos casos, é sempre seguida —, ainda assim são freqüentes os casos nos quais a nova orientação emergente dos juízes monocráticos vem provocar a mudança de uma posição jurisprudencial já consolidada. Tantos e tão freqüentes são os exemplos, que não há, certamente, necessidade de trazê-los. Aliás, este é exatamente o aspecto enriquecedor do exercício da magistratura como um todo, cabendo ao juiz monocrático e aos tribunais colegiados o constante exame das condições sociais e da posição das partes ante o direito positivo, para adaptá-los a cada caso sob exame e para mudar posicionamentos já consolidados anteriormente. Não fosse assim e não haveria sequer necessidade de juízes; bastaria, como sempre se lembra, alimentar um sistema informatizado com os julgados anteriores e introduzir nele os dados do processo, para que a sentença fosse prolatada em seguida. Dentro dessa visão é que transcrevo abaixo os dois únicos julgados do Tribunal de Justiça de São Paulo, acatando julgados no sentido ora indicado, lembrando novamente que todos os demais julgados são em sentido contrário. Mesmo estes dois únicos julgados encontrados foram por maioria de votos; não se esqueça, porém, que toda mudança jurisprudencial começa, sempre, com o primeiro acórdão que, por ser primeiro, é sempre isolado, isolamento que persiste até que ocorra a mudança do entendimento e a pacificação do novo entendimento. Um dos julgados, aliás já anotado acima a propósito de outro ponto, é o da Apelação Cível nº 120.449-4/9, julgamento por maioria de votos tomado em 19.8.99, relator designado des. JOSÉ GERALDO DE JACOBINA RABELLO, voto concordante do juiz AGUILAR CORTEZ, com voto vencido e declarado do des. CUNHA CINTRA. Relata o v. acórdão da 4ª Câmara do TJSP: “Cuida-se de recurso de apelação interposto contra a r . sentença de fls. 19/22, com relatório adotado, que, indeferindo a petição inicial, extinguiu o processo de pedido de falência, com fundamento no artigo 95, III e V, do Código de Processo Civil. Entendeu a sentença que, embora a Lei de Falências não estabeleça valor mínimo da obrigação para fundar a pretensão do credor, tem-se como impossível a formulação do pedido com base em obrigação que não alcance determinado montante”. O julgado negou provimento ao recurso, fundamentando:- ´Sem embargo do peso da argumentação desenvolvida no voto vencido, quer parecer que mais razoável é o entendimento exposto na sentença sobre a matéria. De se ressaltar que o projeto da nova lei de falências prevê um limite mínimo de R$ 5.000,00 para as obrigações que possam autorizar pedido de quebra” (o último substitutivo do projeto aumentou este limite para R$ 10.000,00). Houve embargos infringentes, com base no voto vencido, declarado pelo des. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 9-19, mar./abr.-2002 CUNHA CINTRA. Os embargos foram rejeitados, com o voto vencido dos des. CUNHA CINTRA (presidente e 3o juiz) e com os votos vencedores dos des. JACOBINA RABELLO, AGUILAR CORTEZ , JOSÉ OSÓRIO e do relator FONSECA TAVARES, em julgamento de 25.11.99, com a seguinte ementa: “Pedido de falência - Inviabilidade diante do reduzido valor de seu objeto - Ausência de demonstração da existência de outros débitos ou títulos protestados que caracterizariam a insolvência do credor - Atendimento à norma do art. 5o da LICC - Embargos rejeitados”. Embora longos, alguns excertos do corpo do acórdão devem ser transcritos, por espelharem exatamente o ponto de vista que estamos a defender. Diz o rel. FONSECA TAVARES, como fundamento de sua decisão: “Com máxima vênia, meu voto está a rejeitar os embargos, submisso às razões invocadas na sentença e no voto majoritário do sr. desembargador delator designado. De um lado, há de ser salientado que toda a incidência de norma, que refuja à sua destinação específica, pode conduzir a uma situação de abuso de direito. Como tal se tem aquela incidência que, embora literalmente possa ser tida como subsumida ao preceito, na realidade constituise em exorbitância de pretensão, de tal modo que aquele contra quem seja posta, venha a suportar drasticamente os efeitos dessa interpretação meramente literal. Invoca-se a esse princípio, a parêmia dos romanos, summum jus, summa injuria. ... No caso dos autos, o débito corresponde a R$ 759,02, isto é, a 5,5 salários mínimos. ... Razoável que se admitisse a incidência do estatuto falimentar, qualquer que fosse o valor do débito, se, como firma o acórdão, inúmeros outros existissem, com títulos devidamente protestados, algo a demonstrar, de plano, a insolvência do devedor. ... Os excessivos dispêndios exigidos em processo falimentar, constituem-se em argumento que também não pode ser desconsiderado. Finalmente, não há possibilidade de permitir fujam os intérpretes da norma ao preceito ao art. 5o da LICC; ‘Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum’“. No julgamento da Apelação Cível nº 87.416-4/0, a mesma Quarta Câmara, rel. o juiz AGUILAR CORTEZ, votos vencedores dos des. OLAVO SILVEIRA e JOSÉ OSÓRIO, o v. acórdão deu provimento ao recurso interposto contra sentença que havia indeferido a inicial de requerimento de falência com base em título de pequeno valor. No entanto, embora reformando a sentença, o julgado deixou fixado o entendimento no sentido de que, se ao pequeno valor do título também se adicionasse a inexistência de outros credores, seria então o caso de indeferimento da inicial. Transcrevemos parte do julgado, que fere diretamente o ponto ora sob exame: “A evolução do instituto da falência tem registrado gradativa ênfase a seu sentido econômico-social, posto que o próprio conceito da empresa assim tem evoluído. Não existe mais direito do credor de provocar a quebra do devedor, sobrepondo-se de modo egoístico ao interesse coletivo; prevalece, sim, o interesse público na sobrevivência da empresa como instituição social, ou na sua liquidação, se for o caso, em nome sempre do interesse maior da coletividade. ... Na verificação da situação do comerciante devedor, conseqüentemente, não afronta a lei a determinação de juntada de certidão dos cartórios distribuidores cíveis e de protestos para constatação da existência de outros débitos e da presença de fortes indícios de insolvência, para efeito de abertura da execução coletiva”. Como se vê, embora reformando a sentença extintiva, ainda assim o julgado fixa posição no sentido de indeferimento da inicial em caso de débito de pequena monta e ausência de outros credores. Evidentemente, ante o caso posto frente a seu julgamento, o juiz que resolver adotar o presente entendimento fixará o que é “pequeno valor”. Dependendo da região do País, dependendo do momento econômico, tal fixação poderá variar, sempre dentro do princípio de que, frente ao caso posto no momento, é que o juiz decide. No ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 9-19, mar./abr.-2002 17 18 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura entanto, o des. FONSECA TAVARES, no julgado acima transcrito (Embargos Infringentes nº 120.449-4-/0-01), sugere um parâmetro que é de extrema razoabilidade, dizendo: “O Juizado de Pequenas Causas, disciplinados pela Lei nº 9.099, de 26.9.95, estabelece como seu limite de competência valor que não exceda quarenta salários mínimos, abrangente que é também de títulos executivos judiciais e extrajudiciais, excluída da competência as causas de natureza falimentar. Ora, estatuir-se que possa advir pedido de falência por valor inferior a tal alçada, seria tornar possível o afastamento da competência para tais execuções do Juizado Especial, restando apenas a manifesta opção feita pelo credor pela justiça comum, com o que em nada ficaria prejudicado”. Assim, poderia entender-se que atende o princípio da razoabilidade a fixação como de pequeno valor daqueles débitos inferiores a quarenta salários mínimos. No entanto, e sem embargo da reconhecida autoridade da fonte acima citada, já verificamos que o último substitutivo do Projeto da Lei de Falências, de junho de 2000, estabelece R$ 10.000,00 como valor mínimo para justificar a liquidação judicial. Na data deste substitutivo, ou seja, junho de 2000, esse valor de R$ 10.000,00 correspondia a 66,2 salários mínimos de R$ 151,00. Assim, pareceria mais razoável, por se aproximar mais da opção legislativa consubstanciada no projeto, a fixação do valor de 70 (setenta) salários mínimos como o piso abaixo do qual estaria justificada a decisão judicial que extinguisse o feito na forma acima proposta. No entanto, no presente caso, qualquer que seja a opção em termos de valor, deve a inicial ser indeferida por falta de interesse processual para o pedido feito. Ademais, no presente caso, o próprio credor recusa-se a informar que assumirá o cargo de síndico, se houver decreto falimentar, outro fundamento que leva também ao indeferimento da inicial. A propósito: “Pedido de Falência - Desinteresse do requerente em assumir o encargo de síndico - Extinção do feito. Recurso do Requerente. Improvimento” (Apelação nº 110.768-4/6-00, julgado em 12.8.99, TJSP, rel. JOSÉ OSÓRIO, maioria de votos). No entanto, mesmo que todo o acima não estivesse correto, ainda assim a inicial seria indeferida, tendo em vista que o protesto tirado o foi de forma irregular. Tratando-se de falência — exatamente por suas gravosas conseqüências — o instrumento do protesto obrigatório deve identificar perfeitamente a pessoa intimada, o que não ocorreu no presente caso (fls.12 e 13), tendo a intimação sido feita, por carta “AR”, a pessoa não identificada. Neste sentido, o e. STJ vem se manifestando de forma repetitiva. A propósito: “Falência - Protesto Irregular - Pedido Desacolhido - O protesto cambial e o pedido de falência têm sido desvirtuados de suas finalidades legais, constituindo-se, não raro, meios coercitivos de pagamento. Pelos graves efeitos que deles resultam, notadamente da quebra, impõe-se que os requisitos formais sejam rigorosamente observados. ‘O protesto irregular do título cambial, de cujo instrumento não consta certidão de ter sido pessoalmente intimado o representante legal da devedora com endereço conhecido, nem juntado o aviso de recebimento na hipótese da intimação ter sido processada por via postal, não autoriza a decretação da falência (RT 567/92)’. Ap. Civ. nº 47.683, de Tubarão’” (REsp nº 129.364/ SC, 3ª Turma, relator min. CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, julgado em 25.9.2001, DJ de 5.11.2001). “Falência - Protesto - Intimação feita ao devedor - Recebimento por pessoa não identificada - Irregularidade - Do instrumento de protesto Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 9-19, mar./abr.-2002 deve constar, pelo menos, o nome da pessoa que recebeu a intimação, uma vez que somente quando identificada a pessoa intimada é que se considera que o devedor foi intimado a pagar e não o fez. Inexistência de contrariedade ao art. 11 da Lei de Falências. Recurso Especial não conhecido” (REsp nº 172.847/SC, 4ª Turma, rel. min. BARROS MONTEIRO, julgado em 18.2.99, DJ de 24.5.99). “Falência - Protesto - Sendo o protesto precedido de notificação, a regularidade dessa exige seja identificada a pessoa que a recebeu. A falta leva a que não se possa, com base naquele título, pedir falência” (REsp nº 109.678/SC, 3ª Turma, rel. min. EDUARDO RIBEIRO, julgado em 24.5.99, DJ de 23.8.99). Pelo exposto, julgo extinto o presente feito, sem apreciação do mérito, na forma do inciso VI (falta de interesse processual) do artigo 267 do CPC. Sem honorários, responde o autor pelas custas. Se houver requerimento para desentranhamento de documentos, fica desde já deferido, a ser efetuado após o trânsito em julgado, permanecendo xerox nos autos. P.R.I. São Paulo, 8 de fevereiro de 2002. MANOEL JUSTINO BEZERRA FILHO* Juiz de Direito ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. 19 * Nota: o mesmo magistrado escreveu artigo sobre o tema, publicado em RT 793/103. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 9-19, mar./abr.-2002 20 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. 21 6ª VARA CÍVEL CENTRAL DA CAPITAL DO ESTADO DE SÃO PAULO. VISTOS. EDVALDO RAMOS NEVES move a presente ação declaratória de nulidade de cláusulas contratuais c/c repetição de indébito contra CREDICARD S/A ADMINISTRADORA DE CARTÕES DE CRÉDITO, aduzindo, em síntese, ser titular de cartão de crédito junto ao réu e que referido contrato de adesão se encontra eivado de cláusulas abusivas, a saber: I) irresponsabilidade da administradora de cartão até a data da efetiva comunicação pelo usuário do roubo, furto ou extravio do cartão; II) irresponsabilidade da administradora sobre a qualidade dos bens e serviços adquiridos através do sistema de cartão de crédito; III) abusividade da assinatura “em arquivo”, ou seja, que independe da efetiva assinatura do usuário; IV) nulidade da cláusula-mandato e estipulação de empréstimos em nome do usuário; V) abusividade da prestação de contas; VI) encargos excessivos, em desconformidade com o estabelecido no Código de Defesa do Consumidor; VII) abusividade do prazo de 30 dias para a resilição unilateral. Diz que a ré não constitui instituição financeira e, portanto, encontra-se sujeita às limitações da Lei de Usura. Com tais fundamentos, pede a declaração da nulidade das cláusulas contratuais apontadas, redução da multa Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 21-26, mar./abr.-2002 22 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura para 2%, assim como afastamento da capitalização dos juros. Pede, ainda, devolução em dobro dos valores cobrados a maior. Junta documentos. Citada, a ré apresentou contestação a fls. 69/99, sem preliminares. Quanto ao mérito, assegurou sempre aplicados os índices contratados, não ilegais, impondo-se, a seu viso, o respeito ao ajuste livremente pactuado. Em linhas gerais, sustenta que as taxas de juros observaram as disposições legais atinentes à espécie, ausente a alegada capitalização. Com essas considerações, requereu o julgamento final de improcedência do pedido, com a condenação do autor nas cominações de estilo. Réplica a fls. 158/171. Determinada a especificação de provas (fls. 190), as partes requereram o julgamento antecipado da lide (fls. 191 e 193). A fls. 195/196, requereu o autor a exibição de documentos, o que foi deferido pelo juízo. A ré juntou referidos documentos a fls. 194/208, facultada manifestação do autor (fls. 210/212). É o relatório. FUNDAMENTO E DECIDO: As questões suscitadas e controvertidas nos autos constituem matéria a desnecessitar da produção de qualquer outra prova além daquelas já expressamente constantes dos autos, motivo pelo qual se conhece diretamente do pedido, nos termos do artigo 330, inciso I do Código de Processo Civil. Trata-se de ação declaratória de nulidade de cláusulas de contrato de cartão de crédito, sendo impositiva a procedência parcial do pedido. Tendo em vista as particularidades do caso, plenamente aplicáveis as disposições do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90). Não se olvida da dicção do art. 3º, § 2º de mencionada diploma legislativo, que estatui que serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária. A disposição legal há que ser aplicada, caso a caso, de forma coerente com o espírito e o sistema introduzidos pelo próprio Código de Defesa do Consumidor, a que visa, em atenção a comando constitucional expresso (art. 5º, XXXII e 170, V, da CF), regular as relações de consumo (art. 2º, da Lei nº 8.078/90). Grande parte dos contratos bancários está abrangida pelas disposições da Lei nº 8078/90, sendo de mister, para tanto, a caracterização da relação de consumo, fator determinante de sua incidência. Dessa forma, cumpre perquirir se a celebração de contrato bancário entre as partes traduz, na forma da lei protetiva, relação de consumo. Assim, se a contratação de crédito prestar-se a uma forma intermediária de uso, não voltada ao consumo estrito, mas ao fomento da atividade produtiva — pouco importando, aqui, tratar-se de atividade agrícola, pecuniária, industrial ou de prestação de serviços — estará fora da relação de consumo e, por conseguinte, subtraída da incidência da Lei nº 8.078/90. O contrato de cartão de crédito ora em apreço foi firmado pela pessoa física do autor e não há qualquer prova nos autos de que os valores ali exigidos eram utilizados para desenvolvimento de alguma atividade econômica. A relação jurídica é, portanto, plenamente regida pelo Código de Defesa do Consumidor. Em que pese, ainda, a existência de acesa discussão jurisprudencial, tenho que as administradoras de cartão de crédito não estão excluídas do chamado Sistema Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 21-26, mar./abr.-2002 Financeiro Nacional, pelo que inaplicável a limitação de juros anuais (12% a.a.) imposta pela Lei de Usura (Decreto nº 22.626/33). Isso porque, na definição ampla constante do artigo 17 da Lei nº 4.595/64, são consideradas instituições financeiras as pessoas jurídicas que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros. No caso dos autos, a administradora de cartão firma financiamentos em nome de terceiros (usuários) no mercado, com supedâneo na cláusula mandato constante do contrato de cartão de crédito e objetivando o custeio do parcelamento do usuário, em caso de inocorrência de pagamento à vista da fatura. Com o advento da Lei nº 4.595/64, que regulamentou o sistema financeiro, foi editada súmula (nº 596) pelo E. Supremo Tribunal Federal, que dispõe: “As disposições do Decreto nº 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o sistema financeiro nacional”. Assim, não há se falar em submissão da empresa administradora de cartão de crédito aos limites da Lei de Usura. Neste sentido, vem exatamente decidindo o Egrégio Superior Tribunal de Justiça, in verbis: “Comercial. Cartão de crédito. Juros. Limitação (12% a.a.). Lei de Usura (Decreto nº 22.626/33). Não incidência. Aplicação da Lei nº 4.595/64. Disciplinamento legislativo posterior. Súmula nº 576-STF. I. Não se aplica a limitação de juros de 12% ao ano prevista na Lei de Usura aos contratos de cartão de crédito. II. Recurso especial conhecido e provido.” (STJ, REsp. nº 297.500/RS; Recurso Especial (2000/0143869-7), fonte DJ, data:30/04/2001, p. 00139, relator(a) min. ALDIR PASSARINHO JUNIOR (1110), data da decisão 13/03/2001, órgão julgador T4 - 4ª TURMA, Ementa). É fato incontroverso a relação jurídica entre as partes. O autor, titular de cartão de crédito emitido pelo réu, passou a utilizá-lo na aquisição de bens e serviços. Recebida a fatura para pagamento, em alguns meses o autor deixou de pagar o valor total das despesas. O valor não pago, segundo o contrato de adesão, é financiado pelo réu junto a instituições financeiras por ele (réu) escolhidas, a taxas de mercado e em decorrência de cláusula contratual autorizadora (cláusula mandato), cobrando ainda do usuário uma remuneração pela intermediação de referido crédito. Este procedimento está previsto na cláusula décima do contrato e, não obstante se alegue que o sistema de cartão de crédito sem ele não possa existir, configura prática notoriamente abusiva e ilícita. O réu celebra contrato de financiamento com os bancos, para financiamento dos saldos devedores dos titulares de cartão de crédito, a taxas de juros substancialmente mais baixas do que aquelas efetivamente repassadas aos usuários do cartão de crédito. Neste sentido, verifica-se dos documentos de fls. 194/208 que as taxas de juros obtidas no mercado variaram de 19 a 20% ao ano, enquanto as taxas de juros efetivamente repassadas pela ré aos usuários atingem percentuais superiores a 11% ao mês. E o réu, para sustentar que a taxa cobrada deve ser paga, argumenta que o titular do cartão estava ciente desta taxa no mês anterior e livremente optou pelo financiamento. Este não é, contudo, o enfoque a ser observado. A relação entre autor e réu é de consumo porque o autor é destinatário final ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 21-26, mar./abr.-2002 23 24 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura do serviço, enquanto a ré é prestadora de serviço no mercado de consumo. Ora, na relação de consumo é necessário transparência e não pode haver, por parte do fornecedor, vantagem exagerada em detrimento do consumidor (artigo 51, caput, inciso IV, e § 1º, do Código de Defesa do Consumidor). A remuneração exigida do usuário não é clara para esse, uma vez que a administradora do cartão não informa, destacadamente, nos extratos mensais, o valor da taxa de juros do contrato firmado com os bancos e o valor de sua remuneração pela intermediação e garantia que presta. O contrato de adesão também não especifica o percentual da remuneração decorrente da intermediação e garantia (cláusula 10ª). O consumidor não sabe que está pagando pouco pelo financiamento propriamente dito, mas muito para a administradora do cartão, pela garantia por ela prestada. A abusiva remuneração do réu, obtida através do mau uso da cláusula-mandato, não pode prevalecer, estando o Juiz autorizado por lei a reduzir a vantagem exagerada, reestabelecendo o equilíbrio contratual (artigo 6º, inciso V da Lei nº 8.078/90). Nesse diapasão, o artigo 51, do Código de Defesa do Consumidor, em seu inciso IV, comina de nulidade absoluta “as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que estabeleçam obrigações iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou eqüidade”. O § 1º, inc. III, do mesmo dispositivo legal, estabelece que “se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares do caso”. Diante destas considerações e das circunstâncias do caso, tenho por reduzir o percentual dos juros para 24% ao ano, incidentes de forma unicamente linear (não capitalizada). Se, por um lado, a administradora de cartão não está limitada ao percentual de juros estipulado pela Lei de Usura (12% a.a.), por outro lado incabível a incidência dos juros a taxa livres, sem qualquer esclarecimento ao consumidor — em especial acerca da diferença entre o valor obtido no mercado e o valor efetivamente repassado ao usuário. Como mencionado, a administradora de cartão firma empréstimos em nome dos usuários na faixa dos 20% ao ano e repassa aos mesmos encargos superiores a 11% ao mês. O percentual ora fixado (24% a.a.) atende a finalidade de remuneração econômica do garantidor, assim como encontra-se compatível com o sistema de defesa do consumidor. Diante do mau uso da cláusula-mandato pela ré, impositiva a intervenção judicial para restabelecer o equilíbrio da relação jurídica firmada. Não se olvida, ainda, que a abusividade e conseqüente nulidade da cláusula-mandato constante do contrato de adesão vem sendo reiteradamente reconhecida pela jurisprudência pátria, em especial no Egrégio Superior Tribunal de Justiça (Súmula nº 60). Nesse sentido, dentre outros: “Cláusula mandato é inválida, assim como inválidos e ineficazes os títulos criados por mandatário assim constituído, nos termos da súmula nº 60/STJ” (REsp. nº 188.712/RS, rel. min. RUY ROSADO DE AGUIAR, 4ª Turma, DJU 22/03/99). No mesmo sentido: REsp. nº 82.262, rel. min. WALDEMAR ZVEITER; REsp. nº 1.641/RJ, rel. min. ATHOS CARNEIRO e REsp. nº 109.006/MG, rel. min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA). “A jurisprudência do STJ consolidou entendimento no sentido de que a outorga de mandato pelo mutuário à pessoa integrante do Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 21-26, mar./abr.-2002 grupo mutuante ou a ele próprio, em regra, não tem validade, face ao manifestou conflito de interesses, a sujeição do ato ao arbítrio de uma das partes e a afetação da vontade. O princípio, assim consubstanciado no verbete 60-STJ é revigorado pelo legislador, que, com a vigência do Código do Consumidor, passou a coibir cláusulas, cuja pactuação importe no cerceio da livre manifestação da vontade do consumidor” (RESP nº 210.031/ PR, rel. min. WALDEMAR ZVEITER, DJU 04/05/98). Nestes termos, de rigor a declaração da nulidade da cláusula-mandato, assim como a fixação judicial dos juros em 24% ao ano, incidentes, ainda, de forma unicamente linear (não capitalizada). Relativamente à capitalização de juros, um exame dos extratos da conta também revela que juros (ou encargos) não pagos pelo autor eram incorporados ao principal devido em determinado mês e, no mês seguinte, os juros (ou encargos) eram cobrados sobre o saldo devedor mais os juros dos mês anterior. O Supremo Tribunal Federal já possuía antiga orientação sumulada de que é vedada a capitalização mensal de juros, ainda que expressamente convencionada (Súmula nº 121). Como sede final de pronunciamento judicial acerca de disposições de lei federal, o STJ fixou entendimento de que a capitalização mensal dos juros é permitida apenas nas hipóteses de cédulas de crédito rural, comercial e industrial, posteriormente, sumulando a matéria da seguinte forma: “A legislação sobre cédulas de crédito rural, comercial e industrial admite o pacto de capitalização de juros”. Ainda, no sentido do exposto: “Mútuo bancário - Contrato de abertura de crédito - Taxa de juros - Limitação - Capitalização mensal - Proibição - Precedentes. I. No caso de mútuo bancário vinculado a contrato de abertura de crédito, a taxa de juros remuneratórios não está sujeita ao limite estabelecido na Lei de Usura (Decreto nº 22.626/33). II. A capitalização dos juros somente é permitida nos contratos previstos em lei, entre eles as cédulas e notas de créditos rurais, industriais e comerciais, mas não para o contrato de mútuo bancário. III. Precedentes. IV. Recurso conhecido em parte e, nessa parte, provido” (REsp. nº 146.333/RS, rel. min. WALDEMAR ZVEITER, DJU 121:165, de 29.06.98). Dessa forma e em conformidade com tais entendimentos, impossível a cobrança de juros capitalizados do autor, procedendo, neste aspecto, a irresignação colocada na inicial. As demais afirmações envolvendo nulidade de cláusulas contratuais improcedem. Não se verifica a alegada abusividade na cláusula contratual que limita a responsabilidade da administradora do cartão à prévia comunicação pelo usuário do furto, roubo ou extravio do cartão. Isso porque é justamente o usuário quem se encontra na posse efetiva do cartão e que tem o dever jurídico de zelar pela sua conservação. Razoável, assim, que ele responda pelos eventuais prejuízos até que informe concretamente a administradora do cartão acerca do infortúnio ocorrido, a fim de que o cartão seja bloqueado junto ao sistema. A administradora não pode, também, ser responsável pela qualidade dos produtos ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 21-26, mar./abr.-2002 25 26 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ou serviços adquiridos pelo usuário através do sistema de cartão de crédito oferecido, ao contrário do que pretende o autor. A denominada “assinatura em arquivo” (cláusula 8ª) configura mera faculdade oferecida ao usuário e, conforme consta do próprio contrato de adesão, deve ser prévia e expressamente solicitado pelo usuário. Mencionada cláusula não se afigura, prima facie, abusiva, sendo o caso de reconhecimento de eventual ineficácia diante de determinada situação concreta e específica. Inexiste, em tese, a alegada nulidade. O contrato prevê a prestação de contas pela administradora, com discriminativo nas respectivas faturas. Prevê, ainda, o prazo de 90 dias para impugnação, o que se mostra razoável e compatível com o sistema de defesa do consumidor. Nesses aspectos, também, improcede o pedido do autor. Outrossim, ao contrário do que alega o autor, o contrato prevê cláusula penal moratória nos limites previstos pelo Código de Defesa do Consumidor (2% - cláusula 17, letra “a”). A cláusula penal compensatória de 10% fixada no contrato (cláusula 17, letra “b”) incide unicamente no caso de cancelamento ou rescisão do cartão e não no caso de mera utilização do financiamento. Não se verifica a alegada inobservância ao artigo 52, § 1º do Código de Defesa do Consumidor, o qual é específico para “multas de mora” e não para cláusula penal compensatória. Também não se verifica a nulidade envolvendo a cláusula 18ª, relativamente a despesas de cobrança e honorários advocatícios. As despesas de cobrança devem ser comprovadas no caso concreto, quando eventualmente exigidas pela ré; e os honorários advocatícios são fixados judicialmente. Finalmente, tratando-se de contrato fixado por tempo indeterminado, plenamente justificável a previsão de resilição unilateral pelas partes (denúncia), conforme cláusula 21ª. Também não se verifica qualquer abusividade no prazo de 30 dias de antecedência, prazo esse impugnado pelo autor. Incabível, outrossim, a devolução em dobro das quantias pagas pelo usuário. Assim como para a aplicação do artigo 1.531 do Código Civil, a repetição de indébito em dobro prevista no artigo 42 do Código de Defesa do Consumidor depende da má fé do fornecedor na sua exigência, nos exatos termos da Súmula nº 159 do STF (“cobrança excessiva, mas de boa-fé não dá lugar às sanções do artigo 1.531 do Código Civil”). No caso dos autos, a administradora informava mensalmente os encargos que incidiriam no mês seguinte, os quais, embora ora reconhecidos como abusivos, não permitem a incidência da penalidade de devolução em dobro dos valores. Eventual compensação e devolução de valores deve ocorrer unicamente de forma simples. Posto isso e considerando o que mais dos autos consta, julgo parcialmente procedente o pedido, declaro a nulidade da cláusula-mandato (cláusula 10ª) e fixo o percentual dos juros em 24% ao ano, incidentes de forma unicamente linear (não capitalizada mensalmente), com revisão do saldo devedor do autor nos termos do acima decidido, abatendo-se eventuais diferenças mediante compensação. Ante a sucumbência recíproca, cada parte arcará com metade das custas e despesas processuais, assim como dos honorários dos respectivos patronos, na forma do artigo 21, caput do Código de Processo Civil. P.R.I.C. São Paulo, 27 de dezembro de 2001. RODRIGO MARZOLA COLOMBINI Juiz de Direito Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 21-26, mar./abr.-2002 ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. 27 2ª VARA DA COMARCA DE IGUAPE DO ESTADO DE SÃO PAULO VISTOS. I - Relatório Cuida-se de Ação de Cobrança proposta por GBL CONSULTORIA EMPRESARIAL S.C. LTDA. em face do MUNICÍPIO DE IGUAPE. A autora alega que: a) celebrou contrato de prestação de serviços técnicos especializados com o réu; b) a remuneração seria devida pelo aumento no repasse do percentual do réu na arrecadação de ICMS; c) executou os serviços, que não foram pagos. Pugna por R$ 274.123,95 (duzentos e setenta e quatro mil cento e vinte e três reais e noventa e cinco centavos), corrigidos e com juros moratórios. Juntou documentos (fls. 7-74). O réu contestou aduzindo: a) os serviços executados não lhe trouxeram o benefício prometido; b) o repasse de recursos é feito pela própria Secretaria Estadual da Fazenda, independentemente da intervenção de terceiros; c) não houve comprovação do valor cobrado. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 27-32, mar./abr.-2002 28 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura Réplica às fls. 101-139. As partes foram instadas a indicarem as provas que queriam ver produzidas (fl. 101), vindo as manifestações pelo julgamento antecipado (fls. 133-134 e 140). Determinação de vinda do certame licitatório por duas vezes (fls. 141 e 143), sem cumprimento (fls. 142 e 144-145). Era o que cabia detalhar. II - Fundamentação O feito já comporta julgamento, nos termos do art. 330, I, do Código de Processo Civil, e consoante a longa mas necessária fundamentação que se seguirá. Como medida prodrômica ao julgamento em si, cumpre consignar que o contrato originário destes autos foi lavrado ainda sob a égide do Dec.-Lei nº 2.300/86, de onde que, em prol da irretroatividade das normas como regra geral constitucional (art. 5º, XXXVI), inaplicáveis os preceitos da Lei nº 8.666/93. Previamente Não se descura que é dado ao juízo requisitar documentos (art. 399, do CPC), quando, embora de encargo originário das partes, o acesso reste inviabilizado. Só que aqui isso não ocorreu. Embora público o documento (art. 3º, § 3º, do Dec.-Lei nº 2.300/86 - retratado no art. 3º, da Lei nº 8.666/93), limitou-se a autora a dizer que enfrentou resistência para isso, sem nenhuma prova disso. Como? Em que circunstâncias? Chegou a protocolar algum pleito administrativo? Se sim, porque não o acostou? É jurisprudência firme e de há muito pacificada que só excepcionalmente e quando comprovadamente a parte não tenha conseguido suas pretensões por meios próprios é que haverá a requisição judicial. Do contrário, estar-se-á valendo indevidamente do aparato jurisdicional. Por todos e in verbis: “Não demonstrada, ainda que perfunctoriamente, a impossibilidade da parte obter diretamente a documentação que entende lhe ser útil, descabe a sua requisição pelo juiz” (RSTJ 23/249). Quis a autora transferir para o juízo o encargo originário seu, porque era e é seu o onus probandi, em face do princípio dispositivo. Causa mais espécie ainda é que uma empresa de consultoria empresarial, que visa otimizar trâmites e rotinas de trabalho, não tenha observado o cuidado de arquivar uma via do certame licitatório que diz ter existido. Isso é estranho também porque diversamente tem em mãos uma via do contrato (cópia acostada nos autos). Este, por sua vez, não faz nenhuma menção ao processo de licitação (o que seria de rigor - art. 51 do Dec.-Lei nº 2.300/86 e art. 61 da Lei nº 8.666/93), provavelmente porque nunca existiu. Por isso é que declaro preclusa a oportunidade para a autora produzir a prova pendente (cópias do certame licitatório ou de dispensa/inexigibilidade). No mérito A administração pública rege-se, dentre outros, pelos princípios da legalidade e moralidade (art. 37, da Constituição Federal). O primeiro diz respeito “à completa submissão da Administração às leis. Essa deve Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 27-32, mar./abr.-2002 tão-somente obedecer-lhes, cumpri-las, pô-las em prática. Daí que a atividade de todos os seus agentes, desde o que lhe ocupa a cúspide, isto é, o Presidente da República, até o mais modesto dos servidores só pode ser a de dóceis, reverentes, obsequiosos cumpridores das disposições gerais fixadas pelo Poder Legislativo, pois essa é a posição que lhes compete no direito brasileiro” (CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, Curso de Direito Administrativo, 8ª ed., São Paulo: Malheiros, 1996, p. 57). Já o segundo resulta que a “administração e seus agentes têm de atuar na conformidade dos princípios éticos” (autor e ob. cits., p. 69). Tem-se, pois, que estes dois princípios são de irrenunciável observância pela pública administração. E, “ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento de obrigações” (art. 37, XXI, da Carta Política). Portanto, obras, serviços e compras serão sempre precedidas de licitação pública, ressalvados os casos especificados na legislação. Acerca da importância da licitação, é de ouro a lição autorizada de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO: “A licitação visa alcançar duplo objetivo: proporcionar às entidades governamentais possibilidades de realizarem o negócio mais vantajosos (pois a instauração de competição entre ofertantes preordena-se a isso) e assegurar aos administrados ensejo de disputarem a participação nos negócios que as pessoas governamentais pretendam realizar com os particulares. Destarte atendem-se três exigências públicas impostergáveis: proteção aos interesses públicos e recursos governamentais — ao se procurar a oferta mais satisfatória; respeito ao princípio da isonomia e impessoalidade (previstos nos arts. 5º e 37, caput) — pela abertura de disputa do certame e, finalmente, obediência aos reclamos de probidade administrativa, imposta pelos arts. 37, caput e 82, V, da Carta Magna brasileira” (ob. cit., p. 316, os destaques não são do original). As exceções são justamente aquelas previstas nos arts. 22 e 23 do Dec.-Lei nº 2.300/86 (arts. 24 e 25, da Lei nº 8.666/93), que tratam das hipóteses de dispensa e inexigibilidade. Na primeira, a “licitação é dispensada, como se pode ver, em situações descritas pela legislação, nas quais se perderá, em tese, realizar o procedimento licitatório, mas que, pelas razões em cada caso apontadas, entende-se desnecessário o certame, já que sua realização não propiciaria ao Poder Público a escolha de proposta economicamente mais adequada, nem o pronto atendimento do interesse público (nacional, estadual ou local) que requer providências imediatas” (cfr. ANTÔNIO ROQUE CITADINI, Comentários e Jurisprudência sobre a Lei de Licitações Pública, 3ª ed., Max Limonad, p. 183). Na segunda, preceitua “a lei que é inexigível licitar quando ocorreu a inviabilidade de competição, podendo isto se dar por algumas razões: quando, comprovadamente houver somente um fornecedor do produto desejado pela Administração, portanto, é o caso de fornecedor exclusivo; quando forem contratados serviços técnicos enumerados no art. 13 desta lei, que sejam de natureza singular e realizados por profissionais ou empresas notoriamente especializadas (exceto publicidade e divulgação); e, finalmente, se se tratar de contratação de profissionais do setor artístico” (cfr. ANTÔNIO ROQUE CITADINI, ob. cit., pp. 217-218). Entretanto, ainda que configurada hipótese legal de dispensa ou inexigibilidade de licitação, necessário o ato que as autorizou, nos termos do § 2° do art. 44 do Dec.Lei n° 2.300/86 (processo de justificação com os requisitos previstos, nos termos do art. 26 e seu parágrafo único da Lei n° 8.666/93). ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 27-32, mar./abr.-2002 29 30 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura Ora, ausente procedimento licitatório próprio e ilegítimo o contrato, não há falar em pagamento de valores, posto que não há responsabilidade contratual (art. 1.056, do Código Civil). Afigura-se ausente a forma prescrita em lei, o que é causa de nulidade dos atos jurídicos (art. 145, III, do Código Civil). Com efeito, é tido por nulo “o contrato realizado sem concorrência, quando a lei a exigir, ou mediante concorrência fraudada no seu procedimento ou julgamento ou, ainda, quando o ajuste contraria normas legais em pontos fundamentais de seu conteúdo negocial. A nulidade da licitação induz à do contrato” (cfr. HELY LOPES MEIRELLES, ob. cit. p. 217). Aliás, sobre a imprescindibilidade da licitação, já se decide à sociedade a tal respeito: “Licitação - Dispensa - Empresa de notória especialização - Inocorrência - Serviço que nada tem de especializado - Existência de outras empresas habilitadas - Especialidade que não é imprescindível à Administração - Dispensa, ademais, que não veio devidamente fundamentada - Ação procedente - Recurso não provido. A notória especialização há de ser aferida para critério de ausência de comparação com os demais. O grau de especialização há de ser incomparável com os demais profissionais da área” (STF, 2ª T., Recurso Extraordinário nº 160.381-0, São Paulo, rel. MARCO AURÉLIO, v.u., 29.03.94). “Ação popular - Procedência - Inocorrência de nulidade diante da ausência de despacho saneador - Afastada a preliminar jurídica do pedido, baseada na desnecessidade de licitação para o contrato Houve contratação de serviço de publicidade, em valores de vulto e com cláusula de acréscimo ulterior incomensurável, sem licitação e sem exposição motivada de razões convincentes de dispensa da licitação - Honorários advocatícios adequadamente fixados - Recursos não providos” (TJSP, Apelação Cível nº 239.980/1, Guarujá, 9ª Câmara de Direito Público, rel. SIDNEI BENETI, 17.04.96, v.u.). “Ação popular - Obra pública - Ausência do procedimento seletivo prévio - Ofensa às disposições legais - Pleito recursal inacolhido. Atuando como fator de eficiência e moralidade, objetiva a licitação assegurar igual oportunidade para os que pretendem contratar com o Poder Público, respeitada a ordem jurídica e as regras previamente fixadas. Patente a inexistência do certame, indispensável na espécie, e demonstrada a lesividade, a par da ilegalidade e da condição de eleitor, o pacto celebrado é ineficaz” (TJSC, Apelação Cível nº 96.000643-5, de Joaçaba, rel. FRANCISCO OLIVEIRA FILHO). Tivesse ocorrido certame, teria a autoria do edital e do procedimento administrativo. De toda sorte deveria tê-lo juntado desde a inicial (art. 283 c/c 396, do CPC), não lhe socorrendo pugnar pela utilização do art. 399, do Código de Processo Civil, quando o documento é público e a todos acessível (art. 3º, § 3º, e 53, ambos do Dec.-Lei nº 2.300/86 - art. 3º da Lei nº 8.666/93). Perceba-se mais outros vícios do pacto: 1) não tem prazo de duração, transfigurando-se em de duração indeterminada, o que é vedado não só em sede de direito administrativo (art. 47, do Dec.-Lei nº 2.300.86 - art. 57, § 3º, da Lei nº 8.666/93), mas em toda a teoria geral dos contratos; 2) não há indicação do preço (condicionado ao aumento Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 27-32, mar./abr.-2002 da arrecadação e atribuindo-se parcela do erário público a um ente particular) (art. 46, do Dec.-Lei nº 2.300/86). Por outro lado, também não poderia haver a prorrogação do contrato. Primeiramente, porque se válida não era a avença, ilegítima seria sua prorrogação. Segundo, porque em não tendo prazo certo de vigência, estaria em aberto sua vigência ad infinitum. Terceiro, porque esta pressupõe a necessária justificação legal (art. 65, da Lei nº 8.666/93, já aplicável porque o aditamento se deu sob sua vigência - fls. 21-22). Não socorre à autora a confissão parcial do débito por conta do réu, uma vez que indisponível os direitos em litígio (art. 302, II, do CPC), tanto mais no caso em concreto. Em tal trilhar: “Prova - Confissão ficta - Revelia - Inadmissibilidade - Artigo 351 do Código de Processo Civil - Ente público, no caso, a Fazenda Pública - Impossibilidade de extração ficta pela revelia - Direitos fazendários considerados indisponíveis - Aplicação do artigo 320, II, do Código de Processo Civil - Anulação da sentença - Recurso provido para esse fim. Em se tratando de pessoa jurídica de Direito Público (União, Estado, Território ou Município) a revelia não induzirá a que se reputam verdadeiros os fatos alegados pelo autor. É que, quando se trate de uma daquelas entidades, seus representantes ou administradores não têm a disponibilidade dos direitos, que são, assim, indisponíveis situando-se a hipótese na alínea II do artigo 320” (TJSP, Apelação Cível nº 219.305-1, Serra Negra, rel. GUIMARÃES E SOUZA, CCIV 1, v.u., DJ 16.12.94). “Revelia - Fazenda Pública - Direitos indisponíveis - Inaplicabilidade do art. 319 do Código de Processo Civil - Circunstância entretanto, que não impede o julgamento antecipado da lide, ante a suficiência das provas apresentadas pelo autor - Sentença confirmada” (JTJ 129/253). O eventual direito há de ser buscado ao agente público que deu causa ao contrato nulo, sendo certo que dentre os poderes que lhe foram conferidos pelo povo não estavam a dilapidação do patrimônio público. Fala-se ainda, para fundamentar reflexos patrimoniais derivados de contratos inválidos, no princípio da vedação do enriquecimento sem causa, sufragado parcialmente no art. 59 da Lei nº 8.666/93, em alguns arestos e em certa doutrina (como na excelente monografia de JACINTHO DE ARRUDA CÂMARA, Obrigações do Estado Derivadas de Contratos Inválidos, São Paulo: Malheiros, 1999). E aqui vem uma pergunta nevrálgica: o princípio do enriquecimento sem causa é compatível com o regime jurídico da administração pública? Ora, perceba-se que se positiva a resposta em nada adianta o zelo constitucional aos princípios da legalidade e moralidade. Isso porque a sua observância finda por prejudicar a quem mais os mesmos (princípios) se prestam a proteger — a sociedade e o patrimônio dela — e ainda porquanto referenda a continuidade de tal prática pelos administradores públicos e os que com eles contratem. Por isso que raciocinar assim significa que todo administrador pode sair por aí, contratando indevidamente quem quer que seja, fazendo avenças de idoneidade duvidosa, enfim, administrando como com certeza não faz em casa própria, que ainda assim surgirá alguém invocando a tal vedação do princípio do enriquecimento sem causa e pior, retirando a proteção normativa à supremacia do interesse público. ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 27-32, mar./abr.-2002 31 32 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura É, em uma singela expressão, mais ou menos como “você não pode fazer isso assim, mas, se fizer, o erário suportará e, portanto, não se preocupe”. Só que a segunda parte da afirmação não tem previsão normativa e, principalmente, esvazia a primeira. O argumento fulcral na fundamentação da sua aplicabilidade diz respeito à boa fé do contratante (cfr. JACINTHO DE ARRUDA CÂMARA, ob. cit., p. 100). Ora, venhamos e convenhamos: alguém, em sã consciência, crê que alguma empresa, hoje em dia, desconhece que é necessária licitação para contratar com a administração pública, tanto mais uma da envergadura da autora, consultora empresarial???? Esforço-me muito e é necessária muita falta de lucidez para não perceber duas coisas simples: 1) todo mundo, hoje em dia, sabe que a contratação com a administração pública deve ser precedida de uma licitação ou uma justificação para sua ausência; 2) reconhecer a indenizabilidade por contratos administrativos nulos para os quais o postulante contribuiu é jogar por terra os princípios constitucionais da administração pública (art. 37) e antes é dar carta branca para sua inobservância reiterada e costumeira. De toda sorte, ainda que se transponha e vença todos os óbice indicados, mais precisamente no caso concreto tenho que não se deu a prova de que os serviços da autora se prestaram ao aumento das repasses de ICMS ao réu. Os documentos nos autos constantes demonstram que ela existiu, mas daí a dizer que houve algum nexo de causalidade (um dos elementos etiológicos da responsabilidade civil - art. 1.056 do Código Civil) é algo absolutamente diverso. É só atentar que, embora tenham sido feitas reclamações administrativas pela autora em nome do réu (fls. 23-73), não se constatou em que medida a Secretaria Estadual da Fazenda alterou os percentuais cabíveis ao réu por tal conduta. E, mesmo que assim tenha procedido o órgão estadual, esse aumento de arrecadação não poderia ser vinculado a um ente particular, como consta no contrato. Destarte, improcede a inaugural. III - Dispositivo Ante o exposto, julgo improcedente a presente ação proposta por GBL CONSULTORIA EMPRESARIAL S.C. LTDA. em face do MUNICÍPIO DE IGUAPE, e, em conseqüência, extingo o processo com julgamento do seu mérito, nos conformes do art. 269, I, do Código de Processo Civil. Fixo os honorários advocatícios de sucumbência em 10% (dez por cento) sobre o valor da causa (art. 20, § 4º, do CPC), sendo que a autora também deverá arcar com as despesas processuais, incluídas as custas (art. 20, § 2º, do CPC), tudo devidamente atualizado e corrigido. Somente não se determinam as providências do art. 40, do Código de Processo Penal, c/c 102, da Lei nº 8.666/93, porque o delito previsto no art. 89 da Lei nº 8.666/ 93 foi criado posteriormente à formalização do contrato, bem como, com relação a eventual improbidade administrativa, pelo fato do então alcaide já ser pessoa falecida. De qualquer forma, abra-se vista destes autos ao Ministério Público, para seu conhecimento e para suas eventuais providências. Publique-se. Registre-se. Intime-se. Iguape, 10 de agosto de 2001. FRANCISCO GLAUBER PESSOA ALVES Juiz de Direito Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 27-32, mar./abr.-2002 ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. 33 8ª VARA CÍVEL DA COMARCA DE CAMPINAS DO ESTADO DE SÃO PAULO VISTOS. CONCEIÇÃO APARECIDA LEITE ALMEIDA, qualificada nos autos, requereu, na qualidade de fideicomissária dos bens de CORINA PEIXOTO MENDONÇA, situados nesta cidade e descritos na inicial, havidos por testamento daquela, a extinção do fideicomisso sobre eles instituído pela autora da herança, em razão do nascimento de sua filha, MARCELLA MAYARA ALMEIDA ARGIERI, bem como com fulcro no art. 1.739 do Código Civil Brasileiro, e ainda autorização para substituição de um dos bens fideicometidos. Indeferida a pretendida substituição do bem (fl. 137 e vº), ao pedido opôs-se PATRÍCIA PEIXOTO CORBI SILVA, a pretexto de que o fideicomisso só poderia ser extinto, nos termos da cláusula testamentária que o instituiu, quando do falecimento da autora, argüindo ainda preliminares de nulidade da citação e de ilegitimidade ativa de parte (fls. 151/157). Parecer ministerial a fls. 177/186, em que opinou o representante do Parquet oficiante no feito, doutor ALEXANDRE ROCHA ALMEIDA DE MORAES, pelo deferimento do pedido inicial. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 33-40, mar./abr.-2002 34 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura Relatados. DECIDO: Não se pode tachar de nulo o ato citatório realizado, o qual, de mais a mais, se aperfeiçoou sem prejuízo à demandada. Tanto assim é que a orientação pretoriana estabeleceu ocorrer nulidade, na hipótese, quando a citação é feita na pessoa de empregado sem poderes para presentar a empresa citanda, e esta não comparece ao processo, caso em que não é comprovada de modo inequívoco a ciência da demanda por parte daquela.(1) E bem assim já se decidiu, em hipóteses parelhas, que é válida a citação de pessoa jurídica, mesmo não tendo sido efetivada na pessoa de seu representante legal, se o ato atinge o seu objetivo.(2) É a ensinança de HUMBERTO THEODORO JÚNIOR,(3) que, com sua autoridade, dirime propriamente a questão, assentando que a citação é indispensável como meio de abertura do contraditório, na instauração da relação processual. Mas, se esse se estabeleceu, inobstante a falta ou vício da citação, não há que se falar em nulidade do processo, posto que o seu objetivo foi alcançado por outras vias. A nulidade do processo, em razão do art. 247, só ocorre, portanto, plenamente, no caso de revelia do demandado e admite, portanto, suprimento pelo comparecimento da parte, desde que não tenha sofrido prejuízo em sua defesa pela deficiência do ato.(4) Assim se dá em razão da regra cristalizada na parêmia pas de nullité sans grief, cristalizada no ordenamento jurídico pátrio por força do comando inserto na letra do art. 244, do CPC. Sendo a citação o ato processual que apresenta a importância de assinalar o aparecimento da relação processual,(5) por ser o ato pelo qual se chama a juízo o réu ou o interessado, a fim de se defender,(6-7) indispensável se faz, para a validade do processo, sua efetivação (CPC, art. 214, caput), anotando, a respeito, MONIZ DE ARAGÃO(8) que, mesmo cominada a nulidade, não haverá por que invalidar o ato, se o resultado pretendido houver sido alcançado, até porque, bem lembra ERNANE FIDÉLIS DOS SANTOS, a norma processual é meio e não fim em si mesma. A citação é indispensável para a validade do processo, mas o comparecimento espontâneo do réu a supre (art. 214, § 1º), completando a relação processual.(9) Tampouco há falar em ilegitimidade ativa de parte da autora, que é fideicomissária dos bens fideicometidos, advindo daí, claramente, o seu interesse jurídico processual, na modalidade “necessidade”, na obtenção do provimento jurisdicional invocado. Diz-se a respeito da legitimidade de parte ou legitimação para agir, na lição de JOSÉ FREDERICO MARQUES,(10) que aquele que pede a tutela jurisdicional em relação a um litígio deve ser o titular da pretensão formulada ao Judiciário, e deve apresentála em face de quem é o sujeito passivo dessa mesma pretensão e, citando a denominação de BUZAID, diz ser a pertinência subjetiva da ação, porquanto consiste na STJ, 4ª Turma, REsp. nº 16.125-0/SP, rel. min. Athos Carneiro, j. 16.2.93, v.u., in DJU 22.3.93, p. 4.547, 2ª col., em. Bol. AASP 1.683/supl., p. 4, 1ª col., com farta jurisprudência. In Curso de Direito Processual Civil, 18ª ed., Forense, 1996, I/254. (4) THEODORO JÚNIOR, Humberto, ob. cit., p. 284. (5) CHIOVENDA, Giuseppe, in Instituições de Direito Processual Civil, 1ª ed., Bookseller, 1998, 2/369. (6) MARQUES, José Frederico, in Manual de Direito Processual Civil, 1ª ed., Bookseller, 1997, 1/442. (7) BARBOSA MOREIRA, José Carlos, in O Novo Processo Civil Brasileiro, 18ª ed., Forense, 1996, pp. 31-2. (8) In Comentários ao Código de Processo Civil, 9ª ed., Forense, 1998, II/275-6. (9) In Manual de Direito Processual Civil, 7ª ed., Saraiva, 1999, 1/261. (10) In Manual de Direito Processual Civil, 1ª ed., Ed. Bookseller, 1997, nº 139, p. 237. (1) (2) (3) Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 33-40, mar./abr.-2002 individualização daquele a quem pertence o interesse de agir e daquele em frente ao qual se formula a pretensão levada ao Judiciário.(11) Essa, também, a ensinança de ARAÚJO CINTRA, ADA GRINOVER e CÂNDIDO DINAMARCO,(12) para quem, ainda como desdobramento da idéia da utilidade do provimento jurisdicional pedido, (...) é titular de ação apenas a própria pessoa que se diz titular do direito subjetivo material cuja tutela pede (legitimidade ativa), podendo ser demandado apenas aquele que seja titular da obrigação correspondente (legitimidade passiva). A respeito, com toda a sua autoridade, ensina também HUMBERTO THEODORO JÚNIOR(13) que legitimados ao processo são os sujeitos da lide, isto é, os titulares dos interesses em conflito. A legitimação ativa caberá ao titular do interesse afirmado na pretensão, e a passiva, ao titular do interesse que se opõe ou resiste à pretensão. Repilo, pois, as preliminares argüidas. No mais, tenho que o pedido inicial reclama acolhida, dada a natureza eminentemente declaratória desta demanda. Na lição de CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, o fideicomisso... consiste na instituição de herdeiro ou legatário, com o encargo de transmitir os bens a uma outra pessoa a certo tempo, por morte, ou sob condição pré-estabelecida. O herdeiro ou legatário instituído denomina-se fiduciário ou gravado, e o substituto ou destinatário remoto dos bens chama-se fideicomissário.(14) Colhe-se do testamento encartado no apenso (fls. 07/08) que o fideicomisso fora instituído pelas cláusulas 3ª e 4ª daquela manifestação derradeira de vontade, assim redigidas: “3ª) que é seu desejo e determina, que todos os seus bens caibam e venham a pertencer à sua irmã, dª DÉA PEIXOTO, brasileira, solteira, maior, professora primária aposentada, residente e domiciliada nesta cidade, à rua Cônego Cipião, número 797 - apartamento nº 41, portadora da C.I.R.G. nº 936060-SP e CIC nº 036474638, e, na sua falta, deixa a CONCEIÇÃO APARECIDA LEITE ALMEIDA (fideicomissária); 4ª) Que, ocorrendo o falecimento da fideicomissária CONCEIÇÃO APARECIDA LEITE DE ALMEIDA sem deixar filhos ou marido, os bens passarão para a sobrinha de CORINA PEIXOTO MENDONÇA, PATRÍCIA PEIXOTO CORBI, nascida em Araraquara, Estado de São Paulo, aos 2 de fevereiro de 1971, filha de VENILDO RUBENS CORBI e de ANA MARIA PEIXOTO CORBI;” O raciocínio de PATRÍCIA PEIXOTO, quando se opõe ao pedido, vem calcado na premissa de inocorrência de violação do art. 1.739, da lei civil básica, que dispõe, verbis: “Art. 1.739. São nulos os fideicomissos além do segundo grau.” Entende PATRÍCIA PEIXOTO que, sendo fideicomissária em segundo grau, a MARQUES, José Frederico, ob. cit., p. 238. In Teoria Geral do Processo, 14ª ed., Ed. Malheiros, 1998, nº 158, p. 258. In Curso de Direito Processual Civil, 18ª ed., Ed. Forense, 1996, v. I, § 7º, nº 53, pp. 56-8. (14) In Instituições de Direito Civil, 6ª ed., Forense, 1991, VI/294, (11) (12) (13) ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 33-40, mar./abr.-2002 35 36 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura instituição do fideicomisso não pode ser tida por nula, já que não restou ofensa ao dispositivo legal suso transcrito; e que, ante a expressa redação da cláusula 4ª da disposição de última vontade deixada pela autora da herança, a caducidade do fideicomisso só poderá ser reconhecida por ocasião do falecimento da primeira fideicomissária, ora autora. Nesse passo, porém, labora em equívoco, por calcar sua tese em premissa falsa. Comentando a letra do art. 1.739, do Código Civil Brasileiro, ensina CLÓVIS BEVILAQUA:(15) “Há quem suponha que o Código Civil permite a substituição fideicomissária além do segundo grau, até o terceiro. Escreve FERREIRA ALVES: ‘O Código permite o fideicomisso em dois graus; e, a este respeito, estatui o art. 1.739 que nulos são os fideicomissos além do segundo grau; e, assim, admite dois substitutos, o primeiro, que sucede ao fiduciário, o herdeiro instituído, e o segundo, que sucede ao primeiro referido substituto.’ Esta interpretação deve ser recusada por contrária à letra e ao espírito do Código, assim como á história da sua formação. O fideicomisso supõe dois herdeiros: um do primeiro grau, que é o instituído, com o encargo de entregar a herança à pessoa designada no testamento; e outro, do segundo grau, que é a pessoa designada, no testamento, para receber a herança do instituído. Em duas palavras: o fiduciário e o fideicomissário. O fiduciário é herdeiro em primeiro grau, e o fideicomissário é herdeiro em segundo grau. Além deste segundo grau, não admite o Código fideicomisso. A obrigação de entregar a herança a outrem não pode ser imposta ao fideicomissário. É este o pensamento do Código, e está claramente expresso. O projeto primitivo propusera dizer-se: ‘São nulas as substituições além do segundo grau’ (art. 1.905). Supôs-se, aliás, sem fundamento, que essa fórmula poderia impedir que, na substituição vulgar, pudessem ser chamadas duas ou mais pessoas para receber a herança, e preferiu-se a fórmula atual, que provém de emenda de ALENCAR GUIMARÃES (‘Trabalhos’, da Câmara, VI, p. 513).” Colhe-se, a respeito, vívida lição de WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO,(16) de inteira aplicação à hipótese em exame: “São nulos os fideicomissos além do segundo grau (art. 1.739). Não se permite ao testador determinar que o fideicomissário entregue os bens a terceira pessoa. Por exemplo, anular-se-á a seguinte disposição, visto incidir na proibição do citado art. 1.739: deixo minha casa a Pedro, e, quando este falecer, passará a Paulo, o qual, por sua vez, a transmitirá a João. Fideicomisso não pode ultrapassar o segundo grau. A passagem dos bens a terceira pessoa (15) (16) In Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado, 3ª ed., Francisco Alves, 1935, VI/214-5. In Curso de Direito Civil - Direito das Sucessões, 25ª ed., Saraiva, 1989, pp. 238-9. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 33-40, mar./abr.-2002 importa estabelecimento de novo grau, formalmente proscrito pelo direito. O fideicomissário pode assim alienar os bens fideicometidos, como transmiti-los desembaraçados de quaisquer ônus aos seus herdeiros legítimos. Observe-se, todavia, que a nulidade da substituição ilegal não prejudicará a instituição que valerá sem o encargo resolutório (art. 1.740); a existência de novo grau, além dos admitidos, acarreta apenas a limitação do ônus às lindes legais. Como ensina o prof. LINO LEME, reduz-se a instituição ao limite legal, como se reduzem as disposições testamentárias ao limite disponível. No exemplo acima apontado, valerá a instituição no tocante a Pedro e Paulo; a nulidade só atingirá a disposição na parte que ordene atribuição dos bens a João, beneficiário em terceiro grau.” Bem esclarece, também, a respeito do thema decidendum, ORLANDO GOMES:(17) “O abuso das vinculações sucessivas levou o legislador a proibir o fideicomisso além do segundo grau. A determinação dos graus na substituição fideicomissária tem de fazer-se de modo preciso, para correta aplicação da lei. Cumpre distinguir os graus da vocação dos graus da substituição. Há dois graus na vocação; no primeiro, encontra-se o fiduciário, chamado para receber diretamente a herança, ou o legado; no segundo, o fideicomissário, chamado para substituí-lo e recolher, por via oblíqua, os bens fideicometidos em plena propriedade. Na substituição só se admite um grau, correspondente ao segundo da vocação. Quando, pois, se refere a lei à nulidade do fideicomisso, tem em vista o segundo grau da substituição e não o segundo grau da vocação, não validando o fideicomisso além do segundo grau a seqüência de fiduciários, impedindo segundo grau na substituição, que equivale a terceiro grau na vocação. Postulou, em suma, o princípio pelo qual o substituto, isto é, o fideicomissário, deve receber os bens fideicometidos sem obrigação de transmiti-los a outrem. Assim, é defeso ao testador dispor que os bens transmitidos pelo fiduciário ao fideicomissário devam ser conservados por este para restituição, colocando-o, pois, na posição de segundo fiduciário. ........ Outra conseqüência a inferir-se dos termos da proibição legal é a de que os bens fideicometidos devem passar à propriedade do fideicomissário sem qualquer limitação.” (omissis). É a sempre autorizada lição de CARLOS MAXIMILIANO(18) que os adverte: “O Código Civil dispõe: ‘Art. 1.739. São nulos os fideicomissos além do segundo grau’. Deste preceito não se infere haver dois fideicomissos sucessivos; é contemplado em primeiro grau o fiduciário; (17) (18) In Sucessões, 7ª ed., Forense, 1998, pp. 201-2. In Direito das Sucessões, 2ª ed., Freitas Bastos, 1943, III/91-2. ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 33-40, mar./abr.-2002 37 38 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura em segundo, o fideicomissário. Há dois herdeiros, ou legatários; um no primeiro, outro no segundo grau. O fideicomissário é o segundo beneficiário instituído e o primeiro substituto, que recebe a liberalidade depois de se verificar a condição suspensiva, ou de falecer o fiduciário. Refere-se a expressão do Código a segundo grau da instituição, que é o primeiro da substituição; segundo da substituição seria o terceiro da instituição. O sentido exato da regra positiva é este: são nulos os fideicomissos além do segundo grau da instituição. Não é lícito mandar o fideicomissário entregar a terceiro o que receber do fiduciário. (omissis). As Ordenações Filipinas esclareciam tudo, com definir assim a substituição: ‘é instituição de herdeiro feita pelo testador em segundo grau’. O segundo grau é, pois, da instituição; seria da substituição — primeiro e único. O admitir substituições sucessivas teria o inconveniente de restabelecer, pelo menos em parte, os morgados irregulares, os vínculos, eliminados em virtude da lei de 6 de Outubro de 1835, em sua essência encorporada ao Código Civil.” É de mesmo teor o magistério de ARTHUR VASCO ITABAIANA DE OLIVEIRA:(19) “Nulidade do fideicomisso - São nulos os fideicomissos além do segundo grau, porque a substituição de substituição implicaria instituição de vínculo, e os vínculos foram proibidos pela lei de 6 de outubro de 1835, proibição esta mantida pelo Cód. Civil. Os graus do fideicomisso - Os graus, no fideicomisso, são os seguintes: a) o primeiro grau da instituição - o fiduciário é o primeiro herdeiro, ou legatário, instituído e o único substituído; b) o segundo grau da instituição, que é o primeiro grau da substituição - o fideicomissário é o segundo herdeiro, ou legatário, instituído e o primeiro e único substituto. Fideicomisso além do 2º grau - Além do segundo grau da instituição (primeiro grau da substituição), não há fideicomisso, porque importaria em um vínculo. A expressão — além do segundo grau — usada no art. 1.739 do Cód. Civil refere-se ao segundo grau da instituição e não ao segundo grau da substituição, porque este viria a ser, então, o terceiro grau da instituição.” Dúvida alguma ainda houvesse, em face dos ensinamentos doutrinários trazidos à colação, seria espancada pelo sempre autorizado escólio de CARVALHO SANTOS:(20) “1. São nulos... Não somente anuláveis, convém lembrar, de sorte que, mesmo sem ser alegada, pode a nulidade ser decretada pelo juiz, ao tomar conhecimento do testamento, para fazer executá-lo. (19) (20) In Tratado de Direito das Sucessões, 5ª ed., 1986, pp. 297-8. In Código Civil Brasileiro Interpretado, 13ª ed., Freitas Bastos, 1988, XXIV/217-8. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 33-40, mar./abr.-2002 A nulidade, porém, só alcança o fideicomisso além do segundo grau, o que importa dizer que prevalece e é válido quanto ao primeiro fideicomissário designado. 2. Os fideicomissos além do segundo grau. Na figura do fideicomisso exige-se a existência de dois herdeiros: um, que é o instituído, com o encargo de entregar a herança, em determinada época, à pessoa designada no testamento, sendo, evidentemente, esse o herdeiro contemplado em primeiro grau; outro, que é a pessoa designada no testamento, para receber a herança do instituído, e figura como contemplada em segundo grau.” Bem se está a ver, portanto, que o segundo grau a que alude o texto legal supra é o da instituição, equivalente ao primeiro da substituição. Donde a conclusão: não vale a disposição por meio da qual o testador determina que o fideicomissário entregue a terceiro o que receber do fiduciário. FERREIRA ALVES, é verdade, diverge dessa opinião, mas ficou isolado. Sua opinião é esta: “O Código permite o fideicomisso em dois graus; e a este respeito estatui o art. 1.739 que são nulos os fideicomissos além do segundo grau; e, assim, admite dois substitutos, o primeiro, que sucede ao fiduciário, o herdeiro instituído, e o segundo, que sucede ao primeiro referido substituído”. Logo se percebe onde está a confusão do mestre. Ele faz desaparecer da figura do fideicomisso a pessoa do fiduciário, só levando em conta a do fideicomissário. Daí enxergar o fideicomissário como sendo instituído em primeiro grau. Como muito bem adverte CARLOS MAXIMILIANO, refere-se a expressão do Código ao segundo grau da instituição, que é o primeiro grau da substituição; segundo da substituição seria terceiro da instituição. O sentido exato da regra positiva é este: são nulos os fideicomissos além do segundo grau da instituição. Nem outra coisa ensina, com outras palavras, o egrégio CLÓVIS BEVILAQUA. Se o testador determina, portanto, que o fideicomissário entregue a terceiro o que recebeu do fiduciário não prevalece a disposição; o terceiro nada poderá reclamar, nem mesmo por ocasião da morte do fideicomissário, pois aos herdeiros deste é que vem a tocar a herança ou o legado. Sem maiores esforços, vê-se bem que a autora da herança instituíra sua irmã fiduciária dos bens fideicometidos, e a autora desta ação, a respectiva fideicomissária (cláusula 3ª). A obrigação instituída pela testadora, para que proceda a fideicomissária a entrega a terceira pessoa, no caso Patrícia Peixoto, dos bens fideicometidos, é insubsistente, porque malfere a vedação legal (CC, art. 1.739) sem invalidar a própria instituição do fideicomisso (CC, art. 1.740). Em via de conseqüência, a fideicomissária, autora deste pedido, recebeu os bens fideicometidos livres de qualquer gravame, e daí impõe-se o decreto de procedência do pedido, para declarar extinto o aludido fideicomisso. Posto isso e considerando o mais que dos autos consta, julgo procedente o pedido, para o fim de declarar extinto o fideicomisso instituído pela testadora, o que faço nos moldes e pelos fundamentos constantes do corpo deste julgado. ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 33-40, mar./abr.-2002 39 40 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura Comunique-se ao C.R.I. local, para as providências, se o caso. Oportunamente, arquivem-se. Custas ex lege. P.R.I.C. São Manuel / Campinas, 22 de setembro de 2000. JOSÉ ANTONIO TEDESCHI Juiz de Direito Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 33-40, mar./abr.-2002 ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. 41 1ª VARA DA COMARCA DE FERNANDÓPOLIS DO ESTADO DE SÃO PAULO. VISTOS. MARCO ROBERTO DE LOLLO propôs ação de indenização por danos morais em face de ADEMIR COUTO ANGELO e SILVIA ANDRÉIA INOCENCIO DE SOUZA LOLLO. Alegou, em síntese, que é casado com a segunda requerida, mas esta cometeu adultério com o primeiro requerido, o que o expôs ao ridículo e lhe provocou danos morais; por isso, pediu condenação dos requeridos ao pagamento de uma indenização por danos morais, no valor de 140 salários mínimos (fls. 02/04). Citados (fls. 16 verso), os requeridos apresentaram contestação (fls. 18/26), quando alegaram ilegitimidade passiva do primeiro requerido, porque não contribuiu para a publicidade do adultério, e, no mérito, que o casamento do autor era uma farsa porque faltava amor, união, carinho, afeto, e que houve o flagrante, mas o autor cometeu maus tratos à esposa, agiu com desleixo da vida conjugal, com frieza do tratamento, com mau humor constante e com situações humilhantes para a esposa no seio familiar, sendo ínfimo o dano do autor. Houve réplica (fls. 32/34) e restou infrutífera a audiência para tentativa de conciliação entre as partes (fls. 39). Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 41-44, mar./abr.-2002 42 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura É o relatório. DECIDO: Trata-se de pedido de indenização de danos morais, decorrentes de adultério. As questões a decidir são apenas de direito, o que dispensa a instrução e permite o julgamento antecipado da lide, nos termos do artigo 330, inciso I, do Código de Processo Civil. A preliminar de ilegitimidade passiva do primeiro requerido é rejeitada, uma vez que a responsabilidade dele deve ser apurada quanto aos fatos que praticou (artigo 159 do Código Civil), como se verá a seguir. Dessa forma, ele é titular da obrigação de direito material posta nos autos, revelando sua legitimidade ad causam. Presentes as condições da ação e os pressupostos de constituição válida e regular do processo, passo à análise do mérito, quando se verifica a procedência parcial do pedido. Começo a apreciar os fatos. O autor alegou que é casado com a requerida e que esta praticou adultério com o requerido, o que lhe causou dano moral diante da situação vexatória. Os requeridos admitiram o adultério, mas trouxeram várias alegações impeditivas do direito do autor, consistentes na ausência de amor no casamento, em que o autor deu publicidade ao evento e em que o dano foi ínfimo. Por isso, os fatos são incontroversos, o que dispensa a produção de prova testemunhal a seu respeito, consoante a regra do artigo 400, inciso I, do Código de Processo Civil. Resta saber se é cabível a indenização no presente caso, sendo necessária, para tanto, a existência cumulativa dos seguintes elementos: ato (ação ou omissão) do agente, dano efetivo (patrimonial ou moral), nexo de causalidade entre ato e dano, e culpa em sentido lato (culpa e dolo), nos termos do artigo 159 do Código Civil. Com efeito, determina a lei que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano” (artigo 159 do Código Civil). No caso dos autos, houve ação dos requeridos em praticarem o crime de adultério (artigo 240 do Código Penal), que ainda existe. Note-se que também pratica o crime de adultério o co-réu (§ 1o do dispositivo citado), uma vez que se trata de um crime de concurso necessário, ou seja, somente pode ser praticado por mais de um agente. Os requeridos aduziram que foi o autor quem deu causa à publicidade do caso, ao surpreendê-los em flagrante. No entanto, os requeridos se esquecem de que, se eles não estivessem praticando o adultério contra o autor, jamais teria ocorrido o flagrante. Diante disso, se algum fato relevante houve, este fato é atribuído exclusivamente a eles, por praticarem o adultério. Observe-se, ainda, que o autor agiu dentro da esfera de atuação que lhe permite a lei, uma vez que ninguém é obrigado a suportar uma traição e permanecer quieto, podendo fazer uso dos meios legais para a apuração dos fatos, inclusive da Polícia, se houver a prática de um crime, como no caso dos autos. Assim, houve ato exclusivo dos réus, sendo indiferente, para a responsabilidade deles, o fato de o autor ter tornado público o caso. Também houve dano moral ao autor, que se viu vítima de um crime contra o Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 33-40, mar./abr.-2002 casamento e contra a família, sendo inegável a dor moral que passa uma pessoa que se vê traída pelo cônjuge. A divergência que havia a respeito da possibilidade da reparação do dano moral foi afastada, de uma vez, pela vigente Constituição da República (artigo 5º, incisos V e X). Válida, pois, a conclusão de CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA,(1) pois “agora, pela palavra mais firme e mais alta da norma constitucional, tornou-se princípio de natureza cogente o que estabelece a reparação do dano moral em o nosso direito. Obrigatório para o legislador e para o juiz”. Segundo WILSON MELO DA SILVA ,(2) “danos morais são lesões sofridas pelo sujeito físico ou pessoa natural de direito em seu patrimônio ideal, entendendo-se por patrimônio ideal, em contraposição a patrimônio material, o conjunto de tudo aquilo que não seja suscetível de valor econômico”. Os requeridos alegaram que não houve dano moral ao autor porque o casamento dele era uma farsa e, se dano houve, esse foi ínfimo. Não se pode dizer que o casamento era uma farsa, tendo em vista que “o casamento válido somente se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio” (parágrafo único do artigo 2o da Lei nº 6.515/77). Além disso, as partes estão casadas desde 12 de setembro de 1992 (fls. 13), não se podendo falar em uma farsa que dura mais de cinco anos. Na verdade, o que os requeridos quiseram dizer é que o autor também não estava cumprindo seus deveres conjugais, pois o autor teria cometido maus tratos à esposa, agiu com desleixo da vida conjugal, com frieza do tratamento, com mau humor constante e com situações humilhantes para a esposa no seio familiar. Ora, se era essa a situação, deveria a requerida ter pedido a separação (artigo 2o, inciso III, combinado com o artigo 5o, ambos da Lei nº 6.515/77). Em outras palavras: se um dos cônjuges eventualmente não cumpre seus deveres conjugais, o cônjuge inocente deve se valer da lei para obter a separação, e não também começar a descumprir os deveres conjugais. Assim, o que temos é que o autor ainda estava casado com a requerida e ambos tinham o dever de fidelidade recíproca (artigo 231, inciso I, do Código Civil), que foi descumprido pela requerida. O cônjuge que se vê traído sofre, inegavelmente, um dano moral, sendo que um cônjuge sempre espera, se não existem mais os requisitos para a manutenção da vida em comum, que seja pedida a separação, e não que haja uma traição. Diante disso, houve prejuízo à honra do autor, que se viu humilhado perante a sociedade. O fato de os requeridos alegarem que foi ínfimo o valor do dano moral serve como confissão da existência de dano moral e será apreciado quando da fixação da indenização, se presentes os demais requisitos. Vale notar que YUSSEF SAID CAHALI(3) observa a possibilidade de indenização por danos morais decorrentes da infração dos deveres conjugais, citando doutrina e jurisprudência nesse sentido, esclarecendo que “já se admitiu, entre nós, que a prática de infidelidade pela mulher na constância da sociedade conjugal pode, em tese, configurar causa de responsabilidade civil por danos morais”. Também está presente o nexo causal, pois o dano alegado nos autos foi decorrente (1) (2) (3) Responsabilidade Civil, 2ª ed., Editora Forense, 1990, p. 65. O Dano Moral e Sua Reparação, 1ª ed., Editora Foresne, 1955, p. 11. Na obra Dano Moral, 2ª ed., Editora Revista dos Tribunais, 1998, p. 664. ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 41-44, mar./abr.-2002 43 44 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura do adultério, e não de outra causa, não alegada pelos requeridos (artigo 326 do Código de Processo Civil). Por fim, entramos na análise da existência da culpa em sentido lato, que abrange a culpa propriamente dita (imprudência, negligência e imperícia) e o dolo. No caso dos autos, os requeridos agiram com dolo ao praticarem o adultério, tendo em vista que eles sabiam que a requerida era casada e ainda assim mantiveram relacionamento amoroso e sexual. Dessa forma, estão presentes os requisitos da responsabilidade civil, restando apreciar o valor da indenização devida ao autor. Não existe norma legal que fixe o valor da indenização em tais casos, sendo que a fixação deve ser feita por eqüidade pois, até hoje, não se descobriu uma fórmula segura para se fazer tal fixação. Nessa fixação, deve-se observar um patamar máximo, para que se evite o enriquecimento indevido da vítima, e um patamar mínimo, para que a indenização não seja inexpressiva e, assim, perca sua função de inibir outros atos de violação de direitos individuais. Assim, devem ser observadas as circunstâncias do caso concreto, bem como a situação das partes envolvidas e as conseqüências para o autor, decorrentes do ato ilícito praticado. Na legislação pátria, temos a previsão máxima de indenização dos danos morais na Lei de Imprensa, que vai de dois a duzentos salários mínimos de indenização (artigos 51 e 52 da Lei nº 5.250/67). Por isso, no caso dos autos, o mais justo é fixar a indenização em dez vezes o valor do salário mínimo, tendo em vista que a maior indenização admitida em lei é de duzentos salários mínimos, que deve ser reservada para os casos mais graves. Acrescente-se que tal fixação servirá para inibir a prática de novos atos lesivos e atenderá ao dano sofrido pelo autor, observando que ele não esclareceu a intensidade do seu sofrimento e ajudou na publicidade do adultério praticado pelos requeridos. Tal quantia deverá ser corrigida a partir da prática do ato ilícito pela tabela prática de atualização de débitos judiciais, divulgada mensalmente pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, e será acrescida de juros de mora calculados à base de 6% (seis por cento) ao ano a contar da citação. Ante o exposto, julgo procedente em parte o pedido na ação de indenização por danos morais que MARCO ROBERTO DE LOLLO propôs em relação a ADEMIR COUTO ANGELO e SILVIA ANDRÉIA INOCENCIO DE SOUZA LOLLO, para o efeito de condenar os requeridos a pagarem ao autor uma indenização no valor de R$ 1.300,00 (mil e trezentos reais), corrigida a partir da data dos fatos pela tabela de atualização de débitos judiciais divulgada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo e acrescida de juros de mora de 6% (seis por cento) ao ano a contar da citação. Como houve sucumbência recíproca (artigo 21, caput, do Código de Processo Civil), cada parte arcará com metade das custas processuais e com os honorários advocatícios de seus respectivos patronos. Publique-se, registre-se, intimem-se. Fernandópolis, 16 de novembro de 1998. BRUNO JOSÉ BERTI FILHO Juiz de Direito Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 33-40, mar./abr.-2002 ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. 45 VARA DE EXECUÇÕES CRIMINAIS, CORREGEDORIA DOS PRESÍDIOS E POLÍCIA JUDICIÁRIA DA COMARCA DE SÃO VICENTE DO ESTADO DE SÃO PAULO VISTOS. LÚCIO QUIRINO DE SOUZA, RG nº 28.484.450/0, teve seu pedido de progressão de pena deferido por este juízo em 25 de junho de 2001 (fls. 21 do apenso de progressão), com trânsito em julgado. A direção da penitenciaria onde se encontra o reeducando, solicitou orientação quanto ao procedimento de progressão do regime, uma vez que consta mandado de prisão por pronúncia contra a pessoa do reeducando. (fls. 29). O Ministério Público manifestou-se requerendo que o reeducando permaneça no regime fechado (fls. 30). Regularizados vieram os autos conclusos para decisão. É o relatório. PASSO A FUNDAMENTAR E DECIDIR: Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 45-46, mar./abr.-2002 46 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura A Lei nº 7.210/84 regula a execução das penas criminais. Cuida, portanto, entre outros assuntos, da aplicação da prisão-pena decorrente da prática de crime. A prisão-pena não se confunde com prisão de natureza processual, pois têm objeto e fundamento próprio. Para a prisão-pena, conseqüência de decisão condenatória com trânsito em julgado, é previsto o instituto da progressão do regime de penas, visando à readaptação gradativa do reeducando à liberdade. A prisão por pronúncia, por outro lado, é uma prisão processual de natureza cautelar, que não é regulada pela Lei nº 7.210/84. A prisão processual é imposta sem título executivo, pelo que não há que falar em aplicação da Lei de Execução Penal. Ora, ao reeducando, que progrediu de regime de cumprimento de pena, também foi imposta prisão em virtude de pronúncia em processo que responde perante a 2ª Vara do Foro Distrital de Vicente de Carvalho (fls. 32). Assim, pela prisão-pena, poderia passar a cumprir sua reprimenda em regime mais brando. Mas, pela prisão cautelar, deverá ficar recolhido em regime fechado. Isso, devido a diferença de natureza entre uma prisão e outra. Aquela é satisfativa, essa é provisória e cautelar. Aquela objetiva a reinserção, essa objetiva assegurar a persecução penal pelo novo crime. O E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo já decidiu em caso parelho: “Agravo - Progressão de regime - Réu que, cumprindo pena de oito anos de reclusão por homicídio, obteve parecer favorável da Comissão Técnica de Classificação - Nada obstante, em razão de ter sido pronunciado, com trânsito em julgado, por outro homicídio, não faz jus efetivamente à progressão, mesmo porque incompatível com a prisão decretada na sentença de pronúncia - Agravo desprovido” (Agravo nº 254.585-3, 3a. Câmara Criminal, relator WALTER GUILHERME, 15.09.98, v.u.). Ao que parece, o magistrado do processo de cognição entendeu que deveria o reeducando permanecer preso durante a fase de aguardo entre a pronúncia e a data do julgamento no Tribunal de Júri. Para atacar tal prisão processual, deve ser utilizado o remédio próprio, no processo de conhecimento. Para espancar qualquer dúvida, basta ver que, estivesse solto e fosse pronunciado, se emitido o mandado de prisão, passaria o réu a cumprir essa sanção provisória em cárcere fechado, e não em colônia agrícola ou penal. Anoto, por oportuno, que tal suspensão não pode prejudicar o reeducando com relação a novo prazo para benefício. Seus lapsos contarão a partir da decisão que deferiu a progressão ao regime intermediário, posto que provisória a decisão de pronúncia. Caso haja condenação no processo em que pronunciado, a nova pena será somada ao restante das anteriores, aplicando-se as regras atinentes à unificação para a execução. Isso posto, e por tudo mais que consta nos autos, determino que se suspenda o pedido de vaga ao regime semi-aberto do reeducando LÚCIO QUIRINO DE SOUZA, RG 28.484.450/0, enquanto vigente o mandado de prisão. Passado mais 1/6 do restante da pena, deverão ser feitos os exames para o regime aberto. Anote-se. Oficie-se em resposta à direção do presídio, com cópia desta decisão. P.R.I. e C. São Vicente, 21 de agosto de 2001. CARLOS FONSECA MONNERAT Juiz de Direito Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 45-46, mar./abr.-2002 ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. 47 4ª VARA DA FAMÍLIA E DAS SUCESSÕES CENTRAL DA CAPITAL DO ESTADO DE SÃO PAULO VISTOS. ILDEU LARA DE ALBUQUERQUE, qualificado nos autos, requereu o inventário dos bens deixados por ocasião do falecimento de HILDEGARD FODITSCH, alegando, em síntese, que a finada faleceu em 14 de outubro de 1993, tendo deixado um testamento público, no qual instituiu, como sua herdeira, a amiga MARLY BONTEMPO DE ALBUQUERQUE. Ocorre que a herdeira testamentária faleceu em 21 de maio de 1993, ou seja, antes da data do óbito da testadora. Salientando que, após a morte daquela herdeira, a falecida manifestou vontade de instituir as filhas destas, como sua herdeiras universais, postula o requerente a abertura da sucessão da suplicada (fls. 2/4). A petição inicial foi instruída com documentos (fls. 6/18). O representante do Ministério Público opinou pela conversão do delito em herança jacente, tendo em vista a ineficácia do testamento deixado pela falecida (fls. 55/57). O requerente insurgiu-se contra a manifestação ministerial (fls. 59/61). Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 47-62, mar./abr.-2002 48 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura É o relatório. DECIDO: O caso sub judice versa sobre o tema da instituição de herdeiro pela via testamentária. Referida no artigo 1.664 do Código Civil, é o objeto por excelência da testamentificação, nela se concentrando, segundo GOYENA COPELLO, a mais completa demonstração de potestade que a lei civil reconhece à vontade humana (in Tratado del Derecho de Sucesión, Buenos Aires, 1972, t. II, p. 199). O eminente desembargador NEY DE MELLO ALMADA, na obra Direito das Sucessões, Brasiliense, 1991, t. II, p. 115, conceitua a instituição de herdeiro como sendo “a disposição testamentária pela qual o de cujus atribui a uma pessoa, física ou jurídica, vocação hereditária, abrangente do todo ou de parte do patrimônio sucessível”. Disciplinando, outrossim, a capacidade testamentária passiva, o artigo 1.717, dispõe que “podem adquirir por testamento as pessoas existentes ao tempo da morte do testador, que não forem por este Código declaradas incapazes”. Portanto, no Direito pátrio, não podem herdar ou receber legado as pessoas que não estão vivas por ocasião da abertura da sucessão. PINTO FERREIRA, assevera que “A regra é a da capacidade dos existentes, regulando-se a matéria pelo princípio da coexistência (Grundsatz der Koexistenz), que tanto rege a sucessão legítima como a sucessão testamentária. É preciso que tenham coexistido testador e herdeiros testamentários, quer-se dizer, que, ao morrer o testador, esteja ainda vivo o herdeiro testamentário” (in Tratado das Heranças e dos Testamentos, Saraiva, 1983, p. 651). Excepcionalmente, admite-se que possa herdar, em virtude da permissão expressa no artigo 1.718 do Estatuto Civil, a prole eventual de pessoas designadas pelo testador e existentes ao tempo da abertura da herança. Do requisito da existência do instituído no momento da morte do testador, se deduzem, segundo CLÓVIS BEVILÁQUA, a caducidade da disposição, quando o mesmo falece antes do defenestramento da sucessão (in Código Civil dos E.U.B., 7ª ed., v. II, Faculdade de Direito Estácio de Sá, p. 909). Ora, na hipótese em tela, não se vislumbra a testamenti factio passiva, na medida em que a herdeira instituída no testamento faleceu antes da testadora (fls. 8, 18), invalidando, pois, a decantada disposição de última vontade. Doutra banda, em que pesem as respeitáveis ponderações do suplicante, não é o caso de se aplicar o disposto no artigo 1.666 do Código Civil. Com efeito, a cláusula testamentária que institui herdeira MARLY BONTEMPO DE ALBUQUERQUE não é suscetível de interpretação diversa. Vale dizer, dela não se conclui que a testadora pretendia beneficiar, na ausência da herdeira instituída, suas filhas, KATHIA e KARLA. E a pretendida utilização de elementos extrínsecos ao testamento, a fim de pesquisar a vontade da falecida, como pretende o requerente, com a apresentação de documento particular (fls. 11), somente seria possível se dúvida houvesse na interpretação contextual da disposição de última vontade. Deveras, o jurisconsulto PAULO já afirmava: “Cum in verbis nulla ambiquitas est, non debet admitti voluntates quaestio” (D., Liv. III, parág. 1, frag. 25, de Legatis et Fideicomissis). Ademais, ainda que, hipoteticamente, se admitisse o emprego do mencionado elemento externo, melhor sorte não assistiria ao requerente, pois jamais teria o condão Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 47-62, mar./abr.-2002 de substituir, por si só, a pretérita manifestação de vontade, inserta no testamento. Nesse sentido, aliás, é o pacífico entendimento doutrinário. Senão vejamos. O desembargador NEY DE MELLO ALMADA leciona que “a valia da prova externa é subsidiária e relativa, não podendo contradizer, substituir ou infirmar a disposição em foco, nem podendo o magistrado substituir o próprio pensamento ao do disponente, como faz sentir TITO PRATES DA FONSECA (‘Sucessão Testamentária’, p. 19)” (ob. cit., p. 87). Idêntico é o espólio de ORLANDO GOMES, asseverando que “não se consente, contudo, que o intérprete leve a pesquisa da intenção do testador ao ponto de construila, ainda que vários elementos presuntivos possam conduzir a descobrir uma vontade que não foi, todavia, declarada. Há de estar expressa no testamento, somente se admitindo investigação aliunde, para esclarecê-la” (in Sucessões, 6ª ed., Forense, 1986, p. 154). Por derradeiro, não se pode admitir eventual argumentação concernente à revogação do testamento da finada, pela superveniência do documento por ela firmado, posteriormente (fls. 11). De fato, a disposição de última vontade da requerida somente poderia ser revogada por outro testamento, não podendo valer, para tal fim, ex vi do estatuído no artigo 1.746 do Código Civil, simples instrumento de mandato, no qual a falecida manifestou intento de instituir outras herdeiras. Frise-se, também, que referido documento sequer contém os elementos formais inerentes a qualquer uma das modalidades de testamento. Sobre o tema, o desembargador NEY DE MELLO ALMADA salienta que “o instrumento revogatório há de ser um testamento, como o determina o art. 1.746. Não é indispensável guardar-se a mesma forma anteriormente optada, suficiente sendo que a revogação se traduza em alguma das forma legalmente sancionadas. É, assim, regra que só se revogam testamentos por testamentos” (ob. cit., p. 132). No mesmo diapasão é o entendimento de PINTO FERREIRA: “O testamento é um ato personalíssimo e revogável. O preceito dominante é o seguinte - ‘Art. 1.746. O testamento pode ser revogado pelo mesmo modo e forma por que pode ser feito. Mas a revogação só pode ser feita mediante uma das formas autorizadas por lei, isto é, por outro testamento, público, cerrado, particular, marítimo ou militar. O codicilo não pode revogar nem invalidar um testamento, pois não é possível fazer um testamento por meio de escritura pública” (ob. cit., p. 608). Cumpre frisar, ainda, que o mero processamento do testamento público da falecida, com seu registro e cumprimento, não implicou o reconhecimento de sua validade, posto que, naquela oportunidade, somente, foram analisados seus aspectos estritamente formais. Destarte, considerando-se a manifesta caducidade do testamento deixado pela requerida, decorrente da pré-morte da herdeira instituída, a existência de bens e a ausência de sucessores, é de rigor a conversão do presente inventário em herança jacente. Ante o exposto, com fulcro no artigo 1.591 do Código Civil e artigo 1.142 do Estatuto Adjetivo, considero jacente a herança deixada por HILDEGARD FODITSCH, determinando a arrecadação de todos os seus bens (fls. 63) e nomeando curador o procurador municipal JOSÉ LUIZ, sob compromisso. Defiro os requerimentos descritos nos itens “c”, “d”, “e” e “f”, da petição de fls. 63/64. Providencie a zelosa serventia as devidas retificações, inclusive, comunicando ao distribuidor. Intimem-se. ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 47-62, mar./abr.-2002 49 50 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura São Paulo, 4 de setembro de 1995. DANIELA MARIA CILENTO MORSELLO Juíza de Direito ACÓRDÃO DE CONFIRMAÇÃO EM RECURSO DE APELAÇÃO 3ª CÂMARA DE DIREITO PRIVADO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO Exige-se, para admitir como substitutos os herdeiros de pessoa contemplada em testamento público que veio a falecer antes do testador, formalização de cláusula testamentária com os mesmos rigores que asseguram eficácia dos atos de última viagem (arts. 1.729, 1.717, 1.629 e 1.631, do Código Civil). Procuração ad judicia imprestável para a finalidade. Agravo improvido. VISTOS. HILDEGARD FODITSCH faleceu aos oitenta e quatro anos (14.10/93), sem deixar herdeiros conhecidos, embora três anos antes tivesse firmado testamento público instituindo, sem o critério da substituição, sua amiga MARLY BONTEMPO DE ALBUQUERQUE, herdeira de todos os seus bens (cf. Livro 17-T, fls. 182, do 27º Cartório da Capital - fls. 47). Ocorreu que MARLY faleceu cinco meses antes da morte da testadora (21.5.93) e, justamente por conta dos efeitos da peridiciocidade de tais acontecimentos, foi proferida a respeitável decisão que motivou o presente recurso de apelação, processado como agravo de instrumento. Aberto o inventário dos bens (dois imóveis e depósito bancário estimado em R$ 200.000,00) por ILDEU LARA DE ALBUQUERQUE, viúvo de MARLY BONTEMPO DE ALBUQUERQUE, requereu-se contemplação de suas herdeiras, KATHIA MARIA BONTEMPO DE ALBUQUERQUE e KARLA MARIA BONTEMPO DE ALBUQUERQUE LIRA, por ter a falecida perpetuado, em vida, escrito particular consubstanciado o desejo de aquinhoá-las (fls. 49). A ilustre juíza, dra. DANIELA MARIA CILENTO MORSELLO, acolhendo ponderações da Promotoria de Justiça, no entanto, declarou a caducidade do testamento e considerou jacente a herança de HILDEGARD FODITSCH (fls. 112/113). Daí a irresignação em busca da nulidade do ato judicial, pela impropriedade de se transformar inventário em processo de declaração de vacância e/ou para o reconhecimento da qualidade de herdeiras das postulantes, o que viria a coroar o ideal do intuitu familiae que marcou o propósito testamentário. Instrumento apto a permitir completo discernimento da matéria e que chega ao tribunal com proposta de improvimento firmado pela douta Procuradoria geral de Justiça. É o relatório. Contra o que se chamou de indeferimento implícito da nomeação de ILDEU ao cargo de inventariante, tirou-se o agravo retido de fls. 99, mas, apesar da reiteração em busca de seu julgamento prévio, não é o incidente digno de um capítulo reservado, por encontrar-se compreendido na própria relação substancial. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 47-62, mar./abr.-2002 Rejeita-se a preliminar de nulidade. Na concepção de COUTURE (Interpretação das Leis Processuais, Forense, 1994, p. 59), o princípio de impulso processual carrega o seguinte enunciado: “promovido o processo, o juiz tomará as medidas tendentes a evitar sua paralisação, a não ser que um texto de lei confiada à atividade das partes a continuação do mesmo”. De acordo com o art. 1.142 do Código de Processo Civil, compete ao juiz arrecadar os bens da herança jacente que lhe é dado conhecer, de sorte que a disposição judicial criticada nada mais representa do que fiel observância da norma direcional derivada da inexistência de testamento e herdeiros (art. 1.591 do Código Civil). É dever de ofício do juiz arrecadar os bens e nomear curador, dispõe autorizada doutrina (ALCIDES DE MENDONÇA LIMA, Comentários ao Código de Processo Civil, série “RT”, 1982, XII/305). O importante da resolução judicial consiste em proteger o patrimônio até localização de herdeiros e atribuição aos órgãos públicos preferenciais. Inocorreram atropelos de forma a caracterizar ofensa aos artigos 998 e 990, II, do Código de Processo Civil. A rejeição do posicionamento passivo das herdeiras de MARLY, irmanada com a inexistência de herdeiros de HILDEGARD, transforma, pelo interesse público na destinação da herança, o procedimento, antes voluntário e sujeito à vontade das partes, em instrumental de seqüência forçada e no qual não cabe a nomeação de ILDEU como inventariante. Agora o ponto central. Pretendem os agravantes, com fundamento nos artigos 85, 126, 1.666 do Código Civil e 5º, XXX e XXXVI, da Constituição Federal, que se dê ao histórico de uma procuração ad judicia que HILDEGARD assinou um mês antes de falecer (fls. 49 e 74) a mesma eficácia de um ato informador da substituição vulgar (art. 1.729 do Código Civil). Embora muito bem elaborado o raciocínio desenvolvido, a construção jurídica que atribui ao escrito particular um complemento do testamento público desafia todo o sistema de segurança das relações testamentárias e conflita até com a conduta oficial da finada, data venia. Toda a doutrina consultada converge, na hipótese da pré-morte da pessoa contemplada, para a incidência do art. 1.718 do Código Civil como fonte de caducidade do testamento (des. NEY DE MELLO ALMADA, Direito das Sucessões, ed. Brasiliensi, 1991, II/103). PONTES DE MIRANDA evita empregar a terminologia “caducidade” para informar, com sua precisão habitual, a ineficácia da deixa da pré-morte do favorecido pela falta do pólo passivo da relação jurídica que constrói o legado (Tratado de Direito Privado, ed. Borsoi, 1973, LVII/340). Em seu Manual de Direito Civil Brasileiro, publicado em 1920, SPENCER VAMPRÉ expressou-se acerca do tema (ed. F. Briguiet, III/414): “A morte do legatário, antes do testador, faz caducar o legado, porque se entende que a intenção deste era somente beneficiar a pessoa designada. Daí decorre que não caducará o legado quando o testador houver disposto que, pré-morrendo o legatário, passe o legado a outra pessoa.” Não contraria a velha doutrina os modernos conceitos, como o de CAIO MÁRIO (Instituições, Forense, VI/203): “Falecendo o legatário antes do testador, caduca o legado, que se torna insubsistente por falta de sujeito (CLÓVIS BEVILÁQUA). Não há transmissão aos sucessores porque se não constituiria ainda nenhuma relação jurídica ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 47-62, mar./abr.-2002 51 52 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura para o legatário. Demais disso, como todas as liberalidades testamentárias, o legado é feito intuitu personae, não podendo ser recolhido outrem”. Ocorreu uma queda da intenção testamentária válida com a sobrevida da testadora que, ao contrário do que foi reafirmado ao longo do processo, não elegeu substitutos para assunção da titularidade de MARLY, quer pela morte prematura desta, quer por improvável indignidade ou por eventual renúncia do legado. Recorre-se novamente aos estudos do des. NEY ALMADA, cuja intervenção dignifica a Turma Julgadora, para consignar a importância da forma como subsídio do proveito do fenômeno da substituição, que é uma cláusula testamentária por excelência. São suas as palavras a seguir transcritas (Direito das Sucessões, ed. Brasiliensi, 1991, II/206): “Há que fazer-se a substituição em testamento: no mesmo em que se inserem as disposições primárias, ou em outro, ulteriormente elaborado pelo de cujus. São indispensáveis expressões sacramentais, bem assim motivação”. Há uma tendência de liberalização das formas testamentárias — “não se deve alimentar a superstição do formalismo obsoleto, que prejudica mais do que ajuda”, asseverou o min. GUEIROS LEITE do colendo STJ, in RT 673/168) —, mas, daí a admitir que o conteúdo de uma procuração ad judicia represente vontade de completar testamento caduco ou ineficaz pela morte da pessoa indicada com exclusividade, existe uma distância que nem mesmo a flexibilidade jurisprudencial é capaz de superar. Exigem os agravantes uma interpretação condizente com a amizade que unia a falecida com a família de MARLY, o que significaria o propósito de transferir, na falta dela, os bens às suas filhas. Este seria o espírito da outorga de poderes ao advogado HÉLIO COLETTO. Segundo fórmulas usuais, o fenômeno da substituição decorre da inserção de cláusulas claras, objetivas e com redação do tipo: nomeio herdeira MARLY e, na falta desta, designo as suas filhas, KATHIA e KARLA. Aí, sim, estaria sacramentada a vontade de aquinhoar as duas agravantes, que, apesar do contato mantido com a falecida, não compartilhavam dos sentimentos que uniram as duas mulheres mortas durante as fases existenciais. Uma procuração assinada sem testemunhas e sem firma reconhecida não consubstancia instituição de substituto testamentário, especialmente para ressuscitar testamento perdido pela morte da pessoa contemplada. Não há falar-se em ofensa ao direito de herança (art. 5º, XXX, da CR) ou em direito adquirido por ato jurídico perfeito (art. 5º, XXXVI, da CR). Em verdade, não se cogita de má ou injusta interpretação da vontade do testador (arts. 85, 126 e 1.666, do Código Civil), pois falta intenção para interpretar. Trata-se de hipótese em que não é permitido conferir efeito jurídico ao escrito particular, por absoluta impropriedade do objeto (arts. 1.629 e 1.631 do Código Civil). Ademais, a procuração não tem validade para os fins consignados, em face da indispensabilidade da presença física da outorgante para eficácia do testamento público, cerrado ou particular (arts. 1.362, IV; 1.638, I; 1.645, I, do Código Civil). Frustrou-se, com o passamento prévio de MARLY, o desejo de HILDEGARD de criar uma herdeira legítima para absorver seus bens. Esta é a pura realidade documentada e o debate, que se estabelece fora das regras testamentárias, não passa de ficção criada pelo interesse, fruto do imaginável e de conjecturas de quem força a premiação sem ser oficialmente escolhido para tal. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 47-62, mar./abr.-2002 Bem rejeitada a pretensão dos agravantes, pelo que não comporta a respeitável decisão qualquer censura. Nega-se provimento. ÊNIO SANTARELLI ZULIANI Relator ACÓRDÃO EM RECURSO ESPECIAL. NÃO-CONHECIMENTO DO RECURSO POR MAIORIA. Exposição HILDEGARD FODITSCH, sem possuir herdeiros necessários ascendentes ou descendentes, deixou todos os seus bens à amiga MARLY BONTEMPO DE ALBUQUERQUE, por meio de testamento público. Com o prévio falecimento da herdeira, a testadora outorgou poderes a um advogado — por procuração ad judicia, em instrumento particular — para proceder à transferência dos direitos previstos no testamento às duas filhas da herdeira já falecida. Morrendo a testadora logo depois, o marido de MARLY, ora recorrente, deu início ao inventário, indicando como herdeiras as próprias filhas, também recorrentes, nos termos da procuração. A juíza de primeiro grau converteu o inventário em herança jacente e nomeou curador dos bens o procurador do Município de São Paulo, à vista da caducidade do testamento, seja porque inexistente a herdeira à época da abertura da sucessão, seja porque a disposição de última vontade somente poderia ser revogada por outro testamento, e não pela procuração. Contra essa decisão os ora recorrentes interpuseram apelação, recebida como agravo de instrumento, por aplicação da fungibilidade recursal. O Tribunal de Justiça de São Paulo desproveu o agravo, com os seguintes fundamentos: a) inexiste nulidade na conversão do inventário em herança jacente, por se tratar de dever de ofício do juiz; b) “na hipótese de pré-morte da pessoa contemplada, [incide o] art. 1.718 do Código Civil como fonte de caducidade do testamento” (fls. 153); c) “uma procuração assinada sem testemunhas e sem firma reconhecida não consubstancia instituição de substituto testamentário, especialmente para ressuscitar testamento perdido pela morte da pessoa contemplada” (fls. 155); d) “em verdade, não se cogita de má ou injusta interpretação da vontade do testador (arts. 85, 126 e 1.666 do Código Civil), pois falta intenção para interpretar. Trata-se de hipótese em que não é permitido conferir efeito jurídico ao escrito particular, por absoluta impropriedade do objeto (arts. 1.629 e 1.631 do Código Civil)” (fls. 155). O recurso especial aponta violação dos arts. 85, 128, 1.666 e 1.670 do Código Civil. Sustentam os recorrentes que: a) não se trata de substituição, porque a instituição das filhas da pré-falecida como herdeiras decorre do próprio testamento, uma vez que, à época deste, existia a mãe contemplada; b) não se aplica a caducidade quanto à herdeira universal, mas somente aos legatários; c) não sendo o caso de substituição, a vontade da testadora poderia ser manifestada de qualquer forma, já que estaria apenas a confirmar as declarações testamentárias; d) “a instituição de ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 47-62, mar./abr.-2002 53 54 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura herdeiro testamentário equivale à legitimação como necessário, a quem não o tem, daí porque não se trata de ficção criada pelo interesse, mas sim de ser dado cumprimento à vontade de quem o instituiu” (fls. 169); e) inexiste norma que preveja a conversão de inventário em herança jacente. Contra-arrazoado pelo curador da herança e não admitido o recurso na origem, provi agravo, “em face da relevância da matéria” (fls. 211). O Ministério Público Federal opinou pelo não-conhecimento do apelo. Após a subida dos autos, os recorrentes salientam, em petição, a manifesta vontade da testadora em transmitir seus bens às filhas da finada herdeira testamentária. É o relatório. VOTO: O sr. ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA (relator): 1. É de afastar-se, inicialmente, o exame da insurgência em relação à afronta ao art. 128 do Código Civil, no sentido de que “o encargo não suspende a aquisição, nem o exercício do direito, salvo quando expressamente imposto no ato, pelo disponente, como condição suspensiva”. O acórdão não abordou a questão à luz desse dispositivo, razão pela qual carece o recurso do prequestionamento, atraindo a incidência do Enunciado 282 da Súmula/STF. 2. Esta a ementa do acórdão de origem: “Exige-se, para admitir como substitutos dos herdeiros de pessoa contemplada em testamento público que veio a falecer antes do testador, formalização de cláusula testamentária com os mesmos rigores que asseguram eficácia dos autos de última vontade (arts. 1.729, 1.717, 1.629 e 1.631, do Código Civil). Procuração ad judicia imprestável para a finalidade. Agravo improvido”. Da fundamentação do voto condutor, extrai-se: “Pretendem os agravantes, com fundamento nos artigos 85, 126, 1.666 do Código Civil e 5º, XXX e XXXVI, da Constituição Federal, que se dê ao histórico de uma procuração ad judicia que HILDEGARD assinou um mês antes de falecer (fls. 49 e 74) a mesma eficácia de um ato informador da substituição vulgar (art. 1.729 do Código Civil). Embora muito bem elaborado o raciocínio desenvolvido, a construção jurídica que atribui ao escrito particular um complemento do testamento público desafia todo o sistema de segurança das relações testamentárias e conflita até com a conduta oficial da finada, data venia. Toda a doutrina consultada converge, na hipótese de pré-morte da pessoa contemplada, para a incidência do art. 1.718 do Código Civil como fonte de caducidade do testamento (des. NEY DE MELLO ALMADA, Direito das Sucessões, ed. Brasiliense, 1991, II/103). Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 47-62, mar./abr.-2002 PONTES DE MIRANDA evita empregar a terminologia ‘caducidade’ para informar, com sua precisão habitual, a ineficácia da deixa na prémorte do favorecido pela falta do pólo passivo da relação jurídica que constrói o legado (Tratado de Direito Privado, ed. Borsoi, 1973, LVII/340). Em seu Manual de Direito Civil Brasileiro, publicado em 1920, SPENCER VAMPRÉ expressou-se acerca do tema (ed. F. Briguiet, III/414): ‘A morte do legatário, antes do testador, faz caducar o legado, porque se entende que a intenção deste era somente beneficiar a pessoa designada. Daí decorre que não caducará o legado quando o testador houver disposto que, prémorrendo o legatário, passe o legado a outra pessoa’. Não contraria a velha doutrina os modernos conceitos, como o de CAIO MÁRIO (Instituições, Forense, VI/203): ’Falecendo o legatário antes do testador, caduca o legado, que se torna insubsistente por falta de sujeito (CLÓVIS BEVILÁQUA). Não há transmissão aos sucessores porque se não constituiria ainda nenhuma relação jurídica para o legatário. Demais disso, como todas as liberalidades testamentárias, o legado é feito intuitu personae, não podendo ser recolhido outrem’. Ocorreu uma queda da intenção testamentária válida com a sobrevida da testadora que, ao contrário do que foi reafirmado ao longo do processo, não elegeu substitutos para a assunção da titularidade de MARLY, quer pela morte prematura desta, quer por improvável indignidade ou por eventual renúncia do legado. Recorre-se novamente aos estudos do des. NEY ALMADA, cuja intervenção dignifica a Turma Julgadora, para consignar a importância da forma como subsídio do proveito do fenômeno da substituição, que é uma cláusula testamentária por excelência. São suas as palavras a seguir transcritas (Direito das Sucessões, ed. Brasiliensi, 1991, II/206): ‘Há que fazer-se a substituição em testamento: no mesmo em que se inserem as disposições primárias, ou em outro, ulteriormente elaborado pelo de cujus. São dispensáveis expressões sacramentais, bem assim motivação”. Há uma tendência de liberalização das formas testamentárias — ‘não se deve alimentar a superstição do formalismo obsoleto, que prejudica mais do que ajuda’, asseverou o min. GUEIROS LEITE do Colendo STJ, in RT 673/168) —, mas, daí a admitir que o conteúdo de uma procurado ad judicia represente vontade de completar testamento caduco ou ineficaz pela morte da pessoa indicada com exclusividade, existe uma distância que nem mesmo a flexibilidade jurisprudencial é capaz de superar. Exigem os agravantes uma interpretação condizente com amizade que unia a falecida com a família de MARLY, o que significaria o propósito de transferir, na falta dela, os bens às suas filhas. Este seria o espírito da outorga de poderes ao advogado HÉLIO COLETTO. Segundo fórmulas usuais, o fenômeno da substituição decorre da inserção de cláusulas claras, objetivas e com redação do tipo: ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 47-62, mar./abr.-2002 55 56 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura nomeio herdeira MARLY e, na falta desta, designo as suas filhas, KATHIA e KARLA. Aí, sim, estaria sacramentada a vontade de aquinhoar as duas agravantes, que, apesar do contato mantido com a falecida, não compartilhavam dos sentimentos que uniram as duas mulheres mortas durante as fases existenciais. Uma procuração assinada sem testemunhas e sem firma reconhecida não consubstancia instituição de substituto testamentário, especialmente para ressuscitar testamento perdido pela morte da pessoa contemplada. Não há falar-se em ofensa ao direito de herança (art. 5º, XXX, da CF) ou em direito adquirido por ato jurídico perfeito (art. 5º, XXXVI, da CF). Em verdade, não se cogita de má ou injusta interpretação de vontade do testador (arts. 85, 126 e 1.666, do Código Civil), pois falta intenção para interpretar. Trata-se de hipótese em que não é permitido conferir efeito jurídico ao escrito particular, por absoluta impropriedade do objeto (arts. 1.629 e 1.631 do Código Civil). Ademais, a procuração não tem validade para os fins consignados, em face da indispensabilidade da presença física da outorgante para eficácia do testamento público, cerrado ou particular (arts. 1.362, IV; 1.638, I; 1.645, I, do Código Civil). Frustrou-se, com o passamento prévio de MARLY, o desejo de HILDEGARD de criar uma herdeira legítima para absorver seus bens. Esta é a pura realidade documentada e o debate, que se estabelece fora das regras testamentárias, não passa de ficção criada pelo interesse, fruto do imaginável e de conjecturas de quem força a premiação sem ser oficialmente escolhido para tal” (fls. 152-156). 3. Dois dos dispositivos indicados pelos recorrentes como ofendidos dizem respeito ao prestígio da vontade em relação à interpretação literal, nestes termos: • “Art. 85. Nas declarações de vontade se atenderá mais à sua intenção que ao sentido literal da linguagem”. • “Art. 1.666. Quando a cláusula testamentária for suscetível de interpretações diferentes, prevalecerá a que melhor assegure a observância da vontade do testador”. Na espécie, as disposições do testamento, conforme assentaram as instâncias ordinárias, refletem claramente a intenção da testadora em deixar todos os seus bens para a amiga MARLY, sem tocar no eventual falecimento da herdeira, nem na sua substituição. Ante a evidência da cédula testamentária, não cabe a aplicação desses arts. 85 e 1.666, que prevêem a prevalência da vontade do testador somente na hipótese de a cláusula comportar interpretações distintas, o que não se ajusta ao caso em exame. Aliás, não se questiona que o testamento dá como certa e indubitável a vontade de instituir herdeira a amiga MARLY. Por outro lado, não prospera o argumento de que a herdeira existia à época da elaboração do testamento. A lei civil expressa, no art. 1.717, CC, que “podem adquirir por testamento as pessoas existentes ao tempo da morte do testador, que não forem por este Código declaradas incapazes”, ou seja, a capacidade passiva de adquirir por Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 47-62, mar./abr.-2002 testamento tem como regra fundamental a existência do legatário, ou herdeiro, na ocasião do falecimento do testador. Destarte, o ponto de enfoque refere-se, na verdade, à vontade de substituir a amiga falecida pelas filhas desta, o que restou manifestado por meio de uma procuração de instrumento particular, assinada pela testadora, um mês antes da própria morte. Nesse particular, a intenção encontra óbice no rigor formal peculiar da sucessão testamentária. É cediço que, se de um lado é necessário amainar o rigor na aplicação estrita da forma, de outro é de ter-se em conta que os requisitos expressos em lei, como necessários à validade do ato, resultam, em última análise, na garantia das próprias partes. Assim, torna-se imperiosa a observância da solenidade, cujo rigor deve ser abrandado pela interpretação dos textos legais, notadamente as disposições da lei civil, com o acréscimo de outros critérios de hermenêutica, sem contentar-se com literalidade da norma. Entretanto, no caso das disposições de última vontade, deve-se redobrar o zelo na observância da forma, tanto por não viver o testador no momento de esclarecer suas intenções, quanto pela suscetibilidade de fraudes na elaboração do instrumento e, conseqüentemente, na deturpação da vontade de quem dispõe dos bens para após a morte. No ponto, a lição de PONTES DE MIRANDA: “A nulidade dos atos jurídicos de intercâmbio ou inter vivos é, praticamente, reparável: fazem-se outros, com as formalidades legais, ou se intentam ações que compensem o prejuízo, como a ação de in rem verso. Não se dá o mesmo com as declarações de última vontade: nulas, por defeito de forma, ou por outro motivo, não podem ser renovadas, pois morreu quem as fez. Razão maior para se evitar, no zelo do respeito à forma, o sacrifício do fundo” (Tratado de Direito Privado, t. LVIII, 2ª ed., Rio de Janeiro: Borsoi, 1969, § 5.849, p. 283). A propósito da solenidade essencial, cuja inobservância enseja a nulidade absoluta, ou insanável, do ato, elucida PONTES, ao dissertar sobre o art. 145, III, e IV, do Código Civil: “1. Natureza das regras jurídicas sobre pressuposto forma — A regra jurídica que exige algum pressuposto formal (art. 145, III), ou material, para a validade do negócio jurídico, é regra cogente impositiva. A infração dela acarreta a nulidade, como a infração da regra jurídica cogente proibitiva. Ali, minus; aqui, plus. Há proposição jurídica impositiva; donde a nulidade, se o que se impôs, ou se pressupôs, para a validade do negócio jurídico, falta. A conseqüência jurídica do art. 145, IV corresponde ao que se há de esperar, conceptualmente, de toda regra cogente impositiva, ou se conceba como ‘é preciso que’, ‘terá de’, ‘é essencial’, ou como “se não, então’, ou ‘para que valha, é mister que’. No fundo, o art. 145, IV apenas contém tautologia” (Tratado..., ob. cit., tomo IV, 2ª ed., Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, § 404, p. 190). E, no caso, a inclusão das filhas da herdeira pré-falecida no testamento significaria a revogação parcial do anterior, obrigatoriamente feita pelo mesmo modo e forma, como reza, com exatidão, o art. 1.746 do Código Civil: ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 47-62, mar./abr.-2002 57 58 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura “Art. 1.746. O testamento pode ser revogado pelo mesmo modo e forma por que pode ser feito”. Em outras palavras, o “pressuposto formal” referido por PONTES, diz a lei, seria outro testamento público, e não procuração por instrumento particular. 4. Diz o art. 1.670, CC, cuja violação também se apontou: “Art. 1.670. O erro na designação da pessoa do herdeiro, do legatário, ou da coisa legada anula a disposição, salvo se, pelo contexto do testamento, por outros documentos, ou por fatos inequívocos, se puder identificar a pessoa ou coisa, a que o testador queria referir-se”. Não houve erro na designação da herdeira. Ao contrário, como já se viu, o testamento evidencia a instituição da amiga e não de suas filhas, denotando claramente que a testadora “queria referir-se” a essa amiga MARLY, sem substituí-la em caso de morte. 5. Sobre a alegada inaplicabilidade das normas da caducidade somente aos legatários, e não à herdeira, diz respeito a espécie à incapacidade de quem não existe adquirir por testamento, vale dizer, a herdeira nomeada pela testadora não mais vivia à época da morte desta, tornando ineficaz o ato de última vontade. 6. Por fim, a discussão em torno da possibilidade ou não de conversão do inventário em herança jacente restou prejudicada, em face da invalidade da cédula testamentária. Ainda que assim não fosse, iniciado o inventário e, no seu curso, verificada a inexistência do herdeiro testamentário, é de considerar-se jacente a herança, nos termos do art. 1.592, II, CC, caso em que “o juiz, em cuja comarca tiver domicílio o falecido, procederá sem perda de tempo à arrecadação de todos os seus bens” (art. 1.142, CPC). A conversão do procedimento e a nomeação do curador, como fez a juíza de primeiro grau, dá cumprimento a essa norma e atende ao princípio da economia processual, nele expressamente assentado. 7. À luz do exposto, não conheço do recurso especial. Preliminar VOTO: O sr. ministro BARROS MONTEIRO: Sr. Presidente, vou acompanhar o voto do sr. ministro-relator, considerando que, à falta de elementos, a interpretação das disposições testamentárias há de ser restritiva. Também não conheço do recurso especial. É como voto. Exposição Civil. Testamento. Designação de herdeiros. Pelas peculiaridades da espécie, dá-se provimento ao recurso. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 47-62, mar./abr.-2002 VOTO VISTA: O exmo. sr. ministro CESAR ASFOR ROCHA: 1. O eminente ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA assim relatou o feito: “HILDEGARD FODITSCH, sem possuir herdeiros necessários ascendentes ou descendentes, deixou todos os seus bens à amiga MARLY BONTEMPO DE ALBUQUERQUE, por meio de testamento público. Com o prévio falecimento da herdeira, a testadora outorgou poderes a um advogado — por procuração ad judicia, em instrumento particular — para proceder à transferência dos direitos previstos no testamento às duas filhas da herdeira já falecida. Morrendo a testadora logo depois, o marido de MARLY, ora recorrente, deu início ao inventário, indicando como herdeiras as próprias filhas, também recorrentes, nos termos da procuração. A juíza de primeiro grau converteu o inventário em herança jacente e nomeou curador dos bens o procurador do Município de São Paulo, à vista da caducidade do testamento, seja porque inexistente a herdeira à época da abertura da sucessão, seja porque a disposição de última vontade somente poderia ser revogada por outro testamento, e não pela procuração. Contra essa decisão os ora recorrentes interpuseram apelação, recebida como agravo de instrumento, por aplicação da fungibilidade recursal. O Tribunal de Justiça de São Paulo desproveu o agravo, com os seguintes fundamentos: a) inexiste nulidade na conversão do inventário em herança jacente, por se tratar de dever de ofício do juiz; b) ‘na hipótese de pré-morte da pessoa contemplada [incide o] art. 1.718 do Código Civil como fonte da caducidade do testamento’ (fls. 153); c) ‘uma procuração assinada sem testemunhas e sem firma reconhecida não consubstancia instituição de substituto testamentário, especialmente para ressuscitar testamento perdido pela morte da pessoa contemplada’ (fls. 155); d) ‘em verdade, não se cogita de má ou injusta interpretação de vontade do testador (arts. 85, 126 e 1.666 do Código Civil), pois falta intenção para interpretar. Trata-se de hipótese em que não é permitido conferir efeito jurídico ao escrito particular, por absoluta impropriedade do objeto (arts. 1.629 e 1.631 do Código Civil’ (fls. 155). O recurso especial aponta violação dos arts. 85, 128, 1.666 e 1.670 do Código Civil. Sustentam os recorrentes que: a) não se trata de substituição, porque a instituição das filhas da pré-falecida como herdeiras decorre do próprio testamento, uma vez que, à época deste, existia a mãe contemplada; b) não se aplica a caducidade quanto à herdeira universal, mas somente aos legatários; c) não sendo o caso de substituição, a vontade da testadora poderia ser manifestada de qualquer forma, já que estaria apenas a confirmar as declarações testamentárias; d) ‘a instituição de herdeiro testa- ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 47-62, mar./abr.-2002 59 60 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura mentário equivale à legitimação como necessário, a quem não o tem, daí porque não se trata de ficção criada pelo interesse, mas sim de ser dado cumprimento à vontade de quem o instituiu’ (fls. 169); e) inexiste norma que preveja a conversão de inventário em herança jacente. Contra-arrazoado pelo curador da herança e não admitido o recurso na origem, provi agravo, ‘em face da relevância da matéria’ (fls. 211). O Ministério Público Federal opinou pelo não-conhecimento do apelo. Após a subida dos autos, os recorrentes salientam, em petição, a manifesta vontade da testadora em transmitir seus bens às filhas da finada herdeira testamentária.” 2. O eminente ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, em judicioso voto, não conheceu o recurso. Pedi vista dos autos para melhor examinar a matéria. 3. A sra. HILDEGARD FODITSCH, que era viúva e sem herdeiros, instituiu, por testamento público, a sra. MARLY BONTEMPO DE ALBUQUERQUE, mãe das recorrentes, como sua herdeira. Contudo, a sra. MARLY faleceu cinco meses antes da sra. HILDEGARD e esta, um mês antes de falecer, firmou uma declaração de vontade exposta no contexto da cogitada procuração, determinando que todos os direitos que haviam sido por ele conferidos à sra. MARLY fossem transferidos para as filhas dessa então herdeira. Sobre a lisura e a autenticidade desses documentos nenhum questionamento foi levantado pelo r. aresto hostilizado, que apenas não conferiu ao último a possibilidade de transmitir, como ato de última vontade, os bens deixados pela sra. HILDEGARD às afirmadas herdeiras. 4. A discussão aqui instalada mais uma vez gira em torno da extensão que se deve dar às formalidades que revestem a elaboração dos documentos testamentários. Não ponho nenhuma dúvida quanto à compreensão de que o testamento é um ato solene que deve se submeter a numerosas formalidades que não podem ser descuradas ou postergadas, sob pena de nulidade ou até de inexistência. Contudo, como salientado no voto do ilustrado ministro relator, “não se deve alimentar a superstição do formalismo absoluto, que prejudica mais do que ajuda”, na observação do eminente ministro GUEIROS LEITE. Mas todas essas formalidades não podem ser consagradas de modo exacerbado, pois a sua exigibilidade deve ser acentuada ou minorada em razão da preservação dos dois valores a que elas se destinam — razão mesma de ser do testamento —, na seguinte ordem de importância: a primeira, para assegurar a vontade do testador, que já não mais poderá, após o seu falecimento, por óbvio, confirmar a sua vontade ou corrigir distorções, nem explicitar o seu querer que possa ter sido expresso de forma obscura, imprecisa ou confusa; a segunda, para proteger o direito dos herdeiros necessários do testador, mais ainda o dos seus filhos. Assim ocorre, por exemplo, dentre muitos outros, se a vontade do autor do testamento não for claramente manifestada; se ela se apresentar contraditória; se for de encontro à ordem natural das coisas abstraídas dos fatos da vida; se excluir da herança algum filho; se incluir algum herdeiro testamentário que possa despertar, por certas razões, surpresa ou espanto; se estabelecer cotas hereditárias desproporcionais Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 47-62, mar./abr.-2002 entre os filhos, ainda que protegida a legítima; se estabelecer cláusulas injustificáveis a afetar a legítima, visivelmente prejudiciais a alguns herdeiros etc. Por outro lado, como disse, e creio que todos aqui acordamos nesse ponto, “não se deve levar o formalismo dos testamentos ao extremo, não se justificando interpretação apenas literal. O formalismo se põe como forma de dar maior segurança à declaração de vontade, cuja eficácia se realiza após a morte do declarante”, segundo lição de MARCO AURÉLIO S. VIANA (Curso de Direito Civil, v. 6, Belo Horizonte: Del Rey, pac. 7, nº 7, pp. 97/98), trazida à baila do eminente ministro relator. ORLANDO GOMES (in Sucessões, Forense, RJ, 1978, pp. 141 e 143) igualmente leciona que, como ato solene, o testamento “está rodeado de numerosas formalidades, que dificultam sua prática, com vistas, porém, à garantia indispensável de sua autenticidade e à tutela da independência da vontade do testador, a fim de assegurar plenamente o resultado jurídico por ele pretendido”, pois esse “formalismo é imposto também para que se conserve a exata compreensão da vontade declarada pelo de cujus, e consubstanciada sob forma de regulamento”. 5. Na hipótese, sem dúvida que o questionado documento visto em posição isolada não conferiria às recorrentes o direito por elas pretendido. Todavia, data venia, não é assim que ele deve ser visto, senão como uma peça de um painel a ser interpretado em sua inteireza e observado em maior amplitude. E, nesse contexto, verificar-se-á, com facilidade, que a real intenção da autora da herança foi efetiva e indiscutivelmente a de fazer das recorrentes as suas herdeiras. O art. 1.666 do Código Civil estabelece que, na interpretação da cláusula testamentária, prevalecerá a que melhor assegure a observância da vontade do testador. Na particularíssima hipótese dos autos, em que se evidencia que a sra. HILDEGARD pretendeu mesmo estender às recorrentes os direitos hereditários que haviam sido por ela conferidos à sra. MARLY, não se antepondo nenhuma dúvida sobre isso, os rigores das exigências quanto à formatação de que deveria se revestir o documento cogitado devem ser abrandados para, visto no seu contexto mais amplo, aqui também deixar prevalecer a última vontade da testadora. 6. Diante de tais pressupostos, data venia dos eminentes ministros SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA e BARROS MONTEIRO, ouso discordar de seus judiciosos votos para conhecer do recurso e lhe dar provimento. EMENTA: Direito civil. Testamento público. Falecimento da herdeira testamentária antes da testadora. Nomeação posterior das filhas da herdeira por procuração particular. Impossibilidade. Rigor formal. Solenidade essencial. Arts. 1.592, II, 1.717 e 1.746, CC. Conversão de inventário em herança jacente. Possibilidade. Economia processual. Art. 1.142, CPC. Recurso desacolhido. I - A mitigação do rigor formal em prol da finalidade é critério que se impõe na interpretação dos textos legais. Entretanto, no caso dos testamentos, deve-se redobrar o zelo na observância da forma, tanto por não viver o testador no momento de esclarecer suas intenções, quanto pela suscetibilidade de fraudes na elaboração do ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 47-62, mar./abr.-2002 61 62 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura instrumento e, conseqüentemente, na deturpação da vontade de quem dispõe dos bens para após a morte. II - A revogação parcial do testamento, para substituir a herdeira anteriormente nomeada e já falecida, deve dar-se pelo mesmo modo e forma do anterior (art. 1.746 do Código Civil), não tendo a procuração ad judicia por instrumento particular esse condão revogador. III - A capacidade para adquirir por testamento pressupõe a existência do herdeiro, ou legatário, à época da morte do testador. Tendo falecido antes o herdeiro, perde validade a cédula testamentária. IV - Na lição de PONTES, ‘a nulidade dos atos jurídicos de intercâmbio ou inter vivos é, praticamente, reparável: fazem-se outros, com as formalidades legais, ou se intentam ações que compensem o prejuízo, como a ação de in rem verso. Não se dá o mesmo com as declarações de última vontade: nulas, por defeito de forma, ou por outro motivo, não podem ser renovadas, pois morreu quem as fez. Razão maior para se evitar, no zelo do respeito à forma, o sacrifício do fundo” (Tratado de Direito Privado, t. LVIII, 2ª ed., Rio de Janeiro: Borsoi, 1969, § 5.849, p. 283). V - Iniciado o inventário e, no seu curso, verificada a inexistência de herdeiro testamentário, é de considerar-se jacente a herança, nos termos do art. 1.592, II, CC, caso em que ‘o juiz, em cuja comarca tiver domicílio o falecido, procederá sem perda de tempo à arrecadação de todos os seus bens’ (art. 1.142, CPC). A conversão do procedimento e a nomeação do curador dá cumprimento a essa norma e atende ao princípio da economia processual, nele expressamente assentado. ACÓRDÃO: Vistos, relatados e discutidos estes autos, prosseguindo no julgamento, acordam os ministros da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por maioria, não conhecer do recurso, vencidos os ministros CESAR ASFOR ROCHA e RUY ROSADO DE AGUIAR. Votaram com o relator os ministros BARROS MONTEIRO e ALDIR PASSARINHO JÚNIOR. Brasília, 14 de dezembro de 2000 (data do julgamento). Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR Presidente Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA Relator Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 47-62, mar./abr.-2002 ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. 63 12ª VARA CÍVEL CENTRAL DA CAPITAL DO ESTADO DE SÃO PAULO VISTOS. ANA MARIA VICTÓRIO, qualificada nos autos, por seu procurador, propôs a presente ação de indenização por danos morais e danos patrimoniais, rito ordinário, contra ABRIEL KOCH. Contou que começou a trabalhar na empresa “Zorba Têxtil S.A.” no dia 7 de janeiro de 1991, na função de secretária, e que, com o tempo, seu local de trabalho tornou-se insuportável, em virtude do comportamento do requerido, que lhe dispensava tratamento libertino. Narrou que ele várias vezes a chamou a sua sala para indagar sobre sua vida pessoal e sua intimidade, fazendo perguntas maliciosas. Às vezes, era convocada para trabalhar na casa dele, ocasiões em que ele impunha suas condutas desrespeitosas, fazendo seus comentários indecorosos, deixando sempre em evidência a ameaça de seu emprego. Contou que sofria humilhações, já que constantemente, na frente de outros empregados, era agredida verbalmente com palavras de baixo calão: “vagabunda”, “animal” e “burra”. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 63-65, mar./abr.-2002 64 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura Considera que foi exposta a evidente assédio sexual e moral por parte do requerido, que exacerbou sua condição de superior hierárquico. Relatou, ainda, que, certa vez, foi chamada à sala, oportunidade em que ele ordenou-lhe que trancasse a porta e abrisse sua blusa. Em outra oportunidade, foi indagada se, entre eles, haveria ou não relações sexuais. Diante da negativa, acabou sendo demitida. Após considerações a respeito de promessas de benefícios que teriam sido feitas pelo requerido, sobre o seu estado de saúde e tecer considerações doutrinárias e jurisprudenciais a respeito do tema, pediu a procedência, condenando-se o réu ao pagamento de uma indenização de danos morais e materiais, no valor de R$ 1.500.000,00. Formulou os protestos de praxe (fls. 2/15). Juntou os documentos de fls. 16/127. Em sua contestação (fls. 138/163), que veio instruída com documentos, em preliminar, o réu sustentou sua ilegitimidade, a incompetência do Juízo, que a autora é carecedora da ação e que o pedido é inepto. No mérito, a improcedência da pretensão. Para tanto, manifestou-se no sentido de não ter agido de forma irregular, não tendo causado dano à autora. Pediu a improcedência. Réplica a fls. 190/197. Em audiência, prejudicada a conciliação (fls. 218/219). Na oportunidade, as preliminares foram rejeitadas. Durante a instrução foram colhidos os depoimentos pessoais (fls. 254/256 e 257/ 258) e inquirida a testemunha arrolada pelo requerido (fls. 279/281). Através de memórias, as partes reiteraram seus pedidos (fls. 283/311 e 313/317). Em apenso, incidente de impugnação ao valor da causa, julgado procedente. Processo formalmente em ordem; sem vícios ou nulidades. É o relatório. DECIDO: Não havendo necessidade de mais provas, conheço do pedido. A autora sentiu-se atingida pelo comportamento do requerido, que teria atentado contra sua honra e dignidade. Esclareceu que ele a tratava de forma indecorosa e lhe dirigia palavras de baixo calão. Em seu depoimento pessoal, a requerida contou que era secretária e que o requerido, após algum tempo, costumava perguntar se tinha namorado e se ia ao motel com ele. Dizia que esse assunto não lhe interessava. Acrescentou que ele a chamava de “burra” e “vagabunda” e que, certa vez, mordeu seus seios (fls. 254/6). Conforme RUI STOCO, “o assédio sexual consiste num ato de insinuação sexual que atinge o bem-estar de uma mulher ou de um homem, ou que constitui um risco para sua permanência no emprego. Ele pode assumir a forma de proposta ou de insinuações persistentes, tanto verbais quanto gestuais” (Tratado de Responsabilidade Civil, 5ª ed., RT, pp. 1411/2). Ainda, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), por ele citada, “o assédio sexual configura-se por insinuações, contatos físicos forçados, convites ou pedidos impertinentes, desde que apresente uma das seguintes características: a) ser claramente uma condição para dar ou manter o emprego; b) influir nas promoções na carreira do assediado; c) prejudicar o rendimento profissional, humilhar, insultar ou intimidar a vítima” (ob. cit., p. 1.412). Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 63-65, mar./abr.-2002 Depreende-se de tais conceitos que o comportamento a ser punido deve ser grave, ofensivo e desrespeitoso; capaz de intimidar o ofendido, colocando-o em situação vexatória. No caso dos autos, apesar dos argumentos apresentados pela autora, as provas estão a demonstrar a inexistência de conduta irregular por parte do requerido. O ilustre civilista, citando DÁRCIO GUIMARÃES DE ANDRADE, a respeito do tema, alertou: “há dificuldade no provimento de uma ação desse tipo pela necessidade de segura comprovação do fato, pois o assédio é normalmente praticado às escondidas, em locais isolados, sem testemunhas” (ob. cit., p. 1.417). A autora mencionou que o réu a chamava para o interior de sua sala e que, certa vez, pediu que ela fechasse a porta e que abrisse a sua blusa. Noutra oportunidade, teria perguntado se com ela não seria possível manter relações sexuais. As provas a respeito deixam a desejar. Apesar de trabalhar com outras secretárias, a autora não apresentou nenhuma que pudesse, ao menos, demonstrar que esses fatos ocorreram. Com certeza, após o réu ter feito tais pedidos, a autora deveria ter retornado a sua sala bem abalada. Não é possível que nenhuma de suas colegas tivesse presenciado o seu estado. Ainda, se as secretárias anteriores também sofreram de assédio, nada mais justo que trazê-las a Juízo para depor. Apesar de tais considerações, o que mais chama a atenção é o comportamento passivo da autora, que se submeteu às tentativas do requerido por sete anos, aproximadamente, sem que um comportamento de resistência, de repulsa fosse efetivamente verificado. Não se pode considerar como razoável a colocação da autora, no sentido de que a necessidade do emprego fez com que suportasse esse estado de coisas por tantos anos. Além disso, significativa a omissão dos fatos por ela feita na petição inicial da reclamação trabalhista, se considerarmos que esse acontecimento poderia ter reflexo no desfecho da causa. Isso posto, e pelo mais que dos autos consta, julgo improcedente a presente ação. A autora arcará com as custas e despesas processuais, além de honorários advocatícios, que, nos termos dos §§ 3º e 4º do artigo 20 do CPC, fixo em 15% do valor da condenação. P. R. e Intimem-se. São Paulo, 12 de novembro de 2001. PAULO ALCIDES AMARAL SALLES Juiz de Direito ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 63-65, mar./abr.-2002 65 66 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. 67 CORREGEDORIA PERMANENTE DO REGISTRO DE IMÓVEIS DA COMARCA DE SERRA NEGRA VISTOS. A DIOCESE DE AMPARO deduziu pretensão de averbar a Bula Papal que a instituiu em matrículas e transcrições do Registro de Imóveis desta comarca, em que figura como titular de domínio a Arquidiocese de Campinas, a Diocese de Campinas ou a Mitra Diocesana de Campinas, com vistas à regularização de sua administração, alegando, para tanto, que o oficial daquela serventia se recusou a proceder a averbação, argumentando que há necessidade de outorga de escritura pública, por se tratar de transferência de domínio, com o que não se conforma a requerente, por negar a existência de qualquer venda, doação ou alienação de qualquer espécie. Postula, assim, a averbação direta da Bula Papal nos referidos registros prediais, independentemente de ato translativo de domínio. Concedida oportunidade de o oficial de Registro de Imobiliário manifestar-se, sobreveio ratificação da nota de devolução (fls. 23). O Ministério Público opinou pela extinção terminativa do feito (fls. 24). Este, o relatório. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 67-71, mar./abr.-2002 68 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura DECIDO: O pedido é procedente. Trata-se de procedimento administrativo que busca a averbação de Bula Papal nas matrículas e nas transcrições do Registro de Imóveis desta comarca, nas quais figura como titular de domínio a Arquidiocese de Campinas, a Diocese de Campinas ou a Mitra Diocesana de Campinas, a fim de que o novo titular de domínio passe a constar a Diocese de Amparo, instituída por aquele mesmo decreto. Antes da análise da pretensão formulada, cumpre apreciar a preliminar levantada pela Curadoria de Registros Públicos. Ao reverso do invocado pelo nobre representante do Ministério Público, o caso não se ressente de ilegitimidade de parte nem de impossibilidade jurídica do pedido. Com efeito, o procedimento de dúvida não seria aplicável à hipótese, pois não se busca registro em sentido estrito, mas mera averbação. Como para essa última modalidade registrária inexiste previsão legal de dúvida a ser suscitada pelo registrador, apenas cabe a via administrativa direta do interessado, tal como o fez corretamente a requerente. Com essas considerações, fica rejeitada a extinção terminativa do feito, alvitrada pelo Ministério Público, impondo-se o exame do mérito nos termos que se seguem. A questão central a ser dirimida diz respeito à possibilidade jurídica de proceder-se à averbação de Bula Papal em registros imobiliários pertencentes à Arquidiocese de Campinas, desmembrada, com o surgimento de nova Diocese de Amparo, a requerente. O oficial de Registro Imobiliário opina pela negativa, considerando necessária a lavratura de escritura pública de doação entre as Dioceses de Campinas e de Amparo. Todavia, razão não lhe assiste. Para a correta solução do impasse, mostra-se recomendável primeiramente especificar a natureza jurídica do ato que se busca averbar, qual seja, a Bula Papal, cuja tradução está reproduzida às fls. 9/10. Em verdade, tem-se aí autêntico ato de império ou de autoridade, através do qual a Administração usa de sua supremacia para impor coercitivamente sua vontade, de cumprimento obrigatório.(1) Vale dizer, é a expressão de vontade de um Chefe de Estado, que precisa e deve ser respeitada, em virtude da soberania, aqui tomada como expressão consagrada de poder político e jurídico. Nessa ordem de idéias, o problema que aqui se coloca assume contornos de Direito Internacional Público, cuja evolução aponta para o bom convívio entre as Nações, dentro da conceituação jurídica de soberania que “se baseia na igualdade jurídica dos Estados e pressupõe o respeito recíproco, como regra de convivência”.(2) Dessa forma, na qualidade de Chefe de Estado da Cidade do Vaticano, a manifestação livre e soberana do Sumo Pontífice precisa ser acatada, sem retardo. Feita essa abordagem superficial da questão no plano do Direito Internacional Público, passa-se ao enfoque da peculiaridade da requerente. A Diocese de Amparo pertence e integra a Igreja Universal Católica, a qual é regida fundamentalmente pelo Código de Direito Canônico. Em outras palavras, ao lado do ordenamento jurídico pátrio e das convenções (1) (2) MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 15ª ed., RT, 1990, p. 142. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado, 16ª ed., Saraiva, 1991, p. 72. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 67-71, mar./abr.-2002 internacionais, a correta aplicação da lei aos assuntos atinentes à Igreja Católica não pode olvidar a existência e a vigência entre nós do Código de Direito Canônico, que a disciplina em diversos aspectos. E o primeiro preceito do aludido Código de Direito Canônico que nos interessa é o Cânon 122, mencionado no próprio decreto do Sumo Pontífice que se pretende averbar. Eis o texto: “Cân. 122 - Se uma universalidade, que tem personalidade jurídica pública, se dividir de tal modo que ou uma parte dela venha a unirse a outra pessoa jurídica, ou venha a erigir-se com a parte desmembrada uma nova pessoa jurídica pública, a autoridade eclesiástica, à qual compete fazer a divisão, deve cuidar pessoalmente ou por um executor, respeitados em primeiro lugar a vontade dos fundadores e doadores, os direitos adquiridos e os estatutos aprovados: 1º - que os bens comuns, suscetíveis de divisão, os direitos patrimoniais, as dívidas e os outros ônus sejam divididos entre as pessoas jurídicas em questão, na proporção devida ex aequo et bono, levando me conta todas as circunstâncias e as necessidades de ambas; 2º - que o uso e usufruto dos bens comuns, não suscetíveis de divisão, aproveitem a ambas as pessoas jurídicas, e os ônus próprios deles sejam impostos a ambas, respeitada também a devida proporção determinada ex aequo et bono”.(3) A melhor compreensão dessa norma revela que, com a divisão de uma diocese ou de uma província religiosa, os bens patrimoniais (móveis e imóveis) transferem-se ipso iure por conta do desmembramento. Foi exatamente o que ocorreu. A autoridade eclesiástica competente, ou seja, o Papa JOÃO PAULO II, por decreto próprio, fundou a Diocese de Amparo, desmembrando, para tanto, a Arquidiocese de Campinas e a Diocese de Limeira, dotando aquela do acervo patrimonial imobiliário existente nos limites territoriais que outrora era das porções desmembradas. Por força desse preceito canônico, cuja observância, reitere-se, não pode ser desprezada, houve simultânea criação da Diocese de Amparo e respectiva dotação patrimonial. Isso significa que o ato papal basta por si mesmo. Em outra palavras, a formalização da doação sugerida pelo oficial de Registro Imobiliário é desnecessária e não condiz com a essência do ato praticado. Outro dispositivo afeto à faceta patrimonial da Igreja, que aqui nos interessa, é o Cânon 1.257, § 1º, pelo qual “todo os bens temporais pertencentes à Igreja Universal, à Sé Apostólica ou a outras pessoas jurídicas públicas na Igreja são bens eclesiásticos e se regem pelos cânones seguintes e pelos estatutos próprios”.(4) Tal preceito reforça a idéia já exposta de que a análise do intento da requerente deve considerar obrigatoriamente os preceitos canônicos, justamente pela natureza eclesiástica do patrimônio em questão. (3) (4) Código de Direito Canônico - Codex Iuris Canonici. Tradução: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, 2ª ed., Loyola, 1987, pp. 49 e 51. Ob. cit., p. 545. ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 67-71, mar./abr.-2002 69 70 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura Além de regular a face patrimonial de toda a Santa Igreja, o Código de Direito Canônico disciplina também a sua própria hierarquia. Dentre os dispositivos sobre essa tema, revela transcrever o Cânon 333: “Cân. 333 - § 1º - O Romano Pontífice, em virtude de seu múnus, não só tem poder sobre a Igreja Universal, mas obtém ainda a primazia do poder ordinário sobre todas as igrejas particulares e entidades que as congregam, pelo qual é, ao mesmo tempo, reforçado e defendido o poder próprio, ordinário e imediato que os bispos têm sobre as igrejas particulares confiadas a seu cuidado. § 2º - O Romano Pontífice, no desempenho do múnus de pastor supremo da igreja, está sempre unido em comunhão com os outros bispos e até com toda a igreja; entretanto, ele tem o direito de determinar, de acordo com as necessidades da igreja, o modo pessoal e colegial de exercer esse ofício. § 3º - Contra uma sentença ou decreto do Romano Pontífice, não há apelação, nem recurso” (5) (destaquei). Bem se vê que igualmente, pelo prisma hierárquico da Igreja Universal, a Bula Papal deve ser cumprida, pois esgota-se em si mesma, preenchedora que é dos requisitos legais para que produza efeitos no mundo do Direito, não admitindo revisão. Firmadas todas essas considerações, e tendo em vista que, para a segurança que os registros públicos visam resguardar, é necessária a consonância entre seus dados e a realidade fática, plenamente justificável a averbação reclamada, nos exatos termos do permissivo contido na norma invocada pela requerente, qual seja, o artigo 246, caput, da Lei nº 6.015/73: “Art. 246 - Além dos casos expressamente indicados no item II do artigo 167, serão averbadas na matrícula as sub-rogações e outras ocorrências que, por qualquer modo, alterem o registro”. A melhor interpretação que se tem dado a esse dispositivo é de que as hipóteses de averbação previstas no artigo 167, II, da Lei nº 6.015/73, são meramente exemplificativas (numerus apertus). O mesmo não se dá com as situações de registro, em sentido estrito, contempladas no rol do artigo 167, I, da Lei nº 6.015/73, as quais são taxativas (numerus clausus). Dentre as demais exigências do registrador constam: ausência de prova da existência jurídica de ambas as dioceses e falta de reconhecimento de firma; ausência de prova de que o subscritor da petição de averbação seja o representante legal da requerente; ausência de referência, na Bula Papal, aos bens imóveis; divergência de denominação das titulares de domínio das transcrições nºs 9.256, 5.668 e 14.892, bem como da matrículas nºs 21.156, 14.820 e 20.354. Contudo, também aqui razão não assiste ao registrador. Em primeiro lugar, o reconhecimento de firma é desnecessário quando se trata de documento estrangeiro, ao teor do artigo 221, III, da Lei nº 6.015/73. (5) Idem, p. 153. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 67-71, mar./abr.-2002 Em segundo lugar, a própria Bula Papal comprova a existência jurídica das Dioceses de Limeira e de Campinas. Em terceiro lugar, é público e notório que o bispo diocesano é dom FRANCISCO JOSÉ ZUGLIANI, mostrando-se dispensável a prova exigida. Em quarto lugar, se não há menção expressa do repasse imobiliário, também não há ressalva desse ponto. Ademais, com a nova delimitação geográfica, o contexto do decreto do Sumo Pontífice se harmoniza com a dotação imobiliária para a nova Diocese de todos os bens situados em seus limites territoriais, conforme já expedido. Por fim, a discrepância na nomenclatura utilizada para a Arquidiocese de Campinas, Diocese de Campinas e Mitra Diocesana de Campinas, é absolutamente irrelevante, de vez que todas essas expressões têm sentido único, referindo-se à mesma entidade, prescindindo-se de qualquer retificação registrária. Conclui-se, portanto, que a averbação deve ser procedida como pleiteado, em que pese a cautela e o zelo costumeiros com que se houve o registrador. Diante do exposto, acolho a representação formulada pela DIOCESE DE AMPARO para determinar que o Registro Imobiliário desta Comarca de Serra Negra proceda a averbação da Bula Papal, nas transcrições nºs 9.256, 5.668 e 14.892, bem como nas matrículas nºs 21.156, 14.820 e 20.354, a fim de que os imóveis nelas retratados passem a ter a requerente como titular de domínio. Transitada em julgado, faculto à interessada o desentranhamento dos documentos juntados, mediante traslado, encaminhando-se cópia da presente ao oficial de Registro Imobiliário desta comarca para efetivo cumprimento. P.R.I.C. Serra Negra, 23 de novembro de 1999. SÉRGIO ARAÚJO GOMES Juiz de Direito ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 67-71, mar./abr.-2002 71 72 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. 73 8ª VARA DA FAZENDA PÚBLICA DA CAPITAL DO ESTADO DE SÃO PAULO VISTOS. PAULO SÉRGIO DE SOUZA, incapaz representado por sua tutora VALQUÍRIA DE OLIVEIRA MARTINS, ajuizou ação ordinária contra a FAZENDA DO ESTADO DE SÃO PAULO, alegando ser portador de doenças várias, sem recursos para custear o seu tratamento e pleiteando que o Estado lhe forneça, além da assistência médica que já vem recebendo, os medicamentos, material hospitalar, alimentação adequada, produtos de higiene e limpeza. Com a petição inicial vieram os documentos (fls. 14/71). Ouvido o Ministério Público (fls. 72/vº), concedeu o Juízo a tutela antecipada, ordenando à ré que forneça ao autor os medicamentos, materiais de higiene, produtos sanitários e alimentos especificados na petição inicial, para o atendimento das necessidades do autor (fls. 73/vº). A Egrégia Presidência do Tribunal de Justiça, acatando pedido da Fazenda do Estado, suspendeu a decisão do Juízo a quo que concedeu a antecipação da tutela jurisdicional (fls. 100/104), restabelecida, em seguida, pelo v. acórdão proferido em agravo regimental (fls. 159/162). Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 73-76, mar./abr.-2002 74 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura A Fazenda Estadual foi citada (fls. 91/vº) e contestou a ação (fls. 119/133), trazendo documentos (fls. 134/144). Diz a ré que o autor está pedindo o fornecimento de medicamentos, alimentação, produtos de higiene e sanitários, em quantidades excessivas. Não concorda que o Estado seja compelido a fornecê-los ao autor e, se procedente o pedido quanto aos medicamentos, que sejam fornecidos somente aqueles adequados ao tratamento e nas quantidades corretas, especificados em receituário médico. Alega a ré pela inviabilidade do fornecimento dos insumos hospitalares, bem como a assistência médica na residência, que implicaria o deslocamento de médicos e enfermeiros para acompanhamento do autor, fiscalização das suas necessidades, dos materiais efetivamente consumidos, até de difícil implementação, com readequação dos plantões, deslocamento de funcionários etc. O fornecimento ao autor, de alimentos e material de higiene, se constituiria em grave precedente com lesão à ordem e às finanças públicas. O atendimento ao pleito do autor é, segundo a contestação, dar-lhe tratamento privilegiado em detrimento da coletividade. Diz a ré que o autor não corre risco de vida, apresentando os problemas de saúde desde 1997. Os dispositivos constitucionais que obrigam o Poder Público a garantir a saúde do cidadão, são de ordem programática, sem auto-executividade. Cabe ao Poder Executivo, sem a interferência do Judiciário, definir os planos, prioridades e metas de ação na área da saúde, segundo o poder discricionário do administrador. Por fim, o fornecimento dos medicamentos, alimentação, material hospitalar e produtos de higiene e limpeza carece de prévia autorização e previsão orçamentária. Por todos esses argumentos, nega-se o Estado a atender o pleito do autor, posicionando-se pela improcedência da ação. Réplica (fls. 171/185), rebatendo o autor os argumentos da contestação. Em seu parecer final, opina o Ministério Público pela procedência da ação, determinando-se ao Estado a internação do autor em estabelecimento público adequado ou, alternativamente, o fornecimento dos medicamentos, alimentação e produtos pleiteados. Por força da antecipação da tutela jurisdicional, o autor foi submetido a avaliações médicas e de enfermagem, apresentados nos autos relatórios diagnosticando as suas doenças e ministrando-lhe os medicamentos adequados, bem como os materiais hospitalares (fls. 134/140). É o relatório. FUNDAMENTO E DECIDO: O feito comporta julgamento antecipado, desnecessária a dilação probatória (CPC, art. 330, II, segunda parte). A Constituição Federal (arts. 23, II e 196) assegura a todos os direito à saúde, ao mesmo tempo em que impõe ao Poder Público o dever de prestá-la. Não se pode pretender retirar a força de tão importante princípio constitucional, com o argumento de que a norma é programática, não dotada de executoriedade. É cristalino o dever do Estado de prestar atendimento ao doente, e não o atendimento precário, inadequado e incompleto, que, lamentavelmente, defende a Fazenda-ré. Pretende não atender as justas reivindicações do autor, sob o pequeno e mesquinho argumento de que estaria abrindo perigoso precedente, com grave risco às finanças públicas e que, então, o autor seria um privilegiado em detrimento de toda a coletividade. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 73-76, mar./abr.-2002 Se precedente houvesse, seria um salutar precedente, pois atender à saúde de todos é não negar atendimento adequado a cada um dos cidadãos necessitados. Não se compreende bem, mas consegue a Fazenda Estadual concluir que o atendimento às necessidades do autor, reconhecidamente enfermo e carente, seja contrário ao interesse público. Bem maior do que a vida humana não há. Prestar atendimento à saúde do autor é proteger-lhe a vida, com indubitável apoio no interesse público da coletividade, superior a qualquer dificuldade de ordem financeira e orçamentária, aliás solucionável. Não se trata de o Judiciário interferir na política de ação governamental na área da saúde, nem tampouco nas diretrizes orçamentárias do setor, de competência do Poder Executivo. Trata-se de impor ao Estado o cumprimento da lei, que exige a satisfação adequada do tratamento das doenças. É muito simplista a posição da ré, de eximir-se de prestar o adequado tratamento à saúde do autor, para ele questão de vida ou morte, para a Fazenda a preocupação com o orçamento. Por recomendação do sr. secretário estadual da Saúde, o autor submeteu-se a avaliações psiquiátrica, clínico-geral e de enfermagem, apresentados pelos médicos e enfermeira do Estado os relatórios (fls. 134/140), que atestam o grave estado de saúde do autor: “1) O paciente é deficiente auditivo (surdo-mudo) congênito. 2) O paciente é portador de seqüelas neurológicas de traumatismo crânio encefálico ocorrido em 1997, segundo descrições dos médicos assistentes. 3) O paciente é portador de distúrbios psiquiátricos, também secundários ao traumatismo craniano. 4) É portador de bexiga neurogênica, patologia que o coloca na condição de usuário contínuo de sonda vesical de demora. 5) O paciente não deambula, e, portanto, requer cuidados especiais de higiene. 6) Paciente necessita de alimentação (dieta especial, balanceada, visando corrigir os efeitos da inatividade física e dos distúrbios neurológicos secundários ao traumatismo crânio encefálico).” Os mesmos relatórios indicam os medicamentos adequados ao tratamento do autor, bem como o material hospitalar, nas quantidades recomendadas, com a advertência quanto à necessidade de “reavaliação periódica em serviço público ambulatorial para acompanhamento das patologias e revisão da medicação prescrita” (fls. 134). Prestar atendimento à saúde do autor, na grave e infeliz condição em que se encontra, engloba a prestação da alimentação pertinente à recomendada dieta balanceada, os materiais hospitalares, os produtos de higiene e limpeza. Não se entende a tamanha oposição da ré quanto a esses itens do pedido, porquanto os prestaria normalmente ao autor se fosse ele internado num hospital adequado da rede pública, internação esta que fica facultada ao Estado. Ante o exposto, julgo procedente a ação para condenar a FAZENDA DO ESTADO DE SÃO PAULO a prestar ao autor, PAULO SÉRGIO DE SOUZA, o atendimento adequado à sua saúde, da seguinte forma, alternativamente, à escolha do Estado: 1ª opção — internar o autor em estabelecimento adequado da rede pública de saúde, se aconselhável a internação, neste caso prestando-lhe diretamente a assistência médico-hospitalar, os medicamentos prescritos, a alimentação indicada, os cuidados de ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 73-76, mar./abr.-2002 75 76 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura higiene e limpeza, enfim ministrando-lhe o correto tratamento de que necessita; ou 2ª opção — permanecer o autor em sua residência, se não aconselhável a internação em estabelecimento adequado da rede pública de saúde, obrigando-se o Estado, neste caso: a) a prestar ao autor permanente atendimento médico, na residência ou ambulatorial; b) a fornecer-lhe, mensalmente, os medicamentos prescritos pelos médicos indicados pelo Estado e nas quantidades especificadas nos relatórios de fls. 135/136 e 137/ 138, sujeitos a revisões, pelos médicos, conforme a evolução das patologias e adequação do tratamento; c) a entregar-lhe os alimentos necessários à dieta balanceada, a serem definidos (os tipos de alimentos, respectivas quantidades e a freqüência de entrega: diária, semanal, quinzenal ou mensal), por médico ou profissional indicado pelo Estado; d) a fornecer-lhe, mensalmente, os materiais hospitalares assinalados no Relatório de Enfermagem elaborado por enfermeira indicada pelo Estado (fls. 139/140), sujeito a revisões conforme o acompanhamento do paciente; e) a entregar ao autor, mensalmente, os produtos de higiene, sanitários ou de limpeza necessários aos permanentes cuidados com a higiene do autor, cujos tipos de produtos e respectivas quantidades serão definidos por profissional a ser indicado pelo Estado, sujeito a revisões conforme o evoluir das necessidades do autor; f) todos os medicamentos, alimentos e produtos serão entregues por representante do Estado em mão da tutora do autor, contra recibo. Argumenta-se pela impossibilidade jurídica de antecipação da tutela jurisdicional contra a Fazenda Pública. Não é essa a posição do Juízo, ausente previsão legal nesse sentido. Verificadas a verossimilhança das alegações e a urgência de seu atendimento, ante o receio de dano irreparável ou de difícil reparação, cabível a antecipação da tutela, no caso imprescindível, diante do sério risco de vida que corre o autor, pela gravidade de seu quadro de saúde (ao contrário do que alega a ré, em sua contestação, sem base alguma). Não concedê-la, pode acarretar a perda do objeto durante o longo tramitar da ação e recursos previstos na lei processual, ante a delicadeza e gravidade da situação. Confirmo, pois, a decisão que concedeu a antecipação da tutela jurisdicional, intimando-se, de imediato e independentemente do trânsito em julgado da sentença, a Fazenda do Estado, por seu procurador-chefe, do inteiro teor da sentença e para que, em 10 dias, formalize nos autos a opção de atendimento à saúde do autor (1ª opção ou 2ª opção), sob pena de a escolha passar ao autor ou ser definida pelo Juízo. A mesma intimação deverá ser feita, pessoalmente, ao sr. secretário de Estado da Saúde. Reembolsará a ré as custas e despesas processuais eventualmente suportadas pelo autor, e arcará com os honorários advocatícios de R$ 3.000,00 (três mil reais) — CPC, art. 20, § 4º. Sujeita a sentença ao duplo grau de jurisdição, processados eventuais recursos voluntários, subam os autos à Egrégia Segunda Instância para o reexame necessário. P.R.I.C. São Paulo, 20 de março de 2001. CARLOS ALBERTO M. S. M. VIOLANTE Juiz de Direito Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 73-76, mar./abr.-2002 77 ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. 78 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. 79 EUCLIDES DE OLIVEIRA Juiz aposentado do 2º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo Meu bem, meus bens. Casamento é ato de amor, não um jogo de interesses patrimoniais. Desde o mágico momento inicial em que prepondera a atração física (“amor à primeira vista), desenvolve-se natural afeição entre os enamorados, com amadurecimento e desponte na união de vida a dois, podendo oficializar-se pelo cerimonial da lei. Para que o casamento perdure e se torne realmente uma união feliz, necessita do cultivo de mútua afeição. Há de subsistir entre os cônjuges a affectio societatis, na busca de realização do projeto de vida familiar que envolve, também, a conquista de um patrimônio comum (“quem casa quer casa”). Desde os bens que cada um traz para o enriquecimento do lar, até os adquiridos na constância da vida em comum, múltiplos interesses se põem em confronto, seja quanto à administração do patrimônio ou no que respeita a atos de disposição. Disso cuida a lei ao prever modelos de regimes matrimoniais de bens. Deixa aos nubentes certa margem de escolha, pela celebração do pacto antenupcial, mas contempla regras básicas que devem ser observadas, sob pena de se considerarem não escritas (CC, arts. 256 e 257). Na falta de contrato, aplica-se o regime da comunhão Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 79-82, mar./abr.-2002 80 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura parcial de bens (CC, art. 258). Tudo o que for adquirido durante o casamento, a título oneroso, pertence a ambos os cônjuges. Mas na hora em que cessa a mútua afeição, quando vira cinzas o fogo do amor, abre-se campo, não raro, a lamentáveis guerrilhas domésticas. A controvérsia poderá crescer e se avolumar em caso de dissolução da sociedade conjugal, pela incontornável disputa na partilha dos bens amealhados. Nesse entretempo, ainda, não raro acontece de virem os cônjuges a romper a vida em comum, mantendo-se casados apenas no papel. O homem larga da mulher, ou esta simplesmente sai de casa. Cada qual passa a viver sozinho, ou quem sabe se une a outra pessoa, mantendo, no entanto, o primitivo laço conjugal. Nessa situação, cessada a convivência entre marido e mulher, e a partir desse tempo, como ficarão os bens adquiridos individualmente pelos separados de fato? Aplica-se a eles o regime de bens adotado por ocasião do casamento? Haverá partilha igualitária de tais bens se vigorava o regime da comunhão? São questões difíceis, das mais tormentosas no estudo dos efeitos materiais do casamento. Põe-se em confronto, de um lado, a regra legal de que o regime de bens somente termina com a dissolução da sociedade conjugal e, de outro, o princípio jurídico do não enriquecimento sem causa, desdobramento da justiça como sinônimo de “dar a cada um o que é seu”, a exigir, sob este aspecto, que não se reparta, com o cônjuge separado, aquilo que o outro adquiriu com esforço exclusivamente próprio. Término da comunhão de bens Os efeitos da separação judicial se operam a partir do trânsito em julgado da sentença que julgar a separação ou a da decisão que tiver concedido a separação cautelar (Lei nº 6.515/77, art. 8º). Cessam os deveres pessoais, de fidelidade e de coabitação, e também o regime patrimonial, de modo que finda, inexoravelmente, a regra da comunhão de bens no casamento desfeito. Os fundamentos desse dispositivo repousam na presunção de colaboração entre os cônjuges na formação de seu patrimônio, enquanto casados e mantendo a vida em comum. Os bens pertencem aos dois porque adquiridos pelo esforço conjunto, o que se presume pelo só fato da convivência. Desde o momento em que a sociedade conjugal deixa de existir, claro está que também desaparece o regime patrimonial entre os descasados. A mesma conseqüência se dá, em caráter retroativo, desde que autorizada a separação de corpos (alvará judicial). Daí ser possível afirmar que refogem à partilha, pelas mesmas razões, os bens adquiridos individualmente por este ou aquele cônjuge, sem mútua colaboração, após longo tempo de separação de fato do casal, mesmo sem prévia medida cautelar. Entende-se por separação de fato a ruptura da vida em comum, em caráter prolongado e contínuo, que denote intenção de rompimento da sociedade conjugal. Prolongando-se por mais de um ano, serve de motivo para separação judicial, independentemente de quem seja o cônjuge culpado (Lei nº 6.515/77, art. 5º, § 1º). Se superior a dois anos, motiva o divórcio direto (Lei nº 6.515/77, art. 40). Trata-se de quebra do dever de coabitação, praticada por um ou por ambos os cônjuges, independentemente de autorização judicial. O regime da comunhão pressupõe efetiva convivência do marido e da mulher, fazendo presumir a colaboração na aquisição dos bens, se o regime era o da comunhão. Diante da separação de fato, cada um passando a agir isoladamente na prática do esforço para aumento do patrimônio, não faz sentido, a não ser por puro rigor formal, exigir Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 79-82, mar./abr.-2002 partilha dos bens dos separados de fato, especialmente quando já tenham novas uniões. Como assinala SÉRGIO GISCHKOW PEREIRA, criticando a posição de resistência em admitir cesse a regra da comunhão após prolongada e indiscutível separação de fato, “se o essencial desapareceu, ou seja, o amor, o respeito, a vida em comum, o mútuo auxílio, que sentido de justiça há em privilegiar o secundário, que é o prisma puramente financeiro, patrimonial, material, econômico?”(1) Sem sociedade não há comunhão Essas lições foram bem lembradas em acórdão da 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, relator des. SILVÉRIO RIBEIRO, ressaltando: “...não coaduna com os princípios de Justiça efetuar a partilha de patrimônio auferido por apenas um dos cônjuges, sem a ajuda do consorte, em razão de separação de fato prolongada, situação que geraria enriquecimento ilícito àquele que, de forma alguma, teria contribuído para a geração de riqueza. O fundamental no regime da comunhão de bens é o animus societatis e a mútua contribuição para a formação de um patrimônio comum. Portanto, sem a idéia de sociedades e sem a união de esforços do casal para a formação desse patrimônio, afigurar-se-ia injusto, ilícito e imoral proceder ao partilhamento de bens conseguidos por um só dos cônjuges, estando o outro afastado da luta para a aquisição dos mesmos”.(2) A casuística se estende a inúmeras situações que deixam patente o sentido do justo em não mais aplicar regras de comunhão de bens quando falte, entre os cônjuges separados de fato, aquele vínculo associativo inerente à constância da vida em comum. Não raro a aquisição de determinado bem se dá com a ajuda de terceiro, com quem o separado passou a viver maritalmente. Assim, em caso de pedido de alvará para alienação de bem não mencionado no processo de divórcio, comprovada a aquisição pela mulher após a separação de fato do casal, sem qualquer contribuição do marido, o tribunal entendeu que não houve comunicação de referido bem, o que autoriza sua venda pela titular, pois “os bens adquiridos por um dos cônjuges, no período de comprovada separação de fato, não se comunicam, independentemente do regime”.(3) De igual forma, em hipótese de bem recebido pela mulher por herança paterna, após vários anos de separação, entendeu-se não caber ao marido qualquer direito de meação sobre aquele quinhão hereditário.(4) Mesmo em caso de bigamia, não obstante a nulidade do segundo casamento, admitiu-se meação exclusiva do bem pela segunda mulher, já que a primeira se achava separada de fato do marido há muitos anos, sem qualquer colaboração na aquisição do patrimônio em disputa. Na fundamentação do acórdão constou que “a lide deve ser solucionada não pelo dogma da moralidade do matrimônio, mas sim pelo direito das obrigações...” e que decorre da “juridicidade da coabitação e pela lógica do sentido familiar” inerente à segunda união, quando adquiridos os bens.(5) (1) (2) (3) (4) (5) “Tendências Modernas do Direito de Família”, RT 628/30. TJSP, 3ª Câm., Ap. Cível nº 188.670-1/4, j. 11.05.93, v.u. No mesmo sentido: TJSP, 7ª Câm., Ap. Cível nº 170.028-1, rel. CAMPOS MELLO, v.u., j. 05.08.92, RJTJESP 141/82. Confirmando a tese: STJ, 4ª Turma, REsp. nº 86.302/RS, rel. min. BARROS MONTEIRO, j. 17.06.99, v.u. TJSP, 1ª Câm. de Direito Privado, Ap. nº 53.656-4, rel. LAERTE NORDI, j. 08.09.98, v.u., JTJ 213/9. TJSP, 8ª Câm. de Direito Privado, Ap. Cível nº 6.994-4, rel. CESAR LACERDA, j. 11.02.98, v.u., JTJ 213/17. TJSP, 3ª Câm. de Direito Privado, Ap. nº 041.784-4/1, rel. ÊNIO SANTARELLI ZULIANI, j. 11.08.98, v.u., RT 760/232. ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 79-82, mar./abr.-2002 81 82 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura Do Superior Tribunal de Justiça colhem-se reiterados julgamentos nesse mesmo tom de incomunicabilidade dos bens em casos de longa separação de fato do casal, sempre em resguardo ao princípio de que o casamento, “para dar azo aos efeitos jurídicos do regime matrimonial estabelecido, pressupõe coabitação. Sem convivência, inexiste casamento gerando direitos e obrigações”.(6) Como bem pondera TEREZA ARRUDA ALVIM, em lúcido parecer sobre o tema, “a ratio essendi das regras relativas à comunhão de bens entre cônjuges é a existência real e concreta da vida em comum”, por isso que “carece de sentido, quer jurídico, quer moral, aplicar-se um regime de comunhão a um ‘casal’ que nem mais ‘casal’ é, ou era, por ausência absoluta de affectio maritalis...”. Anota que “a doutrina e a jurisprudência mais atuais têm propendido, embora às vezes de forma não expressa, a estabelecer uma diferenciação nítida entre o casamento que existe formalmente e de fato (= casamento formalizado + vida em comum) e o casamento que não existe, senão formalmente”.(7) Com efeito, já não há contemplar regras de comunhão quando “a separação de fato representa a ruptura do elemento ético” no casamento.(8) Dar a cada um o que é seu Trata-se, simplesmente, de aplicar a Justiça, dando-se adequada resposta aos casos concretos, como bem justifica MARIA ARACY MENEZES DA COSTA, após lembrar as diversas tendências da jurisprudência, relativamente ao regime de bens na separação de fato. Ressalta que a regra quanto ao momento para cessação do regime de bens é a separação judicial. Mas subsiste a exceção da separação de fato, que, não sendo eventual nem provisória, merece atenção do julgador, para que não se comuniquem os bens adquiridos durante esse tempo.(9) Nas sábias palavras de ROLF MADALENO, “o animus dissociativo da sociedade conjugal, rota pelos corpos e espíritos que se afastam e dispersam, quando os casados se desgarram, confere ao ato da fática separação efeitos que se operam tão sólidos como se da própria separação já se antecipasse”.(10) Em suma, ressalvado o entendimento da doutrina tradicional que, apegado à regra da irrevogabilidade do regime de bens (CC, art. 230), via no casamento subsistência de todos os efeitos matrimoniais enquanto não ocorresse a sua efetiva dissolução,(11) tem-se a concluir, na esteira dos precedentes e dos ensinamentos mais atuais, que não faz sentido perpetuar a regra da comunicabilidade dos bens diante de casamento que já se encontre desfeito na prática, pela separação de fato do casal, sob pena de indébito locupletamento do cônjuge que não deu colaboração ao ato aquisitivo do patrimônio acrescido. REsp. nº 86.302/RS, 4ª Turma, rel. min. BARROS MONTEIRO, j. 17.06.99, v.u., lembrando precedentes: REsp. nº 60.820-1/ RJ e REsp. nº 127.077/ES, relatados pelo min. RUY ROSADO DE AGUIAR. “Menção de patrimônio adquirido por um dos cônjuges durante a separação de fato”, parecer na Revista de Processo 70/ 166. (8) MOURA, Mario Aguar. “Separação de fato dos cônjuges e efeitos do regime de bens”, Repertório IOB de Jurisprudência nº 12/91, p. 252. Sua conclusão: “Se qualquer dos cônjuges adquire bens, a título oneroso ou a gratuito, os bens deverão pertencer-lhe com exclusividade, não entrando no elenco dos bens, porventura comunicáveis, por terem sido adquiridos ao longo do casamento íntegro”. (9) “O regime de bens na separação de fato”, Ajuris nº 68/191. (10) “Casamento - Regime de bens. Efeito patrimonial da separação de fato”, RJ 234/5. (11) Para EDUARDO DE OLIVEIRA LEITE, invocando lições doutrinárias, os efeitos do casamento prosseguem até a separação ou o divórcio judicial, não gerando efeito algum a mera separação de fato (“Aquisição de bens durante a separação de fato”, Revista de Direito Civil nº 59/139). (6) (7) Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 79-82, mar./abr.-2002 ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. 83 ALEXANDRE BETINI Juiz de Direito/SP 1 - Introdução O reconhecimento da filiação pode se dar de forma voluntária ou coativa, também chamada de judicial. Será voluntário quando a declaração ocorrer no próprio termo de nascimento, mediante escritura pública, por testamento (Código Civil, artigo 357), por escrito particular ou quando declarada a paternidade perante o juiz no procedimento previsto na Lei nº 8.560/92. Será coativo ou judicial quando proposta a ação de investigação de paternidade, que compete aos filhos em face dos supostos pais, seus herdeiros ou legatários para que haja a declaração da filiação. Os filhos adulterinos ou incestuosos não podiam manejar o reconhecimento do status familiae quando entrou em vigor o Código Civil de 1916, visto que o artigo 363 ressalvava os casos do artigo 183, I a VI, como impeditivos para a propositura da ação. Da mesma forma, o pedido não podia ser formulado durante a constância da sociedade conjugal do investigado. No entanto, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, tais discriminações foram afastadas, uma vez que o artigo 227, § 6º proibiu qualquer designação ofensiva à filiação, seja ela proveniente de casamento ou não. Referido dispositivo constitucional foi complementado pelo artigo 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), que Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 83-113, mar./abr.-2002 84 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura determinou que o direito ao reconhecimento da filiação não sofra qualquer restrição. 2 - Escorço histórico O tema em análise sofreu diversas interpretações durante séculos. O estudo de sua evolução é de suma importância para a compreensão de seu estágio atual e para a interpretação dos dispositivos que lhe são peculiares, além de servir de base para as legislações futuras. Segundo ORLANDO GOMES,(1) “a proibição de investigar a paternidade ilegítima foi estabelecida em algumas legislações sob o fundamento principal de que abriria a porta a explorações que atentariam contra a paz e a tranqüilidade das famílias. O receio de abusos e o temor de escândalos determinaram a interdição absoluta, prevalecendo sobre outras razões inspiradas no interesse social, que indicavam apenas a necessidade de cautelas maiores para a permissão”. A princípio, o Direito Canônico previa a investigação estritamente para fins alimentares, mesmo para os filhos espúrios, sob o fundamento de corresponder tal direito a uma norma natural.(2) Contudo, o fortalecimento da Igreja importou em tratamento mais rigoroso, sendo restringidos pelo Papa LEÃO III os direitos que lhes concedera a codificação justinianéia, a pretexto de combater o concubinato.(3) No Direito romano, o filho natural pertencia à família materna, sendo-lhe reconhecido posteriormente o direito a alimentos e a sucessão legítima e testamentária. O Direito português das Ordenações dispensava tratamento diverso entre a família aristocrática e a plebéia. Para a primeira, prevalecia o interesse do Estado em impedir o reconhecimento do direito sucessório dos filhos naturais, apenas sendo isso possível para fins alimentares. Para a segunda, reconhecia o direito a herança e alimentos.(4) No Direito francês, a Lei 12 de Brumário proibiu a investigação da paternidade. O artigo 340 do Código Napoleão também a vedou, salvo em caso de rapto, admitindo, porém, o reconhecimento voluntário dos filhos pelos pais. Protegia-se a família em detrimento dos filhos. Tal situação perdurou até o advento da Lei francesa de 16 de novembro de 1912, que modificou o artigo 340 do Código Civil, admitindo a investigação de paternidade em casos especiais, como quando a mãe vivia em concubinato com o pai na época da concepção do filho. O Código Civil português de 1867 proibia a investigação de paternidade, salvo em caso de escrito do pai, posse de estado, estupro ou rapto coincidente com a concepção, admitindo, entretanto, o reconhecimento espontâneo, à exceção dos filhos espúrios. O Código Civil italiano de 1865 admitiu o reconhecimento espontâneo dos filhos naturais, vedando a perquirição da paternidade. O Código chileno admitia o reconhecimento dos ilegítimos, possibilitando a investigação de paternidade apenas para fins de alimentos. Já o Código argentino de 1860 possibilitou a pesquisa da paternidade. O Código uruguaio reconheceu a possibilidade da investigação nas hipóteses de rapto ou violação.(5) A legislação alemã assegurou a investigação para efeito de garantir ao filho natural exclusivamente o direito a alimentos. Na Suíça, previram-se duas espécies de investigação de paternidade, uma com rigor na produção de provas para reconhecimento da filiação (1) (2) (3) (4) (5) Direito de Família, p. 345. WALD, Arnoldo, O Novo Direito de Família, p. 174. CAIO MARIO, Instituições de Direito Civil, p. 197. WALD, Arnoldo, ob. cit., p. 174. VIANA, Marco Aurélio S., Direito de Família, p. 235. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 83-113, mar./abr.-2002 com todos os direitos e outra, mais célere e simples, para fins estritamente alimentares.(6) Destarte, com o passar do tempo, as legislações começaram a admitir, ainda que de forma restritiva, a investigação de paternidade, verificando-se uma tendência generalizada de ampliar os casos em que se admitia seu reconhecimento. Assim é que a jurisprudência francesa ampliou as hipóteses acima referidas para os casos de sedução por promessa de casamento, abuso de autoridade e manobras dolosas. A lei portuguesa de 25 de dezembro de 1910, seguindo essa tendência, permitiu a investigação de paternidade.(7) No Brasil, vigorou o sistema português das Ordenações até o advento da Lei nº 463, de 2 de setembro de 1847, que admitiu o direito sucessório dos filhos naturais, desde que reconhecidos por escritura pública ou testamento. Posteriormente, o Decreto 181, de 1890, autorizou a investigação de paternidade em determinados casos.(8) Ao elaborar o anteprojeto do Código Civil, CLÓVIS BEVILÁQUA, seguindo a tendência liberal da época, defendeu a causa dos filhos naturais, possibilitando o reconhecimento coativo da filiação por meio da ação de investigação de paternidade, embora com as restrições aos adulterinos e incestuosos, tudo em nome da paz doméstica, em detrimento da dignidade da pessoa humana, nos casos previstos no artigo 363 do Código Civil de 1916. Assim, no dizer de ORLANDO GOMES,(9) “prosperou, afinal, o sistema permissivo, apoiado na razão fundamental de que era absurdo isentar os pais do dever de amparar os filhos, privando estes do direito de obterem judicialmente a declaração da paternidade”. MARCO AURÉLIO S. VIANA abona a tese: “Não se pode negar que estamos diante de uma nova ordem em matéria de filiação, tendo havido um deslocamento da tutela jurídica no âmbito do direito de família. A disciplina jurídica da família e da filiação antes se voltava para a máxima proteção da paz doméstica, considerando-se a família um bem em si mesmo. Hoje mantém-se inalterada a importância da família para a formação da personalidade do indivíduo, mas prevalece a tutela da dignidade humana. A toda evidência que não se pode mais solucionar questões envolvendo a filiação sem ter em mente as transformações havidas” (ob. cit., p. 236). Contudo, a evolução não parou por aí, uma vez que os ordenamentos jurídicos, dentre os quais o brasileiro, caminham para uma abertura cada vez maior, admitindo, sem restrições, a propositura da ação de investigação de paternidade sem delimitação dos casos, possibilitando a ampla discussão dos casos concretos. Como dito alhures, o artigo 363 do Código Civil brasileiro delimitava as hipóteses em que se permitia a perquirição da paternidade, à exceção dos filhos adulterinos e incestuosos. Além disso, não era possível o ajuizamento da ação em face do suposto pai durante a constância de seu matrimônio. O Decreto-Lei nº 4.737, de 24 de setembro de 1942, e a Lei nº 883, de 21 de outubro de 1949, admitiram a investigação movida pelos filhos adulterinos, desde que dissolvida a sociedade conjugal do investigado, modificando em parte a regra do artigo 363 do Código Civil, o que significou alguma evolução em relação ao Direito anterior. O artigo 2º da Lei nº 883/49 concedia ao filho adulterino metade da herança a que tinha direito o filho legítimo, mas o artigo 51 da Lei nº 6.515, de 26 de dezembro de 1977, deu nova redação ao dispositivo e determinou que o direito à herança seja (6) (7) (8) (9) WALD, Arnoldo, ob. cit., p. 175. VIANA, Marco Aurélio S., ob. cit., p. 235. WALD, Arnoldo, ob. cit., p. 175; CAIO MARIO, ob. cit., p. 198. Ob. cit., p. 345. ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 83-113, mar./abr.-2002 85 86 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura reconhecido em igualdade de condições, seja qual for a natureza da filiação. Com o advento da Constituição Federal de 1988 (artigo 227, § 6º), bem como com a revogação do artigo 358 do Código Civil (este impedia o reconhecimento de filhos adulterinos e incestuosos) pela Lei nº 7.841, de 17 de outubro de 1989, o reconhecimento dos filhos, mesmo os adulterinos e os incestuosos, ainda que não esteja dissolvida a sociedade conjugal do investigado, tornou-se possível mediante a propositura da ação de investigação de paternidade, tendo em vista que não mais prevaleciam as restrições anteriormente existentes. O eminente ministro do Superior Tribunal de Justiça, SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, relatou brilhante Acórdão no Recurso Especial nº 7.631, de 17 de setembro de 1991, citado por ARNOLDO WALD,(10) do seguinte teor: “I - Em face da nova ordem constitucional, que obriga o princípio da igualdade jurídica dos filhos, possível é o ajuizamento da ação investigatória contra genitor casado. II - Em se tratando de direitos fundamentais de proteção à família e à filiação, os preceitos constitucionais devem merecer exegese liberal e construtiva, que repudie discriminações incompatíveis com o desenvolvimento social e a evolução jurídica”. Mais um excelente avanço foi dado pelo legislador pátrio, ao dispor no artigo 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90) que o reconhecimento do estado de filiação pode ser exercitado sem qualquer restrição. Com isso, entendo que os casos de investigação de paternidade previstos no artigo 363 do Código Civil, e que serão mais bem abordados no tópico seguinte, não são apresentados em rol numerus clausus, ou seja, exaustivos, visto que o artigo 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente impediu qualquer espécie de restrição ao pedido de investigação de paternidade. Outro argumento em favor dessa tese é o avanço da biologia genética que permite apontar a paternidade com quase nenhuma margem de erro. Assim se manifestou o insigne SÍLVIO DE SALVO VENOSA em sua recente e brilhante obra:(11) “Os princípios tradicionais, concubinato, rapto, relações sexuais, início de prova escrita, devem ser vistos atualmente não mais como numerus clausus, mas como elementos subsidiários e somente devem ser utilizados isolada ou conjuntamente quando se torna impossível, falível ou incerta a perícia genética. Em síntese, a prova técnica coloca em segundo plano a prova das relações sexuais ou qualquer outra em matéria de paternidade”. Tanto é assim, que a jurisprudência tem alargado os casos em que se permite investigar a paternidade, como ocorre na chamada posse do estado de filho. Essa tese também é defendida por MARCO AURÉLIO S. VIANA,(12) nos seguintes termos: “Confrontando o enunciado do artigo 27 com a norma contida no art. 363 do Código Civil, não é difícil constatar que houve significativo avanço. Na 1ª edição sustentamos a plena vigência do art. 363, e, por via de conseqüência, que prevalecia a enumeração taxativa contida no dispositivo legal. O diploma civil estatuía que só se permitia litigar em juízo nos casos que o art. 363 contempla, e que eram: concubinato, rapto, relações sexuais no período da concepção e escrito do suposto pai, reconhecendo a paternidade. Parece-nos, contudo, que devemos rever nossa posição, alertados pela lição de GUSTAVO TEPEDINO, que, estudando a espécie, observou que não mais se faz necessário prefigurarem as condições enunciadas no art. 363, desde que possa ser evidenciada a paternidade. Efetivamente o art. 27 diz textualmente que o direito de ver, reconhecido o estado de (10) (11) (12) Ob. cit., pp. 182 e 183. Direito de Família, pp.246 e 247. Ob. cit., p. 242. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 83-113, mar./abr.-2002 filiação pode ser exercitado sem qualquer restrição. A nosso ver, prevalece a livre investigação da paternidade, sem a necessidade da prova da existência dos pressupostos objetivos ou condições de admissibilidade anteriores, que o art. 363 consagrava”. Outros autores, porém, entendem que o rol do artigo 363 do Código Civil é taxativo, não possibilitando interpretação extensiva, tais como ARNOLDO WALD, CAIO MARIO DA SILVA PEREIRA, ANTÔNIO JOSÉ DE SOUZA LEVENHAGEN e ORLANDO GOMES. Este último autor, em que pese seu notável conhecimento e inegável autoridade, entra em contradição ao afirmar que o direito pátrio adotou o sistema da enunciação taxativa, eis que posteriormente acaba por admitir que a posse do estado de filho, a ser analisada adiante, além do preceituado na Lei nº 8.069/90, inovou-se a respeito do tema, admitindo-a como fundamento da ação investigatória,(13) o que em última análise, significa dizer que o rol do artigo 363 do Código Civil não é exaustivo. Por fim, acompanhando a evolução histórica e a tese mais liberal e mais moderna no sentido de ampliar os casos de propositura da ação de investigação de paternidade, com a inexistência de qualquer restrição, o que se pode fazer com a nãoespecificação dos casos em que seu ajuizamento é cabível, o novo Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002), que entrará em vigor em 11 de janeiro de 2003 e será objeto de melhor análise em tópico separado, previu a investigação de paternidade sem elencar os casos em que é possível a propositura da ação, o que, como vimos, é um avanço inafastável. 3 - Hipóteses Como vimos no tópico anterior, as hipóteses em que cabe a propositura da ação de investigação de paternidade não se encerram naquelas previstas no rol do artigo 363 do Código Civil brasileiro. Além disso, atualmente também os filhos adulterinos e incestuosos, ainda que na vigência do matrimônio do suposto pai, poderão manejar o pedido. Perdeu muito a importância a previsão dos casos legais e os meios de defesa, uma vez que os exames de HLA e DNA praticamente solucionam a questão, tanto para concluir pela paternidade como para excluí-la, como veremos no tópico seguinte. Contudo, iremos tratar dos casos legais e citar algumas outras situações em que é cabível referida ação. Em primeiro lugar, vale ressaltar que a demonstração pelo investigante de qualquer das hipóteses legais gera uma presunção iuris tantum, ou seja, relativa de paternidade, cabendo ao demandado demonstrar por todas as provas admitidas em direito que não é o pai do requerente. A primeira das hipóteses legais é a prevista no inciso I do artigo 363 do Código Civil: se ao tempo da concepção a mãe estava concubinada com o pretendido pai. PONTES DE MIRANDA(14) definiu concubinato como “união prolongada daqueles que não se acham vinculados por matrimônio válido ou putativo”. SÍLVIO RODRIGUES(15) definiu-o como “a união do homem e da mulher, de caráter mais ou menos prolongado, para o fim de satisfação sexual e assistência mútua, que implica uma presumida fidelidade da mulher ao homem”. ARNOLDO WALD(16) entende concubinato como Ob. cit., pp. 346 e 347. Tratado de Direito Privado, p. 88. Direito de Família, p. 322. (16) Ob. cit., p. 176. (13) (14) (15) ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 83-113, mar./abr.-2002 87 88 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura “uma convivência sexual duradoura e notória entre um homem e uma mulher, que mantêm uma certa fidelidade recíproca”. Seja qual for a definição, o concubinato pode ser demonstrado por diversas formas, sendo relevantes a existência de relações sexuais, fidelidade da mulher e notoriedade da união. O Supremo Tribunal Federal dispensou o requisito da coabitação para a caracterização do concubinato ao editar a Súmula 382, do seguinte teor: “A vida em comum sob o mesmo teto, more uxorio, não é indispensável à caracterização do concubinato”. Importante também que fique delineado que a mulher não manteve relações sexuais com outro homem e que o período da concepção coincide com o do concubinato da mãe do investigante com o suposto pai. Comprovada a existência do concubinato, aparece a presunção legal da paternidade, mas atualmente a prova técnica demonstra de forma praticamente inequívoca a realidade dos fatos, e tal situação, o concubinato, deverá ser reforçada pelo exame pericial, que dirá se o investigado é pai ou não do investigante. Normalmente o réu se defende mediante a alegação de inexistência de concubinato, não coincidência do seu período com o da concepção, impossibilidade física de ser o pai do autor em razão de internamento em hospital, viagem ou impotência acidental no momento da concepção(17) e pela chamada exceptio plurium concubentium. Esta última defesa consiste na alegação de que a mãe do investigante mantinha relações sexuais com outro ou outros homens no período da concepção. O ônus da prova desse fato é do réu, na forma do artigo 333, II, do Código de Processo Civil. Tal defesa também pode ser apresentada nos demais casos legais. Sobre a exceptio, assim se manifesta SÍLVIO DE SALVO VENOSA:(18) “Como já afirmamos, perante os modernos métodos de investigação biológica, mormente o DNA, a exceptio perdeu a importância que teve no passado. A exceção de plúrimas relações sexuais cumpriu sua função, enquanto a ciência não atingiu o grau de evolução atual, que permite a perfeita identificação da paternidade. No entanto, não sendo possível o exame genético, o recurso aos princípios da exceção deve ser utilizado. Cabe a quem alega, portanto ao réu, o ônus da prova, nesse caso”. A segunda hipótese é o rapto da mãe pelo suposto pai no período da concepção (art. 363, II, Código Civil). Como lembra CARLOS ROBERTO GONÇALVES,(19) “o rapto tem, em regra, fim libidinoso. Se coincidiu com a época da concepção, faz presumir a paternidade, tenha sido violento ou consensual (a lei não distingue)”. O que deve ficar demonstrada é a ocorrência do rapto no período da concepção, não a existência de relações sexuais, já presumida pela lei. Não há necessidade da condenação criminal do raptor. O rapto pode ocorrer por violência, fraude, sedução ou emboscada. A terceira hipótese, e a mais comum, é a existência de relações sexuais entre a mãe do investigante e o suposto pai no período da concepção (Código Civil, art. 363, II, 2ª parte). Basta apenas uma relação sexual, desde que essa coincida com o período da concepção; o pedido deverá ser processado e o juiz deverá analisar os demais meios probatórios, dentre os quais a perícia hematológica. Segundo CAIO MÁRIO,(20) “levada a exigência a rigor, ter-se-ia de dar a prova DINIZ, Maria Helena, Curso de Direito Civil Brasileiro, p. 333. Ob. cit., p. 247. Sinopses Jurídicas, p. 116. (20) Ob. cit., pp. 201 e 202. (17) (18) (19) Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 83-113, mar./abr.-2002 direta do comércio sexual. Como é praticamente impossível, admite-se a prova indireta, ou indiciária. A tendência liberal de nossos juristas, propensos à abertura ao reconhecimento judicial da paternidade, manifesta-se na aceitação cada vez maior das facilidades de prova das relações sexuais como fundamento da sentença. Daí a recomendação de prudência ao julgador, para que a liberalidade na apreciação das provas não se converta em estímulo a ações que se articulem como assaltos ousados às fortunas, como observava AFRANIO PEIXOTO”. Mesmo que as relações sexuais tenham ocorrido com um prostituta, provado que sua existência se deu no período da concepção, a ação é admissível. A exceptio plurium concubentium também poderá ser alegada como defesa nessa hipótese, embora a prova pericial possa esclarecer definitivamente a questão. Essa defesa só serve atualmente para afastar a presunção legal da paternidade, mas será analisada em conjunto com as demais provas dos autos. Além disso, o investigado poderá provar a impotência, devendo esta ser contemporânea ao período da concepção e demonstrada por perícia médica. No dizer de ARNOLDO WALD,(21) “em que pese, no entanto, a dificuldade na prova da existência das relações sexuais ou, ainda, a comprovação de que a mulher não era honesta, mantendo relações sexuais com outras pessoas na mesma época, a moderna ciência dirime, hoje, qualquer controvérsia a respeito da afirmada ou negada paternidade. Os exames genéticos através dos métodos modernos HLA e DNA tornam secundárias, mesmo inúteis, outras provas, pois as probabilidades de afirmar ou negar a paternidade são de mais de 99%. Além do sangue, os exames podem ser feitos também em fios de cabelo, pedaços de pele, sêmen etc.”. Por fim, prevê a lei como última hipótese o escrito do suposto pai reconhecendo expressamente a paternidade. Pode ser carta, bilhete, nota particular ou qualquer declaração, desde que o reconhecimento fique demonstrado de forma expressa. A doutrina também cataloga os testamentos nulos, anulados e revogados e quaisquer outros documentos públicos ou particulares. Além disso, é importante que a declaração emane do pai. Pode ter sido escrita por outra pessoa, ou até mesmo a máquina, desde que o pai tenha assinado o documento. LEVENHAGEN(22) nos dá o seguinte exemplo: “Um depoimento prestado em juízo, por exemplo, em que a pessoa expressamente tenha declarado ser o pai do investigante, será um documento válido, para instruir a ação”. Contudo, “um documento em que a pessoa apenas implicitamente tenha deixado transparecer sua paternidade, será imprestável, porque a Lei exige que a declaração seja expressa, isto é, que tenha força de confissão, feita de maneira categórica e cabal”. Assim, a declaração não pode ser ambígua, vaga, equívoca, incerta, duvidosa, mas clara, precisa, exata, transparente e expressa, formal e séria. O réu poderá demonstrar a falsidade material e ideológica da declaração e, ainda, defeito da declaração de vontade.(23) É necessário que a declaração não seja voluntária, eis que não estaríamos diante da hipótese legal. Aliás, se o escrito particular com o reconhecimento expresso da paternidade estiver autenticado, ou com firma reconhecida, constitui por si só modo voluntário de reconhecimento do filho, podendo ser averbado no registro civil, nos termos do artigo 1º, II, da Lei nº 8.560/92.(24) Ob. cit., p. 178. Ob. cit., p. 212. CAIO MÁRIO, ob. cit., p. 202. (24) GONÇALVES, Carlos Roberto, ob. cit., pp. 116 e 117. (21) (22) (23) ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 83-113, mar./abr.-2002 89 90 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura Entretanto, como já dito insistentemente neste estudo, as hipóteses de investigação de paternidade não param por aí. O fundamento mais lembrado pela doutrina e que não consta do Código, embora conste de outras legislações alienígenas, é a chamada posse do estado de filho. É a situação típica em que o suposto pai trata o investigante como seu filho, mantendo-o, custeando seus estudos, comprando-lhe roupa, dispensando-lhe carinho e mantendo este comportamento perante a sociedade, fazendo crer àqueles com quem convive, vizinhos, amigos, parentes, que é mesmo o pai do investigante. Para a configuração desta situação de fato são necessários alguns requisitos, como o nomen, ou seja, o filho usa o nome do pai, tratactus, recebendo o investigante tratamento de filho pelo suposto pai, e fama, gozando no meio social em que vive a fama de filho do investigado. O projeto de CLÓVIS BEVILÁQUA previa, no artigo 427, I, a posse do estado de filho como fundamento para a investigatória. Como prova isolada, não poderá ser declarada a paternidade, mas sim se em conjunto com os demais elementos probatórios. O juiz deve ficar atento se realmente se trata de posse do estado de filho ou se a conduta do investigado em relação ao investigante permaneceu em nível de solidariedade humana, piedade cristã ou sentimento de amizade.(25) Podemos lembrar, como casos não previstos no Código Civil e que podem fundamentar o pedido de investigação de paternidade em conjunto com outras provas, a sedução mediante fraude ou abuso de autoridade, promessa de casamento e estupro, hipóteses previstas nos Códigos do México (1927), Peru (1936) e Itália (1942).(26) O artigo 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente, ao vedar restrições à ação de investigação de paternidade, autorizou a propositura dessa demanda em qualquer dessas hipóteses citadas e não previstas na Código Civil brasileiro, em seu artigo 363. 4 - Provas Todos os meios legais, além dos moralmente legítimos, ainda que não previstos, são hábeis para provar a filiação, na forma do artigo 332 do Código de Processo Civil. A prova testemunhal deve ser acolhida com certa reserva, uma vez que as testemunhas podem ser influenciadas pelo sentimento de amizade em relação à parte que a arrolou.(27) Isso exige do julgador cautela ao analisar os depoimentos. Dependendo do fundamento utilizado, poderá até ser usada com exclusividade, principalmente se o demandado se recusa a participar do exame pericial. O exame prosopográfico consiste na ampliação de fotografias do investigante e do investigado, justapondo-se uma a outra para comparação de traços de fisionomia, mas não autoriza o reconhecimento da relação de parentesco, visto que a semelhança não induz a afirmação do vínculo jurídico. Também serviu como base de prova o exame odontológico, hoje completamente em desuso, ao menos para a identificação da paternidade, já que continua sendo utilizado em outros ramos da medicina legal. No que tange ao exame de sangue, MARIA HELENA DINIZ,(28) apoiada na lição de SÍLVIO RODRIGUES, alega que serve para excluir a paternidade se investigante e CAIO MÁRIO, ob. cit., p. 203. SILVIO RODRIGUES, ob. cit., p. 320. DINIZ, Maria Helena, ob. cit., p. 334. (28) Ob. cit., pp. 334/335. (25) (26) (27) Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 83-113, mar./abr.-2002 investigado pertencem a diverso grupo sangüíneo e, apenas e tão-somente, é aceito como mera possibilidade de relação biológica da paternidade, sob o fundamento de que os tipos sangüíneos e o fator RH são encontrados em milhões de pessoas. Contudo, o próprio mestre SÍLVIO RODRIGUES admite que tal asserção, já há algum tempo, não é mais verdadeira. Segundo este,(29) “isso porque, com a descoberta do fator HLA (Human Leucocytes Antigens), e hoje com o teste DNA, esse quadro se alterou fundamentalmente, pois aquela prova incerta e duvidosa se tornou precisa e praticamente indiscutível. Ou seja, a prova testemunhal e circunstancial, que era ordinariamente aquela em que se baseava o julgador, tornou-se totalmente secundária, pois a comparação do sangue dos genitores leva a um grau de probabilidade enorme, tanto para excluir, como para incluir a paternidade”. No mesmo sentido as lições de SÍLVIO DE SALVO VENOSA(30) e CAIO MÁRIO.(31) Realmente. O exame com base na análise do sangue aponta com probabilidade superior a 98 % a existência da relação de parentesco, podendo chegar a 99,99% tal probabilidade. Por fim, o avanço da ciência chegou ao grau máximo em matéria de identificação da paternidade com a descoberta de um fator baseado na determinação da paternidade por intermédio das impressões digitais do DNA (ácido desoxirribonucléico) que permite concluir com absoluta certeza e excluir a paternidade. É a chamada impressão digital genética. O material para exame pode ser colhido em qualquer parte do corpo que o contenha, como sêmen, raiz do cabelo, pele, placenta, mas o mais comum é a utilização do sangue, por ser mais fácil sua obtenção. A probabilidade nesse exame é superior a 99,99%, o que significa grau de certeza absoluta de paternidade. Sobre o assunto, assim se manifestou a jurisprudência: “Na investigação de paternidade, a prova científica relativa à perícia médica feita pelo método DNA, direta que é, na medida em que seus resultados se mostram categoricamente afirmativos, ou excludentes da paternidade, tem ela peso incontestável na formação do livre convencimento do julgador, mormente quando vem completar farta prova indiciária” (TJ/MG, 2ª Câmara, Ap. nº 11.223, rel. des. BERNARDINO GODINHO, Ac. 24.03.1994, RF 332/331). Não se pode perder de vista que ninguém pode ser obrigado a se submeter ao exame, fornecendo sangue, eis que não existe previsão legal para coagir o demandado a tanto, na forma do artigo 5º, II, da Constituição Federal. Sua integridade física deve ser preservada. No entanto, essa conduta será levada em consideração como receio da descoberta da verdade, e cria uma presunção a favor da paternidade, ainda mais se existem outros elementos indiciários. Neste sentido: “Embora ninguém possa ser coagido a exame ou inspeção corporal, o investigado que se recusa ao exame pericial de verificação da paternidade deixa presumir, contra ele, a veracidade da imputação (Código de Processo Civil, art. 359, II), por aplicação analógica (Código de Processo Civil, art. 126). Presunção harmoniosa com o conjunto da prova”.(32) Em caso de demonstração das relações sexuais, a prova direta é muito difícil, quase impossível, vez que essas geralmente se realizam às ocultas, o que possibilita a aceitação de indícios e presunções, desde que certos e seguros. Obviamente, a prova deverá ser analisada com a cautela que o caso concreto requer. Assim, o magistrado não deve ser rigoroso no exame das provas da relação sexual, mas deve ter prudência redobrada em tais casos. Ob. cit., p. 326. Ob. cit., pp. 249 e 250. Ob. cit., pp. 204 e 205. (32) WALD, Arnoldo, ob. cit., p. 468. (29) (30) (31) ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 83-113, mar./abr.-2002 91 92 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura De qualquer forma, no caso de realização da perícia, por se tratar de prova técnica, poderão as partes indicar assistentes técnicos e apresentar quesitos (Código de Processo Civil, artigo 421, §1º, I e II). Não se pode perder de vista, também, que o exame de DNA praticamente afastou qualquer discussão sobre a chamada exceptio plurium concubentium, eis que demonstra de forma absoluta a paternidade perquirida. 5 - Eficácia e efeitos do reconhecimento A eficácia da sentença que julga procedente a ação de investigação de paternidade é erga omnes e produz efeitos ex tunc, ou seja, retroativos à data do nascimento, ou, se o caso, à data da concepção, isto porque a tutela judicial nesta ação é meramente declarativa, produzindo a coisa julgada material com o trânsito em julgado. Por isso, a sentença que julga a ação improcedente por falta de prova impede o ajuizamento de nova demanda para a realização do exame de DNA (TJ/MG, Ap. nº 9.909/3, 2ª T., rel. des. SÉRGIO LELLIS SANTIAGO, Ac. nº 22.06. 1993, Jur. Mineira 123/151). Da mesma forma, o réu declarado pai em ação de investigação de paternidade, não pode tentar desfazer tal situação por meio de ação negatória para provar sua impotência generandi (TJ/SP, Ap. nº 146.814-1/4, rel. des. OLAVO SILVEIRA, Ac. nº 02.04.1992, RF 322/185).(33) A decisão poderá ordenar que o filho se crie e eduque fora da companhia do pai que lhe negou a qualidade de filho (Código Civil, artigo 366, 2ª parte). O reconhecido adquire o direito de usar o nome do pai, que é imprescritível e poderá ser solicitado seu acréscimo a qualquer tempo.(34) Contudo, o filho reconhecido por um dos cônjuges não poderá residir no lar conjugal sem o consentimento do outro (Código Civil, artigo 359). Nesse caso, o pai deverá prestar-lhe, fora de seu lar, toda a assistência necessária, suportando os encargos alimentares correspondentes à condição social em que vive iguais aos que prestar ao filho do casal (Decreto-Lei nº 3.200, de 19/04/1941, artigo 15). O filho menor sujeitar-se-á ao pátrio poder e ficará sob o poder do genitor que o reconheceu. Se ambos o reconheceram, ficará sob o poder da mãe, salvo se de tal solução advier prejuízo ao menor, caso em que o juiz poderá deferir a guarda a outra pessoa, de preferência da família dos genitores, ou mesmo poderá decidir de outro modo, sempre no interesse do menor (Decreto-Lei nº 3.200/41, artigo 16). O reconhecimento gera efeitos patrimoniais, equiparando-se o filho reconhecido aos demais, sem soluções discriminatórias, criando para si o direito sucessório, de pleitear alimentos, herança e ajuizar ação de nulidade de partilha. 6 - Questões processuais A ação de investigação de paternidade se processa pelo rito ordinário, devendo atender os requisitos do artigo 282 do Código de Processo Civil. A participação do Ministério Público é obrigatória, devendo ser requerida sua intimação na inicial, nos termos do artigo 82, II, do Código de Processo Civil, por se tratar de causa relativa ao (33) (34) GOMES, Orlando, ob. cit., p. 356. VENOSA, Sílvio de Salvo, ob. cit., p. 255. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 83-113, mar./abr.-2002 estado da pessoa. Quando a ação for cumulada com a de alimentos, a competência será do foro do domicílio ou da residência do alimentando, conforme preceitua a Súmula 1 do Superior Tribunal de Justiça. O autor deve protestar pela produção da prova testemunhal, quando for o caso, e pela prova pericial, esta atualmente capaz de concluir pela paternidade ou sua exclusão de forma absoluta. Trata-se de ação de estado, personalíssima, indisponível e imprescritível, podendo ser proposta contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, na forma do artigo 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente. A legitimidade ativa é do filho. Caso seja menor impúbere, será representado pela mãe ou tutor; se for menor púbere, será assistido; se for absolutamente incapaz por demência, será representado pelo curador (Código Civil, artigos 7º e 84). Isso porque o artigo 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente dispôs que o direito ao reconhecimento do estado de filiação é personalíssimo. Se porventura o interessado vier a falecer antes da propositura da ação, seus herdeiros e sucessores não poderão ajuizála. Se após o ajuizamento, estes terão legitimidade para prosseguir na demanda no pólo ativo. Não se pode perder de vista que a causa pode ser manejada, atualmente, por qualquer filho, seja adulterino ou incestuoso, tendo em vista que o artigo 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente impede qualquer restrição ao pedido e o artigo 227, § 6º da Constituição Federal vedou discriminações relativas à filiação. No entanto, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu como válida a pretensão dos filhos, substituindo o pai, em investigar a filiação deste, junto a avô (relação avoenga), dirigindo a lide contra os herdeiros deste, especialmente em face da nova Constituição e da inexistência de qualquer limitação no art. 363 do Código Civil (Superior Tribunal de Justiça, REsp. nº 269-RS, rel. min. WALDEMAR ZVEITER, DJU, 7 jun. 1990).(35) O Ministério Público só poderá propor a ação no caso do artigo 2º, § 4º da Lei nº 8.560/92, como substituto processual. A ação pode ser proposta para salvaguardar os interesses do nascituro, mesmo antes do nascimento, mas após a concepção, na forma do artigos 4º, 2ª parte, 357, parágrafo único do Código Civil e artigo 26, parágrafo único do Estatuto da Criança e do Adolescente. A legitimidade passiva é do pai ou de seus herdeiros. Caso o suposto pai tenha falecido, deverão figurar como réus os herdeiros. Assim, se não tiver deixado descendentes ou ascendentes, a mulher será herdeira e deverá ser ré na respectiva ação. Da mesma forma, se o indigitado pai também não era casado ao falecer, os bens serão transferidos ao Município ou Distrito Federal (Código Civil, artigos 1603, V e 1619), caso em que deverão figurar no pólo passivo. Se toda a herança vier a ser entregue aos legatários, esses constarão do pólo passivo, salvo se concorrerem com outros herdeiros, visto que o legado não será afetado pelo reconhecimento da filiação. O espólio jamais possuirá legitimidade passiva por não ter personalidade jurídica, devendo ser citados todos os herdeiros. Caso não sejam conhecidos, o investigante pedirá a citação por edital, caso em que deverá ser nomeado curador especial aos supostos herdeiros, nos termos do artigo 9º, II, do Código de Processo Civil. Neste sentido: RT 581/59. Qualquer pessoa que tenha interesse econômico ou moral, ainda que não tenha sido citada para a demanda, poderá contestar a ação, conforme previsão do artigo 365 do Código Civil, em consonância com o artigo 76 do mesmo estatuto. Assim, basta o interesse econômico ou moral para que haja resistência ao pedido. Como exemplo, (35) GONÇALVES, Carlos Roberto, ob. cit., p. 114. ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 83-113, mar./abr.-2002 93 94 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura poderá outro qualquer parente sucessível ter interesse econômico no desfecho da demanda, caso em que poderá contestar a ação. Nesse caso, o interessado ingressará na lide como assistente litisconsorcial (Código de Processo Civil, artigo 54). Tratando-se de ação de estado, é imprescritível. Não se deve confundir a imprescritibilidade da ação com a prescritibilidade de seus efeitos patrimoniais. Assim, por exemplo, se for proposta ação de investigação de paternidade cumulada com petição de herança, aquela é imprescritível por determinação legal e por se tratar de ação de estado, mas o efeito do reconhecimento da filiação que é possibilitar a petição de herança, de fundo patrimonial, prescreve em 20 anos, na forma do artigo 177 do Código Civil. Neste sentido, dispõe a Súmula 149 do Supremo Tribunal Federal: “É imprescritível a ação de investigação de paternidade, mas não o é a de petição de herança”. CARLOS ROBERTO GONÇALVES(36) entende que o prazo vintenário se inicia no momento em que foi reconhecida a paternidade, já que, nesse momento, surge o direito de ação. Contudo, existe entendimento no sentido de que o prazo se inicia na data do falecimento do suposto pai, por não existir herança de pessoa viva. Além disso, ela é indisponível, o que significa dizer que não gera o efeito da revelia, conforme prevê o artigo 320, II, do Código de Processo Civil, impedindo o julgamento antecipado da lide. Por isso, não pode ser objeto de renúncia nem de transação. Porém, é válida a desistência da ação. A sentença deverá ser averbada no Registro Civil, à margem do assento do investigante, com o nome do pai e dos avós paternos. Poderá ser cumulada com petição de herança, caso em que está implícita a anulação da partilha se os bens já foram inventariados, devendo haver mesmo assim pedido expresso, anulação de registro civil e alimentos. Neste último caso, doutrina e jurisprudência divergem se os alimentos são devidos a partir da sentença ou da citação, mas, como veremos no item relativo à jurisprudência comentada, tal debate se trava, a meu ver, pela errônea interpretação do artigo 13, § 2º da Lei nº 5.478/68 (Lei de Alimentos) e outros motivos que serão ali abordados. O processo tramita em segredo de justiça (Estatuto da Criança e do Adolescente, artigo 27 e Código de Processo Civil, artigo 155, II). 7 - Inseminação artificial A questão da inseminação artificial é hoje um dos mais modernos temas do Direito e exige do legislador a elaboração de normas consentâneas com a realidade atual. Normalmente a filiação é proveniente do relacionamento sexual entre um homem e uma mulher. Contudo, alguns fatores impedem a procriação, tais como a impossibilidade de cópula decorrente da impotência, esterilidade, vaginismo etc. As famílias que desejam ter filhos, diante desse quadro, utilizam-se de modernas técnicas científicas para que o esperma fecunde o óvulo da mulher e possibilite a gestação. Ocorre que o problema não é tão simples assim. O sêmen, muitas vezes, pode não ser do marido, mas de terceiro conhecido ou até mesmo desconhecido. E se a fecundação se deu sem a concordância do marido, como resolver o problema da paternidade? E no caso das mães de aluguel? São questões que o Direito deve prever e regular para solucionar eventuais conflitos de forma a dar um tratamento especial aos casos concretos. (36) Ob. cit., p. 113. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 83-113, mar./abr.-2002 Quando o sêmen é cedido pelo próprio marido, a inseminação é homóloga; quando por terceiro, é heteróloga. O Código Civil brasileiro em vigor não soluciona o problema. No entanto, como veremos no próximo tópico, o novo Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002) regulou a matéria em alguns aspectos, podendo servir ao julgador, até antes de sua entrada em vigor, como parâmetro para solucionar os casos que surgirem de lege ferenda. Atualmente, se o marido não consentiu na inseminação heteróloga, poderá impugnar a paternidade; se com seu consentimento, não poderá impugná-la. Porém, o filho poderá investigar a paternidade sem restrições, conforme prevê o artigo 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente, o que significa que poderá fazê-lo ainda que o marido tenha consentido na inseminação heteróloga. SÍLVIO DE SALVO VENOSA(37) aborda a questão com maestria e lembra que o legislador deve tomar o cuidado de regular o tema sem dificultar a doação de esperma por terceiros, para não inviabilizar a filiação pelos casais que têm problemas. Cita o projeto preliminar da União Européia por intermédio de EDUARDO A. ZANNONI, do seguinte teor: “Nenhuma relação de filiação poderá se estabelecer entre os doadores de gametas e o filho concebido como resultado da procriação. Nenhum procedimento por iniciativa do filho poderá ser dirigido contra um doador ou por este contra um filho”. No que tange às chamadas “barrigas de aluguel”, onde a fecundação ocorre em ventre alheio, se houver contrato nesse sentido, esse será nulo, porque imoral seu objeto e a obrigação dele decorrente pode ser, considerada, no máximo, obrigação natural.(38) É importante frisar mais uma vez: em caso de inseminação heteróloga, havendo ou não o consentimento do marido, o filho poderá investigar a paternidade, uma vez que o artigo 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente vedou qualquer restrição a tal direito. ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. 95 8 - Novo Código Civil A Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, publicada no Diário Oficial da União no dia 11 de janeiro de 2002, instituiu o novo Código Civil brasileiro e entrará em vigor um ano após sua publicação (artigo 2.045), ou seja, no dia 11 de janeiro de 2003. Possui 2.046 artigos. Acompanhando a tendência mais moderna e liberal já explicitada, o novo Códex previu a ação de investigação de paternidade sem delimitar os casos legais, ou seja, corroborou o entendimento de que essa demanda pode ser exercitada sem qualquer restrição de texto legal, restringindo seu cabimento aos casos previstos, o que afasta, ao menos neste tópico, as injustas afirmações de que o novo estatuto “já nasceu velho”. O capítulo relativo à filiação contém 11 artigos, ou seja, do 1.596 ao 1.606. Já o relativo ao reconhecimento dos filhos contém o mesmo número de artigos, ou seja, do 1.607 ao 1.617. A seguir, transcrevo referidos artigos, comentando-os, se o caso for. “CAPÍTULO II Da Filiação Art. 1.596. Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.” (37) (38) Ob. cit., p. 252. VENOSA, Sílvio de Salvo, ob. cit., p. 253. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 83-113, mar./abr.-2002 96 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura Esse dispositivo repete o disposto no artigo 227, § 6º da Constituição Federal, vedando qualquer espécie de diferenciação entre os filhos naturais, adulterinos, incestuosos e os adotados. “Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; II - nascidos nos trezentos dias subseqüentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;” A fecundação artificial homóloga, como dito alhures, é aquela em que o próprio marido cede o sêmen. O inciso firma uma presunção iuris tantum, ou seja, relativa de paternidade em favor deste. No entanto, se já falecido o marido, antes da concepção pela fecundação artificial, o filho não terá direito sucessório, visto que o pai falecera antes desse momento e o direito protege os direitos do nascituro apenas após a concepção. “IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.” A inseminação artificial heteróloga é aquela em que o sêmen é cedido por terceira pessoa que não o marido. No caso de autorização do marido, esse se presume o pai, mas, como havíamos dito e com base no artigo 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente, tal presunção relativa pode ser ilidida pela comprovação em regular ação de investigação de paternidade proposta pelo filho, visto que o direito do exercício dessa ação não pode sofrer restrição. “Art. 1.598. Salvo prova em contrário, se, antes de decorrido o prazo previsto no inciso II do art. 1.523, a mulher contrair novas núpcias e lhe nascer algum filho, este se presume do primeiro marido, se nascido dentro dos trezentos dias a contar da data do falecimento deste e, do segundo, se o nascimento ocorrer após esse período e já decorrido o prazo a que se refere o inciso I do art. 1597. Art. 1.599. A prova da impotência do cônjuge para gerar, à época da concepção, ilide a presunção da paternidade.” Tal possibilidade já era aceita por doutrina e jurisprudência, mesmo antes dessa previsão legal. “Art. 1.600. Não basta o adultério da mulher, ainda que confessado, para ilidir a presunção legal da paternidade.” O legislador exige provas mais concretas do que o adultério da mãe para ilidir a presunção relativa de paternidade prevista na lei. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 83-113, mar./abr.-2002 “Art. 1.601. Cabe ao marido o direito de contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher, sendo tal ação imprescritível.” Afigura-se-nos justa a disposição. Afinal de contas, não pode o interesse maior do marido, e até mesmo do filho, em saber a realidade da filiação ficar sujeito a prazo legal. “Parágrafo único. Contestada a filiação, os herdeiros do impugnante têm direito de prosseguir na ação.” Isso no caso de o impugnante vir a falecer no curso da demanda. “Art. 1.602. Não basta a confissão materna para excluir a paternidade.” Da mesma forma que no artigo 1600, o legislador exige provas mais concretas do que a mera confissão da mãe para ilidir a presunção relativa de paternidade prevista na lei. “Art. 1.603. A filiação prova-se pela certidão do termo de nascimento registrada no Registro Civil. Art. 1.604. Ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro. Art. 1.605. Na falta, ou defeito, do termo de nascimento, poderá provar-se a filiação por qualquer modo admissível em direito: I - quando houver começo de prova por escrito, proveniente dos pais, conjunta ou separadamente; II - quando existirem veementes presunções resultantes de fatos já certos.” Esse artigo repete o disposto no artigo 349 do Código Civil de 1916. “Art. 1.606. A ação de prova de filiação compete ao filho, enquanto viver, passando aos herdeiros, se ele morrer menor ou incapaz.” Esse artigo repete o disposto no artigo 350 do Código Civil de 1916. “Parágrafo único. Se iniciada a ação pelo filho, os herdeiros poderão continuá-la, salvo se julgado extinto o processo. CAPÍTULO III Do Reconhecimento dos Filhos Art. 1.607. O filho havido fora do casamento pode ser reconhecido pelos pais, conjunta ou separadamente. Art. 1.608. Quando a maternidade constar do termo do nascimento do filho, a mãe só poderá contestá-la, provando a falsidade do termo, ou das declarações nele contidas. Art. 1.609. O reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento é irrevogável e será feito: I - no registro do nascimento; ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 83-113, mar./abr.-2002 97 98 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura II - por escritura pública ou escrito particular, a ser arquivado em cartório; III - por testamento, ainda que incidentalmente manifestado; IV - por manifestação direta e expressa perante o juiz, ainda que o reconhecimento não haja sido o objeto único e principal do ato que o contém. Parágrafo único. O reconhecimento pode preceder o nascimento do filho ou ser posterior ao seu falecimento, se ele deixar descendentes. Art. 1.610. O reconhecimento não pode ser revogado, nem mesmo quando feito em testamento. Art. 1.611. O filho havido fora do casamento, reconhecido por um dos cônjuges, não poderá residir no lar conjugal sem o consentimento do outro.” Esse artigo repete o disposto no artigo 359 do Código Civil de 1916. “Art. 1.612. O filho reconhecido, enquanto menor, ficará sob a guarda do genitor que o reconheceu, e, se ambos o reconheceram e não houver acordo, sob a de quem melhor atender aos interesses do menor. Art. 1.613. São ineficazes a condição e o termo apostos ao ato de reconhecimento do filho. Art. 1.614. O filho maior não pode ser reconhecido sem o seu consentimento, e o menor pode impugnar o reconhecimento, nos quatro anos que se seguirem à maioridade, ou à emancipação. Art. 1.615. Qualquer pessoa, que justo interesse tenha, pode contestar a ação de investigação de paternidade, ou maternidade.” Previsão idêntica à do artigo 365 do Código Civil de 1916, já explicado. “Art. 1.616. A sentença que julgar procedente a ação de investigação produzirá os mesmos efeitos do reconhecimento; mas poderá ordenar que o filho se crie e eduque fora da companhia dos pais ou daquele que lhe contestou essa qualidade.” Mesma disposição prevista no artigo 366 do Código Civil de 1916. “Art. 1.617. A filiação materna ou paterna pode resultar de casamento declarado nulo, ainda mesmo sem as condições do putativo.” 9 - Jurisprudência comentada Passo a citar acórdãos de alguns tribunais estaduais e do Superior Tribunal de Justiça sobre dois temas importantes: recusa do réu em se submeter ao exame pericial e momento a partir do qual são devidos alimentos quando cumulados com a ação de investigação de paternidade. Para isso, citarei alguns trechos dos respectivos votos e emitirei minha opinião pessoal sobre eles. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 83-113, mar./abr.-2002 a) Recusa do réu em se submeter a exame pericial a1) Tribunal de Justiça do Espírito Santo - RT 791/344-346 “Investigação de paternidade - Prova - Perícia - Exame de DNA Investigado que não pode ser obrigado, coercitivamente, a submeter-se ao exame - Recusa injustificada, no entanto, em submeterse à prova pericial que estabelece presunção de veracidade dos fatos alegados pelo investigante, notadamente quando, em razão do progresso científico, o referido exame pode indicar ou excluir, com segurança, a questionada ascendência”. Ap. nº 85.822-0, Segredo de Justiça, 2ª Câm., j. 23.08.2000, rel. des. DARCY NASSER DE MELO. Nas razões do recurso, dentre outras alegações, o apelante afirmou que sua recusa em se submeter ao exame pericial é garantida constitucionalmente. O relator, sobre tal recusa, assim deixou assentado: “A recusa de submeter-se ao exame de DNA, no entanto, volta-se contra o próprio recorrente, pelo simples raciocínio de que, em negando a paternidade, teria ele, em seu favor, essa prova para demonstrar a veracidade da sua negativa. Realmente, segundo vem entendendo a jurisprudência, a recusa da realização do exame de DNA implica a inversão do ônus da prova e a presunção contra quem se recusou, porquanto a não submissão ao exame, que se sabe bastante preciso, é inconcebível por quem dele, certamente, tiraria proveito”. O eminente relator ainda cita julgado da 2ª Câmara Civil daquele tribunal de Justiça, nos seguintes termos: “Se o investigado não consegue demonstrar qualquer causa impediente da paternidade e nem favorece essa demonstração, aparece, em favor do investigante, a presunção pater is est. Em ação de investigação de paternidade, o investigado não pode ser obrigado, coercitivamente, a submeter-se a exame pericial, mas a sua recusa estabelece a presunção de veracidade dos fatos alegados pelo investigante, notadamente quando, em razão do progresso científico, as perícias modernas (DNA - HLA) podem indicar, neste caso, com segurança, a ascendência pretendida” (Acórdão 10845). Finalmente, o argumento do apelante, de que estaria desobrigado de submeterse ao exame de DNA, por força de preceito constitucional, não tem a mínima consistência, tal como foi bem analisado e rejeitado pelo douto juiz a quo, quando assim asseverou: “A discussão, no âmbito da ação investigatória sobre os conceitos constitucionais predominantes, na letra do art. 5º, II, onde ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei, colide, no caso, com o inciso IV, onde é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte quando necessário ao exercício profissional, bem como a igualdade preconizada no inciso I, onde homens e mulheres são iguais em direito e obrigações, pelo que o constrangimento é mútuo na hipótese presente face à marginalização da autora, impossibilitado-a de aferir sua ascendência genética”. Realmente assiste razão não só ao relator, mas também ao ilustre magistrado de 1º grau, uma vez que sequer se cogita da possibilidade de coagir alguém a ceder material para o exame pericial, visto não existir texto legal prevendo tal dever, mas tal recusa só pode ser interpretada em desfavor do suposto pai, já que o alto grau de certeza dos exames de HLA e DNA, como já estudado neste trabalho, poderia ser utilizado a seu favor, caso o resultado fosse o da exclusão da paternidade. Tem cabimento aqui aquele velho adágio popular: “Quem não deve não teme!”. Obviamente ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 83-113, mar./abr.-2002 99 100 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura que devem existir nos autos outros elementos que corroboram as alegações do autor. Esta é a única interpretação que pode ser dada, utilizando-se como fundamento os artigos 359, II e 126, ambos do Código de Processo Civil. a2) Tribunal de Justiça de São Paulo - RT 778/266-267 “Investigação de paternidade - Exame hematológico - Recusa imotivada do requerido em comparecer ao exame pericial - Ato que leva a presunção da paternidade, mormente se aliado a provas que corroboram a existência de relacionamento amoroso entre o investigado e a genitora da investigante”. Ementa da redação: Presume-se a paternidade de quem se recusa, imotivadamente, a realizar exame hematológico, traduzindo temor do resultado, mormente quando há, nos autos, provas que corroboram ter existido relacionamento amoroso entre o investigado e a genitora da investigante. Ap. nº 139.554-4/1, Segredo de Justiça, 10 ª Câmara, j. 14.03.2000, rel. des. RUY CAMILO. Nas razões recursais, o apelante aduziu ter direito de não se submeter a exame pericial hematológico, não havendo razões para que o não comparecimento seja interpretado em seu desfavor. Em seu voto, o relator concluiu, pelos depoimentos das testemunhas, que a concepção se deu em período em que a mãe da investigante e o suposto pai teriam mantido relações sexuais, e, no que toca à recusa de submissão ao exame ,assim consignou: “Mas causa espanto que o requerido, convencido de não ser o pai da menor porque sequer conhecia a genitora da autora, tenha se escusado a fazer o exame pericial hematológico, temendo que, com a coleta de sangue intravenosa, pudesse ser contagiado com alguma doença fatal. Se a Constituição Federal, nos incisos II e X, protege a individualidade do cidadão, estabelecendo que: ‘Art. 5º (...) II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;’ ... ‘X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação...’, essa mesma Carta assegura ao menor e ao adolescente, em seu artigo 227, o direito à família, à dignidade, entre outras coisas, daí decorrendo o direito da autora de ver reconhecida a paternidade, que lhe é negado pelo requerido. E sua recusa da realização do exame pericial, aqui, o desfavorece, pois traduz temor do resultado, induzindo à presunção de veracidade das alegações da inicial”. Assim, como bem fundamentado, o direito a não se submeter ao exame pericial, na forma do artigo 5º, II, da Constituição Federal, pela falta de norma legal prevendo tal obrigação, colide com outro preceito constitucional, qual seja, o artigo 227 que prevê, dentre outros direitos, ao menor e ao adolescente, o direito à família e à dignidade. Ora, existe maior insulto à dignidade do que não conhecer o próprio pai? Creio que não. Portanto, bem andou o relator ao negar provimento a esta parte do recurso. a3) Tribunal de Justiça de São Paulo - JTJ 210/203-204 “Investigação de paternidade - Prova - Perícia - Recusa do réu - Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 83-113, mar./abr.-2002 Direito de não comparecer - Ausência, entretanto, que poderá ser interpretada em favor dos pedidos formulados na inicial - Recurso não provido”. Agravo de Instrumento nº 53.311-4 - O julgamento teve a participação dos senhores desembargadores VASCONCELLOS PEREIRA (presidente sem voto), THEODORO GUIMARÃES e CEZAR PELUSO, sendo relator OSVALDO CARON. Na minuta do agravo de instrumento tirado dos autos de ação de investigação de paternidade, cumulada com alimentos, constou que o agravante se insurgiu contra decisão interlocutória de saneamento dos autos, onde foi deferida a produção de prova pericial, sob o argumento de não existir lei que possibilite a violação de seu corpo para a realização da prova. No voto do eminente relator, assim ficou consignado: “A prova pericial, na hipótese dos autos, é necessária à comprovação, pela menor, da afirmação de ser o réu, ora agravante, o seu pai biológico. A Constituição da República não só manteve o acesso ao Poder Judiciário como direito do cidadão (artigo 5º, inciso XXXVI), como ainda lhe assegurou ampla defesa (artigo 5º, LV). Mas, à evidência, o agravante não será conduzido para ser submetido ao exame. Terá o direito de não comparecer. Sua ausência, contudo, no conjunto das provas, poderá ser interpretada em favor dos pedidos formulados na petição inicial. Isso, à semelhança do que ocorre com o acusado, no interrogatório (artigo 186 do Código de Processo Penal)”. Deve ser acrescentado ao voto também o fundamento de que o investigante tem o direito à dignidade de tomar conhecimento de sua ascendência paterna (Constituição Federal, artigo 227), sem prejuízo da interpretação do artigo 359, II, do Código de Processo Civil, uma vez que a recusa do comparecimento ao exame não é legítima, visto que demonstra temor do investigado da descoberta da verdade. Afinal de contas, se tivesse certeza absoluta de que não é pai do investigado, provaria tal situação pela exclusão da paternidade na prova pericial. Além disso, outros elementos devem constar dos autos para corroborar os indícios de paternidade, trazendo segurança ao julgador. O único reparo que deve ser feito, com a mais respeitosa vênia, é a citação do artigo 186 do Código de Processo Penal, uma vez que a recusa em responder às perguntas formuladas ao acusado não pode mais ser interpretada em seu desfavor, já que tal conduta está englobada em seu direito à ampla defesa (Constituição Federal, artigo 5º, LV). b) Momento a partir do qual são devidos alimentos quando b) a ação é cumulada com a investigação de paternidade b1) Tribunal de Justiça do Espírito Santo - RT 748/344-347 “Investigação de paternidade - Cumulação com alimentos - Verba alimentícia que retroage a partir da sentença de primeira instância favorável ao pedido, independentemente de haver recurso de apelação pendente - Inteligência do art.5º da Lei 883/49”. Ap. nº 035940053032, 1ª Câm., j. 12.08.1997, rel. des. ARIONE VASCONCELOS RIBEIRO. O relator fez constar de seu voto o seguinte: “A fixação da verba alimentícia deve obedecer ao parâmetro estabelecido no art. 5º, da Lei 883/49, isto é, retroagindo a partir da sentença de primeira instância favorável, ainda que pendente de julgamento ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 83-113, mar./abr.-2002 101 102 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura eventual recurso de apelação, o que, a um só tempo, inibe o desafio de lide temerária e possibilita ao filho reconhecido a satisfação do seu sustento no curso do processo”. E cita aresto tirado da obra de WILSON BUSSADA, do seguinte teor: “Execução por título judicial. Ação de investigação de paternidade cumulada com alimentos. Filiação natural. Procedência dos pedidos em ambas as instâncias. Os alimentos não são devidos a partir da citação, por aplicação do art. 13, § 2º, da Lei Especial de Alimentos, nem do trânsito em julgado da sentença. Aplica-se, por analogia, o art. 5º da Lei nº 883/49, para declarar que os alimentos são devidos a partir da sentença favorável em 1ª Instância e no percentual que prevaleceu. Provimento em parte do recurso”. A questão gera uma das maiores discussões perante os tribunais. É preciso discutir o tema, que não é pacífico, com argumentos sólidos e irrefutáveis, para que a jurisprudência pátria tome um rumo determinado e possa gerar maior certeza e tranqüilidade nos julgamentos dessa espécie de caso. Embora ainda cite no corpo deste singelo e simples trabalho outras jurisprudências em sentido não só contrário, mas também no mesmo sentido, passo a alinhar meus fundamentos, tomando posição específica, para o fim de demonstrar que o entendimento mais correto, com o devido respeito àqueles que entendem em sentido contrário, é aquele que dispõe que os alimentos são devidos a partir da sentença de 1º grau quando cumulados com investigação de paternidade, jamais a partir da citação. Em primeiro lugar, aqueles que entendem que são devidos a partir da citação utilizam como fundamento o artigo 13, § 2º, da Lei de Alimentos, que dispõe o seguinte: “Em qualquer caso, os alimentos fixados retroagem à data da citação”. Penso que o fundamento está equivocado, já que o dispositivo está sendo mal interpretado. O § 2º do artigo 13 da Lei Especial só é aplicável aos casos do respectivo caput, ou seja, ação de separação, nulidade e anulação de casamento, revisão de alimentos e respectivas execuções, não se referindo especificamente à ação de alimentos propriamente dita. Reza o dispositivo legal: “O disposto nesta lei aplica-se igualmente, no que couber, às ações ordinárias de desquite, nulidade e anulação de casamento, à revisão de sentenças proferidas em pedidos de alimentos e respectivas execuções”. Assim, o § 2º sequer deve ser utilizado para a ação de alimentos propriamente dita. Qualquer disposição legal dispõe situações específicas em parágrafos, mas esses estão necessariamente ligados a seu caput, eis que regulam melhor a matéria ali disposta. Portanto, a frase “em qualquer caso” não tem o condão de estender aquilo que o próprio caput não previu. Ora, se o caput não previu nada no sentido de ter aplicação o disposto em sua norma, jamais poderia fazê-lo o § 2º. Destarte, os alimentos fixados retroagem à data da citação nos casos previstos no artigo 13, caput, da Lei de Alimentos, dentre os quais não consta a ação de alimentos propriamente dita. Dirão aqueles que entendem contrário: “mas então o que quis o legislador dizer?”. É muito simples. Nos casos previstos no artigo 13, caput, quando não forem fixados alimentos provisórios, aqueles fixados na sentença retroagem à data da citação. Afinal de contas, para quê servem os alimentos provisórios fixados na inicial pelo juiz ao despachá-la? Apenas para manter o alimentando durante a tramitação do feito, uma vez que o direito aos alimentos nasce não com a propositura da ação propriamente dita, mas com a sentença condenatória que dispuser nesse sentido. Então, se o juiz pode fixar alimentos provisórios ao despachar a inicial, como então retroagiriam estes à data da citação? Assim, o artigo 13, § 2º só tem cabimento nos casos previstos no caput, dentre os quais não se inclui a ação de alimentos, e isso se não tiverem sido fixados alimentos provisórios ao despachar o juiz a inicial. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 83-113, mar./abr.-2002 O segundo argumento em favor da tese aqui defendida diz respeito à questão do procedimento. A utilização da Lei nº 5.478/68 tem cabimento apenas no caso de prova pré-constituída de paternidade ou parentesco e segue um procedimento especial, em que é possível o arbitramento de provisórios. Já a ação de investigação de paternidade cumulada com alimentos segue o rito ordinário, não podendo os dispositivos daquela lei serem aplicados neste último caso, que tem procedimento próprio e diverso, até porque não existe prova pré-constituída na ação de investigação de paternidade cumulada com alimentos, visto que a paternidade será declarada apenas na sentença. Ademais, o título judicial é que institui a prova da paternidade para efeito de alimentos. Destarte, ainda que os alimentos retroagissem à data da citação, em caso de utilização do procedimento especial para propositura de ação de alimentos com base em prova pré-constituída, esquecendo-se tudo o que dissemos acima em relação à aplicação do artigo 13, § 2º, tal disposição não teria aplicação à investigação de paternidade cumulada com alimentos, que segue o rito ordinário justamente por não haver a prova pré-constituída. Terceiro argumento. Confundem-se aqueles que entendem em sentido contrário ao dizer que a ação de investigação de paternidade cumulada com alimentos gera efeitos ex tunc, ou seja, retroativos, uma vez que pretendem que as duas ações tenham o mesmo efeito de apenas uma. Melhor explicando. Quando se diz que uma ação é cumulada a outra, quer-se dizer que duas ações estão sendo propostas ao mesmo tempo, só que conjuntamente. Pois bem. Cada ação tem um provimento jurisdicional específico, ou seja, declaração, condenação ou constituição. A sentença declaratória gera efeitos ex tunc, ou seja, que retroagem à data da citação ou mesmo da propositura, pois apenas declaram uma realidade fática já existente. Já as condenatórias geram efeitos ex nunc, ou seja, a partir da sentença, pois o indivíduo só pode ser condenado a alguma coisa a partir do momento em que o órgão assim determinado pela Constituição Federal, ou seja, o Poder Judiciário, determinar. Seguindo esse raciocínio para o caso aqui discutido, temos que a sentença, na ação de investigação de paternidade, por ter cunho declaratório, gera efeitos ex tunc, ou seja, retroage à data da citação, pois que somente declara um fato já existente no mundo real, já a ação de alimentos tem cunho condenatório, ou seja, gera efeitos ex nunc, visto que o demandado só pode ser obrigado a cumprir algo após tal mandamento ser determinado na sentença. Exceção a isso são os alimentos provisórios, a tutela antecipada e os provimentos cautelares. Portanto, por ter cunho condenatório, a parte da decisão que determina que o demandado pague alimentos só pode ter aplicação a partir da sentença, pois gera efeitos ex nunc. Aliás, o caráter condenatório da ação de alimentos é reforçado pelo artigo 520, II, do Código de Processo Civil ao determinar que a apelação da sentença que condenar à prestação de alimentos será recebida apenas no efeito devolutivo. O equívoco da corrente contrária é justamente querer dar efeitos retroativos não só à parte da decisão relativa à investigação de paternidade, mas também à parte da decisão relativa à ação de alimentos, o que é um erro, já que dizem respeito a duas ações distintas e com efeitos diversos, devendo cada parte da sentença ser tratada de forma diferente. Tanto é assim que, se houver apelação da sentença que julgou procedente ação de investigação de paternidade cumulada com alimentos, o recurso será recebido em ambos os efeitos na parte relativa à investigação de paternidade e apenas no efeito devolutivo na parte relativa aos alimentos (Código de Processo Civil, artigo 520, II), ou seja, cada parte da sentença terá tratamento diverso. Quarto argumento. O fundamento utilizado pelo nobre relator do acórdão acima. Quando os alimentos são devidos a partir da sentença, fica inibido o desafio de ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 83-113, mar./abr.-2002 103 104 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura lide temerária e é possibilitado ao filho reconhecido a satisfação do seu sustento no curso do processo. Aqueles que entendem de forma diversa poderão dizer, então, que o raciocínio é injusto, visto que não protege o investigante, já que a ação pode tramitar por vários anos e, em conseqüência, causar prejuízo ao requerente, que não recebe nada até a data da sentença. Contudo, tal alegação não convence. O Código de Processo Civil coloca à disposição dos interessados todos os meios legais para que o indivíduo possa se proteger contra os efeitos do tempo da tramitação do processo. Desse modo, caso o investigante queira que o investigado contribua com sua criação durante a tramitação do feito, poderá seguir dois caminhos: solicita a antecipação dos efeitos da tutela, com fundamento no artigo 273 do Código de Processo Civil, no próprio bojo dos autos; ou, então, interpõe ação cautelar de alimentos provisionais incidentalmente à ação principal, com base no artigo 852, II do Código de Processo Civil. Ambas as hipóteses são possíveis, uma vez que os alimentos, ainda que a ação seja julgada improcedente, são irrepetíveis. Fica, dessa forma, afastada a tese de injustiça do raciocínio. Quinto argumento. O artigo 5º da Lei nº 883/49 prevê que o autor da ação de investigação de paternidade terá direito a alimentos a partir da sentença que lhe for favorável. Destarte, o legislador previu especificamente o direito a alimentos em caso de procedência de ação de investigação de paternidade apenas a partir da sentença favorável ao autor investigante, ou seja, existe previsão legal regulando a questão. Mas não é só. Entendo que o artigo 7º da Lei nº 8.560/92 botou fim à discussão que se trava na jurisprudência, eis que, da mesma forma que o artigo 5º da Lei nº 883/49, novamente regulou o legislador a questão, dispondo mais uma vez que a sentença de 1º grau que reconhecer a paternidade deverá fixar alimentos provisionais ou definitivos ao reconhecido. Em vários julgados, como veremos em alguns casos que citarei, os defensores da corrente contrária alegam que não se pode dar tratamento diferente ao reconhecido voluntariamente e àquele que foi reconhecido pela via judicial. No entanto, a tese não vinga. Não está sendo dado tratamento diferente. Se o pai reconhece voluntariamente e não presta alimentos também voluntariamente, o filho deverá propor ação de alimentos e seu genitor será condenado a pagá-los também somente a partir da sentença, já que, como vimos anteriormente ao defendermos o terceiro e quarto argumentos, os efeitos da sentença na ação de alimentos são ex nunc, ou seja, passam a valer a partir daquele momento, sendo os alimentos provisórios apenas e tão-somente para sustento do alimentando durante a tramitação do feito e os meios legais previstos no Código de Processo Civil também possibilitam o pagamento de alimentos durante o curso do feito quando for cumulada a ação com a investigação de paternidade por intermédio da tutela antecipada (Código de Processo Civil, art. 273) e da cautelar de alimentos provisionais (Código de Processo Civil, art. 852, II). Dessa forma, não há qualquer tratamento diferente e o fundamento da corrente contrária não tem cabimento. Por tais argumentos, entendo, com o devido respeito àqueles que defendem tese contrária, que, na ação de investigação de paternidade cumulada com alimentos, esses são devidos a partir da sentença, jamais da citação. b2) Tribunal de Justiça do Paraná - RT 755/369-373 “Investigação de paternidade - Cumulação com alimentos - Termo Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 83-113, mar./abr.-2002 inicial para pagamento das verbas alimentícias que retroage à data da citação - Aplicação do art.13, § 2º, da Lei nº 5.478/68 - Voto vencido”. Ementa oficial: Nas investigatórias de paternidade cumuladas com alimentos, tem aplicação o § 2º do art. 13 da Lei de Alimentos, que prevê a retroação dos alimentos fixados à data da citação, não havendo qualquer distinção entre filhos havidos ou não da relação de casamento. Ementa do voto vencido, pela Redação: ‘Nas ações de investigação de paternidade combinada com ação de alimentos serão estes devidos a partir da sentença que os concedeu’.” Ap. nº 56.403-0, Segredo de Justiça, 2ª Câm., j. 04.03.1998, rel. des. RONALD ACCIOLY. Vejamos o voto do relator: “Referentemente ao termo inicial dos alimentos, é de ser aplicado o § 2º do art. 13 da Lei nº 5.478/68: Em qualquer caso, os alimentos fixados retroagem à data da citação. E, como proclamado pela jurisprudência, esse preceito é também aplicado às investigações de paternidade cumuladas com alimentos, notadamente depois da nova Constituição, que estabeleceu igualdade de direitos entre os filhos havidos ou não da relação de casamento (Constituição Federal, art. 227, § 6º)”. Consoante decidiu este E. Tribunal, por seu 1º Grupo de Câmaras Cíveis: “Investigação de paternidade cumulada com alimentos - Dies a quo da prestação alimentícia Retroatividade à citação do réu - Embargos infringentes - Voto vencido que estipulava os alimentos a partir da sentença. O termo de início da obrigação alimentar, quando reconhecida em juízo a paternidade, é a citação do réu, precedentes do Superior Tribunal de Justiça (in REsp nº 19.428-0-SP). A sentença que julga ação de investigação de paternidade cumulada com alimentos é meramente declaratória, pois apenas proclama o estado de filiação, que é precedente existindo desde o nascimento, em tais caso, os efeitos se operam ex tunc, retroagindo à data da citação do réu. Embargos rejeitados”. Igualmente a E. 1ª Câm. Cív. (rel. des. PACHECO ROCHA) decidiu que: “Investigação de paternidade - Alimentos - Termo inicial - Valor. Procedente a investigação de paternidade, os alimentos fixados pela respectiva sentença são devidos desde a data da citação, à vista do § 2º do art. 13 da Lei nº 5.478/68, de 25.07.1968 (em qualquer caso, os alimentos fixados retroagem à data da citação), aplicável por força do § 6º do art. 227 da Constituição Federal” (Ac. nº 11.461, na Ap. Civ. nº 40.020-4). Anote-se, ainda, que sobre a questão, YUSSEF SAID CAHALI, fazendo revisão do seu posicionamento consignado em edições anteriores da sua clássica obra Dos Alimentos, salienta que, na composição dos dispositivos em confronto (art. 13, § 2º, da Lei nº 5.478/68 e arts. 4º e 5º da Lei nº 883/49), que originaram “inconciliáveis dissensões na sua aplicação pelos tribunais”, em especial em face da alteração constitucional (art. 227, § 6º, da Constituição Federal de 88), que não mais admite qualquer tratamento discriminatório decorrente da natureza da filiação, conclui: “a) são devidos alimentos ao filho ilegítimo desde a citação do devedor na ação ordinária de alimentos, cumulada ou não com investigatória de paternidade, desde que ocorrida a citação posteriormente a 05.10.1988, data da nova Constituição” ... “A sentença que acolhe ação de investigação de paternidade não tem caráter constitutivo, sendo que apenas declara uma situação de fato que já existia e que o réu, injustificadamente, voluntariamente não reconheceu, nem antes, nem imediatamente após a citação. Até o art. 219 do Código de Processo Civil justifica essa conclusão que, também, evita protelações injustificáveis do investigado em detrimento dos gastos alimentares, portanto da sobrevivência do ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 83-113, mar./abr.-2002 105 106 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura alimentando. E o art. 5º da Lei nº 883/49 não desabona essa conclusão, pois apenas trata de alimentos provisionais, que, para serem deferidos, segundo a lei, exige-se sentença favorável de primeira instância; os alimentos definitivos, à evidência, derivam também da sentença de procedência, mas, como decorrem do reconhecimento da paternidade de caráter declaratório, com efeitos ex tunc, retroagem à data da citação, como é comum em qualquer ação de alimentos. Tem-se em conta, ainda, que é uma injustiça terrível tratar mais severamente um pai que, voluntariamente, reconheceu a paternidade, do que aquele que, não cumprindo com seu dever, necessitou ser acionado por meio da investigatória”... “Em resumo: se, com relação ao filho legítimo ou reconhecido, são deferidos alimentos desde a data da citação na ação especial da Lei nº 5.478/68 (art. 13, § 2º), não só a eqüidade como também agora o princípio constitucional da igualdade asseguram ao filho ilegítimo reconhecido judicialmente o direito aos alimentos definitivos, que assim se constituem a partir do trânsito em julgado da sentença que julgou procedente a investigatória de paternidade, e desde a citação do réu” (Dos Alimentos, 2ª ed., 2ª tiragem, RT, 1994, pp. 491, 494 e 500). Com a devida vênia não só ao nobre relator, e em que pese a autoridade do mestre YUSSEF SAID CAHALI, ambos usam argumentos equivocados para a defesa de sua tese. Em primeiro lugar, tanto o julgador como o mestre argumentam a utilização do artigo 13, § 2º da Lei de Alimentos). Tal utilização, como vimos ao apresentar o primeiro e o segundo argumento de que o marco inicial é a sentença, é descabida pela inexistência de prova pré-constituída para utilizar o dispositivo especial em caso de ação pelo rito ordinário, cuja sentença será o título, ou seja, a prova para efeito de alimentos. Ademais, o dispositivo é aplicável somente aos casos do caput, dentre os quais não está a ação de alimentos propriamente dita. O segundo equívoco é querer dizer que está sendo dado tratamento diferenciado entre o voluntariamente reconhecido e o judicialmente. Ledo engano. A decisão de alimentos é condenatória e esses são devidos a partir da sentença, já que os alimentos provisórios servem, apenas e tão-somente, para sustentar o autor no curso da demanda, não havendo qualquer diferenciação entre os dois casos. Aliás, o terceiro erro é dizer que é injusto fazer o autor esperar a sentença para receber alimentos. Ora, mas se é assim na ação de alimentos pelo rito especial, onde a questão é solucionada com a sentença, podendo o requerente ser sustentado com os alimentos provisórios, por que não ser assim naquela cumulada com investigação de paternidade pelo rito ordinário, em que também o autor pode solicitar a tutela antecipada ou interpor cautelar incidental de alimentos provisionais? Por falar em procedimento, jamais o dispositivo de um texto especial poderia ser aplicado ao procedimento ordinário. Portanto, não existe nenhuma diferenciação. Mais um argumento descabido. Efeitos ex tunc tanto para a ação de investigação de paternidade como para a ação de alimentos, o que, como vimos, é errado, já que são duas ações diferentes com efeitos diferentes, sendo uma declaratória com efeitos ex tunc (investigação) e outra condenatória com efeitos ex nunc (alimentos). Por fim, esqueceu-se o eminente doutrinador de que a eqüidade só pode ser utilizada em caso de autorização legislativa, nos termos do artigo 127 do Código de Processo Civil. Pergunto: Qual dispositivo permite a aplicação do art. 13, § 2º da Lei nº 5.478/68 às ações de investigação de paternidade cumulada com alimentos pelo rito ordinário? Absolutamente nenhum! Portanto, os argumentos expendidos não convencem. Vejamos agora o teor do voto vencido da lavra do desembargador ALTAIR PATITUCCI: “Em voto prolatado, o eminente des. OTO LUIZ SPONHOLA assim se pronunciou: ‘Não reconhecida a paternidade; só a partir do momento processual em que se Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 83-113, mar./abr.-2002 proclama judicialmente começa o alimentando a ter legitimidade para sua concessão. Se a relação de parentesco inexiste antes da sentença, não se pode deferir a data da citação como termo inicial para o cômputo dos valores econômicos atinentes a alimentos. A sentença do reconhecimento da paternidade é o título que habilita a pretensão. Antes dela e sem ela, inexiste direito a alimentos de filho ilegítimo ou adulterino. Tanto é verdade que o filho (se casado o pai indigitado) só perceberá alimentos acaso provada, incidentalmente, a alegada paternidade’”. Conclui-se, pois, que, sendo o esteio jurídico da ação de alimentos os arts. 4º e 5º da Lei nº 883/49, inicia-se a obrigação alimentar a partir da sentença que deu pela procedência do pedido declaratório da paternidade. Em recente julgado, nesta 2ª Câm. Cív. Na Ap. nº 50.922-6, em que foi relator o des. SIDNEY MORA, colhe-se, verbis: “A discussão sobre o momento inicial da fluência dos alimentos, se a partir da citação ou da sentença, parece estar agora superado com a edição da Lei nº 8.560/92. Referida lei dispõe no seu art. 7º: ‘Sempre que na sentença de primeiro grau se reconhecer a paternidade, nela se fixarão os alimentos provisionais ou definitivos do reconhecido que deles necessite’.” Na sentença, portanto, identifica-se o marco inicial para fluência dos alimentos concedidos em ação de investigação de paternidade cumulada com alimentos. O Superior Tribunal de Justiça, modificando entendimento anterior, adotado no julgamento do Resp. nº 2.203-SP (Lex, JSTJ e TRF, 19/85), passou a entender que: “Na ação de investigação de paternidade cumulada com pedido de alimentos, serão estes devidos desde a sentença que o concedeu, inobstante pendente recurso, eis que, consoante dispõe o art. 520, II, do Código de Processo Civil, a apelação que condenou à prestação de alimentos será recebida no efeito devolutivo” (Resp. nº 36.066-8-SP, in Lex, JSTJ e TRF 74/154) (Ac nº 13.394-2). Desse modo, entendo que a razão está com o defensor do voto vencido. b3) Tribunal de Justiça do Acre - RT 750/336-343 “Investigação de paternidade - Cumulação com alimentos - Pensão alimentícia - Fixação da verba a partir da data da citação - Inteligência do art.13, § 2º, da Lei nº 5.478/68”. Ap. nº 97.001555-0, Segredo de Justiça, j. 27.10.1997, rel. des. JERSEY NUNES. No corpo do acórdão, o relator defendeu a tese de que cabível é a aplicação do disposto no artigo 13, § 2º, da Lei de Alimentos, o que, como já visto, é equivocado. Reporto-me ao que foi dito antes sobre a não-aplicação deste dispositivo para não me tornar repetitivo. b4) Tribunal de Justiça de São Paulo - JTJ 214/122-125 - 2ª Câmara b4) de Direito Privado - desembargadores THEODORO GUIMARÃES, b4) J. ROBERTO BEDRAN, VASCONCELOS PEREIRA e CEZAR PELUSO (relator) ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 83-113, mar./abr.-2002 107 108 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura “Investigação de paternidade - Cumulação com alimentos - Procedência - Prestações devidas a partir da citação no processo de conhecimento - Aplicação do artigo 13, § 2º, da Lei Federal nº 5.478, de 1968 - Inteligência do artigo 7º da Lei Federal nº 8.560, de 1992 - Sentença confirmada”. Os eminentes julgadores entenderam que o artigo 7º da Lei nº 8.560/92 regula a data da fixação, não da exigibilidade das prestações, sob o seguinte fundamento: “O disposto no artigo 7º da superveniente Lei Federal nº 8.560, de 29.12.92, deve ser entendido apenas como referência à data de fixação, não de exigibilidade dos alimentos, até por não conduzir, contra o princípio da isonomia (artigos 5º, caput, e 227, § 6º, da Constituição da República), à interpretação e ao resultado absurdos de deixar sem explicação lógico-jurídica o tratamento normativo mais severo ao pai que tenha espontaneamente reconhecido a paternidade, o qual responde sempre, desde a citação, pelos alimentos exigidos, e a uma classe particular de filhos, a dos não reconhecidos espontaneamente, os quais só teriam direito a alimentos a partir da sentença que lhes declare a filiação!”. Com o devido respeito, o raciocínio não deve prosperar. Como já argumentei alhures, não existe tratamento diferenciado entre o que reconhece a filiação voluntariamente ou judicialmente. Proposta a ação de alimentos contra o pai que reconheceu seu filho voluntariamente, esse só será condenado a prestar os alimentos a partir da sentença, visto que se trata de uma ação condenatória, como demonstra o artigo 520, II, do Código de Processo Civil (condenar à prestação de alimentos), com efeitos ex nunc. O artigo 13, § 2º da Lei nº 5.478/68 não é aplicável à ação de alimentos propriamente dita, mas às de separação, nulidade e anulação de casamento, revisão de alimentos e respectivas execuções, hipóteses previstas no caput do dispositivo ao qual está intimamente ligado, só tendo cabimento a aplicação desta norma nestas ações citadas e, ainda assim, em caso de não haver fixação de provisórios. Portanto, o dispositivo tem sua aplicação restrita àquelas ações previstas no caput do artigo 13. Sendo assim, não só no caso de reconhecimento voluntário, mas também no de reconhecimento judicial, os alimentos são devidos a partir da sentença. A questão dos provisórios na lei especial tem por fim garantir o sustento do autor durante a tramitação do feito. Ora, no caso da ação de alimentos cumulada com investigação de paternidade, pode o requerente solicitar a antecipação da tutela (Código de Processo Civil, art. 273) nos próprios autos ou incidentalmente propor a cautelar de alimentos provisionais (Código de Processo Civil, art. 852, II), e, portanto, não será prejudicado de forma alguma, não vingando a tese de tratamento diferenciado. Até porque não vejo como aplicar um dispositivo ligado a um procedimento especial ao processo que tramita pelo rito ordinário. Além disso, como utilizar a Lei 5.478/68 que exige prova pré-constituída, se o título judicial do reconhecimento de paternidade é que possibilitará o pedido de alimentos definitivos? Absolutamente injurídico e inviável, não havendo se falar em ferimento ao princípio da isonomia. b5) Tribunal de Justiça de São Paulo - JTJ 220/206-208 - 3ª Câmara b5) de Direito Privado - desembargadores TOLEDO CÉSAR, b5) ALFREDO MIGLIORE e FLÁVIO PINHEIRO “Investigação de Paternidade - Cumulação com alimentos - Fixação de provisórios - Não cabimento - Verba devida somente a partir da Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 83-113, mar./abr.-2002 sentença de procedência da ação investigatória - Recurso provido” Agravo de Instrumento nº 110.747-4 (Voto nº 15.481). Os julgadores entenderam que o pressuposto lógico para o pagamento de alimentos definitivos é a procedência da investigação de paternidade. A própria Procuradoria de Justiça entendeu que os alimentos são devidos a partir da sentença. Vejamos o teor de parte da fundamentação: “No mais, como consta da decisão que atribuiu efeito suspensivo ao agravo, decisões superiores têm entendido que, nas ações de investigação de paternidade, os alimentos devem ser fixados a partir da sentença de procedência, e não desde a citação. Na ponderação da douta Procuradoria-Geral de Justiça, ‘se a paternidade forçada fica reconhecida necessariamente com a prolação da sentença ou acórdão, o que anteriormente existe é mera expectativa de direito que se torna realidade quando o autor da demanda é proclamado ganhador. Tem-se, pois, data venia, que mais coerente será admitir que os alimentos devem ser pagos somente da data da decisão em diante’” (fls. 85). Mesmo porque a previsão inserta na Lei nº 5.478, de 1968, especificamente no artigo 13, § 2º (“em qualquer caso, os alimentos fixados retroagem à data da citação”), não tem aplicabilidade às ações de alimentos que dependem, como pressuposto, da própria investigação da paternidade. O relator ainda cita julgado do Superior Tribunal de Justiça (4ª Turma): “Alimentos - Investigação de paternidade - Termo a quo. De acordo com orientação atualmente predominante nesta Quarta Turma, o termo a quo da pensão alimentícia fixada na sentença que julga procedente ação de investigação de paternidade deve corresponder à data da publicação da sentença. Inaplicação da regra do artigo 13 da Lei de Alimentos, que pressupõe prova pré-constituída da filiação” (Recurso Especial nº 131.715-SP, DJU de 1º.12.97). Dessa forma, não só os julgadores, mas também o próprio parquet entendeu que os alimentos são devidos a partir da sentença, não da citação, posto que a declaração de paternidade é pressuposto lógico do pedido de alimentos. b6) Superior Tribunal de Justiça - RT 759/190-195 - 4ª Turma b6) - ministros SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA (relator), b6) CÉSAR ASFOR ROCHA, RUY ROSADO DE AGUIAR b6) e BARROS MONTEIRO Este julgamento foi deixado para ser o último a ser citado, justamente em razão da riqueza da explanação do eminente ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA defendendo a tese da qual comungo no sentido de os alimentos serem devidos a partir da sentença, quando o pedido for cumulado com a investigação de paternidade, visto que seus fundamentos coincidem com vários dos argumentos que defendi ao analisar o primeiro julgado relativo a este tema. ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 83-113, mar./abr.-2002 109 110 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura “Alimentos - Pedido cumulado com investigação de paternidade Inexistência de prova pré-constituída da paternidade - Verba devida a partir da sentença, ainda que sujeita a apelação - Inaplicabilidade do art. 13 da Lei nº 5.478/68 - Voto vencido. Ementa Oficial: A Lei nº 5.478/68 (art. 13), pela sua própria teleologia, não incide nas ações em que se postulam alimentos inexistindo prova pré-constituída da paternidade. Destarte, em não se aplicando a referida lei, o dies a quo da incidência dos pretendidos alimentos não pode ser a data da citação, mas sim da sentença, mesmo que sujeita a apelação (Código de Processo Civil, art. 520, II)”. REsp. nº 152.895-PR, Segredo de Justiça, 4ª T., 21.05.1998, rel. min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, DJU 08.09.1998. O brilhante ministro, dentre outras colocações, cita o julgado extraído da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça e arrolado pelo interessado a seu favor, no sentido de os alimentos serem devidos a partir da sentença, assim se manifestando: “Fundou-se aquele r. aresto na natureza declaratória da ação de investigação de paternidade, trazendo a lume lições de CARLOS MAXIMILIANO, PONTES DE MIRANDA e ARNOLDO MEDEIROS DA FONSECA, que, data venia, não se ajustam ao instituto dos alimentos, sobretudo porque a ação de alimentos é de natureza condenatória, e não meramente declaratória, pelo que dá ensejo a execução por quantia certa (Código de Processo Civil, art. 732), além das hipóteses especiais previstas nos arts. 733-734 do mesmo diploma. Como se vê, não há identidade ou similitude de situações”. A bela argumentação desenvolvida naquele julgado, se ajustável ao reconhecimento da paternidade, com eficácia retroativa da decisão por força da sua natureza declaratória, pertinência alguma tem com a ação de alimentos, de carga condenatória, como já anotado. Com efeito, a Lei nº 5.478/68, art.13, trata das hipóteses de “desquite, nulidade e anulação de casamento, à revisão de sentenças proferidas em pedidos de alimentos e respectivas execuções”, consoante expressa o seu caput, motivo pelo qual, em qualquer desses casos, de prova pré-constituída, os alimentos retroagem à data da citação. Já o artigo 5º da Lei nº 883/49 se insere em um diploma caracterizado pela constante evolução verificada, através dos anos, no Direito de Família, daí suas freqüentes alterações. Diz ele: “Na hipótese de ação investigatória da paternidade, terá direito o autor a alimentos provisionais desde que lhe seja favorável a sentença de primeira instância, embora se haja, desta, interposto recurso”. Como se nota, de plano, o que objetivou o legislador, sabiamente, diga-se de passagem, foi amparar aqueles que, embora sem a prova pré-constituída, alcançassem uma sentença favorável, mesmo que sujeita a recurso, porque, então, já disporiam de um dado concreto, e não simples afirmações de filiação. Ademais, não foi por outro motivo que o legislador de 1973, ao editar o Código de Processo Civil, ao disciplinar os alimentos provisionais no Livro do processo cautelar, previu também o seu deferimento “nos demais casos expressos em lei” (Código de Processo Civil, art. 852, III), dentre os quais, como lembra THEODORO JR. (Processo Cautelar, Leud, 1983, cap. X, nº 258), se coloca a hipótese do art. 5º da Lei nº 883/49. Em suma, segundo a sistemática vigente, em casos de prova pré-constituída incide a Lei nº 5.478/68, com a imposição dos provisionais, salvo dispensa; para os casos de Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 83-113, mar./abr.-2002 inexistência daquela, o art. 5º da Lei nº 883/49; para as hipóteses de pretensão cautelar, o disposto no art. 852, Código de Processo Civil. Na doutrina, infelizmente, parcos são os pronunciamentos, limitando-se esses a mencionar ou transcrever os textos legais. MARCO AURÉLIO S. VIANA (Teoria e Prática do Direito de Família, Saraiva, 1983, nº 157, p. 219), porém, é explícito, ao escrever: “Na hipótese de ação investigatória da paternidade, o autor terá direito aos alimentos provisionais apenas quando a sentença de primeira instância lhe seja favorável, ainda que interposto recurso (art. 5º da Lei nº 883/49)”. Nesse mesmo sentido, ainda mais enfático é o magistério de YUSSEF CAHALI (Dos Alimentos, Ed. RT, 1984, cap. X, nº 3, p. 556), verbis: “Quanto aos descendentes, sem a prova pré-constituída da relação de parentesco, o ilegítimo não terá ação fundada na Lei nº 5.478/ 68; resta-lhe, apenas, as vias ordinárias da ação de alimentos da Lei nº 883/49 (art. 4º), com o seu pedido cumulado ou incidente de investigação de paternidade. Neste caso, a rigor, os alimentos provisionais somente poderão ser concedidos com a sentença de procedência da ação, embora pendente o recurso (art. 5º da Lei nº 883/49)”. Em se tratando da tese ora em debate, todavia, de alimentos cumulados com investigação de paternidade, esta Turma, no REsp. nº 56.905-RS (DJ 29.05.1995), mudou, por 4 votos a um, sua jurisprudência. A ementa desse precedente proclamou: “Investigação de paternidade. Alimentos. Início. Os alimentos, na ação de paternidade julgada procedente, são devidos desde a sentença. Peculiaridade do caso. Art. 5º da Lei nº 883/49. Voto vencido”. Assinalou, na tese, o voto condutor, da relatoria do min. RUY ROSADO DE AGUIAR: “2. A regra do § 2º, do art. 13 da Lei nº 5.478/68: ‘Em qualquer caso, os alimentos fixados retroagem à data da citação’, refere-se especificamente às situações criadas nos processos regulados pela Lei de Alimentos, a qual pressupõe uma prova pré-constituída da obrigação alimentar e, por isso mesmo, impõe ao juiz o dever de fixar alimentos provisórios já ao despachar a inicial (arts. 2º e 4º). Como, nos processos submetidos a esta lei, sempre serão deferidos alimentos provisórios, a eventual revisão deles, na forma do § 1º, do art. 13, implicará a retroação, não integral (à data do despacho inicial), mas à da citação (§ 2º do art. 13). Diferentemente ocorre na ação de investigação de paternidade, onde se está em busca da prova da relação de filiação, suporte do dever alimentar. Para estes, não se deferem provisórios, nomenclatura restrita à Lei nº 5.478; sobrevindo sentença favorável ao investigante, o art. 5º da Lei nº 883/49 autoriza a concessão de provisionais. Penso eu que apenas a partir da sentença, uma vez que não existe, para o caso, regra semelhante àquela do art. 13, que favorece os que encontram abrigo na lei especial. O sistema legal, assim interpretado, merece aplausos. Enquanto na hipótese da Lei nº 5.478 haveria apenas a necessidade de reajustar ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 83-113, mar./abr.-2002 111 112 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura prestações devidas desde a citação, nas ações de investigação de paternidade o réu seria confrontado, ao final de um processo sabidamente demorado, com o dever de pagar o valor equivalente a 30, 40 ou mais prestações, relativas ao tempo pretérito, o que significa a constituição de uma dívida dificilmente suportável pelo comum dos cidadãos, à qual se acrescenta a pena de prisão. Nessa linha de raciocínio pondero, ainda, que o investigante chegou à sentença de primeiro grau independentemente do deferimento dos provisionais e a sua concessão a posteriori, com efeito retroativo, mais servirá para indenizar o autor do que para alimentálo, o que parece ser um desvio de finalidade. O caso dos autos evidencia em a gravidade da situação que resultará do deferimento da pensão desde a citação inicial, para a qual chamo a atenção da E. Turma: o réu, que é garçom, está sendo condenado a pagar uma dívida de 96 salários mínimos, correspondente ao tempo pretérito, desde março de 1987, pois a ação se arrasta há mais de oito anos, além das prestações vincendas. É fácil deduzir que o investigado não tem condições econômicas para fazer frente a esse débito, criando-se, com isso, uma situação insustentável, com a constituição de dívida impagável, cujo descumprimento, porém, pode resultar em prisão. Se o devedor percebe 4,5 salários mínimos por mês, deverá passar os próximos três anos reservando a totalidade da sua renda para resgatar o débito já vencido e pagar a prestação mensal vincenda, que é de um salário mínimo mensal’.” Mais recentemente, o mesmo posicionamento foi fixado no REsp. nº 142.569-SP (DJ 16.02.1998), da relatoria do min. RUY ROSADO DE AGUIAR, assim ementado: “Os alimentos em favor do filho que tem sua paternidade em sentença de procedência de ação de investigação de paternidade devem ser pagos a partir da data da sentença, e não da citação”. E assim, pois, votou o ministro SÁLVIO, expondo a realidade dos fatos e citando posicionamentos que bem mostraram a inaplicabilidade do artigo 13, § 2º, da Lei de Alimentos, tese também defendida pelos ministros RUY ROSADO DE AGUIAR e CÉSAR ASFOR ROCHA. 10 - Bibliografia 1. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil, v. V - Direito de Família, 1ª ed., Editora Atlas, 2001, pp. 244 a 255. 2. VIANA, Marco Aurélio S. Curso de Direito Civil, v. 2, Direito de Família, 2ª ed., Editora Del Rey, 1998, pp. 234 a 247. 3. RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil, v. 6, Direito de Família, 25ª ed., Editora Saraiva, 2000, pp. 318 a 327. 4. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, 5º v., Direito de Família, 14ª ed., Editora Saraiva, 1999, pp. 330 a 340. 5. SILVA PEREIRA, Caio Mário da. Instituições de Direito Civil, v. V, Direito de Família, 11ª ed., Editora Forense, 1998, pp. 197 a 208. 6. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil, 2º v., Direito de Família, 34ª ed., Editora Saraiva, 1997, pp. 260 a 265. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 83-113, mar./abr.-2002 7. GOMES, Orlando. Direito de Família, 11ª ed., Editora Forense, 1999, pp. 345 a 356 e 364 a 367. 8. WALD, Arnold. Curso de Direito Civil Brasileiro - O novo direito de família, 12ª ed., Editora Revista dos Tribunais, 1999, pp. 173 a 184, 423 a 443, 454 a 460 e 468 a 471. 9. LEVENHAGEN, Antônio José de Souza. Código Civil, 2, Direito de Família, 7ª ed., Editora Atlas, 1996, pp. 211 a 214. 10. PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito Privado, tomo IX, Direito de Família, Editora Borsoi, 1955, pp. 86 a 98. 11. RT 748/344-347. 12. RT 755/369-373. 13. RT 750/336-343. 14. RT 759/339-343 e 190-195. 15. RT 778/266-267. 16. RT 791/344-346. 17. JTJ 210/203-204. 18. JTJ 220/206-208. 19. JTJ 214/122-125. 20. JTJ 208/254-256. ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. 113 Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 83-113, mar./abr.-2002 114 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura 115 ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. 116 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. 117 RENZO LEONARDI Juiz do 2o Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo 1. Meio Ambiente Pode-se dizer que meio ambiente é o habitat, o local onde os seres vivos habitam. Em análise mais apurada, é o conjunto das condições ecológicas de um lugar. É matéria de interesse da ciência da vida. O ramo da Biologia que estuda as relações dos seres entre si e o meio ambiente é a Ecologia. Surge a Ecologia com o biólogo alemão ERNEST HEINRICH HAECKEL (1834-1919) propondo, em seu Morfologia Geral dos Organismos (1866), os delineamentos marcantes e o nome da disciplina, uma junção das palavras gregas oikos (casa) e logos (estudo). Para o legislador ordinário, meio ambiente é “…o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas” (art. 3º, I, da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981). É importante dizer que o legislador pátrio, como já se vislumbra, sobretudo quando investido de poderes constitucionais originários, axiologicamente considerou o meio ambiente digno de proteção jurídica, pois reconheceu a sua exauribilidade e a dependência da existência humana da manutenção do seu equilíbrio. Segundo dispõe a Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 117-126, mar./abr.-2002 118 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura Constituição Federal do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988, em seu Título VIII - Da ordem social, Capítulo VI - Do meio ambiente, art. 225: “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.” 1.1. Meio Ambiente do Trabalho. Abrangência. Se o local em que os seres vivos habitam é o meio ambiente, o local onde os homens labutam é o meio ambiente do trabalho, objeto de estudo da primeira parte da nossa pesquisa. Nesse diapasão, a CF, em seu art. 200, VIII, inseriu, explicitamente, o ambiente de trabalho dentro do conceito amplo de meio ambiente. A doutrina mais autorizada, por seu turno, há tempos compreende o ambiente laboral como parte integrante do meio ambiente, e JOSÉ AFONSO DA SILVA, ao analisar a matéria, nomeou o ambiente laboral como sendo uma espécie de meio ambiente artificial (Direito Constitucional Ambiental, Malheiros, 4ª ed., 1995). A preocupação hodierna com o local de trabalho e as suas influências sobre os que nele obram, e mesmo sobre os estão em área circunvizinha à atividade econômica, é tão acentuada que a Lei Maior, ao iniciar o Título VII - Da ordem Econômica e Financeira - no inciso VI, art. 170, assegura, como princípio, a defesa do meio ambiente. Senão vejamos: “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: ... VI - defesa do meio ambiente.” Desta feita, e como há de se inferir da conjugação dos mencionados dispositivos constitucionais, a defesa e proteção do ambiente trabalhista ultrapassa o âmbito de interesses dos obreiros, individual ou coletivamente considerados, açambarcando a toda a sociedade. 1.2. Proteção do Meio Ambiente do Trabalho. O direito ao meio ambiente seguro e adequado é um dos primeiros a constituir o conteúdo do contrato de trabalho, devendo ser assegurado de várias maneiras, como veremos a seguir. O meio ambiente do trabalho pode ser protegido, a priori ou a posteriori, afora sua preocupação conscientizadora-participativa. Na primeira modalidade as atitudes têm caráter eminentemente preventivo. Procura-se evitar a degradação ambiental antes que essa aconteça. É o que preceitua, além da CF, art. 225, § 1º, IV, o art. 192, § 2º, da Constituição do Estado de São Paulo, ao condicionar a concessão e renovação de licença ambiental — necessária à explo- Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 117-126, mar./abr.-2002 ração econômica de alguma atividade — à aprovação em Estudo Prévio de Impacto Ambiental. Outros métodos preventivos são a adoção de controle de poluição,(1) de planos de contingência a serem usados em momentos catastróficos, de políticas educacionais formadoras de consciência ecológica, de EPCs e de EPIs etc. A segunda modalidade de proteção, de enfoque reparador ou recuperador, objetiva o status quo ante do meio ambiente à lesão provocada. Tal desiderato pode ser alcançado, dentre outras formas, mediante a responsabilização dos causadores da degradação ambiental, seja na esfera civil, seja na penal, seja na administrativa. É o que reza o § 3º, do art. 225, da CF: “§ 3º. As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.” Assim, aplicando-se esses norteamentos genéricos ao ambiente laboral, temos que o empregador está obrigado a promover a adequação do local da atividade segundo os lineamentos fixados em lei, diminuindo a sua periculosidade e insalubridade tanto aos obreiros como ao ambiente externo. Caso contrário, ficará à mercê das sanções legais, muitas das quais são extremas. As normas protetivas do meio ambiente do trabalho, afora as dispostas na Lei nº 6.938/81, são encontradiças na CLT, em todo o seu Capítulo V, do título II (da segurança e da medicina do trabalho), e nas Leis de nos 8.212 e 8.213, ambas de 24 de julho de 1991, e regulamentos. Talvez o mais importante dos regulamentos, pelo menos sob o prisma do trabalhador, seja a Norma Regulamentadora nº 9, com a redação dada pela Portaria nº 25, de 29 de dezembro de 1994, a qual se destina ao Programa de Prevenção de Riscos Ambientais. Dita norma ordena “a obrigatoriedade da elaboração e implementação, por parte de todos os empregadores e instituições que admitam trabalhadores como empregados, de Programa de Prevenção de Riscos Ambientais - PPRA, visando à preservação da saúde e da integridade dos trabalhadores, através da antecipação, reconhecimento, avaliação e conseqüente controle da ocorrência de riscos ambientais existentes ou que venham a existir no ambiente de trabalho, tendo em consideração a proteção do meio ambiente e dos recursos naturais”. Ainda, na dicção dessa norma, os riscos ambientais são assim definidos: “Constituem risco ambiental os agentes físicos, químicos e biológicos existentes em ambientes de trabalho que, em função de sua natureza, concentração ou intensidade e tempo de exposição, são capazes de causar danos à saúde do trabalhador (item 9.1.5). Consideram-se agentes físicos as diversas formas de energia a que possam estar expostos os trabalhadores, tais como ruído, vibrações, pressões anormais, temperaturas extremas, radiações (1) Conforme dispõe o art. 3º, III, da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, poluição é a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que, direta ou indiretamente, prejudiquem a saúde, a segurança, o bem-estar da população, afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente, incluindo o ambiente laboral e as conseqüências nefastas, daí resultantes, aos trabalhadores. ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 117-126, mar./abr.-2002 119 120 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura não-ionizantes, radiações ionizantes, bem como o infra-som e o ultra-som. Agentes químicos são substâncias, compostos ou produtos que possam penetrar no organismo pela via respiratória, nas formas de poeiras, fumos, névoas, neblinas, gazes ou vapores que, pela natureza da atividade de exposição, possam ter contato ou ser absorvidos pelo organismo através da pele ou por ingestão. Agentes biológicos podem ser bactérias, fungos, bacilos, parasitas, protozoários, vírus, entre outros.” Por fim, mister é salientar que, enquanto que o direito ambiental volta a sua atuação à leitura coletiva, meta-individual (uso de filtros nas chaminés, p. ex.), o direito do trabalho atua mormente sobre o indivíduo. Todavia, como se vê nas regras das edificações, iluminações, conforto térmico, instalações elétricas etc. (arts. 170 a 188, da CLT), já havia, mesmo que subliminarmente, preocupação com o meio ambiente do trabalho, pelo menos no que concerne ao conforto e bem-estar do obreiro. No pertinente, importante observação de ordem processual há que ser feita. A despeito da natureza do bem jurídico ofendido, o resultado danoso pode ser causa de enorme gama de conseqüências jurídicas, atingindo a uma pessoa ou a toda a sociedade, e cada qual estará abrigado por uma medida judicial específica. O direito lesado, porém, continua sendo único, somente se alterando a pretensão da parte interessada frente aos demais. Nesse sentido, o escólio do preclaro NÉLSON NERY: “Interessante notar o engano em que vem incorrendo a doutrina, ao pretender classificar o direito segundo a matéria genérica, dizendo, por exemplo, que meio ambiente é direito difuso, consumidor é coletivo etc. Na verdade, o que determina a classificação de um direito como difuso, coletivo, individual puro ou individual homogêneo é o tipo de tutela jurisdicional que se pretende quando se propõe a competente ação judicial. O mesmo fato pode dar ensejo a pretensão difusa, coletiva e individual. O acidente com o Bateau Mouche IV, que teve lugar no Rio de Janeiro no final de 1988, poderia abrir oportunidade para a propositura de ação individual por uma das vítimas do evento pelos prejuízos que sofreu (direito individual), ação de indenização em favor de todas as vítimas ajuizada por entidade associativa (direito individual homogêneo), ação de obrigação de fazer movida por associação de empresas de turismo que têm interessa na manutenção da boa imagem desse setor da economia (direito coletivo), bem como ação ajuizada pelo Ministério Público, em favor da vida e segurança das pessoas, para que seja interditada a embarcação a fim de se evitarem novos acidentes (direito difuso). Em suma, o tipo de pretensão é o que classifica um direito ou interesse como difuso, coletivo ou individual” (NELSON NERY JÚNIOR, Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, ed. RT, 1992). Outra importante distinção, que se impõe comentar, é o fato de que o trabalhador, Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 117-126, mar./abr.-2002 enquanto ser unitário, quando vitimado por algum mal decorrente de pernicioso meio ambiente laboral, pode buscar a tutela jurídica das suas pretensões pessoalmente, individualmente. Todavia, se a agressividade apresentada(2) pelo meio ambiente laboral atinge não só um indivíduo, por ser este mais suscetível do que a média dos homens, mas uma classe, uma coletividade ou toda a sociedade, perfazendo-se o dano em razão de desrespeito às regras regulamentares de preservação ou adequação do meio, a proteção transcenderá o operário e deverá ser promovida pelo órgão do Ministério Público competente (ou promotor natural) ou pelas entidades legitimadas, que, no caso, seriam os sindicatos. In casu, o instrumento pelo qual se daria a proteção coletiva dos trabalhadores é a Ação Civil Pública, que está disciplinada pela Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985. Em apertada síntese, concluímos que o meio ambiente do trabalho deve ser preservado ou recuperado de dois modos: 1) pelo trabalhador, com a qualificação profissional e destreza necessária que deve possuir para manejar os instrumentos de sua atividade, além de organizar apropriadamente o seu local de atividades; 2) e pelo implemento de adequado meio ambiente laboral, que depende dos empresários (custeio dos ônus sociais), dos sindicatos (representação e defesa das categorias) e do Estado (agente fiscalizador da higiene e segurança do trabalho). 2. Acidente do Trabalho A antiga Lei nº 6.367, de 19 de outubro de 1976, a cognominada Lei da Infortunística, conceituava, com exatidão, em seu art. 2º, o que é acidente do trabalho, relacionando, nos seus incisos, os eventos a ele equiparados. O atual diploma legal, a Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, no seu art. 19,(3) também conceitua o que é acidente do trabalho. Podemos, entrementes, sem olvidarmos os textos mencionados, apresentar um conceito conciso, que objetiva abranger todas as hipóteses elencadas em lei. Assim, pode-se dizer que “acidente do trabalho é o evento danoso que ocorre com o obreiro no exercício dos misteres que lhe são atribuídos enquanto a serviço da empresa. Portanto, é o fato que provoca, imediata ou mediatamente, lesão corporal, perturbação funcional ou do doença que leve à morte, à perda total ou parcial, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho, o que engloba, também, os acidentes suportados no ir e vir do trabalho para o lar, e vice-versa. Esta última modalidade se denomina acidente in itinere”. O que verdadeiramente caracteriza o acidente do trabalho, independentemente do evento ser típico ou atípico, como veremos abaixo, é o fato de ser ele o resultado do nexo entre uma ocorrência (causa) e uma lesão corporal ou perturbação funcional (efeito), havendo, portanto, uma indispensável conexão entre o acidente e a vítima. (2) (3) Observe-se que a ofensa, in concreto, não precisa existir. Basta o risco de dano, que se configura pelo desatendimento às normas, estar evidenciado para justificar a propositura da inquinada ação, pois presente a necessária causa petendi. “Art. 19. Acidente do trabalho é o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço da empresa ou pelo exercício do trabalho dos segurados referidos no inciso VII do art. 11 desta lei, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho.” ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 117-126, mar./abr.-2002 121 122 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura 2.1. Modalidades de Acidente do Trabalho. Quando o acidente do trabalho decorre de um acontecimento súbito, violento, externo e involuntário na prática do trabalho, constituindo elemento central a lesão, a qual atinge ou debilita o corpo ou o espírito, temos o que se convencionou chamar de acidente do trabalho típico. Por seu turno, o acidente do trabalho atípico, ou por equiparação, é o que decorre de doença profissional (latu sensu), sendo esta entendida como a inerente ou peculiar a determinado ramo de atividade e constante de relação organizada pelo Ministério da Previdência e Assistência Social. Assim, as doenças profissionais são deficiências que surgem nos operários em função de sua vida profissional, ou por estarem em permanente contato com substâncias que provocam sérias debilidades no organismo ou por exercerem tarefas diárias que envolvam fatos ligados ao que a lei entende por insalubre. Por derradeiro, sobre as doenças profissionais latu sensu, também chamadas de ergopatias, são elas subdivididas em tecnopatias (doenças advindas do trabalho especializado) e mesopatias (doenças que acometem o trabalhador em virtude das próprias condições mesológicas em que atua). A primeira é doença profissional classificada pela lei como tal, ao passo que a segunda é moléstia não classificada pelo regramento jurídico como profissional, mas a sua eclosão decorre de condições específicas do trabalho ou de fatores físicos, químicos, mecânicos, psíquicos etc., sendo assimilada a sua ocorrência como integrante da acidentária laboral. Sob esse ângulo, a título de observação elucidativa, cumpre estabelecer um liame com a parte primeira do nosso estudo. Quando as doenças profissionais advêm da poluição no ambiente de trabalho, devem ser aplicadas as penalidades definidas na Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, as quais podemos destacar: • • • • • • Multa; Perda ou restrição de incentivos e benefícios fiscais concedidos pelo Poder Público; Perda ou suspensão de participação de sua atividade; Indenização ou reparação de danos; ou, Reclusão. E, nesse lanço, é preciso ressaltar o que informa a infortunística, o ramo da Medicina Legal que estuda os riscos e acidentes oriundos do trabalho, compreendendo as doenças profissionais, apontando vários fatores para o grande índice de vítimas do trabalho entre nós. Podemos destacar as máquinas que não oferecem segurança em seu manuseio, estando disconformes às regras que as disciplinam, os locais de trabalho que não atendem ao mínimo de segurança e higiene, e, por fim, o não fornecimento de EPCs e EPIs pelos empregadores. 2.2. Responsabilidade Todos as pessoas são responsáveis, em maior ou menor grau, pelas conseqüências dos seus atos, salvo as exceções legais, nas quais, comumente, atribui-se a outrem o dever de indenizar. O fundamento da responsabilidade civil repousa sobre o neminem laedere (não lesar o próximo) e pode ter origem em ato ilícito (responsabilidade por ato ilícito), na inexecução de contrato (responsabilidade contratual) ou na própria lei (responsabilidade legal). As três espécies têm, em comum, a indenização pelo dano causado. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 117-126, mar./abr.-2002 2.2.1. Noções Fundamentais dos atos ilícitos Os elementos do ato ilícito são: a conduta, que pode ser comissiva ou omissiva; o componente volitivo, que pode ser culposo ou doloso; a ocorrência do resultado danoso, atingindo o patrimônio econômico ou moral da vítima, ou a ambos; o nexo causal, liame existente entre a conduta e o dano perpetrado. A vontade, que vimos se subdividir em dolo e culpa, pode ser estudada com maior riqueza de detalhes. Comecemos pelo dolo. O dolo pode ser direto, quando o agente buscou o resultado (art. 18, I, primeira parte do CP), ou pode ser indireto, quando o agente assumiu o risco da produção do resultado (art. 18, I, parte última). Este comporta duas classificações: o alternativo, quando, havendo a previsibilidade de vários resultados, o agente quer um ou outro; e o eventual, quando o agente verdadeiramente não quer o resultado, mas o assume. A culpa ocorre quando o agente, transgredindo dever preexistente, procede imprudente (agir sem cautela), imperita (agir sem a habilidade necessária) ou negligentemente (omitir-se, menosprezando o momento em que devia agir). Há várias modalidades de culpa. Podemos destacar a culpa in eligendo (má escolha de representante ou preposto), a culpa in vigilando (originada da atividade de empregados ou prepostos) e a culpa in custodiendo (quando algo ou alguém se encontra sob os cuidados do agente). A culpa, ainda, configura-se em vários graus. A culpa grave pode ser explicada como aquela em que o ato foge ao senso comum dos homem (afronta ao princípio do homo medius). Diz-se culpa leve quando o resultado era evitável com cuidados ordinários. Culpa levíssima, por derradeiro, é aquela cujo resultado somente se podia evitar com atenção extraordinária. ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. 123 2.3. A Responsabilidade e o Acidente do Trabalho A responsabilidade em matéria acidentária pode ser penal, administrativa e civil. A responsabilidade penal. A responsabilidade penal do empregador e prepostos encontra-se prevista nos arts. 121, §§ 3º e 4º, 129, 130, 132, todos do Código Penal, no art. 19, da Lei nº 8.213/ 91e no art. 15, da Lei nº 6.938/81. Pode-se afirmar que, basicamente, a responsabilidade criminal decorre não só pelo acidente do trabalho, quando o preposto ou empregador agem com dolo ou culpa, mas, outrossim, pelo fato de não cumprirem com as normas de segurança e higiene do trabalho, periclitando a vida de outrem. A competência para apreciar tais questões é da Justiça Comum Estadual. A responsabilidade administrativa. O § 3º, do art. 225, da CF estabelece que as condutas e atividades lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. Como exemplos de sanções administrativas, é bastante reportar-se ao item 2.2.1. do presente estudo. A responsabilidade de natureza civil. Há três teorias acerca da responsabilidade civil: a subjetiva (responsabilidade civil aquiliana), a objetiva e a do risco. A teoria subjetiva acarreta a reparação do dano sempre que o elemento volitivo possa ser provado. Há, pois, a necessidade da apuração da culpa latu sensu. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 117-126, mar./abr.-2002 124 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura Esta é a teoria acolhida pelo nosso Código Civil, originada na lex aquilia. A teoria da responsabilidade objetiva dispõe, porém, que quem lucra com certa atividade tem o dever de indenizar o dano decorrente do seu exercício, excetuandose os casos fortuitos ou de força maior. Origina-se, pois, da simples causalidade material, não se indagando da existência de culpa. Pela teoria do risco, contudo, o exercente da atividade, por colher os frutos lucrativos dessa, sempre assume todos os riscos advindos da produção desse lucro. Não admite qualquer exclusão de responsabilidade. 2.3.1. Diferenças Gerais entre o Seguro-previdenciário 2.3.1. e a Responsabilidade Civil do Empregador. É cânone constitucional que os trabalhadores urbanos e rurais têm direito ao seguro contra acidente do trabalho, este a cargo do empregador, sem, porém, que haja a exclusão da indenização a que esse, em caso de dolo ou culpa, está obrigado (art. 7º, XXVIII, da CF). Antes havia a Súmula 229 do STF, que dizia que a “indenização acidentária não exclui a do direito comum, em caso de dolo ou culpa grave do empregador”, de caráter mais restritivo. Mas, com o advento da Carta Magna de outubro de 1988, essa orientação mudou, pois a antiga súmula foi superada pelo maior alcance do dispositivo declinado, que só menciona a culpa em sentido genérico, abrangendo, logo, além da culpa grave, as modalidades leves e levíssimas de conduta. A reparação infortunística decorre da teoria do risco (a qual é própria dos institutos que se valem das regras gerais atinentes a seguros), amparada pelo seguro social a cargo da Previdência Social, enquanto que a responsabilidade civil comum tem como supedâneo a culpa do patrão ou seu preposto. Portanto, as causas e os sujeitos passivos da obrigação de reparar são distintos. A diferença entre as duas ações revela-se também clara em seus aspectos teleológicos. Na acidentária, a vítima ou seus beneficiários recebem uma prestação tarifada na lei, ou seja, os benefícios correlacionam-se ao salário-contribuição, limitado a um teto. Quando o acidente perfaz-se dentro do natural risco do exercício da labuta, a reparação infortunística resulta satisfatória, visto que, pela teoria do risco adotada pela lei, o trabalhador recebe menos, mas recebe sempre. No entanto, se o infortúnio ocorrer em virtude da inexecução de diligência a que o empregador está obrigado na prevenção de acidentes, incide a regra do art. 159, do CC. Assim, detectado o dolo ou a culpa, pode o acidentado, ou seus beneficiários, em caso de óbito, receber as duas reparações, sem compensação. São esses direitos ressarcitórios autônomos e fundados em pressupostos diferentes: a prestação pecuniária acidentária é coberta pelas contribuições e paga pela previdência social, que responde por obrigação própria, e a indenização civil é reparadora de dano decorrente de ato ilícito. Da responsabilidade objetiva. Alguns entendem, a contrario sensu, que a reparação civil, pelo menos quando a atividade ou o serviço explorados são patentemente perigosos, faz-se pela forma objetiva, pois, nesses casos, há enorme dificuldade em o autor provar a culpa, do empregador ou do preposto, em agir com falta de precaução elementar ou de manutenção de maquinário, por exemplo. Data venia, acreditamos não ser esse o entendimento mais acertado. As normas Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 117-126, mar./abr.-2002 são claras e, sobretudo, a Constituição Federal fixa a necessidade da prova do dolo ou culpa do patrão, não abrindo espaço para a presunção de sua culpa e nem de inversão do ônus da prova, o que, aliás, é tema mais afeito às ciências processuais do que propriamente materiais. A responsabilidade objetiva é adotada, tão-somente, quando o acidente ocorrido no meio ambiente do trabalho violar o direito coletivo ou difuso. Desse modo, não só o trabalhador, e sim toda a sociedade, sofrerá com as conseqüências da fonte poluidora, autorizando o Ministério Público e outros entes legitimados a fazer uso da ação civil pública, cuja sentença fará coisa julgada erga omnes. E, de acordo com os ditames do decisum, o trabalhador vitimado e incapacitado não precisará provar o dolo ou culpa do empregador, mas, apenas, o nexo causal entre o evento poluidor (conduta) e a incapacidade laborativa (dano). 3. O Meio Ambiente do Trabalho e o Acidente do Trabalho. O primeiro reflexo dos danos ambientais trabalhistas é o risco potencial ou concreto de ofensa ao trabalho. Nada custa rememorar que o seguro contra acidentes do trabalho, integrado ao sistema previdenciário social, é mantido e lastreado pela sociedade em geral, consoante dispõe a CF, em seus arts. 194, 195 e 201, e a Lei nº 8.212/ 91, no art. 10. Dessarte, a continuar com o diuturno e perverso acontecimento de acidentes do trabalho, a sociedade brasileira perderá duas vezes: primeiro, terá subtraída parte substancial de sua força de trabalho, condição sine qua non de geração de riquezas; por último, desembolsará mais com contribuições sociais e impostos para sustentar o sistema previdenciário, cujos fundos, como é público e notório, são insuficientes para prover a demanda que clama por um digno esteio de seus segurados. Conforme tudo o que foi estudado, ao mesmo tempo em que se deve defender a saúde do trabalhador, cuidando do meio onde ele desempenha as suas atividades, tem-se que a exposição ao risco é indissociável a certas profissões em nosso atual estágio de desenvolvimento tecnológico. Em contrapartida, não se deve ser conivente com a livre agressão à saúde do trabalhador. Assim, dada a impossibilidade da extinção do risco, o legislador constitucional garante a percepção de adicional remunerativo e, tanto em nível constitucional, como no infraconstitucional, promulga leis no sentido de fiscalizar e controlar a insalubridade e o perigo da atividade, regulando o meio ambiente laboral. Procura, também, fomentar a redução dos riscos da atividades, e assim atua para evitar que se concretize a célebre frase do revolucionário Papa LEÃO XIII: “A matéria inorgânica sai da fábrica engrandecida; o homem, criado à imagem e semelhança de Deus, dela sai envilecido”. 4. Bibliografia 1. AGUIAR DIAS, José de. Da Responsabilidade Civil, 5ª ed., vol. II, Editora Forense, Rio de Janeiro, 1992. 2. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional, 6ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 1993. 3. CASTRO, Amílcar de. Comentários ao CPC, 2ª ed., Ed. RT, vol. VIII, 1973. ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 117-126, mar./abr.-2002 125 126 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura 4. FIORILLO, Celso Antônio Pacheco e RODRIGUES, Marcelo Abelha. Manual de Direito Ambiental e Legislação Aplicável, 1ª ed., Max Limonad editores, São Paulo, 1997. 5. MENDES, René. Medicina do Trabalho e Doenças Profissionais, Sarvier S/A Editora de Livros Médicos, São Paulo, 1980. 6. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao Direito do Trabalho, 23ª ed., Editora LTR, São Paulo, 1997. 7. PAZZIANOTTO, Almir. Direito Ambiental do Trabalho, Revista CEJ, vol. 1, nº 3, dezembro/97, pp. 5/11. 8. PINTO MARTINS, Sérgio. Direito da Seguridade Social, 8ª ed., Editora Atlas S/A, São Paulo, 1997. 9. POHLMANN SAAD, Teresinha Lorena. Responsabilidade Civil da Empresa nos Acidentes de Trabalho, LTR Editora Ltda., São Paulo, 1993. 10. SALEM NETO, José. Acidentes do Trabalho, 2ª ed., Editora Universitária do Direito Ltda., São Paulo, 1985. 11. SILVA, José Afonso da. Direito Constitucional Ambiental, 4ª ed., Malheiros Editores Ltda., São Paulo, 1995. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 117-126, mar./abr.-2002 ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. 127 LOURI GERALDO BARBIERO Juiz de Direito em São Paulo Registro, prima facie, que a meta principal deste trabalho é a de demonstrar, diante das regras processuais já existentes, que o nascituro é detentor de direitos processuais no pedido de alvará para autorização de aborto e de sugerir inovações e modificações legislativas, tudo com o objetivo final de proteger o maior de todos os direitos: o direito à vida. O trabalho se restringe a aspectos processuais, sem qualquer exame quanto ao mérito do pedido, ou seja, se deve ou não ser deferido o pedido e em quais casos. 1) Da impossibilidade jurídica do pedido O pedido de alvará para autorização de aborto, na verdade, no nosso modesto pensar, não deveria sequer ser conhecido, posto que: — trata-se de pedido juridicamente impossível diante da falta de previsão legal em nosso ordenamento jurídico; NOTA: Artigo publicado na Revista Panorama da Justiça, nº 26, Boletim IBCCRIM nº 101 e Revista Justiça e Poder, nº 24. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 127-130, mar./abr.-2002 128 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura — a hipótese não se enquadra em nenhum dos casos de competência das Varas Criminais, conforme definidos no art. 28 do Código Judiciário do Estado de São Paulo (Decreto-Lei Complementar nº 3, de 28.08.1969); — a hipótese também não se enquadra na competência das Varas da Família e Sucessões e da Infância e Juventude (arts. 37 e 39 do Código Judiciário); — não se trata de ação cautelar penal, pois não está vinculado a nenhum processo futuro ou em curso; — o exame do pedido, como procedimento administrativo, usurpa e frustra a competência jurisdicional própria, que é a do Juízo penal, ex post facto (RT 734/537); — o artigo 128 do Código Penal não contempla, entre os requisitos para o aborto legal, a autorização judicial; — a lei vigente não contempla o chamado aborto eugênico como legal e, portanto, não há que se falar em autorização judicial para a sua prática; — o maior direito do nascituro, protegido pelo sistema jurídico nacional, é o de nascer com vida, mesmo que venha a ocorrer o óbito no período neonatal; — nenhum juiz está autorizado a permitir o cometimento de um crime (não importa que eximido de pena), ou, mesmo não sendo crime, de um ato ilícito, de uma ação contrária à lei (RJTJESP 99/25). Como ensina GERALDO BATISTA DE SIQUEIRA (in Aborto Humanitário: Autorização Judicial, RT 675/301), “A autorização judicial, a cuja exigência a imprensa nacional tem emprestado tanto destaque nos mais variados recantos do País, é figura absolutamente alheia, estranha aos requisitos da tipicidade especial, insculpidos na moldura da norma descrita no art. 128, I e II, do CP.” Segundo ANTÔNIO CHAVES, a autorização judicial para que o médico realize o abortamento é absolutamente desnecessária, “ficando a intervenção ao inteiro arbítrio do médico” (cf. Direito à Vida e ao Próprio Corpo, ed. Revista dos Tribunais, 2ª ed., p. 29). O mesmo entendimento foi externado pelo magistrado WANDERLEY JOSÉ FEDERIGH, em artigo publicado no O Estado de S.Paulo, de 30.3.1986, p. 40: “Não havendo menção expressa na lei à necessidade de autorização judicial para a prática do aborto, não há justa causa para a invocação da prestação jurisdicional. A função do juiz é a de vigilante e aplicador da lei. Se esta já é clara, nada há a ser interpretado. O juiz, chamado a autorizar um aborto, nada mais pode fazer além de declarar que, nos casos dos incisos I e II do artigo 128 do Código Penal, não há crime, mas não lhe cabe conceder a referida autorização”. 2) Do Juízo competente Apesar da falta de previsão legal, tanto material como processual, o pedido de alvará para autorização de aborto vem sendo conhecido. Em alguns estados pelas varas cíveis e em outros pelas varas criminais e, no caso especial da Comarca de São Paulo, pelo DIPO - Departamento de Inquéritos Policiais (no decorrer deste ano 2000, foram autorizados pelo DIPO 33 casos - 30 relacionados com os abortos eugênico e terapêutico e 3, com o chamado humanitário). Uma vez conhecidos os pedidos, como tem ocorrido, mister que sejam processados pelo Juízo competente. Não há dúvida de que a matéria é penal e de competência do Tribunal do Júri, a quem compete julgar os crimes dolosos contra a vida, consumados ou tentados, dentre eles o de aborto (art. 5º, inciso XXXVIII, da CF. e 74, § 1º, do CPP). Assim sendo, faz-se necessário a edição de norma processual penal, que preveja Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 127-130, mar./abr.-2002 a necessidade de alvará judicial para a prática do aborto legal, bem como o juízo competente para a sua apreciação, com a necessária intervenção de curador de incapazes e de curador especial ao nascituro, como adiante se verá, tendo em vista o evidente conflito de interesses existente entre o nascituro e a gestante. Sugere-se, assim, a criação de parágrafos no artigo 128 do Código Penal atual ou no artigo 127 do Projeto da parte especial do Código Penal, em trâmite no Congresso Nacional, de mais um inciso nos artigos 497 e 574 e de nova redação ao artigo 612, todos do Código de Processo Penal, com a seguinte redação: “Art. 128 ou 127 do Código Penal... I - ... II - ... § 1º - Nas hipóteses acima, a gestante, ou seu representante legal, deverá requerer ao Presidente do Tribunal do Júri autorização para o abortamento, em pedido devidamente instruído. § 2º - O juiz, sob pena de nulidade, nomeará curador especial ao nascituro. § 3º - Após a oitiva dos interessados e da realização da prova pericial, com a manifestação do curador especial nomeado e do Ministério Público, este na função de curador de incapazes e de dominus litis, o juiz deferirá ou não o pedido. § 4º - Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença que conceder o alvará. Neste caso, o juiz ordenará a remessa dos autos ao tribunal, haja ou não apelação voluntária da parte vencida; não o fazendo, poderá o presidente do tribunal avocá-los. § 5º - O deferimento do alvará não obstará futura ação penal pelo crime de aborto, nos casos de dolo, fraude ou má fé na formulação do pedido. Art. 497 do Código de Processo Penal ... ... ... XII - apreciar e decidir pedidos de autorização de aborto, nos termos do artigo 128 e seus parágrafos do Código Penal. Art. 574 do Código de Processo Penal ... ... ... III - da sentença que conceder alvará para a realização de aborto (art. 128, § 4º, do Código Penal). Art. 612. Os recursos de habeas corpus e a apelação previstos no artigo 128, § 4º, do Código Penal, designado o relator, serão julgados na primeira sessão.” 3) Da necessidade de nomeação de curador à lide A Constituição Federal, em seus artigos 5º e 227, garante e assegura a todos a inviolabilidade do direito à vida, inclusive a intra-uterina. A legislação infraconstitucional brasileira, como não poderia deixar de ser ante a norma constitucional, também protege o bem jurídico fundamental da vida, a começar ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 127-130, mar./abr.-2002 129 130 ................................................................................................................................................................................................................ ..................................................................Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura pela criminalização do aborto, em seus artigos 124 a 127 do Código Penal vigente. Por sua vez, o Código Civil Brasileiro dispõe que: “A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida: mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro” (art. 4º). Como sabemos, nascituro é o ser já concebido, mas que ainda se encontra no ventre materno. O Código Civil protege as expectativas de direito do nascituro, que se confirmam se houver nascimento com vida, ou se desmentem, como se nunca tivessem existido, no caso contrário. Não tem personalidade, mas, desde a concepção, é como se tivesse. Assim, o nascituro é herdeiro, pode receber doações e legados, pode ser adotado, reconhecido e legitimado. Pode agir através de seu curador. Pode figurar como sujeito ativo e passivo de obrigações. A eficácia de tudo, porém, fica na dependência do nascimento com vida. Em numerosos textos, o legislador volta sua atenção para aquele que apenas foi concebido (Cód. Civil, arts. 353, 357, parágrafo único, 372, 377, 458, 462 e 1.718; Cód. Proc. Civil, arts. 877 e 878; Cód. Penal, arts. 124 e 128). O Código de Processo Civil, a seu turno, determina no seu artigo 9º, inciso I, que: “O juiz dará curador especial ao incapaz, se não tiver representante legal, ou se os interesses deste colidirem com os daquele;”. O curador especial a que se refere o Código é também chamado curador à lide para distingui-lo do curador representante legal do incapaz nos atos da vida civil. É evidente que, nesse caso, o conflito de interesses pode acarretar prejuízo para o incapaz. Não importa a idoneidade do representante; a lei, para resguardo dos interesses do incapaz, afasta seu representante e o substitui por curador especial, que servirá apenas para a causa. Ao curador especial incumbe defender o incapaz, velar pelos seus interesses, no que diz respeito à regularidade de todos os atos processuais, cabendo-lhe ampla defesa dos direitos da parte representada, tais como contestar e recorrer de todas as decisões. Embora, em princípio, os incapazes, a que se refere o dispositivo, sejam aqueles enumerados nos artigos 5º e 6º do Código Civil, dentre os quais não figura o nascituro, forçoso reconhecer que, se a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro, nos termos do art. 4º do Código Civil, sendo o direito à vida o mais importante deles, tem ele direito à nomeação de curador especial sempre que os seus interesses colidirem com os do representante legal. E não há dúvida de que, no pedido de alvará para realização do aborto, qualquer que seja ele (necessário, sentimental ou eugênico), há uma colidência de interesses. O nascituro quer nascer e a gestante quer abortá-lo. Frise-se, embora desnecessária, que a nomeação, pelo juiz, de um curador especial não exclui a necessidade de intervenção do Ministério Público, na função de dominus litis, exercida no processo penal, e nem com a de custos legis, na causa em que houver interesse de incapazes, e que está prevista no art. 82, inciso I, do Código de Processo Civil, porque a função desse curador à lide equivale à do pai ou tutor de menor ou curador de louco, surdo-mudo, ou pródigo. Com a nomeação do curador à lide, o nascituro ficaria devidamente representado e defendido. E o curador, na hipótese de concessão do alvará para realização do aborto, poderia recorrer, assegurando o exame do pedido em segundo grau de jurisdição. Cad. Jur., São Paulo, v. 3, n. 8, p. 127-130, mar./abr.-2002 Coordenação Geral Claudia de Lima Menge Capa Escola Paulista da Magistratura Diagramação Ameruso Artes Gráficas Formato 175 x 245 mm Mancha 130 x 223 mm Tipologia Frutiger Papel Capa: Cartão Revestido 250g/m2 Miolo: Offset Branco 90g/m2 Acabamento Cadernos de 16pp. costurados e colados - brochura Tiragem 3.500 exemplares Impressão Imprensa Oficial do Estado Abril de 2002 ................................................................................................................................................................................................................ Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura ................................................................. 131