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REVISTA DA ACADEMIA
DE LETRAS DA BAHIA
REVISTA DA ACADEMIA
DE LETRAS DA BAHIA
Março de 2015 — Número 53
ISSN 1518-1766
Copyright © by Academia de Letras da Bahia, 2015
Academia de Letras da Bahia
Avenida Joana Angélica, 198, Nazaré
40050-000 – Salvador, Bahia, Brasil
Telefax (71) 3321-4308
www.academiadeletrasdabahia.org.br
[email protected]
Revista Anual de Literatura, Artes e Ideias
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP).
Revista da Academia de Letras da Bahia / Academia de Letras da Bahia.
– Ano 1, vol. 1, n. 1 (Ago. 1930). – Salvador: Academia de Letras da Bahia, 1930 –
A partir do número 25 foi retirado ano e volume.
O ISSN começou no número 44.
Anual
ISSN 1518-1766
1. Literatura brasileira – Periódicos . I. Academia de Letras da Bahia.
II. Título.
CDU 869
Ficha Catalográfica elaborada por Gislene Soares Guerra CRB-5/1382
Nesta revista optou-se pela flexibilização de normas de atualização e padronização
de nomes próprios, acatando-se até mais de uma grafia de nomes de personalidades e
instituições citadas, a critério do autor de cada texto, a exemplo de Ruy Barbosa e Rui
Barbosa. Optou-se, igualmente, pela total responsabilidade de redação e de revisão
de cada autor sobre o seu texto, só sendo feitas, pela produção editorial, as correções
óbvias e mais visíveis, em particular de erros de digitação.
Impresso no Brasil
Sumário
11
EDITORIAL
Uma revista singular e fundamental
Aramis Ribeiro Costa
Artigos e ensaios
15
ENTRELAÇANDO CENAS DE AMOR
Leituras de Castro Alves
Evelina Hoisel
31
O CONTO DE HÉLIO PÓLVORA
Uma visão de conjunto a partir do primeiro livro
Aramis Ribeiro Costa
43
DRAMATURGIA, CORPO E REPRESENTAÇÃO
Cleise Mendes
53
O PROTESTO NO CONTO DO CANTO
DO ACALANTO
Yeda Pessoa de Castro
71
A LUTA COM O CORAÇÃO HUMANO
Hélio Pólvora
79
YEATS: SUA VISÃO DE BIZÂNCIO
Waldir Freitas Oliveira
101
HOMENAGEM A OLEGÁRIO MARIANO
Consuelo Pondé de Sena
113
AS ARTES SE DISTRAÍRAM, E A EXPLOSÃO
DE DADÁ CAMINHA PARA OS 100 ANOS
Florisvaldo Mattos
143
O FUNDADOR ARLINDO FRAGOSO E SEUS
150 ANOS
Edivaldo M. Boaventura
157
O JOGO FANTÁSTICO DE JÚLIO CORTÁZAR
Cyro de Mattos
165
BREVE REFLEXÃO SOBRE A IRONIA TRÁGICA EM UM DRAMA SHAKESPEAREANO
Ordep Serra
173
SOBRE UM AMOR DE FLOR BELA
Manuel de Novaes Cabral
199
BICENTENÁRIO DE NASCIMENTO
DE UM SÁBIO BAIANO E BRASILEIRO
João Eurico Matta
Poesia
207
POEMAS: CARTÕES POSTADOS
Fernando da Rocha Peres
211
POEMAS E SONETOS
Gláucia Lemos
217
DOIS POEMAS
Ruy Espinheira Filho
221
CINCO POEMAS
Florisvaldo Mattos
227
CINCO SONETOS DO RIO
Cyro de Mattos
233
TUDE CELESTINO
Poeta de Ipitanga, do Amor e da Boemia
Tina Tude
FICÇÃO
247
A ÚLTIMA PORTA
Hélio Pólvora
257
ALÔ, SOLIDÃO!
Gláucia Lemos
265
SISINA
Carlos Ribeiro
269
OS PASSARINHOS SÃO OS MESMOS
Mayrant Gallo
DISCURSOS
275
À MEMÓRIA DA ACADÊMICA CONSUELO
NOVAIS SAMPAIO
Sessão de saudade
João Eurico Matta
285
JAMES AMADO
Sessão de saudade
Myriam Fraga
295
A REVIVESCÊNCIA DE ANNA AMÉLIA
VIEIRA NASCIMENTO
Sessão de saudade
Edivaldo M. Boaventura
309
À MEMÓRIA DO ACADÊMICO
GERSON PEREIRA DOS SANTOS
Sessão de saudade
João Eurico Matta
317
DISCURSO DE POSSE
Ordep Serra
337
DISCURSO DE RECEPÇÃO A ORDEP SERRA
Luís Antonio Cajazeira Ramos
347
DISCURSO DE POSSE
Urania Tourinho Peres
373
DISCURSO DAS MÃOS DADAS
Recepção a Urania Tourinho Peres
Aramis Ribeiro Costa
385
DISCURSO DE POSSE
Guilherme Radel
397
DISCURSO DE RECEPÇÃO
A GUILHERME RADEL
Joaci Góes
407
A INVENÇÃO DO ESCRITOR
Discurso de posse
João Carlos Salles
431
DISCURSO DE RECEPÇÃO A
JOÃO CARLOS SALLES
Paulo Costa Lima
451
EDIVALDO M. BOAVENTURA
Oitenta anos do acadêmico
Luís Antonio Cajazeira Ramos
diversos
467
485
499
Efemérides
Quadro social da ALB
Endereços dos acadêmicos
EDITORIAL
Uma revista singular e fundamental
O artigo primeiro do Estatuto da Academia de Letras da
Bahia é definidor: “A Academia de Letras da Bahia (...) tem por
objetivos o cultivo da língua e da literatura nacionais, a preservação da memória cultural baiana e o amparo e estímulo às manifestações da mesma natureza, inclusive nas áreas das ciências
e das artes”.
Não seria pouco. São objetivos que valem todo um programa de funcionamento. Mas a reunião de intelectuais destacados em suas áreas de atuação, com esses propósitos, amparados
pelas condições favoráveis do prestígio da Academia e do recurso da ampla e bela sede à qual não temos o pudor de chamar de
“Palacete”, levou também a instituição a se tornar um importante núcleo difusor de cultura, com uma programação intensa,
quase toda voltada para o público interessado em eventos culturais e, em particular, literários. De março a dezembro, o chamado
“ano acadêmico”, no qual desenvolvemos as nossas atividades, o
Palacete Góes Calmon tem sido palco de palestras, conferências,
edições e lançamentos de livros, cursos, seminários, concursos,
encontros e debates, além, naturalmente, das atividades específicas da instituição, como sessões ordinárias, eleições de membros
efetivos e correspondentes, sessões de saudade, comemorações
de centenários e datas importantes, posses solenes.
Muito de tudo isso, que pode ser verificado pormenorizadamente nas Efemérides, na sessão Diversos, seria perdido para
a posteridade, se não tivéssemos esta revista. Ela tem acompanhado não apenas as atividades da instituição, não apenas
registrado a produção circunstancial ou institucional de seus
►► 11
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
membros efetivos e correspondentes, com a publicação dos
discursos e conferências, mas refletido os diversos momentos
culturais e intelectuais da Bahia, o que vem fazendo ao longo
de oitenta e cinco anos e cinquenta e três números, tornando-se
hoje uma referência indispensável a muitos e variados assuntos. Não é por acaso que uma coleção completa da Revista da
Academia de Letras da Bahia é hoje uma raridade bibliográfica em
qualquer biblioteca, chegando a valer uma pequena fortuna no
mercado livreiro.
Este número revela uma circunstância singular do ano acadêmico de 2014, no qual tivemos de eleger cinco membros efetivos
e empossar quatro, além de eleger três membros correspondentes
e empossar um deles. Isso, somado às sessões especiais de saudade e comemorativas dos centenários de nascimento, aumentou
bastante a sessão dos discursos. O que não desmerece a revista,
pelo contrário, pois esses discursos trazem com muita substância
e muita propriedade, nas suas informações, aquela “preservação
da memória cultural baiana” que o nosso Estatuto nos determina.
Mas, aqui também estão, com a riqueza e a diversidade habituais,
os ensaios, os artigos, a poesia, os contos.
Trata-se, é bom que se registre, de uma revista com características próprias, que propositadamente não segue as normas das
publicações científicas ou universitárias, nem tem a liberdade de
edição dos hoje raríssimos periódicos simplesmente literários. E,
de fato, não é nem pretende ser qualquer dessas categorias. É uma
revista acadêmica, no sentido de academia de letras, que cumpre à
perfeição os objetivos da instituição, constituindo-se, igualmente,
numa fonte bibliográfica fundamental para a cultura baiana.
A isto, naturalmente, esperamos sempre acrescentar o
prazer da leitura.
Aramis Ribeiro Costa
Presidente
12 ◄◄
Artigos
e Ensaios
ENTRELAÇANDO CENAS DE AMOR
Leituras de Castro Alves
Evelina Hoisel
I
O
título aqui proposto remete a uma ambiguidade ou, pelo
menos, a uma duplicidade propositalmente sugerida. Leituras de Castro Alves pode, em primeira instância, indicar que
vamos desfiar alguns fios das diversas leituras que o poeta Castro Alves empreendeu em sua trajetória de caminheiro errante e que deixam seus rastros nos textos que escreveu. Trata-se,
portanto, de focalizar Castro Alves como leitor: leitor de uma
tradição literária e cultural, mas, também, leitor dos signos do
mundo, questão que o situa de maneira particular no código do
romantismo. Leituras de Castro Alves indicia ainda a possibilidade de acompanharmos a trajetória da sua produção poética
através dos tempos, indagando sobre a possibilidade de atualização de seus textos na contemporaneidade, sua permanência
e seus deslocamentos — suas rasuras, verificando a fertilidade
de uma poesia que, desde o seu aparecimento, tem sido marcada por polêmicas e controvérsias, por admiradores e opositores,
por vezes, veementes e apaixonados.
Hoje celebramos Castro Alves em mais um curso ofertado
a todos nós, amantes de sua poesia, pela Academia de Letras da
Bahia. Aqui, resgatamos a sua memória e revisitamos a sua produção lírica. Através do seu corpo poético, reapropriamo-nos de
seu corpo histórico, político, social, constituído pelos poemas
que escreveu e pelas leituras que suscitou. Leituras literárias, artísticas e críticas.
►► 15
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Sabemos todos que, para Castro Alves, o estético, o ético,
o político, o biográfico são inseparáveis. São signos que se entrelaçam e se esgarçam, do mesmo modo que, entre o privado
e o público, entre sua lírica amorosa, subjetiva, íntima e a poesia social, libertária e humanitária, as fronteiras se superpõem
e se redobram. O privado e o público são forças que acionam
a produção poética de Castro Alves e mobilizam o leitor, que,
inevitavelmente, terá que transitar pelas diversas instâncias através das quais o poeta excursionou. Os limites são tênues. As
fronteiras, quase indemarcáveis. Isso porque Castro Alves viveu
delirantemente os limites do extremo, transformando a dor física, a cicatriz corporal — tanto a do seu corpo físico, quanto as
do corpo social e político de sua época — em letra, em registro
poético, reinscrevendo-os em cada ritmo, em cada imagem, em
cada personagem criado ou recriado. Nas cordas da sua lírica, a
história social e coletiva é o pretexto para fazer soar a história
pessoal e subjetiva do poeta condoreiro.
Ler Castro Alves é, dentre tantas possibilidades, compreender como o corpo poético e o corpo histórico e político do
escritor se interseccionam. É procurar entender as estratégias
que possibilitaram que as vibrações e modulações da voz, a
exuberância de uma gestualidade, as irrupções dos movimentos empreendidos pela carne e pelo corpo dilacerados sejam os
ingredientes de uma produção que tem sua eficácia tanto em
nível da vida privada, da subjetividade do eu poético, quanto
do ponto de vista de sua atuação social e política, isto é, da
vida pública.
Castro Alves registrou com exuberância e delicadeza, com
suavidade e encantamento líricos, bem como com rompantes
imagéticos, retórica persuasiva, pathos dramático e gestualidade
teatral, os diversos signos que encontrou. Avidamente, recolheu
e redistribuiu os signos da natureza, e da história pessoal e coletiva. Leu e disseminou palavras. Fragmentou-se e multiplicou-se
em textos. Através de eloquentes ou singelos processos de dra16 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
matização e de teatralização do sujeito e da vida, construiu o seu
próprio mito, que se atualiza a partir das diversas apropriações
do seu corpo poético pelos seus descendentes.
Edilene Matos, em sua abordagem sobre Castro Alves: imagens fragmentadas de um mito (2001), faz um levantamento das variadas leituras realizadas em diversas áreas, que têm corroborado
para a permanência desse mito, tanto na tradição literária, apontando algumas reapropriações de Castro Alves menos conhecidas, como o poema concretista de Décio Pignatari que, aproveitando-se do último verso de “O navio negreiro” — “Colombo!
Fecha a porta de teus mares!” —, explora o aspecto gráfico da
letra O, para construir um poema visual de protesto, que põe
em diálogo os aspectos gráficos — o mapa das Américas, onde
aparece, na região norte do mapa, em cima de cada letra O da
palavra COLOMBO, um pássaro (um urubu? um condor? um
gavião?). No extremo sul do mapa, inscreve-se o verso “fecha a
porta de teus males!”, modificando-se assim o texto romântico,
a partir da substituição de “mares” por “males”: “fecha a porta
de teus males!” (MATOS, 2001, p. 79).
Edilene Matos destaca outras produções artísticas, como
a música, citando a antológica referência do tropicalista Caetano
Veloso, que parodiou os versos de Castro Alves na letra da canção
“A Praça Castro Alves é do povo, como o céu é do avião”. Nas
artes plásticas, cita as telas de Mário Cravo Júnior, Juarez Paraíso,
Jenner Augusto, Prisciliano Silva; os desenhos de Lydia Sampaio
e Ângelo Roberto; a escultura de Mário Cravo Neto, além das
diversas releituras de Castro Alves pela literatura de cordel. Nesse
sentido, por uma via distinta da nossa, vez que ela está interessada
nos processos de construção de um mito, Edilene Matos incursiona pelas diversas leituras ou, melhor, releituras de Castro Alves,
que atestam a sua permanência na cultura brasileira.
Ao abordar as leituras de Castro Alves — as de Castro Alves como leitor (item II), ou as dos leitores de Castro Alves (item
III) —, interesso-me não pela construção de um mito, porém pela
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
existência de um movimento textual através do qual a literatura se
constitui. As remissões textuais são formas de preenchimentos
de vazios, de atualizações de sentido, de inseminação de traços,
que atestam a concepção borgiana do escritor como leitor: leitor
da prosa do mundo — o Livro do Mundo — ou dos livros dos
antepassados, armazenados nas prateleiras das bibliotecas e da
memória, elas, também, rastros da prosa do mundo.
II
Castro Alves é um leitor voraz. Para ele, a noção de texto é
bastante abrangente, pois o próprio mundo natural se apresenta
como uma escrita que é lida e decifrada pelo poeta no momento
da criação. É o poeta quem lê e ouve os sons da natureza, que é
percebida como um imenso poema. O poeta interpreta, traduzindo e recodificando os signos da natureza no corpo do poema.
Essa problemática aparece inscrita em trechos do poema “Murmúrios da tarde”. Ouçamos:
Ontem à tarde, quando o sol morria,
A natureza era um poema santo,
De cada moita a escuridão saía,
De cada gruta rebentava um canto.
Ontem à tarde, quando o sol morria.
[...]
Larga harmonia embalsamava os ares!
Cantava o ninho — suspirava o lago...
E a verde pluma dos sutis palmares
Tinha das ondas o murmúrio vago...
Larga harmonia embalsamava os ares. (ALVES,
1960, p. 150).
Outras vezes, como no poema “Ao romper d’alva”, a geografia física da América, pintura e poema do grande Criador,
18 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
é manchada pela geografia social e política, onde a ação do
homem — a escravidão — funciona como elemento de distúrbio, e cujos signos são também apreendidos e traduzidos, isto
é, lidos, pelo poeta:
Oh! Deus! não ouves dentre a imensa orquestra
Que a natureza virgem manda em festa
Soberba, senhoril,
Um grito que soluça aflito, vivo,
O retinir dos ferros do cativo,
Um som discorde e vil?
17).
Senhor, não deixes que se manche a tela
Onde traçaste a criação mais bela
De tua inspiração.
O sol de tua glória foi toldado...
Teu poema da América manchado.
Manchou-o a escravidão. (ALVES, 1960, p. 216-
Pode-se perceber como em Castro Alves esse procedimento tradutório é utilizado como um efeito retórico, reafirmando-se, ainda, o código romântico, onde a natureza aparece
como refúgio e inspiração do poeta.
Se afirmo que Castro Alves é um leitor voraz, é porque
as marcas de suas múltiplas leituras são explicitamente ofertadas ao leitor no corpo de sua escrita. Em primeira instância, a
partir das variadas epígrafes que emolduram os seus poemas e
detonam o sentido de cada texto. São inúmeras as poesias de
Castro Alves que vêm acompanhadas por epígrafes, às vezes até
duas ou mais citações. Dentre os principais autores epigrafados,
encontram-se Dante, Byron, Virgílio, Alfred de Musset, Victor
Hugo, Lamartine, Shakespeare, Fagundes Varela, Junqueira Freire, José de Alencar, apenas para referenciar os autores presentes
►► 19
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
no livro Espumas flutuantes. Através dessas epígrafes, Castro Alves fornece programaticamente os primeiros índices de filiação
de sua escrita. As ramificações genealógicas são de distintas procedências, possibilitando que, no entrelaçamento dos textos —
da epígrafe e do poema —, produza-se um novo sentido, pelo
processo de inserção ou atualização contextual. Por sua vez, o
que é vivenciado pelo sujeito poético, ou aquilo que é por ele
verbalizado, faz parte de um estoque de escritas e serve para
confirmar a universalidade do tema poetizado, colocando-o em
outro contexto literário, histórico e cultural.
As inscrições textuais também se inserem no corpo de
cada poema, onde nomes de personagens, imagens mitológicas
e poéticas, ritmos de diversas procedências são recuperados e inseminam novos significantes. Através da apropriação de figuras
míticas, literárias e históricas, Castro Alves delineia o perfil do
poeta, do sujeito criador, como um dos fios da tessitura de sua
poesia, onde o eu lírico assume diversas faces: é um personagem
errante e forasteiro, que corporifica a constituição do sujeito
poético como um ser nômade, desfiliado e desterritorializado,
percorrendo constantemente novos espaços, para, em seguida,
abandoná-los em busca de outros territórios.
Ainda seguindo essa mesma linha de leitura, o poema “O
fantasma e a canção” dramatiza a história do rei banido, que procura pouso sem encontrar. “O fantasma e a canção” tem uma
estrutura explicitamente dramática, onde o rei-fantasma, coberto de cãs — uma alusão ao rei Lear, da tragédia de Shakespeare
— erra pela noite tempestuosa, sem encontrar refúgio. A figura
do rei-fantasma, que é também uma projeção da figura do poeta, só encontra morada, só pode se territorializar no espaço da
escritura poética, reino que o consagra, restituindo-lhe o trono
perdido. Assim, Castro Alves fornece um sentido suplementar
à tragédia shakespeariana, onde o rei Lear morre sem encontrar
morada. Em situação diferente, no texto de Castro Alves, a voz
poética diz:
20 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
— Entra, pois! Sombra exilada,
Entra! O verso — é uma pousada
Aos reis que perdidos vão.
A estrofe — é a púrpura extrema,
Último trono — é o poema!
Último asilo — a Canção!... (ALVES, 1960, p. 97).
Do ponto de vista da lírica amorosa, o sujeito poético
encena-se a partir de personagens literárias, como em “Os três
amores!”, quando o sujeito se identifica com Tasso, Romeu e D.
Juan, e a amada, com Eleonora, Julieta e Julia, a Espanhola. As
identificações são significativas do tipo de relação amorosa que
se realiza entre os amantes. Iniciando com uma imagem onírica
e sublimadora, representada por Tasso e Eleonora, termina por
teatralizar a relação carnal e voluptuosa de D. Juan e Julia, a Espanhola. No território dessa lírica, amante e amada passam por
processos de encenação através dos quais personagens remetem
a personagens, histórias atualizam outras histórias. É assim no
poema “Uma página da escola realista”, cujo subtítulo é “Drama cômico em quatro palavras”, onde os conflitos nas relações
amorosas são representados a partir da história de George Sand
e Musset, que projeta e ilumina o conflito das relações amorosas
de Castro Alves com Eugênia Câmara.
Ainda recorrendo ao repertório das tragédias shakespearianas, Castro Alves, no poema “Boa-noite”, efetua uma leitura
da cena amorosa entre Romeu e Julieta, agora enformada pela
paisagem local, acentuando para isso a noção de sensualidade, e
adequando-a ao cenário da brasilidade. A encenação do desejo
se efetua em uma espécie de delírio alucinante em que os significantes que traduzem o objeto amoroso se alternam na cena do
enunciado do poema. O processo de substituição do nome superpõe e identifica Maria-Julieta-Consuelo. Nesse poema, ao qual
já dediquei uma leitura mais minuciosa e verticalizada (HOISEL,
1996, p. 365-75), Castro Alves retoma a famosa cena V do ato III
►► 21
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
da tragédia Romeu e Julieta, onde o cantar do rouxinol opõe-se ao
da cotovia, como o cantar do amor na noite que finda. Se os dois
amantes escutam o rouxinol, permanecem unidos, mas se expõem
à morte. Se creem na cotovia, salvam suas vidas, porém devem
separar-se.
Reconfigurando o espaço/tempo onde transcorre a ação
da peça — a noite abençoada dos jardins do Capuleto — Castro
Alves, através de um processo de dramatização de personagens
e de signos da tragédia renascentista, promove a identificação do
eu lírico com os personagens shakespearianos, optando por outro
encaminhamento para a resolução dos impasses do conflito amoroso: separar-se ou não da amada. Em “Boa-noite”, enquanto a
calhandra — espécie de cotovia — anuncia a aurora, portanto a
separação dos amantes, o canto da amada, corporificada agora em
Julieta, substitui o do rouxinol e serve como elemento de sedução
que enfeitiça o amante, fazendo-o esquecer dos perigos da aurora
que se aproxima. Se somente a continuidade da noite pode dar
prosseguimento ao ritual romântico e amoroso, estrategicamente
o desejo voluptuoso do eu lítico, que se inscreve na cena textual a
partir da figura de Romeu, tece uma situação que possibilita a continuidade da celebração amorosa, porque afirma a expansão e a
permanência da noite, sem a separação que se verifica na tragédia
de Romeu e Julieta. O modo como esse conflito é resolvido é um
dos momentos de maior força e singularidade da poesia de Castro
Alves, pois, sob o olhar erótico do amante, os cabelos pretos da
amada anunciam o prolongamento da noite, reconstruindo um
cenário que possibilita a realização do desejo:
122).
22 ◄◄
Se a estrela-d’alva os derradeiros raios
Derrama nos jardins do Capuleto,
Eu direi, me esquecendo da alvorada:
“É noite ainda em teu cabelo preto!”
[...]
É noite, pois! Durmamos, Julieta! (ALVES, 1960, p.
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Acrescentando um significado suplementar à cena antológica da tragédia renascentista, emprestando-lhe uma outra significação, vez que cria um espaço poético que propicia
a realização do desejo incontido dos amantes, Castro Alves,
com a leitura que faz dessa tragédia, efetua uma atualização
da cena dos jardins do Capuleto pela dramatização de seus
signos, propiciando a abertura de outras vertentes interpretativas na literatura brasileira que, sob a mediação de seu texto
poético, rearticulam personagens, temas e imagens do texto de
William Shakespeare a partir da força expressiva e inovadora
de sua lírica.
Se perguntarmos quais são as leituras de Castro Alves,
poderemos resgatá-las a partir das marcas deixadas no corpo de seus textos poéticos, nos quais epígrafes, temas, personagens, imagens, sonoridades, ritmos são importantes para
construir o seu perfil como um leitor voraz de uma tradição
literária e não literária. É a partir desses resíduos, dessas ruínas
de leituras, enquanto rastros apreendidos pela escrita, que se
pode perceber também o projeto de autoconsagração histórica de Castro Alves (no que diz respeito a esse projeto, lembro
aqui o famoso verso do poeta: “Eu sinto em mim o borbulhar
do gênio!”). Esse projeto de autoconsagração e de glorificação, que traduz o movimento de perquirir e estabelecer o seu
próprio lugar na tradição literária, faz-se a partir desses trânsitos discursivos e do estabelecimento de diálogos intertextuais,
recorrendo aos textos de uma tradição na qual pretende se
inserir. Essa condição de leitor, por sua vez, é um traço importante para assinalar a atualidade da produção de Castro Alves,
cuja permanência pode ser conferida pelas sucessivas leituras
de sua produção poética — as diversas apropriações do seu
corpo poético, inseminando-se e disseminando outros corpos.
►► 23
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
III
Reporto-me, mais uma vez, ao poema “Boa-noite” para
dele extrair alguns desdobramentos que situam a sua trajetória
— e, portanto, a de seu criador, Castro Alves, leitor de Shakespeare — na história da literatura e da cultura brasileiras. Recorto também a metáfora da noite expandida através dos cabelos
pretos da amada, onde o diálogo do poema castroalvino se
repete pela citação da primeira estrofe do poema “Boa-noite”,
reconfigurando, agora, outros personagens no cenário de um
texto do modernismo brasileiro: “Ao menos diga boa-noite,
Juca... / ‘Boa-noite, Maria, eu vou-me embora...” Refiro-me,
agora, ao conto de Mário de Andrade “Vestida de preto” (ANDRADE, 1972a, p. 7-18), no qual o narrador rememora a sua
primeira experiência amorosa e o relato dessa experimentação,
tal como acontece com o sujeito poético no poema “Boa-noite”, mediatizado por um texto literário. Os fios se entrelaçam,
as histórias se repetem, e a cabeleira preta da amada instaura
a noite idílica dos amantes, aqui sem a ameaça da separação
e da despedida, tema tão caro aos poetas românticos e, particularmente, a Castro Alves. Esse tema, que já está também
inscrito na tragédia shakespeariana, é subvertido pelo texto de
Mário de Andrade, que promove o encontro amoroso na sua
plenitude:
Fui afundando o rosto naquela cabeleira e veio a noite,
senão os cabelos (mas juro que eram cabelos macios) me
machucavam os olhos. Depois que não vi nada, ficou fácil
continuar enterrando a cara, a cara toda, a alma, a vida,
naqueles cabelos, que maravilha! Até que meu nariz tocou
num pescocinho roliço. [...]
Maria, só um leve entregar-se, uma levíssima inclinação
para trás me fez sentir que Maria estava comigo em nosso
amor. (ANDRADE, 1972a, p. 10).
24 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
A posse do objeto amoroso, que se dá pela realização do
desejo erótico e carnal, suscita no narrador uma sensação de
perfeição, fazendo-o comentar: “é engraçado como a perfeição
fixa a gente” (p. 10). Por isso, a apropriação e a citação do verso
de Castro Alves “— Ao menos diga boa-noite, Juca... / ‘Boanoite, Maria, eu vou-me embora...” (p. 17) — só se efetua depois
da relação amorosa, quando os amantes se despedem.
Referir-se a essa releitura literária de Mário de Andrade
sobre um texto de Castro Alves é importante porque nos faz
pensar no espaço de liberdade em que é produzida a obra de
arte, rompendo com conceitos ou até pré-conceito afirmados
em outras instâncias pelo escritor. É por ser produzida em um
espaço de liberdade que resulta o caráter paradoxal da criação
literária ou artística. Ao se apropriar do texto de Castro Alves,
atualizando-o em outro território discursivo e em outro tempo,
Mário de Andrade certamente está contribuindo, através de um
processo de renovação das suas significações, para a permanência dessa poesia no modernismo brasileiro e, consequentemente,
na atualidade, apesar da contundência com que leu negativamente muitos aspectos e procedimentos do poeta romântico, na crítica que efetuou no texto intitulado “Castro Alves”, inserido na
coletânea de ensaios Aspectos da literatura brasileira (ANDRADE,
1972b, p. 109–123).
Considerando Castro Alves “como um dos valores mais
contraditórios do nosso Brasil” e a [...] “imagem mais possível
da mentalidade nacional”, mas ressaltando logo em seguida, “o
que é uma pena para a mentalidade nacional” (p. 123), a releitura
de Mário de Andrade tece críticas muito severas ao poeta, efetuando uma revisão de valores que teve uma enorme repercussão,
ao salientar que o condoreirismo levou
Castro Alves a imagens de mau gosto repulsivo, mas [...]
o maior mal dessa oratória é que Castro Alves, como Rui
Barbosa, foi um encompridador. Delirava escutando o
som da própria voz, falou, falou, falou. Às vezes, chega
►► 25
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
a ser inconcebível que, hábil artista por um lado, não tenha visto o quanto falseava a curteza dos seus temas, se
encompridando com a tenacidade de um advogado. Não
sabia absolutamente pautar o tamanho das suas poesias.
(ANDRADE, 1972b, p. 122).
Dentre os exemplos citados por Mário de Andrade, destaco os poemas “O laço de fita”, que, “com quatro estrofes apenas seria uma joia” (p.122), “Adeus, meu canto” e “Cachoeira
de Paulo Affonso”, que, se “reduzida de uma terça parte, seria
excelente” (p. 122).
Apenas a título de uma questão que será introduzida no
final da minha leitura, abro aqui um pequeno parágrafo, procurando indicar alguns ecos dessa controvertida leitura da poesia de Castro Alves, remetendo as considerações de Mário de
Andrade para aquelas do crítico Antonio Candido, no capítulo
“Poesia e oratória em Castro Alves”, no seu livro Formação da
literatura brasileira (1971). No subtítulo intitulado “Aspectos negativos”, Antonio Candido refere-se à “pujança que embriaga o
leitor”, pois
Nem sempre se contenta com o essencial ou a sugestão:
uma vez embriagado — sobretudo no discurso humanitário — vai implacável às últimas consequências. Para citar
um caso apenas, veja-se o “Epílogo” do poema “Lúcia”,
espécie de moral da fábula do pior gosto; ou os detalhes
pueris e desnecessários de “Tragédia no lar” — que tornam realmente pesado o tributo cobrado pela oratória.
(CANDIDO, 1971, p. 272).
Volto ao texto de Mário de Andrade para salientar que,
em muitos outros trechos de suas reflexões, ele reconhece —
como o fará também Antonio Candido — uma série de aspectos
importantes, até marcantes, na poesia de Castro Alves, como a
sua preocupação social, considerando-o, nesse aspecto, “como
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
um dos nossos poetas de que mais nos podemos orgulhar, atualmente” (ANDRADE, 1972b, p. 115), destacando também “O
navio negreiro” e “Vozes d’África” como “capítulo dos mais
culminantes da rapsódia nacional” (p. 115). Afirmou ainda que
“o grande valor social era fruto do engenho e da força de um
artista admirável que [...] é vivaz, é loquaz, é admiravelmente inventivo e imaginoso, [...] e que, sem ser um gênio propriamente,
tenha sido genial, é incontestável” (p. 110). Por sua vez, referese a alguns poemas, “O voo do gênio, “O tríplice diadema”, “O
fantasma e a canção”, “Os anjos da meia-noite”, “O adeus de
Tereza”, como provas decisivas para uma mudança profunda na
concepção temática de amor na poesia do Brasil, ou como provas de insuspeitada beleza, como é o caso da “Tragédia no lar”,
ao contrário de Antonio Candido, que destaca os “detalhes pueris e desnecessários” nesse poema. (CANDIDO, 1971, p. 272).
As veementes e ambivalentes críticas de Mário de Andrade ao poeta condoreiro suscitaram obviamente diversas controvérsias, pois a sua leitura objetivava uma revisão de valores e, de
maneira polêmica, suscitava “a cólera e os insultos dos ‘donos’
de Castro Alves”. A crítica de Mário é realizada em 1939, quando
já tinham passado os arroubos da juventude — e ele mesmo declara esse aspecto: “Releio Castro Alves cuidadosamente. Releio
com amor e até com patriotismo. Confesso, antes de mais nada,
que ele me fadiga muito agora, neste ano de 1939, e nesta minha
idade já de retorno para o silêncio final” (ANDRADE, 1972b, p.
109). A loquacidade do poeta romântico, aquele mesmo que lhe
emprestou a vigorosa e belíssima metáfora para a representação
dos impasses amorosos de uma primeira experiência amorosa, é
agora percebida sob outra perspectiva de leitura, que não anula,
todavia, a interlocução poética que revigora e atualiza o texto de
Castro Alves no cenário da literatura brasileira. (Vale esclarecer
que Contos novos foi publicado em 1943 e que “Vestido de preto”
está assim datado: Rio, 1939 — S. Paulo — 17/11/43. As duas
leituras coincidem assim do ponto de vista temporal.)
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Já a título de conclusão, observo que esses impasses e essas
polêmicas que se verificam no território das leituras críticas muitas
vezes suscitam outras estratégias de diálogos entre os textos de
uma cultura, propiciando o aparecimento de novos textos que, intencionalmente ou não, respondem a determinadas questões críticas, com uma eficácia tão contundente quanto as polêmicas travadas nos meios literários e acadêmicos. Reporto-me aqui a uma
leitura contemporânea de Castro Alves, efetuada por uma dramaturga baiana, que é também acadêmica, a escritora Cleise Mendes.
Trata-se da peça Castro Alves, que a autora apresenta como um
drama lírico-sentimental e histórico, que restitui ao poeta Castro
Alves o espaço que lhe era mais caro: o palco.
Cleide Mendes considera que Castro Alves manteve com
a teatralidade relações viscerais, profundas, comoventes, e que a
utilizou como uma estratégia poética e política, afirmando também que o palco é o lugar por excelência do poeta: “Palco que
ele soube improvisar onde quer que passasse, nas praças, nas sacadas, nos salões, e até nos camarotes dos teatros” (MENDES,
2003, p. 20). Cleise Mendes escreve então um texto dramático, que foi montado em 1994, no Teatro Castro Alves, a partir
de fragmentos de textos do poeta, episódios da sua biografia,
bem como da história política, social e cultural da época. Esses
elementos dialogam e se mesclam com elementos da contemporaneidade, utilizando-se de uma multiplicidade de discursos e
formas culturais como o folhetim, a novela de televisão, o melodrama musical, o drama histórico moderno, em um processo de
colagem que se apropria do corpo poético, histórico e político
de Castro Alves, atualizando-o não apenas do ponto de vista
de uma arte inserida em uma tradição culta estabelecida, mas
apelando para outras formas que revigoram as diversas potencialidades contidas no texto castroalvino, enfatizando os seus
excessos como uma estratégia poética e política, sem deixar de
considerar também a problemática do mau gosto, evidenciada
em algumas leituras críticas sobre Castro Alves, como a de Mário de Andrade e a de Antonio Candido.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Nesse sentido, é bastante arguto o comentário de Eneida
Leal Cunha em seu texto “A boa ‘conspiração cultural’”, que
serve de apresentação ao livro de Cleise Mendes (2003, p. 7-13),
quando afirma:
Ao recuperar para a cena atual a figura do poeta Castro
Alves, Cleise Mendes, deliberadamente ou não, inscreve
a sua voz numa das mais duradouras polêmicas literárias brasileiras. Seu texto, de certa forma, é uma réplica
contundente ao restritivo, mas célebre, diagnóstico de
Antonio Candido, na Formação da literatura brasileira. Para
Candido, em que pese a “máscula energia do poeta humanitário” (que, aliás, já havia sido ressaltada por Mário
de Andrade), marca a obra do poeta baiano [...] a “incontinência verbal tão brasileira, expressa pela floração de
oradores que constituem a expressão intelectual mediana
do povo” (CUNHA, 2003, p. 11).
As sucessivas leituras e releituras de um texto afirmam,
portanto, a sua fertilidade, a sua potencialidade para ser ressignificado ao longo dos séculos, suscitando múltiplas indagações,
que, muitas vezes, não são imediatamente assimiladas. Ao morrer aos 24 anos de idade, Castro Alves legou à posteridade um
conjunto de textos que nem todos os poetas que tiveram um
transcurso de vida mais longo conseguiram legar. Pois Castro
Alves conhecia a função fabuladora da literatura de capturar a
vida, entrelaçá-la na constelação dos seus signos, das suas palavras. Todas as epígrafes que aparecem em seus poemas, todas as
citações literárias, míticas, bíblicas que se disseminam em seus
textos revelam o desejo de vivificação, de construção de uma
genealogia, de uma nação de poetas, ofertando à humanidade,
a cada época, a cada ser, uma possibilidade de sermos errantes,
nômades, voluptuosos, amorosos, libertários, universais.
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REFERÊNCIAS
ALVES, Castro. Obra completa. (Org., fixação do texto, cronologia:
Eugênio Gomes). Rio de Janeiro: Aguilar, 1960.
ANDRADE, Mário. Contos novos. 3ª. ed. São Paulo: Martins; Brasília:
INL, 1972a.
ANDRADE, Mário. Castro Alves. In: ANDRADE, Mário. Aspectos
da literatura brasileira. 4ª ed. São Paulo: Martins; Brasília: INL, 1972b.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. (Momentos decisivos). 4ª ed. São Paulo: Martins, 1971, vol. 2. (1836-1880).
CUNHA, Eneida. A boa “conspiração cultural” In: MENDES, Cleise.
Castro Alves, Marmelada, Uma comédia caseira, Noivas. Salvador: Secretaria
de Cultura e Turismo, 2003. (Dramaturgia da Bahia).
HOISEL, Evelina. A estética do espelho. Uma leitura do poema “Boa
noite”, de Castro Alves. In: Revista da Academia de Letras da Bahia. nº 42.
Salvador: Academia de Letras da Bahia, março de 1996, p. 365-375.
MATOS, Edilene. Castro Alves: imagens fragmentadas de um mito. São Paulo: EDUC/FAPESP, 2001.
MENDES, Cleise. Castro Alves. In: MENDES, Cleise. Castro
Alves, Marmelada, Uma comédia caseira, Noivas. Salvador: Secretaria
de Cultura e Turismo, 2003. (Dramaturgia da Bahia).1
Evelina Hoisel é ensaísta, pesquisadora do CNPq, professora titular da
Universidade Federal da Bahia, mestre em letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e doutora em teoria da literatura
e literatura comparada pela Universidade de São Paulo, já tendo publicado diversos livros, bem como artigos em jornais e revistas. Eleita
presidente da ALB para o biênio 2015-2017. Desde 2005 ocupa a Cadeira número 34 da ALB.
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O CONTO DE HÉLIO PÓLVORA
Uma visão de conjunto a partir do primeiro livro
Aramis Ribeiro Costa
O
contista Hélio Pólvora inicia-se com o conto “Os galos da
aurora”. Esse conto, que muito mais tarde foi reescrito,
além da alegria da primeira criação literária, proporcionou-lhe
a de vencer, em fevereiro de 1958, o concurso de contos de A
Cigarra, dirigido por Aurélio Buarque de Holanda e Paulo Rónai.
O texto, além de estampado na revista de circulação nacional,
mereceu elogioso parecer dos julgadores:
O conto é de primeira ordem: vivo, excelentemente escrito, e com algo de poético. Obra de escritor feito. Lembra
o admirável Miguel Torga, sobretudo o Torga dos Bichos.
Uma lembrança no mínimo curiosa, considerando haver,
nesse livro do autor português, um conto, “Tenório”, que é, justamente, a história de um galo.
O sucesso do primeiro conto motivou a coletânea de estreia, sob o título do texto premiado. E, ainda em 1958, surgia o livro Os galos da aurora, publicado pela Editora Civilização
Brasileira S.A., Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia. Assim mesmo,
apresentando essa tríplice naturalidade, com capa e ilustrações
de Barboza Leite, um livro que, naquele mesmo ano, iria receber,
juntamente com Os incoerentes, do catarinense Harry Laus, o Prêmio Jornal do Comércio, para o melhor livro publicado.
É também de 1958, 20 de agosto, a crítica de Adonias Filho no Diário de Notícias, do Rio de Janeiro, assim iniciada:
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Esse baiano do sul cacaueiro — que quase sempre serve
de cenário aos contos — hoje fazendo jornalismo no Rio,
é escritor da geração que estreia. De estreante, em consequência, o seu livro. Tendo-o lido nos originais, posso
assegurar que em suas páginas se encontrará um ficcionista
de expressão segura, que não ignora, por outro lado, os
segredos do ofício. Preferindo o conto, embora seja fácil
verificar que não tardará a chegar ao romance, conseguiu
realizá-lo em inúmeras atmosferas como a demonstrar não
temer a variação temática e as consequências técnicas. Os
episódios, que se movimentam sobretudo no plano da
aventura interior, não se encerram naquela tessitura descritiva sempre responsável pela falta de caracterização psicológica. Sendo um narrador, e capaz de captar a paisagem e
a vida no cotidiano, Hélio Pólvora não esquece o sangue
ficcional que se identifica com a própria natureza humana.
Após outras considerações críticas, amplamente favoráveis, Adonias Filho encerra a sua apreciação com uma afirmativa
e um vaticínio:
O estreante Hélio Pólvora assina um compromisso, ao
qual já não pode faltar, com a moderna ficção brasileira.
E a verdade é que muito temos que esperar da obra que se
inicia com Os galos da aurora.
À apreciação do novelista de O Largo da Palma seguiram-se
várias outras, igualmente elogiosas, como as emitidas por Nelson
Werneck Sodré, Ricardo Ramos, Guedes de Amorim, em Lisboa, e Jorge Amado. O primeiro livro, portanto, além de duplamente laureado, o conto-título e o próprio livro, não passou despercebido de um importante editor, da crítica e, provavelmente,
também do público. Curiosamente, apesar de sua qualidade e de
sua importância histórica, o autor praticamente retirou-o de sua
bibliografia, ao reescrevê-lo e reestruturá-lo inteiramente, pondo, em seu lugar, outro livro com o mesmo título.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Como registro histórico, é interessante observar que essa
coletânea inaugural, hoje substituída, era formada por doze contos: “Os galos da aurora”, “Os morcegos”, “Filhotes de passarinho”, “A ninfa e o repuxo”, “O diabo em Baixa Grande”,
“Gedeão e os medianitas”, “O caminho do mar”, “Cadeia”,
“Os velocípedes”, “A velha Joana”, “Aventura ao anoitecer” e
“O violão e a bicicleta”, num total de 143 páginas. Eram textos relativamente curtos, considerando, principalmente, a tendência posterior do autor para o conto mais longo. Entretanto
— como, aliás, ocorreria com todos os demais contos de Hélio
Pólvora daí por diante —, eram verdadeiramente contos, com
núcleos ficcionais definidos e sempre narrando algo, não podendo ser confundidos com nenhum outro gênero breve.
Apesar da simplicidade das tramas, já se notavam, no volume de estreia, os primeiros esboços de experimentações técnicas,
podendo servir como exemplo o mais longo daqueles contos, “A
ninfa e o repuxo”, no qual o fio condutor eram as anotações do
diário de um adolescente com perturbações mentais. A linguagem, em todas as narrativas, apresentava-se clara e correta, embora sem a extraordinária precisão de termos e expressões, e a
riqueza vocabular que mais tarde seriam alcançadas, e denunciava,
pela objetividade, a influência do jornalista, habituado, por força
do ofício, à comunicação imediata com o grande público.
Os contos desse primeiro livro giravam, quase sempre,
em torno de episódios particularmente ligados à infância de
um menino e seus conflitos, impulsos e remorsos, desejos e
frustrações, e fluíam impregnados de uma emoção que se diria
contínua, discreta e pungente, como costumam ser os sentimentos que nos retornam da infância. O menino ou adolescente — personagem constante, em narrativas ora na primeira,
ora na terceira pessoa, havendo, em “Os velocípedes”, curiosa substituição de narrador, do filho para o pai — era acompanhado de personagens recorrentes, como Jacinto e a negra
Ana, galos e passarinhos, e atormentado, permanentemente,
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
por necessidades da infância e da adolescência, seguidas de
consequentes embates de consciência.
A sugestão do conjunto é a da farta utilização de material
autobiográfico, vivências ou relatos de vivência ligados à infância do autor, o que, aliás, estaria concordante com uma declarada
teoria de Hélio Pólvora sobre a utilização do elemento autobiográfico como um dos componentes fundamentais da feitura
do conto. Entretanto, a realidade ou a memória da realidade já
entrava nos seus textos ficcionais curtos, desde esse primeiro
livro, apenas como um detonador da imaginação, levando-o a,
alicerçado nela, construir a sua arte ficcional, e não a utilizá-la
integralmente, como um relato de experiências.
É bem conhecida a estreita relação realidade-memória-ficção, não sendo poucas as teorias erguidas sobre estes três pilares
que, muitas vezes, se confundem e se completam, mas que possuem feições e objetivos diversos. Apresentando-se, além de ficcionista, como ensaísta e crítico, Hélio oferece, em sua ensaística
sobre o conto, gênero de sua preferência, algumas importantes
pistas para as diretrizes e motivações de seus métodos criativos,
desenvolvidos, ampliados e aperfeiçoados a partir do primeiro
livro. Uma delas encontra-se, curiosamente, não num ensaio,
porém na boca do personagem-narrador de um de seus contos
mais festejados, “Meu compadre Tirésio”, que integra a versão
definitiva da coletânea Os galos da aurora:
Linha reta é ilusão, é o caminho mais longo, muitas vezes
a verdade está escondida nas curvas de um acontecimento
que alguém conta assim como eu, de manso. Tem de ser de
manso, porque por mais que o dia dure, ou a noite insista
em ficar, ninguém completa um conto, fica sempre o não
dito, o esquecido. Quem narra, puxa por sua imaginação e
pela dos outros.
Nessa afirmação de um personagem-narrador há, sem
dúvida, todo um código de criação do autor, traduzido na
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
forma de arquitetar e desenvolver as tramas, mas, por igual,
importante revelação das suas fontes narrativas, buscadas e
encontradas, justamente, “nas curvas de um acontecimento”,
curvas que, de repente, submetidas aos artifícios da imaginação, se transformam em novos e, por vezes, bem mais interessantes acontecimentos que os originais. Desta maneira, para
Hélio Pólvora, o conto não se finda, constituindo, ele próprio
— o texto concretizado —, inesgotável veio de novas circunstâncias e interpretações, a instigar e seduzir para a reescrita,
possivelmente na tentativa de, enfim, dizer “o não dito”, ou
lembrar “o esquecido”.
Paradoxalmente se, por um lado, o conto não se finda,
porque não se esgotam as suas possibilidades técnicas e abordagens temáticas de recriação, e há sempre, nas entrelinhas, o não
dito, sugerido ou esquecido, em condição latente para uma nova
feitura, por outro, ao prosseguir sendo reescrito na imaginação
do autor, o conto completa-se — ou acrescenta-se — com o
tempo, na medida em que os conflitos que o motivam vão sendo
resolvidos — ou melhor avaliados.
Na sua maturidade de criação e estudo de literatura, o ficcionista e ensaísta Hélio Pólvora assim se expressou:
...a visão interior buscada pelo conto há de refletir a personalidade e os conflitos do autor-narrador. O conto seria
então um meio de busca e averiguação. Autobiográfico,
quase sempre. O conto é a maneira de o autor-narrador
conviver com certos conflitos básicos. Nesse caso, Diderot-Borges têm razão: o conto completa-se com o correr
do tempo. (A Tarde Cultural, 21/02/1998).
Dessa forma, e na visão particular desse autor, a obra de
arte literária seria também um meio de estabelecer definições
interiores de temas e situações de vida, bem como de determinar o ângulo de visão mais adequado para o eterno binômio
ficção-realidade.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
A evolução do contista, a partir do primitivo Os galos da
aurora, foi direcionada, nos seus componentes formais, para a
linguagem e a técnica, não apenas como elementos funcionais
e fundamentais do estilo, mas também e, principalmente, como
recurso de expressão — no tocante à linguagem — e artifício
de aprofundamento e ampliação do espaço ficcional dentro dos
limites do conto — no que diz respeito à técnica —, na intenção
conjunta de enriquecer o gênero e esgotar as suas possibilidades
narrativas.
Sobre a linguagem, além da evidente riqueza vocabular e
sua exatidão, acentuadas ao longo da obra, é curioso observar a
facilidade que o autor adquiriu em mesclar o idioma escorreito
e, não raras vezes, erudito, ao linguajar vário e criativo do povo,
expressões incultas, mas absolutamente pertinentes ao contexto
narrativo, em particular no ambiente rural, formando, com palavras desiguais, um conjunto harmônico, e revestindo a prosa de
especial colorido, sem descair no desagradável, no inconveniente ou no chulo. Aqui está um exemplo, em “A guerra dos foguetões machos”, conto igualmente integrante da versão definitiva
de Os galos da aurora:
Os foguetões vieram mais tarde, adepois que mandou
buscar noiva, ou mulher de papel passado ou rapariga em
Sergipe, já então aboletado na vida, estabelecido na sesmaria da Jurubeba, com ares, haveres, vagares e melindres de
coronel das brenhas — título despachado pelos pobres e
remediados em razão do crescimento das safras e do esparrame dos seus desassossegos temperamentais.
Note-se como, dentro de uma concordância gramatical
impecável, convivem, num mesmo período, uma palavra como
adepois com outras, como desassossegos, haveres, vagares e melindres;
observe-se a peculiar conotação de vocábulos como aboletado e
esparrame; verifique-se como o mesclado dos termos enriquece,
personaliza e exatifica a narração.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Alternando o ambiente ficcional entre a zona do cacau
do sul da Bahia e os centros urbanos, Salvador e Rio de Janeiro,
variando o nível social e cultural dos personagens e também a
pessoa do narrador, entre a primeira e a terceira, essa linguagem
sofreu variações de conto para conto, permanecendo, entretanto, com as suas características básicas de riqueza e exatidão vocabular, onde se inclui a mescla do coloquial com o erudito.
Também é preciso registrar que foi o domínio da linguagem, unido à observação sagaz do ficcionista — observação não
apenas do cotidiano representado pelas pessoas, suas ações, sentimentos e reações, mas também do cenário onde os acontecimentos se passam —, que o fez primoroso na descrição de cenas e
situações, bem como na ambientação das suas histórias, resultado
obtido com poucas palavras e uma precisão que se diria fotográfica, ou, considerando a dinâmica do entrecho, cinematográfica.
A abertura do conto “A caderneta”, também integrante da versão
definitiva d’Os galos da aurora, serve de ilustração:
Don’Ana finca os cotovelos numa das janelas da sala que
dá para o quintal. E assim fica uns minutos, o rosto colhido
na concha das mãos qual haste de flor murcha. Olha sem
ver, como através de uma névoa, a goiabeira de goiabas
bichadas, o pé de laranja-da-terra, a cacimba de onde pulam sapos no inverno. Além da cerca, no estreito terreno
em declive, há um moinho de trigo, e depois o rio escuro.
Perceba-se como, num parágrafo de poucas linhas e escassos adjetivos, é apresentada a personagem, situada no ambiente, revelado o seu estado de espírito e descrito o cenário
que se descortina diante dela, tudo isso de maneira concisa,
exata e suficiente.
Na técnica, após o domínio dos modos usuais de desenvolvimento de enredo, o contista partiu para uma experimentação que o levou a fixar-se, particularmente, na superposição das
tramas, como uma forma de ampliar o fechado círculo narrativo
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do conto. Ou seja: chegado ao limite máximo de extensão permitido pelo gênero — o horizontal — sem desfigurá-lo, transformando-o em novela, o autor ampliou-o verticalmente, superpondo tramas e conflitos que se cruzam e se completam como
as malhas de uma mesma rede, ou espirais que sobem e descem,
na expansão e aprofundamento do próprio universo ficcional:
uma história dentro da outra história, dentro da outra história, e
todas na vastidão interminável das hipóteses.
Naturalmente que, nessa atitude, estaria aquele desejo da
busca da verdade “nas curvas de um acontecimento”, já expresso pelo personagem-narrador de “Meu compadre Tirésio”, e
permanentemente demonstrado pelo autor. Desta maneira, cada
conto de Hélio Pólvora passou a ser uma surpresa na sua forma
de contar, o que o tornou, pelo êxito dessas experimentações,
um mestre da técnica narrativa do gênero.
A caminhada evolutiva, a partir do primitivo Os galos da
aurora, não se deu, entretanto, apenas nos seus aspectos formais,
mas também nos temas e significados. A matéria ficcional prosseguiu, como não podia deixar de ser, fartamente haurida do
autobiográfico e da realidade cotidiana, com interessantes incursões, sobretudo de significados, na mitologia, na História e
na Bíblia, esta última já encontrada no livro de estreia, no conto
“Gedeão e os medianitas”. Os seus enredos, densos e reflexivos, mas sem abdicarem do núcleo ficcional, ou seja, narrando
sempre uma história, como determina a mais pura tradição do
gênero, passaram a refletir, cada vez com mais intensidade, o
inesgotável universo da experiência humana, traduzido, sobretudo, nos conflitos e nas emoções dos personagens, valorizando
mais os pensamentos que os dizeres, mais as íntimas reações que
as atitudes, mais os significados que as aparências.
De 1958, ano da publicação do primeiro Os galos da aurora, a 2002, da publicação do novo Os galos da aurora, Salvador,
Casa de Palavras, Fundação Casa de Jorge Amado — esta considerada, por Hélio Pólvora, como a edição definitiva do seu
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
livro de estreia, embora seja, na verdade, outro livro —, período
que parece fechar o ciclo mais produtivo do autor no gênero,
foram quarenta e quatro anos de exercício e experimentação do
conto, demonstrados em quinze livros de ficção curta, incluindo
os dois Os galos da aurora: A mulher na janela, Rio de Janeiro, A
Estante Publicações, 1962; Estranhos e assustados, Rio de Janeiro,
Lidador, 1966; Noites vivas, Rio de Janeiro, Expressão e Cultura,
1972; O menino do cacau, parceria com Telmo Padilha, Rio de Janeiro, Antares, 1979; Massacre no km 13, Rio de Janeiro/Brasília,
Antares/INL, 1980; O grito da perdiz, São Paulo, Difel, 1983; 10
Contos escolhidos, Brasília, Horizonte, 1984; Aquém do umbral, Rio
de Janeiro, Pão de Açúcar, 1985; Mar de Azov, São Paulo, Melhoramentos, 1986; Xerazade, Rio de Janeiro, José Olympio, 1989;
Três histórias de caça e pesca / Troisrécits de chasse et pêche (edição bilíngue, com versão para o francês de Jacques Delabie), Salvador,
Mythos, 1996; O rei dos surubins, Rio de Janeiro/Salvador, Imago
/ Fundação Cultural do Estado da Bahia, Coleção Bahia: Prosa
e Poesia, 2000; e A guerra dos foguetões machos, Alenquer, Portugal,Orabem Editora, 2000 — este último uma antologia pessoal
do autor para a editora portuguesa, dentro da coleção Enredos
Brasileiros.
Durante esse tempo o contista foi inserido em diversas
antologias, incluindo estrangeiras, e colaborou com inúmeros
suplementos literários e revistas culturais do país. Além dos já
mencionados prêmios de A Cigarra e do Jornal do Comércio, conquistou outros, como o da Fundação Castro Maya, em 1966,
com Estranhos e assustados e venceu, na categoria conto, por duas
vezes, 1982 e 1986, a Bienal Nestlé de Literatura Brasileira, primeiro com O grito da perdiz, e depois com Mar de Azov. Nesse extenso e aplaudido trajeto, distanciou-se evolutivamente
do contista do primitivo Os galos da aurora, aprimorando estilo
e técnica narrativa, aprofundando e alargando tecnicamente as
tramas, enriquecendo o vocabulário numa costura muito particular de expressões de língua padrão e coloquial, desdobrando
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ou esgotando temas, criando tipos, penetrando cada vez mais
fundo na alma e na condição humanas, construindo, enfim, uma
obra verdadeiramente extraordinária na ficção curta, tanto pela
quantidade quanto pela qualidade da produção.
Após o segundo Os galos da aurora, houve apenas a publicação de um volume contos inéditos em livro: Contos da noite
fechada, Ilhéus, Editus-Editora da Universidade Estadual de Santa Cruz, 2004, um conjunto de quatorze contos, quase todos
anteriormente publicados em jornais ou revistas. Porém a sua
trajetória de contista foi consagrada por três acontecimentos
editoriais da máxima relevância, particularmente para a fixação
de textos definitivos, e para a comprovação da qualidade e da
importância desse ficcionista para as letras nacionais. O primeiro
deles a publicação do volume Melhores contos, com introdução,
bibliografia e seleção de André Seffrin, São Paulo, para a Global
Editora, em 2011. O segundo a republicação, em coleção padronizada, de quatro de seus melhores livros de contos, Noites vivas,
Massacre no km 13, O grito da perdiz e Mar de Azov, pela editora
Casarão do Verbo, Anagé, 2013. E, finalmente, a publicação, em
dois volumes de mais de quatrocentas páginas cada, dos Contos
e novelas escolhidos, selecionados e prefaciados pelo próprio Hélio
Pólvora, integrando a importante Coleção Mestres da Literatura
Baiana, volumes dois e três, da Academia de Letras da Bahia e
da Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, Salvador, 2013,
uma reunião de cinquenta e cinco contos que, entretanto, ainda
deixou de fora mais de seis dezenas, à espera de uma futura e
necessária obra completa.
Ensaísta, crítico e ficcionista para quem a literatura não
tem segredos, o ensaio, a crítica, a crônica e o romance de Hélio
Pólvora também oferecem material largo e fundo para leitura
e estudo, apresentando os diferenciais de qualidade e as inventivas que são a marca registrada desse autor. Aqui, entretanto,
tratamos apenas do conto. Motivo de um trabalho permanente
ao longo de toda uma vida de escritor, a sua produção nesse
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gênero, além de um fértil material para estudo, observação e
análise, constitui um monumento de arte e talento singular da
literatura brasileira, digno de ladear qualquer produção nesse
mesmo gênero em qualquer literatura.1
REFERÊNCIAS
COSTA, Aramis Ribeiro. “O caminho da eterna aurora”, estudo introdutório de Os galos da aurora & outros contos. Salvador, Casa de Palavras,
2002.
PÓLVORA, Hélio. Os galos da aurora. Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia,
Editora Civilização Brasileira S.A, 1958.
PÓLVORA, Hélio. Os galos da aurora & outros contos (edição definitiva).
Salvador, Casa de Palavras, 2002.
Aramis Ribeiro Costa é médico, também graduado em letras. É escritor, autor de duas dezenas de livros de ficção e poesia, entre eles Uma
varanda para o jardim (1993), O mar que a noite esconde (1999), O fogo dos
infernos (2002) e Os bandidos (2005). É sócio do Instituto Geográfico e
Histórico da Bahia e membro do Instituto Genealógico da Bahia. Foi
membro do Conselho Estadual de Cultura da Bahia. Presidiu a Academia de Letras da Bahia na gestão 2011-2013, sendo reeleito para o
período 2013-2015. Desde 1999 ocupa a Cadeira número 12 da ALB.
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DRAMATURGIA, CORPO
E REPRESENTAÇÃO
Cleise Mendes
U
ma das bem conhecidas brincadeiras sérias do crítico
Harold Bloom é sua afirmação de que Shakespeare foi
o verdadeiro inventor da psicanálise, e Freud fez apenas sistematizar, “explicar” aquele desfile de paixões encarnadas em
figuras cênicas que compõem uma espécie de mosaico da alma
humana.1 Como toda frase espirituosa, esta exibe uma reflexão travestida em jogo de palavras. Algo que merece nossa
atenção brilha à tona desse gracejo. Ele nos faz lembrar que
a dramaturgia — não apenas a de Shakespeare, é claro —, em
seu trabalho de produzir imagens de ações humanas, foi talvez
a primeira prática de objetivação dos nossos medos e desejos.
Ao criar um repertório de personagens que se debatem com as
ansiedades de seu próprio espaço e tempo, cada autor dramático ofereceu valioso material para o estudo desses comportamentos em outras áreas de saber – não só a psicanálise.
Se quisermos fantasiar uma origem, podemos imaginar
que a dramaturgia surgiu no momento em que os humanos
criaram seus primeiros deuses e demônios, pois a partir daí
engendra-se uma poderosa matriz para a contínua recriação
de um sem número de histórias, e mais importante: de um
sem número de combates, de situações de enfrentamento entre
1 “A menos que se seja um religioso freudiano, essa é a antiga história da
influência literária e suas ansiedades. Shakespeare é o inventor da psicanálise;
Freud, seu codificador.” BLOOM, 1995, p.361.
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forças rivais, empenhadas numa luta de dimensões cósmicas.
Quando criamos os deuses e demônios, à nossa imagem e semelhança, passamos a contar com protagonistas e antagonistas
de grande poder e largo fôlego; imortais, e portanto envolvidos num conflito eterno. Ora, com uma construção simbólica
tão potente, não é de admirar que em várias tradições teatrais
os primeiros textos dramáticos de que temos notícia surjam
como recriações desse painel de figuras míticas. Os mais antigos poemas dramáticos já descobertos são textos egípcios que
falam de combates entre divindades do bem e do mal. E alguns
datam de 1500 anos a.C.!
Porém, num determinado ponto dessa história, os dramaturgos deixaram o palco cósmico e começaram a projetar
nossas angústias em cenários bem terrenos. Passaram das titânicas batalhas pelo poder no Universo para guerras fratricidas,
para chacinas em nome da fé, para dilemas racionalistas entre o
amor e o dever, para indagações filosóficas, para os segredos e
escândalos da casa burguesa, para a militância política, para os
momentos lacrimosos de reencontro entre pais e filhos, e daí
para as pequenas lutas diárias pela sobrevivência.
Mas, tendo como cenário o céu ou a terra, o que persiste
no modo dramático de figuração do mundo é a incorporação das
ânsias e temores de cada época em recortes precisos, antropomórficos. Aquilo que Nietzsche chamou de “princípio de individuação”: as paixões desordenadas que brotam da lava dionisíaca precisam das formas apolíneas para serem moldadas,
contempladas, vivenciadas e... talvez, talvez... compreendidas.
Precisamos do corpo forte e negro do guerreiro Otelo para vivenciar sua destruição pela picada da pequena vespa do Ciúme;
ciúme que surge não como ideia abstrata, mas encarnado num
corpo branco de mulher e nas palavras tão concretas quanto gotas
de veneno que Iago pinga em seu ouvido. Precisamos do corpo
magro, ágil e amarelo de João Grilo para encarnar a esperteza,
esperteza sem a qual o seu sangue “de pouca tinta”, como o
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
do Severino de João Cabral, não conseguiria mantê-lo vivo por
mais um dia.
Por isso vejo esse trabalho milenar do dramaturgo como
um esforço constante para dar corpo às paixões, para torná-las visíveis e tangíveis, por meio da figuração de conflitos humanos.
A história do drama é não apenas a história da representação de
nossas paixões, mas também a história da produção de diferentes
modos de perceber e vivenciar esses afetos, investidos em imagens
corporais que portam, carregam, significam os embates passionais em cada época e ambiente social. Por isso a via dramática
é também uma via erótica: qualquer ideia, qualquer conceito,
qualquer questão a ser debatida exige o trânsito pela corporeidade, exige que nossa imaginação seja projetada em seres que
agem e padecem, ou seja, são animados pelo pathos em todos os
seus movimentos. De Sófocles a Shakespeare, de Brecht às
rapsódias contemporâneas, o drama é sempre uma experiência
de corpo a corpo, de choque de sensibilidades.
Em seu livro Gilberto Gil: a poética e a política do corpo, Cássia Lopes chama atenção para o fato de que “Se o corpo pode
ser lido como uma metonímia do social, isso se deve ao fato
de abrigar uma carga elevada de tensão, de conflito, conforme
diferentes perspectivas críticas diante da lei, do éthos, sem os
quais não se sustenta o desejo.” (LOPES, 2012, pág.19) No
espaço do drama, esse efeito de condensação atinge um grau
máximo, pois acessamos as significações sociais e éticas por
meio da corporeidade, e os movimentos do desejo têm olhos e
bocas, pernas e braços.
A piada do crítico que citei há pouco revela também uma
disputa insistente que passa pela reivindicação da origem: qual
o primeiro farol que iluminou a base submersa de nossa personalidade? Seriam os mitos gregos levados ao palco, há dois mil
e quinhentos anos, ou a explicação freudiana? A querela existe,
por mais engraçada que pareça, uma espécie de disputa pela
paternidade do Édipo. Mas para explorar também o caminho
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do humor, eu arriscaria dizer que o pai do analista foi o dramaturgo.
E pode-se dizer que é o próprio Freud quem autoriza essa filiação, ao analisar sonhos de personagens como sonhos de pessoas reais, justificando a análise de uma obra de ficção pelo fato
do escritor trabalhar com o mesmo material do comportamento
humano observável, auxiliado por sua imaginação e pela intuição dos profundos impulsos que movem suas ações. “A descrição da mente humana é, na realidade, seu campo mais legítimo;
desde tempos imemoriais ele tem sido o precursor da ciência e,
portanto, também da psicologia científica.” (1997, p.48).
Ciente de que a percepção de motivações inconscientes
sempre alimentou o prazer oferecido pela ficção, Freud dedicou-se à análise das obras de muitos dramaturgos modernos,
como Ibsen e Schnitzler. Não só das tragédias gregas, de onde
parte o grande insight para o Édipo; Shakespeare é citado, a
todo instante, para mostrar, por exemplo, como o dramaturgo
faz seus personagens cometerem atos falhos, e de que modo esse
recurso contribui para revelar as motivações do seu agir. Mas o
que importa, aqui, nessa nítida atração do analista para a dramaturgia e para o teatro em geral, é observar como isso pode
lançar luz sobre a representação das paixões por meio dos corpos em cena. Com tais exemplos, não pretendo (apenas) ressaltar a dramaturgia como modo de apresentação de vários níveis
conflituais, desde os que podem ser objetivados na ação até os
mais subjetivos, ou que traçam mais sutis motivações de comportamento. Trata-se de ver como o drama se constituiu como
“arena das paixões”, e como a proliferação da ficção dramática
em novas mídias só fez adensar essa questão, hoje bem mais do
que na época de Freud. É do embate das paixões, diversamente
corporificadas, que se alimentam não só o teatro, mas a televisão
e o cinema, assim como a crescente produção de jogos interativos em ambiente digital.
Como se sabe, o desejo de compreender as paixões humanas ocupou boa parte do pensamento ocidental, muito antes da
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
psicanálise. E as explicações produzidas são elas próprias muito
apaixonadas! Daí que acompanhar a história de nossas paixões
não é tarefa simples. Em cada época as paixões se expressam de
modo diferente e são também diferentemente percebidas e qualificadas; no interior de um mesmo sistema de ideias, sua descrição é confusa e até contraditória. A impressão que se tem é
que as paixões são regidas por deuses polimorfos. Há paixões
para tudo, para o bem e para o mal: as que conduzem à ação e
as paixões paralisantes, as que movem a criação e as que geram
destruição; há paixões da solidão e do convívio, paixões antigas
e modernas. O resultado disso é que nossa razão, que se pensava única, absoluta, ao tratar com as paixões acaba também se
multiplicando. A Razão faz-se plural: razões.
Nesse caminho, aquele que queira encontrar uma base
estável de oposição entre razões e paixões, vê-se diante de um
quadro complicado. Por isso é possível dizer, sem exagero, que
apesar da preciosa contribuição dos filósofos, foi no espaço do
drama, ao longo de séculos, que as paixões, ao serem objetivadas
em personagens e situações, puderam atrair a atenção e a reflexão
não só de filósofos e analistas, mas do público em geral. E isso
vai da tragédia grega à telenovela brasileira.
Como tópico dos estudos filosóficos, as paixões já foram consideradas como “afecções da alma”, por seu poder de
contaminar os nossos julgamentos. De Platão parte uma certa
linha de pensamento, chegando até o cristianismo, que considera a paixão uma afecção a ser curada, para se atingir a sabedoria, ou a santidade. É contra o pano de fundo desse quadro
ascético — a-pático — que se torna importante a vizinhança
das paixões com a Retórica e a Poética, em Aristóteles. Ao invés de condenar as paixões, como Platão, o filósofo se dedica a
um reconhecimento exaustivo de sua importância, por constatar que as opiniões oscilam de acordo com os afetos. Na Ética a
Nicômaco, encontramos o exame de onze paixões; no livro II da
Retórica são analisadas quatorze paixões. Isso porque a retórica
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
não pode ser meramente demonstrativa. Ela tem que ser também patética, para colocar a audiência numa certa “disposição
de ânimo”. Mas o que chama atenção é que os conselhos do
filósofo ao orador e ao tragediógrafo são muito parecidos. Conhecer as paixões e contar com elas deve ser o primeiro cuidado
de ambos.
Ora, outra coisa não fez a dramaturgia, desde então, seja
na tragédia ou na comédia, como tentei mostrar em estudo
anterior (MENDES, 2008). Mas com uma diferença, com a
sua diferença. Em vez de confiar apenas no efeito patético de
sua fala, como o orador, os primeiros autores de tragédias e comédias inventaram um modo de lidar com as paixões criando
um circuito que vai de um sujeito a outro sujeito, de um desejo
a outro desejo. Nesse processo, cabe à personagem, em sua
inscrição corporal, em sua persona, estabelecer o jogo de proximidade e distância que permite ao espectador a experiência de
conhecer o seu próprio desejo.
Na ficção dramática, argumenta-se com o corpo, ou com
o choque entre corpos que não podem ocupar o mesmo lugar no espaço. Sentimos prazer ao participar do modo como
as personagens “portam” suas paixões, como agentes de um
querer, um querer que coloca em movimento o mundo ao seu
redor. Quando não existe alguém que deseje algo tanto a ponto de transformar o seu impulso em ações, ações que transformam situações... então é a própria possibilidade do drama
que entra em colapso, e disso temos abundantes exemplos na
dramaturgia contemporânea. Se outro alguém deseja o mesmo
que eu, nossos esforços entram em colisão, e os obstáculos podem ser materializados. Mas a partir do drama moderno, contemporâneo do advento da psicanálise, as coisas se complicam.
Começamos a encontrar personagens apáticas, que não conhecem o próprio desejo, e com isso perdem autonomia dramática
e se desintegram como unidade psicofísica. Ou seja: se as paixões saem de cena, os corpos se despedaçam, até se tornarem
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
fragmentos, vestígios, farrapos, como vemos nas últimas peças
de Samuel Beckett.
A paixão que se dá a conhecer é fatalmente representação, astúcias de mímese, jogo de espelhos; a paixão que se
comunica é linguagem, retórica, com todo seu poder de mover
os afetos da audiência. Mas é no trânsito pelo corpo que a ficção
dramática exerce a sua força. A paixão que se encena está ancorada em imagens corpóreas que são inseparáveis das marcas históricas ou psicológicas. E isso se torna ainda mais concreto na
passagem do dramático ao cênico. A atriz que está diante de
Branca Dias — personagem da peça O Santo Inquérito, de Dias
Gomes — só pode acessar sua ingenuidade, sua alegria, através
do belo corpo de uma jovem e de uma voz que afirma sentir
a presença de Deus nas coisas que lhe dão prazer. “No vento
que me fustiga os cabelos quando ando a cavalo, na água do
rio que me acaricia o corpo quando vou me banhar. No corpo
de Augusto, quando roça no meu, como sem querer. Ou num
bom prato de carne-seca, bem apimentada, com muita farofa,
desses que fazem a gente chorar de gosto.” (1979, p.30). É pela
mediação desse corpo tão devoto e tão desejante que se torna palpável também a crueldade dos senhores da Igreja que precisam
destruí-lo para acalmar os seus próprios medos.
Quando escrevi minha peça teatral Joana D’Arc — uma
das muitas construções possíveis dessa figura que oscila entre
a história e o mito — percebi que tão importante quanto os
acontecimentos que tecem essa incrível biografia era o fato de
que foram vividos por uma camponesa saudável, robusta, num
corpo de 17 anos. Um corpo intocado pela experiência sexual
e que conhece seu êxtase no furor das batalhas. Um dos seus
maiores inimigos, o Conde de Warwick, representante da Coroa Inglesa e advogado ferrenho de sua condenação à fogueira,
não acredita que, depois de libertar Orléans e coroar o rei Carlos, Joana queira deixar os combates e voltar a sua vida pacata.
Diz Warwick:
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Ir embora? Longe disso! Claro que o rei Carlos já tem a
sua coroa, e agora daria tudo para que essa donzela fosse
embora! É uma garota muito incômoda, sempre com a
mesma conversa de vozes e batalhas. Sempre a mesma
ladainha de “Deus salve a França, e extermine nossos inimigos”. Sempre insaciável, pedindo homens, armas, provisões. Sim, o rei adoraria ter um pouco de sossego, coitado, de poder voltar aos seus jantares, às suas caçadas...
e que ela voltasse para sua aldeiazinha, para sua vidinha,
para rezar na sua igrejinha... Mas, ela? A Donzela guerreira? Ir embora? Não conte com isso! Agora a virgenzinha
sentiu o gosto do sangue, a excitação da luta, o prazer
de comandar homens e de rolar no chão roçando com
a morte! Agora o seu corpo intocado sentiu o fogo das
batalhas! A castidade dessa moça se alimenta da guerra,
está viciada em guerra! Não, acredite! Ela não vai embora de boa vontade! Nós temos que providenciar isso!
(MENDES, 2009) 2
O que permite que a saga de Joana seja uma história do
século XV e também do século XXI está cifrado nesse corpo
de mulher que usa roupas masculinas como proteção, como
armadura, e isso vai da comédia shakespeareana ao sertão rosiano de Diadorim. A cada vez que entra em cena, no tablado
da História, o corpo produz um desconcerto, exibe o seu poder de
escândalo: seja exposto e multiplicado em vitrines, seja queimado até as cinzas.
Em As formações do inconsciente, tratando das fantasias do
sujeito obsessivo, Lacan nos oferece esta observação preciosa:
“Toda vez que falamos de fantasia, não convém desconhecermos o aspecto de roteiro ou de história, que constitui uma
de suas dimensões essenciais. (...) Ela é algo que não apenas
o sujeito articula num roteiro, como no qual ele próprio se
Joana D’Arc estreou em novembro de 2010, na Sala do Coro do Teatro
Castro Alves, sob a direção de Elisa Mendes.
2
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
coloca em cena.” (1983, p. 421). Em nossos muitos palcos,
internos e externos, o desejo é posto em movimento em coreografias complexas, gerando novas e novas cenas, que são
variações incessantes da cena de um querer que nos antecede,
e que sobrevive a nós; mas esses quereres não surgem diante de
nós idealizados, apenas como “movimentos da alma” ou como
conflitos psíquicos; eles estão materializados na corcunda de
Ricardo III, nos grunhidos grotescos de Calibã, no nariz de
Cyrano de Bergerac, nos pés arrastados de Mãe Coragem, nos
pés inchados dos vagabundos de Beckett, na pele sem manchas
da Dorotéia de Nelson Rodrigues.
É isso que me faz ver a arte do dramaturgo como um
ofício de dar corpo às paixões. Dar-lhes um corpo e uma voz.
Uma persona. Personificá-las. Presentificá-las, produzi-las em
nossa presença, como realidade física, material, sonora, visual;
compartilhá-las no banquete entre palco e plateia. Pois se elas,
as paixões, não tiverem um corpo e uma voz, o que será de
nós? Como vamos reconhecê-las?
REFERÊNCIAS:
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco: Poética. São Paulo: Nova
Cultural, 1987.
_____. Retórica das Paixões. Prefácio de Michel Meyer. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BLOOM, Harold. O Cânone Ocidental. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995.
DIAS GOMES. O Santo Inquérito. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
FREUD, Sigmund. Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
LACAN, Jacques. O Seminário: as formações do inconsciente. Livro
5. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1983.
LOPES, Cássia. Gilberto Gil: a poética e a política do corpo. São Paulo:
Perspectiva, 2012.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
MENDES, Cleise F. Joana d’Arc. Texto e programa da montagem
de 2009. Cópia reprográfica. Salvador: Da Rin Produções Culturais,
2009.
MENDES, Cleise F. A gargalhada de Ulisses: a catarse na comédia. São
Paulo: Perspectiva, 2008. (Estudos, 258)3
Cleise Furtado Mendes é autora teatral, atriz e professora de Dramaturgia e Análise de Texto na Escola de Teatro da Universidade Federal
da Bahia. É também ensaísta, contista e poeta. Entre suas obras para
o teatro, encontram-se Castro Alves, drama histórico em dois atos, e A
casa de Eros, peça em quatro atos. Foi membro do Conselho Estadual
de Cultura da Bahia. Desde 2004 ocupa a Cadeira número 6 da ALB.
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O PROTESTO NO CONTO
DO CANTO DO ACALANTO
Yeda Pessoa de Castro
E
ste tema não é novo, mas vai ser tratado a partir da análise
de um novo tipo de dado obtido através da pesquisa de
natureza etnolinguista que tomou como verdadeiro o princípio
epistemológico de que a língua natural de um povo é o testemunho vivo mais antigo da história desse povo, cuja tradição oral é
depositária e transmissora do acúmulo de experiências materiais
e espirituais por ele vivenciadas.
Os resultados obtidos dimensionaram de maneira mais realista as privações inerentes à mulher negra e mãe no contexto
socioeconômico em que ela foi colocada durante o escravismo
colonial no Brasil. Ao mesmo tempo, desvendaram formas cotidianas de resistência em apoio aos seus valores matriciais, até
então encobertos pelo comando do silêncio com que ela atuou
na intimidade da família senhorial e na constituição identitária
do povo brasileiro.
A MATRIZ AFRICANA
Na condição de país ponte de extremos socioculturais,
o Brasil participa, sucessiva e conjuntamente, de três espaços
legítimos:
— o espaço sulamericano, devido a sua situação geográfica continental;
— o espaço ocidental, eurocêntrico, com predominância
no domínio da produção econômica e da tecnologia;
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
— o espaço africano, com maior incidência no âmbito
cultural em consequência da própria história do Brasil.
Tendo em vista que a cultura é traço fundamental da identidade de um povo, conclui-se que o espaço africano foi uma
parcela das mais significativas na configuração do perfil da identidade brasileira, no que pese a herança colonial portuguesa e a
ancestralidade de seus povos indígenas. Ainda sob essa óptica de
interpretação, temos de considerar a interação sociolinguística
dos seus principais agentes, no caso, os falantes africanos em
contato com o português arcaico no Brasil colonial.
Explicar o avanço do componente africano nesse processo é uma questão que deve ser encarada sem as reações racistas
e classistas que se lhe antepõem. Em outros termos, focalizar
o negro como personagem atuante e verdadeiro no desenrolar
dos acontecimentos que lhe foram favoráveis para exercer um
tráfico de influência de interesses complementares, através de
um movimento implícito de africanização do português e, em
sentido inverso, de aportuguesamento explícito do africano sobre uma base indígena preexistentee mais localizada no Brasil.
Ao longo dessa trajetória de interação étnica e cultural e
ao mesmo tempo em resistência a ela, uma confluência de motivos preponderantes deve ser levada em consideração. Primeiro,
uma população negra majoritária durante três séculos consecutivos, o que determinaria, no sec. XVIII, o desaparecimento de
uma língua franca corrente no Brasil que se dizia de base tupi, e
uma percentagem de 75% de afrodescendentes em sua população total, segundo o censo demográfico de 1822. Em seguida, o
isolamento territorial e social em que foi mantida a colônia até
1808 sob o modelo patriarcal da casa-grande e senzala, que condicionou um tipo de vida de aspecto conservador e de tendência
à aceitação de aportes culturais mútuos de interesses comuns e
niveladores (cf. CASTRO, 2001/ 2005).
Nesse contexto histórico destaca-se a influência socializadora da mulher negra na condição de mãe-preta no âmbito da
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
família colonial brasileira e sua influência, uma vez falando português como ladina, na formação psicolinguística da criança. No
presente caso, não apenas da criança branca. Sabemos que a exploração sexual da mulher negra, de preferência mucamas e criasda-casa, logo cedo resultou no processo de miscigenação biológica que ainda prevalece no Brasil, àquela época, devido ao número
relativamente menor de mulheres brancas, mas, sobretudo, como
uma forma de dominação, em geral interpretada por este ângulo:
o “senhor” que se torna objeto no qual se realiza a superexcitação
provocada pelos atributos físicos e nudez da escravizada, o que
torna inevitável a investida sexual (cf. GIACOMINI, 1988).
Exemplo significativo dessa falsa visão de moral burguesa
é a imagem da lendária Xica da Silva que foi veiculada com sucesso pelo filme do mesmo nome, produzido por Cacá Diegues
nos anos 80. No filme, interpretada pela atriz negra Zezé Mota,
aquela crioula de origem mina, que vivia na região de Diamantina
em Minas Gerais do século XVIII, é transformada em “heroínasexo” do tempo da escravidão no Brasil, representando o símbolo de exageração da lascívia que chega às raias da ninfomania,
conseguindo fama e fortuna sob a proteção do rico contratador
português João Fernandes, apesar de toda a reprimenda que sofria
por parte da sociedade local (cf. MOURA, p.98). Pode até ter sido,
mas é preciso observar que a mulher negroafricana, a priori, sem
o ensinamento do cristianismo, desconhecia a noção do “pecado
original” não sentindo, por conseguinte, vergonha de mostrar o
corpo e exibir a sua sexualidade num desprendimento que a tornava presa fácil do apelo sexual provocado pela sua nudez ante os
olhos do colonizador europeu, temente a Deus.
Em relação ao seu desempenho na condição de mãe-preta, o componente subjetivo presente nos atos de amamentar,
acalentar e cuidar da criança branca serviu para projetar a imagem da “boa ama” que teria se caracterizado pelas relações harmoniosas com os “senhores”, graças ao reconhecimento pelo
privilégio de gozar da sua vida familiar. Entretanto, o que surge
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
da pesquisa e de forma surpreendente é o protesto negro contido na delicadeza e ternura do seu canto de acalanto.Nele, a
expressão carinhosa e de aparência ingênua disfarça uma cantiga-de-mal-dizer, ou seja, a crítica sutil, mas acerba, da revolta de
quem serve para quem esta obrigatoriamente servindo. Se não,
vejamos o que diz o acalanto.
O COMANDO DO SILÊNCIO
Mais do que omissa na História do Brasil é a imagem que
ficou da mulher negra no papel de dublê, silente e anônimo, que
lhe coube representar, episodicamente, na condição inevitável de
escravizada servindo de mãe-preta, ou seja, posta em cena para
correr os riscos, sem perdão pelo erro, na função ingrata de criar o
filho da mulher branca do colonizador europeu, autores e executores reconhecidos do seu drama. De sua parte, presa inexorável
daquela trama cruel, sua personagem representava a imagem do
conformismo feito de uma abnegação irracional, quase covarde,
perante uma plateia tão alheia à sua condição humana de mulher e
mãe que a identificava pela cor preta como se fosse um animal ou
alguma coisa inanimada circundante à margem de um elenco de
protagonistas brancos, que, no entanto, dela extorquiam o instinto
maternal e o afeto em benefício próprio.
Enfocada sob essa ótica racista e bestial, ou seja, pela
eventualidade de sua serventia de fêmea-objeto de uso doméstico como ama-de-leite no mundo dos brancos, depois por eles
chamada, pateticamente, pela alcunha de “mãe-preta” como um
mecanismo psicológico de compensação, esse tipo de mulher era
apreciado pelo aconchego da corpulência e seios fartos de uma
maternidade bem sucedida, que determinaria a sua escolha para
ser escrava dos cuidados e da amamentação dos filhos-família,
herdeiros da casa-grande. No entendimento dos mesmos autores,
um ato de imposição brutal dessa natureza devia ser considerado
como um privilégio que, à semelhança de um animal domesticado,
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
ela estava obrigada a agradecer com o silêncio reverente da obediência e o gesto de subserviência respeitosa e passiva sob qualquer
circunstância, enquanto vivesse, e que, na realidade, não aconteceu bem assim.
Do seu lado, como personagem atuante no processo, aquela mulher solitária e heroica vivia, no suplício terrível da escravidão, o conflito íntimo e desesperado da mãe forçada a criar um
desconhecido, multiplicador em potencial de outras amas-de-leite
e mães-pretas iguais a ela. Para aumentar seu tormento, aquele ser
indefeso era uma forma inocente de vida, de cuja vida dependia
a sobrevivência dela e a do seu próprio filho, quando cedo não
lhe tinha sido arrancado impiedosamente, e a quem ela terminaria
por entregar o carinho, movida pelo sentimento feminino de recompensa por uma maternidade frustrada. Em troca, esse gesto
de amor se transformaria em objeto de chantagem sentimental
de quem lhe tirava o afeto, enquanto dela exigia os caprichos devidamente realizados e as mágoas prontamente consoladas, sem
consideração para a possibilidade humana de erro.
Frente à crueldade desse jogo arbitrário de vida e morte,
onde a morte era um trunfo que significaria a perda inevitável de
um duplo investimento para o patrimônio colonial, de um lado,
o desaparecimento de um herdeiro da família qualquer que fosse
a sua causa, e, fatalmente, do outro, a punição sobre a sua escrava propriedade doméstica, é preciso ver, na imagem abnegada e
silente representada pela mulher negra na condição de mãe-preta com notável dedicação, uma estratégia de luta paciente e corajosa, ou melhor, a manifestação sensata e contida do inconformismo, declarado sob maneira pacífica, mas sem a passividade
inconsequente que aparentava. Seus gestos e ações de protesto e
de resistência, horas sutil, horas frontalmente contra a opressão
cotidiana do mundo hostil e estranho ao seu redor, ela por vezes
e certamente os levava ao extremo de acabar com a própria vida,
única opção para provar que, em se matando, logo existia, antes
que se deixasse levar pelo instinto mais forte de sobrevivência.
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Assim encarada sob a ótica de um espectador mais atento,
sua personagem, embora construída pela força do ressentimento recôndito de revolta por que passa uma mãe cujo filho é tirado do seu carinho, ela foi animada pela feição cordata e singela
que, no convívio diário da casa-grande, representava sua arma
de defesa feita em ternura contra possíveis torturas físicas. Ao
mesmo tempo, constituía uma forma de resistência velada de
ameaça sobre quem sabia do seu poder tradicional de lidar com
ervas e raízes de várias espécies medicinais. Hipótese muito provável, quando casos não faltam para contar de morte inusitada
ou por envenenamento provocado a donos de escravizados em
todos os tempos (cf. VILHENA, 1921, Tomo II, p. 138).
O PROTESTO DO CANTO
Diante dessas circunstâncias sóciopsicológicas eventualmente favoráveis à luta empreendida sem trégua pela sua integridade física e dignidade humana, a mulher negra, como “mãe que
no parto sente dor” 1 e que apenas se mostrava resignada com a
dor que sentia, aproveitava, com argúcia e sutileza, os raros momentos de liberdade menos vigiada, para romper, “em seu seio a
transbordar carinho” 2 o protesto contido na cantiga entoada do
seu canto, enquanto no embalo do acalanto (Cf. VIANNA, 1957):
Autoria de Tatau, do Bloco Afro Olodum, Protesto Olodum, Salvador,
1989. Cf. Gênesis, III, 16: “E à mulher diz...com dor parirás”.
2
Do famoso soneto Ser Mãe do poeta maranhense Coelho Neto
(1864-1934)
1
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Su, su, su, su, menino “assu”
Cara de gato, nariz (inho) de peru.
Su, su, su, menino mandu,
Cara de gato (pato), nariz de peru;
Su, su, su, menino mandu
Quem te pariu que te dê caruru
Cantiga de ninar muito conhecida na Bahia, o verso final,
em alto e bom tom português, equivale a dizer “quem pariu os
seus (dito Mateus), que o embale/balance”, ou então, na expressão baiana, “que cuide do seu mandu”, isto é, cada um que assuma a responsabilidade da consequência dos próprios atos e não
a transfira para quem nada tema ver com isso. No presente caso,
a criação do filho branco do colonizador, cuja mulher deixava
aos cuidados de uma negra parida como se ele fosse um estorvo
para a rotina já enfadonha da sua vida senhorial. Nas palavras da
mãe negra, um “mandu” que, mais parecia um albino (“assu”,
aço) pela brancura dos traços físicos, ou alguma espécie de bichinho estranho, de cara esquisita, do que filho nascido de gente
igual a ela, a quem não lhe cabia alimentar, muito menos com
sua comida nativa, o caruru feito com quiabo (Hibiscus esculentus)
trazido de Angola (cf. CASTRO, 2001/2005).
Essa mágoa desabafada pelo canto carregado de ironia jocosa torna-se mais incontida na variante do verso final, “quem
te pariu, que te beije no cu”,ora, que se curve ao tormento de
contentar seus caprichos e humilhações absurdas e descabidas,
quando se sabe de exemplos de casos reconhecidos de sadismo praticados em todos os tempos nos escravizados (FREYRE,
1964, Tomo II, p.513-515).
Ainda o desprezo pela figura humana da mulher negra e
mãe dava margem à permissividade que lhe servia para usar da
expressão nua e crua no trato carinhoso com a criança. Em situações como tais, o riso largo e superficial no seu rosto, que
disfarçava, no canto, a timidez nervosa do choro recolhido da
►► 59
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
sua dor, tomava, aos olhos alheios, a conotação racista de uma
manifestação histriônica, supostamente natural em uma “cara
preta” igual à dela. Sob essa ótica distorcida, ela era vista como
um corpo sem rosto humano, um arremedo de caricatura engraçada e amedrontadora pela feiura absurda que lhe era atribuída
à semelhança da “careta do boi”,também de “cara preta”, cuja
imagem mete medo ao “menino branco bonitinho”, em um dos
mais populares acalantos do Brasil (cf. PEDREIRA, 1978):
Não, não, não
Não, coitadinho,
Não pegue este menino
Que ele é muito bonitinho.
De sua parte, contrapondo esse tipo de visão grotesca e
racista da pessoa do negro como “bem de uso” no mundo dos
brancos, a mãe negra comparava maliciosamente aquele “menino aço”, que embalava, à figura de um “mandu”, para ela visualizado com a delicadeza infantil de um boneco fora do comum,
por isso, feio, ou melhor, “bonitinho”. Ele era branco, de olhos
claros, lábios afinados, que ela imaginava tendo a graça da cara
de um gato ou pato, e, ao chorar, ficava com o nariz vermelho
igual ao do peru, animais domésticos com os quais certamente
convivia e também ajudava a criar.
A demonstração desse sentimento de desconforto diante
daquele “mandu” e do desejo de afrontar seus opressores torna-se mais explícito no descompasso encontrado na variante da
quadra seguinte (Cf. BASTOS, 192; VIANNA, 1957):
60 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Este menino
não quer se criar, os anjos do céu
que lhe venham buscar (ninar)
Este menino é do céu
não se cria,
tem um buraco no c... (umbigo)
que assovia.
O TESTEMUNHO DO ACALANTO
Por sua vez, para o colonizador, o uso da expressão irreverente, de teor escabroso em cantigas de berço já era uma tradição
conhecida em Portugal, e, portanto, trazida por ele para o Brasil.
Os exemplos seguintes, tirados dos autos de Gil Vicente (1946,
Tomo I, p. 68 e 365), muito populares à época em que foram escritos, século XVI, coincidentemente nos primórdios da colonização
do Brasil, podem ter sido transformados pelo canto da mulher
negra na versão ouvida na Bahia, devido àssuas semelhanças de
traços formais básicos e temáticos em português arcaico:
Ro, ro, ro,
Nuestro Dios e Redentor,
no lloreis que dais dolor,
a la Virgem que os parió.
(Auto da Sibila Cassandra, 1511, Cena II)
Ru, ru, ru,
menina, ru, ru,
mourão as velhas e fiques tu
co’a tranca no cu.
(Comédia de Rubena, 1521, Cena II)
Se assim aconteceu, o menino mandué testemunho do
protesto negro rompido no seio da família escravista no Brasil,
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
enquanto objeto e instrumento da influência socializadora exercida pela mulher negra no papel de mãe-preta sobre um elenco
de protagonistas brancos. Como palco, o espaço circundante à
convivência diária no cenário interior da casa-grande.
A atuação sociodinâmica da sua personagem na intimidade
desse ambiente doméstico e conservador projetava, necessariamente, a interação de ambos em plano moral de interesses oposto,
mas necessários. No presente caso, a partir da resistência da mulher negra e mãe, manifestando-se como afirmação de auto identidade por meio de componentes de natureza cultural e emocional
do seu cotidiano face a outros costumes sociais e representações
simbólicas. Entre eles, ingredientes e pratos da sua dieta habitual
que enriqueceram a mesa do colonizador e tornaram a cozinha
baiana uma das mais famosas do Brasil, a exemplo do apimentado
caruru no (azeite de) dendê versus o bacalhau com azeite (de oliva)
que “sabe bem” na expressão portuguesa, e a conotação do termo
mandu ante o significado amedrontador dos papões e similares
trazidos nos acalantos de Portugal ao encontro dos tutus e quimbundos do mundo angolano (PEDREIRA,1978;CASTRO,1978).
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
O DESAFIO NO CONTO DO CANTO
O mesmo pode-se dizer da sua atuação no processo de
socialização psicolinguística da criança a quem, enquanto ladina,
ensinava modos de dizer e formular elementos comuns e essenciais da comunicação diária com o português, mas em alto e
bom tom africano, isto é, decalcando o português ouvido do colonizador a sons e conotações conhecidos da sua língua nativa, a
exemplo da onomatopeia “ru”, na cantiga de berço portuguesa,
para “su”, também com o sentido angolano de dormir, no acalanto brasileiro. Esse tipo de fenômeno linguístico, considerado
natural em uma situação de bilinguismo por parte de quem começa a falar uma língua estrangeira, cuja tendência é transferir
para a língua adquirida hábitos de sua língua materna, no presente caso, do português para uma língua africana, a princípio
pode ser visto, no regime da escravidão, como um mecanismo
psicológico de resistência do negro contra o fato de se sentir
coagido a saber usar com clareza uma língua determinada para
melhor atender a seus donos, tal qual um animal domesticado
em cativeiro.
No caso da mulher negra, a nível prático de interação social dentro do ambiente familiar da casa-grande, aquele falar de
algum modo aprendido a contragosto, mas necessário porque
lhe conferia um certo prestígio individual de que gozavam os escravizados ladinos, terminaria, consequentemente, elevado por
ela como um desafio ante o “senhor”. Ao falar português, no
caso, a língua do branco que o branco estimava como “língua de
gente”, ou seja, articuladamente humana, podia mostrar em tom
de ameaça velada, mas a viva voz, que era um ser racional entre
muitos outros, com direito humano à liberdade, nem que fosse
rebeldia, pela fuga até o refúgio e proteção dos quilombos.
Sob a condição de ladina e, depois de crioula, já nascida
no Brasil, portanto, mais desligada de sentimentos nativistas em
relação África e suscetível à aceitação de valores coloniais euro►► 63
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
peus então predominantes, a mãe negra atuaria na família e na
vida doméstica da sociedade escravocrata do seu tempo como
figura mestra no processo de formação do perfil da “estrutura mental” do brasileiro. Poder falar, enquanto bilíngue, a duas
comunidades culturalmente diferenciadas e delas participar, era
um exercício que lhe permitia praticar um tráfico de influências
sobre um número maior de ouvintes, no seu caso, desde a infância, através de um movimento implícito de africanização do
português e, em sentido inverso, do aportuguesamento do africano, justificando, portanto, o ditado popular “diante de ladino
melhor ficar calado”. Como lhe deve ter ocorrido e também a
crioulos em outros afazeres que não domésticos, o intento, antes
de tudo, era querer impor e comprovar, pelo próprio exemplo, a
existência social do negro por força da comunicação oral projetada em plano factível de entendimento comum entre diferentes
locutores africanos por um lado e, por outro, entre esses e o
português, como verdadeiramente aconteceu.
AO EMBALO DO ACALANTO
A consequência, entre outras, da amplitude e profundidade do alcance desse entendimento comum naquele processo de
influências psicolinguísticas múltiplas, deu ao português do Brasil
um caráter próprio que o identifica como uma língua diferente da
que é falada em Portugal e permeou, no campo religioso, a estrutura de pensamento maniqueísta de formação ocidental e judaicocristã do brasileiro com a visão negroafricana e não cartesiana do
mundo no processo que foi chamado de sincretismo religioso. Em
outros termos, o brasileiro aprendeu uma lição de vida que não é
nova, ao entender o fato de que não há conflito de fé em praticar
duas religiões ao mesmo tempo, se cada qual mantém a sua identidade assinalada por planos diferentes de adoração, com apelações
próprias e praticas rituais em espaços adequados, a partir do principio universal de que a essência de Deus é Única, independente
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
dos diferentes nomes pelos quais Ele costuma ser invocado por
cada grupo humano, e do ensinamento de sabedoria ancestral da
eterna Yalorixá Olga de Alaketu, segundo a qual “cada favor tem
seu merecimento”. Assim sendo, divindades do panteão africano
e santos católicos não passam de expressões culturais da Sua Vontade Suprema. São equivalentes em traços míticos, mas não são
iguais (cf. CASTRO, 2008).
Caso notável desse tipo de interação provocada pela força de resistência da mensagem ressentida de protesto da mulher
negra querendo dizer, numa citação muito popular na Bahia,“mãe
é quem cria, não é quem pare”, ou seja, não é um mero processo biológico, está na consagração da palavra caçula pelo seu uso
corrente no português brasileiro. De tal maneira essa palavra foi
integrada em forma e conteúdo pela ação socializadora de sua
personagem na vidada família brasileira em suas raízes históricas
que se perdeu da memória dos brasileiros a sua origem africana e
tomou o lugar, por falta de uso, da palavra portuguesa benjamim,
como se diz em Portugal,com o mesmo significado de “filho mais
moço”. Para assinalar mais ainda o dimensionamento psicossocial
da sua atuação nesse processo, o caçula continua sendo visto,através de uma expressão corrente no Brasil, como “o dengo da
família”, herdeiro da tradição do dengo, dos mimos e das vontades
sempre atendidas, na voz angolana de quem o criou. Nesse contexto,“dengo” também é sinônimo de caçula em língua angolana,
e, por sua vez, o termo benjamim passou a nomear um conector
de corrente elétrica no português do Brasil.
Através dessa ótica realista de interpretação, o desempenho daquela mulher servindo de mãe-preta durante a escravatura no Brasil não pode ser separado do contexto sociocultural
mais amplo em que ele se insere nesta história, a começar de
casa. Dentro dessa, sua personagem decididamente aproveitouse da oportunidade para exercer influência em família, incorporando-se à vida cotidiana, fazendo parte de situações realmente
vividas e interferindo no comportamento da criança através de
►► 65
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
determinados mecanismos de natureza psicossocial e dinâmicos. Entre eles, o afeto e o mimo expressos no dengo devotado
ao caçula, alimentado no embalo do aconchego de seu canto
de acalanto,onde ela introduz, no conto dos versos,palavras da
sua língua materna que terminariam apropriadas pelo português
brasileiro, enriquecendo e alargando o imaginário simbólico da
língua portuguesa como um todo3.
Diante da realidade desses e de outros acontecimentos
diários que, provavelmente, eram percebidos pelo colonizador
como uma intrusão indevida e inóspita em seu domínio particular, visto que interagiam dentro de casa, a projeção da imagem
da mãe-preta abnegada e omissa veio atender à convivência de
prevenir a rebeldia e assegurar, no anonimato, a submissão de
sua personagem. Posta em prática, o objetivo era circunscrever
o âmbito de suas ações, colocando-a,conforme a expressão popular, “no seu devido lugar”, no caso, à margem da intimidade
do convívio familiar, onde ela devia permanecer silente e passiva, coisificada como preta e escrava-doméstica “que conhecia o
seu lugar”, ou seja, os limites de comportamento que então lhe
eram impostos e para quem todo dia era “dia de branco”, sem
domingo para folgar.4
Por esse motivo inconfessado, aquela imagem foi mascarada pela suposta irracionalidade atribuída ao comportamento
do negro por questão de racismo, tomando para tanto determinadas características individuais facilmente identificáveis, enquanto mulher, com o preconceito sexista da ideia de fragilidade feminina. Em outros termos, uma fragilidade concebida por
3
Para a verificação das etimologias dos vocábulos de base africana,
aqui denominados de angolanos, cf. CASTRO 2001/2005.
4
De referência ao dito corrente “segunda-feira é dia de branco” que
certamente foi usado pela escravaria em alusão a uma nova semana de
trabalho forçado no eito após a folga de domingo em obediência às
obrigações religiosas impostas pela Igreja Católica.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
oposição à brutalidade da força física postulada para o homem.
Por esse falso pressuposto, a mesma força o predispõe a ações
de coragem e heroísmo, ao contrário do que se espera do ímpeto
da mulher, ou seja, certa covardia inerente à sua natureza submissa e conformada pelo instinto da maternidade, o que também não é verdadeiro.
Assim, durante o escravismo no Brasil, a figura humana
e sofrida da mãe negra representou o ideal de imagem da resignação feita de um conformismo quase animal, vivendo o papel
da mãe-preta na criação do colonizador. Ao mesmo tempo, essa
imagem, que aparentava, servia-lhe de propósito, como um recurso necessário ao processo constante de luta, paciente e corajosa, contra a crueldade brutal de que era duplamente vítima
como mulher e mãe. Desmascarando, portanto, todo o tipo de
preconceito contido sob a conotação afetiva que foi dada à alcunha de mãe-preta pelo seu criador, a começar da “cor preta” que,
em português, qualifica animais irracionais e seres inanimados, é
possível revelar e reconhecer a atuação daquela mulher solitária
e heroica na história que ela, com carinho e mágoa, também se
dedicou a fazer para o Povo Brasileiro, mais por uma tenacidade
sobre-humana do que pela comiseração do seu sofrimento dramático, romanceado pela literatura brasileira em prosa e verso.
QUEM CANTA UM CONTO
Para surpresa dos autores e espectadores dessa trama violentamente engendrada por um elenco de protagonistas brancos
na era da colonização do Brasil, a mãenegra,na função de dublê
da maternidade alheia, transformou em voz de protesto e em
ações de resistência o silêncio e a subserviência que eram exigidos de sua personagem face à inevitabilidade da situação que lhe
fora imposta como escravizada na obrigação de cuidadora e nutriz dos filhos alheios, vivido em um enredo familiar na casados
seus próprios donos.
►► 67
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
A sua estratégia cotidiana, como agente socializadora
e figura atuante nesse processo ao mesmo tempo de dominação e de rebeldia incontáveis, vai dar um curso inesperado ao
desenrolar dessa história. No conto dos versos do seu canto,
ela acrescenta com habilidade mais um ponto que lhe vale de
recusa a ser tratada vagamente pela alcunha de africana, uma
escravizada entre tantas outras sem identidade qualquer como
se passou durante o escravismo colonial no Brasil. Ao romper o
silêncio na voz dos acalantos, usou componentes simbólicos do
seu universo linguístico e material como marcas identitárias para
se dizer angolana. No papel de mãe-preta, tornou-se a figura
emblemática da grande mãe ancestral dos brasileiros.
REFERÊNCIAS
BASTOS, J. Teixeira. Folclore brasileiro. In Revista do Instituto Geográfico
e Histórico da Bahia. Salvador: IGHB, n. 51, 1925, p.
CASTRO, Yeda Pessoa. Contos populares da Bahia. Salvador, DAC / Prefeitura Municipal de Salvador, 1978.
CASTRO, Yeda Pessoa. As vozes saber. In Revista do Instituto Geográfico
e Histórico da Bahia. Salvador: IGHB, n.103, 2008, p. 13-24.
CASTRO, Yeda Pessoa. Falares africanos na Bahia. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras/ Topbooks Editora, 2001/2005.
FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. Rio de Janeiro: Liv. José
Olympio Ed., Segundo Tomo, 11ªed., 1964.
GIACOMINI, Sonia Maria. Mulher e escrava. Petrópolis: Ed. Vozes,
1988.
MORAES FILHO, Mello. Festas e tradições populares do Brasil. Rio de
Janeiro: F. Briguiet e Cia., 1946.
MOURA, Clóvis. Dicionário da escravidão negra no Brasil. São Paulo :
EDUSP, 2004.
NEIVA, Arthur. Estudos da Língua Nacional. São Paulo: Editora Nacional, 1940.
PEDREIRA, Esther. Contos e Cantigas de Ninar. In Folclore musical
da Bahia. Salvador: Fundação Cultural do Estado do da Bahia, 1978.
68 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
VIANNA, Hildegardes. “A história do homem que come o diabo”.
Comunicação ao III Congresso Brasileiro de Folclore. Salvador, 1957.
VIANNA, Hildegardes. “Do entrudo ao carnaval da Bahia”. In Revista
Brasileira de Folclore, n. 13. Rio de Janeiro, 1965, p. 283-298.
VICENTE, Gil. Obras completas, 2 Tomos. São Paulo: Cultura, 1946.
VILHENA, Luiz dos Santos. Recompilação de notícias soteropolitanas e brasílicas. 3 Tomos. Bahia: Imprensa Oficial do Estado, 1921.5
Yeda Pessoa de Castro é doutora (PhD) em Línguas Africanas pela
Universidade Nacional do Zaire, República Democrática do Congo.
Consultora técnica na Pró-Reitoria de Extensão (PROEX) na Universidade do Estado da Bahia — Uneb. Condecorada pelo Itamaraty no
Grau de Comendadora da Odem do Rio Branco por serviços prestados
ao País na política de aproximação cultural Brasil-África. Entre suas
obras, A língua mina-jeje no Brasil (2002) e Falares africanos na Bahia (2005).
Desde 2008 ocupa a Cadeira número 11 da ALB.
►► 69
A LUTA COM O CORAÇÃO HUMANO
Hélio Pólvora
M
emphis. Esta cidade do Tennessee desperta recordações
ficcionais. Foi aqui — penso, enquanto deixo a mala num
escaninho da estação rodoviária — que a mulher do reverendo
Gail Hightower, personagem de Luz em agosto, morreu. “Certa noite de sábado mataram-na numa casa, ou coisa que o valha, de Memphis”, depõe alguém naquele romance de William
Faulkner. O reverendo, que revivia o sonho épico do avô derrubado do cavalo por um tiro, numa carga de cavalaria durante a
Guerra Civil, dizia à congregação que a mulher estava internada
numa “instituição para raparigas delinquentes de Memphis”. O
fato, porém, é que ela ia a Memphis pecar — e todo mundo, na
cidade de Jefferson (Oxford, no mapa real do Estado de Mississípi) comentava a sua ninfomania.
Também em Memphis decorrem cenas de Santuário. Afinal, não foi para a casa de uma certa Miss Reba que o pistoleiro
Popeye levou Temple Drake, depois de estuprá-la com um sabugo de milho, numa destilaria clandestina de uísque? A cidade,
para mim, está ligada a estas cenas ficcionais. Para escrever Santuário, Faulkner visitou-a várias vezes, em companhia do amigo
Phil Stone, que pagou a edição do seu livro de estreia, The Marble
Faun, em 1924, quando ele tinha 27 anos, e lhe serviu de conselheiro literário.
Enquanto espero o ônibus da Greyhound, começo a sentir
o Sul Profundo. Vejo os primeiros aleijados. O homem que me
vende um exemplar do jornal local, o Memphis Press-Scimitar, é sem
dúvida retardado mental. Um dos títulos da primeira página diz
►► 71
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
que o êxodo de brancos para a escola particular vai prosseguir:
querem evitar a campanha de integração racial na escola pública.
Na tentativa de amenizar este e outros conflitos, ostensivos
ou latentes, e tão propícios ao ficcionismo de Faulkner, Carson
McCullers, Flannery O’Connor, Erskine Caldwell, Robert Penn
Warren e outros, as cadeiras do salão de espera têm no braço um
pequeno televisor. Basta introduzir uma moeda adequada para a
máquina ativar-se. Os gadgets também invadiram o Velho Sul.
A viagem de poucas horas revela paisagem atraente. Estou a caminho de Oxford, onde William Faulkner viveu quase
a vida inteira, a partir dos cinco anos de idade. Oxford, sede
do Condado de La Fayette, que o ficcionista transformou no
condado imaginário de Yoknapatawpha. De quando em quando,
algodoeiros em flor. Bosques. A temperatura, o ar e as árvores
são de uma suavidade outonal. O ônibus deixa Holly Springs e,
antes de New Albany (onde Faulkner nasceu a 25 de setembro
de 1897), dobra à esquerda. Passamos pela pequena localidade
de Pontotoc e, depois, surge Oxford — a Jefferson do fluxo
romanesco de Faulkner.
Serei hóspede da Alumni House, é o que me informa o Sr.
George Street, um sulista bem humorado, diretor de Relações Públicas da Universidade de Mississípi. Enquanto não chega o momento de ir a Rowan Oak, a casa de Faulkner, repasso informações e tento ajustar lembranças de seus romances ao cenário em
que foram localizados. Oxford, que tinha então 13.846 habitantes,
vive em função da Universidade, a Ole Miss, inaugurada em 1848.
Grande centro educacional, aqui se realizam, na primeira semana
de agosto, seminários sobre a obra faulkneriana, dos quais participam especialistas do porte de um Joseph Blotner, autor de uma
admirável biografia de Faulkner, em dois alentados volumes.
O autor de O som e a fúria, que jamais passou do curso
secundário, estudou aqui e aqui trabalhou. Cabia-lhe alimentar à
noite as fornalhas, e entre uma pazada e outra escreveu em poucas semanas Enquanto agonizo (1930). É a glória local, o orgulho de
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Oxford, simplesmente Bill. Mas em vida uma figura contraditória.
No livro William Faulkner of Oxford, editado em 1965 por James
W. Webb e A. Wigfall Green, tiro depoimentos conflitantes. “Arrogante”, para uns. Na visão de outros, “tímido”. Andava descalço, vestia-se mal, passava semanas inteiras sem cumprimentar
pessoas e, sentado num banco da Praça do Fórum, observava
transeuntes. Em outras ocasiões encharcava-se de uísque de milho numa taverna próxima. Não é de admirar que tenha causado controvérsia em Oxford, “onde a formalidade é essencial
à preservação da dignidade”, no dizer de Webb, presidente do
Departamento de Inglês da Ole Miss.
Sentir o ficcionista na ambiência que o gerou, eis um raro
privilégio. A obra tende a iluminar-se mais. Eis o Monumento ao
Soldado Confederado, erigido em 1907, com fundos coletados
por Maud Butler, mãe do escritor. Lê-se na base: “Aos nossos
mortos confederados, este tributo dos seus companheiros sobreviventes”. E mais: “Os filhos dos veteranos unem-se nesta
comprovação da fé de seus pais”. O soldado tem o rosto voltado
para o Sul. William Faulkner comentou certa vez que ele “esquecera a retaguarda”. E o Professor Webb acrescenta agora: “Está
esperando reforços”.
Perto deste monumento, Benjy, o idiota de O som e a fúria,
chorou uma vez quando o guardião negro que o levava a passeio
guiou a caleça para o lado contrário. E aqui a família de Enquanto
agonizo, depois de enterrar a mãe apodrecida, espera o pai, que
chega e lhes apresenta a nova Sra. Bundren.
Sim, Phil Stone tem razão: “Nada é mais fatal à criação
de uma arte viva do que a mão morta da cultura”. Isto explica
o Sul, o Deep South com suas características peculiares, com
sua multiplicidade de apelos ficcionais. Webb adverte-me que
“os sulistas gostam de contar histórias. Muitas dessas histórias
— contos, anedotas, etc. — são narradas oralmente. Em sua
maior parte, contos extensos, narrados de forma humorística.
O exagero e os adornos são característicos. Os sulistas amam o
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
passado tradicional. Até mesmo aspectos trágicos são narrados
frequentemente, com um traço irônico”.
O passado tradicional. Do outro lado desta praça, a do
Monumento ao Soldado Confederado, “onde até hoje todo
mundo para parabater-papo com amigos”, vejo um letreiro: Duvall’s. Howard Duvall, proprietário dessa antiga loja de roupas
masculinas, costumava olhar a praça do segundo andar, onde
ficavam a loja e o escritório. O edifício sediou o primeiro banco
de Oxford, o banco fundado por J. W. T. Falkner, avô do escritor, que o descreve em Sartoris. “Creio”, disse Duvall (não a
mim, é claro), “que a praça conserva a aparência que tinha por
volta de 1900”. O prédio e outros em volta foram limpos com
jatos de areia para exibir a integridade dos tijolos originais. Com
poucas exceções, tudo está como outrora.
Sente-se “o espírito do lugar”. Ainda se fala na “guerra”.
Entenda-se: a Guerra Civil, quando Oxford foi sede de uma
companhia de combatentes confederados. Quando uma igreja
centenária foi substituída pela filial de um empório, Bill Faulkner
escreveu um panfleto contra “o progresso moderno” e publicou-o no jornal Eagle. De Nova Iorque, em carta a um amigo,
confessou uma vez: “Senti pena de milhões de pessoas aqui, por
não viverem em Oxford”.
Oxford é legendária, tal como o Sul. “Faulkner”, lembra o
Professor Webb, “retratou muita coisa do Velho Sul. Muito do
Velho Sul e suas tradições ficaram, mas o Sul tem mudado. O
mundo também mudou”. O Professor Webb louva algumas mudanças das quais participa a juventude. “Uma das coisas boas”,
diz ele, “é que não precisamos ser nenhum Flem Snopes (personagem de The hamlet/O povoado) para introduzir inovações”. Por
Snopes deve-se entender a riqueza sem raízes, a ambição aventureira, corrupta e, portanto, espúria, alheia ao “espírito do lugar”.
Ainda a Praça do Fórum. Ao Norte, a estrada por onde
Faulkner seguia durante quilômetro e meio, antes de tomar a
direção Leste, para a sua fazenda. Rowan Oak, sua propriedade
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
urbana, está junto ao campus universitário. Construída por um
pioneiro em 1840, e localizada num bosque de carvalhos e cedros, a casa e as terras foram adquiridas pelo escritor (ao todo,
33 acres) em 1930, e tornou-se desde então seu refúgio, até o
falecimento em 1962. Faulkner levou oito anos para pagá-la e
lutou com hipotecas. A casa foi assim chamada pela família devido à lenda da sorveira brava, como está consignada em Golden
Bough, de Sir James Fraser. Segundo a história, camponeses escoceses colocavam uma cruz de sorveira brava em suas soleiras
para afugentar maus espíritos e dar aos moradores a sensação de
abrigo, privacidade e paz — as coisas que Faulkner mais buscou,
sobretudo depois que o Prêmio Nobel de 1950 lhe consolidou
a glória literária.
Tem-se acesso à casa por “um duplo renque de cedros cantantes”. Na sala de estar, a lareira onde Mammy Callie Barr, que
nasceu escrava e merecia o respeito dos Falkners, tinha lugar certo, para contar histórias e fazer reprimendas. Ela é a Dilsey, talvez
a única personagem realmente boa de O som e a fúria. No pequeno gabinete que projetou e acrescentou à mansão, foram escritas
as obras-primas: Sartoris, Enquanto agonizo, O som e a fúria, Luz em
agosto, Absalão! Absalão! Faulkner chamava o gabinete de escritório, na tradição das antigas casas-grandes, onde o proprietário
assentava o Deve e o Haver e conferia contas com o capataz. Ali
ele preparou o esboço de Uma fábula e escreveu-o na parede, com
sua letra apertada e vertical. Vê-se a velha máquina Underwood,
portátil, na arranhada mesa de madeira, uma cama em que descansava durante o dia, uma garrafa de linimento para cavalos e um
cinzeiro feito com uma casca de obus, tais como ele os deixou. Na
sala contígua ao escritório, a família, ao retornar de curta viagem,
encontrou a ressonar, completamente bêbado, o negro contratado
para impedir com bons modos que o escritor bebesse — enquanto o escritor, sóbrio, escrevia furiosamente.
Em cima, os quartos. No quarto de casal, sob a cama, os
sapatos de tênis, enlameados, de Faulkner. No canto, o piano
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
que Estelle, exímia pianista, tocava para ele adormecer, quando
voltava, pela manhã, do emprego noturno na Universidade. Nos
fins de tarde, Faulkner sentava-se na soleira do lado leste. Com
a fama, protegeu-se: um muro de tijolos foi erguido a partir do
canto daquele pórtico, em direção aos bosques. Há um estábulo
que ele próprio construiu. Terraços de tijolo e balaústres, em
cada lado do corredor da frente, aumentaram a casa. Atrás, a
cozinha e o quarto do cozinheiro. Na cozinha construída pelo
primeiro proprietário, o escritor assava bacon, presuntos e salsichas. Sinais de recolhimento, de uma individualidade bizarra.
“Faulkner”, recorda Webb, “era habitualmente quieto, taciturno,
lacônico, embora de maneiras corteses. Os ansiosos olhos castanhos tinham muita expressividade”.
E prossegue: “Encontrei Faulkner pela primeira vez em
1948, mas só vim a conhecê-lo melhor durante seus últimos
anos. Basicamente um homem tímido, recluso. Ouvia mais do
que falava. Maneiras corteses e dignas. Excelente observador,
dono de boa memória e emoções profundas. Escondia às vezes
sua grande compaixão com uma certa rudeza. Suas cóleras eram
devastadoras. Por apreciar demais a intimidade, dificultou seu
exato conhecimento pelos outros. Mas nunca esqueço uma tarde
em que ele falou à vontade, enquanto andávamos pelos terrenos
de Rowan Oak”, diz Webb.
Naquela casa, Faulkner travou “a batalha com o coração
humano”. Adquirida pela Universidade de Missisípi, da filha do
escritor, Sra. Jill Faulkner Summers (de Charlottesville, Virginia),
será um grande centro cultural quando lhe forem acrescentados
os terrenos de John Faulkner, um dos irmãos. Destes, apenas
John acrescentou o u (resultante de um equívoco editorial) ao
sobrenome. Todos estão mortos, restando apenas sobrinhos.
Isso me leva ao St. Peter’s Cemetery, raso, cheio de flores, mais parecendo um parque, sem cercas, do que o vale dos
mortos de Oxford. Sopra a brisa. As árvores perto do túmulo
do escritor vergam-se ligeiramente. O Sr. George Street lembra
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
versos de Faulkner, intitulados My epitaph, dos quais traduzo aqui
o segundo e último quarteto:
Dormirei, porém, o sono de um morto
Enquanto neste outeiro azulado e dormente
Estiver enraizado qual árvore? Embora ausente
Hei de respirar no chão deste meu horto.
Estelle e Bill repousam lado a lado. Foram namorados de
infância em Oxford e ele jamais a esqueceu, embora ela houvesse desposado outro, Cornell Franklin, de quem teve dois filhos.
“Amor, culpa e um sentimento de traição”, diz Joseph Blotner
em Faulkner: a biography, permaneceram sempre, por parte dela.
Quanto a Faulkner, continuou a mandar-lhe livros, desenhos e
bilhetes, e a visitá-la quando ela ia a Oxford. À medida que o
casamento de Estelle falhava, criando um abismo entre ela e o
marido, Faulkner afeiçoava-se a seus filhos, principalmente à pequena apelidada Cho-Cho (borboleta, em chinês), para a qual
escreveu o conto infantil The wishing tree/A árvore dos desejos. Algum tempo após o divórcio de Estelle, casaram-se, apesar de
Faulkner ainda não ter renda fixa.
Estelle, nascida Lida Estelle Oldham, dissera uma vez, à
mulher que a penteava na porta de casa: “Está vendo aquele
menino? Vou casar com ele quando crescer”. O menino era Bill.
Lembranças de Estelle quando mocinha inspiraram Faulkner na
criação da Caddy de O som e a fúria, e um pouco do amor que
os uniu entrou também na receita apaixonada de The wild palms/
As palmeiras selvagens. Apesar do bom relacionamento conjugal,
o escritor não deixaria de ter outros casos e ligações, conforme
foi revelado por Meta Carpenter (“esbelta, de olhos castanhos”,
segundo Joseph Blotner), em seu livro A loving gentleman.
Faulkner conheceu-a em Hollywood, quando trabalhava como roteirista, levado por seu amigo, o produtor Howard
Hawks. Aquela loura de pernas longas e rosto de boneca, muito
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
parecida com Jean Arthur, também tentava ser roteirista e inspirou-lhe atração repentina. O escritor lhe mandava livros e até
mesmo folhas-de-rosto e provas tipográficas. Dedicava-lhe coisas:
“A Meta, onde quer que esteja”. Encontrou-se com ela em Nova
York. Enviou-lhe exemplares de The wild palms. A ligação, segundo
ela, durou dezoito anos, e o Faulkner por ela descrito é tímido,
arrebatado, efusivo — um colegial diante da primeira namorada.
Faulkner arrogante? Meta Carpenter desfaz o mito: “Nada
mais falso. Faulkner era gentil, sensível, à antiga, respeitador das
tradições; afogou no álcool a incapacidade de romper os laços
patriarcais impostos por sua terra”. Aquele sulista reprimido,
que evitava os bordéis de Memphis e, em sua ficção, concebia o
sexo como uma fatalidade pecaminosa, entregou-se ao culto de
uma diva de carne, então com 29 anos, a quem chamou deslambidamente de “meu coração, meu jardim perfumado, meu figo
de abril e maio, minha branca, dourada manhã...”
O escritor moralista reponta nas recordações (até que
ponto verdadeiras?) de Meta Carpenter. Pergunto a James Webb
se os personagens faulknerianos, em sua maioria anormais, o
definem como escritor pessimista.
“Talvez os personagens maus e viciosos de Faulkner sejam aos mais lembrados”, ele me responde. “Porque os descreve
de forma efetiva e convincente. Popeye, Jason Compson e os
Snopes são, em verdade, personagens desprezíveis. Se o mundo
os tivesse em maior número, então a vida seria inútil para os
demais”.1
Hélio Pólvora é jornalista, crítico literário, ensaísta, cronista, tradutor
e, principalmente, ficcionista, com dezenas de livros publicados, dentre
os quais os romances Inúteis luas obscenas (2010) e Don Solidon (2011) e
a coletânea Contos e novelas escolhidos (2013), em dois volumes. Possui
diversos prêmios nacionais, como o Prêmio Nestlê de 1982 e de 1986.
Foi crítico literário da revista Veja, e é cronista e articulista de A Tarde.
Desde 1994 ocupa a Cadeira número 29 da ALB.
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YEATS: SUA VISÃO DE BIZÂNICO
Waldir Freitas Oliveira
P
rocurando em dicionários o significado da palavra bizantino, neles iremos encontrar, em primeiro lugar, num dos mais
conceituados, por todos conhecido como o Aurélio, ao lado da
informação de ela designar algo referente a Bizâncio, cidade fundada pelos gregos, no século VII a.C., que se tornou, em 330, a capital do Império Romano do Oriente, foi depois chamada Constantinopla, em homenagem ao imperador Constantino (306-337),
que lhe deu essa condição, e acabou por tornar-se a atual Istambul, a de ser usada como significado de “pretensioso” ou “tolo”;
enquanto bizantinismo, ainda que em sentido figurado, significando — “interesse por discussões frívolas ou insignificantes,
sem resultado prático, como as questões tratadas pelos teólogos
bizantinos”.1E em outro dicionário que com o Aurélio compete,
com ele disputando a primazia, em verbete mais longo, referente
a bizantino, a de que “os frades de Bizâncio discutiam acaloradamente questiúnculas de teologia”, do que resultara a expressão
“discussões bizantinas” para designar “controvérsias fúteis”; e
quanto a bizantinismo, a de significar — “Tendência à discussão
sutil e fútil, à maneira dos bizantinos, que eram apaixonados por
debates gramaticais e teológicos”; a que se seguem os significados de “frivolidade” e “sutileza estéril”.2 Tentaremos, então,
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI:
o dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
2
KOOGAN//HOUAISS. Enciclopédia e Dicionário Ilustrado. Supervisão
editorial: Antônio Houaiss. 4.ª edição. Rio de Janeiro: Seifer, 1999.
1
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
inserir tais conceitos num âmbito mais amplo — o da História,
a fim de justificar a sua inclusão, nesses termos, nos dois mais
conhecidos e conceituados dicionários da língua portuguesa
no Brasil em nossos dias. E registramos a notícia de no ano de
637 a.C., um viajante colonizador grego, chamado Bizas, agindo, como tantos outros em sua época, partira em seu barco, de
Megara, sua cidade natal, acompanhado de certa quantidade de
pessoas, e seguira, através do mar Egeu, na direção nordeste,
com o intuito de estabelecer, em terras próximas ao local onde
existira a famosa cidade de Troia, uma nova colônia.
Fiel à tradição do seu povo, consultara o oráculo de Delfos a respeito do local onde deveria ser ela fundada; e recebera
como resposta, enigmática como sempre era a linguagem dos
oráculos, que ele a deveria situar “frente à cidade dos cegos”.
Em sua viagem, atravessaram eles o Helesponto e o Propontis (o hoje chamado mar de Mármara), e chegaram em Calcedônia, cidade fundada em 675, dezoito anos antes, por outros
colonizadores gregos, na margem asiática do estreito de Bósforo, a porta de entrada para o mar Negro.
Frente a ela, na margem oposta, a cerca de um quilômetro de distância, uma ampla área se estendia, com a aparência
de ser um local melhor que o escolhido pelos fundadores de
Calcedônia, para o estabelecimento de uma colônia. E interpretando a seu modo, a mensagem recebida do oráculo, entendeu
Bizas que ali ela estava — “frente à cidade dos cegos”, esses, os
que haviam fundado Calcedônia, não a teriam visto e haviam,
por isso, a desprezado. Então desembarcaram e denominaram a
nova colônia, de Bizâncio, nome derivado de Bizas, o seu fundador. Começa, como estamos vendo, envolta em lendas, a história
dessa cidade. Nunca se conseguiu saber, com certeza, se Bizas
teria ou não existido. Bizâncio, contudo, ali começou a existir,
com certeza, nesta época; havendo se tornado, rapidamente, um
centro ativo de comércio. E assim continuaria a ser, por longos
anos, até quando o imperador Constantino, em 330, decidiu para
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
ali transferir a capital do Império Romano do Oriente; e sobre o
sítio da antiga Bizâncio, ergueu a majestosa cidade que tomou o
seu nome — Constantinopla.
Situada no ponto em que as rotas terrestres que ligavam a Ásia à Europa, às margens da mais estreita passagem
marítima ligando o mar Mediterrâneo ao mar Negro, para ela
afluíram e por ela passaram os mais diversos produtos que
circulavam como mercadorias, entre os dois continentes; de
modo especial, os mais exóticos, como o marfim e o âmbar, as
porcelanas e as sedas, a canela e o açúcar, o almíscar e o gengibre, que provinham de lugares tão distantes como a Índia,
o Ceilão e a China, de grande procura nas cidades da Europa
desse tempo.
Constantino fez dela uma grandiosa cidade... Mostrou-se
disposto a dela fazer uma “nova Roma”, mais suntuosa que a
capital do Império Romano do Ocidente. Embelezou-a tanto
quanto pôde; e ali mandou construir uma majestosa igreja — a
que foi por ele chamada de Hagia Sophia (a igreja da Santa Sabedoria), e que ira tornar-se a partir da conclusão das obras de
sua construção, ao tempo de Justiniano (527-565), o seu maior
monumento religioso, até hoje ali existindo, ainda que não mais
sendo usado como igreja ou como mesquita, sendo agora, museu, havendo sofrido o seu edifício original, amplas transformações em seus aspectos, principalmente nos externos, no curso
dos séculos, hoje se constituindo como um autêntico cartão
postal de Istambul.
Não iremos, contudo, contar, nem mesmo em forma de
resumo, a história de Bizâncio. O que pretendemos é tentar entender como e porque foi essa cidade idealizada de modos tão
opostos pelas gerações que com ela conviveram durante mais de
mil anos, bem como pelas que as seguiram
Bizâncio, em verdade, nunca deixou de ser Bizâncio. Em
cada grupo de dez obras escritas a seu respeito, nove delas ao
menos, mencionam seu nome de origem e falam da civilização
►► 81
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
que ali floresceu, como bizantina. Enquanto Constantinopla é
nome que raramente aparece como título, em tais conjuntos;
ainda que o volume da História Universal Asimov dedicado ao
Império Romano do Ocidente, traga como título —Constantinopla. Isto é, porém, exceção. Todavia, de modo significativo,
todos os compêndios de História, assinalam a tomada da cidade pelos turcos otomanos, em 1453, como a da “queda de
Constantinopla”. Temos, então, a impressão de pretender-se,
agindo desse modo, registrar o fim de um império simbolizado
pela cidade de onde foi ele governado, mas não o do de Bizâncio, como expressão cultural. Constantinopla era a roupagem
política de uma cultura que não desapareceu com a tomada
da cidade por povos invasores. E constatada esta afirmativa,
temos o dever de procurar entender a razão de haver Bizâncio
sido, ao longo dos séculos, por tantos, execrada e por outros
tantos, exaltada.
Lembramos haver ouvido, nos tempos da escola secundária, de todos os nossos professores de História, referências
desairosas aos bizantinos. Um deles chegou a afirmar em classe, serem eles tão alheios à realidade, que e discutiam e consideravam ser razoável fazê-lo, a questão do “sexo dos anjos”;
ou procuravam descobrir quantos anjos poderiam dançar, ao
mesmo tempo, sobre a ponta afiada de uma agulha. E então
perguntamos: — quem teria interesse em ridicularizar dessa
forma, os bizantinos? E levantamos a hipótese de o empenho
por essa desmoralização haver se iniciado durante as disputas
pela primazia no seio da Cristandade, travadas entre as Igrejas
de Roma e de Constantinopla; e, singularmente, haver a Igreja
de Roma sido melhor aceita, nessa época, pela intelectualidade
do chamado “Ocidente”, que a de Constantinopla; e verificamos, então, haver sido a presença, tanto espiritual como
material, da Igreja de Roma, sobre as terras da Europa, bem
mais forte e, consequentemente, mais efetiva que a da Igreja
de Constantinopla.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Tomemos, sem escolha deliberada, puramente casual, no
caso, um exemplo demonstrativo das opiniões divergentes sobre
os bizantinos, na Europa do século XIX — a de William Lecky
e a de W.B. Yeats, ambos irlandeses, contemporâneos na Inglaterra e na Irlanda desse tempo.
William Edward Hartpole Lecky (1838-1903), nascido
num povoado situado nas proximidades de Dublin, em março
de 1838, publicou, em 1869, aos 31 anos, já então consagrado
como intelectual, um livro, em dois volumes, intitulado History
of European Morals from Augustus to Charlemagne; e em seu segundo
volume, dedicou sete páginas reunidas em secção sob o título
“General moral condition of the Byzantine Empire”, a Bizâncio, no
curso das quais afirmou, entre outras coisas, que
a opinião geral que a História possui do Império Bizantino é a de que ele representa, sem qualquer exceção, a
forma cultural mais baixa e abjeta até hoje alcançada...
nenhuma civilização permanente careceu tanto de alguma forma ou de algum elemento configurador de uma
própria grandeza... A História desse Império é uma narração monótona de intrigas de sacerdotes, eunucos e mulheres, de envenenamentos, conspirações, ingratidões e
contínuos fratricídios.3
Quanto a William Butler Yeats (1865-1939), dedicou a Bizâncio, ao menos dois poemas, louvando a cidade que chegou a
considerar, como “cidade sagrada” (holy city).4
Chegamos, então, à conclusão de haver existido na memória dos povos europeus, duas Bizâncios: — uma, que se apresentava aos olhos dos historiadores, como algo desprezível, não
LECKY, William Edward Haertpole. History of European Morals
from Augustus to Charlemagne.Volume II.London: Nabu Press, 2010.
4
“...the holy city of Byzantium” in “Sailing to Byzantium”. In
YEATS, W.B.The Tower (1928).
3
►► 83
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
merecendo qualquer tipo de elogio, conservadora ao extremo,
sem capacidade de renovar-se e crescer, e outra que foi encarada
por alguns poetas e por místicos, como a cidade da salvação, a
única esperança restante em um mundo desesperado; razão pela
qual, desejou W.B. Yeats partir para lá, a fim de escapar das agruras da velhice e renascer, tornando-se eterno.
Em 2000 o jornal Folha de São Paulo promoveu uma pesquisa entre críticos brasileiros, buscando identificar “os cem melhores poemas do século XX”. Ao final, “Sailing to Byzantium”,
composto, provavelmente, em 1926, quando Yeats tinha 60 ou
61 anos, publicado em 1928, em seu livro The tower, no qual foi
por ele colocado como o poema de abertura do seu livro, figurou em quarto lugar, na ordem então estabelecida pelos que participaram da pesquisa. Em verdade, poucos poemas, no mundo
inteiro, mereceram como ele, tão grande atenção por parte dos
estudiosos da literatura.
Yeats, contudo, não conheceu Istambul, nem o pouco que
ali ainda resta da antiga Constantinopla, e criou, a seu modo, a
sua Bizâncio. Mas quem ou o que o teria levado a criá-la como
fez? Da sua civilização, além das gravuras que figuram, comumente, em livros de arte reproduzindo alguns dos seus mosaicos, tanto quanto aspectos do conjunto arquitetônico e dos detalhes da monumental igreja de Santa Sofia, que, ao seu tempo,
fora transformada pelos muçulmanos, em mesquita, somente
viu, com os próprios olhos, mosaicos bizantinos, quando das suas
duas viagens à Itália — a primeira, efetuada em 1907, quando
esteve em Ravena, sem dúvida, “a mais bizantina das cidades
italianas”, e a segunda, em 1925, quando visitou Milão, Roma
e Nápoles e as ilhas de Capri e da Sicília, tendo, nesta ilha, a
oportunidade de deslumbrar-se frente aos magníficos mosaicos
do século XIII, da Abadia (Abbazia) e Catedral de Monreale e
aos da Capela Palatina, em Palermo, e em Cefalu, com os mosaicos da sua Catedral, figurando entre eles, tanto em Monreale
como em Cefalu, aqueles nos quais figura o Cristo Pantocrátor
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
(o Criador de todas as coisas), expressões grandiosas da arte
bizantina dos mosaicos.5
Poderia Yeats, como supõe John Unterecker, haver tomado
conhecimento da História de Bizâncio, através da leitura de History of the Byzantine Empire, de George Finlay, obra e autor muito
considerados, na época, na Inglaterra, que lhe teriam propiciado
um conhecimento mais amplo da arte e civilização de Bizâncio.6
Não se podendo eliminar a possibilidade de ter também consultado a magistral obra de Edward Gibbon – The history of the decline
and fall of of the Roman Empire, publicada em Londres, em sete
volumes, entre os anos de 1776 e 1781, e ali reeditada em 1896,
através da leitura, de modo especial, do seu volume VI, no qual foi
tratada a História do Império Romano do Oriente.
E em seu livro Linguaviagem, tentou Augusto de Campos
aproximar esse seu poema, de outro escrito por John Keats
(1795-1821) — “Ode sobre uma urna grega”, mesmo havendo sido publicado cem anos antes de “Sailing to Byzantium”; e
apresentou, após haver exposto os seus comentários a respeito,
os textos das traduções que fez dos dois poemas, a fim de
que pudessem ser eles comparados, embora advertindo parecer
HAUSSIG, H.W.”Theinternationalposition of Byzantine Civilization
in the central Middle Ages” in A History of Byzantine Civilization. New
York/Washington: Praeger Publishers, 1971, p.248 (“The mosaics in the
churches of Cefalú and Palermo are among the finest creations of Byzantine art.”)
6
UDERECKER, John. A Reader´s Guide to W.B. Yeats. Southampton:
Thames and Hudson ,1977,p.173. Quanto ao livro por ele citado, trata-se de History of the Byzantine Empire, de autoria do historiador inglês
George Finlay (1790-1875), publicado em Londres, em 1853, em 2
volumes, pela Blackwood, com re-impressão pela Nabu Press, em dois
volumes independentes, em 2010. // Sobre a visita de Yeatas à Sicília,
a referência maior por nós encontrada, consta do texto da “Introdução” escrita por Péricles Eugênio da Silva Ramos, para Poemas de W.B.
Yeats, porf ele reunidos e traduzidos paera o português (Sãao Paulo:
Art Editora, 1987, p.33).
5
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
“ocioso pretender dizer qualquer coisa de novo sobre o assunto
ou referir-se a essas obras sem repetir o que já foi dito”.7
Ei-los, então, aqui realçando a alta qualidade da tradução
feita pelo poeta paulista, a quem tanto devemos — todos os que,
em nosso país, tanto sentimos falta de bons tradutores:
Ode sobre uma urna grega
John Keats
Inviolada noiva de quietude e paz,
filha do tempo lento e da muda harmonia,
silvestre historiadora que em silêncio dás
uma lição floral mais doce que a poesia:
que lenda flor-franjada envolve tua imagem
de homens ou divindades, para sempre errantes.
na Arcádia a percorrer o vale extenso e ermo?
que deuses ou mortais? que virgens vacilantes?
que louca fuga? que perseguição sem termo?
que flautas ou tambores? que êxtase selvagem?
A música seduz. Mas ainda é mais cara
se não se ouve. Dai-nos, flautas, vosso tom;
não para o ouvido. Dai-nos a canção mais rara.
o supremo saber da música sem som:
jovem cantor, não há como parar a dança,
a flor não murcha, a árvore não se desnuda;
amante afoito, não sou eu quem te lamente:
se não chegas ao fim, ela também não muda,
é sempre jovem e a amarás eternamente.
CAMPOS, Augusto de. “Das Odes de Keats a Bizâncio de Yeats” in
Linguaviagem.. São Paulo: Compánhia das Letras, 1987, p.133.
7
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Ah! folhagem feliz que nunca perde a cor
das folhas e não teme a fuga da estação;
Ah! feliz melodista, pródigo cantor
capaz de renovar para sempre a canção;
Ah! amor feliz! mais que feliz! feliz amante!
para sempre a querer fruir, em pleno hausto,
para sempre a estuar de vida palpitante,
acima da paixão humana e sua lida
que deixa o coração desconsolado e exausto,
a fronte incendiada e língua ressequida.
Quem são esses chegando para o sacrifício?
para que verde altar o sacerdote impele
a rês a caminhar para o solene ofício,
de grinalda vestida a cetinosa pele?
que aldeia à beira-mar ou junto do nascente
ou no alto da colina foi despovoar
nesta manhã de sol a piedosa gente?
Ah, pobre aldeia, só silêncio ainda existe
em tuas ruas, e ninguém virá contar
por que razão estás abandonada e triste.
Ática forma! altivo porte! em tua trama
homens de mármore e mulheres emolduras
como galhos de floresta e palmilhada grama.
Tu, forma silenciosa, a mente nos torturas
tal como a eternidade: fria pastoral!
quando a idade apagar toda a atual grandeza,
tu ficarás, em meio às dores dos demais,
amiga, a redizer o dístico imortal
“A beleza é a verdade, a verdade a beleza.”
— É tudo o que há para saber, e nada mais.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Viajando para Bizâncio
William Butler Yeats.
Aquela não é terra para velhos. Gente
jovem, de braços dados , pássaros nas ramas
— gerações de mortais — cantando alegremente,
salmão no alto, atum no mar, brilho de escamas,
peixe, ave ou carne glorificam ao sol quente
tudo o que nasce e morre, sêmen ou semente.
Ao som da música sensual, o mundo esquece
as obras do intelecto que nunca envelhece.
Um homem velho é apenas uma ninharia,
trapos numa bengala à espera do final,
a menos que a alma aplauda, cante e ainda ria
sobre os farrapos do seu hábito mortal;
nem há escola de canto ali, que não estude
monumentos de sua própria magnitude.
Por isso eu vim, vencendo as ondas e a distância,
em busca da cidade santa de Bizâncio.
Ó sábios, junto a Deus, sob o fogo sagrado,
como se num mosaico de ouro a resplender,
vinde do fogo santo, em giro espiralado,
e vos tornai mestres-cantores do meu ser.
Rompei meu coração, que a febre faz doente
e, acorrentado a um mísero animal morrente,
já não sabe o que é; arrancai-me da idade
para o lavor sem fim da longa eternidade.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Livre da natureza não hei de assumir
conformação de coisa alguma natural,
mas a que o ourives grego soube urdir
de ouro forjado e esmalte de ouro em tramas,
para acordar do ócio o sono imperial;
ou cantarei aos nobres de Bizâncio e às damas.
Pousado em ramo de ouro, com um passaro, o que passou e passará e sempre passa.8
Vemos, pois, que na imaginação do poeta, Bizâncio assumira
forma e função de Paraíso, esperança de renovação de vida, isso
ocorrendo mesmo antes da chegada da morte, tão envolto já se
encontrava Yeats pela sua crença em reencarnações e vidas sucessivas, como demonstrara em A vision, que publicou em 1925, somente desejando, portanto, naquele seu poema, sobreviver, numa Bizâncio que, contudo, somente existia em seu pensamento. Ainda
que, para isso, tivesse de apagar o tempo como padrão de medida, e
imaginá-lo, talvez influenciado pelo que dele dissera Santo Agostinho, como um continuum equivalente à própria eternidade, algo que
seria, a um só tempo, em seu entender — “past, or passing, or to come”
— reunindo num único fluxo, sem interrupções, suas tradicionais
etapas — o passado (past), o presente (passing) e o futuro (to come).9
Sem devermos esquecer haver ele afirmado em A vision, já
quase ao seu final, tão ligado se encontrava à sua Bizâncio, que
Idem. pp. 151/153; 159/161
SANTO AGOSTINHO. Confissões in Confissões/ De Magistro. .Coleção
“Os Pensadores ”.Vol. VI. São Paulo: Abril Cultural, 1073, p.244.
(“Atrevo-me a declarar. sem receio de contestação, que, se nada sobreviesse, não
haveria tempo futuro, e se agora nada houvesse, não existiria o tempo presente. //
De que modo existem aqueles dois tempos — o passadio e o futuro— se o passado
já não existe e o futuro ainda não veio? Quanto ao presente, se fosse sempre
presente, e não passasse para o pretérito, já não seria tempo, mas eternidade”.)
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
(...) se me fosse oferecido um mês de Antiguidade, com a
oportunidade de passá-lo onde quisesse, escolheria fazê-lo
em Bizâncio, um pouco antes de Justiniano inaugurar Santa Sofia e fechar a Academia de Platão.
E acrescentou —
Acredito que ali eu poderia encontrar, em alguma pequena taberna, um mosaista-filósofo capaz de responder a
todas as perguntas que lhe fizesse, mais próximo achando-se ele, do sobrenatural, do que estivera Plotino, pois
o orgulho que sentia pelo seu delicado ofício lhe daria
a capacidade de ver o que era, para os príncipes e para
os clérigos, um instrumento do poder, para a populaça,
uma loucura assassina, ambos envoltos sob a aparência
de uma presença cativante e flexível habitando um corpo
humano perfeito.
E permitindo com isso, podermos, hoje, melhor avaliar o
quanto ocupava Bizâncio, seu pensamento e havia se convertido,
para ele, em meta ansiosamente buscada:
Creio que nos primeiros tempos de Bizâncio, como talvez
nunca antes nem depois, foi registrado na História, religião, estética e vida prática se fundiram numa coisa única, e arquitetos e artífices — talvez não os poetas, desde
que a linguagem, como instrumento usado nas disputas
e controvérsias, tornara-se abstrata — falavam do mesmo modo, tanto à multidão como aos eleitos. O pintor,
o mosaísta, o ourives, o desenhista das iluminuras dos
livros sacros, seriam quase impessoais, tal vez desprovidos da consciência própria de sua concepção individual,
absorvidos que estavam pelo tema e pela forma do que
estavam a produzir e que se uniam e formavam, afinal, a
maneira comum de ver, de todas as pessoas. Eles podiam
ser tomados como cópias de figuras saídas dos antigos
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Evangelhos, tão sagradas como o seu texto, tudo isso a
entremear-se, formando um amplo conjunto no qual a
obra de muitos assumia características de obra de uma só
pessoa, fazendo com que o edifício, a figura, o modelo,
os ornatos de metal das balaustradas tanto quanto os candelabros, assumissem a aparência de uma coisa única...10
Foi assim que Yeats concebeu Bizâncio, em seus últimos
anos de vida; e indagamos, então, sobre o que o teria levado a
vê-la desse jeito — e optamos por considerar haver sido a causa
principal desse seu modo de ver, a leitura feita de outros poetas,
entre os quais, conforme supôs Augusto de Campos, teria estado
John Keats, e certamente estiveram Edmund Spenser, William
Blake e Shelley; sem que devamos esquecer a influência que teria
recebido do misticismo indiano, do qual muito se aproximou,
realizando estudos sobre os textos sagrados do Hinduísmo e,
ainda mais, havendo se dedicado em 1938, precisamente durante
o ano anterior ao da sua morte, à tradução de longos trechos dos
Upanishads; desse seu esforço tendo resultado a publicação, em
coautoria com Shri Purohit Swami, de The ten principal upanishads,
obra repudiada pela quase totalidade dos estudiosos da sua obra
e quase nunca incluída na relação dos seus trabalhos.
“Sailing to Byzantium” foi traduzido para o português por
outros autores, além de por Augusto de Campos. Apareceu sob
o título “Velejando para Bizâncio” no livro W.B.Yeats. Poemas, de
Paulo Vizioli (São Paulo: Companhia das Letras, 1994); com o título “Rumo a Bizâncio” em W.B. Yeats Uma antologia, com a tradução dos poemas que a integram, feita pelo crítico português, José
Agostinho Baptista (Lisboa: Assírio & Alvim, 1996), e mantendo
o título “Velejando para Bizâncio”, por Péricles Eugênio da Silva
YEATS, W. B. A Vision.London: MacMillan & Co, Ltd., 1962. ( Cf.
Uma Visão.Tradução de Ana Luísa Faria. Inclui os textos reunidos
sob o título “Uma Encomenda para Ezra Pound”. Lisboa: Relógio
d´Água Editores, 1994, p.254)
10
►► 91
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Ramos, em Poemas de W.B.Yeats (São Paulo: Art Editora. 1987);
este, talvez, tendo sido o primeiro, no Brasil, a traduzi-lo.
Distante dos grandes centros nacionais, houve, no entanto, também na Bahia, quem houvesse se deslumbrado com esta
Bizâncio, digamos encantada — um poeta que cedo nos deixou,
colhido pela morte, Jair Gramacho (1930-2003), leitor assíduo
dos clássicos gregos e dos poetas ingleses, provavelmente, também de W.B. Yeats, e autor de um único livro de poemas, singularmente intitulado Sonetos de Édênia e de Bizâncio, (Salvador:
Imprensa Oficial do Estado, 1959), no qual, contudo, somente
aparece a palavra Bizâncio em seu título, nele estando, porém, a
cidade sagrada presente, com seu significado poético, em quase
todos os seus poemas; havendo ele, por uma única vez, a ela se
referido, de modo claro, quando ao final do poema “Soneto refrão para poesia maior”, após mencionar — “o infiel Mafoma”,
que a tomara de assalto, relembrou “o fim da bizantina Roma”,
forçando uma rima buscada.
Encontramos, pois, de novo, William Butler Yeats, presente, entre nós, no Brasil; e não podemos ter dúvidas a esse
respeito — a Irlanda, seu país natal, é uma terra mágica, que
nos envolve sem que percebamos, através da sua história e pelo
modo como no passado agiram e escreveram os que ali viveram.
Iremos, contudo, antes de concluir este nosso texto, nele
colocar mais alguns comentários sobre W.B.Yeats; mais que tudo
acerca da sua vida e das suas atribulações.
Valemo-nos, então, do que sobre ele escreveu o poeta e, por
vezes surpreendentemente agressivo, crítico literário Luís Dolhnikoff, que, em artigo divulgado, via Internet, pelo “Portal Cronópio”, intitulado “Os vórtices e vértices de W.B. Yeats”11, informou
haver constado da “Introdução” escrita por Péricles Eugênio da
DOLHNIKOFF, Luis. “Os vórtices e os vértices de W.B.
Yeats”. Download disponível inwww.cronopios.com.br/site/ensaios.
asp?id=2505..
11
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Silva Ramos, para o seu livro Poemas de W.B. Yeats, a afirmativa
feita pelo crítico literário inglês Rice Henn12, de que “se Yeats
houvesse parado de escrever aos 40 anos (...) é provável que tivesse ficado como um poeta menor”. E quanto a nós, afirmamos
que depois de havê-lo lido atentamente, passamos a considerá-lo
como um dos melhores textos escritos no Brasil sobre o poeta irlandês, pela sua compreensão a respeito dos vários Yeats existentes
no erroneamente por vezes considerado como um único Yeats; e
principalmente, por haver se mostrado capaz de entender a razão
das mudanças ocorridas em sua poesia, ao longo do seu tempo de
vida, quando afirmou que “mutação significa experimentação no
sentido lato”, e que Yeats, a seu ver, mostrou-se capaz de assumir
tal processo ao entender haver alcançado um grau de maturidade
que o tornara essencialmente diferente do jovem que fora; fazendo notar que, paradoxalmente, isso o conduzira, dele ao tomar
consciência, para um querer renascer, por haver descoberto tanta
coisa mais sobre a vida e a morte, e por bem saber que iria faltarlhe tempo suficiente para um recomeço.
Sem devermos esquecer a probabilidade de haver Yeats,
lido, do mesmo modo que teria feito, quando moço, no Evangelho mesmo, aquela na qual se acha escrito — “Na verdade, na
verdade, te digo. que aquele que não nascer de novo, não pode
ver o Reino de Deus” (João. 3.3).
Nem a possibilidade de haver lido, quando dos seus estudos sobre o Induismo, a constante do Bhagavad Gita, na qual se
afirma que
(...) assim como a alma, vestindo este corpo material, passa
pelos estados de infância, mocidade, virilidade e velhice,
Thomas Rice Henn (1901-1974) foi um crítico literário inglês de
grande conceito, autor de dois trabalhos sobre a poesia de W.B.Yeats
– “The Lonley Tower: Studies in the Poetry of W.B. Yeats” e “W.B.
Yeats and the Poetry of War” (1965) aos quais, infelizmente, não tivemos acesso.
12
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
assim no tempo devido ela passa a outro corpo, e, em outras encanações, viverá outra vez. (Bhagavad Gita. “A verdadeira natureza do espírito”, 13)
E louvamos Luis Dolhnikoff, por haver sabido reconhecer na última mutação ocorrida na poesia de Yeats, a que o teria
conduzido à aceitação de idéias, que, como crítico, ousou denominar — “idiossincrasias irracionais”, a influência de um mundo
que também mudava, revelando com isso uma das grandes crises da chamada “cultura ocidental”, não resolvida com a eclosão
e com o final da Segunda Grande Guerra, e que se prolongou no
após-guerra, estando a exigir ainda, soluções.
Afirmou, então, o crítico e poeta, a esse respeito:
De fato, Yeats não estava sozinho. Assim como iria acontecer nos anos 60, nos anos 10 e 20 uma das reações à crise
foi uma espécie de contracultura, marcada pelo anticientificismo, o antirracionalismo, o orientalismo e o esoterismo.
E acrescentou:
O antirracionalismo é mais do que evidente, por exemplo,
no movimento dadá, contemporâneo de Yeats, assim como
o seu “Spiritus mundi”, a “Alma do universo” (espécie de
memória universal, recolha da memória e da experiência
de todos os homens) é bastante próxima da concepção de
outro irracionalista metódico da época, o “inconsciente
coletivo” de Jung. Neste sentido, Yeats não prevê nada,
assim como Kafka não estava prevendo a desumanização
radical do estado totalitário em O Processo. Tanto Yeats
quanto Kafka convertem a crise em arte (convertem não a
“criticam”, como seria mais ou menos dominante em certas correntes artísticas da segunda metade do século XX,
com resultados muito mais pobres).
E mais, que
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
(...) sendo a crise a própria síntese do estado da cultura, é,
por fim, uma síntese da cultura de seu tempo que emerge
em suas obras (que assim nada têm de contraculturais, pois
não se põem fora da cultura ocidental, mas. ao contrário,
nela mergulham; o que é igual a mergulhar em sua crise.13
E a fim de tentar diminuir o peso da carga colocada sobre
os ombros de Bizâncio e dos bizantinos, por vários historiadores, entre os quais esteve o próprio Arnold Toynbee, iremos valer-nos da avaliação correta em suas proporções e oportuna face
às circunstâncias que os cercaram — tanto as da época real da
sua existência como as existentes nos tempos que se seguiram
à sua desaparição do cenário histórico —, feita a seu respeito,
por Franz Georg Maier, que foi professor de História Antiga
nas Universidades de Frankfurt, Zurich e Constanza, em seu livro Bizâncio, com primeira edição em alemão em 1973, e em
espanhol, em 1974, constituindo-se numa das melhores sínteses
já redigidas sobre a História do Império Bizantino, de modo
especial, sobre o seu legado cultural para o Ocidente europeu. 14
Nele, afirma terem se constituído como características
fundamentais do Império Bizantino — “a confiança no transcendental, a religiosidade e a esperança pelo homem comum, da
ajuda que lhe seria dada por forças sobrenaturais”; e mais, que
em consequência da presença de tais elementos, “o homem bizantino era conservador, por inclinação ou apatia, mas, de modo
essencial, por sua religiosidade”; revelando-se a sua atividade intelectual como “uma re-compreensão e um re-conhecimento do
antigo, de tudo que, em outros tempos, fora válido em seu viver
cotidiano”; pelo que declara haver sido Bizâncio — “criadora e
conservadora a um só tempo”; realçando o fato de ser “altamente significativa a intenção de interpretar os fatos através de um
ponto de vista conservador, buscando-se, desse modo, legitimar
13
14
DOLHNIKOFF, Luis. Opus cit.
MAIER, Franz George. Bizâncio. Madrid: Siglo XXI de España, 1974.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
a renovação, ao considerá-la um retorno à tradição primitiva.”
E afirma, em conclusão, haver a sociedade bizantina conhecido
mudanças em suas condições de vida, tanto quanto as adotado
nas soluções encontradas para os seus problemas sociais e políticos, não havendo sido, portanto, uma sociedade “petrificada”,
como a viu Toynbee. E após afirmar haver sido o império bizantino — “um produto histórico com caráter próprio”, realça
o fato de nele terem se fundido as inovações e os elementos
tradicionais, de modo especial, em sua arte e cultura, dessa fusão
havendo resultado algo novo.15
Não foi esta, porém, a Bizâncio que foi idealizada por Yeats.
A Bizâncio que foi por ele imaginada, ele a concebeu envolto por
um sentimento profundo de nostalgia, como sendo ela algo perdido que precisava ser recuperado; vendo-a, do mesmo modo como
a viu Dante, na Divina comédia — como “a ave divina” pousada
“naquele extremo da Europa, juntoaos montes troianos... sob a
sombra de suas asas sendo o mundo governado.”16 E a partir do
momento em que nela descobriu o seu passado glorioso que sese
perdera, a seu ver, pela incúria dos homens do presente, reconheceu ser aquele o lugar para onde deveria retornar, singularmente,
para renascer. Sem devermos esquecer-nos que, somente após a
queda de Constantinopla e a consequente desaparição do Império
bizantino, conseguiu o Ocidente descobrir o helenismo, sangue
nas veias de Bizâncio e força geradora do Renascimento, pela herança que lhe foi transmitida pelos que ali viveram.
Recordamos, afinal, um outro poeta, por Bizâncio também
seduzido, esquecido ou em vias de o ser — o gaúcho Felippe
d´Oliveira (1891-1933), autor de Vida extinta (1911) e Lanterna
verde (1926), deste constando o poema “Ubi Troia fuit”, do qual
selecionamos alguns versos que pela força do seu simbolismo,
Idem, pp. 31-37.
DANTE. A divina comédia. Canto VI. São Paulo: Círculo do Livro,
s/d, PP. 246/247.
15
16
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
se mostram capazes de conduzir-nos a um mundo semelhante
ao sonhado por Yeats; sem que possamos afirmar ter Felippe
D´Oliveira conhecido os poemas de Yeats.
E ei-los, então, fazendo a sua leitura supor-nos, que, de
algum modo, teria o poeta gaúcho tomado conhecimento dos
poemas de Yeats, tal se apresentam suas maneiras de sentir:
Eu queria que a tua beleza morresse
e que, como num mar de naufrágio,
sobrevivesse o teu corpo deserto de tua
graça sem vestígio.
.......................................................................
Eu, só eu, ficaria contigo, eu só, com a
alegria de guardar intacta, a tua imagem.
Tudo que para minha percepção nasceu de ti
permaneceria integral e imutável.
..............................................................................
Eu, só eu, ficaria contigo
e seria o senhor fabuloso de um tesouro
desaparecido, que a cobiça não percebe,
e seria a voz secreta, a alma imperecível de
uma cidade morta,
e seria o testemunho revelador de uma
legenda esquecida
Eu, só eu, ficaria contigo.17
Continuamos, então, a perguntar — teria Felippe D´Oliveira, lido, alguma vez, Yeats? Acreditamos poder esclarecer,
D`OLIVEIRA, Felipe . “Ubi Troia fuit” in COUTINHO, Frederico
dos Reys. As mais belas poesias brasileiras de amor. Rio de Janeiro: Editora
Vecchi, 1946, pp.216/217. // COSTA, Lígia Militz da, et allia. Fellipe
D´Oliveira — Obra Completa. Porto Alegre: IEL. Instituto Estadual do
Livro, 1990).
17
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
algum dia, esse assunto; ainda que venha a tornar-se difícil respondê-la com acerto. Propensos, no entanto, estamos a acreditar
haver ele lido Keats, e como primeiro indício disso, apontamos
o título do seu poema aqui referido, no qual figura o nome da
lendária Troia, tantas e tantas vezes mencionada por Yeats em
seus poemas e também em esquecer a existência de um deles ter
tido por título, sugestivamente — No Second Troy.
Levando em conta, contudo, somente o que conseguimos
apurar sobre a sua vida, desde o seu nascimento, a 23 de agosto
de 1890, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, e a sua morte,
a 17 de fevereiro de 1933, em consequência de um desastre automobilístico, nas proximidades de Paris, verificamos haver estado sua formação intelectual sempre ligada, de modo essencial, à
França, desconhecendo-se o quanto teria ele se aproximado, ao
seu tempo, de autores ingleses, o que teria lhe permitido escrever, ao menos dois dos seus poemas — “Ubi Troia fuit” e “Distância”, com versões em francês, que foram incluídas em seu
livro Alguns poemas”, publicado após a sua morte, em 1937, por
iniciativa da Sociedade Literária Felippe D´Oliveira.18
E acentuemos, afinal, o fato de haver figurado em Alguns
poemas (1937), uma tradução para o português, de Invitation au
voyage, de Baudelaire, com seu título conservado em francês, do
modo como o encontraram em seu texto manuscrito, os que
o editaram; e em Lanterna verde (1926), um poema intitulado
Gulliver, mostrando que o célebre romance de Jonathan Swift
não lhe fora estranho.
A questão não se situa, portanto, em saber se Felippe
D´Oliveira leu ou não Yeats; mas a de avaliar até que ponto
A Sociedade Literária Felippe D´Oliveira foi criada, no Rio de Janeiro,
a 23 de agosto do ano da morte do poeta, por iniciativa de João Daudt
de Oliveira, seu tio materno, com a finalidade de publicar as suas obras
inéditas. Editou, em 1937, a segunda edição de Vida extinta, livro originalmente publicado em 1911, e Alguns poemas; em 1938, Livro póstumo, no
qual foram reunidos crônicas, discursos, entrevistas do autor.
18
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
teriam se aproximado os seus pensamentos. E no prefácio que
escreveu, em 1925, para o seu Livro póstumo, localizamos o texto
que ora reproduzimos, que, a nosso ver, pelo seu conteúdo, bem
poderia ter sido escrito pelo poeta irlandês:
Há tantas vidas num mesmo ser quantos são os instantes
de êxtase e de criação. Cada pensamento é uma existência
autônoma. A força de sobreviver para novas eclosões é apenas o elo permanente que prende dados díspares, fazendo
sistema. Cada pensamento é um ato integral de paixão. Cada
paixão conclui o ciclo de seu destino quando se destaca do
ser e paira, definida, no absoluto, acima da vida. A imagem
material elucidativa é a da bolha de sabão que se desprende e oscila, ascensional, decompondo a luz no seu cristal
furta-cor. Toda paixão é póstuma: a sua pletora é quando o
corpo perde a consciência de si mesmo. Todo pensamento é
póstumo. A criatura física é o elemento mecânico, o utensílio
para a elaboração das comoções conversíveis em atitude de
sensibilidade — ideia ou ação plástica. Cada forma, real ou
abstrata só se liberta quebrando-se o molde. O molde partido se dilui, se funde, se refunde, se concretiza de novo com
contornos novos para formas novas.19
E chegamos à conclusão de que, se Felippe D´Oliveira
não chegou a conhecer a poesia de Yeats, tanto um como o
outro devem ter bebido em fontes semelhantes, ainda que em
momentos distintos, suas concepções sobre a vida e a sobrevida,
para não falar em vida após a morte. E voltando a falar de Yeats,
e a apoiar-nos nas considerações feitas por Felippe D´Oliveira,
referentes a “pensamentos” e “paixões” , realçaremos a propriedade apontada na personalidade de Yeats, por seu grande admirador T.S. Eliot, quando dele afirmou que “todo aquele que se
mostra capaz de experiências, irá encontrar-se consigo mesmo,
COSTA, Lígia Militz da, et allia. Fellipe D´Oliveira - Obra completa.
Porto Alegre: IEL. Instituto Estadual do Livro, 1990, p.178.
19
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
em mundos diferentes, em cada década de sua vida; desde que
vê sempre com olhos novos, o material de sua arte continuamente renovado.”20
Demonstrou, então, o grande poeta, haver nele percebido
a coexistência, atuando, de modo sucessivo, na sequência dos
anos, por vezes, até mesmo, a um só tempo e em posições contraditórias, de vários Yeats alojados no íntimo de um Yeats imaginado por tantos, de modo equivocado, como único. E ao concluir a palestra que fez a seu respeito, em 1940, no Teatro Abbey,
em Dublin, a convite da sociedade “Friends of Irish Academy”,
declarou dever ser ele considerado em razão dessa sua multiplicidade, uma expressão legítima da sua época, ao afirmar:
Há alguns poetas cuja poesia deve ser colocada como algo
isolado, destinado à leitura e ao deleite. Outros há, cuja poesia, mesmo sendo também destinada à leitura e ao deleite,
possui uma importância histórica considerável. Yeats participa desse último grupo. Ele é um dos poucos poetas cuja
própria história é a história do seu tempo, um daqueles que
se constituem como parte da consciência de uma época
impossível de ser entendida sem a sua presença.
21
ELIOT, T.S. “Yeats”inSelected Prose of T.S. Eliot. Edited with an
Introduction by Frank Kermode. New York: A Harvest Book / Harcourt,
Inc., 1975. p. 252.
20
Waldir Freitas Oliveira é historiador, ensaísta e conferencista, professor
emérito da Universidade Federal da Bahia, com dezenas de livros publicados, entre eles A antiguidade tardia (1991), e Antônio de Lacerda (2002).
Dirigiu diversas instituições, como o Conselho de Cultura do Estado da
Bahia, do qual foi presidente, e o Centro de Estudos Afro-Orientais da
UFBA. É sócio remido do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.
Desde 1987 ocupa a Cadeira número 18 da ALB.
100 ◄◄
HOMENAGEM A
OLEGÁRIO MARIANO
Consuelo Pondé de Sena
C
omo é agradável reter na memória momentos significativos,
especialmente quando muitos dos que apreciaram o mesmo
acontecimento não estão mais vivos para contá-los, ou os esqueceram. Ser testemunha presencial de uma cerimônia marcante é,
para mim, um privilégio.
Compareci, há muitos anos a uma cerimônia noturna, marcada para as 20:30h, do dia 28 de agosto de 1950. Muitas pessoas
se sentiram atraídas pelas notas publicadas na imprensa. Por esse
motivo muitos estiveram presentes à homenagem prestada ao
mais popular poeta brasileiro daquele tempo. Presidia a Casa da
Bahia o doutor Francisco Peixoto de Magalhães Neto e era secretário geral o professor Francisco da Conceição Menezes.
Na edição de A Tarde do dia 29 de agosto de 1950, no
dia seguinte ao evento, no texto intitulado: “Encontro de poetas
— uma festa intelectual em honra a Olegário Mariano” estão
contidas as informações sobre o sarau e a composição da mesa
presidida pelo presidente do IGHB, professor Francisco Peixoto
de Magalhães Neto, o prefeito Wanderley Pinho e o presidente
da ALB professor Pinto de Carvalho.
Do livro de presenças do IGHB consta a relação de 189
pessoas que compareceram à sessão extraordinária do Instituto
Geográfico e Histórico da Bahia e da Academia de Letras, e a referência de que se tratava da recepção ao poeta Olegário Mariano,
conforme enunciado na página 51 do livro. (ADM-11) do IGHB.
►► 101
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Apesar da labuta intensa do dia a dia, meu pai, médico
clínico nesta capital, convidou-nos a mim, Lúcia e Pedro para
comparecermos à Casa da Bahia, porquanto, naquela noite, ali se
reuniriam vários poetas baianos para homenagearem o festejado
poeta pernambucano.
Olegário era um dos dois filhos de José Mariano Carneiro da Cunha e de dona Olegária da Costa Gama. Portanto, um
legítimo representante da aristocracia pernambucana, cujo pai,
José Mariano, fora político, advogado, jornalista, combativo líder
abolicionista e republicano. Como jornalista, atuou em vários
órgãos da imprensa, tendo fundado o jornal A Província. Foi deputado-geral no império (1881-85) e constituinte de 1891.
Nutria grande admiração pelos pais sobre os quais se estende no seu “Discurso de posse”, na Academia Brasileira de
Letras. Ao referir-se a ambos, assim se expressa:
Contemporâneo do advento da Abolição, senti que me derramaram no sangue ânsias de independência e de humanidade. Meu pai, figura bíblica no cenário político da época na
minha terra, senão no Brasil imperial que agonizava, com a
cartilha que me pôs diante dos olhos, ensibou-me a grande
arte de seduzir pelo coração. Foi com ele, nas suas atitudes de homem e de batalhador intimorato, nos seus gestos de supremo liberalismo em face do calvário malsinado
da escravatura, que aprendi a lídima significação da poesia
humana, porque, Srs Acadêmicos, foi meu pai o primeiro poeta com que privei e que me sensibilizou, poeta da
Abolição através do exaltado visionário, abrindo as portas
de sua velha casa e o seu imenso coração ao infortúnio da
raça proscrita sem olhar para trás como aquele Brissot da
Revolução Francesa, para ver se o seguiam e o aplaudiam.
Em volta dessa casa que era o baluarte inexpugnável dos
homens de ação daquela hora histórica de que nos devemos
sempre orgulhar, relampejava, à maneira da divina coluna
que vanguardeou as gentes de Moisés, o espírito generoso
das da liberdade dos homens esmagados pela mácula étnica.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Autênticos torneios d ’Ágora acordavam em cada pelejador
da boa peleja instintos de leões indomáveis que arremetiam,
magníficos, contra interesses e preconceitos do capitalismo
e da política mal orientada. A salvaguarda dos seus princípios que eram, no fim de contas, os direitos à vida daqueles
mártires negros, determinava, como era de supor, episódios
de raro denodo que ainda se hão de gravar na história da
nossa grande Pátria. Aflorando dessa cheia revolucionária,
era, pois, natural que houvesse em mim a galhardia heróica
e o desempeno quase descomedido daqueles girondinos do
norte, estrepitando no vozerio demagógico. Mas, assim não
foi Uma índole diversa modelava-me o temperamento e torcia-me o rumo do destino. É que ao contato de homens que
se batiam, de refrega em refrega, e pregavam as suas ideias
em comícios na praça pública , eletrizando , alucinando e
arrastando os auditórios, aparecia com o seu diadema de estrelas à fronte, pura entre as puras, sorrindo um sorriso que
era mais do céu que da terra, a imagem de minha mãe que
Nabuco chamou na Minha Formação — “um puro Carlo
Dolce”. A ela devo, mais talvez que a meu pai, o condão de
ser poeta e de, muito cedo afeiçoar-me religiosamente a esse
plectro que me impôs à vossa simpatia, plectro que quando
firo, como que ouço a música inicial do seu beijo acordando
aleluias na minha saudade. (MARIANO, [193?])
Cabe também aqui inserir, algumas palavras do “Discurso de recepção ao acadêmico Olegário Mariano” proferido pelo
acadêmico Barroso ([193?]).
Sois um poeta, Sr. Olegário Mariano, na mais alta acepção
dessa palavra. Dissestes, e com muita razão, que — sem
quaisquer preocupações das escolas literárias sob a contingência do motivo ou da forma, não pretendestes ser mais
do que poeta, deixando a alma dizer o que lhe aprouvesse
em instantes de alegria e de tristezas. Eis aí a causa principal de serdes entre os nossos poetas, um grande poeta,
porque sois vós mesmo, sem artifícios, sem ouropéis, sem
►► 103
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
máscaras, vós, integralmente vós, com os vossos defeitos e
as vossas qualidades. E, na singeleza sem par dessa naturalidade, reside por certo a vossa maior gloria.
Com efeito, a poesia de Olegário Mariano primava pela simplicidade das palavras, pela comunicabilidade, que o tornava tão
palatável a todas as pessoas, pois se expressavam de maneira coloquial. Seus temas também são simples, despidos de atavios e de
preocupação com o erudito. Por isso, cantava o sentimento com
tanta ternura e os seres da natureza com tanta delicadeza.
Na História concisa da Literatura Brasileira, Bosi (1975) escreve: “Olegário Mariano (1889-1958), que, perpetuando o
verso tradicional até à morte, deu exemplo de um lirismo aberto e simples”.
Sobre Olegário Mariano escreveu Lima ([193?]):
“Embora o homem não parecesse ter motivos de grandes
queixumes, o poeta que nele existia era triste e pôs nos versos um
travo de melancolia: ‘É meu fado andar por esta vida/sozinho
e triste como um desterrado’”. Ainda sobre Mariano comenta:
“Sem ser totalmente avesso à arte moderna — admirava Portinari, Di Cavalcanti e Ovale — afirmava não querer compreender
a poesia moderna. Ao verso livre e de ritmo descabelado opôs
o alexandrino e musical. Lírico incorrigível, é chamado o Poeta
das Cigarras, pela preferência que teve para com elas. Com seu
falecimento, no Rio de Janeiro, passou às mãos de Guilherme de
Almeida ‘o Principado da Poesia Brasileira’”.
No livro A literatura no Brasil sob a direção de Coutinho
(1987), Olegário Mariano está incluído no Neoparnasianismo,
ao lado de Mário de Lima, Humberto de Campos, Agripino
da Silva, Alberto Ramos e Martins Fontes e outros mais tarde
Luiz Carlos, Adelmar Tavares, Moacir de Almeida, Aníbal Teófilo, Aristeo Seixas, Basto Tigre, Bastos Tigre, Batista Cepelos,
Belmiro Braga, Castro Menezes, Catulo Cearense, Farias Neves
Sobrinho, Goulart de Andrade, José Oiticica, Leal de Sousa, Luís
104 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Edmundo, Múcio Leão, Nilo Bruzzi e outros. Acerca de Olegário escreve: De Olegário Mariano, cuja reputação como lírico
esteve sempre ligado à lembrança de seus versos às cigarras, é
imperiosa a menção do livro O enamorado da vida (1937), publicado a uma altura em que a posição neoparnasiana frente ao
problema poético podia ser, já, considerada inatural. No conjunto da obra de Olegário Mariano, entretanto, O enamorado da vida
goza de singularidade. Voltando-se para a infância, para a terra
natal, relembrando tipos e episódios de uma vida prenhe de lirismo, logra o poeta emprestar a seu canto uma pureza inusitada
e aos versos fluência e riqueza conceitual. “Evocação”, “O poço
da panela”, “Tempo que se foi...” são peças que desde então se
tornaram antológicas.
Num remanso bucólico e sombrio
Onde atenua a marcha o grande rio,
À sombra de recurvas ingazeiras,
Batem roupa, cantando as lavadeiras.
Trago ainda nos olhos: é bem ela,
A Paisagem do Poço da Panela:
A igreja, a casa grande, as gameleiras
E ao fundo o pátio verde e as ribanceiras
que afagam, num lúbrico arrepio,
O corpo adolescente e alvo rio.
Do outro lado da margem — capinzais
Da olaria e do sítio de Morais.
Morais Pilôto — um português antigo,
Compadre de meu Pai, seu grande amigo,
A quem seguia como um cão de fila
Através da política intranquila.
Homens, éramos dois. Completamente
Diferentes em tudo. Eu, manso e doente,
Meu irmão insubmisso e insuportável
Como um potrinho de expressão saudável
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Cometendo distúrbios... Meu irmão
Levava surras como um boi ladrão.
Mas vingava-se em mim. O quanto eu tinha
Era nas suas mãos como farinha.
Animais de madeira, leões, camelos,
Até a minha coleção de selos
Ele queimou um dia por vingança.
Aprendi a sofrer muito criança.
Se alguém me dava cousas de presente,
Dele era tudo, inevitavelmente.
Se havia luta entre nós dois, a sorte
Decidia por ele: era o mais forte.
E eu, sem revolta e sem melancolia,
Sendo filho de ricos, mal vivia.
Uma vez, (como dói essa lembrança!)
De um bando de guris da vizinhança,
Meu irmão, num rincão da estrebaria,
Organizou a sua “Companhia”,
Fez um bumba-meu-boi surpreendente,
distribuiu os papéis a toda gente:
O “boi”, o “Seu Coitinho”, a “Ema”, a “Caipora”.
Entraram todos... Eu fiquei de fora.
Nessa noite, meu Pai, vendo-me em pranto,
Pôs a troupe na rua por encanto
E reduziu a múltiplas fogueiras,
“Boi”,”cavalo marinho” e “cantadeiras”.
De então recrudesceu a fúria.
Não havia pedido nem lamúria
De minha Mãe, que comovesse a fera.
Era o diabo. Eu nem sei mesmo o que ele era.
Certa noite pesada de tormenta,
Minha Mãe, numa voz cansada e lenta,
Lia-me a história do Patinho torto.
Eu, com meus dedos tremendo, ouvia absorto,
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Quando assomou à porta o turbulento.
Entrou que parecia um pé-de-vento.
Parou. Sorria. Já conhecia a história,
Disse (tenho bem claro na memória):
Que ele era um cisne pra viver num horto
E eu não passava de um patinho torto.
Minha Mãe pôs em mim seus olhos mansos,
Tranquilos como as águas dos remansos,
E tantas vezes me beijou no rosto,
Numa expressão tão triste e tão singela,
Que desejei sofrer novo desgosto
Só pra ter novas carícias dela.
A despeito das rixas e perigos,
Crescemos ambos como bons amigos,
Vendo o tempo apagar, rude e apressado,
Esse doce perfume do passado,
Que nos infiltra uma saudade louca.
E inda temos um beijo em nossa boca,
Um beijo de respeito e de recato
Para beijar chorando o seu retrato.
Velhos, sem ter ninguém que nos iluda,
Pensamos nela e nos seus bons destinos.
Se viva fosse, inda éramos meninos,
Que para o olhar das mães que nunca muda,
Os filhos continuam pequeninos...
Literatos, também, costumam estar ou não na moda, porque os gostos e tendências se modificam com o decorrer dos
tempos. Todavia, o que apresenta qualidade literária sempre há
de ser admirado e aplaudido, independentemente, da corrente a
que pertença. Lembro-me bem, que dentre os que pontuaram as
letras brasileiras, há relativamente poucos anos, e caíram no esquecimento estão: o poeta Olegário Mariano e prosador Humberto de Campos, ambos desconhecidos das atuais gerações.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Olegário Mariano Carneiro da Cunha era uma bela figura
humana. Elegante e bem vestido, foi pintado por Cândido Portinari, ao menos, em três oportunidades. Cidadão de prestígio político e social, desde cedo, aos 29 anos, foi indicado representante do Brasil na Missão Melo Franco, na condição de secretário
da Embaixada Brasileira na Bolívia. Parlamentar foi deputado à
Assembleia Constituinte em 1934. Ocupou pouco depois, em
1937, uma cadeira na Câmara dos Deputados, dissolvida pelo
Estado Novo. Amigo de Getúlio Vargas exerceu o cargo de ministro plenipotenciário nos Centenários de Portugal, em 1940.
Ainda em 1940, foi delegado da Academia Brasileira de Letras e,
mais tarde embaixador do Brasil em Portugal.
No ano de 1938, em concurso promovido pela Revista Fon
Fon foi eleito Príncipe dos Poetas Brasileiros, em substituição
a Alberto de Oliveira, título primeiramente concedido a Olavo
Bilac. Durante algum tempo publicou nas revistas: Caretas e Para
Todos, sob o pseudônimo de João da Avenida. Eleito para a Academia Brasileira de Letras, em 1926, sucedeu a Mário de Alencar
e foi substituído por Álvaro Moreira.
Ficou conhecido como: “Poeta das Cigarras” por ter esse
mavioso inseto como um dos seus temas favoritos. Tendo vivido no período do Modernismo não aderiu ao movimento reformador das letras brasileiras, sendo considerado um passadista,
porque cultivava os preceitos do incinerado parnasianismo.
Por todos esses motivos, sua estada na Cidade do Salvador despertou grande interesse do mundo intelectual e o
IGHB e a Academia promoveram a tertúlia a que tive a alegria
de assistir.
Aberta a sessão, foram pronunciadas palavras de boas vindas ao visitante e, sucessivamente, sendo convidados a declamar suas próprias produções poéticas: Arthur de Salles, Castro
Rebello Junior, Francisco de Mattos (Chico de Mattos) e João
Muniz. Se estavam presentes outros poetas, como pude verificar
nas páginas da imprensa, minha memória não captou.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Contudo, a edição do Estado da Bahia daquela segunda feira, dia da festa literária, noticiou sobre a noite, no IGHB, informando que se fariam ouvidos Magalhães Neto, Hélio Simões,
Arthur de Salles e Afonso Castro Rebelo Junior. O jornal A
Tarde também divulgou foto daquele belo varão. Para confirmar a informação de que o vate pernambucano era aguardado, com interesse, na capital baiana, permitimo-nos transcrever
parte da notícia divulgada no próprio dia 28 de agosto sobre a
sua presença em Salvador. Este é o texto: “Qual não foi a nossa
surpresa quando nos deparamos com uma figura de porte ainda
varonil que uma basta cabeleira fios de prata torna mais impressionante. Requintado também no vestir–se, o ‘príncipe’ logo se
pôs à disposição do repórter para uma conversa entre amigos,
que ele mesmo inicia”. Conta ainda que do Recife foi direto para
a cidade do Bonfim, antiga Vila Nova da Rainha, na Bahia, a
fim de visitar sua prima Esther, esposa do senhor Raimundo
Gonçalves. Naquele local recebeu significativa homenagem no
salão da prefeitura uma “hora de arte”, durante a qual as crianças
declamaram alguns dos seus poemas. De igual modo, o vespertino baiano anunciou a homenagem ao poeta, imortal da Academia Brasileira de Letras, onde ocupou a Cadeira número 21, e
da qual foi presidente, que lhe seria prestada pelo IGHB e pela
ALB, na sede da Casa da Bahia, às 20:30h.
À noite, em companhia de meu pai e de meus irmãos Lúcia e Pedro, compareci ao Instituto, tendo a ocasião de assistir a
divulgada homenagem prestada pelos poetas baianos. Naquele
momento singular, lembro-me ter escutado os poetas: João Muniz, Chico de Mattos, Afonso Castro Rebelo Junior e Arthur de
Salles. Dentre todos os poetas destacou-se a figura exponencial
do simbolista Arthur de Salles, com sua basta e alva cabeleira
ondulada, realçada pelo tom canela da pele e a simplicidade
com que se pronunciou, quase sussurrando. Convocado pela
presidência, encaminhou-se timidamente para a tribuna, num
passo lento de quem se subjugava ao peso dos anos, vestido
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
modestamente, como se envolto num burel franciscano. Era a
mais perfeita personificação da timidez e da humildade.
Recordo-me que em grande silêncio se manteve a assistência, quando Arthur de Salles recitou o soneto “Ocaso no
mar.” Figura veneranda, nasceu de família modesta, no bairro
do Pilar, a 7 de março de 1879, tendo começado a escrever aos
13 anos. Faleceu, em Salvador, aos 73 anos, a 27 de junho de
1952. Sobre esse soneto, certa vez, escreveu o crítico Agripino
Grieco: “se toda a poética nacional se perdesse num naufrágio,
e só restasse ‘Ocaso no mar’, o crítico da história, lendo-o,
exclamaria: ‘aqui viveu um grande povo’”. (Palestra proferida
no IGHB).
No noticiário de sua morte consta a informação: “Nenhuma geração o combatia. Se entre os escritores e poetas acadêmicos contava com amigos e admiradores, menos querido e
admirado não o era nas rodas dos literatos de convicções modernistas”. A mesma nota acrescenta: “Não vivia enclausurado
em torre de marfim, acompanhava e participava das vibrações
cívicas da juventude, formava com os moços em movimentos
renovadores, dominado por uma sinceridade que todos lhe reconheciam e admiravam” (A TARDE, 27 jun. 1952).
Quanto aos demais participantes da homenagem, confesso, só retive na lembrança, aqueles que costumava encontrar na
Rua Chile, nos pontos em que se reuniam os intelectuais da Boa
Terra. Eram costumeiros frequentadores da esquina do Palácio
Rio Branco, do Café de Bernadete ou do Café das Meninas.
Como essas lembranças me levam a recuar até o tempo
da mocidade e recordar que, à semelhança das demais jovens da
época, passeava, com minhas irmãs e amigas, pela inesquecível
artéria principal desta cidade — hoje, escombro do passado.
Escutadas as vozes dos poetas reunidos no salão nobre do
IGHB, lembro -me bem da voz abafada, quase rouca, de Olegário Mariano ao recitar evocativo poema “O poço da panela”,
que o remetia ás recordações da velha propriedade rural paterna,
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
as disputas com seu irmão José Mariano Junior e outras ternas
lembranças do passado. Apesar de serem apenas dois irmãos
não eram muito próximos.
José Mariano Filho era escritor, colecionador, e se dedicava à história e a crítica de arte. É autor dos livros: Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho; Estudos de arte brasileira e Os três chafarizes
do mestre Valentim. Chegou a ocupar a direção da antiga Escola
Nacional de Belas Artes, do Rio de janeiro (1926-1927).
Todavia, a notícia do evento, publicada em A Tarde, no dia
seguinte, veiculou: Primeiramente, usou da palavra o professor
Estácio de Lima que, em nome da ALB e do IGHB, saudou o
homenageado. Seguiu-se-lhe o poeta Ivan Americano, que o fez
em nome dos de Letras da Bahia, que não pertenciam às duas
instituições culturais. Depois, voluntariamente, declamaram versos de suas lavras os poetas: Arthur de Salles, Afonso Castro
Rebelo Junior, João Muniz, João Ribeiro da Hora, Benjamim de
Viveiros, Chico de Matos.
“Sob imensa expectativa, Olegário Mariano tem a palavra,
só conseguindo usá-la depois de cinco minutos que a tanto demoraram os aplausos vibrantes de toda a assistência. E porque
afônico, ainda carpindo uma forte gripe pediu desculpas de ‘falar pouco e muito próximo ao microfone’. Declamou “As duas
sombras” e dois poemas inéditos, primorosos como os demais
excertos do seu próximo volume Meu mundo fechado. Quando
Olegário terminou a última estrofe, a assistência o ovacionou, de
pé, por muito tempo”. São desses pequenos e fugazes instantes
que é feita a nossa vida. Não nos enganemos.
Volvidos tantos anos, aqui estou, saudosamente, a evocar
momento significativo desta Casa da Bahia, do qual participei
como ouvinte, orgulhosa por encontrar-me, com meu pai, Edistio Pondé que, na mocidade, ao lado de Adalício Nogueira, seu
primo e amigo, também presente ao mesmo sarau, colaborara,
nesta Casa da Bahia, com o professor de História Universal, Bernardino de Souza, Secretário Perpétuo do IGHB.
►► 111
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Recordações são sempre agradáveis de reviver, porque
nos conduzem ao passado, por vezes, esquecidas nos escaninhos
da memória.
REFERÊNCIAS
Na Bahia o cantor D’ “As Cigarras”: fala o poeta, “são sempre às mesmas morenas de olhos verdes”. A Tarde, Salvador, p. 2, 28 ago. 1950.
Encontro de poetas: uma festa intelectual em honra a Olegário Mariano. A Tarde, Salvador, p. 2, 29 ago. 1950.
Morreu Arthur de Sales: um concurso literário consagrara-o como
”Príncipe dos poetas baianos. A Tarde, Salvador, p. 2, 27 jun. 1952.
BARROSO, aGustavo. “Discurso de recepção ao acadêmico Olegário
Mariano”. Disponível em: <http://www.academia.org.br/abl/cgi/
cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=8452&sid=228>. Acesso em: 14 jun.
2014.
BOSSI, Alfredo. Historia concisa da literatura brasileira. 2. ed. São Paulo:
Cultrix; 1987, 528p.
COUTINHO, Afrânio (org.). A Literatura no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Sul Americana [19-?].
GRIECO, Agripino. Escritos e artistas baianos. Rio de Janeiro: O Jornal,
1934.
LIMA, Ébion. Curso de literatura brasileira. São Paulo: FTD, s/d.
MARIANO, Olegário. “Discurso de posse”. Disponível em: <http://
www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=8452&sid=228>. Acesso em: 14 jun. 2014.1
Consuelo Pondé de Sena é historiadora e ensaísta, especialista em língua tupi e etnologia geral e do Brasil e mestre em ciências sociais pela
Universidade Federal da Bahia. É presidente do Instituto Geográfico
e Histórico da Bahia e sócia correspondente do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História. Desde
2002 ocupa a Cadeira número 28 da ALB.
112 ◄◄
AS ARTES SE DISTRAÍRAM,
E A EXPLOSÃO DADÁ
CAMINHA PARA OS 100 ANOS
Florisvaldo Mattos
D
izem que se findou em 1921 ou 1922, mas faltam apenas
meses para que transcorra o primeiro centenário da explosão de irreverência, rebeldia, negação, niilismo, absurdo e macaquices, que um irrequieto grupo de jovens artistas, poetas, escritores, cantores e dançarinos perpetrava em Zurique, na noite de
5 de fevereiro de 1916, no Cabaret Voltaire, situado no nº 1 da
Spiegelgasse (Travessa do Espelho), vista então como um reles
beco. Ali, para muitos uma jaula de loucos, surgia o movimento
Dadá, que vinha para atropelar abruptamente tudo que se tinha
como pensamento e arte instituídos, mas também para mudar os
rumos da cultura ocidental, sob o signo do ódio ao nacionalismo, ao progresso, à razão e à ordem, tidos como estimuladores
da guerra que, então, ensanguentava e devastava a Europa.
Dadá desejava destruir os enganos lógicos do homem
para recuperar uma ordem natural, irracional. Dadá queria substituir o absurdo lógico dos homens de hoje pelo
irracional destituído de sentido. É por isso que tocamos
com toda a força que pudemos o grande tambor de Dadá
e trombeteamos o elogio do ilógico. (...) Filosofias valem
menos, para Dadá, do que uma escova de dentes velha,
jogada fora, e Dadá as deixa para os grandes líderes da
humanidade. Dadá denunciou as artimanhas infernais do
vocabulário oficial do saber. Dadá é para os sem-juízo, o
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
que não é nada absurdo, Dadá é como a natureza, desprovido de sentido. Dadá é pela natureza e contra a arte.
(Ball, apud Ades, 1976, p.17-18)
Assim, numa apologia do irracional própria do movimento, escreveu o poeta Hugo Ball (1886-1927), membro do grupo
e fundador do Cabaret Voltaire, uma espécie de boate artística e
literária, onde ocorriam as reuniões, em noites de acaloradas discussões, declamações e tresloucadas exibições, que os dadaístas,
segundo um deles, o alemão Richard Huelsenbeck (1892-1974),
desejavam tornar “um ponto focal da novíssima arte”.
Não obstante, apesar de se ter fixado em 1916 o marco
inaugural do dadaísmo, de onde se lançaria como irresistível
onda para todo o mundo ocidental, não se pode omitir um conjunto de ações proto-Dadá que ocorreram nos Estados Unidos,
por efeito da associação que se estabeleceu entre Alfred Stieglitz
(1864-1946), considerado um dos pioneiros da fotografia moderna, e o pintor Francis Picabia (1879-1952), este descrito por
Marcel Duchamp como um anarquista nato e um dadaísta avant
la lettre, em Nova York, ao ponto de em 1915 ter sido ele o responsável pela mudança do nome da revista Camera Work, que o
fotógrafo e marchand editava como porta-voz vanguardista de
sua pequena galeria de arte, desde 1905, para 291, doravante o
seu veículo de propaganda artística revolucionária, cujo primeiro
número trazia, além de desenhos originais de Picabia, alusivos
à sua série de máquinas imaginárias, ideogramas de Guillaume
Apollinaire e poemas do próprio Stieglitz.
“Em 1913, Picabia foi para Nova York a fim de presenciar
o grande impacto provocado pelo Armory Show sobre a arte
americana. Continuou ali para injetar um espírito proto-Dadá na
revista de Alfred Stieglitz, Camera Work, e mais tarde em 291, a
publicação da galeria de Stiegliltz” (Chipp, 1996, 373), embora
registre que Picabia só em 1916 aderiria decididamente ao grupo
de Zurique, participando em 1917 das “primeiras manifestações
Dadá em Paris”.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Tornava-se claro que, ante crescente rejeição que tais audácias artísticas espalhavam no ambiente cultural de Nova York,
a revista 291 servia de instrumento a Stieglitz e aos que o apoiavam, para promover abertura de espírito a cada exposição de
arte contestadora que organizava em sua galeria. Não há dúvida
de que, ali, a seiva de negação e rebeldia que irá alimentar a explosão Dadá apresentava contornos de uma autêntica prévia do
que ocorrerá no ano seguinte, em Zurique.
Como que a chancelar o proto-Dadá nova-iorquino, mais
incisivo, e na perspectiva da atmosfera beligerante da época, o alsaciano Jean (Hans) Arp (1886-1966), também do grupo, assim
justifica as atitudes dos futuros dadaístas:
Em Zurique, em 1915, quando perdemos o interesse pelos matadouros da guerra mundial, nós nos voltamos para
as belas-artes. Enquanto o trovão das baterias ressoava a
distância, fazíamos colagens, recitávamos, versejávamos,
cantávamos, pondo a alma inteira nisso. Buscávamos uma
arte elementar que pudesse, pensávamos, salvar a humanidade da loucura furiosa daqueles tempos. Aspirávamos
a uma nova ordem, que restaurasse o equilíbrio entre o
Céu e o Inferno. Esta arte se tornou gradualmente objeto de uma reprovação geral. Surpreende que os “bandidos” não pudessem entender-nos? Sua mania pueril de
autoritarismo leva-os a esperar que a própria arte sirva de
instrumento para estupidificar a humanidade. (Arp, apud
Ades, 1976, p. 14)
Arte e guerra mantêm antigo nexopor sobre tempos e territórios de sangue e sofrimentos. Mente solta, imagine-se uma
rebelião a eclodir em um país que optou confortavelmente pela
neutralidade no meio de uma conflagração continental, em que
várias nações ferozmente se digladiam e trucidam; pode até
parecer cena de pesadelo, com desfecho previsível. Inebriados
pelo triunfo e mergulhados na soberba, os vencedores põem-se
►► 115
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
a dividir gordo botim, enquanto os vencidos, se não sobrevém
algum Plano Marshall salvador, contam seus mortos e ruminam
suas dores, lágrimas e perdas. Em outro registro, incauto leitor
que buscasse em algum ilustre tratado os efeitos que fatalmente
guerras despejam sobre o hoje e o amanhã de povos e nações
certamente se resignaria a listar e aturar redundantes obviedades.
Mas se, curioso, resolve inventariar efeitos de guerras sobre as
artes e a cultura em geral, talvez a reação seja outra, de surpresa,
senão de enganador fascínio.
Exemplos sempre houve e haverá, a se estenderem sobre
calendários e alentados compêndios de história. Lembrada, celebrada e perpetuada, a guerra de Troia serviu de tema a imorredouras epopeias — a Ilíada e a Odisseia, de Homero, como a
Eneida, de Virgílio, sempre evocadas; a carnificina travestida de
místico heroísmo das Cruzadas contra o Oriente muçulmano
(que hoje parece dar o troco, dez séculos depois) abarrotou de
inspirados versos as estrofes da Jerusalém libertada, de Torquato
Tasso, enquanto os cascos ainda sangrentos de decadentes cavalarias pelos áridos solos da Mancha permitiram que Miguel de
Cervantes escrevesse a saga humanista do maior romance de todos os tempos, abrindo largas sendas narrativas que se enroscam
com os estratagemas e ambições de poder da burguesia.
Ah, também ela, a nascente burguesia, que despertaria
com os exércitos e as glórias de Napoleão seu célebre Code Civile
(1802), ele, então, venerado Cônsul, depois imperador, a submeter impérios, povos e nações à força de espadas e canhonaço,
conflitos que sobrevivem em páginas vibrantes com que Stendhal (O vermelho e o negro, A cartuxa de Parma), Tolstoi (Guerra e
paz) e Giuseppe Tomasi de Lampedusa (O leopardo) iluminaram
o caminho rumo à galáxia heroica do romance que tem a guerra
como protagonista central, no século XIX — isso de barato,
por só falar de literatura, abstraindo-se a música (Beethoven) e
a pintura (Goya, Jacques-Louis David, Delacroix, Manet). Mas,
nenhum período foi tão farto como o século XX em projetar
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
influências, tão inovadoras quanto reiterativas, sobre gerações,
produzindo ideias e movimentos políticos e artísticos, quanto as
duas grandes guerras mundiais (1914-1918 e 1939-1945), com
os seus fecundos intermédios, sem abstrair as que se seguiram,
embora localizadas (Coreia, Vietnã, Golfo, Afeganistão e Iraque), cujos reflexos prosseguem.
BOATE DA “ARTE NOVÍSSIMA”
É no justo contexto da matança da Primeira Grande
Guerra Mundial, que se devem inserir a erupção, as ensandecidas reuniões do Cabaret Voltaire e, por fim, a afirmação e
irradiação internacional do movimento Dadá, que marcha para
completar um século dentro de meses, praticamente em seguida ao centenário do início da conflagração que lhe deu causa,
mas que, ao passo de tantos anos, parece recusar-se a morrer
de vez.
A tal distância, a impressão que se tem é que os dadaístas nunca existiram, entram na corrente de mitos criados, mas
eles efetivamente se materializaram em pleno calor da guerra,
dias depois de Hugo Ball e sua companheira Emmy Hennings (1885-1948) inaugurarem o Cabaret Voltaire. Além deles,
auferia o diáfano clima da neutralidade suíça, como refugiados,
uma futuramente prodigiosa malta: os romenos Tristan Tzara
(Samy Rosenstock, 1896-1963) e Marcel Janco (1895-1974), outro alemão, Richard Hüelsenbeck (1892-1974) e o alsaciano Jean
(Hans) Arp (1886-1966), aos quais adeririam outros alemães, os
pintores Max Ernst (1891-1976) e Kurt Schwitters (1887-1948),
Raoul Haussmann (1886-1971) e sua mulher Hannah Höch
(1889-1978). Além de Emmy Hennings, entre os primeiros comparsas do movimento, militava outra mulher, Sophie Taeuber,
que participava das alucinadas noites do Cabaret Voltaire com o
rosto encoberto por uma máscara, proibida de se apresentar em
cena e ameaçada de demissão pela escola de Zurique, em que
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
ensinava artes decorativas. Nenhum deles estava disposto a dar
uma gota de sangue ou de suor por suas pátrias numa guerra que
condenavam.
Os dadaístas relacionam o seu movimento diretamente
com o conflito. Num depoimento de 1920 (En avant Dada: história do dadaísmo), transcrito por H. B. Chipp, relata Hüelsenbeck:
Tínhamos deixado nossos países por causa da guerra. Ball e eu vínhamos da Alemanha, Tzara e Janco, da
Romênia. Hans Arp, da França. Estávamos de acordo em
que a guerra havia sido provocada pelos vários governos
por razões autocráticas, sórdidas e materialistas. (Chipp,
1996, p. 381).
Como rubrica trágica e justificação, o movimento eclode
precisamente dezesseis dias antes de começar o mais longo e
sangrento combate da Primeira Grande Guerra, a célebre batalha de Verdun, com a participação de dois milhões de soldados
franceses e alemães, dos quais metade morreu, sessenta mil deles num só dia. Enquanto a Europa mergulhava em desespero,
com nações engalfinhando-se sobre sangue e lama, para acerto
de longínquas desavenças, num teatro de morte e tragédia, um
grupo de jovens artistas quase apátridas levantava sua voz, alto
e bom som, para afirmação de seu pendor niilista e iconoclasta, descerrando imensa cortina para lendas e reações iradas, em
face das experiências amargas e das profundas transformações
sociais e políticas, que se irão projetar por duas décadas (de 1920
a 1940) que prenunciam outro conflito mundial, a refletir-se tanto no plano histórico e social, quanto no cultural e artístico. (E
uma coincidência de calendário: Zurique, 1916, a mesma cidade
e ano em que James Joyce está escrevendo o seu romance Ulisses,
marco da ficção moderna, que sairia em 1922).
Neste cenário de incertezas e aflições, afloravam aspirações por formas de arte e de poesia que apontasse para novos horizontes, preocupações que muito bem se denunciam
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
na memória um dos dadaístas de primeira hora, Marcel Janco:
“Tínhamos perdido a esperança de uma condição de vida mais
justa para a arte em nossa sociedade. Aqueles dentre nós que
tinham consciência do problema sentiam o peso de uma enorme responsabilidade. Estávamos indignados com os sofrimentos e o aviltamento do homem” (Janco, apud Tolentino).
Passados decênios da eclosão do movimento, falando a
uma rádio francesa em 1950 sobre as razões que deram origem
ao Dadá, Tristan Tzara parecia simplesmente didático:
Para compreender como Dadá surgiu é necessário imaginar-se, de um lado, o estado de ânimo de um grupo de jovens na prisão em que, à época da Primeira Guerra Mundial, se resumia a Suíça e, de outro, o nível intelectual da
arte a da literatura em tal momento. Era certo que a guerra deveria ter fim e que depois nós não teríamos de ver
outra. Tudo isso caiu no que comumente o hábito chama
de história. Mas, por volta de 1916-1917, a guerra parecia que não iria findar-se. No mais, seja para mim como
para meus amigos, ela tomava proporções de estender-se
por uma perspectiva bastante longa. Disto sobrevinham
o desgosto e a revolta. Nós éramos resolutamente contra
a guerra, sem por isso cair-se na fácil pieguice do pacifismo utópico. Nós sabíamos que era possível esquecer a
guerra senão arrancando-lhe as entranhas. A impaciência
de viver era enorme, o desgosto se aplicava a toda forma
de civilização considerada moderna, à sua própria base, à
lógica, à linguagem, e a revolta impunha-se de tal modo
que o grotesco e o absurdo ultrapassavam com grande
alarde os valores estéticos. Não há como esquecer que na
literatura um ostensivo sentimentalismo mascarava o humano e que um perverso gosto com pretensões de altura
se instalava em todos os campos da arte, caracterizando
a força da burguesia em tudo que ela possuía de mais
odioso (Tzara, apud Almeida, 2012)
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Há fundamento histórico nessa referência, a merecer ligeira recensão. A volúpia beligerante da burguesia, em luta para
impor seu domínio sobre a aristocracia e, assim, perpetuar-se no
poder, já com as guerras napoleônicas como seu instrumento,
acabaria por receber uma transfusão reanimadora e solidária de
sangue azul, cujo efeito tonificante vai atingir o cerne nevrálgico
do desenvolvimento artístico europeu no século XIX — a Paris
da Guerra Franco-Prussiana (1870-1871), desencadeada por Otto
von Bismarck, sob a égide expansionista do Império Alemão de
Guilherme I (1797-1888), cujo trauma, após a ocupação e consequente derrota francesa, culmina com a anexação da Alsácia e da
Lorena, gerando na Alemanha, com a quase concomitante derrota
da Dinamarca e da Áustria, um tal sentimento de júbilo e ufanismo, que enojou Nietzsche. É este o momento mesmo da onda
de revolta e populismo que irrompe, à época, dando origem à
célebre, embora efêmera, Comuna de Paris (1871).
Lógico que não se pode traçar uma linha direta entre os
fatos da guerra e o que se projeta e desenvolve na cultura, mas
é muito coincidente o estado de desconforto desse pós-guerra e
anteriores posturas culturais indicando novos rumos à literatura
e às artes e nomes, que aqui podem ser evocados — Zola, Rimbaud, Verlaine, Alfred Jarry, Huysmans, na literatura; Gauguin,
Seurat, Signac e Cézanne, na pintura – e não se venha dizer que
o pós-impressionismo se deveu apenas ao sucesso de pesquisas
sobre as leis ópticas da visão, ao uso dos contrastes simultâneos ou das cores complementares, numa dívida apenas contraída
com o concreto e o material da arte. Muito ao contrário, situa-se
aí um momento dinâmico de gestação que vai desembocar no
modernismo — como observa Jacques Barzun: “um período
preparatório, mais ou menos de 1870 a 1885, durante o qual antigos modos são questionados ou timidamente desrespeitados”.
Qual a razão disto, de as conflagrações bélicas projetarem
efeitos sobre a criatividade nas artes? Entre vários, a meu ver,
dois fatores sobressaem.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
1) No plano moral e histórico, para vencedores e vencidos, a infinidade de consequências, de incômodos, que as guerras provocam – miséria, sofrimentos, inquietações, revolta, protestos, rebeliões, anseios por mudança, contestação de valores,
súbita sensação de esgotamento das bases sociais, cerceamento
de rumos, destruição pela necessidade de livrar-se do que se tornou culturalmente estorvo, do começo ao fim, mesmo que tudo
se reduza a nonsense, piada. Era o que acontecia na Europa em
1915/1916, em plena Primeira Grande Guerra Mundial
Esses fatos fizeram os talentos mais jovens sentir-se colhidos nas garras da história; eles devem ser originais, mas
sua herança estorva-lhes o caminho e os meios para a realização de um novo começo eram-lhes negados pelo corte
na cultura. Estavam num novo ponto de partida, sem o
benefício de um terreno escoimado, de uma tábua rasa”
(Barzun, 2002, p.772)
2) Os resultados do imenso esforço técnico-científico dos
países em conflito, em matéria de investimentos, pesquisas e experimentos, desenvolvimento industrial, em princípio para fins
bélicos, que, findas as hostilidades, se revertem para o uso geral
da sociedade, nos campos da ciência, educação, saúde, segurança, energia, transportes, meio-ambiente, administração, cultura,
comunicações, de que as artes, de frente para o futuro, são largamente beneficiárias.
UM NOME PARA DADÁ
Apesar de Hans Richter (pintor, artista gráfico, cineasta alemão, 1888-1976) afirmar ser “impossível constatar quem
achou ou inventou a palavra Dadá, ou o que ela significa”, o
certo é que o movimento precisava de um nome e, como apresentava contornos de estripulia, aventura e brincadeira, muitas
histórias se contam e tantas são as versões desta descoberta,
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
quanto foram as polêmicas que surgiram em torno da autoria da
marca que iria fazer história no curso do século XX. Tristan Tzara, já visto como, senão líder, seu maior propagandista divulgou
a sua versão. Ao enfiar uma espátula aleatoriamente num dicionário alemão-francês, encimava a página que se abrira a palavra
DADA, significando apropriadamente um brinquedo — cavalinho de pau, mas um significante sob medida e, por certo, fácil
de gravar e difundir.
Por seu lado, Hüelsenbeck relata que a descoberta acidental se deu quando ele e Hugo Ball buscavam no dicionário o
nome para uma cantora que se apresentava no Cabaret Voltaire.
“Ball e eu descobrimos a palavra Dadá, por acaso, num dicionário francês-alemão, quando procurávamos um nome artístico
para madame LeRoy, a cantora do nosso Cabaré. Dadá é uma
palavra francesa, que significa cavalo de pau”, esclarece.
Não é o mesmo que afirma o fecundo Jean Arp, em 1921,
na revista do movimento:
Declaro que Tristan Tzara encontrou a palavra Dadá em
08 de fevereiro de 1916, às seis da tarde. Eu estava presente com os meus doze filhos, quando Tzara pronunciou
pela primeira vez essa palavra que despertou em todos nós
legítimo entusiasmo. (...) Estou convencido de que esta palavra não tem nenhuma importância e que apenas os imbecis e os professores espanhóis podem interessar-se pelos
dados. Aquilo que nos interessa é o espírito dadaísta e nós
éramos todos dadaístas antes da existência de Dadá. (Arp,
apud Tolentino)
Depois, viu-se — e foi dito em manifesto — que a palavra
significava muitas outras coisas, e é o próprio Ball quem esclarece: “Dadá em romeno, significa Sim, Sim; em francês, cavalo
de pau. Para os alemães, a palavra é um sinal de ingenuidade tola
e disparatada, e de simpatia, cheia de alegria procriadora, pelo
carro de criança” (Ball, apud Toletino)
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Disputas à parte quanto à autoria, desde que nunca fora
objeto de arguição quanto à origem enquanto o grupo se reunia
em Zurique, a palavra ganhou dimensão internacional com a
propagação do movimento dadaísta, depois que apareceu pela
primeira vez impressa no Cabaret Voltaire, no dia 15 de junho
de 1916. Doravante, mais que um símbolo, uma palavra, Dadá
se transforma em arma ideal para traduzir ideias e atitudes, tais
como as de asco, negação, revolta, descrença, invenção e até anedota, como também de realidades (destruição e morte), mostrando que, se o vazio podia muito bem erigir-se como arte de
viver, o cosmopolitismo, com a adesão crescente de nomes de
várias origens, fazia com que, pela primeira vez, um movimento
artístico surgisse ultrapassando fronteiras. Para culminar, a palavra daria o nome da revista, de ousada formatação gráfica, que
os dadaístas fizeram circular a partir de 1917.
O dadaísmo não formulou de início uma estética própria;
o fazer da arte de cada um de seus participantes é que foi modulando um universo de princípios criativos baseado em sua linha
geral na negação e na provocação. Na pintura, com Jean Arp e
outros, desenvolveu as técnicas de montagem e colagem, que
vinham do cubismo. Na esfera literária, a partir de Paris, abriu
espaços para a poesia surrealista de escrita automática, inconsciente, e a aplicação da palavra numa dimensão visual, a partir
de Guillaume Apollinaire. Na dramaturgia, descortinou sendas
para o teatro do absurdo, com Antonin Artaud. Mas, na arte, em
si mesma, o que ficou como forma arquetípica da expressão dadaísta foram o poema aleatório, que muitos tachariam de forma
sem-pé-nem-cabeça, e o ready-made criado por Marcel Duchamp
(1887-1968), que alcançaria foro mundial como um emblema.
São muitas as anedotas inspiradas no dadaísmo, sendo
que uma delas ganhou na época cútis de pilhéria. Conta-se que,
durante o féretro de um de seus inspiradores e precursores, o
poeta Guillaume Apollinaire, em 13 de novembro de 1918 (dia
do Armistício), no cemitério Père-Lachaise, em Paris, levado por
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
admiradores e prosélitos tristonhos em cortejo, de repente uma
turba avança pelas ruas, gritando: “A mort Guillaume!” (“Morreu
Guilherme!”). Houve um estremecimento geral de apreensão e
espanto, cerrando os semblantes, mas logo os dadaístas se acalmaram, ao perceber que o alarido sombrio se referia ao Kaiser
Guilherme II (1859-1941), que no momento deixava o trono
da Alemanha, derrotado e acusado de ter provocado a bárbara
guerra, não ao venerado patrono das vanguardas.
A SOBREVIVÊNCIA DE DADÁ
Além do surrealismo, que lhe arrebatou o primado, deulhe doutrina, organização e liderança, pela mão de André Breton
(1896-1966), são herdeiros do dadaísmo os principais movimentos que dominaram o século XX, e ainda dão as cartas, tais como
o expressionismo abstrato, pop-art, arte conceitual, arte informal,
arte pobre, arte concreta, Cobra (nome formado com as iniciais
de Copenhagen, Bruxelas e Amsterdã), Fluxus, transvanguarda e
muito do pitoresco que se projeta sob o rótulo difuso e fashion
de arte pós-moderna. “Diferentemente de outras correntes, que,
seja como for, nascem de uma vontade de conhecer, interpretar
a realidade e dela participar, o movimento Dadá é uma contestação absoluta de todos os valores, a começar pela arte”. Assim,
peremptório e arguto, o crítico de arte Giulio Carlo Argan situa
o dadaísmo no quadro da crise em que a conflagração da Primeira Grande Guerra Mundial engolfou a cultura internacional.
Instaurara-se o caos, posto que em crise, além dos demais valores,
entrou a própria arte, que, diz o crítico italiano, “deixa de ser um
modo de produzir valor, repudia qualquer lógica, é nonsense, faz-se
(se e quando se faz) segundo as leis do acaso”. O terreno torna-se
propício à aventura, à rebeldia e à provocação.
Em outro ponto, o dadaísmo dá também exemplo de diversidade. Trata-se de um movimento que, como força onipresente
e compulsiva, acontece em dois continentes: na Europa, a partir
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
de Zurique, na Suíça, espraiando-se logo por Paris e Berlim, e nos
Estados Unidos da América, como sequência à arte de vanguarda aberta pela exposição Armory Show, em 1913, ante o papel
ali representado e continuado pelo francês Marcel Duchamp e
pelo espano-cubano Francis Picabia (1879-1953), que mais tarde
publicará em Barcelona a sua revista itinerante intitulada 391, aos
quais se associou o fotógrafo e artista plástico Man Ray (18901977). Parafraseando um poema de Rafael Alberti (El toro de la
muerte, 1934), o dadaísmo semelha, então, um possante touro de
testa duplamente armada, jamais “saudoso de feridas”, escavando inquieto o chão árido de duas arenas, com as agudas pontas
perfurando a atmosfera de dois continentes, enérgico e disposto
a enfrentar o contendor, que o aguarda, e a sua tragédia. Talvez
resida aí, neste supremo vigor inicial, contrariando diagnósticos
dos que o veem morto apenas alguns anos depois, uma vez que
continuado e suplantado pelo surrealismo, o filho que lhe nasce
das entranhas tumultuadas, o segredo de sua persistente revivescência ao longo de todo o século passado, permeando ou encimando movimentos que surjam no campo da arte, devendo-se
muito desse reaparecimento, mais precisamente a partir de 1945
— por sinal num segundo pós-guerra, de acordo com a crítica, à
influência exercida por Marcel Duchamp, tanto nos Estados Unidos, como na Europa.
Desde que as estéticas e movimentos de vanguarda se puseram em campo, tem prevalecido — e, por vezes, se imposto, nos
grupos que se empenham em negar ou contestar valores artísticos
vigentes, um rol de comportamentos francamente provocativos
e rebeldes, visando a dominar o cenário por meio de voz, gestos,
impulsos, ações e criações contra o statu quo vigente.
DADA E O MODERNISMO BRASILEIRO (1922)
Que foram, afinal, na poesia e na arte do modernismo
brasileiro (1922), senão práticas dadaístas, o verso-piada, as
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
obras e atitudes desafiadoras, no curso de espetaculosas exposições de arte, e os manifestos de teor propagandístico e negação do gosto artístico dominante nos anos 1920? De início, em
certos casos, a psicologia explica, mas, em geral, a evidência de
um modo infantil de se comportar ruidosamente, de flagrante
exibicionismo na pregação de ideias e projetos faz parte do cardápio de uma espécie de loucura santa que permeia movimentos
surgidos no curso do século passado, a partir do surrealismo,
único filho legítimo de Dadá. Na sua marca de vontade demolidora, o dadaísmo permanece, posto que não são de outro, senão
dele, os traços de obstinação e tumulto presentes em militâncias
culturais, que buscam pelas trilhas da rebeldia afirmação em arte
e literatura, com suas palavras de ordem e exposição pública,
ocorram elas na Bahia, no Brasil e no mundo. Foi assim com a
geração da Poesia Mimeógrafo, no Rio de Janeiro dos anos 1970;
com a teatralidade militante dos Poetas da Praça, na Bahia dos
1980; e assim com a frequente pichação de muros nas grandes
cidades brasileiras — isto para citar apenas umas poucas iniciativas de tempos recentes.
Tais ações, no entanto, muito se diferenciam da gratuidade de antigas outras práticas, como o exercício do epigrama
destinado a acossar celebridades, culturais ou não, forma típica
de incômodo poético rimado, adotada na Bahia por aguerridos
e prestigiosos versejadores (Pinheiro Viegas, Sílvio Valente, Lafaiete Spínola, Wilson Lins; até há pouco, Ildásio Tavares, com
ressonâncias hoje em Antônio Lins, Bernardo Linhares, Guilherme Simões, entre outros), inquietações provocativas que
deram fama a outras expressões poéticas de outros tempos e
lugares, como Emílio de Menezes, no Rio da belle-époque. Observe-se que aí não havia o espírito do novo querendo se impor
tenazmente, vencer resistências culturais vigentes, mas apenas
manifestações de idiossincrasia e antipatia pessoais, no convívio provinciano. No fundo, nada se contestava, apenas se repetiam práticas de uma tradição satírica clássica, que começa com
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
o barroco Gregório de Mattos, no século XXVII. Tanto assim
que muitos desses satíricos se opuseram às primeiras exposições
de arte moderna na Bahia, nos anos 1940, posto que no fundo
eram todos conservadores, espíritos apenas empenhados em demolir reputações.1
RESSONÂNCIAS DADÁ
Dadaísmo puro, isto em nada diferia de práticas simultaneístas de decênios antes, em que se erguiam tributos ao barulho, à
negação, ao absurdo, à ironia e ao desaforo. O ensaísta Juan-Eduardo Cirlot reproduz o relato de um típico espetáculo dadaísta apresentado no Cabaret Voltaire, logo após o poeta anarquista alemão Hugo Ball e sua companheira Emmy Hennings
tê-lo inaugurado, em 5 de fevereiro de 1916. Em cena, caixas de
madeira eram por eles golpeadas no intento de produzir sons
1
Quando poetas-da-praça se reuniam no Jardim da Piedade, lá pelos
anos 1980, para divulgar seus versos e produções, declamando aos
gritos, criando tumulto, incomodando, proferindo até obscenidades,
que punham eventuais assistentes, circunstantes ou meros transeuntes estupefatos, se se abstraem aspectos provenientes da desigualdade
social, estava ali, a meu ver, guardadas as proporções de tempo e geografia, um grupo de jovens irrequietos a repetir práticas que poderiam
ser vistas como heranças das patrocinadas pelos dadaístas na Europa
e nos EUA, muitas décadas antes, fazendo da Praça da Piedade um
Cabaret Voltaire, em escala tupiniquim, em que alcançaram ocasional
destaque nomes como Geraldo Maia, Douglas Almeida, os saudosos
Antônio Short e Zeca Magalhães, entre outros. O mesmo acontecia
quando, em eventos culturais de universidade ou instituições culturais outras, por vezes, de súbito, membros dessa grei irrompiam nos
salões, a declamar poemas eivados de palavrões e insultos, fazendo
corar circunspectas senhoras em mesas de expositores e estudantes ali
presentes ansiosos por mais conhecer e atualizar-se em conteúdos de
arte ou literatura.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
até que, irritado, o público protestasse. Ao invés de recitar, um
poeta depositava flores aos pés de um manequim de costureira.
Saindo de debaixo de um imenso chapéu cônico, sorrateiramente uma voz declamava poemas de Jean Arp. Com voz cada vez
mais estridente, Huelsenbeck uivava, sugerindo que declamava
poemas de sua autoria, enquanto Tristan Tzara, o líder do movimento, lhe dava suporte, acompanhando-o, no mesmo ritmo
dos uivos, com crescentes golpes num tambor. E as pessoas tinham sido ao local atraídas para assistir a um espetáculo de poesia e música. Os dadaístas davam a esta forma de apresentação
o nome de arte simultaneísta.
Nesse contexto de ressonâncias, muitos movimentos
cujas ações e formas artísticas remetem ao dadaísmo, sempre
julgado morto e sepultado, mas o que se tem definido como arte
contemporânea, dos anos 1970 em diante, ostenta aparências
que denunciam seus rastros. É o que transparece em obras de artistas de vários rótulos e nacionalidades, tais como Joseph Beuys
(1921-1986), Sigmar Polke (1941-2010), Keith Haring (19581990), Jean-Michel Bastiat (1960-1986), Georg Baselitz, A. R.
Penck e Julian Schnabel, mas, em todo esse elenco de criadores,
cabe menção a duas formas de expressão artística que ganharam
significação nesta caudal recente: a intervenção e a instalação. A
primeira está representada nos diversos meios de ocupação de
espaços exteriores, através de interferências na paisagem urbana
ou natural, em dimensão de arte pública, para que sejam vistas
por um grande número de pessoas simultaneamente, experiências artísticas que se multiplicam mundialmente, em lugares e
dimensões nunca concebidos, tornando-se cada vez mais frequentes a partir dos anos 1960, sendo entre elas o grafite, na
forma de desenho ou frase, de conotação jocosa ou obscena, a
expressão que alcançou maior frequência e popularidade.
No entanto, apesar do destaque obtido por artistas como
Bastiat e Haring, por denotarem suas obras claros vínculos
com o grafite, o reconhecimento maior tem se voltado para as
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
intervenções artísticas do escultor búlgaro naturalizado americano Christo Javacheff, conhecido como criador do que se
passou a chamar de “arte da embalagem” (art d´empaquetage),
que consiste em embrulhar objetos com tecidos, no sentido de
elevá-los à categoria de obras de arte. Começou por embrulhar objetos de pequeno porte, até que num crescendo optou
por soluções de efeito majestoso, passando a amarrar grandes
superfícies com tecido grosso e cordas. Há muitos exemplos
dessa sua tendência para o monumental, sendo um de seus
destaques mais saudados o empacotamento que fez da Pont
Neuf, em 1985, no intuito de realçar as formas esculturais
da famosa construção, um dos marcos da paisagem de Paris.
Neste procedimento tachado de Novo Realismo pela crítica,
ganhara repercussão obra anterior de Christo (seu nome-deguerra), quando em 1976 cobriu com pano branco 40 Km de
colinas na Califórnia (Estados Unidos), a que deu o título de
Running Fence (Cerca Corrediça).
Na atualidade, persistem outros artistas também empenhados nessa forma de hiper-realismo rotulado de pop-art, num
cenário em que se destaca o escultor e artista gráfico sueco naturalizado norte-americano Claes Oldemburg, com sua arte inspirada na vida das ruas, que lhe permitiu criar esculturas gigantescas de gêneros alimentícios (Duplo Hambúrger, 1962), como
também executar projetos que resultam em monumentos colossais, como Batons em Piccadilly Circus, Londres, 1966. Em 2014,
em exposições no Rio de Janeiro e em São Paulo, o australiano
Ron Mueck arrastava multidões às suas esculturas cuja dimensão
artística pretendia captar íntimas expressões do rosto humano,
apenas usando como materiais de composição resina, fibras de
vidro, silicone e acrílico.
A segunda forma, a instalação, tem seu fundamento no
próprio dadaísmo, uma vez que fruto da criatividade do multiartista alemão Kurt Schwitters (1887-1948), quando em 1926
lançou a sua Merz Boo (Casa Merz), que se resumia na ousada
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
atitude de transformar em obra de arte todo o apartamento
em que residia em Hannover (Alemanha), tornando assim um
ambiente interno, com atrativos diversos, numa sucessão de
estímulos dirigidos não somente à visão, mas aos outros sentidos (olfato, paladar, tato e audição), de maneira que o público
interagisse com as formas e objetos ali dispostos. Com a novidade, Schwitters simplesmente antecipava a pop-art. O termo
instalação seria incorporado ao vocabulário das artes visuais
durante a década de 1960, com o surgimento e proliferação da
assemblage, termo criado por Jean Dubuffet (1901-1985) para
designar obras de arte elaboradas, sob o signo da espontaneidade, a partir fragmentos de materiais naturais ou fabricados,
passando a ter desde os anos 1970 forte presença em exposições de museus e galerias, ainda que permaneça até hoje a
dificuldade de defini-la como arte.
A instalação ganhou expressão internacional ao ser acolhida e consagrada pela Documenta Kassel, megaexposição iniciada em 1955, cujas edições ocorrem a cada cinco anos na cidade
alemã que lhe dá o nome, fundada no conceito de que a arte
é basicamente uma manifestação da cultura, entrelaçada com
outros tipos de expressão no campo do pensamento, com o
que concorda a conferencista Suely Rolnik, que participou do
evento realizado em 1997, como especialista na obra da brasileira Lygia Clark.
A subjetividade do artista — dizia ela, então — capta as
forças de seu tempo tal como estas afetam seu corpo e é
pressionado pela necessidade de trazer à existência uma
composição singular destas forças que ele cria. Neste sentido a obra de arte ésempre a concretização na existência
de algo que já se produziu na vida sensível de um coletivo,
mas que não tinha ganhado visibilidade até então; sua aparição problematiza o modo de existência vigente e indica
novos caminhos. (Mattos, 1997, p. 184)
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
O dadaísmo era mesmo a negação de tudo, mas não morreu em 1921 ou 1922, como se proclamou e ainda há quem assim
pense e sustente; mas, pelo visto, apenas dormita, aguardando
quem o acorde, ao som de clamorosos tambores acionados por
mentes incompreendidas de braços com a rebeldia. Para tanto,
ainda nos dias de hoje, há como justificar tais estados de ânimo,
recorrendo ao que escreveu sobre Dadá um de seus criadores,
Jean (Hans) Arp, que o alça à condição de bandeira contra a
acomodação:
Os burgueses consideram o dadaísta um monstro dissoluto, um canalha revolucionário, um bárbaro asiático,
conspirando contra suas campainhas, suas contas bancárias, seu código de honra. O dadaísta engendrou armadilhas para tirar o sono dos burgueses... O dadaísta
transmitiu ao burguês sentimentos de confusão e de um
estrondo formidável, se bem que distante, que fez as
campainhas dele zumbirem, seus cofres franzirem a testa
e seu código de honra se reduzir a pontinhos. (Arp, apud
Ades, 1976, p. 3)
Enfim, a plateia gritou, berrou, aplaudiu, vaiou, xingou,
engalfinhou-se, cansou, mas não sumiu. Aceso atleta que, entre claridades e sombras, não abandona o disputado campeonato das artes, como espelho da sucessão no tempo das coisas e
dos atos humanos, Dadá caminha, às vezes com disfarces, para
completar cem anos, na forma de mito, talvez mística. O tempo
e suas distrações colaboraram para que as essências do dadaísmo – a rebeldia e a negação – permanecessem; uma espécie
de aventura humana que não se finda, talvez porque continue
a ser, como certa feita disse metaforicamente Tzara (Conferência
sobre Dadá, 1924), “um micróbio virgem que penetra com a insistência do ar em todos os espaços que a razão não foi capaz de
encher com palavras ou convenções”, ou por ter sido sempre,
na definição de Duchamp (1946), “muito útil como purgante”.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
DADÁ DOS MANIFESTOS
André Gide dizia sobre o dadaísmo: “Dadá é o dilúvio,
após o que tudo recomeça”. Para a sociedade e a cultura, tem
mais a ver com um terremoto, tantos foram os abalos que
produziu, atingindo valores, símbolos e costumes em vários
campos da experiência humana. No plano multifacetado da
cultura, foi o movimento mais radical que se conhece, superando todos os outros que o antecederam − o alemão Sturm und
Drung, o francês mal du siècle, o decadentismo do final do século
XIX e a febre futurista de Filippo Tommaso Marinetti (1909).
Embora se dissesse essencialmente contra o racionalismo burguês, sob o primado da negação e da iconoclastia, Dadá não
se interessou em criar uma estética própria. Surgia no instante
mesmo em que se inaugurava a era dos manifestos, como um
meio de expressão coletiva de ideias e atitudes, no propósito de
renovação da arte e da literatura, prática que merecerá de Jorge
Luis Borges a rubrica ácida de “papéis charlatães”. “Se eram
obra de literatos, lhes comprazia caluniar a rima e justificar a
metáfora; se de pintores, recuperar (ou injuriar) as cores puras;
se de músicos, lisonjear a cacofonia; se de arquitetos, preferir
um sóbrio gasômetro aos excessos da catedral de Milão” – assevera o argentino, ao comentar manifesto lançado por André
Breton e Diego Rivera, em 1937, em defesa da liberdade na
arte, ante as cadeias que lhe impunha o stalinismo, na então
União Soviética. Dadá preferiu os manifestos, lançando sete
ao todo, entre 1916 e 1920, a que se seguiria o do surrealismo,
lançado em 1924. A título de ilustração, segue adiante tradução
do primeiro deles, lançado por Tristan Tzara em 14 de julho de
1916, em Zurique, Suíça, sob o título de “Manifesto do Senhor
Antipirina”, segundo as más-línguas, lido para uma plateia de
cinco pessoas, uma delas jornalista.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
MANIFESTO DO SENHOR ANTIPIRINA
DADÁ é a nossa intensidade: quem levanta as baionetas sem consequência a cabeça sumatral do bebê alemão; DADÁ é a vida sem
pantufas nem paralelos; quem é contra e pela unidade e decididamente
contra o futuro; nós sabemos ajuizadamente que os nossos cérebros
se tornarão macias almofadas, que nosso antidogmatismo é tão exclusivista como o funcionário e que não somos livres e gritamos liberdade; necessidade severa sem disciplina nem moral e escarramos na
humanidade.
DADÁ permanece no quadro europeu das fraquezas, no fundo é
tudo merda, mas nós queremos doravante cagar em cores diferentes
para ornar o jardim zoológico da arte de todas as bandeiras dos
consulados.
Somos diretores de circo e assobiamos nos ventos das feiras, nos conventos, prostituições, teatros, realidades, sentimentos, restaurantes,
ohi, hoho, bang, bang. Nós declaramos que o automóvel é um sentimento que nos acariciou bastante nas lentidões de suas abstrações
como os transatlânticos, os ruídos e as idéias. Entretanto, nós exteriorizamos a facilidade, procuramos a essência central e ficamos
contentes quando a podemos esconder; não queremos contar as janelas
da elite maravilhosa, porque DADÁ não existe para ninguém e
nós queremos que todo mundo compreenda isso. Lá está o balcão de
DADÁ, eu lhes asseguro. De lá se pode ouvir as marchas militares e
descer cortando o ar como um serafim num banho popular para mijar
e compreender a parábola.
DADÁ não é loucura, nem sabedoria, nem ironia, entenda-me, gentil burguês.
A arte era um jogo de avelã, os meninos juntavam as palavras que
têm um toque de sino no fim, depois choravam e gritavam a estrofe, e
lhe metiam as botinas das bonecas e a estrofe se tornou rainha para
morrer um pouco e a rainha se tornou baleia, as crianças corriam até
perder o fôlego.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Depois vieram os grandes embaixadores do sentimento que gritaram
historicamente em coro:
Psicologia Psicologia hihi
Ciência Ciência Ciência
Viva a França
Nós não somos ingênuos
Nós somos sucessivos
Nós somos exclusivos
Nós não somos simples
e nós sabemos bem discutir a inteligência.
Mas nós, DADÁ, nós não somos da opinião de vocês, porque a arte
não é séria, eu lhes asseguro, e se manifestamos o crime para dizer
doutamente ventilador, é para lhes ser agradável, bons auditores, eu
os amo tanto, eu lhes asseguro e os adoro. (Tzara, apud Mendonça
Teles, 1983, p. 135)
DADÁ NA POESIA
Se na arte o ânimo e o espírito dos dadaístas se voltavam “para o absurdo, o primitivo e o elementar” (Ades, 1975, p.
12), num autêntico impulso regenerativo, definidos por marcos
como os ready-mades, de Marcel Dupont, as formas concretas e
abstratas de Jean Arp ou as colagens que Man Ray nomeava de
Revolvingdoors, a que se acrescentavam fotografias do mundo real,
as rayographies, que mais se assemelhavam com radiografias, uma
vez que os artistas não se sentiam “inclinados a alimentar a arte
eternamente com naturezas-mortas, paisagens e nus” (Arp, apud
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Chipp, 1996, p. 394), como era da experiência do passado, na
poesia elegia-se o automatismo no processo de criação, que se
transformava em ação, em gestos, como que vinda das entranhas
do poeta e expressando a própria vida.
A poesia era mais que palavras, rebentando com o eixo de
denotações e conotações, em que se contorciam os seus significados, e assim se coadunava com o caldeirão em que ferviam
as noites Dadá no Cabaret Voltaire. Dessa identidade, dá mostra
Hans Richter (1888-1986), pintor vanguardista e artista gráfico
alemão, escrevendo sobre a primeira dessas agitadas noites ocorrida em 14 de julho de 1916.
Campainhas, tambores, chocalhos, batidas na mesa ou em
caixas vazias animavam as exigências selvagens da nova linguagem, na nova forma, e excitavam, a partir do físico, um
público que inicialmente quedava atordoado atrás dos seus
copos de cerveja. Pouco a pouco eram sacudidos e despertados de seu estado de letargia a tal ponto que irrompiam num
verdadeiro frenesi de participação. Isto era arte, isto era vida,
e era isto o que se queria. (Richter, apud Tolentino)
No momento mesmo em que o irlandês W. B. Yeats
(1865-1939), por influência de Ezra Pound (1885-1972), então
optando por um novo estilo de poesia, segundo Paulo Vizioli,
“fundamentado no ritmo significativo, nas imagens vividas e no
vocabulário simples e direto”, e por certo tempo seu secretário,
entre 1914 e 1916, dava em sua fase madura uma guinada na poesia, encaixando-se nas linhas mestras do modernismo, porém
sem maiores ousadias formais, só conceituais (Pound “ajuda-me
a voltar para o definido e o concreto, desviando-me das abstrações modernas. Discutir um poema com ele é como colocar
uma frase em linguagem corrente. Tudo se torna claro e natural”, confessaria ele em uma carta), e quando o simbolista francês Paul Valéry dava os retoques finais em poemas paradigmáticos, que sairiam em Charmes (1917), sua principal obra poética,
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
entre os quais seu famoso “O cemitério marinho” (Le cemetière
marin), de manifesta opção por um timbre clássico, os poetas
de Dadá seguiam direção totalmente oposta, mais próxima de
Apollinaire, em poemas que marcaram seus livros Alcools (1913)
e Caligrammes (1918).
Como privilegiavam barulho e simultaneidade, incidiam
na construção de poemas que se destacavam pela sonoridade,
centrados em formas abstrato-fonéticas, como os de Hugo Ball,
ou por uma disposição visual, em desenho, caligrafia ou soluções
outras de linguagem, de maneira que se ajustassem a exibições
performáticas. Há dois exemplos singulares disso. Em seu Diário Dadá, Tristan Tzara relata instantes da primeira noite Dadá:
“Diante de uma compacta multidão, Tzara demonstra, nós pedimos, nós pedimos o direito de mijar em cores diferentes”. Logo
descreve um ambiente de berros e engalfinhamentos. ”Luta de
boxe reassumida: dança cubista, figurinos de Janco, cada homem
com seu tambor na cabeça, barulho música negra/tabajá bonú ú
úúúú/5 experimentos literários: Tzara de fraque, em pé, na frente da cortina... explica a nova estética; poema ginástico, concerto
de vogais, poema de ruídos, poema estático, arranjo químico de
ideia, Biribum, biribum... poema vogal a a o, i e o, a i i.” (Tzara, apud
Ades, 1976, p.14-15).
Em outra noite igual, Hugo Ball declamou um de seus
poemas basicamente abstrato-sonoros, intitulado O Gadji Beri
Bimba (leia-se adiante). Foi alçado ao palco metido em um cilindro de papelão azul brilhante, com um comprido chapéu dito de
“doutor-feiticeiro” listado de azul e branco, performance assim
descrita por Dawn Ades:
Quando começou a declamar as sonoridades, a audiência
explodiu em risos, palmas e miados. Ball aguentou firme e,
levantando a voz acima da barulheira, começou a entoar,
adotando a milenar cadência da lamentação sacerdotal: zinzim uralala zinzim uralala zinzim zanzibar zinzala zam. (Ades,
1976, p. 15)
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
POÉTICA DE PROVOCAÇÃO
Abaixo exemplos dessa poética de provocação e zoada,
especialidades de Dadá, no tempo em que, segundo Arp, se procurava “restaurar o equilíbrio entre o Céu e o Inferno”.
Para fazer um poema dadaísta
(Receita de Tristan Tzara)
Pegue um jornal.
Pegue a tesoura.
Escolha no jornal um artigo
do tamanho que você deseja
dar a seu poema.
Recorte o artigo.
Recorte em seguida com atenção
algumas palavras que formam
esse artigo e meta-as num saco.
Agite suavemente.
Tire em seguida cada pedaço um após o outro
na ordem em que elas são tiradas do saco.
Copie conscienciosamente
O poema se parecerá com você.
E ei-lo “um escritor infinitamente
original e de uma sensibilidade charmosa,
ainda incompreendido pelo vulgo”.
(Trad. Gilberto Mendonça Teles)
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Canto-poema (ou Oração fantástica)
Richard Huelsenbeck
Sokobauno sokobauno sokobauno
Schikaneder Schikaneder Schikaneder
As lixeiras estão engordando sokobauno sokobauno
Os mortos saem pelas coroas de tochas ao redor da cabeça (...)
Vejam a osteomalacia sokobauno sokobauno
Vejam a placenta gritando nas redes de borboletas dos colegiais
Sokobauno sokobauno
O padre fecha a bra-aguilha rataplan rataplan a
Bra-aguilha e os pêlos lhe saem pe-pelas orelhas
Do céu ca-ai a catapulta a catapulta e
A avó levanta o seio
Sopramos a farinha da língua e gritamos e sai caminhando
Uma cabeça na cumeeira
Dratcabeçagamemorto ibn ben zakalupp wauwoi zakalupp
Cóccix estalinhos (...)
Cerveja bar obibor
Baumabor botschon ortischell seviglia o ca sa ca sa ca
Ca sa ca ca sa ca ca sa ca ca
Cicuta em pele purpurina intumesce em minhoquinhas e o macaco (...)
Mpala tano mpala tano mpala tano mpala tano ojoho
Mpala tano mpala tano ja tano ja tano ja tano o a bra-aguilha
Mpala zufanga mfischa daboscha karamba juboscha daba eloe.
Fonte: TEATRO SEM CORTINAS.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
FAMOSO POEMA DADAÍSTA DO ALEMÃO
HUGO BALL
Fonte: SWISS INSTITUTE CONTEMPORARY ART, NY
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Gadji beri bimba
Hugo Ball.
Gadji beri bimba glandridi laula lonni dacori
Gadjama gramma berida bimbala glandri galassassa
laulitalomini
Gadji beri bin blassa glassala laula lonni cadorsu
sassala bim
gadjama tuffm i zimzalla binban gkigia wowolimai
bin beri ban
o katalominal rhinozerossola hosamen laulitalomini
hoooo gadjama
rhinozerossola hopsamen
bluku terullala blaulala looooo..
Fonte: Tolentino
REFERÊNCIAS
ACKROYD, Peter. Ezra Pound. Trad. Eduardo Francisco Alves. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1991.
ADES, Dawn. O DADÁ e o surrealismo. Trad. Lélia Coelho Frota. Barcelona: Editorial Labor, 1976.
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revistaflamboyantliteraria.wordpress.com> Acesso em: 12 out.2012.
BILLY, André. Guillaume Apollinaire. Paris: Pierre Seghers. Editeur,
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BARZUN, Jacques. Da alvorada à decadência. A história da cultura ocidental
de 1500 aos nossos dias. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Editora
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
BORGES, Jorge Luis. Un caudaloso manifiesto de Breton, Textos cautivos, 4ª ed., Madri, Alianza Editorial, 2008.
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FERRIER, Jean-Louis. L´aventure de l´art au XXème siècle. Peinture, Sculpture, Architecture. Paris: Chêne/Hachette, 1988.
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Disponível em: <http://www.teatrosemcortinas.ia.unesp.br/Home/
HistoriadoTeatroMundial33/apontamentos-sobre-dadaismo.pdf >
Acesso em: 03 dez. 2014.
TOLENTINO, Cristina. Dada em Zurique. Disponível em: <http://
www.caleidoscopio.art.br/cultural/artes-plasticas/vanguardas-artisticas/dadaismo-zurique.html > Acesso em: 10 nov. 2014.2
Florisvaldo Mattos é poeta, jornalista e ensaísta, bacharel em direito e
mestre em ciências sociais pela Universidade Federal da Bahia. Presidiu
a Fundação Cultural do Estado da Bahia. Foi editor do suplemento A
Tarde Cultural e redator-chefe de A Tarde. Publicou diversos livros, entre eles Estação da prosa & diversos e Poesia reunida e inéditos. Desde 1995
ocupa a Cadeira número 31 da ALB.
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O FUNDADOR ARLINDO FRAGOSO
E SEUS 150 ANOS
Edivaldo M. Boaventura
Ao recordar os 150 anos de Arlindo Fragoso, vivenciemos
a criação da Academia de Letras da Bahia, em 7 de março de
1917, aproximando-nos do seu centenário em 2017.
A pergunta de partida é como compreender Arlindo Fragoso criador da Academia de Letras da Bahia e da Escola Politécnica da Universidade Federal da Bahia?
A vida intelectual baiana de 1900-1930
Ao estudar a vida intelectual baiana, de 1900 a 1930, Antônio Luiz Machado Neto (1972) situa Arlindo Fragoso, na
geração dos nascidos, entre 1863 a 1877. É um trabalho empírico de sociologia do conhecimento muito ao gosto do nosso
brilhante confrade.
São dessa geração: Virgílio de Lemos, Sílvio Boccanera
Júnior, Sílvio Deolindo Fróes, Campos França, Oseas dos Santos, Cardoso de Oliveira, Pinheiro Viegas, Lulu Parola, José
Petitinga, Gonçalo Moniz, Henrique Câncio, Juliano Moreira,
Pirajá da Silva, Eduardo Spínola, Garcez Fróes, Antônio Moniz,
Roberto Correia, Afrânio Peixoto, Pinto de Carvalho, Aurelino
Leal, Carlos Ribeiro, alguns foram fundadores ou pertenceram
ao sodalício.
Entre monógrafos e polígrafos, predominaram os polígrafos, como Almachio Diniz, Afrânio Peixoto e Arlindo
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Fragoso. Monógrafos eram geralmente os médicos, a exemplo
de Alfredo Brito e Oscar Freire, hoje, muito lembrando por
nomear uma movimentada artéria paulistana. Nos anos dez,
a influência maior era da Faculdade de Medicina da Bahia que
atraía nordestinos e também paulistas que passavam a viver
por algum tempo em Salvador.
Arlindo Fragoso, para Machado Neto (1972, p.267), foi,
igualmente, um mecenas intelectual, isto é, “era antes um animador de vocações e aglutinador de talentos, do que, propriamente, um mecenas no sentido clássico do termo”. Caso típico
dessa categoria foram: Carlos Chiacchio, que reuniu em torno
de si jovens talentosos; Pinto de Aguiar, que contribuiu bastante
para o financiamento da revista Arco e Flexa; e Arlindo Fragoso,
intelectual e homem de poder, contribuiu enormemente para a
fundação da Academia de Letras. Para homenageá-lo, por haver
esquecido o seu nome, criou-se a quadragésima primeira cadeira
provisória. Do ponto de vista da comunicação e do público, os
entrevistados enfatizaram a importância das conferências, dos
discursos e dos recitais.
A nossa cultura daquela época era predominantemente oral, oratória e teatral, como Rui Barbosa, símbolo e padrão,
Arlindo Fragoso, Seabra, Pinto de Carvalho, Virgílio de Lemos,
Prado Valadares, Otávio Mangabeira. Finalmente a Academia de
Letras ao lado do Instituto Geográfico e Histórico, é uma instituição da república das letras do período estudado que logrou chegar
aos nossos dias como autêntica expressão da inteligência baiana.
Na Bahia da Belle Époque, fica patente a oratória até nas
aulas como certo maneirismo peculiar da época. Estrutura social
da República das Letras (Sociologia da vida intelectual brasileira — 18701930), de Machado Neto (1972) contribuiu efetivamente para o
conhecimento das lideranças e dos atores que compuseram a
nossa Companhia.
Na trajetória de Arlindo Fragoso, em Salvador e no Rio de
Janeiro, com muitos e diversificados desempenhos, distinguem-se
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
três realizações em plena vigência: o Instituto e a Escola Politécnica da Universidade Federal da Bahia e a Academia de Letras.
Nascimento e formação do fundador
Arlindo Fragoso nasceu em 30 de outubro de 1863, em
Santo Amaro, filho do português Antônio Coelho Fragoso e
Bernadina de Sena e Silva. Fez o curso primário em Lisboa e
no Porto. Retornando a Salvador, cursou o Colégio Alemão e
o Colégio Sete de Setembro, do professor França. Era formado
em engenharia, com experiência efetiva da imprensa, do ensino
e da política quando criou a Academia de Letras, em 1917, com
54 anos, homem maduro e testado nos embates da política.
Desejando estudar engenharia, transferiu-se para o Rio
de Janeiro a fim de cursar de 1881 a 1886 a Escola Politécnica,
onde foi aluno de André Rebouças. Como jornalista, escreveu
para a Gazeta do Povo, do líder abolicionista José do Patrocínio.
É provável que tenha participado do movimento abolicionista.
Frequentou os meios teatrais, artísticos quando conheceu José
Veríssimo, Olavo Bilac. Jovem e rico deveria ter se distraído bastante na Corte.
Uma vez diplomado em engenharia, retornou á sua cidade natal, Santo Amaro. Fez concurso para o Imperial Instituto
Baiano de Agricultura, a Escola Agrícola, vinculado à lavoura da
cana-de-açúcar, na época, funcionava em São Bento das Lages,
em São Francisco do Conde. Apresentou-se para o concurso
da disciplina Mecânica e Construções com a tese: Estudos sobre
análise cinemática (1987), isto é, “parte da Mecânica que estuda
os movimentos sem se referir às forças que os produzem ou às
massas dos corpos em movimento”. É uma das suas primeiras
publicações, segundo a relação anexa ao livro O espírito... dos outros (1917), publicado no mesmo ano em que criou a Academia.
Como professor, residiu em Santo Amaro e envolveu-se
com a política. Elegeu-se vereador e depois foi indicado prefeito
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
(1889-1891) por Manuel Vitorino. Ocupou-se da reforma da Escola Agrícola, publicou trabalhos sobre o ensino agrícola, instrução popular e administração municipal.
Veio, então, para a capital baiana e iniciou a sua carreira política. Serviu como secretário a vários governos estaduais. Com
o governador Rodrigues Lima, ocupou a Secretário da Viação.
Em continuação, serviu a Luiz Viana como secretário particular
e em outros cargos. Foi neste governo que criou uma das mais
importantes instituições para o desenvolvimento tecnológico da
Bahia: o Instituto e a Escola Politécnica da Bahia. Na ascensão
de Severino Vieira ao governo, o seu nome foi rejeitado para deputado federal e demitido das funções estaduais. Voltaria depois
como secretário geral do governo, no primeiro governo de J.J.
Seabra (1912-1916).
A criação do Instituto e da Escola Politécnica
Como homem voltado para a educação, aproveitou as
aberturas da reforma positivista de Benjamin Constant Botelho de Magalhães. Com os colegas Alexandre Bittencourt Maia,
Dionísio Martins e outros, em 1896, resolveram criar o Instituto
Politécnico e em seguida a Escola Politécnica. Os motivos que
o conduziram a fundar o Instituto não são muitos claros. Sabese, todavia, que o processo foi bastante rápido, contando com
o apoio efetivo do governador Luiz Viana, conforme João Augusto Lima Rocha (apud BOAVENTURA, 2009, p.115). Arlindo
Fragoso soube articular bem a sua ideia, observa Arquimedes
Guimarães (1972, p.7), combinando a ação de interessados e o
governo estadual com o propósito de criar, primeiramente, o
Instituto Politécnico e depois a Escola.
No bem lançado estudo sobre Arlindo Fragoso e a fundação do Instituto e da Escola Politécnica da Bahia, o professor
e engenheiro Sérgio Fraga Santos Faria (2004, 37-44) mostra
como ele não somente os criou com um grupo de engenheiros
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
como também lutou pela sua manutenção. A ação teve início
no gabinete de Arlindo Fragoso, então diretor da Secretaria de
Agricultura da Bahia que por sua iniciativa reuniu um expressivo
número de engenheiros, em 12 de julho de 1896. No ano seguinte , em 14 de março de 1897, instalou-se a Escola Politécnica
inclusive com a presença do seu professor Antônio Carneiro da
Cunha, representando a Politécnica do Rio de Janeiro, modelo
de inspiração por Arlindo Fragoso idealizado. Na instalação da
Escola, pronunciou uma veemente oração, intitulada Pela Ciência,
pela Arte, pela Pátria.
A Escola Politécnica da Bahia foi a quinta a ser criada
no país, complementa Sérgio Faria. Em uma crise financeira
muito séria, Arlindo Fragoso, para salvar a escola, chegou a
ministrar várias disciplinas dando aulas durante todos os dias
até o regresso dos professores, fato ocorrido em 1900. Poucos anos depois, em 1904, lutou tenazmente pela manutenção
incondicional da escola. Por aquela época, como bom orador
falou na despedida da esquadra chilena que visitou a Bahia e no
enterro de Manuel Vitorino.
As obras da ação do secretário geral do governo
Alternando ensino com trabalho técnico, foi fiscal municipal junto à Companhia d`Éclairage, que é a origem do seu livro
Minhas opiniões sobre a Éclairage (1906). É desse ano o opúsculo
Água e esgotos da Bahia.
Com José Marcelino no governo, Seabra retornou à Câmara Federal e Arlindo Fragoso foi nomeado para o Conselho
Superior de Ensino da Bahia. Em seguida, foi designado para
representar a Bahia na Exposição Nacional de 1908, comemorativa da abertura dos portos, no Rio de Janeiro, onde passou de
novo a morar.
E, como acrescenta Cláudio Veiga (1997), com as funções administrativas no Rio, retomou o relacionamento com
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
os amigos intelectuais, a exemplo do crítico José Veríssimo e
do poeta Olavo Bilac. Como engenheiro, foi designado consultor das Estradas de Ferro Nordeste do Brasil, Vitória, Diamantina e Goiás. Entretanto, a primeira eleição de J.J. Seabra para
o governo da Bahia (1912-1916) o fez retornar a Salvador.
Até então o governo funcionava com quatro secretarias.
No primeiro governo de J.J. Seabra, essas secretarias foram
reunidas em um só organismo. Seabra ficou com o comando
político e entregou ao seu amigo Arlindo Fragoso a parte administrativa, além da redação das mensagens encaminhadas
ao Legislativo.
Dentre muitas obras, Arlindo Fragoso ocupou-se da abertura das duas grandes avenidas: a Sete de Setembro, do Farol à
Praça Castro Alves, e a Avenida Oceânica até o Rio Vermelho.
Inúmeras construções, como a Biblioteca Pública e o Diário
Oficial, na capital e nos municípios, tudo por ele administrado.
Os artigos de natureza financeira publicados foram enfeixados
em Notas econômicas e financeiras (1916). É tido como o introdutor
do asfalto, na Bahia, assevera Cid Teixeira.
Capacidade fecunda de organizar e de trabalhar deu a vitória a Seabra, que elegeu o seu sucessor Antônio Moniz, sumamente importante para o projeto de criação da Academia.
Todavia, foi polêmica a sua administração, em Salvador, pelas
inúmeras demolições como das igrejas de São Pedro e do Rosário com ameaça ao Mosteiro de São Bento para ser transformado em palácio do governo.
A criação da Academia de Letras da Bahia
Arlindo Fragoso passou apenas os dois primeiros anos do
governo de Antônio Moniz (1917 e 1920), em Salvador. Foi o
momento em que decidiu fundar a Academia de Letras com o
expressivo apoio deste governador. Tomou a data simbólica de
7 de março, recordando a primeira Academia de Letras fundada
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
no Brasil, a Academia Brasílica dos Esquecidos, que surgiu precisamente em 7 de março de 1724, na Bahia.
Além do governador Antônio Moniz, outros intelectuais
de sua geração assinalados por Machade Neto vão lhe auxiliar
na iniciativa. Dentre todos, destaca-se Xavier Marques, naquele
momento, a mais alta expressão de escritor, membro da Academia Brasileira de Letras. Ernesto Carneiro Ribeiro, filólogo
festejado, foi indicado pelo governador para presidente. Além da
oração do fundador, também falaram Xavier Marques, Carneiro
Ribeiro, Afonso de Castro Rebelo e Oliveira Campos.
No discurso oficial, Arlindo Fragoso considerou que não
devia esperar por mais tempo a ausência do sodalício: “Não
fora justo prolongar por mais tempo a falta, entre nós, de tão
útil instituição” (FRAGOSO, 1917, p.64). Relacionou o surgimento das mais famosas academias no mundo. Pondera que
estava criando a Academia de Letras na Bahia vinte anos depois da Academia Brasileira (1897). No final de sua eloquente
oração justificou o lema por ele prescrito: “Servir a pátria honrando as letras”.
Por sua vez, Xavier Marques, no seu pronunciamento,
ressaltou a conservação da língua que recebemos como preciosa
dádiva. A Academia, evitando o espírito de casta “alargou os
seus desígnios até compreender as letras nas suas relações com
a ciência e as artes”. O presidente Ernesto Carneiro Ribeiro referenciou o vocábulo grego Academia, as academias existentes
como a dos Generosos, dos Singulares e a Real Academia de
Ciências de Lisboa e outras.
A instalação solene pelo governador Antônio Moniz, em
10 de abril de 1917, aconteceu na Câmara dos Deputados, na
Ladeira da Praça, onde funcionou no inicio, passando depois
para o prédio da Biblioteca Pública. Abrigou-se no edifício do
Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, donde passou para
um pequeno sobrado entre o Palácio da Aclamação e o viaduto,
esguio prédio que ainda existe. Até que o interventor federal
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Landulfo Alves doou à Academia um prédio no Terreiro de Jesus, em 1941, na presidência do jurista Carlos Ribeiro, como
bem informa Jorge Calmon (1997).
Louva-se a isenção política, religiosa e filosófica de Arlindo Fragoso. Escolheu adversários políticos ferrenhos: Severino
Vieira versus J.J. Seabra. Recorde-se que quando governador Severino rejeitou a indicação de Arlindo para deputado federal e
tirou-lhe todas as posições políticas. A atitude favorável de colocar Ernesto Simões Filho, na Academia, foi outra demonstração
de isenção. Nos primeiros números, o jornal A Tarde criticou o
seu modo boêmio de proceder nas noites alegres.
Seguindo a diretriz da Academia Francesa, praticada pela
Academia Brasileira, a Academia não tem especialidades, além
dos literatos recepcionou personalidades líderes e expoentes.
Generais, cardeais e duques têm assento na Academia Francesa. O ingresso dos romancistas foi muito tardio só começou
pela metade do século XIX. Sempre predominaram os poetas,
pensadores, historiadores, oradores sacros e civis, cultores de
línguas clássicas.
Um terceiro direcionamento que vale ser ressaltado é
atenção aos talentos jovens. Arlindo Fragoso consagrou os
grandes nomes da cultura de sua geração, conforme demonstra Machado Neto, mas abriu o sodalício aos jovens promissores, algumas constatações: Otávio Mangabeira e Simões Filho tinham 31 anos; Carlos Chiacchio, 33; Moniz Sodré, 36;
Bernardino de Souza, 33; Prado Valadares e Oscar Freire, 35;
Clementino Fraga, 37.
Instalada a Academia, o fundador assumiu a Cadeira provisória de número 41. Com o desaparecimento de Severino Vieira, titular da Cadeira 19, patrono o Barão de Cotegipe, Arlindo
Fragoso o sucedeu em 27 de setembro de 1917. No ano seguinte, como primeiro secretário, presidiu a sessão e comunicou a
sua ida para o Rio, pois foi eleito deputado federal para a 10ª legislatura, de 1918 a 1920, e para a 11ª de 1921 a 1923 (CASTRO,
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
1998, p.97). Dessa maneira, Xavier Marques ascendeu à primeira
secretaria. Voltou, assim, a morar na antiga capital de República,
onde faleceu em 5 de janeiro de 1926. Pelo visto, a organização e
instalação da Academia foram a sua última realização. Frequentou-a por um ano, apenas.
Sucederam-lhe na Cadeira de número 19, Deraldo Dias
de Moraes, Guilherme Andrade, Godofredo Rebelo de Figueiredo Filho e Cid Teixeira. Assim que Cid foi escolhido doou
à Academia o busto de Arlindo Fragoso, cópia autêntica do
original que se encontra na Escola Politécnica. A cadeira que
pertenceu a Arlindo Fragoso tem muito pouca de sua vida e
obra. Compensa a contribuição do que consta da revista e as
falas de Jorge Calmon e Cláudio Veiga (1997) quando dos 80
anos do sodalício.
O busto foi posto no jardim das esculturas personalizadas, em 7 de março de 1997, nas comemorações dos 80 anos do
Sodalício (CALMON e VEIGA, 1997). Lastimamos o desaparecimento deste bronze juntamente com o de Pedro Calmon, mas
haveremos de recuperá-los.
As obras da ação e as obras da palavra
O professor, o engenheiro e o administrator se completam com o jornalista. Durante a sua trajetória, Arlindo Fragoso escreveu em vários jornais, tanto no Rio, em Santo Amaro
como em Salvador. Ressalto os artigos publicados no Jornal de
Notícias, periódico dirigido por Lulu Parola, que reunidos formaram o seu livro mais conhecido O espírito... dos outros: crônicas modernas (História, Arte e Crítica), que veio á estampa em
1917, pela Imprensa Oficial da Bahia. Editou-o no mesmo ano
em que fundou a Companhia e o ofereceu a Lulu Parola. Com
prefácio de Xavier Marques, não será somente “uma coleção
curiosa de anedotas históricas, repentes célebres e bons ditos,
[...] O livro será tudo isso, com escolha, com rigorosa escolha,
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
feita por um paladar fino, habituado às delicadezas do sal ático”
(MARQUES, 1917, p.10). O prefácio deveria ter sido do crítico
José Veríssimo, todavia extraviou-se na papelada da Secretaria
Geral do Estado da Bahia.
Relatamos as obras da ação, vejamos as obras da palavra.
Além do valor intrínseco como literatura humorística, O espírito...
traz uma informação preciosa sobre a sua produção intelectual.
Não somente relaciona as obras publicadas como também aquelas previstas a sair e em preparação. Pela subjetividade da informação, presumo que só poderia ter sido prestadas pelo próprio
autor (FRAGOSO, 1917).
Enumeram-se as obras publicadas com as respectivas
datas: Estudos sobre a análise cinemática (1881), tese de concurso
para a Escola Agrícola; Instrução popular — O Instituto Municipal
(1881); Administração municipal de Santo Amaro (1893), recorde-se
que Fragoso foi vereador e prefeito de sua terra natal; Ensino
agrícola – Escola Agrícola da Bahia (1893), ensinou e participou da
reforma do ensino agrícola; Programa dos cursos da Escola Agrícola (1893); O Município de Santo Amaro (1896); Seguro sobre a vida
(1900); Bahia Cabrália (prefácio à obra do Major Salvador Pires)
(1900); Portugal (prefácio a uma apologia do Dr. José Augusto de
Magalhães) (1904); Minhas opiniões sobre a Éclairage (1906); Água
e esgotos da Bahia (1906); Mobílias escolares (parecer aprovado pelo
Conselho Superior do Ensino da Bahia) (1907); Guerra do Paraguai (prefácio à obra de Lemos Brito) (1907); Boletim do Ministério
da Viação (1909); O Museu-Escola, memória apresentada ao 3º Congresso de Instrução reunido na Bahia, e aprovada com louvor (1913); Os
empréstimos do Estado da Bahia (1915); Notas econômicas e financeiras
(1916); Instituto Politécnico (1917).
Contam-se como obras a serem publicadas: Município da
Capital — situação de suas finanças; e Discurso de abertura no Congresso
de Instrução de 1913, na Bahia. Um terceiro e último bloco constituem as obras em preparação de livros contendo publicações
feitas: Discursos na maçonaria (Bahia, Rio e São Paulo); Discursos
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
políticos e acadêmicos; Conferências e estudos; Polêmicas e crônicas; e Coletâneas dos trabalhos de imprensa.
Conjecturo que os períodos morados no Rio de Janeiro,
a convivência com intelectuais e acadêmicos, José Veríssimo e
Olavo Bilac, e com José do Patrocínio, tenham talvez despertado
para a necessidade de criar a Academia de Letras, na Bahia. E
mais, como homem de imprensa, expressou muito do seu humor no jornal. É possível que todas essas atividades tenham influenciado no desejo de dotar a Bahia de uma academia.
O legado de Arlindo Fragoso
Tanto a Escola Politécnica da Universidade Federal da
Bahia, juntamente com o Instituto Politécnico, como a Academia de Letras da Bahia são instituições vigentes, funcionam,
prestam serviços à comunidade e homenageiam o seu criador.
Na Escola Politécnica da UFBA, o seu busto imponente,
do pedestal preside a entrada do auditório. O seu retrato, tela
do conhecido pintor Vieira de Campos, deixa ver os seus traços
fisionômicos: nariz afilado, olhos verdes amendoados, bigode
cheio como se usava, avançadas entradas. Percebe-se ter sido um
homem robusto. A Escola possui galeria de retratos a óleo dos
seus dirigentes.
O professor Arquimedes Guimarães começa a sua história
da Escola Politécnica da Bahia (1972), em 1896: “A 5 de julho, a
convite do engenheiro Arlindo Fragoso, reuniram-se os engenheiros Afonso Glicério da Cunha Maciel et al [...]A Arlindo
caberia traçar o programa do Instituto e o plano de organização
da Escola.” Do mesmo modo, o jovem professor e vocacionado
escritor Sérgio Fraga Santos Faria (2004) procura tratar Arlindo
Fragoso nos principais papeis exercidos: “Arlindo Fragoso foi
sempre um inovador, dotado de grande capacidade empreendedora e de inteligência invulgar”. Sérgio mostrou que Arlindo
Fragoso foi não somente o fundador como também um lutador
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
pela manutenção da Escola, estando à sua frente durante anos.
Diferentemente do Arlindo Fragoso organizador e fundador da
Academia, a sua derradeira obra. Caiuby Alves da Costa (2005),
professor e ex-diretor da Escola, relaciona Arlindo Fragoso na
instalação da Escola Politécnica.
Arlindo Fragoso na memória acadêmica
O presidente Aramis Ribeiro Costa, sempre atento à vida
do nosso sodalício, programou os 150 anos do fundador Arlindo Coelho Fragoso. A missão coube ao talento do nosso confrade Joaci Goes. Força maior chamou-o à Brasília. Atento ao
compromisso solicitou-me substituí-lo. Procurei atendê-lo e à
Academia, como sempre procuro fazer como acadêmico benfeitor. Tenho interesse especial no momento epifânico da criação
do nosso grêmio.
Quanto mais conheço ideograficamente os confrades, o
conjunto das suas obras, a capacidade convivial das suas personalidades e a riqueza diversificada dos seus currículos, mais me
aprofundo na intimidade organizacional da trajetória nomotética desta Companhia (BOAVENTURA, 2012).
Tudo que diga respeito aos primeiros tempos da Academia o número inicial do seu periódico é uma fonte preciosa.
A fundação, a memória histórica de Braz do Amaral, que foi
presidente por 16 anos, o perfil de Arlindo Fragoso por Carlos
Chiacchio, as falas de Carneiro Ribeiro, Xavier Marques e a do
fundador levam-nos ao clima entusiástico e solar de sua criação
em 1917 (ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, 1930).
Um momento importante que reviveu Arlindo Fragoso
foi quando o confrade Cid Teixeira trouxe o busto para a Academia. A imagem do fundador ficou mais próxima. Bem haja meu
caro confrade Cid Teixeira
Reorganizando o espaço da Casa Góes Calmon, em
busca de sua musealização, postei o retrato de Arlindo Fragoso,
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
desenhado por Otávio Torres, na posição central do Salão Dourado. Eis o melhor local para a esfinge do fundador.
Com a instituição da Medalha Arlindo Fragoso Fundador da
Academia de Letras da Bahia (Resolução Nº 1/2009), todos nós,
ao recebê-la, sentimos com emoção, na esfinge do fundador, a
Academia bem mais próxima a nós.1
Edivaldo M. Boaventura é ensaísta, pesquisador, professor emérito da
UFBA, autor de diversos livros de ensaios, participa de inúmeras instituições culturais no Brasil e no exterior. Foi secretário de Educação
do Estado da Bahia em dois governos, diretor-geral do jornal A Tarde e
presidente da Academia de Letras da Bahia, da qual é membro benfeitor.
Desde 1971 ocupa a Cadeira número 39 da ALB.
Texto lido no dia 21 de novembro de 2013, em sessão especial da
Academia de Letras da Bahia em homenagem ao sesquicentenário de
nascimento do fundador Arlindo Coelho Fragoso.
►► 155
O JOGO FANTÁSTICO
DE JÚLIO CORTÁZAR
Cyro de Mattos
J
ulio Cortázar é o escritor mais importante da literatura hispano-americana, o de maior projeção internacional, ao lado
de Jorge Luís Borges. Dono de um texto instigante, que exige
um leitor íntimo das questões estéticas ligadas à vanguarda,
oferece em seus livros de contos e romances múltiplas possibilidades de leitura.
Em O Jogo da amarelinha, livro de ficção que representa
para a literatura hispano-americana o que Ulisses, de Joyce, significa para a britânica e Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa,
para a brasileira, Julio Cortázar inova na técnica de construção
do romance. Com Morelli, personagem desse romance impossível, articulado com várias linguagens, deduzimos uma teoria
romanesca do romance moderno, na qual o escritor argentino
não está interessado na narrativa que vai colocando os personagens na situação, mas na que propõe o inverso e instala a situação
nos personagens. Com o que estes deixam de serem personagens para se
tornarem pessoas. (p. 438)
Com influências de Joyce e Jorge Luís Borges, mas conservando a força do ficcionista de pulso, de imaginação pródiga, Julio Cortázar desarticula a estrutura da narrativa tradicional, estabelecida nos padrões da gramática normativa com uma
pontuação lógica. Usa o monólogo interior, faz a demolição do
tempo-espaço. O tempo agora não tem cronologia sequenciada,
o espaço dispensa o cenário idealizado para corresponder ao
real exterior por onde personagens planos desfilam com traços
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
típicos, atos previsíveis e psicologismo conhecido. Contra uma
ordem fechada, procura a abertura, corta pela raiz toda qualquer
construção sistemática de caracteres e situações. O método empregado com o manejo de ousadias formais é a ironia, a autocrítica, a incongruência, a imaginação a serviço das conjecturas em
sua obsessão para decifrar o absoluto tecido da existência nos
fios sem fim da linguagem.
O livro O jogo da amarelinha apresenta-se com uma divisão
tripartida. Na primeira parte vemos o argentino Oliveira em Paris, à procura de Maga, a mulher amada e desaparecida; na segunda temos Buenos Aires e o reencontro com Talita. A terceira
parte é formada por capítulos sobressalentes, citações e recortes.
A leitura pode ser feita sem essas citações, segundo o autor.
No tabuleiro de direção para a leitura, Cortázar observa
que o primeiro livro deixa-se ler na forma coerente e termina
no capítulo 56. O leitor pode prescindir do que virá depois. O
segundo livro deixa-se ler começando pelo capítulo 71, e continua nos seguintes, depois de acordo a ordem indicada no
final de cada um deles. É oferecida uma lista em caso de confusão ou esquecimento. Para a identificação de cada capítulo,
a numeração é repetida no alto das páginas, correspondentes a
cada um deles.
O caráter autobiográfico do livro é identificável com o
personagem Oliveira, que é um escritor argentino, Através dele
o autor empreende a sua peregrinação interior, na obsessão de
perseguir e questionar a vida como uma substituição constante
de comportamentos. Existe nisso a confluência de momentos
idênticos, que do homo sapiens ao homem evoluído com base
na técnica podem ser associados. A obsessão também consiste
em elevar-se ao plano do absoluto, sem recorrer às categorias
tranquilas, que procedem de sistemas elaborados pelos seres
humanos apoiados nas tessituras lógicas ou da fé, nos quais
são fincados suportes que permitem transmitir a noção de um
éden imaginado, através de ideias, sentimentos e intuições. Em
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
sua visão do mundo e da vida, o livro admite que consiste
tudo em um recomeço no tempo, sem a interferência desse
absoluto. O tempo é um criador de ilusões, entre olhar e ver,
conhecer e entender. O tempo faz com que as ilusões funcionem como armadilhas.
Observemos o esclarecimento neste sentido:
Todavia aquilo tudo, o canto de Bessie, o arrulho de Coleman Hawkins, não seria tudo mera ilusão, ou talvez ainda
pior, a ilusão de outras ilusões, uma corrente vertiginosa
para trás, para um macacão olhando-se na água no primeiro dia do mundo? (p. 45)
Percebemos que o plano desse romance plural decorre
de razões fundamentais, capitais, filosóficas, as quais induziram o autor a edificá-lo sobre a base das partes soltas, tratando o homem como uma fusão de corpo e partes da alma. E,
por conseguinte, dando-se o enfoque da humanidade inteira
como uma mistura de partes. Nessa armação do jogo, as casas justapostas e simultâneas, que não seguem uma ordem sequencial coerente, do inferno ao céu, Cortázar sempre procura
enganar o ondular das vagas que procedem de rios metafísicos.
O enunciado que empreende com admirável habilidade não
se submete às rígidas regras da Arte. A enunciação em várias
passagens da obra mostra a busca para enganar esses rios por
meio do humor, troça e gracejo. Esse recurso transparece na
direção da linguagem quando o narrador usa o h no início de
vocábulos. Com reiteração, faz surtir o efeito desejável por
quem não aceita as concepções dos sistemas prazerosos sobre
o céu, a paz e a harmonia.
Ele também nos diz:
Os rios metafísicos passam por qualquer lugar, não é preciso ir muito longe. (p. 81)
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Referências que podem ser associadas a esses versos de
T. S. Eliot: O rio flui dentro de mim/ o mar nos cerca por todos os lados
(Quatro quartetos, p. 42). Esses rios forçam as constantes conjecturas do argentino Oliveira diante da vida e também por Morelli,
outro personagem convincente do romancista argentino. Como
Cortázar, Oliveira e Morelli são personagens cultos, argumentam com eficiência, conhecem a literatura, a filosofia e outras
linguagens. Dialogam com esses rios, que correm suas águas pelas vagas do desejo, amor, absurdo, insegurança, vida, solidão,
sonho, abismo, leitor, arte, romance, medo, alma, tempo, carência, ação, recordação, realidade, silêncio.
Os labirintos por onde esses rios aprofundam-se emanam
de visões características do autor, vazadas de saber, magia e símbolos, tendendo para a proeminência da presença do humano
com sua problemática dentro e fora da ordem, a qual advém
dos seres e coisas no mundo. Constatamos no romance que o
mundo está cheio de vozes silenciosas e gritantes, podendo ser
entrevistas nas coisas inanimadas triviais. Dentro da linha do
fantástico, a condição humana será precisamente a eterna busca,
e a vida, esse absurdo que precisa ser elucidado. Desse binômio,
que o autor busca desvendar, notamos que as fórmulas pragmáticas, apoiadas no padrão e no tipo do romance antigo, não
poderiam servir para que uma inteligência criativa e transgressora tão poderosa como a de Cortázar formasse a estrutura do
romance. Não esgotariam todas as concepções possíveis de uma
obra aberta, com inúmeras entradas, sem que nenhuma delas
seja a principal.
O texto de O Jogo da amarelinha é absolutamente plural,
um conjunto enorme de significantes. Seu número não é jamais
fechado, tem por medida a eternidade da linguagem, a permanente problemática interior e exterior do indivíduo na ordem
do mundo. Na sua complexa e rica visão do mundo e da vida, o
argentino Cortázar coloca o leitor como um cúmplice da obra,
participando da narrativa complexa que emerge da escrita inco160 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
erente e ligada ao jogo infantil onde às casas do tabuleiro são
abismos, caminhos miseráveis sem saída. O autor de Histórias de
Cronópiose de Famas arma seu jogo intenso de imagens neste romance transgressor para que o leitor reflita a fantasia dos lances
e improvisações, seja protagonista do vaivém ficcional carregado de fissuras existenciais, achados verbais e psicológicos. Dessa
maneira, armado com uma fantástica e curiosa poesia, feita de
ideias, pensamentos, colagens dialéticas, importa a Cortázar tornar o leitor, no jogo da amarelinha transposto para o discurso
literário, um elemento dinâmico e criativo.
Cortázar não é apenas um romancista ensaísta, alimentado
por ideias, concepções filosóficas e literárias, em sua visão fantástica da existência, na qual pulsa a contemplação do homem
diante do real cotidiano. Não é só o escritor ambíguo que constante recorre ao informe, à desordem, ao acaso para extrapolar
conteúdos dialéticos, recortes do homem indefinido ante o absoluto. É também um narrador que comove quando toca nas
emoções do amor e deixa escapar sentimentos que são de todos
nós ante situações adversas, feitas dor e lágrima.
Leia trechos de uma carta ao filho:
Bebé Rocamadour, bebê, bebê. Rocamadour:
Rocamadour, já sei que és como um espelho. Estás dormindo ou olhando os pés. Eu aqui seguro um espelho e
creio que és tu. Mas não acredito nisso, escrevo-te porque não sabes ler. Se soubesses, não te escreveria coisas
importantes. O dia chegará em que terei de escrever para
recomendar que tu te comportes ou que te agasalhes. Parece incrível que alguma vez, Rocamadour. Agora, somente
te escrevo no espelho, de vez em quando tenho de secar
o dedo, porque se molha com as lágrimas. Por que, Rocamadour? Não estou triste, tua mamãe é uma tola, queimei
o borsch que tinha feito para Horácio; sabes muito bem
quem é Horácio, é aquele senhor que, no domingo, levoute um coelhinho de feltro e que se aborrecia muito por
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
tu e eu estávamos falando tanto e ele queria voltar para
Paris; foi então que começaste a chorar e ele te mostrou
como o coelhinho mexia a orelhas; nesse momento, ele
ficou muito bonito, estou falando de Horácio, algum dia
compreenderás, Rocamadour...
***
É assim, Rocamadour: Em Paris somos como cogumelos, crescemos nos corrimões das escadas, em quartos
escuros onde cheira a gordura, onde a gente faz amor o
tempo todo e, depois, frita ovos e põe discos de Vivaldi, acende cigarros e fala como Horácio e Gregorovius e
Wong e eu, Rocamadour, e como Perico, e Ronald e Babs,
todos nós fazemos o amor e fritamos ovos e fumamos,
ah!, nem podes imaginar tudo o que fumamos, o tanto
que fazemos o amor, parados, deitados, de joelhos, com
as mãos, com as bocas, chorando ou cantando, e lá fora
existe de tudo, as janelas dão para o ar e isso começa
com um pardal ou uma goteira, aqui chove muitíssimo,
Rocamadour, muito mais do que no campo, e as coisas
enferrujam, os canos, as patas do pombo, os arames com
que Horácio fabrica esculturas...
***
Horácio tem razão, por vezes não me preocupo contigo e
acho que um dia me agradecerás por isso, quando compreenderes, quando vires que valia a pena que fosse como sou.
Mas choro da mesma forma, Rocamadour, e te escrevo
esta carta porque não sei, porque talvez me engano, porque
talvez seja ruim ou esteja doente ou um pouco idiota, não
muito, um pouco, só a idéia me dá cólicas, tenho os dedos
metidos completamente para dentro, vou estourar os sapatos se não os descalçar já, e eu te amo tanto, Rocamadour,
bebê Rocamadour, dentinho de alho, eu te amo tanto, nariz
de açúcar. Arvorezinha, cavalinho de brinquedo...
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Com justeza na opinião, Bela Josef ressalta que, desde a
primeira obra de Cortázar, sentimo-nos diante de um realismo que desconhece a realidade, pois está embebido numa atmosfera alucinante, cheia
de magia, que se move em vários planos — consciente, poético, fantástico,
inconsciente, humorístico. (História da Literatura Hispano-Americana, p.
280). E o que acontece é que seu discurso permanece com elementos que convivem com o homem, na realidade cotidiana, na
eterna contradição entre a razão e a crise, a lógica e o absurdo, o
real e o imaginário. A prosa fica impregnada de jogos dialéticos
do cotidiano que cada um pode conjeturar e contemplar. A reação dos personagens ante os fatos formam os jogos dialéticos
do cotidiano, resultando do que há de recorrente na problemática do homem e sua circunstância.
Diferente do que ocorreu com o romance regionalista latino-americano, no qual se objetiva com veemência a humanização
de grandes presenças telúricas, a selva, o lhano, a zona andina e, no
Brasil, as terras nordestinas da cana do açúcar, das secas no agreste, da civilização do cacau no sul da Bahia, o romance contemporâneo tenta suplantar a visão esquemática do naturalismo, da
narrativa linear que relata o drama no plano exterior das relações e
situações episódicas. Como em Joyce, Faulkner e Saramago, Cortázar procura mergulhar-nos no mundo em processo e, por meio
de um pensamento fantástico, prefere que a imagem do homem,
decorrente de escavações metafísicas, substitua a geografia, o protesto e a denúncia. Dialogue com o mundo com desconcertante
riqueza criativa, espantosa poesia e humor raro da vida cotidiana.
REFERÊNCIAS
CORTÁZAR, Julio. O jogo da amarelinha, Editora Civilização brasileira, Rio de Janeiro, 1982.
JOSEF, Bela. História da literatura hispano-americana, Editora Vozes, Petrópolis, RJ, 1971.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Eliot. T.S. Quatro quartetos, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1967.1
Cyro de Mattos é contista, novelista, romancista, cronista, poeta e autor de livros para crianças e jovens. Autor de 50 livros. Tem livros
pessoais publicados em Portugal, Itália, França e Alemanha. Prêmios
importantes, como o Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras
e o Internacional de Literatura Maestrale Marengo d’Oro, em Gênova, Itália, segundo lugar, duas vezes. É membro efetivo do Pen Clube
do Brasil. Pertence ao Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e é
membro correspondente da ALB.
164 ◄◄
BREVE REFLEXÃO SOBRE A
IRONIA TRÁGICA EM UM DRAMA
SHAKESPEAREANO
Ordep Serra
G
randes dramas são marcados pelo tema da inspiração profética. Neles, porém, o inspirado nem sempre sabe que
está profetizando, ou entende o que profetiza. Muitas vezes só
descobre a posteriori o sentido de seu prenúncio. Pode dar-se que
nunca o perceba, nunca o compreenda. Esta vem a ser uma das
formas mais sutis e atordoantes da ironia trágica.
É certo que a ironia trágica tampouco poupa os iluminados.
Não raro, ela afeta de modo doloroso os vates lúcidos. A visão
aguda do profeta com muita frequência se tinge de assombro. A
tragédia indica: a rigor, o clarividente sofre de lucidez. Exemplo
máximo é Cassandra. Em toda a história do teatro, poucos lances dramáticos alcançaram a pungência da cena em que Ésquilo,
no Agamênon, representou sua última previsão. O relato da profetiza a caminho do sacrifício torna evidente que a ironia fatal a
acompanhou por toda a vida, fazendo-a sempre verídica e sempre
desacreditada. A única exceção, segundo Ésquilo, teve lugar justamente na hora em que ela anunciou sua própria morte.
Outro grande momento trágico da dramaturgia antiga revela, a um tempo, o engano e a desilusão de um vidente: Sófocles, no Rei Édipo, faz Tirésias lamentar-se do desconcerto com
que o aflige sua ciência.
Mas deixo para outro momento os profetas lúcidos. Vou
abordar neste artigo a profecia “turva” que marca um grande
drama shakespeareano.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
…
Assim como deus, Shakespeare profetiza através de bêbados e loucos, ou atéde homens adormecidos. Éo que acontece,
por exemplo, no Segundo Ato do Macbeth, no terrível momento em que um pagem da vítima régia — prestes, também, a ser
assassinado — clama em sonhos “Murder!” Com esse grito e
com a risada simultânea do companheiro que dorme no mesmo
aposento, ambos despertam. Em seguida eles rezam, encomendando-se a Deus. Mas feito isso voltam ao sono que vai deixá
-los inermes, incapazes de impedir o crime.
O público não vê esta cena. Toma ciência da previsão inconsciente através do relato que o herói criminoso faz a sua mulher. Ao ouvir a entrecortada narrativa do marido, ela também
produz um agouro: sem que o advirta, Lady Macbeth antevê seu
próprio destino, prediz a loucura que a tomará. É quando o cônjuge manifesta seu assombro com o próprio crime e se mostra
perplexo com a inibição que lhe tolheu uma palavra decisiva. Ela
então o aconselha:
These deeds must not be thought
After these ways; so, it will make us mad.
O espectador não deixará de notar que no desenvolvimento do drama o desvario do casal se verifica, tal como ela
predissera. Mais ainda: o pensamento que a terrível dama então
aconselha o marido a evitar há de tornar-se sua obsessão. Dá-se
mesmo uma espécie de espelhamento. Vejamos:
No início da mesma cena (a segunda do Segundo Ato)
Macbeth olha para suas mãos ensanguentadas e comenta que
éum triste espetáculo. A esposa logo lhe retruca que esse dito
reflete um pensar insensato. Sua fala tem um sibilo sinistro:
A foolish thought to say a sorry sight.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Pouco adiante, o assassino se pergunta se o oceano poderia limpar-lhe as mãos e duvida, alucinado. Fantasia o contrário:
imagina que o mar ficaria sujo, mudando a cor de suas águas de
verde para vermelho. Isso ele diz justamente quando a esposa
cúmplice volve da cena do crime, com as mãos sujas do mesmo sangue, tendo com ele tingido as faces dos lacaios, a fim de
atribuir-lhes a culpa do regicídio. Lady Macbeth reage, então,
à mórbida fantasia do marido dizendo que um pouco d’água
os lavará dessa ação. O espectador há de lembrar-se desta cena
quando a vir delirando, no Quinto Ato, a dizer que nem todos os
perfumes da Arábia purificariam sua mão pequenina.
Mas voltemos ao Segundo Ato e sua Cena II. O relato
que Macbeth então faz a sua esposa merece exame. Ele fala dos
embriagados pagens de Duncan; reporta a súbita perturbação
do sono de uma pobre dupla no momento em que ele se aproximava para consumar o crime:
There is one that did laugh in dream and one cried ‘Murder!’
That they did wake each other: I stood and heard them:
But they did say their prayers, and addressed
Again to sleep.
A palavra agourenta, a sugerir antevisão do perigo mortal,
é antecedida por uma risada. A disparidade dessa inconsciente troca comunicativa tem caráter ominoso. Na circunstância,
o riso ressoa de modo loucamente irônico para quem evoca a
cena e conhece seu desenlace. Conota ilusão. Contrasta com o
enunciado profético que se segue. A sequência díspar nos choca:
assim o sonho engana e adverte, ao mesmo tempo. A involuntária comunicação que desperta os dois pajens é desconforme. Representa, por assim dizer, uma caricatura de diálogo, uma falsa
interlocução marcada por desencontro, por um contraste brutal
que lhe incorpora o nonsense.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Vejamos: houve e não houve comunicação. Diretamente, sonhos não são compartilhados por ninguém. Um sonho só
pode ser comunicado a outra pessoa quando o sonhador desperta e se dispõe a relatá-lo. Na cena em foco, dois homens adormecidos acordam um ao outro com sons nascidos, simultaneamente, de seus respectivos sonhos. O efeito dessa coincidência
pudera ser oportuno e afortunado para eles, pois suas vozes os
alertam, mas esse “alarme” acaba frustrado, já que ambos tornam a dormir. No momento do sobressalto, sua “comunicação”
tem a marca do inaudito: é certo que eles se ouvem, porém não
entendem o que ouviram; não referem o motivo da brusca reação, não relatam os sonhos que os levaram a manifestar-se de
forma inconsciente. Estes possíveis relatos, quiçá reveladores,
permanecem inauditos. Resulta ineficaz o pressentimento que
seus enredos teriam embutido, levando-os ao sobressalto recíproco. A ocorrência não impede o regicídio, nem evita a morte
que o assassino lhes dará, depois de imputar-lhes a culpa do
crime hediondo.
Por outro lado, o poeta sugere que os pobres lacaios salvaram suas almas: logo depois de se despertarem um ao outro
de forma involuntária, ambos se uniram na oração. No primeiro
momento, seu mútuo alarme nada teve de interlocução; em seguida, porém, houve colóquio: a fórmula da prece envolvia um
diálogo de verdade. Um disse a jaculatória (“God bless us!”) e o
outro respondeu da forma adequada (“Amen!”).
Uma testemunha inadvertida os ouviu, mas não comungou de sua reza: Macbeth conta que não conseguiu dizer “Amen!”
quando escutou a súplica devota. Foi incapaz de pronunciar essa
palavra (ou seja, de juntar-se à prece), embora muito necessitasse
de socorro divino, segundo ele mesmo declara:
I had most need of blessing, and ‘Amen’
stuck in my throat.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Ao narrá-lo, o desgraçado leu no silêncio dos próprios lábios sua condenação. Pouco depois, ele escutou de não sabe que
voz a denúncia do seu crime em linguagem de castigo:
Methought I heard a voice cry ‘Sleep no more! Macbeth does
murder sleep!’
Mais adiante ele repete essa acusação da estranha voz, que
então o designa por seus nobres títulos (Glamis, Cawdor), sempre a dizer que ele destruiu o próprio sossego, matou o sono.
Nessa altura, Macbeth comporta-se como um ator que perdeu
uma “deixa” decisiva e em lugar da frase silenciada ouviu uma
sentença inapelável. A resposta inibida lhe permitiria escapar;
sua falta o prende ao enredo funesto. A voz travada na garganta
ele reconhece como sua e percebe que inexistiu, embora o surpreenda não a ter pronunciado, não a ter ouvido de sua própria
boca. Já a voz inesperada, que ignora donde vem, ele escuta nitidamente, com igual surpresa:
Methought I heard…
Ou seja, ele pensa que ouve. Ilusão? O certo é que em seu
pensamento Macbeth efetivamente escuta o amargo clamor. Pois
escutar é ser tocado na atenção por um som significativo, real
ou imaginário. Assim o compositor escuta a música que ainda
não escreveu e o poeta escuta o verso que ainda não disse, nem
se acha escrito; ausculta sua possibilidade e ipso facto a realiza.
Quem assim imagina que ouve exercita um modo decisivo de
ouvir. Por certo, ao imaginá-lo pode-se estar delirando. Mas o
delírio nem sempre é inócuo. As fantasias de Macbeth têm uma
terrível realidade.
A cena evocada transcorre entre a noite e o dia, depois de
consumado o assassinato do rei. Nela dramatiza-se uma situação
onírica vivida por Macbeth em tenso estado de vigília. É comum
►► 169
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
em pesadelos que o adormecido queira falar, ou mover-se, mas
não o consiga; por outro lado, nos sonhos o sujeito “não sabe
de onde vêm” frases e atos que lhe ocorrem no íntimo, quando
ele está fechado à interação com os semelhantes. Assim é que
em sua intimidade coisas lhe sucedem e ditos lhe soam como se
viessem de fora, de outras pessoas. Tanto é que o surpreendem.
Usando esses critérios, temos de concluir que a cena vivida por Macbeth tem forma de sonho. Mas ele sabe muito bem
que não está sonhando. Em sua mente unem-se de modo enigmático signos opostos: de um lado, o responso tácito — que
ele de si mesmo esperou, mas em vão — e de outro a sentença
inesperada, fruto de uma voz de ninguém, que todavia ele ouviu.
Estes quasi-enunciados liminais se combinam, “se respondem”
de modo tal que a fala de Macbeth inconscientemente os associa: ao evocá-los em sequência, ele mostra a obscura percepção
de que os dois se interligam e o envolvem de um modo enigmático na sua cadeia, invertendo a bênção em maldição.
O clamor de incerta origem ecoa o silêncio da fala sufocada: contradiz o inaudito, e assim dá lugar ao interdito (Sleep no
more!). Cabe falar aqui de signos liminais, pois eles só ganham existência concreta no momento de sua evocação, ou seja, justamente
quando se constatam as ausências que os configuram. No primeiro caso, isto é, no que toca ao primeiro dos dois sinais fantásticos
assim evocados, trata-se, a rigor, de um não enunciado, isto é, de
um enunciado que não chega a existir enquanto tal: o voto tácito
do Amen. Identifica-se a sua fonte apenas possível, reconhece-se
a voz que o poderia formular, mas ela de fato não o emite, não o
formula. No segundo momento, o sujeito “ouve” (escuta e entende) uma “voz” cuja fonte não é capaz de identificar nem propriamente localiza, pois ela ressoa por todo o entorno, sem que soe
para os demais: parece irromper de forma ubíqua, difundir-se no
mudo castelo. É, pois, uma voz percebida como alheia, estranha,
mas de fato inaudível para os outros, manifesta apenas para o indivíduo a quem ela se dirige: tem feição onírica.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Em ambas as falas “virtuais”, a rigor inauditas (a que Macbeth não pronuncia e a de um outro sem presença, que só ele
escuta e presume), o significado se impõe, mas o significante se esquiva. Esses indícios só ganham existência concreta — só se constituem efetivamente em signos — no momento da evocação, ou
seja, no relato de Macbeth, que constata os vazios simétricos da
fala inarticulada e da voz incorpórea: em tom de confissão, o discurso angustiado verifica-lhes a eficácia significativa e assim lhes
dá forma a posteriori. A ligação que reúne as duas “inexpressões”
(os dois fantasmas verbais) permanece oculta, mas ainda assim é
cogente: marca uma sutil gradação no plano do significado, pois
os signos associados de forma velada conotam, respectivamente,
uma contraditória rejeição — a um tempo deliberada e involuntária — do apelo salvador (ou seja, do Amen impronunciado) e uma
inapelável condenação (pela voz de fonte incerta, mas ubíqua).
O oculto sintagma que liga esses semas vazios configura
um campo enigmático. Subjaz à simetria do seu confronto díspar
outra correspondência, por sinal um paralelo que também se desfecha numa inversão: as vítimas adormecidas de Macbeth nunca
mais poderão despertar; o criminoso não poderá nunca mais dormir. É o tempo marcado pela alternância de sono e vigília que se
desarticula. Macbeth se percebe, então, esmagado pela eternidade.
Recorde-se: a voz “estranha” ecoa por toda a casa. Ouvido apenas por Macbeth, seu clamor difuso proíbe-lhe o sono.
Mas que significa essa proibição? Podemos imaginar o criminoso impedido de dormir pelo resto da vida, porém a verdade é
que uma coisa ainda mais grave lhe foi anunciada: ao ouvir a tremenda voz, a um tempo clamorosa e silente, Macbeth se torna
prisioneiro de um pesadelo do qual nunca poderá acordar, pois
o vive desperto. A apreensão há de preencher todos os seus
dias até levá-lo, através de novos enganos, ao desengano final.
Concluindo, passo agora a outro lance da mesma peça trágica. Ela me sugere um paralelo. Cá está: embora menos claramente que no Hamlet, também no drama de Macbeth há teatro
►► 171
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
no teatro. Não ocorre a montagem de uma peça no transcurso
da intriga, mas efetua-se uma cogente representação: elaborase um jogo dramático em que, sem qualquer mudança física, o
cenário se altera, se duplica. Recorde-se a Cena III do Segundo
Ato dessa tragédia, quando o porteiro finge que é porteiro…do
inferno. Ele está bêbado e age como um clown, mas sua encenação se revela terrivelmente profética: enlaça passado e futuro no
seio do sinistro castelo, em cuja imagem cenográfica o espectador é levado a ver, no mesmo relance, a figura sombria da fortaleza de Dunsinane e a imagem tremenda do inferno. O porteiro
fatídico éum personagem que seu discurso transforma em ator,
assim como o discurso do ator que o encarna o transforma em
personagem. Nessa representação ele profetiza sem saber.1
Ordep Serra é antropólogo, pesquisador, professor, escritor e tradutor,
graduado em letras e mestre em antropologia social pela Universidade
de Brasília, doutor em antropologia pela Universidade de São Paulo.
Estuda teoria antropológica, etnobotânica, antropologia da religião e
antropologia das sociedades clássicas. Publica obras de ficção, pelo
que tem obtido premiações nacionais. Desde 2014 ocupa a Cadeira
número 27 da ALB.
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SOBRE UM AMOR DE FLOR BELA
Manuel de Carvalho Cabral
1. Proêmio
P
edem-me para dar corpo a uma história da qual conheço
apenas umas pontas soltas. História de ouvir dizer. Ouvida
de boca em boca, mas, também, lida em muitos sítios. Cheia
de mistérios e de algumas falsidades. Contada a partir de fatos
reais, mas composta de alfinetadas por parte de quem não conheceu os protagonistas e se permitiu acrescentar um ponto. À luz
da sua imaginação sombria. As dezenas de notas biográficas de
Florbela Espanca que tive oportunidade de ler, muitas alcandoradas a teses acadêmicas para obtenção de grau, limitam-se a
copiar. E “opiniões” copiadas não se convertem em verdades.
Mas chega a parecer.
Pedem-me para dar corpo à história de um encontro entre
dois corpos, entre duas almas, entre dois artistas que tiveram
uma aproximação fugaz e fulgurante, e que certamente viveram
uma intensa história de amor, mas tão escondida que dela não há
registo autêntico conhecido.
Pedem-me para dar corpo a uma história cujo fim poderia ter sido trágico — ingrediente que, associado ao amor e ao
mistério, lhe confere uma redobrada e um pouco mórbida dose
de curiosidade. Não tendo tido o fim que poderia ter tido, significou apenas o prenúncio da tragédia que ocorreu cerca de dois
anos depois.
Pedem-me para dar corpo a uma história privada que
mereceu vasta publicidade, por ter tido como personagem
►► 173
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
(principal?) uma das mais notáveis poetisas/poetas da língua
portuguesa do século XX.
Pedem-me e eu faço. Pelo menos desta vez. Conto esta história com os dados que tenho e como a vejo, depois de muito ler
e de muito ouvir sobre os seus dois protagonistas improváveis.
O propósito deste texto não é biográfico. Apesar de partir
de dados biográficos e de alguma análise crítica da obra poética
e epistolográfica de Florbela Espanca, o texto não tem a preocupação do rigor factual. Parto de dados que constam de textos
biográficos sobre Florbela e Luiz Maria Cabral e de entrevistas
que ainda pude fazer a pessoas que conheceram este último. A
inexistência de outros dados impede maior desenvolvimento.
Porventura existirão por aí algumas cartas de Florbela (sim, ela
que tantas cartas escreveu, apaixonadas umas, de carácter autobiográfico outras, da parte de quem tinha a certeza de que ficaria
para a história e queria deixar devidamente registada a sua curta
passagem por este mundo) que algum dia possam trazer alguma
luz a este sombreado?
2. Flor Bela.
Florbela Espanca nasceu em Vila Viçosa, não longe do
Paço Ducal que a Corte frequentava. Seu pai, João Maria Espanca, nascido em 1866 em Estremoz, começou por ser sapateiro,
profissão que herdou do pai dele, mas cedo demonstrou outras
capacidadese interesses artísticos, comerciais e boémios. Pintava
e desenhava, comerciou antigualhas, foi fotógrafo e bem cedo se
interessou pela novidade que o animatógrafo representava, tendo sido um dos introdutores do vitascópio de Edison em Portugal,
fazendo muitas tournées para rentabilizar o seu investimento. Foi
um homem aventureiro, com todos os ingredientes para fazer
grande sucesso junto do gênero feminino.
João Maria Espanca casou a 31 de março de 1887 na Igreja de S. Bartolomeu, em Vila Viçosa, com Mariana do Carmo
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Toscano, conhecida como a inglesa, que veio a saber que era estéril. Convence-a de que deveriam ter filhos dele com outra mulher, pelo que da sua relação com Antônia da Conceição Lobo,
que veio a viver na mesma casa, viria a nascer Florbela (Flor Bela
d’Alma da Conceição Espanca) a 8 de dezembro de 1894 e, depois, Apeles Demóstenes a 10 de Março de 1897. Florbela nasce
em casa do pai mas é registada como filha de pai incógnito, tendo como madrinha a mulher de seu pai, a Inglesa, que cria os dois
irmãos como se filhos seus fossem. A mãe biológica de Florbela
morre em 1908, com apenas 29 anos, de neurose.
Em 1911, com 16 anos, Florbela conhece a relação que o
pai tem com uma empregada da casa, Henriqueta das Dores Almeida, com a qual viria a casar em 4 de julho de 1922, depois de se
divorciar de Mariana Toscano, em 9 de novembro do ano anterior.
Florbela e seu irmão Apeles tiveram uma boa educação. O
pai não poupava nos livros e nas aulas de pintura, de bordado e
de canto. «Tive os melhores professores de tudo na capital do Alentejo (que
se são os melhores não são bons), de bordados, de pintura, de canto, e afinal
sou uma eterna curiosa de livros e alfarrábios e mais nada»1. Foi aluna
do liceu André de Gouveia e sabe-se que era frequentadora da
Biblioteca Pública de Évora. Mais tarde chega a frequentar o
terceiro ano da Faculdade de Direito de Lisboa.
Em 1912 fica noiva de Alberto de Jesus da Silva Moutinho, que conhecia pelo menos desde a escola primária, onde
tinham sido colegas. Contudo, no verão de 1912 vai para a praia
da Figueira da Foz, para casa de seu padrinho Daniel da Silva Barroso, iniciando uma forte relação sentimental com um tal
“José” (certamente João Martins da Silva Marques), que alguns autores apontam como tendo sido o grande amor da sua juventude,
Todas as citações de textos de Florbela vão em itálico e são retirados
das obras de Rui Guedes, «Acerca de Florbela», Ed. D. Quixote, Lisboa 1986 e de José Carlos Fernández, «Florbela Espanca — a vida e a
alma de uma poetisa», Ed. Nova Acrópole, 2012.
1
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
de cuja relação há alguma troca de correspondência. Mais tarde,
ao referir-se a esta situação, disse: «fizeram-se ruínas todas as minhas
ilusões (…)». Termina esta relação por pressão da família dele e reata o noivado com Alberto Moutinho, com quem casa civilmente
em 8 de dezembro de 1913, depois de ter sido emancipada dias
antes, em 28 de novembro.
Seria este seu primeiro marido um homem mais apaixonado ou mais passivo? Quais seriam os seus verdadeiros motivos? Se deles tivéssemos uma ideia, poderíamos imaginar o que
terá sido este primeiro casamento de Florbela — que foi breve
e ficou envolto numa aura de mistério, tal como os seus outros
dois casamentos.
Desde os 8 anos que Florbela escreve versos. Em janeiro
de 1916 começa a publicar poemas na revista Modas e Bordados,
da qual era diretora Júlia Alves, com quem inicia entretanto uma
troca intensa de cartas, que demonstram que vieram a tornar-se
amigas com um elevadíssimo grau de intimidade, apesar de nunca
se terem encontrado. Talvez o fato de não se conhecerem pessoalmente ajudasse a uma maior abertura sobre os sentimentos
e os anseios mais profundos de Florbela. É com Júlia Alves que
abre a sua alma. Fala-lhe sobre o seu caráter: «sou triste, imensamente triste, duma tristeza amarga e doentia que a mim própria me faz rir às
vezes»; «poderei ser tudo, mas tola, parece-me que não…» diz, depois de
ter citado Goethe: «só os tolos são modestos». Fala-lhe sobre as
suas características físicas e psicológicas: «digo-lhe já como são os meus
cabelos e os meus olhos: os cabelos são negros, mas ainda assim nem tanto como
a minha alma, pelo menos com o vestido que traz hoje; e os olhos são pardos,
sombrios, profundos e maus. Sou pálida, alta e delgada». Fala-lhe sobre a
sua relação com os outros: «Tenho dias em que todas as pessoas me dão
a impressão de pequeninas figuras de papel sem expressão, sem vida».
Publica o seu primeiro livro, o Livro de máguas, em 1919.
Confia na excelência da sua poesia: «(…) há de tudo isso nos meus
livros (…) Música e canto, bordados e rendas… Que delícia e finura em
certos versos… que encanto e que magia em certas frases!...», não obstante
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
a sua permanente atitude dicotômica: «São lá versos aquilo que nós
escrevemos?».
A relação de Florbela com Alberto Moutinho depressa se
degrada. Depois de um aborto involuntário em março de 1918,
separa-se dele, sendo o divórcio decretado em 30 de abril de 1921,
depois de um processo que é da iniciativa de Florbela. Poderá ter
tido, entretanto, uma relação com Antônio d’Esaguy2. Em 29 de
junho do mesmo ano casa na 2ª Conservatória do Registo Civil do
Porto com Antônio José Marques Guimarães, alferes de infantaria
da Guarda Republicana, então com 26 anos, que conhecera em
janeiro de 1920 no casamento de um familiar.
O que teria sido a vida de Florbela nestes «loucos anos
20» (Natália Correia) sem a lei do divórcio que foi aprovada
menos de um mês depois de implantada a primeira República
em Portugal3? Tanto Florbela como o seu pai, não obstante
demonstrarem ter pouco apego às convenções sociais da época, foram claros beneficiários desta lei para tentarem dar um
pouco mais de estabilidade às suas vidas. Sobretudo Florbela,
por ser mulher, mostrou sempre uma enorme coragem e um
sentido de liberdade e de desapego perante todo o tipo de convenções. Desapego e até confronto. Estaria ela convencida que
essa sua forma de estar conferiria um reconhecimento acrescido à sua obra, senão em vida, depois da sua morte? Não seria
isso mesmo que Florbela procurava ao registar tantos detalhes
em muitas das suas cartas que apresentam um evidente caráter
biográfico (já em 1916 pede a Júlia Alves: «Vou terminá-la (a
carta) pedindo-te que a guardes, como a todas as minhas cartas, para
serem publicadas depois da minha morte como produções ilustres do maior
talento dos tempos modernos»)?
Ver nota (28).
O divórcio foi legalizado através do decreto de 3 de Novembro de
1910. A Concordata celebrada entre Portugal e a Santa Sé em 1940
retira o direito ao divórcio aos casados pela Igreja.
2
3
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Mesmo assim, tem consciência da sua situação, pelo que
sente necessidade de dizer ao seu futuro marido, Antônio Guimarães, logo em março de 1920 «Não me perdoam a superioridade
do meu carácter e da minh’alma; não me perdoam o ter-te prendido, a ti
que nenhuma tinha prendido ainda», acrescentando: «Sou digna de ti,
sou digna do teu amor, sou digna como nenhuma de ser companheira fiel e
dedicada até à morte (…). Quero, até ao fim, ser para ti a pequenina fonte
límpida onde te podes debruçar sem medo».
Por esta altura, podemos aperceber-nos que Florbela está,
de fato, apaixonada pelo seu futuro marido. No entanto, nas
confissões e desabafos que lhe faz, mesmo naqueles em que lhe
demonstra o seu amor, Florbela mostra bem como é volúvel o
seu caráter: «É espantoso como eu me prendi assim a ti, eu que imaginava
ter morrido, incapaz de sentir por alguém o mais pequenino interesse bem
vindo do coração. Tenho em toda a minha vida sido galanteada por muita
gente, muitos homens me têm feito a corte e tenho tido um convívio enorme
com rapazes; tenho conhecido homens inteligentíssimos, meus amigos sinceramente, homens de valor, homens de talento, homens duma lealdade a
toda a prova, e nunca senti ao pé de nenhum a impressão de segurança, de
bem estar que sinto ao pé de ti». Ou quando diz: «Tu és simplesmente,
lealmente um homem, e, eu… eu sou uma mulher, e uma criança, e uma
artista que se julga alguém. Vê, meu amor, que complicação! No entanto,
ama-se quem se ama e não quem se quer amar». Ou ainda: «Julguei gostar
dum homem em toda a minha vida e afinal nem desse gostei porque o esqueci
em menos tempo do que uma criança leva a esquecer uma boneca partida.
De ti gosto muito e porque vejo em ti aquilo que nunca encontrei: a máxima
lealdade com a máxima ternura, feita de verdadeiro interesse pela minha
felicidade, tanto como pela tua. Impossível pedir mais a um homem que é o
animal mais egoísta que pisa a terra!»
Ainda antes do casamento, Florbela e Antônio vivem
apaixonados, entre Sintra e Lisboa, nos intervalos das muitas e,
por vezes, inesperadas obrigações oficiais de Antônio, no decurso desses atribulados tempos da Primeira República. Já por essa
altura Florbela tem perfeita consciência da sua Inconstância (que
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
é exatamente o título definitivo deste soneto que inicialmente se
intitulou“Vida”):
Procurei o amor que me mentiu.
Pedi à Vida mais do que ela dava.
Eterna sonhadora edificava
Meu castelo de luz que me caiu!
Tanto clarão nas trevas refulgiu,
E tanto beijo a boca me queimava!
E era o sol que os longes deslumbrava
Igual a tanto sol que me fugiu!
Passei a vida a amar e a esquecer…
Um sol a apagar-se e outro a acender
Nas brumas dos atalhos por onde ando…
E este amor que assim me vai fugindo
É igual a outro amor que vai surgindo,
Que há-de partir também… nem eu sei quando…
Antônio Guimarães é colocado no Castelo da Foz do
Douro, no Porto, onde poderia instalar-se com sua família. Contudo, o fato de ainda não serem casados, obriga-os a encontrar
uma outra casa. Só depois do casamento vão viver para o Castelo da Foz, onde Florbela terá tido algum tempo (pouco, sempre
pouco, muito pouco tempo) de vida sossegada, num registo burguês. Nesse período, desenrola-se um episódio que interessa sobremaneira a estas nossas resumidíssimas notas biográficas: em
fevereiro de 1921 dá-se um desaguisado ente Antônio Guimarães e o seu companheiro de promoção, o então tenente médico
Mário Lage, ao qual Florbela não terá ficado indiferente. Falta
saber se a razão desse desaguisado não terá sido a própria Florbela. Na sequência deste episódio, Mário Lage pede dispensa da
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
GNR e Antônio Guimarães pede transferência para Lisboa, o
que leva a nova deslocação do casal.
Vale a pena ler os dois últimos tercetos do soneto “A
vida”, questionando-nos se estas palavras não teriam sido já um
sinal muito claro do fim do casamento de Florbela com Antônio
Guimarães e o início da sua relação com Mário Lage:
A mais nobre ilusão morre… desfaz-se…
Uma saudade morta em nós renasce
Que no mesmo momento é já perdida…
Amar-te a vida inteira eu não podia…
A gente esquece sempre o bem dum dia.
Que queres, ó meu Amor, se é isto a Vida!...
A situação do casal degrada-se depressa, sobretudo depois
de novo aborto nos primeiros dias de outubro de 19234. Em
janeiro de 1924, Florbela vai viver com Mário Lage, em Ovar.
Em abril desse ano Antônio Guimarães dá inicio ao processo
de divórcio, invocando abandono do lar por parte da mulher.
Florbela, em carta a seu irmão Apeles, refere-se aos dois últimos
anos de vida com Guimarães desta forma: «a minha vida há dois
anos foi um calvário que me dá direito a ter razão e a não me envergonhar
de mim. (…) eu estava a transformar-me na mais vulgar das mulheres, e
por orgulho, e mais ainda por dignidade, olhei de frente, sem covardias nem
fraquezas, o que aquele homem estava a fazer da minha vida, e resolvi
liquidar tudo simplesmente, sem um remorso, sem a mais pequena mágua.
Estou a divorciar-me e para me casar novamente, se a lei mo permitir, ou
para viver assim, se a moralidade do Código exigir».
A ação de divórcio intentada por Antônio Guimarães em
4 de abril de 1924 na 6ª Vara Civil de Lisboa veio a ser decretado
Parece que os dois abortos que Florbela teve prenunciaram o fim dos
seus dois primeiros casamentos…
4
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
em 23 de junho de 1925, o que permite a Florbela casar-se pela
terceira vez,o que acontece em 15 de outubro desse ano na Repartição do Registo Civil de Matosinhos com o médico Mário
Pereira Lage, de 32 anos. É interessante saber que, dias depois,
em 29 de outubro, Florbela e Mário Lage celebram matrimônio
religioso na Igreja do Bom Jesus de Matosinhos — os dois primeiros casamentos de Florbela tinham sido realizados apenas
civilmente, o que lhe permite agora casar pela Igreja,
Este casamento de Florbela com Mário Lage, ao que parece muito desejado por Florbela, é também bastante tempestuoso. Nada de novo. Agustina diz que o casamento com Mário
Lage vive do desprendimento conjugal: «Ela sai a qualquer hora
da noite. Mário Lage apenas a adverte: “não devias vir tão tarde… Um dia terei de ir buscar-te ao banco do hospital…” Ela
desafia a tragédia, tem acessos de cólera e de exibição (…) Bela
é indesejável. Um turbilhão de fantasia, de gênio, e de malícia.
Provavelmente, o marido ama-a muito. A sua condescendência
é quase escandalosa. Na reunião do Hotel do Porto, ele sai para
comprar cigarros, mas, na realidade, afasta-se para deixar a sós a
mulher com o seu novo amigo»5.
Curiosamente, sendo este, talvez, o casamento socialmente mais conseguido de Florbela («(…) o meu homem tem uma posição
elevada em Matosinhos e aqui, onde é médico, sub-delegado de saúde, secretário de turismo e mil trapalhadas, e como o pai faz parte da Câmara, é
muito considerado em Matosinhos, e a mim tratam-me como a uma princesa
(…)»), é aquele que é mais contestado pela família. Florbela demora a reatar as relações com seu pai e com seu irmão.
A vida de Florbela decorre entre uma contínua busca da estabilidade e, quando parece encontrá-la, imediatamente é tentada
por nova aventura. O seu último casamento talvez tenha sido o
tempo em que essa inconstância se tornou mais evidente.
In Agustina Bessa-Luís, “Florbela Espanca”, Guimarães Editores,
1976.
5
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
A dificuldade que teve em convencer o pai da bondade
das suas intenções é disso exemplo. O pai, João Maria Espanca
foi sempre uma referência na vida de Florbela, pelo que lhe
doía o facto de ele não aceitar esta sua nova relação. E cada
relação representava para Florbela uma nova vida, uma espécie
de renovação total, razão pela qual sempre se considerou casta6. Agustina diz que Florbela, na tradição celta, considerava-se
sempre pura: «a virgindade não é física, mas moral»7. O pai,
por seu lado, adorava esta filha que representava uma espécie
de extensão da sua personalidade. Talvez por isso, sou tentado
a achar que João Espanca quis sempre manter algum ascendente sobre Florbela. Se assim não fosse, qual a misteriosa razão
pela qual nunca a perfilhou, apesar de toda a proximidade que
tiveram (apenas o fez em 13 de junho de 1949, cinco dias antes
da homenagem e inauguração do busto de Florbela em Évora,
da autoria de Diogo de Macedo8 — ou seja, 18 anos depois da
sua morte)?
Natália Correia, no segundo programa sobre Florbela, Mátria (Ver
nota (21)), diz: «os textos revelam uma Florbela casta, bem diferente
daquela que se mostra por vezes nos seus versos, uma pantera de sensualidade».
7
In Agustina Bessa-Luís, ob. cit.
8 Em 1994, por ocasião do 100º aniversário do nascimento de Florbela,
o escultor João Cutileiro realizou um «múltiplo segundo um medalhão
em bronze executado pelo artista para comemorar o 100º aniversário
do nascimento em Vila Viçosa da poetisa Florbela Espanca (18941930). Esta obra foi adquirida directamente ao artista no seu atlier em
Vila Viçosa. Proveniência: Manuel Gomes da Costa. Descrição: João
Cutileiro; Florbela Espanca; Múltiplo em várias pedras; Assinado com
monograma, numerado; MLXXXII, ed. Nº 15/25; Diâmetro: 30 cm».
In Catálogo do Leilão nº 181 do Palácio do Correio Velho, Lisboa. Eu
comprei ao escultor, no seu inspirador atlier em Évora (e não em Vila
Viçosa, como erradamente é dito no catálogo do PCV), o exemplar nº
10/25 desta obra.
6
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Por outro lado, é necessário ter em conta a relação íntima,
para alguns até incestuosa, que Florbela manteve com o irmão
Apeles, o seu “Peles”. As cartas entre os dois (sobretudo de Florbela, pois Apeles não era muito prolixo na escrita) mostram que
existia uma enorme cumplicidade entre os dois. Por isso Florbela ficou arrasada quando Apeles morreu, em 6 de junho de 1927,
quando o hidroavião que pilotava, um Harriot 33, se precipita
nas águas do rio Tejo9. O seu corpo nunca apareceu. É a morte
de Apeles que agrava a doença neurótico-depressiva de Florbela,
que já tinha sido fatal para a sua mãe biológica.
Florbela nunca recuperou. Não conseguia dormir sem fortes
doses de um barbitúrico muito em uso na época chamado Veronal,
que passou a acompanhá-la permanentemente. Foi com Veronal
que tentou suicidar-se duas vezes, a primeira depois de romper
com Luiz Maria Cabral, em agosto de 1928, e a segunda talvez
depois de romper com Ângelo César, em novembro de 1930. Foi
com Veronal que se suicidou em 8 de dezembro de 193010. Não
Apeles Demóstenes da Rocha Espanca (1897-1927) era também um
artista: desenhava e pintava com mérito, ao jeito modernista. Foi oficial da marinha, tendo decidido fazer o curso de piloto-aviador em
Abril de 1927. Ao saber disso, Florbela como que antecipa a tragédia
que iria ocorrer pouco depois, em carta dirigida ao irmão em 25 de
abril desse ano. Apeles Espanca acompanhou a primeira travessia aérea do Atlântico-sul realizada por Gago Coutinho e Sacadura Cabral,
entre março e abril de 1922, quando prestava serviço no Cruzador
Carvalho Araújo. Como curiosidade, refira-se que o Padre Luiz Gonzaga Cabral (Ver nota 20), tio de Luiz Maria Cabral, foi o autor da
“mensagem da Colônia Portuguesa da Baía. Lida por seu autor em a
noite de 9 de junho de 1922. Na Sessão Solene do Gabinete Português
de Leitura em homenagem aos gloriosos Aviadores Gago Coutinho e
Sacadura Cabral”, in “Inéditos e Dispersos, IV, Discursos Acadêmicos
(2º)”, de P. Luis Gonzaga Cabral, S.J., Ed. Livraria Cruz, Braga, 1930.
10
Não obstante a certidão de óbito referir as 22 horas do dia anterior
como a hora da morte, “de edema pulmonar”. Apesar de Florbela
viver em casa de um médico, a certidão é assinada por um carpinteiro,
9
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
deixa de ser estranho que um médico, Mário Lage, permitisse que
a sua mulher tivesse sempre este forte barbitúrico na sua mesa-decabeceira, pelos vistos em quantidades que poderiam ser letais.
Sabemos que Florbela viveu de forma emotiva, tempestuosa, acidentada. As suas relações foram sempre rápidas e intensas. De caráter caprichoso, provoca os seus sucessivos maridos,
com as suas vontades, com as suas atitudes, com o seu mimo.
Morreu cedo, como acontece aos predestinados.
Aos poetas, aos artistas, tal como às crianças, temos tendência a tudo perdoar. O gênio dos artistas, quando se revela, supera
os gestos mundanos, de tal modo estes são inerentes à criatividade.
Em boa verdade, os três maridos de Florbela permitiramlhe dar asas ao seu gênio. A poetisa terá casado com eles, com
cada um deles, por ter percebido que eles lhe iriam dar essa liberdade de que ela tanto precisava. E eles, cada um deles ao seu
jeito, terão casado com ela pela sua forma de estar e estariam
dispostos a pagar o preço.
3. Luiz Maria Cabral
Não existe muita informação sobre a passagem de Luiz
Maria de Figueiredo Cabral por este mundo.
Nasceu em 5 de maio de 1888, sendo o sétimo filho de
Francisco do Valle Coelho Pereira Cabral11 e de sua mulher Elisa
Manuel Alves de Sousa, que não se sabe sequer se estava presente!
Talvez isso tivesse acontecido por nenhum médico querer responsabilizar-se por uma declaração que sabia não ser verdadeira e permitir que
Florbela fosse enterrada segundo os ritos da Igreja Católica. Não o foi.
11
Francisco do Valle Coelho Pereira Cabral era Fidalgo Cavaleiro da
Casa Real, Bacharel formado pelas faculdades de Filosofia e de Matemática da Universidade de Coimbra e Engenheiro Civil formado pela
Escola do Exército de Lisboa, foi Director da Companhia Nacional
de Estamparia e de Tinturaria e da Real Companhia Vinícola do Norte
de Portugal, e senhor da Casa dos Constantinos, na Rua das Flores e
184 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
de Figueiredo Dias Guimarães, herdeira da casa de seu tio, o
Visconde de Figueiredo12, na rua de Cedofeita, no Porto. Formou-se em medicina e cirurgia pela Faculdade de Medicina da
Universidade do Porto13 e “foi notável pianista e organista, compositor e crítico musical”14.
da Casa de Sandim, em Roriz, Santo Tirso. In «Vales Pereiras Cabrais,
da Casa da Rua das Flores – resenha genealógica e biográfica duma família portuense», por A. C. de Sequeira Cabral, Imprensa Portuguesa,
Porto, 1981. Era um bom aguarelista e desenhador.
12
Foi primeiro e único Visconde de Figueiredo Joaquim José de Figueiredo, que nasceu no Porto em 2 de outubro de 1807 onde morreu
solteiro e sem geração em 22 de janeiro de 1876. «Foi grande negociante e proprietário no Porto, a cuja vereação pertenceu, e comendador da Ordem de Cristo. Presidiu durante muitos anos à direcção do
Banco Comercial do Porto. O título foi-lhe concedido por Decreto
de 15 e Carta de 22-XII.1862 (D. Luís)», in«Nobreza de Portugal»,
vol. II, Ed. Enciclopédia, Lisboa, 1960. Ver também «Resenha das
Famílias Titulares e Grandes de Portugal», por Albano da Silveira Pinto, Lisboa, 1877. Gaspar Martins Pereira e Maria Luísa Nicolau de
Almeida de Olazabal, no seu livro «Dona Antônia» (Ed. ASA, 1996), a
pág. 27, apresentam um quadro dos “maiores exportadores de vinhos
do Porto para Inglaterra em 1811”, aparecendo Joaquim José de Figueiredo em quinto lugar (segundo em nome individual), com 988,5
pipas, depois da Companhia Geral da Vinhas do Alto Douro (7438),
de Bernardo de Clamouse Browne & Companhia (1238), de Antônio
Joaquim de Carvalho (1054,5) e de Vanzellers & Companhia (1053).
José Bernardo Ferreira, biografado naquela obra, exportou nesse ano
101 pipas. Tendo em conta a data desta tabela, tratava-se seguramente
do pai do Visconde de Figueiredo, homónimo.
13
Nunca exerceu medicina nem qualquer outra profissão. Viveu sempre dos rendimentos de que beneficiou por herança de seus pais. Meu
pai, seu sobrinho, diz que minha avó, cunhada de Luiz Maria Cabral,
sempre disse que a única coisa próxima da medicina que fez em toda
a sua vida foi vacinar alguns sobrinhos…
14
Cfr. A.C. da Sequeira Cabral, ob. cit. e Damião Vellozo Ferreira e
Gonçalo de Vasconcelos e Sousa, «Os Fundadores do Club Portuense
►► 185
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
No âmbito musical, o seu nome ficou particularmente ligado à Sociedade de Concertos de Música de Câmara. Tenho
um exemplar de um postal que publicitava esta “sociedade”. Ao
centro podemos ver o “Dr. Luiz Cabral” (assim mesmo, sendo
o único que aparece com o título académico em evidência), indicando que o seu instrumento é o piano; à sua direita, Carlos
Dubbini (1º violino) e Afonso Valentim (viola); à sua esquerda,
José Gouveia (violoncelo) e Alberto Cerqueira (2º violino)15.
A música foi o seu mundo. Teve seguramente sólida formação musical. Frequentava os meios musicais portuenses que
eram de grande qualidade. Por relatos familiares, sei que viajou
bastante pela Europa e que tocou com nomes importantes da
música. Quando Pablo Casals sabia que coincidiam numa cidade, queria tocar com ele.
Viveu sempre com seus pais e, depois, com suas irmãs
solteiras na Casa da Rua de Cedofeita, no número 239. A casa
do lado, onde viveu seu tio-avô, o Visconde de Figueiredo, era
sua propriedade.
Para saber um pouco mais sobre este meu tio-avô, entrevistei dois dos seus sobrinhos: meu pai, Manuel16, que tinha 9
anos quando ele morreu, pois nasceu em agosto de 1930, e minha tia Madalena17, que nasceu em novembro de 1922. Ambos
coincidem num ponto: “nós tínhamos uma verdadeira veneração pelo tio Luiz”. Continua meu pai: “lembro-me dele sempre
muito arranjado, de chapéu de palha e sapatos tipo italiano, junto
à porta de ferro de Sandim, que dá para a meia-lua18, sempre com
e a sua descendência», Porto 1997
15
Este postal está reproduzido em Damião Vellozo Ferreira e Gonçalo de Vasconcelos e Sousa, ob. cit.
16
Entrevista realizada em 12 de janeiro de 2014.
17
Entrevista realizada em 20 de janeiro de 2014.
18
A “meia-lua” é um tanque com a forma que o nome indica, coberto
com uma ramada, que existe na Casa de Sandim, já referida, junto ao
qual era e ainda é costume passar muitas horas nos verões, benefician-
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
imensa paciência para os sobrinhos. Uma figuraça, de bigode
pequenino. Um dia veio ao Porto um pianista famoso(não me
lembro quem) e, repentinamente, adoeceu; pediram ao tio Luiz
para o substituir, o que aconteceu com aplauso geral. Como é
que 74 anos depois de ter morrido ainda temos esta memória
tão viva e tão simpática dele? Ele cativava-nos…”
Quem melhor se lembra de Luiz Maria Cabral é Madalena
Cabral, pois era afilhada de uma irmã dele, Madalena também,
a qualveio a ser dona de Sandim entre a morte da mãe, em 1934
e a sua morte, em 194919. Por isso, ia muitas vezes para Sandim
mal o tempo começava a amaciar, por maio, na companhia da
avó, Elisa, das tias Madalena e Júlia, juntando-se a eles com frequência o tio Luiz. A este gaba a inteligência, a cultura e a argúcia: “o tio Luiz era bom fosse em que área fosse a que se dedicasse. Era fino. Dava nas vistas, sendo discretíssimo. Uma presença
simpática. Era um grande parceiro com os miúdos, dava-nos
importância, tinha imensa paciência, ensinava-nos muitas coisas.
Aprendi imenso com ele. Ao mesmo tempo era exigente connosco: fazia-nos perguntas e, se não sabíamos ou se nos enganávamos, ralhava-nos imenso. Eu gozei imenso a sua sabedoria
activa”. E acrescenta: “o tio Luiz não era nada vaidoso, mas sabia muito bem o que valia, que era bom. Sem dúvida nenhuma!”
do já não do Tio Luiz a tocar piano no seu quarto, mas da sombra
refrescante das videiras e do som contínuo e reconfortante da água
das duas bicas a cair no tanque
19
Na família, nessa geração, a Casa-solar de Sandim, ficou para a filha
mais velha solteira, Madalena. Quando esta morreu, deixou-a a sua
irmã Júlia, também solteira, que morreu em 1961. Esta (não se sabe
se por alguma indicação familiar anterior) deixou-a (tal como todo
o resto da sua herança) “aos irmãos que lhe sobrevivessem” que, na
época, era apenas Francisco. Este entendeu dever ficar com a Casa
familiar, mas fez lotes equitativos com o resto da herança, permitindo
aos seus sobrinhos, filhos de seus irmãos Maria Isabel e Constantino,
escolherem.
►► 187
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
É interessante a comparação que Madalena faz de Luiz
Maria Cabral com um seu tio-avô, o Padre Luiz Gonzaga Cabral20, o qual era Provincial dos Jesuítas em 1910, grande orador
sagrado e que deixou vasta obra publicada: “eu também venerava o tio Luiz Padre, que era o charme em pessoa. Já o tio
Luiz era charme só para quem queria… Em termos de atitude
perante a vida, divergiam completamente (os homônimos Padre
Luiz Gonzaga Cabral e Luiz Maria Cabral, tio e sobrinho). Em
termos de argúcia, de finura de observação, de atenção à vida,
encontravam-se completamente”.
Madalena Cabral é a única pessoa que conheço que se
lembra de ouvir Luiz Maria Cabral tocar piano: “em Sandim,
ia para o quarto, fechava a porta, abria a janela (que dava para
a meia-lua), e ouvíamos o tio Luiz tocar piano. Para mim, o
piano do tio Luiz faz parte da vida da meia-lua! Eu andava por
ali a brincar (a tia Lena levava-me pelo cachaço para Sandim) e
ouvia. Ouvia o tio Luiz tocar piano imenso tempo. Só tocava
nestas circunstâncias; nunca tocava quando tínhamos visitas,
com a casa cheia”.
Como disse, há poucas referências físicas de Luiz Maria
Cabral. Morreu em circunstâncias menos claras em 1 de dezembro de 1939, com apenas 51 anos. Quando morreu soube-se
que tinha duas filhas, fruto de ume relação com uma mulher
que vivia no Largo do Carregal, ali bem próximo da casa da Rua
Luiz Gonzaga do Valle Coelho Pereira Cabral, S.J. (1866-1939) era
padre Jesuíta, licenciado em Teologia (França) e doutorado em Filosofia (Espanha), foi Provincial da Companhia de Jesus entre 1908 e
1912, tendo-se exilado para o estrangeiro logo após a implantação da
República, em 5 de outubro de 1910. Foi para Salvador da Bahia em
1916 onde morreu em 1939, como director do prestigiado Colégio
António Vieira (Ver, por todos, o meu trabalho “Dos estreitos limites
do internato fui salvo pelo mar — o Padre Luiz Gonzaga Cabral e Jorge Amado”, in Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 50, setembro
de 2011, pp. 141 a 156).
20
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
de Cedofeita, onde sempre viveu. Não investiguei sobre estas
suas filhas, quando nasceram e em que circunstâncias. Mas a sua
existência e a forma como apareceram depois da morte do pai
sugere que Luiz Maria terá tido sempre uma vida dupla: a social,
à qual parecia adaptado no seu dia a dia e a outra, um pouco
subterrânea, com uma família instalada e, eventualmente, com
outras aventuras esporádicas, muito ao gosto da época. Com
Florbela, terá sido seduzido pela artista, pela poetisa, que complementava a sua alma de artista. Um diálogo intenso e amoroso
inter-pares.
A inexistência de mais documentação sobre Luiz Maria
Cabral faz-nos questionar sobre o que poderá ter acontecido
depois da sua morte. As suas filhas foram suas universais herdeiras21. Será que as suas coisas pessoais, os seus papéis, as suas
cartas lhes terão sido entregues? Conhecendo bem a família,
inclino-me para pensar que, pelo menos os seus papéis pessoais terão sido destruídos após a sua morte, sobretudo tendo em
conta a confusão que terão causado todas as revelações sobre a
sua vida que lhe sobreviveram. De todo o modo, também não
acredito que houvesse documentação sobre a sua relação com
Florbela. Poderia haver, isso sim, documentos que mostrassem
um pouco da sua maneira de ser e a sua forma de viver e de se
relacionar com os outros. E já não seria pouca coisa.
A Casa dos Constantinos, na Rua das Flores, já referida e que faz
parte da classificação do Centro Histórico do Porto como Património
da Humanidade pela UNESCO, ficou em partilhas para os irmãos
Luiz Maria e Francisco, tendo este uma parte menor do que aquele.
Terá ficado combinado que a Casa ficaria registada no nome de Luiz
Maria que, não tendo filhos, a deixaria a seu irmão Francisco ou aos
seus herdeiros. Á sua morte, tendo duas filhas, foram estas as suas herdeiras universais, incluindo obviamente a Casa dos Constantinos, que
venderam a estranhos à família pouco depois – informação colhida
junto de outro sobrinho, Antônio Carlos.
21
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
4. Encontros e desencontros; a música e a poesia
Depois do seu terceiro casamento com Mário Lage, Florbela chega mais uma vez a um Porto pequeno, fechado e burguês, carregada da sua própria história. Ouçamos Agustina, sempre no seu romance de carácter biográfico “Florbela Espanca”:
«quando ela se instalou no arraial moral do Porto levava consigo
uma história mais assustadora: dois divórcios, três maridos, dois
livros de sonetos e um sem número de peripécias galantes e de
amantes indigitados. Era demais para o Porto (…) para quem
uma mulher bem penteada era símbolo de pecado”.
Quando penso no tio Luiz e em Florbela é inevitável pensar também em Natália Correia. Lembro-me de, há muitos anos,
ver um programa da sua autoria em que, ao percorrer a biografia
de Florbela, conta o que se terá passado entre os dois. Mantive
sempre uma memória muito presente desse programa, intitulado
Mátria22. Não me lembro se terá sido nessa ocasião que tomei
conhecimento deste episódio que, sendo conhecido, não era falado na família. Depois da emissão dos programas, lembro-me
bem de ouvir a minha tia mais velha, Leonor, comentar (talvez
fruto de alguma pequena provocação…) a cena em que o realizador representa uma tarde passada na casa de Luiz Maria, com
este a tocar piano enquanto Florbela, recostada numa chaise-longue, recitava poemas que ele inspirou ou que lhe dedicou. Sarcasticamente, rematava minha tia: «Como se ela algum dia pudesse
ter entrado em nossa casa!”
A série de programas intitulada Mátria, da autoria de Natália Correia,
foi produzida e realizada por Dórdio Guimarães em 1986. Quando
estava a preparar este trabalho, tive oportunidade de consultar os três
programas dedicados à vida e à obra de Florbela Espanca no Serviço
de Arquivo da RTP-Porto, agradecendo desta forma a disponibilidade
e a simpatia das funcionárias que me receberam e ajudaram, por intercessão amiga da Paula Moura Pinheiro. Os programas foram emitidos
em 6, 20 e 27 de junho de 1988.
22
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Como em muitas biografias de Florbela que consultei23,
Natália Correia também conta a sua história. Não resisto a transcrever o belíssimo e tão ilustrativo texto dito por Natália Correia
no terceiro programa sobre Florbela, a acompanhar as imagens
que teatralizam essa suposta tarde de idílio24.
Entre julho e agosto de 1928, Bela procura sair da
lassidão dolorosa em que mergulhou, forjando uma nova
ilusão. Desta vez, o comparsa que ela escolhe para contracenar com ela no drama que se segue é um artista. Chamase Luiz Maria Cabral, pertence à aristocracia25 portuense e,
como o marido da poetisa, é formado em medicina, o que
permite presumir, mas não garantir que se conheciam.
Mas Luiz Maria Cabral é sobretudo pianista, organista, crítico musical e compositor. E é seduzida por estes
dotes artísticos que Florbela constrói o sonho de se deixar
arrebatar por eles, na intimidade de uma tarde de música
em que o pianista, tocando para ela, a envolve na magia de
Chopin, Lizt, Schumann.
Não se acende hoje a luz…todo o luar
Fique lá fora. Bem aparecidas
As estrelas miudinhas, dando no ar
As voltas dum cordão de margaridas!
Rui Guedes é o grande estudioso e biógrafo de Florbela. Depois, temos o livro já referido de José Carlos Fernández e estudos, por exemplo,
de Maria Lúcia dal Farra e de Jorge de Sena. Já o livro de Agustina Bessa
-Luís é uma biografia romanceada. Tive também a oportunidade de encontrar numerosas teses publicadas em universidades portuguesas, espanholas e, sobretudo, brasileiras — onde Florbela é muitíssimo estudada,
24
Programa referido na nota (22), a partir do minuto 00:23:19:00.
25
Florbela sempre se sentiu atraída pela realeza e pela aristocracia.
Numa carta a seu irmão Apeles, diz-lhe: «Eu estou morta porque te cases
e gostava que fosse na aristocracia, por ser a gente mais simpática que conheço».
23
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Entram falenas meio entontecidas…
Lusco-fusco… um morcego a palpitar
Passa… Torna a passar… Torna a passar…
As coisas têm o ar de adormecidas…
Mansinho… Roça os dedos plo teclado,
No vago arfar que tudo alteia e doira,
Alma, Sacrário de Almas, meu Amado!
E, enquanto o piano a doce queixa exala,
Divina e triste, a grande sombra loira
Vem para mim da escuridão da sala…26
Mas, na própria máscara do amor que o destino afivelou para novamente a iludir, ela vê estampadas as feições
da morte que voluptuosamente a atrai.
Morte, minha Senhora Dona Morte,
Tão bom que deve ser o teu abraço!
Lânguido e doce como um doce laço
E, como uma raiz, sereno e forte.
Não há mal que não sare ou não conforte
Tua mão que nos guia passo a passo,
Em ti, dentro de ti, no teu regaço,
Não há triste destino nem má sorte.
Dona Morte dos dedos de veludo,
Fecha-me os olhos que já viram tudo!
Prende-me às asas que voaram tanto!
Vim da Moirama, sou filha de rei,
Má fada me encantou e aqui fiquei
À tua espera… quebra-me o encanto!27
26
27
Soneto Chopin.
Soneto “À Morte”.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
A poetisa trazia a ideia do suicídio entranhada nos pensamentos. E só procurava um pretexto. E o fim breve e
desastrado dessa breve miragem amorosa parece ter sido a
causa de uma tentativa de suicídio que lhe destrambelhou
ainda mais os nervos. Florbela sabia que corre vertiginosamente para o seu fim e a fonte de criação poética volta a
jorrar com todo o ímpeto.
Dificilmente algum dia saberemos quando e em que se
circunstâncias Florbela e Luiz Maria Cabral se encontraram e se
apaixonaram. Por tudo o que li e ouvi sobre Florbela, atrevo-me
a dizer que o entusiamo de Florbela por Luiz Maria se deve principalmente a dois fatores (para além, é claro, do ímpeto emocional e irracional que sempre envolveu as paixões da poetisa):
primeiro, a posição social de Luiz Maria; segundo, a alma-gêmea
de artista que nele encontrou.
Platão dizia que a música é a essência da ordem. Das artes,
a música em particular obriga a ritmo, a métrica, a compasso e
provoca fortes emoções. Como a poesia28.
Para além de “Chopin” (acima), Luiz Maria inspirou também o soneto “Tarde de música”:
Só Schumann, meu amor! Serenidade…
Não assustes os sonhos… Ah!, não varras
As quimeras… Amor, senão esbarras
Na minha vaga imaterialidade…
Tive uma professora no antigo curso geral do liceu que dizia que
Fernando Pessoa – o qual disse um dia que Florbela era a sua «almagémea» - na sua infância, passava horas e horas nas escadas de um
teatro perto de casa, em Lisboa, antes e depois da sua estadia em Durban, a ouvir os ensaios musicais. Defendia entusiasticamente que essa
aprendizagem musical terá sido determinante para a excelência da sua
composição poética, exactamente pelos aspectos referidos no texto
que aproximam a música da poesia.
28
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Lizst, agora, o brilhante; o piano arde…
Beijos alados… ecos de fanfarras…
Pétalas dos teus dedos feitos garras…
Como cai em pó de oiro o ar da tarde!
Eu olhava para ti… “É lindo! Ideal!”
Gemeram nossas vozes confundidas.
— Havia rosas cor-de-rosa aos molhos —
Falavas de Lizst e eu… da músical
Harmonia das pálpebras descidas,
Do ritmo dos teus cílios sobre os olhos…
As biografias de Florbela coincidem no fato de a poetisa
ter escrito os sonetos “Chopin” e “Tarde de música” inspirada
em Luiz Maria e na sua música. Há quem aflore a hipótese de o
soneto “Toledo” ter sido escrito com o mesmo enquadramento,
numa deslocação que os dois terão feito a essa surpreendente cidade espanhola que o Tejo abraça, na única incursão que
Florbela terá feito fora do território português29. De fato, o tom
deste soneto é presente, vivo, palpável, amoroso e terno:
Diluído numa taça de oiro a arder
Toledo é um rubi. E hoje é nosso!
O sol a rir… Vivalma… Não esboço
Um gesto que me não sinta esvaecer…
As tuas mãos tacteiam-me a tremer…
Meu corpo de âmbar, harmonioso e moço,
Agustina Bessa-Luís, no seu romance biográfico sobre Florbela, diz
que este soneto “Toledo” poderia ter a ver com o seu amigo Augusto
Toledano d’Esaguy, baseada no nome do meio. Atrevo-me a discordar,
considerando que este soneto tem um teor muito mais vivencial do
que inspiracional…
29
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
É como um jasmineiro em alvoroço
Ébrio de sol, de aroma, de prazer!
Cerro um pouco o olhar, onde subsiste
Um romântico apelo vago e mudo
— Um grande amor é sempre grave e triste.
Flameja ao longe o esmalte azul do Tejo…
Uma torre ergue ao céu um grito agudo…
Tua boca desfolha-me um beijo…
Tal como não conhecemos as circunstâncias do encontro
entre Florbela e Luiz Maria, ignoramos o que terá provocado a
ruptura. Da história fica o mito. O mito do mito. O que fizeram,
onde se encontraram, como se amaram, que brigas tiveram. Que
ela o amou perdidamente, parecem não restar dúvidas. Os sonetos
que Florbela compôs por ele e para ele comprovam-no. Como o
comprova a violência da ruptura, com a sua primeira tentativa de
suicídio. Se Florbela, esta «trágica infanta da poesia portuguesa
(…), sabe que corre vertiginosamente para o seu fim» (Natália
Correia), o fato de tentar o suicídio exactamente no momento
em que rompe com Luiz Maria prova como o rompimento dessa relação a afectou. E só pode afetar dessa forma tão violenta o
que tem raízes profundas.
É possível que Florbela e Luiz Maria tenham voltado a encontrar-se. Florbela começa a escrever um Diário no dia 11 de
janeiro de 1930. No dia 13 de março faz uma anotação em que
refere um “Luiz” o que, pelo teor do texto e pelas relações que
teve com Luiz Maria Cabral nos permite assim pensar: «que pobres
os que para não sofrer, não amam, que pobreza a de quem nunca dá!». O seu
biógrafo José Carlos Fernández conclui: «Pelo que Florbela diz
chegamos à conclusão que a relação entre ambos falhou porque
Florbela, amando-o, dava-lhe o que era, íntima e enlouquecidamente, enquanto ele, no seu orgulho, não era capaz de tanto:
►► 195
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
O Luís tem no seu íntimo, embora não o confesse, um grande orgulho por não ser capaz de amar doidamente uma mulher. Como é que, sendo ele tão inteligente, não compreende
esta verdade tão simples: que aquele que não tem nada para
dar é que é pobre? Assim, nas suas aventuras sentimentais,
dá, em troca de pedras preciosas, dinheiro falso e… como
cada um dá o que tem, elas dão sempre pedras preciosas e
ele continua a dar dinheiro falso. E, quando chegar a morte,
terá ignorado dois dos maiores prazeres da vida: o prazer de
possuir pedras preciosas e o prazer de as dar.
5. Epílogo
Tal como as majestades que admirava na ducal Vila Viçosa
na sua infância e juventude, Florbela fica para a história apenas
com o seu nome de batismo, dispensando o apelido. Florbela,
apenas, é suficiente para a identificar. Como ela talvez só Sophia,
na poesia ou Camilo e Agustina, na literatura. Ou Amadeo, na
pintura. Flor Bela Alma.
Florbela foge cedo do seu Alentejo natal, e cedo mostra
que tem pressa de viver. Vive depressa e intensamente. Vertiginosamente, com a coragem de viver a sua vida respondendo
apenas à sua vontade e aos seus instintos. Cada passo que dá no
que ela pensa ser o caminho da estabilidade ou da felicidade (os
seus casamentos, as suas casas, os seus trabalhos), rapidamente é
seguido por outro passo no caminho do abismo (as suas aventuras amorosas, os seus divórcios, as suas neuroses).
Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui… Além…
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente…
Amar! Amar! E não amar ninguém!
Se Florbela — a «poetisa-musa», como lhe chamou Vitorino Nemésio — tinha alguma certeza na vida, era apenas
relativamente ao valor universal da sua poesia e à persistência
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
do seu nome na cultura. Sem nunca ter transposto as fronteiras de Portugal (excepto, talvez, a breve viagem a Toledo com
Luiz Maria Cabral), fez-se cidadã de um mundo sem fronteiras.
Avessa a escolas, apesar de ter frequentado brevemente alguns
grupos de debates ideológicos e culturais, confiava apenas na
sua inspiração, na sua personalidade, na sua arte. Ignorada pelos
modernistas da moda que a achavam provinciana30, afirmou-se
pelo seu «génio telúrico» (Natália Correia). Não precisou das teorias das letras ou das modas literárias para se impor. Florbela
transformou-se num mito.
Luiz Maria Cabral foi um episódio breve na vida breve de
Florbela. Mas um episódio que teve a importância de ser inspirador e transformador. E um episódio na vida de um mito não
é coisa pequena!31
Florbela teria consciência disso mesmo. Em carta dirigida a Júlia
Alves em 20 de dezembro de 1916 chama a si própria e à destinatária
«provincianazinhas burguesas».
30
Manuel de Novaes Cabral é jurista de formação e desenvolveu diversas atividades ao longo da sua vida, sobretudo ligadas ao serviço público. É presidente do Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto desde
2011. Foi docente universitário e escreve alguma prosa e poesia, tendo
publicado vários livros e centenas de artigos em revistas portuguesas
e internacionais.
►► 197
BICENTENÁRIO DE NASCIMENTO
DE UM SÁBIO BAIANO E BRASILEIRO
João Eurico Matta
N
asceu Antônio Ferrão Moniz de Aragão em 28 de dezembro de 1813, em Salvador (e não no Engenho Guaíba,
no Recôncavo baiano, o “engenho paterno” a que se referiu
Pedro Calmon, em sua História da Literatura Baiana, 1949) —
como o próprio Ferrão Moniz registrou, numa das incontáveis
páginas de seus numerosos Diários, cadernos de manuscritos
inéditos, que se encontram na biblioteca-arquivo da Academia
de Letras da Bahia — e faleceu aos 74 anos, no dia 30 de julho
de 1887, “na biblioteca de sua residência (Salvador)...: deitado
em uma rede, tinha um livro aberto que lhe pousava sobre o
coração”, uma das mãos caídas para um lado e um charuto
no chão, como está registrado na pág. 271 do livro História das
ideias filosóficas na Bahia (Séculos XVI a XIX), 2006, de autoria
dos professores de filosofia Francisco Pinheiro Lima Júnior
e Dinorah d’Araújo Berbert de Castro que, aliás, dedicam 44
das 776 páginas desse volume ao estudo da vida e espantosa
produção intelectual de Antônio Ferrão Moniz de Aragão, um
dos 51 “professores de filosofia” pesquisados, ressaltando, na
página 310, Ferrão Moniz como “o nosso maior pensador”.
Exatamente aquele Ferrão Moniz que, por seu prodigioso estudo Classificação metódica e enciclopédica dos conhecimentos humanos,
foi considerado “velho sábio baiano” pelo alagoano Virgílio de
Lemos, graduado e professor de Direito na Bahia, em seu livro
Curso de filosofia do direito, 1916.
►► 199
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Como este é um texto de espaço limitado, creio que devo
homenagear os autores de artigos sobre Ferrão Moniz para a imprensa em quatro momentos dos anos 1940, 1950, 1980 e 2000.
Primeiro, o texto escrito por um enteado de seu neto, Dr. Gonçalo Moniz Sodré de Aragão, o médico Otávio Torres, intitulado
“Antônio Ferrão Moniz de Aragão, o filósofo” e publicado no Jornal do Comércio, em 21 de dezembro de 1944. Dr. Gonçalo Moniz
guardou por muitos anos os livros, os cadernos de manuscritos e
as publicações de Ferrão Moniz e, com autorização de sua irmã
D. Laurinda, confiou esses documentos a Otávio Torres para que
fossem doados ao Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e à
Academia de Letras da Bahia, de cujo quadro o “velho sábio” é
patrono da Cadeira número 17, que tem como fundador exatamente seu neto, o citado professor de medicina Gonçalo Moniz,
sucedido pelos acadêmicos poetas Leopoldo Braga, Carlos Eduardo da Rocha e Ruy Alberto d’Assis Espinheira Filho.
Segundo momento, na coluna semanal do Diário da Bahia
intitulada “Letras Baianas”, nos meses de setembro e outubro
de 1952, o então jornalista e poeta Moniz Bandeira, nos seus 16
anos, publicou artigos sobre autores baianos entre eles Antônio
Ferrão Moniz de Aragão, Castro Alves e Pedro Kilkerri, todos
os textos ilustrados por admiráveis bicos-de-pena-e-nankin da
lavra de seu irmão artista, aos 13 anos, Carlos Augusto Bandeira,
de saudosa memória. Como somos amigos de infância, desde
os nossos cinco anos, posso testemunhar que Luiz Alberto Moniz Bandeira venerava seu avoengo, trisavô, Ferrão Moniz como
paradigma de intelectual e homem de bem, carinhosamente chamado pela família de “Senhor”, mas não por ter sido senhor de
engenho, um dos herdeiros do Barão de Itapororoca, porquanto
alforriou os escravos e empobreceu, vendendo as propriedades
rurais e estabelecendo-se em Salvador, para exercer o magistério
e ocupar os cargos de diretor da Instrução Pública e bibliotecário diretor da Biblioteca Pública da Província. Nesses sessenta
anos Luiz Alberto Moniz Bandeira, em extraordinária carreira,
200 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
de magistério e pesquisa historiográfica e de ciência política, no
Sul do Brasil, em Brasília e no Exterior (está radicado na Alemanha, com a família, Margot e o filho Egas, aos 28 anos, um scholar
notável), e publicou cerca de trinta livros, alguns traduzidos em
várias línguas europeias, recentemente em mandarim, o último
dos quais, A Segunda Guerra Fria. Geopolítica e dimensão estratégica
dos Estados Unidos. Das rebeliões na Eurásia à África do Norte e ao
Oriente Médio, 2013, é dedicado “In Memoriam meu antepassado,
o filósofo Antônio Ferrão Moniz de Aragão (1813 – 1887), no
ano do seu bicentenário de nascimento”.
Terceiro momento, a publicação em A Tarde, de 30 de
julho de 1887, em página inteira do Caderno 2, do artigo do
professor universitário Francisco Pinheiro Lima Jr., “Ferrão
Moniz, um amigo da sabedoria”( comemoração pelo centenário de sua morte).
Quarto momento, a publicação, na coluna Gente e Memória
de caderno especial de A Tarde, de 28 de dezembro de 2006,
do artigo do professor universitário, pós-graduado no assunto,
Marcelo Duarte Dantas de Ávila, “Antônio Ferrão Moniz de
Aragão, uma vida dedicada aos estudos.”
Em maio do ano 2006 dediquei algumas semanas a compulsar, folhear e fazer uma leitura dinâmica, além das obras publicadas — Elementos de matemáticas, 1858; Catálogo geral das obras
de ciências e literatura que contém a Biblioteca Pública da Província da
Bahia, vol. 1, 1878; vol. 2, 1880; vol. 3, 1883, — os documentos,
cadernos e manuscritos dos Diários e Jornal contidos em doze
pacotes (sacos de papel grosso, marron) e três documentos do
acervo do Instituto Geográfico e Histórico que seriam enviados
ao Arquivo Nacional, do Ministério da Justiça, para restauração,
a saber os Tomos I e II do Elementos de retórica, 1855, e o volume
Lógica, 1873-1886. Mas prefiro recorrer aos textos de Francisco
Pinheiro Lima Jr. e Dinorah Berbert de Castro, de Otávio Torres, Moniz Bandeira e Marcelo de Ávila, para concluir este artigo
com o seguinte sumário, em dois parágrafos finais.
►► 201
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
É empolgante a leitura dos textos daquele garoto de 12
anos que o pai manda estudar, por alguns anos em dois períodos, na Europa, primeiramente humanidades na França, Paris, e,
entre 1832 e 1834, ciências naturais (“Natural philosophy”) e matemática na Inglaterra, Universidade de Londres, Antônio aos 19
anos, acompanhado do irmão Egas, quando, em três anos, viajaram por vários países europeus. O curso de “Natural philosophy” foi concluído em 1834, e em dezembro desse mesmo ano
faleceu o patriarca, José Joaquim Moniz Barreto de Aragão, o
Barão de Itapororoca, que, entre o 7 de setembro de 1822 e o
2 de julho de 1823, desempenhara um papel político significativo na campanha militar pela consolidação da independência do
Brasil. Introduzo aqui a menção alegre das várias namoradas
europeias do jovem estudante Ferrão Moniz, a última das quais,
Manoela Carassa, em Roma, engravidou, tendo abortado o feto,
em 1835, quando os dois rapazes já estavam de retorno à pátria
imperial. Conclui-se o inventário, Antônio Ferrão Moniz assume a propriedade do Engenho Santo Estêvão e se casa com a
bela, dizia-se, viúva do médico e político José Lino Coutinho, D.
Maria Adelaide Sodré Pereira, de cujo matrimônio nasceram os
nove filhos do casal, entre eles o vice-almirante Francisco Ferrão
Moniz de Aragão, pai do governador da Bahia de 1916 a 1920,
que tinha o mesmo nome do avô, Antônio Ferrão Moniz de
Aragão, que propiciou o decisivo apoio institucional à fundação,
em 1917, pelo engenheiro e professor Arlindo Fragoso, da Academia de Letras da Bahia. A mudança física do Recôncavo para a
Cidade do Salvador se deu no final da década dos 1840, quando
começaram suas atividades de magistério, inclusive a compra e
direção do Colégio 2 de Julho, o exercício de cargos públicos na
gestão da educação (depois de diretor, foi vice-diretor de Instrução Pública de janeiro de 1882 a outubro de 1885) e na direção
da “Livraria” ou Biblioteca Pública da Província, que exerceu
até outubro de 1886, quando requereu sua aposentadoria, oito
meses antes do seu falecimento, em julho de 1887.
202 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Nos seus 19 anos, Ferrão Moniz atravessou uma crise religiosa, que ele retrata, em linguagem estranhamente criptografada,
no “Diário” escrito em Paris, 15 de julho de 1832, após confessar
que “muitas vezes não tenho ido à missa aos domingos”. Três anos
mais tarde, nos seus 22 anos, de volta ao Recôncavo baiano e no
Natal de 1835, escreve em seu “Diário”, como sempre se dirigindo,
num modo inglês de linguagem figurada, a um interlocutor fictício
chamado “meu caro B”: “Hoje, meu caro B, é o dia em que nasceu
o nosso grande Cristo, que estabeleceu a Religião Cristã...” O jovem
pensador se iniciaria maçon, e portanto crente no Supremo Arquiteto do Universo, e amadureceria escrevendo admiráveis textos sobre “Filosofia da religião”( 199 fls. manuscritas ) e sobre o que chamou de “Teologia transcendental”, “Teologia natural” e “Teologia
moral”, nos quais especula sobre a “Natureza de Deus” e a “Santíssima Trindade” — a Potência, a Inteligência e o Amor em si, que
“subsistem em uma unidade radical, absoluta, Deus, (que) é pois
essencialmente um — unus — pela substância e trino — trinus —
pelas propriedades” (fl. 188 do manuscrito). Introdutor e divulgador, no Brasil, da filosofia positivista de Auguste Comte, sem aceitar
a “Religião da Humanidade” deste, — conforme demonstrou, em
carta, seu neto, o professor Gonçalo Moniz, — Ferrão Moniz, que
defendeu brilhantemente o feminismo e o regime de governo republicano, mostra-se, na maturidade de seus escritos, não mais o “cético” ou o “materialista” dos “Diários” da juventude, mas um deista,
no dizer dos professores Francisco Pinheiro Lima Júnior e Dinorah
Berbert de Castro, “adepto de uma religião naturalista, admirador
do cristianismo, julgado mui benfazejo à humanidade.”1
João Eurico Matta é bacharel em direito, administrador, professor
emérito da Universidade Federal da Bahia, crítico e ensaísta. Foi diretor da Escola de Administração da UFBA, secretário de estado e
membro do Conselho de Cultura do Estado da Bahia. Dirigiu várias
instituições públicas e privadas, como o Conselho Regional de Administração da Bahia. É membro do Instituto Geográfico e Histórico da
Bahia. Desde 1989 ocupa a Cadeira número 16 da ALB.
►► 203
Poesia
POEMAS
Fernando da Rocha Peres
CARTÕES POSTADOS
Letra de fado
É um prêmio de verão
voltar a Lisboa sempre,
pois o Tejo prende a luz
quando giza o pôr do sol,
que incendeia a sua foz
e os cabelos de Urania.
Nos mirantes da cidade
com seus distantes ruídos
os poetas espreitam a noite
de guitarras e cantorias,
que acalantam os telhados
(bis)
e os sorrisos de Urania.
É uma festa de aleluia
estar em Lisboa assim,
com os mirantes e o Tejo
no acalanto dos telhados
(bis)
no incêndio da sua foz.
Outubro 2014
►► 207
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Balada ao Pascoaes
Na sinuosa e estreita rota
um esgalhar verde das vinhas,
pinta o espaço na paisagem.
Assim chego em Amarante
com seu silencio empedrado,
e um denso fluir da vida
que escorre no rio Tâmega,
por baixo da ponte romana.
Há um poeta da cidade,
Senhor Teixeira de Pascoaes
com versos inquietantes
sobre a carreira do tempo,
em poema que rememoro:
“Que misterioso recorte,
esse da nossa figura,
na alegria ou na amargura,
mas sobretudo na morte.”
No viço de toda gente
esse é o dia sem data,
imprevisto, indesejado,
de uma visita intruseira
com seu mantel de linhão
tintado de roxo e negro,
e um requiem desafinado.
E adormeço em Amarante
na festa do corpo de Cristo,
com aflições e os cantochões
nos labirintos de um sonho.
Outubro 2014
208 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Cliques
1
Os registros redefinem
um passado não perdido
de fenícios e romanos,
em Cetóbriga antiquíssima
banhada de mar e rio
e subvertida em areial.
2
E neste encontro das águas
na península desenhada
vê-se a Troia lusitana,
na praia de sal atlântico
e correntes doces do Sado
com ruínas milenares.
3
Tem-se a visão do estuário
com o verdume dos arrozáis
e o lento vôo das cegonhas,
e aviações de pernaltas
que passam sobre Comporta
vestida de branco e azul.
Outubro 2014
►► 209
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Ondeação
Nas falésias de Ericeira
as gaivotas riscam as rotas
e conduzem as altas ondas,
que hão de vir enfunadas
para a dança dos surfistas,
com suas sereias atlânticas
de seios ensolarados.
Aí! que o azul ericeirado
faz a roupagem dos dias,
neste verão formidável!
Outubro 20141
Fernando da Rocha Peres é poeta, historiador e professor emérito da
Universidade Federal da Bahia. Foi diretor do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN), para a Bahia e Sergipe, diretor-presidente da Fundação Cultural do Estado da Bahia, e membro do Conselho
Estadual de Cultura da Bahia. É autor de vários livros, entre eles Memória da Sé e Horta de poesia (poemas portugueses). Desde 1988 ocupa
a Cadeira número 25 da ALB.
Estes poemas fazem parte de um livro inédito intitulado Cartões postados.
210 ◄◄
POEMAS E SONETOS
Gláucia Lemos
Poema da hora esquiva
Quando a noite desata a solidão das esferas
todo desejo antigo faz-se inútil.
Toda a amargura que jaz sobre a terra
evola como o fumo dos incensos
envenenando o ermo.
Parece que de tudo cresce o cheiro
do sono dos pagãos.
Os cantos das sereias silenciam
o cio dos gatos assombra o escuro
o som de tudo é como o som do medo.
Dormem velas de barcos nos seus mastros.
Já não há poesia nas vigílias
a noite arde sobre os cristais das ondas.
Há uma estranha dor nas águas-vivas
gemendo por seus mortos em extrema solidão.
A morte paira como o escuro eterno
de todos os princípios.
Só tu ainda velarás na insônia
tuas infinitas perdas.
►► 211
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Pequena canção de mulher
Eu tinha uma coisa para te dizer
mas a noite passou.
Não sei se ainda sei o que dizer
depois que passaste com a noite
e me deixaste só.
Quando a noite voltar
se tu vieres,
terei uma coisa para te dizer.
O que fazer...
se eu sou como quase todas as mulheres...
Neoclássico
Um fauno com o seu chapéu de flores
nas mãos sua rede de caçar borboletas.
Isso me lembra um quadro neoclássico
e me faz pensar.
Graças a Deus não ter nascido lagarta
nunca ter rastejando em avesso de folhas
nunca ter virado borboleta.
Borboletas são tantas!
Infestam os campos.
Em Órion há também muitas estrelas
mas estrelas não voam.
Os faunos não vem cá.
Só os anjos!
212 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Soneto do silêncio
Foste o último a sair. Pronto apagaste
a derradeira luz que estava acesa.
Deixaste uma penumbra nesta mesa,
pela janela, escuro o panorama.
Ao turvo deste espaço, invade a rama
de fina e frágil flor de uma esperança.
À aragem ela estremece e se embalança,
tentando ainda dar vida à escuridão.
Triste a mudez é fiel à solidão.
Lá fora nenhum som anima o espaço.
Só aqui dentro ainda estás. Ainda ficaste
nas sombras do teu vulto a cada passo,
no eco de tua voz que ao vento passa,
nas luzes que acendeste e que apagaste.
►► 213
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Soneto do porta-retrato
Cansei de procurar no vão do portaretrato, no vazio, um rosto amado.
Cansei de ter invernos semi-morta
em fronha lisa e nos lençóis dobrados.
Cansei de procurar ao lado esquerdo
do peito, onde se guardam as ternuras, um rosto a respirar onde me quedo,
a ser exato ao largo da moldura.
Não há rostos no espaço onde eu esvoaço.
Os anjos sujam-se a adejar rasteiros
no lodo, a que se esquivam meus delírios.
Não há mais vinho bom, serve-se o mosto...
Meu lado esquerdo ri ao vácuo vidro
do meu porta-retrato sem um rosto.
214 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Soneto das perdas
As palavras que eu ontem não te disse
as certezas que tu ontem não de deste.
Perdões que não pediste, por tolice,
talvez por timidez de que eu não desse,
fossem pedaços teus que me entregasses,
palavras que esperava que dissesses.
Não viste o meu rubor nas minhas faces
e eu me perdi na voz das minhas preces.
As certezas perderam-se nos ventos,
pela vacilação de alguns momentos
de te abrires num teu gesto de paz.
Palavras que calaste... Se as dissesses,
fosse, decerto o que eu ouvir quisesse.
Mas nos perdemos para nunca mais.1
Gláucia Lemos é bacharel em direito, crítica de arte, poeta, contista e romancista. É autora de mais de trinta livros de literatura adulta e infantojuvenil. Entre seus livros de literatura adulta, encontram-se os romances
Um elfo em minha mão (romance), O riso da raposa (romance), e Trilha de ausências (poesia). Recebeu diversos prêmios nacionais. É sócia do Instituto
Geográfico e Histórico da Bahia e da União Brasileira de Escritores de
São Paulo. Desde 2010 ocupa a Cadeira número 14 da ALB.
►► 215
DOIS POEMAS
Ruy Espinheira Filho
Canção do seu olhar
Logo vi que o seu olhar
só vinha a mim de além-mar.
Às vezes me percebia,
ela, e até mesmo sorria,
mas já no próximo instante
era uma nuvem distante...
Por muitas vezes, sonhei-a
princesa, fada, sereia
(por muitas noites e dias
de esplendor e agonia).
Mas era assim: seu olhar
só vinha a mim de além-mar.
Depois, de além mais além,
até já não ver ninguém.
Nem o que de mim talvez
tivesse visto uma vez:
uma sombra esmaecida
do outro lado da vida.
►► 217
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Onde morava um anjo
Acordo muito cedo sentindo-me
como quando caminhava por uma rua onde morava
um anjo.
A chuva batia forte no teto
de telha-vã
mas o que me acordou
foi o sentimento de estar caminhando
por uma rua onde morava
um anjo.
Sentimento que na verdade me acordou
para si mesmo
pois ainda agora
depois de lavar o rosto
e me vestir
e descer a escada
e sentar-me a esta escrivaninha de granito azul
(encomendada pelo gosto elegante
de meu pai
que nela trabalhou por muitos anos)
ainda sou ele
esse sentimento
de quando caminhava por uma rua onde morava
um anjo.
218 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Acreditei poder ter evitado caminhar por uma rua
habitada por existência demasiado forte
terrível
com poder de aniquilação
como numa elegia de Rilke
(que antes de ler já estava em mim
desde que pela primeira vez me surpreendi
numa rua em que morava
um anjo)
mas na verdade não poderia evitar caminhar
por uma rua
depois de descobrir que ali morava
um anjo
porque então já era tarde
demais.
Sempre é tarde demais para tomar
outro caminho
desde que descobrimos
essa rua onde morava
um anjo
pela qual caminhávamos
e continuaremos a caminhar
porque nela morava
um anjo.
►► 219
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Que ali ainda mora
e morará sempre
como por ela caminhará
sempre
para sempre
aquele que uma vez caminhou
por uma rua onde morava
um anjo.1
Ruy Espinheira Filho é escritor, jornalista e professor da Universidade
Federal da Bahia, graduado em jornalismo, mestre em ciências sociais e
doutor em letras pela UFBA, autor de dezenas de livros de poesia, ficção
e ensaios, com diversos prêmios nacionais. É articulista quinzenal de A
Tarde. A sua poesia reunida encontra-se no volume Estação infinita e outras
estações (2012). Desde 2000 ocupa a Cadeira número 17 da ALB.
220 ◄◄
CINCO POEMAS
Florisvaldo Mattos
Ao rapaz que se parecia com Deus
Homo sum: nihilhumani a me alienum puto*
Terêncio
Nas vastas pradarias em que me converti nativo,
Em que, livre, desarmei cercas e ergui um povoado,
Juntei nuvens, pássaros e animais de carga
E deles tirei um para percorrer o que era só campo
E mata fora. Mirei o horizonte com desconforto
Sensível. Pelas tardes juntei mais nuvens e mais pássaros
E, com eles, formei o meu rebanho; me recompus.
Por detrás do céu percebi luz de treva enamorada
E me contentei em saber e sentir que não estava só.
Dali parti para o nada com as cores de meu sonho,
Me adivinhei descoberto, porém jamais perdido. Logo,
Sigo os passos da luz, sem inimigos conhecer,
Porque todos me veem como um deus entre malvas,
Tiriricas, sensitivas, cansanção e moitas de espinho,
Cerne de dor que torna a vida um jogo entre paixões,
E o corpo, um advento que ao destino nos transporta.
Não sei o que a água oculta; se ninfas, se anjos rebelados;
Me percebo, me educo com respirações de olvidos
E não me revolto por ser súdito no reino do silêncio.
Não me atrevo a sorrir, mas a chorar me recuso.
Homem sendo e ouvindo dia e noite antiga voz,
►► 221
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
No íntimo, guardo: nada que é humano me é indiferente.
*Sou homem: nada do que é humano considero alheio a mim.
(Terêncio, O punidor de si mesmo, comédia)
Instância de flor e vaso
(D´après Ortega y Gasset sobre a pintura)
Afortunadamente, a rosa ignora
A ciência botânica, tanto quanto
Eu, ainda jovem, saindo porta afora,
Não saiba aonde me leva meu espanto.
Pego um objeto; por exemplo, um vaso.
Olho-o ali; miro-o e sei que me está perto.
Se distante, o não sei capaz acaso
De me manter o mudo olhar desperto.
Tenho-os como uma só coisa, igualmente:
Se longe, vejo bem mais o fundo oco,
Que foge sem que paire em minha mente
O olhar que me estremece, quando toco.
Olhando, atento, vou seguindo a luz,
Que deste ponto é a flor que me seduz.
(SSA-BA, 19/02/2014)
222 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Catorze janelas abertas
A natureza aponta-me o caminho.
Ei-lo. Sereno e sem fadiga, sigo-o.
As águas vêm e voltam. Quando o sol
Resseca sapucaias ainda vivas,
Poeira recobre dias que já somem,
Vozes estendem búzios pela tarde,
O vento ruge, o frio me estrangula.
É noite. Contemplo o horizonte vasto:
Vésper ateia a lenha dos sentidos.
Perguntam-me se a luz ajuda. O fogo
Logo se ergue (as achas já estão crestando).
Daqui a pouco, haverá estrelas no céu,
A paisagem descansa inteira. Então,
Dormirei sossegado com os meus ontens.
(SSA/BA, 08/09/12)
►► 223
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Sim, estar é ser
Qual Pessoa de tantos heterônimos,
sofro, pelos desvãos da vida do eu
profundo, a perda da feliz infância,
a irremediável morte de meus anjos.
Pouco apressado, por iluminadas
tabernas e sombrios corredores,
segui e ainda os persigo com o meu fardo.
Incapaz de ser muitos, fui nenhum;
apenas um único que recorda,
pastoreando horas, infindáveis dias.
Sou e não sou — de hoje, quase ninguém;
de ontem, muitos. Dialogo com os meus prantos.
Mas, se das nuvens um sorriso pende,
Pela porta entram retornados anjos.
SSA, manhã de sexta-feira, 14/06/2013.
224 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Requiescat in lucem
O poema nunca diz o que devia.
Sugere apenas, tanto quanto alude.
Homem cansado, quando morto o dia,
sacia a sede à beira de um açude.
Escrevi um poema e quanto mais o lia,
mais nele vibrava um acento rude;
bem mais fadado a palco de arrelia,
que em mim persiste a rogar que o mude.
Lugar de se pensar no que dizer,
o poema aguarda; pérola na concha,
tudo nele pertence a quem vai ler.
Se retorna lanhado da porfia,
logo implora que se lhe tire a roncha.
Poema tem a ver com a luz do dia.
SSA, 21, jul., 20141
Florisvaldo Mattos é poeta, jornalista e ensaísta, bacharel em direito
e mestre em ciências sociais pela Universidade Federal da Bahia. Foi
professor no curso de jornalismo da UFBA. Participa de antologias
de poesia nacionais e estrangeiras, em Portugal, Espanha, França e
Alemanha. Publicou diversos livros, entre eles Fábula civil (1975), A
caligrafia do soluço & poesia anterior (1996) e Poesia reunida e inéditos (2011).
Desde 1995 ocupa a Cadeira número 31 da ALB.
►► 225
CINCO SONETOS DO RIO
Cyro de Mattos
Da nascente infância
I
Da nascente infância cachos de uva
Deslizavam nas vagas. O perfume
Nos remansos dizia do costume
De o sol aquecer meu corpo. Entregava
Assim seus frutos dourados à vida
Prazerosa, de fluxos colorida.
Era o que importava: o vivo sabor
De folhas úmidas, o puro ardor
Do salto nas águas. Este fervor
Que me impelia para desfrutar
O mel descendo dos ramos da chuva.
De doçura lambuzado nadava
E nadava sem querer descansar.
Do céu nas águas, ó rio do amor.
►► 227
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
II
Descubro pepitas nas goiabeiras
Carregadas de goiabas maduras.
Na ilha, no meio do rio, provoca
A cena meus olhos. E minha boca
Molha com o que dia e noite sonhei.
Nada melhor pra dizer dessa vez
Da inocência do que a descoberta
Que ressoa dentro o mel da colheita.
No aprendiz reverbera a linguagem
Formada por pássaros, peixes, flores
Das margens e das vagas. Blindagem
Do tempo que nesse sol venturoso
Brilha, respira sem o perigoso
Gesto do viver, que há de vir com dores.
228 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
III
Conchas e estrelas formam meu tesouro
No areal deixado depois da enchente.
Há nele fios de ouro dentro da água,
Prata que uma lua inchada derrama
Sob o segredo de nuvens e escamas.
Tenho visões e sonhos e surpresas
Desse tesouro, festivas lembranças,
E invenções de vagas que me embalam
E me concebem fazendo da vida
Expressão da liberdade, do verde
A emoção que o verão chega a sorrir.
Esse tesouro ergue-se de miragens,
De proezas do vento que no rio
Nasce, jorra e de graça o mundo abraça.
►► 229
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Do esgoto a céu aberto
Ficou claro que as lavadeiras, quando
Botavam as roupas para secar,
Coloriam as inúmeras pedras
Pretas, levando emoção a quem visse.
A cidade sabia que a argamassa
Das casas era feita duma fibra
Especial: calo, suor e areia.
O peixe fabricava o pão da vida.
O aguadeiro anunciava a água fresca
Com uma voz cristalina. O visual
De tão lindo parecia sem fim.
Ficou claro que de tanto no ventre
Virar lodo o espetáculo envergonha.
Eis que escorre no esgoto a céu aberto.
230 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Do julgado do rio
Venho sendo omisso pra refazer
Virginais caminhos de água, dizendo
Melhor, matei o que era para ser
Vivo no seu amanhecer líquido.
Eu me acuso por ser indiferente
Ao benefício, sempre abundante,
De água pura que jorrava na fonte.
Peixe e rede no orvalho competente.
E como réu confesso que merece
Por tão grave ilícito ser punido,
Chegando do que lhe foi natural,
Em noite morta, que nunca apetece,
Lavro minha sentença, condenado
A ver as mãos usadas para o mal.1
Cyro de Mattos é autor de 50 livros, entre volumes de contos, novelas, romance, crônicas, poemas e infanto-juvenis. Tem livro de poesia
publicado em Portugal, Itália, França e Alemanha. Como poeta foi
agraciado com o Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Artes,
Prêmio Internacional Maestrale Marengo d’Oro, em Gênova, Itália,
segundo lugar, duas vezes, e Prêmio Nacional Ribeiro Couto da União
Brasileira de Escritores (Rio). É membro correspondente da ALB.
►► 231
TUDE CELESTINO
POETA DE IPITANGA, DO AMOR
E DA BOEMIA
Tina Tude
N
ascido na região de Campo Formoso, em 25 de junho
de 1921, o poeta Tude Celestino de Souza foi criado em
Ilhéus, o que lhe conferiu grande parte da inspiração para a
fase inicial de sua obra literária, permeada de referências rurais, influências do cordel, repente e cantadores do interior da
Bahia. Poeta de formação autodidata, tendo cumprido os estudos formais apenas até o 4° ano primário, é autor da trilogia
O ás de ouro, o poema mais emblemático de sua obra, uma saga
fictícia em três fases, com linguagem matuta, tipicamente sertaneja e eivada de traços trágicos, que narra a trajetória de um
sujeito acometido pelo sentimento de vingança e que também
dá nome a seu único livro.
Tude Celestino marcou sua poesia com temáticas relativas
à boemia, ao amor e, sobretudo, à referência nordestina, pelo
que é mais lembrado; sua obra, no entanto, contempla ainda
um traço marcante de versatilidade, incluindo os, ainda inéditos,
poemas fesceninos. Apesar da influência primeira, pautada na
temática nordestina, a cegueira, que o acometera por influência
do diabetes, constituiu uma relevante influência para o caráter
que seus versos assumiram posteriormente, conferindo-lhe determinada pujança e capacidade de abstração e contemplação
não visual da relação tempo-espaço. Foi, contudo, durante os
anos de 1940, na então Santo Amaro do Ipitanga, onde se teria
►► 233
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
estabelecido por ocasião da implantação da Base Aérea do Salvador e do Aeroporto Internacional Dois de Julho, vindo atuar
como agente aeroportuário, que assumiu plenamente sua irrefutável vocação de poeta, firmando-se como referência cultural
do município que o acolheu como ilustre cidadão.
Declarado pelo poeta e jornalista Jehová de Carvalho
como um “ente sagrado de impossível repetição”, dada a exuberância, inestimável valor literário e elaboração de sua obra,
Tude se manteve sempre em evidência na região, tendo seu
nome vinculado a grande parte da agitação cultural e social vigente até o final dos anos 80, quando, por complicações do diabetes, interrompeu sua produção literária — mas não sua respeitabilidade junto ao povo desse lugar, sobretudo, por conta
dos memoráveis saraus que abrigou no espaço cultural Ás de
Ouro, referência da boemia local àquela época, quando, através
d’A Noite Poeta — evento oficial promovido com incentivo
e participação da prefeitura municipal, contando sempre com
presenças de nomes importantes das letras na Bahia —, o poeta gozou do prestígio de nomear o Prêmio Tude Celestino de
Souza de Poesia, que, em edições anuais, destacou e incentivou
a produção literária local, conferindo visibilidade ao município
como referência cultural no estado.
Recentemente, em iniciativa conjunta de diversos segmentos da comunidade de Lauro de Freitas, a partir da sugestão do
historiador Gildásio Freitas em tributo aos 20 anos de morte do
poeta, propõe-se a atribuição de seu nome ao Centro de Cultura
local, antiga sede dos festivais em sua homenagem, tornando-o
Centro de Cultura Tude Celestino — CCTC.
Tude Celestino, entre outras peculiaridades, marcou
em sua obra uma veemente ação pela preservação do nome
e memória de Ipitanga (que remete à origem indígena e significa água vermelha) — denominação original da localidade
hoje conhecida pelo nome de Lauro de Freitas, que lhe foi
atribuído por ocasião da emancipação política ocorrida em
234 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
1962. Manifestando sua ressalva pela atribuição de tal nome
ao município, o poeta alegava antever nisso um processo sutil
de alienação da memória local. Para ele, a emancipação política, um processo legítimo e natural na trajetória de evolução de
uma localidade, não pressupunha necessariamente o desmerecimento da memória e das referências locais referendadas no
nome de Santo Amaro de Ipitanga (denominação jesuíta estabelecida com a fundação da freguesia em 1608). A despeito da
cegueira, tal sensibilidade e percepção apurada do mundo e da
sociedade, nem sempre expressas em seus versos, marcaram
seu pensamento em sua comunidade e em seu tempo, conferindo-lhe a notoriedade e o respeito de que goza ainda hoje.
Tude Celestino, o poeta de Ipitanga, faleceu em 21 de julho de 1989, deixando viúva e quatro filhos, e está sepultado no
cemitério da igreja da matriz.1
Tina Tude (Justina Souza) é atriz graduada em artes cênicas pela Universidade Federal da Bahia, pós graduanda em educação ambiental
pelo Instituto Prominas — MG, membro da ALALF (Academia de
Letras e Artes de Lauro de Freitas), ativista cultural e idealizadora do
movimento ATiTude CelesTina, militante da reflexão de ancestralidade, memória ipitanguense e consolidação de identidade no território
do município de Lauro de Freitas — Bahia, Brasil.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
POEMAS DE TUDE CELESTINO
Boêmio
Boêmio, eu sei, teu mal não tem remédio,
Teu riso louco, tua louca alegria,
São guizos que prendeste com ironia
No nebuloso manto do teu tédio.
No peito magro que já foi tão nédio
Cravaste o punhal da hipocondria
E para disfarçar tua agonia
Manténs o bar num incessante assédio.
E assim, ébrio, disperso, desregrado,
No riso a esconder pesar profundo,
Destróis em ti o que há de mais sagrado.
Tuas ânsias de revolta mal contendo,
Vês entre as taças de licor imundo
Teus sonhos todos, um por um, morrendo.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Boêmio II
Boêmio, eu não sei porque tão desregrado
Trocas assim teu lar pelo antro da taberna
E a saúde destróis e tua alma tão terna
Arrastas pela rua como um desvairado.
Num poema genial, no bar improvisado,
Retratas no asfalto o homem da caverna,
E os copos se sucedem e lá por fora inverna,
E num verso profano o vinho é sublimado
E a noite avança, e enquanto o lar te espera em calma,
Na madrugada fria, com a mente em brasa,
Desvendas insensato os teus segredos d’alma
E já manhã agora, a dúvida o situa,
Entre o dever imperioso de ir pra casa
E uma vontade louca de ficar na rua.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Dentro da noite
Varando a noite eu vi pelos cassinos
A esbórnia destruindo patrimônios
Vi anjos transformando-se em demônios
E mestres cometendo desatinos.
Vi nas vielas torcerem destinos,
Vi virgens que pediram a Santo Antônio
Um lar e o sacrossanto matrimônio
Serem pastos de vis e libertinos.
Vi a inocência ao léu sob as marquises
Morrendo ante um escol inconsequente
E a pureza do olhar das meretrizes.
Vi ante mil estrelas assombradas
Boêmios sob um céu indiferente,
Sereno estuprando as madrugadas.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Lago de Narciso
(A Clóvis Moraes — Barra Grande) Não basta ser feliz, ainda preciso,
Além dessa ventura, ter camisa;
E que não haja amor, marco ou divisa
A cercear meu lago de narciso.
Que sensualmente fêmea e sem juízo,
Leve-me pouco a pouco, hábil, precisa
Ao teu inferno e depois, com a brisa,
Transfere-me ao céu com teu sorriso.
Que tuas mãos me façam mil carícias
E ofuscado ante teus contornos
Eu goze desse amor todas delícias.
E farto enfim, mas face a um novo ardor
Que tu ainda com teus beijos mornos,
Leve-me, louco, a morrer de amor.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Eu, palhaço
Com o coração dopado, eis-me aqui em cena
No palco da ilusão pintado de alvaiade;
Trazendo uma esperança unida a uma saudade,
Enfrento a plebe-rude, essa feroz hiena.
Nas contrações da face escondendo a vil gangrena
Do meu terrível tédio e, em mágica habilidade,
Promovo galhofeiro e levo a chã vaidade
À infrene turbamulta que ruge na arena.
E em meio a essa gente e luzes divinais,
Escamoteio a dor de minhas emoções
Quando o aplauso ou a vaia estruge nas gerais.
Burlesco alvo à mercê desses contrastes todos,
Eu choro temeroso em meio às ovações
E rio como forte, enfrentando os apodos.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Otimismo II
Senhor, foge-me a luz, estou cegando,
Não olho mais as flores do caminho,
Mas esqueci se encontrei espinhos,
Pelas estradas que trilhei cantando.
Não sei quando há luar, nem mesmo quando
Estão no céu em festa os passarinhos,
Não sei quando há no azul flocos de arminhos,
Mas ouço os coqueiros farfalhando.
Não mais do lusco-fusco as nuanças,
Nem d’alva o rosicler, já não espero
Para encetar a esmo minhas andanças.
De peregrino sem farnel, desnudo
Mas não me queixo...oh! Pois quando quero
Fecho os olhos e revejo tudo!
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Imponderável
Começou! Não, nem sei se começou.
Foi um vislumbre, apenas um olhar,
Um prenúncio de sol, tênue luar,
Uma pluma que a brisa esvoaçou.
Um sonho belo que não se sonhou
Um lírio inexistente num altar
Uma canção que não se ouviu cantar,
Um instante sublime que passou.
Foi música que ouvi quase em surdina
Miragem? Sim! Mas guardo na retina
Como um esbater de asas de cetim.
Volátil aroma de etérea flor
Foi amor... mas que estranho amor,
“Sem nunca ter princípio, teve fim”.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Galope vagabundo
“Visto meu casaco azul de malha
E saio de cavalo de pó e nuvem
Pelo espaço
À procura da face errante
De Deus.”
(Adelmo Oliveira)
Sonhos de nauta afogando,
Ele trocou caravelas
Níveas naus de pândegas velas
Por cavalos e, sonhando,
Varou mundos cavalgando
Viu de Roma os coliseus
Varreu mares com os hebreus
E assim, por pagos errantes,
Vagou ávido e inconstante
Qual vagabundo de Deus.1
As referências bio-bibliográficas sobre o poeta Tude Celestino já se encontram no texto assinado por Tina Tude, que antecede estes poemas.
►► 243
FICÇÃO
A ÚLTIMA PORTA
Hélio Pólvora
A
té aquele instante ele não sabia o que era perder-se, mesmo contra a vontade. Saberia depois, transcorridos anos de
sua vida madura. De modo que, desatento aos sinais exteriores
de sua desorientação, deixou de preparar-se, ou melhor, de sentir mudanças, a princípio quase imperceptíveis, no lugar a que
chegara por engano — um trecho da plantação sombreado por
árvores copadas que formavam teto.
No momento exato de perceber mudanças no cenário,
quando elas se enfiam pelos olhos e avivam o entendimento, ele
sentiu o choque: um fluxo de sangue que subia às têmporas, a
fraqueza nas pernas e no ventre, um peso zumbidor nos ouvidos. Foi então que perguntou: ”Onde estou?” E a seguir, em voz
assustada de menino trêmulo: “Qual o caminho certo?”
Várias vezes, no curso da vida, faria esta indagação, que
sempre quedava sem resposta. Aprendeu com os dias e os anos
que a resposta teria mesmo de demorar, e talvez sequer existisse.
Aprendeu a não dar importância maior a determinadas inquirições que antes lhe pareciam fundamentais, àquele silêncio pressago que prolonga o eco das interrogações eo estupor. Fazia um
gesto de desdém, embora ciente de que punha em jogo o seu
destino, e se deixava simplesmente e apenasmente viver.
Mas nada supera a inesperada, a dolorosa certeza de que
se está perdido, como se desembarcado em terra estrangeira, na
aridez de uma praia pedregosa. O menino, porque então não
passava de menino de uns sete, oito anos, que se aventurara sozinho fora de casa, longe de casa, varreu com o antebraço nu o
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
suor da testa, um suor grosso, enriquecido pela agonia, e procurou clarear os olhos. Decerto tinha olhos agudos, o olhar da infância que se descobre no mundo e logo explora, curiosa e com
temor, os arredores, o que significam os gestos, movimentos e
palavras — ou rugidos e silêncios alheios.
Seus olhos correm agora de uma árvore para outra, contornam moitas, rastejam e se elevam, das raízes às copas, se arrastam pelo chão acamado de folhas ora úmidas, ora secas. Tudo
quieto, tudo parado ou em suspensão, começo e fim de mundo,
a encobrir enganos. Sabia que aquela interrupção, salvo o vento
brando e o frouxo farfalhar de folhas tende a desabar — e é então que acontece. O quê, exatamente?
Tinha medo. Até as águas, em fontes e poças temporárias,
pareciam sólidas em seus embaçados espelhos manchados aqui e
ali por insetos mortos. Caso se aproximasse e dobrasse o corpo,
haveria de ver, nas espelhantes superfícies, o vulto de um menino atarantado. Mas não quis olhar-se, não quis se ver para não
engrossaro desespero.
A pulsação no peito era forte, ressoava a modo de tambor,
e se ele assim se visse, de fora de si mesmo, perdido e desamparado nos bosques, seria aquele João largado pelo pai no recesso
da mata, sem esperanças de retorno.
Naquele instante aprendeu, sem saber ao certo para quê,
a necessidade urgente de afastar ramos como quem repuxa reposteiros, e passar, depois de dobrá-los para que servissem de
pistas; rasgar troncos com a ponta do canivete, deslocar pedras,
espetar paus à guisa de marcos. Porque queria voltar. Ali, sozinho no ermo, estava exposto, enquanto a casa, com todos e com
tudo o que nela havia, carícias e crueldades, sumida estava.
Mais adiante, no percurso breve de sua vida, teria dúvidas
quanto a isso: voltar. Desde cedo se habituara a andar só, sem
o amparo de mãos anônimas, e sabia que, uma vez de pé,viria o
impulso de dar um passo à frente, ainda que trôpego — e avançar. A vida se desdobrava em caminhos, ardilosa e interrogativa.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Uns se fecham assim que percorridos, outros se abrem logo, no
afã de iludir, e raras vezes premiar. E aquele menino, sem que os
pais percebessem, se afastara de casa, dos arredores da casa, para
logo antecipar o medo do desconhecido e, quem sabe, livrar-se
do medo ou nele se enredar.
Um pensamento repentino soprou-lhe a reprimenda: não
convém avançar além do limite do braço estendido.
Entendia agora a finalidade das histórias de terror que lhe
contavam, a pretexto de fazê-lo dormir cedo — mas, em verdade prolongando a lucidez com o acúmulo de receios e indagações. Os entes encantados dos bosques, campos e matas. Os
monstros, as bruxas. Os seres perversos que desgarram meninos travessos, no intuito de devorá-los. Os matagais ocultavam
duendes. O que fazer, como agir se, de súbito, num repente,
agora mesmo, nesse exato instante, ele ali, perdido no ermo, um
deles o atalhasse, maligno ou apenas zombeteiro?
Apalpou a roupa, embora na prévia certeza de não ter nacos de fumo de rolo com que acalmar, por exemplo, a caapora
— aquele trêfego demônio das solidões empenhado em desorientar pessoas e, à falta da prenda do fumo, deixá-las para todo
o sempre perdidas, errantes pelo resto da vida.
Olhou ao redor, rodou sobre si mesmo, como à procura do eixo. O bosque mantinha sua pesada capa de silêncio, de
cumplicidade oficial semelhante à do carrasco. Árvores se sucediam, aparentemente iguais e com os mesmos frutos, como
que dispostas em fileiras disciplinadas — um exército verde, de
muitos galhos e ramagens que às vezes se entrelaçavam, em cima
filtravam raios de sol, transformando-os em réstias douradas de
poeira reunida. De vez em quando as árvores estremeciam, se
uma lufada de vento brando soprava por entre troncos — e em
vez de estender-lhe ramos, quais braços dispostos a tirá-lo do
abismo, retrocediam, alheias, indiferentes.
“Onde estou?”, ele se indagava. “Como e por que cheguei
aqui? O que quero?” Nunca estivera ali, naquele lugar em que
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
nenhum toco crestado, nenhuma jaqueira ou laranjeira com o
chão em volta coalhado de frutos podres, que atraíam enxames
de insetos, nenhuma trilha, por mais débil, se anunciava. O pior
de tudo era não ter certezas. Como se ele não se tivesse movido
com seus próprios pés; como se algo, um encantamento, um
bruxedo o tivesse arrastado e desarvorado.
Os caminhos lhe pareciam até então convidativos. Engano, engodo. Convinha-lhe doravante não se deixar enganar. Andar, sim, e para a frente, mas de olhos no chão, nos lados, sem
esquecer a retaguarda. Mas toda essa precaução não lhe tiraria a
espontaneidade, porventura o susto, o sabor doce ou ácido das
descobertas? Estar sempre de prontidão, de armas engatilhadas,
decerto seria um desconforto a mais ao ingressar na vida adulta.
A pulsação aumentava, o sangue ora lhe tingia a face ora
refluía, deixando-a vazia, exangue. Um bolo subiu à garganta,
à boca, em forma de soluço. As pernas vergaram, ele mais que
tombou ao sentar-se numa pedra hostil, com arestas. Veio então
a dor da carne agredida — a prolongada dor dos martírios físicos, das torturas. Ergueu-se e arriscou uns passos, já não percebia direito em que direção. Mais tarde, muitos anos depois, talvez
decabelo encanecido, ele pensasse: “Que importam os rumos?”
Perdido. Só então entendeu que aquela história de meninos proscritos na mata e nos becos infectos das grandes cidades forçava a reclusão na cama, pedia a chegada veloz do sono,
como anteparo, e durante o dia mantinha os peraltas à vista da
casa. Confiados nela, no freio do medo, as pessoas mais velhas
se entregavam às suas tarefas habituais, certas de que os meninos
pisariam sempre dentro do circulo familiar.
Mais à dianteira de sua vida, na fase em que começava
a se sentir maduro e tinha o secreto temor de apodrecer antes
de ser colhido, ele haveria de pensar: “O que de fato é cegueira?” E, depois de curta reflexão, nova pergunta: “Quem é
mais cego? A velha Joana que andava quilômetros no meio dos
bosques, em busca de esmolas de alimentos — feijão, arroz,
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
carnes, farináceos, ovos frescos de galinha— ou eu, menino
que fui e de apurada visão?”
Tinha dúvidas, sempre as dúvidas próprias de quem aprendera e se habituara a pensar. E, por isso, quisera descobrir: correr cortinas, abrir janelas, devassar reposteiros, projetar imagens
claras em tela escura, empurrar portas e sacudir aldravas. Dúvidas se acumulavam, eram prenúncios certos de falências que não
conseguia evitar. Algumas vezes, poucas, de inesperadas alegrias.
Tropeçou, porque tinha a vista borrada e, ademais, avançava com o ímpeto do desespero. Perdido, completamente perdido, sem cão-guia e com apenas um canivete fraco — e, pior
de tudo, criança, a criança que então era. Lembrou-se com uma
nitidez de relâmpago (os anos avançavam, ferozes, e a imagem
se iluminava mais) de haver caído e rolado e ralado a pele. Estava
numa ladeira íngreme a que chamavam tombador. Um tombador no exato coração do ermo, expectativa de tombos e ossos
fraturados, mas, por enquanto, nenhuma penitência, salvo a solidão. A solidão das solidões, aquela que mais grita e que mais dói.
Ao se recobrar, depois de alongar as pernas e apalpar-se
aos poucos, como quem quer adquirir confiança no resgate, ele
sentiu que baixava a calma, a bonança, a sensação de alívio após
a tempestade, qualquer tempestade, atmosférica ou cerebral.
Que mais desejaria de melhor? Estava inteiro, continuava vivo.
Uma lassidão o percorria, o peito arfava como os peixes tirados
da água ou o papo de camaleões expectantes. Agarrou-se a uma
árvore, e, dessa vez, o vento agitou as árvores; uma destas, dobrada, abraçou-o pelos ombros, aspergiu um perfume ora doce
ora ácido.
Enlaçados estiveram algum tempo, enquanto durou o vento. Envergonhado, porque sentia que havia crescido, pelo menos
de entendimento, ele soltou-se da árvore, devagar. Livre, outra
vez só, e mais seguro, olhou o bosque.
O suor borrava os olhos. Limpou-os com as costas das
mãos. E a partir de então, por indícios que se juntavam e se
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
completavam, como num jogo de armar, iniciou-se o processo
inexplicável, quase milagroso do reconhecimento, da identificação. Uma voz disse-lhe, do fundo das entranhas, que ele já
estivera ali, com o pai, um dia, algum dia.
E é então que ele sai da sombra para a luz, do ermo para
o sítio povoado. Já não estava sozinho, à mercê de animais de
presa e de duendes. Emergiu de um recanto da paisagem sempre
igual e monótona na sua aparente diversidade — e tudo se fez
bom e aconchegante. Era como se houvesse escapado pela boca
desarrolhada de uma garrafa. Era a muda imagem estarrecida
no celuloide que, de súbito, se movimenta na tela. Algo o fizera
germinar ou reverdecer. Do brutal medo primitivo ele passara
ao medo normal do mundo compartilhado.
Firmou os olhos. Firmou os pés, pisou enfim no caminho
já trilhado, já conhecido, e este levava à sua casa, às brasas no
fogão de lenha. Era o filho pródigo de si mesmo.
Foi a mãe que primeiro o viu parar, indeciso, constrangido, à porta. Escurecia, a tarde penumbrosa recortava o menino,
como se esboçado em traços toscos numa cartolina encardida.
A mãe correu para ele, com uma exclamação surda em que invocava um santo de sua devoção.
“Onde estava?”
“Não sei direito”, ele disse.
“Seu pai já deu três batidas circulares. Não ouviu os berros? Estava surdo? Pois eu ouvi daqui!”
“Mãe...”
“O que foi? Cobra? Marimbondo? Está ferido?”
“Eu me perdi.”
“Correu e se ralou todo, não foi?”
O pai entrou pelos fundos. Ao vê-lo, troca a preocupação
pela ira.
“Ah, o moleque voltou! Quem trouxe?”
“Ninguém. Veio sozinho.”
“E por onde andava?”
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
“Nos matos. Perdido.”
O pai avança. Segura-o pela gola, com a mão esquerda
levanta-o. A outra mão sobe espalmada, para tapas na cara.
A mãe intromete o corpo entre ambos.
“Não”.
“Arreda! O moleque fez estripulia, precisa de exemplo”.
“Ele já foi punido. Veja a lama, os lanhos. Está mais pálido
que defunto.”
O pai baixa a mão, larga-o com um safanão que o derruba.
“Filho mimado, arrependimento dobrado”.
A mãe leva-o para o banho de bica, nos fundos. Pendura
a toalha, dá-lhe o sabão. Mas ele, mudo, de olhos baixos, não faz
gesto de quem vai se desnudar.
“Antes tomava banho comigo”, ela diz. “Eu o esfregava.”
Ele não responde.
“Agora adquiriu pudores. Quem ensinou a ter vergonha?
A caapora?”, pergunta com um sorriso de mofa. “Ou teria sido
a cunhã — a iara dos regatos?”
Ele continua mudo e parado.
“Então, tome banho direito. Vou fazer a janta. Como quer
o seu ovo? Frito?”
“Aberto n´água.”
“Está certo. Aproveito o caldo temperado, faço pirão.”
O menino lava os vergões. Livres da sujeira, eles se destacam na pele clara, vermelhos, iguais a riscos de arame, a cortes
superficiais de lâmina cega. “Não vou gemer”, promete. “Não
vou querer bálsamo.” Ossos doem nas articulações, pernas parecem perras, costelas asfixiam. “Não vou gritar”, prometeu antes
dos furos de agulha da água fria.
Sufocou gritos quando a mãe, depois da janta, fez curativos com uma pasta que ardia. Tremeu, no entanto, e chegou a
retrair o corpo. “Dói?”, perguntou a mãe. “Não.” “Tem certeza? Comigo, para que fingir?” “Tenho.” “Está bem”, ela conclui com um suspiro. O bálsamo — porque era ele mesmo, o
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
remédio leniente, que logo trocava a ardência por um refrigério
de hortelã. Já então o sono insistia em se fechar sobre as pálpebras, do mesmo modo que a noite se fechara sobre casas, sobre
árvores, bichos, campinas e charcos do vasto mundo. Passam
pelo corredor escuro para o quarto em que ela o deixa.
O menino dormia só.
A vida, ele pensaria mais tarde, e mais de uma vez, se assemelha a um corredor, claro ou escuro, acolhedor ou refratário,
que temos de percorrer. Dele saem portas, umas se abrem a um
simples roçar de dedos, outras resistem a ombros e pontapés. Às
vezes, se abertas revelam o nada — alçapões sem fundo e trevas. A David Balfour, personagem de uma história com quem se
identificava, a porta logo mostrou uma escada que o tio avarento
e usurpador mandou-o subir em noite de trovoada e relâmpago.
Faltavam degraus, a noite era positivamente de breu quebrado
ocasionalmente pelo clarão do raio.
De chambre — uma camisola de algodão que lhe chega
à metade das coxas — o menino volta, agora sozinho, ao corredor. É arrastado pela ânsia de saber, da mesma forma que,
na tarde daquele mesmo dia, se havia perdido nos bosques dos
arredores. Leva um toco de vela acesa grudado pelo próprio espermacete no centro de um pires desbeiçado. A chama vacila,
inclina-se, ameaça extinguir-se, deixando atrás de sua efêmera
efetividade um rastro de cera derretida.
O menino está deitado, o menino dorme, e, no entanto,
entra no corredor que costuma atravessar correndo à noite. É
sonâmbulo? Acaso sonha? A luz da vela projeta sua imagem trêmula nas paredes, no chão – imagem alongada, de adulto, agora
ele está de barba cerrada. Cresceu de repente, e isso o assusta,
porque talvez não desejasse crescer. O corredor tem portas fechadas. Força a primeira. A chama da vela é açoitada para mais
adiante, até à borda do poço, pela escuridão. Empurra a segunda
porta — e encontra o vazio. A terceira mostra degraus que descem talvez a um porão.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Resta uma.
A casa está silenciosa. Apenas a pêndula bate, no salão,
a seca pancada da guilhotina no cepo. Do pai e da mãe sequer
ouve o ressonar. Um desses quartos é o deles. Seria então aquele
— o da última porta, que se abre aos poucos, sem ranger. Um
sopro de vento entra por uma frincha na parede e apaga a vela.
Salvador, 12 de maio de 20131
Hélio Pólvora, nascido em Itabuna, Bahia, é um dos principais contistas da literatura brasileira. Várias vezes premiado nesse gênero, duas
vezes pelo Prêmio Bienal Nestlé de Literatura Brasileira, em 1982,
com O grito da perdiz,, e em 1986, com Mar de Azov, a ponto de ser impedido de concorrer uma terceira vez, pode ser visto, por suas técnicas
narrativas e recursos de linguagem, como um dos inovadores do gênero, no Brasil. O conto aqui publicado é inédito. Ver artigo “O Conto de Hélio Pólvora — Uma visão de conjunto a partir do primeiro
livro”, nesta revista. Desde 1994 ocupa a Cadeira número 29 de ALB.
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ALÔ, SOLIDÃO!
Gláucia Lemos
N
o edifício em frente havia um senhor que cuidava dos
passarinhos. Suponho que era aposentado. Tinha cabelos
brancos e compleição franzina. Caminhava devagar, mas seus
gestos eram precisos e cuidadosos. A julgar pelo que eu observava, ele criava os passarinhos.
Todas as manhãs, enquanto eu estava regando a jardineira
da minha varanda, via-o no seu quinto andar, à altura do meu,
alimentando-os. Observei que os passarinhos viviam soltos, não
havia gaiolas nem telas limitando a liberdade dos bichinhos. O
homem espalhava a ração sobre o parapeito da varanda, e uma
infinidade de aves pequeninas vinha não sei de onde e pousava
diante dele, inquietamente bicando os grãos de alpiste. Eram rolinhas e outras de tão pequeninas quanto elas. Todas as manhãs.
Havia alguma coisa poética naquela cena, que se completava com a presença de piotas pendentes do teto, em volta das quais,
agitando vertiginosamente as asas, esvoaçavam beija-flores.
Nunca vi outras pessoas habitando aquele apartamento.
Sequer transitando pela varanda. Ele movimentava-se rodeado
de pássaros, enquanto eu regava minhas plantas no meu espaço.
Contemplava-o por longos minutos, gozando o direito da
invasão sem culpa, e me recolhia a meus afazeres que eram muitos, na minha responsabilidade de mãe de três filhos em idade
escolar, dona de casa sem empregada, mulher casada com piloto
em intermináveis vôos pelos céus do mundo, e tão poucas vezes
voando em direção a casa. Aquele velhinho, ao longe, começou a
fazer parte da minha vida. Poderia ser meu pai. Se um dia não o
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
encontrava alimentando os pássaros, ficava preocupada. Estaria
doente? Teria mudado de endereço? Quem alimentaria os passarinhos na sua ausência? Naqueles dias, a cada intervalo entre
o tempero do arroz e o alarme do forno, corria à varanda a ver
se estaria de volta. Até que, mais tarde, ou no dia seguinte, ele lá
aparecesse, para minha tranquilidade.
Nisso passaram-se meses sem conta, talvez um ano ou
mais não posso precisar, vivendo a mesma rotina.
Uma tarde, concluída a jornada diária, enquanto descansava a esperar a hora para apanhar as crianças no judô, eu cochilava em cima das páginas de Hemingway, que estava sendo
a minha companhia do momento, na absoluta falta de alguém
com quem conversar. Com Hemingway eu andava frequentando, bares e estações ferroviárias e praças de touros, sem o menor preconceito, entre bêbedos, marinheiros e prostitutas, de
Madri a Paris em noites e mais noites inteiramente etílicas. E
considerando muitas vezes, como seria que Hemingway conseguia compor todas aquelas histórias de pé, com a máquina em
cima de um armário...
Então soou a campainha da porta. Que visita estaria chegando sem prévio aviso... Seria o zelador para medir o gás.
Com má vontade espiei pelo olho mágico da porta de serviço. Não era o zelador, nem reconheci a pessoa. O hall não
estava bastante iluminado. Deixei a área de serviço, encaminhando-me à porta da sala, censurando, em silêncio a portaria, por
não ter avisado sobre a chegada de alguém.
Torci o trinco. Um senhor de cabelos inteiramente brancos, brancos como talco, estava de pé, olhando para o meu rosto,
com olhos miúdos e brilhantes, olhos de uma cor quase dourada, e um sorriso que não se completava. Desenhava-se quase imperceptível na boca pequenina. Seu sorriso quase pedia licença
para sorrir.
— Boa tarde — cumprimentei, e sorri também.
Tenho medo de desconhecidos, mas vendo-o tão frágil,
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
pequeno, parecendo indefeso, não senti receio, o sentimento era
de quase proteção.
— Quem o senhor procura?
Ele desvelou o sorriso retido, com dentes pequenos e
brancos, dentes infantis.
— A senhora mesma. Sou seu vizinho, do edifício em
frente.
Então o reconheci. Meu Deus, é o velhinho dos pássaros.
— Pois não? Sei. Pode entrar, faça favor.
Ele entrou, seus passos eram suaves. Sentou-se no sofá
em frente a mim, discreto, parecendo tímido.
— Esteja à vontade — animei-o.
Então começou:
— É porquê... Vejo sempre a senhora regando as plantas
pela manhã. Fico observando o empenho com que cuida delas.
São tão bonitas. Fiquei curioso.
— É verdade. Eu gosto de plantas, cultivo flores.
— Eu também gosto. Mas não tenho jardineira. Cultivaria
crisântemos. Se pudesse.
— Pode vir vê-las. É só um canteiro. Gostaria de ter maior
espaço.
Levei-o até a varanda.
— Aqui são begônias. Begônias vermelhas. Quando
abrem as corolas demoram muito para secar, às vezes aturam
abertas até dois meses, a depender do cuidado.
— Demoram tanto assim? Por isso que estão sempre floridas. Parecem rosas, lá da minha varanda pensei que eram rosas.
— É verdade. Parecem um buquê de rosas pequenas. Mas
para mantê-las assim é preciso cuidado, nunca molhar os caules.
São frágeis. Já os hibiscos só duram vinte e quatro horas. Murcham em um dia. Não me animo a cultivá-los.
— As plantas são como as pessoas, cada uma com seus
caprichos.
— Ou seus problemas — completei.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Ele concordou confirmando com a cabeça.
Voltamos para a sala, ele se sentou no mesmo lugar. Nunca notara que ele me observava, era eu quem o contemplava com
seus passarinhos. Procurei ser gentil.
— Posso servir um café, aceita?
— Aceito. Mas não quero incomodar, é só uma visita.
— A visita me alegra. É uma novidade para mim.
Fui para a cozinha. Rapidamente retornei com a xícara
fumegando café solúvel. Ele tomou lentamente enquanto falava.
A voz era mansa como um chuvisco.
— A senhora gosta de passarinhos?
— Muito. Sempre fico olhando o senhor cuidando dos
seus. São muitos, não é?
— Muitos. Mas não são meus. Sou o copeiro deles — ele
riu divertido — não sei de onde vêm. Espalho alpiste e eles aparecem.
— E os beija-flores?
— Os beija-flores são uma estratégia. Ponho mel na água
dos caqueiros e eles vem beber. Não sei como é que ao longe
pressentem a presença do mel.
— Mel?
— Sim, mel de abelhas. Compro especialmente para eles.
Eu não como mel, é açúcar, mas eles não têm restrições, acho
que é porque ainda não têm a minha idade...
Ria enquanto falava. Rimos juntos.
Então levantou-se e me entregou a xícara com um resto
de café.
— Obrigado. Vou embora. Venha lá em casa amanhã para
ver os passarinhos se alimentando.
— Está bem. Obrigada pela visita. Vou ver os passarinhos
amanhã quando deixar as crianças na escola.
Abri a porta, ele saiu como chegara, suavemente. Voltei
para dentro com um resto de sorriso. Eu iria ver os passarinhos,
iria sim.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Fui.
Entrei para uma sala quase vazia de móveis. Uma arca colonial junto à parede. Acima, em contraste, imensa tela bastante
colorida com pintura de motivo abstrato. Havia uma cadeira de
balanço austríaca, ao lado de um revisteiro abarrotado, em frente à TV de 33 polegadas. Persianas na porta larga envidraçada
deixavam penetrar uma claridade frouxa, que não chegava a se
espalhar pelo espaço da sala.
O velhinho sorriu ao me ver, e me conduziu à varanda.
Rolinhas e outras aves miúdas bicavam o farto alpiste espalhado no mármore do peitoril, indiferentes à minha presença e
ao ininterrupto rumor dos carros que transitavam lá embaixo.
Permanecemos ali, em silêncio, para não afugentá-las. Ele tinha um olhar carinhoso para as aves, quase paternal. Alguns
minutos e voltamos à sala onde tratei de me despedir, sem que
ele concordasse.
— Não se apresse. Tenho que lhe servir alguma coisa. A
senhora toma chá?
— Não se preocupe, eu tenho que ir.
Ele, porém, já se dirigia à cozinha falando enquanto caminhava.
— Nunca recebo visitas, por isso não preciso de cadeiras. Só utilizo o sofá. A faxineira quando vem também não
precisa de cadeiras. Sente-se aqui mesmo na cozinha. Moro
sozinho, sabe? Minha mulher morreu há muitos anos, meu filho pouco me visita, não tem tempo, o trabalho, a família. Só
me telefona. Isso quando sobra tempo. – Fez um sorrisinho
condescendente.
Havia uma bancada de cozinha americana. Sentei-me em
um banco alto, enquanto ele preparava um chá que tinha o cheiro bom de canela, e serviu duas xícaras de friso doirado. Uma
colocou em minha frente e começou a tomar da outra. Em silêncio, os dois. Eu não sabia o que falar. No ar pairava uma
cumplicidade. Ele sempre sorria, um sorriso brando, parecendo
►► 261
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
contente, os olhinhos de ouro brilhando entre as pálpebras rugosas. Quando terminei descansei a xícara em cima da bancada
e me levantei.
— Agora preciso ir. O chá está muito gostoso, o senhor
sabe preparar um ótimo chá. Obrigada por me convidar. Quando quiser, pode ir ver minhas begônias. Agora, porque o senhor
me falou deles, estou pensando em plantar também crisântemos,
o senhor gostará de vê-los. Pode ir ver quando quiser, é só avisar.
Faça um sinal da varanda.
Fui saindo. Ele me acompanhou até a porta e recomendou:
— Cuidado com a porta do elevador que às vezes fica
travada. O perigo do poço!!! Esta semana eu escapei por pouco,
quase caí. Volte outro dia, não precisa avisar não, eu só saio para
caminhar muito cedo. O resto do dia fico em casa. Vou esperar
a senhora.
Acenei e entrei na cabine, para o que tive de desemperrar
a porta que não fechava.
— Por que não consertam esta porta? — pensei. Alguém
ainda pode cair.
Fiquei com o velhinho na cabeça. Amanhã na varanda
vou acenar para ele. Enfim muda alguma coisa, tenho um amigo para me sorrir e apreciar minhas flores. Que velhinho mais
simpático!
Dia seguinte fui cumprir minha rotina. Regador na mão
rumei para a jardineira. Ele ainda não estava na varanda. Demorei mais tempo cuidando do canteiro, arrumando um espaço
para as mudas de crisântemos — que iria buscar naquele fim de
semana — enquanto esperava para vê-lo chegar a alimentar os
pássaros. Ele não veio. Passei a manhã inquieta, espionando a
pequenos intervalos. Não apareceu naquele dia. Nem no outro,
nem no outro.
Nunca mais o vi. Todos os dias eu olhava o apartamento
vazio onde ninguém transitava. Comecei a ler o segundo volume
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
dos contos de Hemingway ao lado da jardineira, para melhor
observar a chegada do amigo, que nunca mais retornou.
Pouco a pouco os pássaros abandonaram a varanda.
Eu desisti de cultivar crisântemos.1
Gláucia Lemos é graduada em direito e pós-graduada em crítica de
arte. Trabalhou em jornalismo escrevendo críticas de arte e resenhas
literárias em jornais de Salvador, Maceió, São Paulo e Aracaju. Tem
publicados mais de trinta títulos em literatura adulta e infanto-juvenil.
Entre suas obras, encontram-se os romances premiados O riso da raposa (1995), A metade da maçã (1988), As chamas da memória (1990), e Bichos
de conchas (2007). No conto, publicou, entre outros, Procissão e outros
contos (1996). Entre seus vários sucessos na literatura infanto-juvenil,
destaca-se o livro As aventuras do marujo verde, já na vigésima sexta edição. Desde 2010 ocupa a Cadeira número 14 da ALB.
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SISINA
Carlos Ribeiro
E
stou em pé, de frente para o sol que cai pouco a pouco por
detrás dos morros a Oeste. Esta paisagem lembra-me gravuras da enciclopédia Larousse du XIXe siècle, do meu pai, que me
fascinava muito, quando eu, ainda criança, enchia os olhos com
as montanhas, com as montanhas que jamais tornei a ver novamente, mas que as vejo agora refletidas nessas nuvens. Eram desenhos sobre os continentes, lembro-me bem: a África com seus
leopardos e crocodilos que me olhavam e me desafiavam do fundo sombrio e negro; a América e seus índios e suas florestas e suas
geladas paisagens da Patagônia e aquele mar diante do qual tudo
terminava para dar lugar ao desconhecido gelo do Sul; a Europa
e suas cortesãs e seus exércitos e sua história que se impôs sobre
o mundo e que trago aqui comigo; a Ásia e seus tigres e dragões
e suas misteriosas serpentes e odaliscas e suas danças-do-ventre e
seus pecados e suas tribos de beduínos e seus camelos e desertos e
oásis; a Oceania com seus pigmeus e cangurus, com seus arrecifes
e guerras desconhecidas. Tudo isto está aqui, diante de um velho
para o qual custa erguer os olhos cansados, da mesma forma que
estavam para o menino que, no apartamento ilimitado de um sonho atravessava o corredor perseguido pelos watusis e cherokees
e do alto do guarda-roupa lançava suas flechas envenenadas.
Veja, meu amor, a claridade doce e luminosa desta tarde.
Ela também está no final desta história, ou, melhor dizendo, no
final deste capítulo. Dê-me sua mão... venha... devagar. O futuro
também é nosso...
— Mas o que digo agora, eu, parado no fundo do quarto,
próximo ao guarda-roupa negro e sombrio que parece guardar
►► 265
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
ainda aquelas minhas roupas da infância, aquele pijama com bolinhas azuis, lembra? A minha infância tem dessas coisas assim
delicadas, pijamas e lagartas de fogo e lagartixas e fogueiras que
acendia como acendiam também os patagões para se manterem
aquecidos nas longas noites de inverno, ou nos longos dias de inverno, como se pudesse manter mesmo acesas eternamente aquelas fogueiras, aquelas fogueiras, meu amor, que são como esses
seus olhos que mantém acesa essa ternura, agora partida, moída,
rompida, completamente destruída mas ainda assim viva, como
se dependesse de ti esse poeta francês que só consegue murmurar
este teu nome: Sisina. Veja, pois tal é a Sisina, amiga noturna que
encontro sob as folhagens, Sisina, guerreira destemida que em sua
couraça ousa desafiar a verdade. Vem, amor, que de mim despenca
ao abismo a doce voragem de saber que não serás minha, enquanto sobre ti exercer este jugo; vem... Mas, tal como o poeta maldito,
também sei ultrapassar os umbrais, e diante do corvo enrijecido,
na floresta petrificada, diante do castelo sombrio e triste, te evoco
como a uma pomba que voa sobre os telhados enegrecidos da fuligem das fábricas de Yorkshire. Vem, Sisina, que meu amor é como
o mar largo, como mar que transporta heróis e monstros e mitos;
e, como o cavaleiro negro do conto de Kleist, também cruzarei
os ares no meu alazão, mergulhado em pensamentos tristes, em
pensamentos de distâncias. Sisina, Sisina, que posso pensar que
nem mais existes, porque o mundo lhe diz não quando fecha suas
portas ao passado, àquele passado que me visitava no antigamente
que hoje se reduz a um improvável sonho. Sisina, doce combatente, de alma feroz e indulgente, que se mostra e chora ante quem
o merece, amor, por que jamais te vejo sem que em mim alguma
coisa se cale? Diante de ti, sou um menino, apenas, que como
o poeta, lhe tece loas – doce leoa, guardiã do futuro que jamais
acontecerá, diva, amiga, irmã, algoz, desembainhe sua espada e
corte esta dor que me corta e me fere sem que eu mesmo saiba
por que, oh maga jubilosa, rainha dos temporais, lance-me, laceme, mate-me, que sem ti essa vida é uma ausência, capitã das naus
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
destemidas, linda dama das cortes do meu coração, Sisina, Sisina,
e eu nem sabia que sequer existias, e para que me foste revelada
se já nem posso mais viver sem ti? Heroica senhora da França,
de uma França que só existe em mim, de uma França que lança
raízes nesta tristeza, duelos e rimas e homens gentis, és a Senhora
da minha Civilização que agora decai e tomba como um gigante
que atravessa as eras para cair aos teus pés, Sisina, Sisina, sei que
nem posso mais cantar-te, porque me falta essa doce flauta que é
apanágio de todos os poetas que como eu se calam pela simples
impossibilidade de dizer.
— O que fazes aí neste canto, menino?
A mulher aparece na porta do quarto. Ela tem uma voz
enérgica e posso jurar mesmo que se trata de alguém que me
ama, e que por isso mesmo faz essa pergunta com palavras que
cortam o ar fino da tarde, dessa tarde remota, dessa tarde longínqua na qual me estiro no chão para ler aquela história do cão
invisível, do menino invisível, e que por ser invisível me parecia
tão triste, oh meu Deus, que poderei dizer àquela mulher sem
fazê-la ver que não existo? Mas ela também parece ser um fantasma que me olha com irônica compreensão e que parece achar
mesmo que não vale a pena penetrar nessa fantasia, nesta fantasia desse sonho que, entretanto, me parece tão real!
— Mãe? — consigo dizer finalmente, mas ela já não me
ouve, deu meia volta e saiu do quarto, do quarto mês do ano de
1962, quando o Brasil ainda tinha aquele ar de coisa antiga, um
país em preto-e-branco de homens vestidos com camisas e calças
claras que pegam o bonde e vão pelas ruas, pelas calçadas, ouvindo notícias e jogos de futebol nos seus radiozinhos de pilha, e
posso ver o meu pai assim caminhando pelas ruas com sua camisa
meio pra dentro e meio pra fora da calça e seus cabelos desarrumados pelo vento que sopra naquela tarde em que os coqueiros
se agitam na orla marítima onde uma antiga casa na forma de um
barco tem um ar cansado, um ar de encalhe, e a cidade de Salvador tem ainda aquele ar de mistério que caía bem, muito bem, nas
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
histórias de Vasconcelos Maia, escritor de grande valor e relativa
glória, e seus livros estão sendo esquecidos hoje em dia pelas gerações mais novas, e andar pela avenida sinuosa à beira mar é como
uma espécie de evocação, estás ouvindo? Evocação de remotas
marés cambiantes: e aqui ainda não sopra aquele vento do norte
que virá trazendo homens e mulheres maltrapilhos com seus violões amando amando nas praias, sobre as dunas, e aqui me divido
entre esses dois tempos, meu Deus como sou ao mesmo tempo
conservador e libertário, eu sou aquele que viaja sobre as colinas
diante do sol que se põe, e que enquanto volta todas as noites
para o seu lar, onde o espera uma mulher e uma filha pequena,
tão querida e amada, e que tem os cabelos curtos e um ar cansado
de quem trabalha um pouco demais, também se lança com suas
barbas e cabelos longos On the road pelos caminhos do interior
do país e quem sabe também lá, naquela casinha do campo se
verá novamente diante de um filho e de uma mulher, uma garota
tímida, que entretanto não quis casar contigo, meu amigo, forçando-te a abandoná-la, logo tu que tanto a amava. Aquela casinha da
música do Taiguara e aquele portão de madeira da capa do disco
de Taiguara parecem-me agora tão distantes, embora possa ainda degustar um pouco daquele sonho, enquanto sinto a força do
Tempo e todos aqueles sonhos que tive e tenho de um mundo de
Paz. Veja, lá estou eu consertando as portas do templo do Serenita, enquanto construo a fogueira que me parece verdadeiramente
uma obra de arte na sua rústica simetria. 1
Carlos Ribeiro é jornalista, escritor, pesquisador, ensaísta e professor do curso de jornalismo da Universidade Federal do Recôncavo
da Bahia (UFRB). Tem diversos artigos, ensaios, reportagens, e treze
livros publicados, dentre os quais o romance Lunaris (2007), Contos de
sexta-feira (2012) e o ensaio Rubem Braga: um escritor combativo — a outra
face do cronista lírico (2013). Desde 2007 ocupa a Cadeira número 5 da
ALB.
O texto aqui publicado integra o romance Noites desertas, ainda inédito.
268 ◄◄
OS PASSARINHOS SÃO OS MESMOS
Mayrant Gallo
O
ônibus parou na rodovia, e um rapaz desceu, uma pesada
mochila nas costas. Pequeno no acostamento, olhou para
um lado e outro, enquanto o veículo se afastava e por fim sumia,
dois olhinhos vermelhos somente, na escuridão. Do outro lado,
a distender-se no vale, silenciosa, a cidade era uma massa de luz
tênue e amarela. O rapaz atravessou a pista e desceu em direção
às primeiras casas. Para além da cidade, mais luzes tremulavam
sobre o mar.
Era tarde, e ele não encontrou ninguém. Nem um bêbado.
Muitas casas já estavam às escuras, e as ruas desertas pareciam
sonhar, alheias a qualquer movimentação. Edu caminhava indeciso, mas, mesmo assim, muito menos hesitante do que imaginara. Oito anos longe não são oito dias. Estava agora com vinte
e sete anos e não possuía mais a vitalidade de antes, quando
partira. O entusiasmo então, quase que o perdera por completo.
Sobretudo depois que soube da morte do pai...
— Morreu? Morreu como? – perguntou à mãe.
— Há duas semanas...
— E a senhora nem me ligou...?
Dias mais tarde ele decidiu que voltaria. Que iria ver a
mãe, sozinha agora, na grande casa no fim da rua. Durante a
viagem, pensou na Rural, o velho carro do pai. Ele nunca mais o
mencionara. Será que ainda existia? Era bem provável que não.
Ou se transformara em ferro-velho ou estava na garagem de
algum rico colecionador, imóvel.
— Como o pai morreu? — perguntou, pelo telefone, da
estrada.
►► 269
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
— Dormindo. Gemeu, pensei que estava sonhando, mas,
de manhã, quando o toquei, estava frio como uma porta de
geladeira...
Ele ficou sem saber o que dizer. Morrer dormindo.
Transporte de um estado sereno a outro, mais profundo. Talvez esta fosse a melhor das mortes. Completamente indolor.
No ônibus, enquanto a paisagem fugia, lembrou-se de sua infância, de seu pai, de sua habilidade com as mãos, o gosto de
consertar qualquer coisa e também de montar brinquedos, que
chegavam pelo correio em grandes caixas: o Titanic, o Concorde, outros. Por que partira, oito anos antes, se tinha tudo, um
lar, o amor dos pais, a atenção necessária pela qual reclamam
os jovens rebeldes? Simplesmente porque é preciso devorar
horizontes, chegar a algum lugar, estar consigo mesmo, sob
seu próprio teto e controle.
Antes de alcançar a casa, ele avistou a luz da varanda, e
a mãe, de pé, à sua espera. Emagrecera tanto, que, mesmo de
longe, era possível sentir a fragilidade de seu corpo. Quando
ele a abraçou, sentiu-lhe tão exíguas as carnes, de uma matéria
tão frágil e débil, que foi como se a colhesse em seu peito para
sempre, fundindo-a aos seus músculos, soldando-a aos seus
ossos.
O dia o surpreendeu em seu antigo dormitório. A mãe
já se levantara e mexia e remexia na cozinha. No ar, o cheiro
bom de café. Foi isso, aliás, que o despertou, não os ruídos de
pratos e talheres e panelas, que a mãe, meio surda, sacolejava na
manhã. Edu passou do quarto direto para o quintal, nos fundos,
ignorando o resto da casa. Procurava o carro, a Rural, sobre cujo
destino, na noite anterior, esquecera-se de perguntar à mãe. Ainda existiria? A mãe o viu passar pela lateral da casa em direção
à garagem. Sabia o que ele buscava e apenas sorriu, enquanto
despejava o café na garrafa térmica.
A garagem estava trancada, sinal de que a Rural se encontrava ali, intacta. Satisfeito, Edu sorriu e, ao se virar, avistou um
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
rosto, que o fitava por sobre o muro. Léo. Seu amigo de infância.
Desde que o pai de Edu morrera, que Léo vinha todas as manhãs e ficava ali, parado, atrás do muro. A mãe de Edu, quando
o via, apenas balançava a cabeça. Mas Léo sabia que o amigo
voltaria, mais cedo ou mais tarde, ainda que fosse só por alguns
dias, para revirar as coisas do pai... Aquele carro, por exemplo.
Uma raridade na região e talvez em todo o estado.
Os dois se abraçaram, forte e demoradamente. Depois,
sentaram-se nos degraus da varanda e ficaram conversando.
Uma pequena revoada de passarinhos invadiu o quintal, trinando. Faziam ti-ti-ti, num alvoroço ensurdecedor. Catavam qualquer coisa pelo quintal, os farelos de pão que a mãe de Edu
jogara logo cedo, ao começar a batucada na cozinha.
— Os passarinhos são os mesmos – Edu comentou.
— São sim — Léo assentiu.
Havia entre eles uma barreira de oito anos e algumas mudanças. O fim do gosto pelos quadrinhos. O fim do prazer de
ouvir rock. O fim da insegurança diante das mulheres, substituída por uma petulância carnal. E isso era mais do que suficiente
para silenciá-los. Súbito, ocorreu a Edu perguntar pela família do
amigo, em especial por sua irmã...
— Como você, Diana foi embora. Deu um basta a essa
cidade estúpida.
Da porta da cozinha, a mãe de Edu os chamou para tomar café. Na mesa, o assunto do carro veio à tona, e a mulher
garantiu que a Rural estava sim lá dentro, na garagem, embora
não soubesse, não mesmo, por onde andava a chave do enorme
cadeado.
— Nem provavelmente da ignição... – Edu frisou, rindo.
A mesma força rebelde que o impulsionara para longe o trouxera de volta.
Por algum tempo o café prosseguiu em silêncio. Até que
a velha disse:
— Foi por isso que você voltou? Pelo carro?
►► 271
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Léo tentou interceder, conciliador, antes que a batalha entre mãe e filho, constante no passado, se reinstalasse. Edu ignorou a interferência do amigo e falou, sem convicção, mas em
tom de desafio:
— Acho que sim. Foi. Foi pelo carro.
Não era o que a viúva pretendia ouvir, e por isso ela se
levantou e começou a desfazer a mesa. O pão, destroçado, ficou sozinho entre os farelos. No ar, o odor de café era só uma
lembrança, uma nódoa. Ela ainda não começara a lavar os pratos, quando os primeiros golpes de machado fizeram-se ouvir na
porta da garagem. Lamentou-se então por não ter feito o serviço
completo e enterrado também o carro.1
Mayrant Gallo é escritor e professor, mestre em teoria da literatura.
Foi colaborador do Correio da Bahia, publicando crônicas, contos e
ensaios. Em 2009 ganhou o prêmio Literatura Para Todos, do MEC,
com a novela Moinhos, e em 2010 o edital de criação literária do MinC
e da Petrobras para elaboração de um romance. É autor, entre outros,
dos livros O inédito de Kafka (2003) e Os encantos do sol (2013).
272 ◄◄
Discursos
À MEMÓRIA DA ACADÊMICA
CONSUELO NOVAIS SAMPAIO
Sessão de saudade
João Eurico Matta
E
m 26 de novembro de 1992, faz 21 anos, em sua admirável e poética saudação à nova acadêmica, “a quinta mulher
que aqui chega”, seu confrade, antigo professor, mas também
seu colega do departamento universitário de História na UFBA,
Waldir Freiras Oliveira, leu magistralmente o seguinte:
Permita-me, professora Consuelo Novais Sampaio, um
breve devaneio..., para dizer-lhe que, não sei por que razão,
sempre a idealizei como alguém da Grécia antiga. Talvez
como uma das suas deusas, ou uma sacerdotisa. ...Centenas
de pessoas que iam e vinham, em Atenas, ...a Acrópole...,
eu a vi ali, em meio àquela gente. Passou por mim, esguia e
altiva, envolta em túnica branca... Ouvi, então, alguém me
dizer que a mulher que passava era uma sacerdotisa do culto de Eleusis (... ... ...), dedicado pelos gregos a Demeter,
deusa dos cereais, e à sua filha Perséfone (... ...).
Eram duas as dádivas, segundo a tradição, que Demeter
concedia aos participantes do culto — o cereal, base de
uma vida civilizada, e os mistérios, através dos quais lhes
era dada a promessa de melhores esperanças... Pedindo a permissão dos meus confrades, desejo comparar a festa de
ingresso nesta Casa, da professora Consuelo Novais Sampaio, à da iniciação, no templo de Eleusis, dos seguidores
desse culto de mistério.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Por certo — senhores acadêmicos e acadêmicas e estimados filhos, familiares e amigos de Consuelo Novais Sampaio —
foi a lembrança, hoje nossa com enorme saudade, da presença
viva marcante, assertiva, daquela mulher jequieense adulta, alta,
bonita, de porte sempre elegante e bem vestida e de falar expressivo, que suscitou ao acadêmico historiador Waldir Freitas
Oliveira essa “idealização” tão forte que preferi transcrevê-la
quase na íntegra porque inspirou a este acadêmico pesquisador
do comportamento humano, que vos fala, uma outra idealização-visualização, saltando dos tempos gregos para os tempos
italianos do século XVI, os da culta e artística Florença, onde
o pintor Brozzano concebeu, num famoso retrato em tela a
óleo, as cores e o olhar ad infinitum da nobre, elegantíssima em
porte, traje e joias, florentina “Duquesa Eleonora e seu filho”
(o garoto parece Paulo Roberto em menino, estando ausente,
no retrato, a filha Andrea, esses dois que Consuelo chamava de
“meus poemas”! )
Essas lembranças-idealizações e reflexões vêm com o
propósito de ressaltar o grande ser humano, que foi, e continua
sendo em nossa memória viva, Consuelo Novais Sampaio, com
seu espírito gregário e convivial, com sua profunda inteligência
da vida social, sua sensibilidade para as artes (as pictóricas, mas
especialmente as musicais), sua generosidade e sua lisura comportamental, sua luminosa carreira de professora universitária,
dotada de refinado aperfeiçoamento doutoral e pós-doutoral,
resultante em primorosa competência profissional e copiosa
produção de pesquisadora de história. Convido a ilustre audiência a reler as onze iluminadas páginas autobiográficas que
compõem as 32 páginas da edição opuscular de seu discurso de
assunção da Cadeira número 40 desta companhia, a cujos patrono, fundador e sucessor, que a precedeu, Consuelo dedicou,
ao longo de sua vida de escritora, cuidadosos estudo, pesquisa
e publicações. Naquelas páginas é encantadora arevelação do
espírito gregário e convivial, de grande sensibilidade geográfica
276 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
e historiográfica, bem como o admirável caráter de reconhecimento e gratidão. Permitam-me ler, neste ensejo, alguns excertos dessa sua escrita-e-fala original, quando ela comenta sobre
si mesma e sua gente querida, família e professores na Bahia,
no Rio e no exterior, no cativante discurso de posse, dito na
noite de 26 de novembro de 1992:
Na base da minha árvore genealógica está a bravura, a resistência nas lutas e o amor à liberdade de uma bela índia
Cariri, cabelos e olhos negros, pegada a laço de corda por
rico fazendeiro português, cabelos louros e olhos azuis,
que dela se enamorou e com ela se casou. São os bisavós
da minha mãe, Dulce Novais. O meu pai, Alarico Sampaio
de Sousa, fazendeiro e comerciante, faleceu quando eu tinha três anos, deixando uma jovem viúva de apenas dezenove anos de idade. A ela devo hoje referir-me, por duas
razões. Primeiro, por haver, com a maior competência, desempenhado o papel de mãe e de pai. A ela devemos — eu
e minhas três irmãs, Ainda, Niva e Ieda — o que somos.
Ensinou-nos a enfrentar e a vencer a luta da vida... Viveu
para as quatro filhas. Referindo-me a Dulce Novais, presto
homenagem à mulher baiana, àquelas que, recusando-se à
acomodação imposta pelo arraigado conservadorismo da
nossa sociedade, lutam com dignidade, firmeza e inabalável crença na vida, por um mundo socialmente mais justo.
São verdadeiros instrumentos de progresso social. ...
E porque recusou-se à acomodação, tivemos, minhas irmãs e eu, infância e adolescência um tanto itinerantes...
Entre essas duas primeiras capitais do país, Salvador e Rio
de Janeiro, crescemos e nos educamos, ... enfrentando situações por vezes muito duras, às quais minha mãe fazianos compreender, explicando: ‘Crio vocês para o mundo,
não para mim!’ E assim foi: sua cosmovisão abrangente
levou-nos a romper as barreiras da província e a conhecer os quatro continentes... Frequentamos, minhas irmãs
e eu, os melhores colégios do Rio de Janeiro e da Bahia...
►► 277
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
... Em Salvador, estudamos no Colégio Dois de Julho, sob
a direção de dois renomados educadores, Mr. Peter Baker
e D. Irene Baker...
Também estudamos no Severino Vieira e, em seguida, no
Central. No primeiro, sob as mãos cuidadosas e firmes
de Armando Costa, um dos grandes educadores baianos.
Num dia de festas, escolheu-me para saudar o Prof. Conceição Menezes que nos visitava. Com a voz embargada,
pronunciei o meu primeiro discurso. — Treinava-me para
o dia de hoje? Possivelmente...
...Na minha caminhada, tive o estímulo constante dos meus
filhos, Andréa e Paulo Roberto, e das minhas queridas irmãs, Ainda Gabrielli, Niva Asoplund e Ieda Balcázar; das
minhas tias Rosália Lomanto e Nina Sérgio. Não poderia
haver chegado até aqui, se não tivesse tido o firme apoio
do meu marido Kirby Davidson...
Seguem, no discurso de Consuelo, páginas com registros
comoventes de seu reconhecimento e gratidão a “grandes mestres”
do Colégio Central com os quais “tive ahonra de estudar, como” Raul
da Costa e Sá (“fez-me respeitar a língua portuguesa”); Ramakrishna Bagavan dos Santos e Marta de Souza Dantas (“mostraram-me
que a matemática pode ser fascinante”); Inocêncio Peltier de Queiroz
(“introduziu-me nos mistérios da química”); Luis Monteiro da Costa
(“conduziu-me, pela primeira vez, ao pequeno museu do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia...”; e “a minha grande dívida é para com o mestre
Luis Henrique Dias Tavares. Ninguém exerceu influência maior e mais
duradoura sobre meu destino profissional que ele... Voltei a encontrá-lo vinte anos depois, (na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da UFBA),
como orientador da minha dissertação de mestrado, Os partidos políticos da Bahia na Primeira República: uma política de acomodação...” E seus parágrafos de louvores a outros “grandes professores”
de sua graduação em História, “na velha Faculdade de Filosofia da
UFBA, em Nazaré”, como Antonino Dias e Thales de Azevedo,
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
e nos três anos durante os quais estudou no Rio de Janeiro, “na
Faculdade de Filosofia da antiga Universidade do Brasil... no reitorado do
notável historiador Pedro Calmon”, como o “ querido professor Darci
Ribeiro (curso de Antropologia)” e os “grandes professores” Maria Ieda
Leite Linhares, Francisco Falcón, Hélio Viana e “o grande Anísio
Teixeira, a cujas aulas eu assistia quase em estado de oração”. Em seguida, os veementes louvores aos docentes do “mestrado em Ciências
Sociais da UFBA”, como os “muito saudosos Antonio Luis e Zahidê
Machado Neto”, os professores Carlos Costa e Johannes Augel,
“o mestre José Calasans Brandão da Silva...”, e “devo ainda salientar os
nomes de dois queridos amigos: Jorge Calmon e Waldir Freitas Oliveira”,
sobre os quais Consuelo tece especiais elogios, ao primeiro como
“incentivador maior das letras em nossa terra” e ao segundo: “Waldir
é, sem dúvida, um dos maiores professores que a Bahia já teve...” Nossa
confreira (que não gostava desta palavra cunhada pelo nosso
mestre acadêmico Pedro Calmon) Consuelo Novais Sampaio
conclui seu elegante rosário de gratidões fazendo o panegírico,
também, de dois professores-orientadores do seu doutoramento na The Johns Hopkins University, nos Estados Unidos: doutores
John Russell-Wood e Franklin Knight, os quais a acadêmica de
letras Consuelo Novais Sampaio proporia, nos seguintes anos
1990, com aprovação unânime dos acadêmicos, como membros
correspondentes desta Companhia; e
rendendo homenagem a três amigos: Bradford Burns, Sengen Zhang e Anne Bodeheimer. O primeiro americano, o
segundo chinês, a última alemã. A eles, fiquei devendo, no
programa de pós-doutorado realizado na UCLA, University
of California — Los Angeles, Estados Unidos, não só o
aprofundamento do meu conhecimento histórico, mas a
certeza de que a vida é luta a ser enfrentada, nunca lamentada. Ali, reafirmei a crença de que cabe a cada um de nós
fazer com que os momentos de alegria superem os de tristeza; com que o riso se sobreponha à lágrima...
►► 279
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Releiamos, por fim, a partir da pág. 13 até a pág. 32, o magistral registro histórico — para cumprir a praxe-tradição das falas de posse em cadeira acadêmica de número — que Consuelo
costura sobre o patrono da de número 40, da Academia de Letras
da Bahia fundada em 1917: o poeta Francisco Cavalcanti Mangabeira; sobre o irmão deste e fundador da Cadeira, o então engenheiro civil, professor universitário da Escola Politécnica e político vereador Octavio Cavalcanti Mangabeira; e sobre o sucessor
deste naquela cadeira acadêmica, o bacharel em direito, escritor,
empresário-administrador, professor universitário de economia e
livreiro-editor Manoel Pinto de Aguiar, predecessor, portanto, da
nova acadêmica. Esta perora sua elegante peça, na noite daquele
26 de novembro de 1992, dizendo, em tom convivial:
...Convido os amigos que hoje me honram com suas presenças a partilhar comigo a enorme responsabilidade que
pesa sobre os meus ombros, ao ter tido eu a audácia de
concordar em suceder, na Cadeira de nº 40 desta egrégia
Academia de Letras da Bahia, a dois homens que viveram
suas vidas na luta pela democracia e pela construção de
um Brasil socialmente mais justo, e cujo patrono, Francisco Cavalcanti Mangabeira, referindo-se aos embates da
vida, assim cantou:
Fui ferido três vezes, no entanto,
Apesar disso – combati cem vezes.
Muito obrigada a todos.
E para nós, à guisa de conclusão desta fala de saudade,
permitam-me alguns parágrafos sobre meus encontros e convívios com a nossa homenageada.
O primeiro foi aquele de 1949, no então Ginásio Severino
Vieira, ambos adolescentes, “teen-agers”, eu no auditório, ela, aos
13 anos, saudando o professor Francisco da Conceição Menezes,
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
diretor do Colégio Central. Meu exame de admissão ao ginásio
ocorrera em 1947, no Colégio Estadual da Bahia, na Avenida
Joana Angélica, onde cursei o primeiro ano ginasial, mas, com
a criação institucional dos ginásios de bairro (Nazaré, Brotas,
Liberdade e Itapagipe) pelo então secretário de estado da Educação e Saúde, o grande educador Anísio Teixeira, fui transferido em 1948 para o turno matutino, de clientela mista, do ginásio
do Jardim de Nazaré, dito Severino Vieira, porque sediado no
antigo sobrado-casarão residencial do antigo governador (e professor) Severino Vieira, prédio adquirido pelo governo Octavio
Mangabeira ao Clube Carnavalesco Inocentes em Progresso. No
turno vespertino, exclusivo para clientela feminina, estudavam
as moças, entre elas a garota Consuelo.
O segundo encontro, em janeiro de 1966, no salão do
plenário da Assembleia Legislativa do Estado, eu, aos 30 anos,
professor da Escola de Administração da UFBA, mas como secretário de estado para a Reforma Administrativa, coordenador
geral desse programa, acompanhando uma equipe de consultores
técnicos do Instituto de Serviço Público, da EADm./UFBA, para
um debate com os deputados sobre o projeto de legislação da
Reforma Administrativa encaminhado pelo governador Lomanto Júnior, e Consuelo Novais Sampaio, aos 30, como taquígrafa
concursada, sentada em mesa própria, no auditório: ela também
era professora do ensino médio do estado, concursada em 1962.
Seis anos mais tarde, 1972, Consuelo ingressaria no magistério da UFBA, no Departamento de História e Ciências Sociais, na Faculdade de Filosofia; em janeiro de 1972 eu tinha
sido empossado diretor da Escola de Administração da UFBA
e membro do Conselho Universitário, e havia disciplinas do bacharelado em Administração que eram ministradas pelo departamento a que ela pertencia.
De 1980 a 1984, Consuelo seria coordenadora do Curso de Pós-graduação em Ciências Sociais e criaria o Núcleo de
Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM) e o Núcleo
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
de História Oral e Documentação Oral (NHODOC), que realizaria alguns seminários sobre História Oral, coordenados pelos
professores Ubiratan Castro, Tânia Penido e Consuelo Novais
Sampaio, dos quais fui convidado a participar.
Em 1990, eu era diretor do ISP-Centro de Estudos Interdisciplinares para o Setor Público, e presidi uma Comissão
Julgadora da UFBA que conferiu a Consuelo Novais Sampaio o
título de Pesquisadora do Ano.
Em 1992 fui um dos acadêmicos que votaram, à unanimidade, em Consuelo para ocupar a Cadeira número 40 deste
sodalício. Nesse mesmo ano, 1992, ambos nos aposentamos da
UFBA. Nos anos seguintes seríamos confrades desta Academia,
e então o encontro e o convívio seria constante, nas sessões e em
conferências e artigos publicados em todos os números bianuais
da Revista da Academia de Letras da Bahia, nas décadas de 1990
e dos anos 2000. Em 2002, houve um convívio muito especial,
nas sessões, nesta Academia de Letras e nos seminários do Centro de Memória da Bahia, da Fundação Pedro Calmon, quando
Consuelo teatralizou sua apresentação do seu texto “Vargas, o
amante”, sendo ela narradora, e me pediu que eu fizesse a voz
do presidente Vargas lendo algumas de suas cartas de amor a
Aimée de Heeren.
Por fim, um encontro continuado da professora doutora Consuelo Novais Sampaio com meu filho o professor mestrando em história, Alfredo Eurico Matta, ela como orientadora
da dissertação dele sobre A Casa Pia dos Órfãos de São Joaquim e
como presidente da banca examinadora. Há também o fato,
honroso para mim, de que Consuelo me pediu que fizesse o
prefácio de seu livro Pinto de Aguiar: audacioso inovador, que tem
apresentação do nosso confrade Luis Henrique Dias Tavares.
Afora isso, registre-se meu encontro e de minha mulher Geísa, sua amiga de longa data, com a autora ou organizadora de
textos Consuelo Novais Sampaio, nos lançamentos de todos os
seus livros (donde seu afetuoso autógrafo-dedicatória, a nós, em
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
todas essas publicações), a saber: Os partidos políticos da Bahia na
Primeira República, Uma política de acomodação, 1978, 2ª edição em
1998; Legislativo da Bahia na Primeira República, 1985 (dedicado “ao
reencontro dos meus ‘poemas’ Andrea e Paulo Roberto”); Poder
e representação: o Legislativo da Bahia na Segunda República, 1991; Canudos: cartas para um barão, 1909; o monumental volume, prêmio
Clarival Prado Valadares da ODEBRECHT, intitulado 50 anos
de urbanização: Salvador da Bahia no século XIX, 2005; Memória da
fazenda na Bahia, 1895-2005, 2005; 70 anos de lutas e conquistas: Liga
Bahiana contra o Câncer, 2006; Pinto de Aguiar: audacioso inovador,
2010; e Otávio Mangabeira: cartas do 1º exílio, 2010, volume I. Significativo é o aprendizado nosso, meu e de Geísa, mediante a leitura ou manuseio desses volumes ou opúsculos, como Formação
do regionalismo no Brasil, 1977, e O poder legislativo no Brasil, conferências de Josaphat Marinho e Consuelo Novais Sampaio, 1998.1
João Eurico Matta é bacharel em direito, administrador, professor
emérito da Universidade Federal da Bahia, crítico e ensaísta. Foi membro do Conselho de Cultura do Estado da Bahia. Dirigiu várias instituições públicas e privadas, como o Conselho Regional de Administração da Bahia. É sócio do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.
Desde 1989 ocupa a Cadeira número 16 da ALB.
Discurso proferido no Salão Nobre da Academia de Letras da Bahia,
como orador de sessão especial em homenagem póstuma à acadêmica
Consuelo Novais Sampaio, no dia 12 de dezembro de 2013.
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JAMES AMADO
Sessão de saudade
Myriam Fraga
E
leito no dia 30 de agosto de 1989, James Amado tomou
posse nesta Academia no dia 26 de abril de 1990, passando
a ocupar a Cadeira de nº 27, que pertencera anteriormente a
Antônio Loureiro de Souza.
Para recebê-lo fora escolhido o confrade Luís Henrique
Dias Tavares, seu amigo de longas datas, que na ocasião, por
estar em Londres, a realizar estudos e pesquisas, incumbira o
confrade Waldir Freitas de Oliveira, de fazer a leitura do discurso
de saudação ao novo imortal.
Noite de muita alegria, de aclamação e regozijo. O recémchegado, além de muito estimado pelos acadêmicos, era reconhecidamente um nome especial que iria honrar e engrandecer
a nossa confraria.
Naquele momento tão importante, eu também deveria estar ali, junto aos amigos e confrades que desejavam abraçá-lo e à
sua amada Luiza, sorridente em sua discreta e delicada presença,
a filha Fernanda, o genro e os netos.
Em minha imaginação eu tentava recompor a cena; teria
o novo imortal liberado a emoção ou, simplesmente, tentara dominar o sentimento, como fazia sempre?
E o confrade Luís Henrique, com seu belo discurso,
traçando fielmente o percurso do homenageado, assinalando
as datas principais de sua biografia, louvando- lhe os méritos
de grande intelectual que não se apequenara diante da poderosa sombra do irmão mais velho, que ele tanto admirava sem,
►► 285
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
contudo, abdicar de seu brilho próprio, de sua singular e personalíssima biografia?
Mas alguma coisa sempre me escapava. Não conseguia
lembrar certos detalhes, a figura dos oradores, os aplausos, os
silêncios...
E de repente me dei conta: eu não estava presente naquela
noite de alegria!
Eu não participara da cerimônia dessa noite porque naquela ocasião, atravessava um dos mais terríveis momentos de
minha vida: num hospital, entre a vida e a morte, Carlos, meu
marido, tentava recupera-se de uma cirurgia no coração e eu
penava pelos corredores esperando ouvir uma palavra que me
fizesse ter alguma esperança. Só uma situação como essa me impediria de estar aqui, nesta mesma sala, naquela noite de glória, a
aplaudi-lo em momento de tanta importância.
Agora, ao cumprir o ritual nesta cerimônia de saudade,
sinto como se, voltando no tempo, pudesse recuperar um instante que ficara perdido, ao prestar-lhe, mais uma vez, o tributo
de minha admiração.
Em seu discurso de posse, James Amado afirma que a
fraternidade entre profissionais era o eixo básico das Academias
de Letras pelo reconhecimento que fazem do escritor como um
verdadeiro profissional, merecedor do respeito que se costuma
prestar aos membros de todas as demais categorias.
Lembrou, com reverência, a divida que temos, nós escritores, com o grande Machado de Assis que, ao criar a Academia Brasileira de Letras,“institucionalizou a condição do escritor colocando-a entre as categorias merecedoras de respeito e
acatamento”.
Assim, nesse mesmo discurso, ao tempo em que, em consonância com as regras acadêmicas, praticava o elogio dos antecessores, reafirmava sua condição de dedicado cultor da literatura, sua própria biografia, suas condições a respeito do fazer
literário e suas sóbrias considerações sobre a cultura do nosso
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
povo, seguindo-lhes as pegadas desde os primórdios: suas origens ibéricas, a rica tradição da cultura europeia, e o legado que
nos trouxeram a bordo das caravelas e que erigiram em monumento da nascente civilização baiana, corporificada em Antônio
Vieira e Gregório de Mattos, esteios da cultura que então se forjava enfrentando diversos percalços.
Falou também sobre o encontro com uma nova e fecundante realidade que foi a extraordinária contribuição dos povos
africanos que, aqui aportando na mais miserável das condições,
deram à terra que os acolhia, uma generosa participação no universo de crenças e condutas que viriam a enriquecer, ainda mais,
nosso patrimônio cultural, já anteriormente temperado pela
contribuição indígena que não cabe menosprezar.
O discurso de posse de James Amado, conciso e precioso, pelas concepções sobre nosso processo civilizatório e pelas sabias informações sobre o desenvolver de nossa historia,
pelas convicções humanistas, que o fizeram desenvolver um
processo todo seu de abordar questões tão essenciais, com a
leveza e a ironia, que eram marcas registradas de sua forma de
tentar esconder uma profunda consciência histórica e cultural,
é uma peça que merece ser lida e consultada e que ficará, sem
dúvida, como um dos mais importantes e justos discursos desta Academia.
Para completar o brilho daquela noite, ouviu-se a seguir
o discurso de nosso mestre Luís Henrique Dias Tavares, renomado historiador e cronista que, por sua vez, faz o elogio
e traça a biografia do novo confrade, seus méritos e sua obra
literária.
Fala detidamente de seu primoroso romance, O chamado do
mar, de 1949, que, segundo seu juízo, “marcaria em instante alto
e novo na literatura brasileira”, merecedor de sucessivas edições,
no Brasil e em Portugal e que, entre outras críticas, receberia do
grande Otto Maria Carpeaux as seguintes palavras consagradoras: “O romance é uma tentativa de renovação completa de um
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
gênero que já parecia esgotado: o romance de ambiente nordestino e tendência social”.
Não desejo estender-me sobre a biografia e as obras de
nosso saudoso homenageado. Disso se encarregou magnificamente nosso historiador Luís Henrique em seu discurso que reúne, não só uma extensa cronologia da produção do escritor,
jornalista e tradutor James Amado e de sua participação na vida
cultural brasileira, em tempos de dificuldades e de afirmações
que por vezes se tornariam temerários, mas, igualmente, embora
respeitando os limites da discrição imposta pelo retratado, conseguindo traçar um perfil do homem James Amado, que ali nos
aparece numa verdadeira e viva reprodução que só os que o conheceram tão intimamente poderiam traduzir.
Cumpre assinalar que a participação de James Amado na
vida literária e cultural brasileira começara muito cedo. Desde a
juventude, nos seus dezoito, dezenove anos, já colaborava em
jornais do Rio e de São Paulo, com artigos sobre literatura e
artes plásticas, que foi sempre uma de suas paixões, circulando
nos meios literários, cultivando conhecimentos e amizades importantes no campo das Letras, como os romancistas Dyonélio
Machado, Moreira Campos, Vasconcelos Maia, Osman Lins e
muitos outros.
Nessa época também iniciou sua carreira como tradutor,
trabalhando para várias editoras do sul do país, que reconheciam
seu talento e responsabilidade como escritor, além de seu domínio das línguas francesa, inglesa e espanhola.
Através de suas traduções ficaram conhecidos no país importantes escritores norte-americanos modernos como: William
Saroyan, Erskine Caldwell, com o famoso Estrada do tabaco, e
outros igualmente famosos, além de ter sido o responsável pela
introdução, no Brasil, do teatro de Eugène O’Neill.
Devemos assinalar também que James teve importante
atuação em diversas atividades ligadas à Literatura, participando de iniciativas que alcançaram intensa repercussão nos meios
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
políticos e culturais, como a organização do famoso Primeiro
Congresso Brasileiro de Escritores, realizado em São Paulo, em
1945, durante os anos difíceis do Estado Novo, pela libertação
de Prestes e reconhecimento da liberdade partidária. Foi durante
este Congresso que Jorge Amado, até então em exílio na Bahia,
compareceu chefiando a delegação baiana, e conheceu Zélia
Gattai iniciando uma relação para toda a vida.
James Amado participou, igualmente, da organização e realização do segundo, terceiro e quarto Congressos de Escritores,
realizados em Belo Horizonte, Salvador e Porto Alegre, além
de muitas outras iniciativas que contaram com sua dedicação e
eficiência, como a colaboração na última fase do Paratodos, famosa revista do poeta Álvaro Moreyra, então dirigida por Jorge
Amado e Oscar Niemeyer.
Igualmente assinalável foi sua participação em vários suplementos literários como o Suplemento do Livro, do Jornal do Brasil, que foi responsável pela renovação do estilo dos suplementos
literários dos grandes jornais do Rio e de São Paulo.
Porém uma das mais importantes contribuições de James
para a cultura brasileira foi sem dúvida a publicação da obra poética de Gregório de Mattos, em sete volumes, trabalho iniciado
em 1967, a partir dos 17 códices atribuídos ao poeta, existentes
na Biblioteca Nacional, em 25 volumes manuscritos, trabalho
que realizou sem qualquer auxilio ou ajuda financeira, contando
apenas com os conselhos e indicações de velhos amigos e, na
fase final, com a colaboração da professora e poeta Maria da
Conceição Paranhos. A este conjunto deu o título geral de Crônica do viver baiano seiscentista.
Terminado o trabalho inicial, concluídos estudos, pesquisa e planejamento, o projeto de edição da obra foi apresentado ao então secretário de Educação e Cultura do Governo
Luís Vianna Filho, nosso confrade Luís Navarro de Brito que,
imediatamente, compreendendo o alcance cultural da iniciativa, consultou o governador que autorizou a compra de uma
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
parte da edição pela Secretaria, o que garantiria parte dos custos orçados pela gráfica.
Para editar os sete volumes das Obras completas de Gregório
de Matos, James Amado criou a editora Janaina Ltda., responsável também pela edição da Obra poética de Junqueira Freire, outro
poeta considerado maldito da literatura brasileira, resgatando-lhe
os poemas inéditos.
Mas o Brasil vivia tempos difíceis com a ditadura militar
e as liberdades cerceadas, com a implantação do AI-5. A obra
do poeta Gregório de Mattos foi considerada um perigo para
as instituições e a edição foi recolhida das livrarias, sob a acusação de licenciosa e pornográfica. Após essas duas importantes
contribuições à poesia baiana a editora Janaina, premida pelas
dificuldades financeiras, fechou as portas.
Não me lembro do dia exato em que conheci James
Amado. Desde o final dos anos 60, quando passou a morar na
Bahia, era natural que nos encontrássemos, em casa de amigos, em eventos e reuniões, mas sei que foi ai pelos anos 80,
quando eu então trabalhava na Fundação Cultural do Estado
da Bahia, sob a direção de nosso confrade Geraldo Machado,
que, durante a celebração dos setenta anos de Jorge Amado,
nos aproximamos realmente.
Um dos eventos mais importantes no elenco de comemorações desta data foi uma grande exposição que reunia a reprodução fotográfica das capas de seus livros, já traduzidos em várias línguas, fotos, ilustrações e outros itens, que testemunhavam
o alcance internacional do homenageado,
James acompanhou de perto todo o percurso de descobertas para o êxito desta exposição que, realizada por Jacyra
Oswald, sob a coordenação de Zilah Azevedo, sob os auspícios
da Fundação Cultural do Estado, após sua inauguração no foyer
do Teatro Castro Alves, em Salvador, percorreu varias capitais,
inclusive Brasília, encerrando-se na Bienal do Livro de São Paulo, onde ocupou lugar de destaque.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Para acompanhar esta exposição, confeccionou-se um
catálogo que contou com a dedicada e segura orientação de
James Amado. Desde então passei a admirá-lo: sua competência, sua segurança, sua criatividade, a maneira sutil com que
tentava mascarar com um modo, às vezes brusco e impaciente,
o grande potencial de ternura e sensibilidade que o tornavam
inigualável.
Sua personalidade não permitia excessos, duplicidades, hesitações. Tinha suas certezas, referências e limites de quem conhecia de perto as várias formas de realizar-se numa vida plenamente
exercida em harmonia com as próprias ideias e convicções.
Um elogio de James Amado, não era apenas uma afetuosa aprovação, era o resultado de uma reflexão que nos fazia
acreditar na importância de nosso trabalho. A segurança de que
ele estava ali, sempre presente, no incentivo, na afirmação, na
solidariedade. Sem derramamentos, sem floreios, sem desdobramentos desnecessários.
A Fundação Casa de Jorge Amado, que ele tanto ajudou,
não só durante sua criação, mas na destacada participação em
seu Conselho Curador, com sua presença amiga, com seus ensinamentos, com sua força, deve-lhe duas dádivas importantes:
a estátua do Exu, de autoria de Tati Moreno, que na entrada da
Casa defende seus caminhos, e o baianíssimo lema que a distingue “se for de paz, pode entrar”.
Aqui, nesta Academia, sua presença constante, — confrade, companheiro, amigo —, alegrava nossas sessões, enriquecia
nossas discussões, transformava as tardes de encontro em motivo de confraternização e de aprendizagem.
Para situar James Amado, de uma forma mais afetiva,
nesta hora de tanta saudade e emoção, socorro-me de um texto
magnífico escrito por ele quando das comemorações pelos 70
anos do romance Jubiabá, num seminário realizado aqui mesmo, nesta Academia, numa parceria com a Fundação Casa de
Jorge Amado.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Aliás, a respeito deste episódio, recordo que, ao convidá-lo
para abrir o seminário com que marcaríamos a passagem de tão
importante data, ele a principio modestamente esquivou-se, mas
vendo meu desapontamento diante da recusa voltou atrás e comprometeu-se a atender a meu pedido.
Este texto, ao tempo que tece comentários e referências a esse romance, tão significativo na obra de Jorge Amado,
proporcionou-lhe a oportunidade de, fazendo um retorno no
tempo, recuperar momentos perdidos de sua infância que o
situam aos sete anos, servindo de moleque de recados para
Edison Carneiro, que ele chamava de Mestre Antigo, amigo
inseparável de seu irmão mais velho, na casa de seu pai, João
Amado de Farias, em Ilhéus.
Através desse mesmo texto ficamos sabendo que em 1935,
aos seus 12 anos, já deixara o internato da Cruz do Pascoal e estava morando com os pais na Gamboa, em Salvador, onde fora
recebido, com muita alegria, recém-chegado do Rio de Janeiro,
seu irmão mais velho, Jorge, que ali viera para apresentar-lhes
a netinha Lila, recém- nascida, de seu casamento com Matilde
Garcia Rosa, que o acompanhava, e para lhes ofertar um exemplar de seu novo romance, Jubiabá, quarto na sequência, então
publicado pela prestigiosa editora José Olímpio, com capa de
Santa Rosa, acompanhado de 37 textos de criticas onde os méritos do autor eram fartamente evidenciados.
O terceiro presente, segundo ele o mais esperado, era o
retrato do filho mais velho no quadro de formatura da turma
de bacharéis na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, então
Capital Federal.
A descrição da cena do pai emocionado e as recordações
daquele momento fazem com que esta passagem se projete
como um testemunho raro em que a literatura corporifica um
momento especial da vida, transformando a memória de um
instante vivido em quadro de primeira grandeza no painel dos
acontecimentos de uma existência.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
O relato desse fato e as emoções ali retratadas: o dialogo,
quase uma confissão, do velho João Amado diante da prova,
tão esperada, do êxito do filho mais velho, misturado às lembranças de sua própria vida, quando aos 10 anos de idade começara a labutar pelo sustento e onde, segundo suas palavras,
“comeu da banda podre”, até tornar-se um homem de verdade,
um verdadeiro “coronel” do cacau, na florescente civilização
grapiuna.
A confissão de que os anos passados na espera que o filho mais velho cumprisse a palavra, trazendo para casa o tão
ambicionado diploma, o fizeram chorar várias vezes, escondido
na rede da fazenda, com medo de que as tentações da cidade
grande o fizessem desviar-se da rota pretendida, compõe uma
das cenas mais tocantes de nossa literatura.
O velho pai emocionado a relatar ao filho mais jovem, quase uma criança, todos os sonhos, todas as angústias de um sentimento de ver cumprido pelo primogênito o ambicionado troféu,
o sonho de uma vida que ele próprio nunca conseguiria realizar:
o ambicionado título de doutor, que iria justificá-lo de todos os
sacrifícios que fizera para que isso um dia acontecesse.
Nesse texto, que consideramos exemplar, James Amado,
demonstra toda sua sensibilidade, todo seu carinho pela família:
pelos pais, pelos irmãos, pelos netos e sobrinhos a quem sua
presença nunca ficou distante.
Assim nos recordamos de James Amado e assim retomamos o fio desta história singular. Daquela noite que não vivemos
realmente, mas que, pela imaginação, conseguimos reencontrar
com todo o carinho, toda a admiração que teríamos testemunhado e, em nossa saudade, abraçamos mais uma vez o amigo,
o confrade, o conselheiro, o que sempre esteve presente, o que
soube cultivar afetos e afinidades.
Cioso do seu compromisso, acompanhando o calendário
das reuniões e efemérides da nossa Academia, com a mesma
assiduidade e o mesmo interesse que sempre demonstrara pelas
►► 293
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
atividades às quais se dedicara, em sua longa e proveitosa existência, James Amado cumpriu fielmente o espírito desta Casa,
que é o da convivência e da fraternidade, sob a égide das Letras.
Por isso e por muito mais, será aqui sempre lembrado como
convém a um verdadeiro imortal.1
Myriam Fraga é poeta, diretora-executiva da Fundação Casa de Jorge
Amado, conferencista no Brasil e no exterior. Publicou, dentre outros,
Sesmaria (Prêmio Arthur de Sales), Femina e Poesia reunida, o ensaio Leonídia: a musa infeliz do poeta Castro Alves, e obras infanto-juvenis sobre
vultos como Castro Alves, Carybé e Jorge Amado. Desde 1985 ocupa
a Cadeira número 13 da ALB.
Discurso proferido no Salão Nobre da Academia de Letras da Bahia,
como oradora de sessão especial em homenagem póstuma ao acadêmico James Amado, no dia 3 de abril de 2014.
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A REVIVESCÊNCIA DE ANNA AMÉLIA
VIEIRA NASCIMENTO
Sessão de saudade
Edivaldo M. Boaventura
E
scolhemos Anna Amélia Vieira Nascimento para suceder a
Eloywaldo Chagas de Oliveira, na Cadeira de número 3, patrocinada por Manuel Botelho de Oliveira e ilustrada por Arthur
de Salles. Não havendo especialidade na Academia, a historiadora colheu a sucessão do matemático.
Em Anna Amélia refletiam-se duas tradições familiares
da maior significação social, política e intelectual da Bahia: o São
Francisco e o Recôncavo. Pelo lado materno, provinha dos Mariani do São Francisco. Descendente, portanto, daquele lendário
italiano de Ajaccio, na Córcega, Antônio Mariani, que, no século
XVIII, emigrara para a Villa da Barra do Rio Grande, às margens do Velho Chico. Deixou descendência e não mais retornou
ao seu país (NASCIMENTO, 2008, p.12).
A outra herança é encrustada no Recôncavo. Anna Amélia descende de Pedro Ribeiro, herói das guerras de independência. O major Pedro Ribeiro, valente e incansável lutador
da causa da independência, foi retratado pela sua neta, a romancista Anna Ribeiro de Góes Bittencourt, nas magníficas
memórias, Longos serões do campo. O livro demonstra a relevância da família, o privado, sobrepondo-se ao público e revela
os contrastes das condições físicas, econômicas e morais que
separaram o Recôncavo do Sertão há quase dois séculos. Analisa o período pós-independência, a ambiência do Recôncavo,
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
sobretudo da região do Rio Pojuca, seus meios de transporte,
locomoções e modo de vida familiar.
Anna Amélia “generosamente partilhou seu legado de
anotações sobre D. Ana, até por ceder os manuscritos que serviram de base para essa edição”, informa Maria Clara Mariani,
organizadora da obra. (BITTENCOURT, 1992, v.1, p.8). Era
Anna Amélia filha de Anna (Anita) Mariani Bittencourt Cabral e
do engenheiro José Manso Cabral, de procedência mineira. Nasceu em Salvador a 4 de maio de 1930 e partiu para bíblica região
do silêncio, em 22 de janeiro de 2014. Casou-se com José Vieira Nascimento e foi mãe de cinco filhos: José Henrique, Anna
Guiomar, Lourdes Maria, Paulo José e Antônio José. Vejamos,
primeiramente, a sua formação em história e em seguida a sua
obra escrita e administrativa.
A formação em história
Anna Amélia cresceu nesse ambiente tradicional das
grandes famílias com influência na vida política da Bahia. Na
sua formação historiográfica, destaca-se o contributo de Wanderlei Pinho. É bem de se notar que tanto Luís Henrique Dias
Tavares, que foi aluno de Wanderlei Pinho e sucessor na Cadeira de número um, como Consuelo Pondé de Sena, sua aluna,
ambos o enaltecem como marcante conhecedor da História do
Brasil. Pelo visto, a nossa agremiação forma redes eletrônicas
de conhecimento, aprendizagem, relacionamento, homenagem
e de saudades.
Anna Amélia licenciou-se em História e Geografia pela
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal da Bahia, a nossa Ufba, em 1953. Com Wanderlei Pinho, aprendeu o caminho dos arquivos, na expressão afortunada do nosso José Calasans. Ensinou também História do
Brasil, na faculdade que a formou, de 1955-1958, logo depois
de diplomada.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
E como aprendeu o caminho dos arquivos! Mas indaguemos: por que escolheu a História?
Na entrada para essa Companhia, confessou: “Foi, sem
dúvida, o amor a essa cidade e às suas raízes que me levou ao
estudo da História, e é, assim, que ingressei nesta academia trilhando os caminhos da História, que é uma ciência social, mas
também uma criação elaborada de pesquisa metodológica [...]”
(NASCIMENTO, 1994, p.371).
Optou pela história social, preservando como campo
empírico de suas investigações científicas o Convento do Desterro. Buscou também as fontes primárias no arquivo da Santa
Casa de Misericórdia da Bahia (NASCIMENTO, 1992, 2002).
Da aprendizagem com os franceses, passou a trabalhar
com história social a partir de 1975. Complementa Norma de
Góes Monteiro: “As fontes históricas e a metodologia utilizada
por Anna Amélia refletem o espírito da moderna escola francesa, fundamentada numa larga base demográfica e econômica” (NASCIMENTO, 1986, Prefácio, p.18). Coube à professora
Adeline Daumard, da École Pratique des Hautes Études da então
Universidade de Paris e da Universidade da Picardie, em Amiens,
orientá-la na sua dissertação de mestrado. Na edição francesa,
agradeceu a Kátia Queiróz Mattoso e a Jacqueline Mauro-Dreyfus o apoio para apresentar a dissertação de mestrado. Agradeceu também a Consuelo Pondé de Sena, pela abertura de arquivos necessários.
Na progressão de sua formação, realizou os estudos pósgraduados na França, onde obteve o mestrado na Universidade
da Picardie (Université Jules Vernes) em Amiens, com a dissertação:
Le Couvent de Sainte Claire au Desert de la Baie de Tous les Saints. Histoire d`une fondation religiuese au XVII ème siècle (NASCIMENTO,
1976). Trata-se de um trabalho sobre a vida de uma comunidade
religiosa, durante o período colonial, não somente da origem
e fundação como também dos aspectos profanos, sumamente
importantes para o conhecimento da sociedade colonial.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Prosseguiu na rota do doutorado de terceiro ciclo na
École Pratique des Hautes Études, seção de Ciências Sociais, em
Paris, com registro da tese, na Universidade Paris X, em Nanterre. Estudou com os professores franceses: Frédéric Mauro,
doutor Honoris Causa pela Ufba, Adeline Daumard, na Universidade da Picardie, Bergueron e com Bartolomé Benasser
cursou História das Mentalidades (ACADEMIA DE LETRAS
DA BAHIA,1994, 2014, Cadeira 3).
As pesquisas incrementaram a produção acadêmica. É a
vertente da obra escrita. Entrementes, em 1979, Anna Amélia
iniciou a gestão do Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB).
É a sua obra administrativa. Vejamos, portanto, esses dois segmentos produtivos, a obra escrita e a obra administrativa, como
manda a santa e boa razão.
A história social no período colonial
No que tange à obra O Convento do Desterro da Bahia (NASCIMENTO, 1973), José Calasans destacou no prefácio “de um
lado, a segurança com que vossos estudos fixaram a vida de uma
instituição religiosa intimamente ligada à família patriarcal brasileira e, do outro lado, declara que a investigação histórica manifesta uma forma de vossa realização pessoal” (apud VEIGA,
1994, p.383).
À pequena edição da Gráfica Indústria e Comunicação
de O convento do Desterro da Bahia (NASCIMENTO, 1973), seguese o alentado tomo Patriarcado e religião: as enclausuradas clarissas
do Convento do Desterro da Bahia 1677-1890, edição do Conselho
Estadual de Cultura de 1994 (NASCIMENTO, 1994). Obra essencial para o conhecimento do relacionamento religioso com a
sociedade, a economia e política colonial.
No auge, o Convento do Desterro abrigou 500 mulheres, compondo-se de religiosas professas, noviças, mulheres
(retiradas) confinadas no Convento, jovens levadas para serem
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
educadas, domésticas e escravas. O mundanismo imperava.
Atenção para esta síntese sobre Patriarcado e religião: “são formas de dominação das mulheres em geral e de freiras em particular. A história da primeira casa monacal feminina da Bahia
é descrita com abordagem religiosa, social e econômica de
1677 a 1890. Os reflexos da história da cidade do Salvador e da
Bahia que atingiram o mosteiro são analisados e interpretados”
(NASCIMENTO, 1994, quarta capa).
Acompanham essa edição os anexos com as fontes primárias, nomes e informações dos pais das religiosas, nomes das
freiras professas, resumo do livro de entrada. Vale ressaltar que
os trabalhos de Anna Amélia são fartamente referenciados com
notas, constando tanto as fontes primárias como as secundárias,
atestando a acuidade da notória pesquisadora.
Em 1990, o Centro de Estudos Baianos, então, dirigido
pelo nosso confrade Fernando da Rocha Peres, publicou A postura
escravocrata no convento de religiosas (NASCIMENTO, 1990, nº 142).
É uma contribuição ao debate do tema igreja e escravidão. Este
estudo foi apoiado pelo CNPq e integra um outro maior: Projeto
de História Social da Mulher na Bahia, focalizando as religiosas
enclausuradas. Na mesma coleção do Centro de Estudos Baianos,
Anna Amélia deu à estampa Letras de risco e Carregações no comércio
colonial da Bahia 1660-1730 (NASCIMENTO, 1977, nº 78).
Na bibliografia de Anna Amélia (1986), destaca-se: Dez
freguesias da Cidade do Salvador: aspectos sociais urbanos do século XIX.
Lembro-me muito bem que, tomando conhecimento desse
trabalho, despachando comigo na Secretaria, insisti para que o
publicasse. É um estudo da vida social e urbana da Bahia provincial, tendo por base fontes do Arquivo Público. Para Mircea
Buescou, que o prefaciou (NASCIMENTO, 1986, prefácio), o
livro, que trata da história econômica, ressalta a importância desse estudo para a história regional. A proliferação desse tipo de
trabalho regional possibilitará a integração futura numa grande
história do Brasil.
►► 299
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Em conformidade com a opção da história social no
período colonial, há os trabalhos sobre a Santa Casa de Misericórdia: libelos de divórcio e nulidades, formação de famílias de
baixa renda, estrutura cristã do matrimônio. Contribuiu para a
temática baiana da Casa da Torre, governo Seabra, sociedades
comanditárias, narrativas de tradições familiares.
Em 1997, organizou o arquivo da Federação das Indústrias do Estado da Bahia (FIEB) e em seguida publicou a Memória dessa corporação. (NASCIMENTO, 1997). Esse órgão
de classe empresarial estava completando o cinquentenário
(NASCIMENTO, 1996). Do mesmo modo, orientou a classificação do Arquivo Otávio Mangabeira, no Tribunal de Justiça
da Bahia, em 1990.
Anna Amélia iniciou a monografia A Quinta do Tanque:
um monumento a serviço da cultura da Bahia (NASCIMENTO, 1980;
NASCIMENTO, 1998), mencionando a doação do terreno pelo
governador Tomé de Souza aos jesuítas que aí construíram uma
casa de repouso distante do centro da cidade. Essa morada albergou o padre Antônio Vieira quando regressou definitivamente à
Bahia, onde revisou os seus sermões, todavia a deixou nos anos
finais: “Adeus Tanque, não vou buscar saúde, nem vida, senão
um gênero de morte mais sossegado e quieto” (apud NASCIMENTO, 1980, p.12-13), indo para o Colégio Geral de Salvador.
Existe um pedestal com esse trecho completo na Quinta. Pois
bem, com a expulsão dos padres da Companhia de Jesus do
reino de Portugal, a Quinta foi levada a leilão e lá se instalou o
Hospital São Cristóvão para os lázaros. Passou à gestão da Santa
Casa de Misericórdia e, foi doada ao Estado. Quando os doentes foram deslocados para Águas Claras, o monumento caiu no
abandono total.
Passemos à sua obra administrativa, seguindo o caminho
dos arquivos até alcançar os municípios.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
O caminho dos arquivos
Em pleno ciclo produtivo, Anna Amélia, conhecedora dos
arquivos, foi nomeada para dirigir o Arquivo Público do Estado
da Bahia (APEB). Foi a nona diretora da instituição e a primeira
mulher a ocupar a direção. Exerceu o cargo em dois períodos: de
1979 a 1987 e de 1991 a 2002, durante quase vinte anos.
Por necessidade de maior espaço, mudou o Arquivo do
prédio da Rua Carlos Gomes para a Quinta do Tanque, que
tinha sido restaurada pela Secretaria de Indústria, Comércio e
Turismo para a Bahiatursa, no governo Roberto Santos, conforme projeto de Paulo Ormindo de Azevedo, nosso confrade. As
novas instalações foram adaptadas com Laboratório de Restauração de Documentos, desumidificadores, outros equipamentos
e construção de anexo.
Tive a satisfação de trabalhar com Anna Amélia no período de 1983 a 1987. No início da minha segunda gestão à frente
na Secretaria de Educação e Cultura, preparava as leis que criaram a Universidade do Estado da Bahia (Uneb), o Instituto Anísio Teixeira (IAT) e estruturaram os organismos da Secretaria
e inclui a lei de proteção aos arquivos públicos e privados, que
criou o sistema estadual de arquivos (Lei Delegada nº 52, de 31
de maio de1985, D.O. de 01 jun.1983). Deu-me uma satisfação
muito grande a oportunidade de poder contribuir para a organização e o sistema dos arquivos baianos.
À época, Anna Amélia trouxe três competentes especialistas do Arquivo Nacional, Helena Machado, Norma de Góes
Monteiro e Célia Camargo, que me assessoraram na redação
desse definidor diploma legal. Realmente, tínhamos conseguido um avanço. Anos depois Anna Amélia confirmou: “O Arquivo do Estado da Bahia foi dos primeiros, senão o primeiro
a se articular em um Sistema, integrando à rede de arquivos correntes, intermediários e permanentes da Bahia ao sistema maior
que é o Sistema Nacional de Arquivos” (NASCIMENTO, 2994,
►► 301
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
p.885-887). Possibilidades foram abertas para se por em ordem
o recolhimento de papéis históricos e a criação de Arquivos
municipais (NASCIMENTO, 2004, 887, e NASCIMENTO,
ofício de 14 mar.1984).
Acompanhei o edificante trabalho de Anna Amélia de
estímulo e criação dos arquivos municipais. O arquiteto Divaldo Alcântara (2014), companheiro de trabalho na Secretaria de
Educação e Cultura, coordenou o Projeto dos Arquivos Municipais e informa:
Objetivando minimizar as deficiências existentes no tratamento dado pelas Prefeituras Municipais, o Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB), na época dirigido pela
acadêmica Anna Amélia Vieira Nascimento, executou um
projeto que objetivou orientar e apoiar os gestores municipais para que a produção da documentação observasse
as normas técnicas que norteiam as práticas arquivistas,
contribuindo para a guarda e preservação da memória documental das comunidades beneficiadas.
Para concluir, uma menção à entrada nesta Companhia.
O ingresso na Academia
Em suma, tanto a sua obra de história social, que enfocou
a sociedade colonial, como a maior visibilidade à frente do Arquivo Público vão contribuir para projetar a historiadora Anna
Amélia Vieira Nascimento na comunidade acadêmica.
Personalidade comunicativa, currículo enriquecido de
cursos e cargos, e obra publicada, habilitaram o seu ingresso
neste Sodalício.
A candidatura de Anna Amélia nasceu em uma clara manhã de domingo. Em casa de Carlos Eduardo da Rocha, reuniam-se os acadêmicos Luiz Viana Filho, Wilson Lins, Cláudio
Veiga, Renato Berbert de Castro e nós. Por vezes, comparecia
302 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
também o casal Anna Amélia e José Vieira Nascimento. Em um
desses aprazíveis encontros dominicais, acordamos na candidatura de Anna Amélia para suceder ao professor Eloywaldo
Chagas de Oliveira. Tínhamos a participação do presidente e
anuência do confrade Jorge Calmon.
Contribuiu para aproximá-la mais ainda da Academia o
convite do presidente Cláudio Veiga para falar no centenário do
acadêmico e diretor do Arquivo Público Alfredo Pimentel. Anna
Amélia o considerava “O guardião do patrimônio documental
baiano”. Ele foi titular da Cadeira de número 30, patrocinada
pelo notável botânico Joaquim Monteiro Caminhoá, e organizador do número 10 do periódico dedicado ao centenário de
Castro Alves.
As démarches do nosso complicado processo eleitoral
conduziram Anna Amélia à Agremiação. Na sessão de 22 de
junho de 1991, para a constituição da lista dos candidatos à
vaga, obteve 22 indicações. Em 21 de agosto seguinte, elegeuse com 23 votos. Em 26 de março de 1992, deu-se a sua insepcio
com a saudação cadenciada e erudita do presidente Cláudio
Veiga (ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, 1994, p.34-35,
242-245).
A tomada de posse foi bem o momento de pontuar a formação, a obra aportada e o cargo ocupado, com previsões alvissareiras da boa convivência. Mas o sempre lembrado presidente
foi ainda mais enfático recepcionando Anna Amélia: “ela (a eleição) é acima de tudo a convocação de alguém que, por seu valor,
engrandeça a instituição e, por sua dedicação, traga um apoio á
sua operosa existência” (VEIGA, 1994, p. 381).
A entrada de Anna Amélia nessa agremiação formou um
triângulo: Faculdade de Filosofia, Convento do Desterro e Academia de Letras. Explico. Diplomou-se, pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Ufba, então, instalada na antiga
Escola Normal, em frente a esta Academia, hoje é um próprio
do Ministério Público Estadual. Enclausurou-se nas pesquisas
►► 303
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
no Convento do Desterro, que se situa na ponta extrema do
Solar Góes Calmon.
A eleição acadêmica consagrou o esforço de pesquisadora, escritora e promotora da cultura. O seu discurso de tomada de posse foi linearmente canônico. Fez o cotejo poético entre
Botelho de Oliveira e Arthur de Sales e o elogio do inteligente
professor Eloywaldo.
Meu caro Presidente Aramis Ribeiro Costa, caros confrades, confreiras, prezado José Vieira Nascimento, filhas e filhos e familiares de Anna Amélia!
Esta é uma tarde evocativa de revivescência da nossa
muito querida Anna Amélia Vieira Nascimento, que continua
presente no nosso afeto.
Pesquisadora pertinaz devotou-se ao fazer histórico. Reconheçamos, no embalo da nossa recordação, que Anna Amélia
nos legou uma obra. Obra escrita e obra administrativa.
É o espírito construtor da pesquisadora que procuramos
evocar com o nosso reconhecimento e com a homenagem da
nossa saudade.
Grato a todos pela presença e mais ainda pela atenção.
304 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
BIBLIOGRAFIA DE
ANNA AMÉLIA VIEIRA NASCIMENTO
LIVROS
NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. O convento do Desterro da
Bahia. Salvador: Ed. Gráfica Indústria e Comunicações Ltda, s/d
[1973?] 128 p.
NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. Le Couvent de Sainte Claire
au Desert de la Baie de Tous les Saints: histoire d` une fondation réligieuse
au XVIIè. Siècle. Salvador, 1976 (mimeo).
NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira.“Letras de risco” e “Carregações” no comércio colonial da Bahia. 1660-1730. Salvador: Centro de
Estudos Baianos da UFBA. nº 78, 1977.43 p
NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira A Quinta do Tanque: um
monumento a serviço da cultura da Bahia. Bahia: Governo do Estado,
Secretaria de Educação e Cultura/ Arquivo do Estado da Bahia,
1980. 56 p.
NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. Dez freguesias da Cidade do
Salvador. Aspectos sociais e urbanos do século XIX. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1986. 204 p
NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. A postura escravocrata no
convento de religiosas. Salvador: Centro de Estudos Baianos da
UFBA, nº 172, 1990. 449.
NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. Patriarcado e religião: as enclausuradas clarissas do convento do Desterro da Bahia 1677-1890. Salvador: Conselho Estadual de Cultura, 1994. 492 p
NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. Memória da Federação das
Indústrias do Estado da Bahia. Salvador: FIEB, 1997. 269p.
►► 305
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
ARTIGOS E PERIÓDICOS
NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. “Alfredo Pimentel: o
guardião do patrimônio documental baiano”. Rev. ALB, Salvador, v. 32, p.123-133, 1985.
NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. “As memórias de D.
Anna Ribeiro de Góes Bittencourt”. Rev. ALB, Salvador, v.37,
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NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. “A pobreza e a honra
recolhidas e dotadas na Santa Casa de Misericórdia da Bahia”.
1700-1867. Rev. ALB, Salvador, v. 38, p.123-134, 1992.
NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. “Libelos de divórcio e
nulidades de matrimônio: a desorganização da família no século
XIX”. Rev. ALB, Salvador, v. 39, p.59-73, 1993.
NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. “Pedro Calmon e a história da Casa da Torre”. Rev. ALB, Salvador, v. 40, p.87-99, 1994.
NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. “Discurso de Posse” Rev.
ALB, Salvador, v. 40, p.371-388, 1994.
NASCIMENTO, Anna Vieira. Nascimento. Anna Amélia Vieira. Rev. ALB, Salvador, v. 41, p.124, 1995. Índice até o 40º da
Rev. ALB.
NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. “Alguns aspetos do primeiro governo de Seabra (1912-1916)”. Rev. ALB, Salvador, v.
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NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. “Breviário da Quinta do
Tanque”. Rev. ALB, Salvador, v. 43, p.83-198, 1998.
NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. “Notícias da Conspiração dos Alfaiates”. Rev. ALB, Salvador, v. 44, p.93-102, 2000.
NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. “À sombra da caridade:
formação de famílias de médios extratos sociais pela Santa Casa
de Misericórdia da Bahia”. Rev. ALB, Salvador, v. 45, p.37-50,
2002.
NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. “Sociedades comanditárias na Bahia”. Rev. ALB, Salvador, v. 46, p.97-105, 2004.
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NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. “Os arquivos e o professor”. In: MATTA et al., Alfredo (Org.). Educação, Cultura e
Direito: coletânea em homenagem a Edivaldo M. Boaventura.
Salvador: Edufba, 2004. p. 885-887.
NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. “O mundo luso-brasileiro nos séculos XVII e XIX”. Rev. ALB, Salvador, v.47, p.135142, 2006.
NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. “Formação das estruturas cristãs do matrimônio, concessão dos dotes e arras”. Rev.
IGHB, Salvador, v. 101, 9.55-72, 2006.
NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. “Narrativas de tradições
familiares”. Rev. ALB, Salvador, v. 48, p.11-29, 2008.
REFERÊNCIAS
ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA Cadeira nº 3. In: ____
Anuário da Academia de Letras da Bahia 2. Salvador: Quarteto,
2014.p.18-20.
BAHIA. Lei Delegada nº 52, 31 maio 1983. Dispõe sobre a proteção dos arquivos públicos e privados, e dá outras providências.
Estrutura legal da Educação Baiana. Secretaria de Educação e Cultura do Estado da Bahia. Salvador: ASSED, 1984, p.21-24.
BITTENCOURT, Anna Ribeiro de Goes. Longos serões no campo.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. 2 v. Organização e notas
Maria Clara Mariani Bittencourt.
BOAVENTURA, Edivaldo M. A palavra e a convivência.
In:___O território da palavra. Salvador: Ianamá, 2001, p.17-24.
CAPUT, Jean-Pol. L’Academie Française. Paris: PUF, 1986.
CASTRO, Renato B. Breviário da Academia de Letras da Bahia 19171994.2. ed. atual. e aum. Salvador: Conselho Estadual de Cultura,1994.
NUNES, Antonietta d’Aguiar. Arquivo Público da Bahia: constituição
e trajetória. In: SILVA, João Carlos da, ORSO, Paulino José, CASTANHA, André Paulo, MAGALHÃES, Maria Diana Rocha (Orgs).
História da Educação. Campinas SP: Alínea, 2013, p.229-262.
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VALERY, Paul.Regards sur le monde actuel. Paris: Gallimard, 1945.
VEIGA, Cláudio. Discurso de recepção à acadêmica Anna Amélia
Vieira Nascimento. Rev. ALB, v. 40, p.381-388, 1994.
DOCUMENTOS
ALCÂNTARA, Divaldo Informações sinópticas sobre a execução do
Projeto de Arquivos Municipais pelo Arquivo Público do Estadual no
final da década de 90. Salvador, 2014.
NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. Ofício de 24 de maio de 1984
ao secretário de Educação e Cultura da Bahia.
NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. Ofício de 23 de fevereiro de
1987 ao secretário de Educação e Cultura da Bahia1
Edivaldo M. Boaventura é bacharel em direito e em ciências sociais,
mestre e Ph.D. em educação, professor emérito da UFBA, autor de
diversos livros de ensaios, sócio de inúmeras instituições culturais no
Brasil e no exterior. É orador oficial do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Foi secretário de Educação e Cultura do Estado da Bahia,
diretor-geral do jornal A Tarde e presidente da Academia de Letras
da Bahia, da qual é membro benfeitor. Desde 1971 ocupa a Cadeira
número 39 da ALB.
Discurso proferido no Salão Nobre da Academia de Letras da Bahia,
como orador de sessão especial em homenagem póstuma à acadêmica
Anna Amélia Vieira Nascimento, no dia 10 de abril de 2014.
308 ◄◄
À MEMÓRIA DO ACADÊMICO
GERSON PEREIRA DOS SANTOS
Sessão de saudade
João Eurico Matta
N
a sessão regimental da tarde do dia 27 de março p. p.,
dedicada a depoimentos informais de nós, acadêmicos,
em homenagem aos confrades recém-falecidos James Amado,
Anna Amélia Vieira Nascimento e Gerson Pereira dos Santos, recordei com emoção que há mais de seis décadas, desde
1951 a 1953, por três anos letivos no então formidável Colégio
Estadual da Bahia (o Central ), fomos, eu e Luiz Humberto
Maron Agle beirando os 16 anos de idade, colegas de turma
e contemporâneos muito próximos amigos do jovem Gerson
Pereira, assim chamado ao completar seus 19 anos em fevereiro de 1951. De nossa estudiosa e alegre turma colegial fizeram
parte Ademar Bento Gomes e o hoje saudoso Gabino Kawark
Kruschewsky, entre as garotas Yara Celestino e a hoje saudosa
Maria Lina Foeppel. Fomos alunos de grandes mestres, ressalto três, de língua e literatura, que nos influenciaram muito,
os hoje saudosos Manuel Peixoto, de inglês; o folclorista Luiz
Almeida, de francês; e o latinista Auto José de Castro. Gerson
e eu, mais do que Agle, estudávamos profundamente autores
ingleses, franceses e latinos, bem como autores italianos e alemães, portugueses e brasileiros. Apresentávamos nossos ensaios em sala de aula, alguns dos meus publicados em jornais
de Salvador até 1954, quando ingressamos por vestibular na
Faculdade de Direito de mestre Orlando Gomes. Cursamos
►► 309
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
juntos o primeiro ano letivo, mas Gerson se transferiu para
São Paulo, onde concluiu o Bacharelado em Direito e permaneceu por sete anos, profissionalmente ocupado com a chefia
do Departamento Jornalístico da Esso Brasileira de Petróleo.
Em São Paulo, 1959, Gerson Pereira, com este nome, publicou
o livro de poemas intitulado Fuga e latitude, o bastante para que
o notável romancista santamarense Clóvis Amorim iniciasse o
seu prefácio de três páginas, intitulado “Com Licença”, à publicação de Gerson Pereira, Tempo de romance, Imprensa Oficial de
Santo Amaro-Bahia, 1968, com o seguinte parágrafo:
Gerson Pereira, poeta bissexto, cronista, homem de
jornal e publicidade, juiz acostumado a lidar com as leis
na série complexa das ciências do Direito, revela-se, agora,
um primoroso ensaísta, com esse Tempo de romance, muito
bem escrito, onde há observações e conclusões, tantas e
quantas, maduramente refletidas e duma nitidez de síntese, sem isso de minúcias ornamentais e inoportunas. Vale
esse opúsculo pela soma de conhecimentos absorvidos e
também como trabalho de seleção e de investigação, que
presumem longa experiência de seu autor em tais assuntos.
Com as suas humanidades bem aprendidas, dotado desse
natural bom gosto que a cultura aprimorou, de intuição à
altura das verdades fugidias, só percebidas pelos espíritos
de escol, ninguém melhor aparelhado do que esse moço
para as tarefas que bem exprimam força criadora.
Nessa ocasião já estava Gerson de retorno à Bahia desde
1961, ano em que esse moço de 29 anos, nascido em Mata de
São João — Bahia, a 29 de fevereiro de 1932, ingressou, por
concurso, na magistratura, como Pretor e Juiz de Direito que
serviria, nos anos seguintes até 1978, “em Encruzilhada, Itaquara, Catu, Santo Estêvão, Conceição do Almeida, Casa Nova,
Santo Amaro, Mata de São João e Salvador, obtendo todas as
promoções por merecimento, inclusive para Desembargador do
310 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Tribunal de Justiça do Estado, em 1978”, para este cargo de topo
de carreira nomeado pelo então governador Roberto Santos.
Naquele ano, 1968, do prefácio do romancista Clovis
Amorim ao opúsculo Tempo de romance, o jovem “espírito de escol” já tinha publicado, no ano de seu retorno à Bahia, o ensaio O Romance total de Charles Morgan, Salvador, 1961, e o ensaio
jurídico Aspectos da prejudicalidade, Salvador, 1967. Mas insisto
aqui num comentário sobre as dezenove páginas daquele denso,
de citações de autores magníficos e excertos em vários idiomas,
e brilhante ensaio Tempo de romance, de 1968, para enumerar e
enunciar, chamando especial atenção dos que me escutam, os
seis títulos, em maiúsculas — como o próprio Gerson grafou,
— de suas seções: 1. QUERENÇA E MISTÉRIO; 2. REALIDADES; 3. FORMA E ESSÊNCIA; 4. ROMANCE NOVO;
5. POESIA NO ROMANCE; 6. O ROMANCE E O TEMPO.
Pois eis que trinta e cinco anos depois, em 2003, na edição belamente ilustrada de sua magistral coletânea de ensaios, sob o título Aquelas noites tristes de exílio, Salvador, Fundação Gregório de
Mattos, Gerson Pereira dos Santos (seu nome de autor há décadas) apresenta uma “Introdução” com uma epígrafe ou mote intitulado Tempo de romance em que transcreve, entre aspas, um longo comentário sobre “o meu romance”, de José Geraldo Vieira
(A quadragésima porta), um ficcionista brasileiro de acentuada predileção do Gerson colegial daqueles anos 1951-54, seguida de
uma reescrita, atualização, acréscimo e aprofundamento daquele
seu texto de 1968, adicionando àquelas seis seções outras novas
que intitula PROTOCOLOS FICCIONAIS e RETÓRICA DA
IRONIA, nesta transcrevendo pertinentes excertos de Lawrence
Sterne (Uma viagem sentimental), de Machado de Assis (Quincas
Borba), de Vladimir Nobokov (Pnin), de Machado de Assis (Dom
Casmurro e Esaú e Jacó), de João Ubaldo Ribeiro (Um brasileiro em
Berlim) e de Jorge Amado (Jubiabá). A seguir, das págs. 41 a 244,
publicam-se os oito requintados, verdadeiramente scholarly ensaios sobre Hermann Broch: Tempo e solidão; Vladimir Nabokov:
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Paisagem e memória; Ismail Kadaré e os cinco malditos da Albânia,
agrupados sob o título A PÁTRIA QUE SE LEVA PARA O
EXÍLIO; Dino Buzzati: O deserto dos tártaros; Uwe Johnson: Suposições acerca de Jacó, agrupados sob o título O EXÍLIO COMO
ALEGORIA; e Joseph Conrad: A inflexibilidade ética; Thomas
Bernhard: Extinção: uma anti-autobiografia?; e A propósito de James
Joyce: decriptações.
Curiosamente, Gerson faz publicar, na contracapa dessa
edição de Aquelas noites tristes de exílio, excertos do prefácio de
Clóvis Amorim ao seu Tempo de romance, como: “Escritor, e dos
melhores... Ensaísta, é dos poucos que ostentam poder criador...
Ele é ele, com a cabeça no lugar, dono de seu nariz e da sua
pena...” E põe, nas orelhas da capa, um precioso comentário
crítico, “Prazeres do exílio”, da lavra do nosso confrade acadêmico laureado Hélio Pólvora, ficcionista, cronista e ensaísta dos
maiores do Brasil, que afirma sobre Aquelas noites... tratar-se de
“um passeio, com um guia dos mais eruditos, pelos romances
de ideias, de formação... A teia armada por Gerson Pereira dos
Santos chega aos nossos dias, alcança a prosa de ficção brasileira,
da qual ele parece ser também um acompanhante assíduo e atento...” Pois não é que Gerson vai publicar, em 2010, um alentado
romance, de 340 pp., A ninfa e a gazela, Nova Alvorada Edições,
Belo Horizonte, Brasil, que conta com uma apresentação de três
páginas do nosso confrade Hélio Pólvora, com o mesmo título
do livro, onde se lê: “O fulcro do romance está nesse audaz inter-relacionamento: um trio em dó sustenido menor... Um tema
quase proibido, em termos de tabu, ao qual se furtam autores
menores, em vista dos óbices de expressão. E saiu-se bem...” Na
mencionada sessão acadêmica dos depoimentos de saudade, o
mesmo mestre escritor Hélio Pólvora enviou-nos um texto em
que diz: “O acadêmico Gerson Pereira dos Santos era um leitor de mestres supremos. Escreveu romances, mas o que nele sobressai é a presença do crítico capaz de diálogos profundos com
textos alheios... Foi um scholar. ... O discurso com que ingressou
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
nesta Academia de Letras da Bahia e que ele reproduziu em seu
livro O solitário ofício de julgar , é e será sempre uma página brilhante
da prosa acadêmica brasileira.”
A alusão a esse livro sobre “o ofício de julgar” nos leva
ao outro Gerson das Letras, agora o titular da Academia de Letras Jurídicas da Bahia, que nesta qualificação pronunciou, em
1992, ao ensejo do centenário de nascimento de meu pai Edgard
Matta — advogado criminalista e professor de Economia, admirador da carreira de intelectual de Gerson —, um eloquente
discurso-registro encomiástico. Aqui se encontra o magistrado
de carreira e desembargador do Tribunal de Justiça da Bahia e
coordenador científico e editorial, presidente da Comissão de
Memória da Justiça Brasileira, autor internacionalmente reconhecido e premiado. Aqui se encontra o professor de Direito
Penal concursado e autor de uma bibliografia enaltecida pela crítica especializada, na qual ressaem os títulos, publicados pela Saraiva, Direito Penal Econômico, 1981; Inovações do Código Penal, 1985
e Do passado ao futuro do Direito Penal, Porto Alegre, 1991. E o
diretor da Faculdade de Direito da UFBA, 1975 a 1979, ocasião
em que nos reencontramos no egrégio Conselho Universitário,
porquanto eu era, nessa ocasião, diretor da Escola de Administração da UFBA.
Permitam-me, aqui, que leia o próprio Gerson, palavras suas. Primeiro, as seguintes dedicatórias, auto-reveladoras
do temperamento, da sensibilidade e do caráter do escritor, de
2010, no seu romance A ninfa e a gazela: “Para a colega Ulla Viveka Bondeson, da Universidade de Copenhague, que semeou
paisagens tantas vezes relembradas no estilo ébrio destas páginas”. “Para Edson O’Dwyer, Genaro de Oliveira e Gilberto
Caribé — companheiros de magistério – por me aceitarem (a
despeito de minha reclusão monástica) como amigo, a fim de
juntos caminharmos pela vida nas ‘avenidas iluminadas’ da ciência do Direito criminal”. “Para os meus netos Cássio e Jéssica,
manhãs de estio em meu outono”. “Para Gerson Luis, sem quê
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
nem pra quê, apenas amor”. “Para Maria Carmelita, que participou comigo, por cinquenta e sete anos, da mesma caminhada”.
Segundo, transcrevo as bondosas dedicatórias que autografou
para mim e minha esposa Geísa, em 1985, assim: “Ao velho e
querido amigo João Eurico Matta — companheiro inseparável
nos caminhos nem sempre fáceis do viver —, estas Inovações do
Código Penal – Parte Geral, e o abraço fraternal do Gerson”, e em
2003, no frontispício ilustrado da edição dos ensaios de Aquelas
noites tristes de exílio, assim: “Para J. Eurico e Geísa, com um abraço do velho amigo G. P. Santos, em 02.12.03”.
E, por último, transcrevo a bela peroração poético-filosófica da conferência do desembargador Gerson Pereira dos Santos por ele próprio intitulada, em maiúsculas, SUB DEO ET
LEGE, e identificada como Oração proferida na Câmara de Vereadores de Santo Amaro da Purificação, em 13 de maio de 1983, quando
da comemoração do sesquicentenário de instalação da Comarca (lembro
que por sete anos, de 1967 a 1974, Gerson foi titular da Vara
Criminal da sesquicentenária Comarca de Santo Amaro da Purificação, ascendida como tal em 1833):
...No ritual de nossa fé, homenageamos os varões de então, rendendo graças a Deus, que vos vela e guarda, como
guardou os vossos pais, seus pais e os pais de seus pais,
e como haverá de guardar vossos filhos, seus filhos e os
filhos de seus filhos, no curso das contínuas gerações, a
cada uma delas ofertando, generosamente, o sentido do
direito e o amor à liberdade, o mesmo Deus que vos permitiu viver, como comunidade civilizada, sob a proteção
da justiça, postulada por advogados honrados, fiscalizada
por um Ministério Público cônscio de sua grandeza institucional, e ministrada por juízes serenos e intimoratos,
que nada quiseram para eles mesmos, sequer o reconhecimento dos pósteros, depositando simplesmente suas vidas
no altar da Justiça, como se espargissem flores nas clareiras dos caminhos. Nesse apostolado solitário, dessas vidas
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
que se esvaíram sem realizações outras, sem pompa nem
gala, tenham podido dizer, os que as viveram, ao chegar
da hora do adeus, palavras semelhantes às de Jorge Luis
Borges, em seu “El Aleph”: “Olho minha face no espelho
para saber quem sou, para saber como me portarei dentro
de algumas horas, quando me defrontar com o fim. Minha
carne pode ter medo; eu não tenho!”
...Por todos eu vos saúdo nesta noite, que, em breve, se
fará a mais esplêndida aurora, Nas cores do arrebol, se
espraiardes a vista até o horizonte de todos os horizontes, vereis, na mais clara de todas as luzes da imaginação,
a cruz, que simboliza a nossa fé em Deus, e, possivelmente, junto ao santo lenho, Themis, resgatada do paganismo
para a sempiterna representação da justiça... Nos rumos
do devir sem limites, continuai a marcha iniciada, há cento
e cinquenta anos, pelos patriarcas desta cidade, sob Deus e
a lei. E sede felizes para sempre!1
João Eurico Matta é bacharel em direito e ciências sociais, mestre em
administração pública e professor emérito da Universidade Federal da
Bahia. Foi diretor da Escola de Administração da UFBA, secretário
de estado e conselheiro do Conselho Estadual de Cultura da Bahia. É
membro da Academia Baiana de Educação, sócio do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e vice-presidente da Academia de Letras da
Bahia (2013-2015). Desde 1989 ocupa a Cadeira número 16 da ALB.
Discurso proferido no Salão Nobre da Academia de Letras da Bahia,
como orador de sessão especial em homenagem póstuma ao acadêmico
Gerson Pereira dos Santos, no dia 15 de maio de 2014
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DISCURSO DE POSSE
Ordep Serra
C
omeçarei por uma ampla saudação: quero dar a minhas
palavras a forma de um abraço, singular e múltiplo. Nele
envolvo com alegria meus novos confrades, a Casa douta, os
amigos que a ela me trouxeram, seu ilustre presidente e todo o
público generoso aqui reunido, formado por pessoas queridas.
Abraço a todos e cada um, temperando com afeto minha reverência às autoridades presentes. A honra que me fazem há de
retornar a seu seio, multiplicada por gratidão e carinho.
Hoje me cabe fazer homenagens. A bela praxe da Academia com justiça me impõe lembrar o patrono e os antecessores, os homens ilustres que enobreceram a cadeira da qual serei
o novo ocupante. Vou fazê-lo com prazer. Mas antes tenho que
percorrer uma trilha maior de celebrações.
Ela começa em terreno banhado pelos rios do tempo,
um remoto mundo menino. Para visitá-lo, preciso de achar a
trilha certa, em que a saudade não me afogue e o floo da onda
irrevogável não me perturbe. Tenho, por sorte, excelentes guias:
meus netos Carlos e Letícia, acendem a aurora que me assinala o
caminho. Na infânciaa que os doisme devolvem, faço minha primeira estação de festa. Reverencio o homem sereno cujo brando
sorriso me banhava de alegria. Em minha lembrança, desfruto
de novo a luz dos olhos calmos que me acompanharam nos primeiros passos, nas primeiras letras. Sinto sua amável presença,
seu humor discreto, sua ponderação. Primeiro dos mestres, ele
bem cedo me convenceu, por seu claro exemplo, de que a paz é
a coroa do juízo, a grande meta da sabedoria, seu motor imóvel.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
A seu lado, outra visão me deslumbra. Reverencio a mulher luminosa que dava nomes divinos às cabras e brindava seus
filhos com poemas: a altiva sertaneja que não teve escola, mas
se empenhou em fundar um colégio e dirigiu uma biblioteca.
Seus conterrâneos ainda colhem os frutos de sua cultura. Por
sua iniciativa, preservou-se uma cidade histórica. Seus versos, tal
como suas telas, ainda hoje custodiam o patrimônio de Rio de
Contas, que também integram. Declaro alegremente minha gratidão ao belo casal de cujo amor nasci: reverencio Pedro e Ester,
que fizeram dos livros meu brinquedo predileto e ainda hoje me
inspiram com seu poético exemplo.
A seu redor diviso um coro variado de mestres de encantamento: violeiros, contadores de causos, músicos de reisado
tangendo bois dançarinos, rezadeiras, cordelistas, ourives de sol
e lua. O grupo logo aumenta: incorpora melodiosos tropeiros
que trilham as veias do sertão, chegam aos serros do Sincorá,
alimentam as feiras do Jequi, tocam a Chapada e de novo descem rumo ao litoral. Aos poucos eles se transformam: cavalgam,
agora, um trem de ferro. Já no Recôncavo, entre Cachoeira e
Salvador, o coro mágico agrega sereias, orixás e profetas, anjos
barrocos, mandus e madonas. Seu canto multicolorido corta as
ondas num imponderável navio telúrico, com uma gloriosa tripulação de diabinhos risonhos.
O coral viajante chega ao porto de Iemanjá onde tem a
regencia fantástica de Jorge Amado. Mais adiante, João Ubaldo
tomará a batuta — que é, ao mesmo tempo, um pincel de Carybé
— e desenhará novos maestros, gente de todas as músicas. Com
eles chegam alabês, mestres de capoeira, marujos alucinados, jagunços líricos, sambistas das festas de largo, boêmios à volta de
um Anjo Azul, pescadores com cestos de oferendas, baianas de
acarajé, lânguidas ninfas da praia, foliões da avenida que um trio
elétrico enlouquece e uma legião multicor de artistas: são poetas
da Boa Terra, muitos deles indo e voltando desta Academia, a
levá-la para a rua festiva, que depois lhe incorporam, num baile
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
de luzes, com as cores delirantes de Jenner Augusto. O marulho
do violão de Caymmi embriaga os navios, envolve a Bahia que
Rômulo Almeida reinventa, contorna os seios da cidade onde
Milton Santos logo virá sonhar uma ousada hermenêutica dos
espaços. Numa praça radiosa,à vista de minha saudade, de mãos
dadas com o povo da terra dançam baianos do mundo inteiro:
Rolf Gelewsky, Yanka Rudzka, Ernst Widmer, o bruxo Smetak,
o mago Kollreuter e Lina Bo Bardi, Agostinho da Silva e Pierre Verger misturam-se à negrada na grande ciranda de Edgar
Santos. Sinto que ela se prolonga: ainda vejo meu primo Lindenbergue Cardoso a marcar-lhe o ritmo. Glauber Rocha, com
sua câmera dialética, rica de mistérios, faz girar a Terra do Sol. À
porta de uma catedral demolida esbraveja o silêncio do Conselheiro arrancado ao ventre de uma árvore santa por artes sutis de
Mário Cravo. À volta, florescem melodias docemente bárbaras.
Nascem no Teatro dos Novos, em meio à safra dionisíaca de
Martim Gonçalves, os fascinantes cantores da Tropicália.
Não estranhem, amigos, a figura exótica que se insinua
nesse meio e me toma pela mão. Sei que a conhecem bem, a toga
que ostenta não os surpreende. Eu o vejo elevar-se que nem o
álamo (ou seria um loureiro?) sonhado por sua mãe às vésperas
do parto feliz. Agradeço aos excelentes professores que abriram
para mim a porta latina: graças a suas lições encontro o divino
cantor de Eneias a bordo de seu maior poema, no Colégio abençoado pelo nome de Antônio Vieira. Atraído pelos versos fascinantes do mago de Mântua, procuro a fonte onde ele bebeu:
Virgílio me faz sonhar com Homero. E vou a Brasília em busca
de quem me revele sua poesia.
Chego, então, à Universidade que Anísio Teixeira e
Darci Ribeiro estão a construir com ardente matéria de sonho para berço de um novo Brasil. Bem cedo ela será atacada
pelo obscurantismo de uma ditadura estúpida. Em diferentes
momentos vão deixá-la muitos de seus artífices e inspiradores — sábios, artistas, cientistas, mestres eméritos —: Roberto
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Salmerón, Oscar Niemeyer, Lúcio Costa, Waldir Pires, Nelson
Rossi, Cláudio Santoro… Centenas. Duzentos e vinte e três
partirão numa só leva. Assistoa invasão do novo campus, várias vezes repetida, por tropas lamentáveis que nem mesmo
percebem onde se acham, muito menos entendem o sentido
de seus próprios atos. Logo na primeira ocupação, as apostilas
de grego que transporto me fazem suspeito aos olhos de um
zeloso soldado. O infeliz imagina que eu carrego documentos
em russo, propaganda soviética, sei lá o quê. Assim me torno
o mais risonho dos universitários presos – e um dos primeiros
a ser liberado: um oficial finalmente percebe que todos os detidos se divertem com meu caso. Mas logo terei de tomar cuidado, pois os novos fiscais da política não demoram a descobrir
que participei, no papel de monitor, do perigoso projeto de
alfabetização de Paulo Freyre. Que já é um proscrito. Começo
assim a aprendizagem da luta renhida pela democracia.
Calma, não devo antecipar. Quero deter-me um pouco no
momento, para mim decisivo, em que encontrei Eudoro de Sousa, o mestre a quem devo minha formação intelectual. O célebre
helenista, historiador e filósofo, amigo de Jaspers e discípulo de
Heidegger, o erudito filólogo que se divertia estudando astrofísica, revelou-se um homem singular, arrebatado, generoso, com
um temperamento explosivo e terno ao mesmo tempo.Travamos logo uma amizade profunda. Com este sábio descobri as
riquezas da língua grega, os tesouros históricos acumulados na
bacia do Mediterrâneo, os esplendores do Egeu. Comecei pelos
grandes poemas atribuídos a Homero.
Ainda me lembro com emoção do dia em que terminei
minha primeira leitura da Ilíada no original. À noite, fui celebrar
esse feito em um boteco próximo ao campus, um barracão de
madeira frequentado pelos peões que então edificavam o Instituto Central de Ciências. Não demorei a ficar inteiramente bêbado, pois aderi ao perigoso contraponto etílico dos candangos: a
cada copo de cerveja, um estimulante gole de pinga. O resultado
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
foi esquisito. Apenas me lembro de que a certa altura subi a uma
mesa e comecei a recitar o primeiro canto da grande epopeia.
Não fui longe. Quando o sacerdote Crises invocou o senhor do arco de prata e o deus soturno veio, todo noite, nyktíeoikós, dizimar com suas flechas de peste os mulos, os cães e os
guerreiros aqueus, a emoção já me banhava o rosto.
Deu-se então o inexplicável. Seria de esperar que a assistência vaiasse o desatinado, o moço bêbado que proferia com
voz de assombro estranhos versos em língua desconhecida. Mas
foi o contrário que sucedeu. Os candangos analfabetos (em grego, pelo menos), aplaudiram com entusiasmo. No dia seguinte,
ao ressuscitar de uma ressaca homérica, julguei que Zeus tinhame enviado um sonho bizarro. Mas ao chegar ao campus fui
saudado por um peão, companheiro da recente farra, com efusivos parabéns: “Eh, baianinho danado! Que discurso bonito você
fez ontem!”
Ainda estou perplexo. E só lhes conto essa passagem para
explicar porque relaciono aqueles excelentes candangos entre
meus mestres de poesia.
Só um colega do Centro de Estudos Clássicos achou tudo
muito natural, não viu motivo algum para estranheza no acontecido. Foi justamente meu conterrâneo Jair Gramacho, o saudoso
poeta, que encontrei no dia seguinte, na W3, abraçado a uma
garrafa de vinho, festejando o aniversário de seu querido amigo
Quintus Horatius Flaccus. Agradecido, sinto que devo incluir
esses dois vates na minha homenagem, ao lado de Eudoro, de
Homero e dos peões dionisíacos.
Na UnB iniciei minha carreira de professor universitário,
ensinando grego a alunos de graduação dos Cursos de Letras, de
Humanas e até de Ciências da Saúde. Também dei aulas a colegas
mestrandos do próprio Centro de Estudos Clássicos. Mas isso pouco durou. Minha incipiente carreira foi logo truncada: no período
sinistro em que a ditadura se agravou e recrudesceram os ataques do
obscurantismo à instituição universitária, um interventor tacanho,
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
instalado abusivamente na reitoria da UnB, determinou o fechamento do notável Centro. Eudoro de Sousa foi acusado de subversivo por um energúmeno (um espião que mais tarde os estudantes
expulsaram do campus) e respondeu a um Inquérito Policial Militar. Ele não tinha qualquer atividade política, mas era por demais
amigo de seus alunos e praticava a liberdade de pensamento — coisa, na época, muito mal vista. O professor Xavier Carneiro foi arbitrariamente demitido. Outros membros do CEC, como o também
baiano Emanuel Araújo (o egiptólogo), viram-se redistribuídos.
(Tempos mais tarde, Emanuel foi parar na cadeia, em razão de sua
luta contra a ditadura). Tive cassada minha matrícula e cancelada a
bolsa que recebia: uma espécie de expulsão branca, sumária, sem
explicações. Assim como outros que a sofreram, eu era assíduo
nos protestos contra o regime, na contestação dos desmandos que
padecia a UnB. Era, sim, subversivo. Acho que continuo a ser. Com
muito gosto: não me arrependo nem um pouco.
Mais tarde, quando a ditadura já começava a cair de podre,
voltei à Universidade de Brasília para fazer o mestrado em Antropologia Social. Tive excelentes professores. A todos homenageio, na pessoa de Roberto Cardoso de Oliveira, saudoso mestre,
um dos patriarcas da nossa antropologia. Foi uma época bonita
em que Brasília me premiou com muita felicidade. Eu costumava frequentar o espaço do Instituto Central de Artes, onde tinha
lugar outro Programa de Pós-Graduação; mas confesso que não
o fazia por interesse na ementa das disciplinas. Lá não assisti aula
nenhuma. Em todo o caso, o motivo de minhas visitas era nobre.
Nunca cesso de admirar uma propriedade mágica dos cursos de
arquitetura, que sempre atraem bandos de moças bonitas. Com
uma delas me casei, poucos meses depois de iniciado um namoro
que dura até hoje, com paixão cada vez maior.
O casamento me rendeu grandes alegrias e também mudanças positivas no plano intelectual. Tornou-me muito mais
criativo. Minha produção foi bem pequena no período anterior,
cresceu e tomou vulto após o matrimônio. Dividindo minha
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
vida em “antes de Regina” e “depois de Regina”, verifico que só
na presente era passei à condição de escritor, título que aqui me
traz. Escrevi meu primeiro conto, que mais tarde foi premiado
num concurso literário, com o puro propósito de atrair a querida contando-lhe histórias da minha terra (esse conto, de nome
“Ajuda”, faz a celebração dos ótimos diabos de Cachoeira).
Acho que deu certo. Agora tenho trinta e seis anos de recém-casado e minha produtividade continua a crescer. Nada como uma
boa musa! Agradecido, reverencio com muita saudade Carlos e
Juracy, casal generoso e encantador a quem devo o que tenho de
melhor, o melhor de mim: dona Regina, evidentemente.
Ainda no período de minha primeira pós-graduação, passei uma temporada no Parque Nacional do Xingu, onde tive uma
rica experiência de campo e fiz grandes amigos na fantástica
ecumene que circunda as cabeceiras do rio, nicho de uma bela
civilização selvagem. Impossível citá-los a todos. Elejo os saudosos Naho e Takuman, príncipes, respectivamente, dos Kuikuro e
dos Kamayurá, para a homenagem que devo à gente xinguana, a
suas culturas entrelaçadas, a seu mundo encantador. Ao mesmo
tempo, celebro a luta que lá empreendem as novas lideranças —
ao lado de antigos guerreiros como o cacique Raoni — em defesa da esplêndida bacia hoje severamente ameaçada. E aproveito
para reiterar meu protesto contra a indecente política brasileira
de desrespeito contumaz aos povos indígenas, às riquezas naturais por eles preservadas.
A prática antropológica me aproximou de vários povos e
comunidades que sofrem abuso, violência, privação de direitos.
Comprometeu-me com muita gente. Nisso foram meus modelos
Olympio Serra e Pedro Agostinho. Perigosos modelos, pois me
envolveram em grandes lutas. Por sua causa amplio aqui meu rito
de homenagem: faço uma saudação especial aos Tupinambá da
Serra do Padeiro, hostilizados com perversa tenacidade por inimigos que cobiçam suas terras e contam com ferozes cúmplices
no aparelho de estado. Saúdo o cacique Babau, o mais frequente
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
preso político do Brasil de hoje. Homenageio da mesma forma o
povo sofrido do Quilombo de Rio dos Macacos, agredido covarde e sistematicamente, com estudada brutalidade, por uma força
pública nacional. Estendo esta saudação dolorida à dizimada juventude da periferia de Salvador, a Roma Negra que está sendo
branqueada à bala, perante a indiferença dos nossos Pilatos. Fico
só com esses exemplos, pois se fosse enumerar todas as gentes
que padecem esbulhos esofrem sevícias em nosso país, seria muito longoeste discurso. E triste demais. Eu os evoco saudando
quem luta por eles, como fazem, entre outros, Márcia Virgens,
Lidivaldo Brito, Yulo Oiticica, Rafael Soares, Lorena Volpini e o
incansável Júlio Rocha.
Mas quero também falar de avanços, de triunfos. Relembro
uma proeza de Olympio Serra que me evoca a história do ovo de
Colombo: uma surpreendente e inovadora descoberta do óbvio,
seguida de uma reconquista do tempo perdido, uma feliz intervenção curativa na grande amnésia do Brasil. Chamado a ocupar
um posto de coordenação na antiga Fundação Pró-Memória, ele
resolveu desafiar o vezo etnocêntrico, o cristalizado viés elitista
que marcava, até então, a política de preservação do nosso patrimônio cultural. Descobriu Olympio que monumentos da gente
branca e da classe de renda superior eram os únicos a merecer
registro nos livros de tombo do IPHAN: uma evidência que ninguém via, como há pouco Lidivaldo Brito mostrou. Feita essa
curiosa descoberta, Olympio atirou-se à campanha que resultou
no tombamento da Serra da Barriga, sede do quilombo de Palmares, com a fundação do Memorial Zumbi. Simultaneamente,
fez-me a encomenda de um projeto voltado para a proteção de
monumentos da tradição afro-brasileira. Elaborei esse projeto
com a ajuda do arquiteto Orlando Ribeiro e tornei-me seu coordenador. Pela primeira vez, um órgão de planejamento da prefeitura municipal desta metrópole veio a ocupar-se de um tipo
de assentamento urbano que antes nunca havia considerado: os
numerosos terreiros da capital baiana.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Nossa iniciativa teve pelo menos um grande sucesso: em
1984 o Ilê Axé Iyá Nassô Oká, o venerável Terreiro do Engenho
Velho, o formoso santuário da Casa Branca, tornou-se o primeiro
templo de uma religião de matriz africana tombado no país, o
primeiro monumento negro a ser oficialmente considerado patrimônio histórico nacional. Para isso, foi preciso vencer uma dura
resistência no seio do próprio IPHAN. Homenagem faço a Aloysio Magalhães e Marcos Vinicius Vilaça, que abraçaram resolutamente a causa e perseguiram de forma tenaz sua realização.
Hoje há sete templos dessa natureza tombados no Brasil,
seis deles em Salvador. Fui autor dos laudos antropológicos que
fundamentaram a medida em quatro dos correspondentes processos (Casa Branca, Bate-Folha, Gantois, Oxumarê) e também
integrei a equipe responsável pela exposição de motivos que fundamentou o tombamento da Serra da Barriga. Agora estou apoiando uma ousada iniciativa de lideranças de grandes abaçás baianos:
cinco veneráveis Casas se propõem a trabalhar para que a cidade
sagrada de Oyó, antiga capital do império ioruba (hoje parte do
território da Nigéria) seja reconhecida pela UNESCO como patrimônio da humanidade. Faço aqui minha homenagem ao templo
de Iyá Nassô, ao Gantois, ao Ilê Oxumarê, ao Opô Afonjá e ao Ilê
Maroiá Laji, que deflagraram essa bela campanha.
Do povo de santo, tenho conhecido grandes homens e
mulheres. Muitos teria a celebrar. Do valor dessa gente bem sabem os membros da Academia que incorporou a seus quadros
uma grande Ialorixá baiana, a Venerável Iyá Xangô, Odé Kayodê, Maria Stella de Azevedo Santos. Por falta de espaço, limitome à recordação de dois outros sacerdotes do axé, juntando, no
que lhes toca, a reverência à gratidão. É que ambos foram meus
nominadores. Nas sociedades tradicionais de cuja herança me
orgulho, o nominador deve ser especialmente honrado.
Com saudade, festejo o venerável Elemaxó do Engenho Velho, Antônio Agnelo Pereira, que me presenteou com uma epiclese
do Rei ardoroso. Olufihan me declaro, ciente do compromisso de
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
luta que envolve este oiê. É um título um tanto curioso para um
pacifista como eu, pois Olufihan quer dizer “guerreiro”. Mas sou
grato à dádiva do bom ministro de Oxalá, pois ele detinha saber e
autoridade. Aceito o dever que me impõe este nome solene, herança de Xangô: a luta constante por justiça.
Com alegria, homenageio também o venerável Babá Pecê,
Silvanilton da Encarnação Mata, que rege o Palácio do Arco-Íris,
o magnífico santuário baiano de Oxumarê. De seu egbé recebi um
nome que muito me honra, Olopitan. Graças ao bom amigo e a
sua ilustre Casa, creio que sou o único historiador brasileiro com
título dado não por uma universidade, mas por uma organização
popular, uma instituição tradicional da Bahia negra.
Minha louvação se eleva agora ao tom do oriki: celebro
o Rei de Justiça, o generoso e apaixonado Senhor do Fogo,
semeador de luz e de encantos; invoco a Rainha de nove mundos, dançarina do vendaval, bela guerreira armada de raios,
mãe amorosa. Por meio de ambos festejo a família inteira dos
Encantados. Com sua bênção quero prosseguir meu rito de
homenagem.
Não posso negar-me a fazê-lo. A sabedoria da Língua Portuguesa me adverte: ingrato é o mesmo que desgraçado. Não tenho
como nomear todos os homens e mulheres a quem devo gratidão; mas pelo menos contemplarei algumas pessoas capazes de
simbolizar os inúmeros merecedores de meu reconhecimento.
Em meu doutorado fiz amplo contato com gente boa,
ilustre e sábia. Haiganuch Sarian, minha orientadora, excelente
arqueóloga, filóloga respeitada, helenista de prestígio internacional, muitos caminhos me abriu. No Centre Louis Gernet da École de
Hautes Études en Sciences Sociales, os saudosos mestres Jean-Pierre
Vernant e Pierre Vidal-Nacquet me acolheram generosamente.
O assiriólogo Jean Bottero, bondoso amigo de quem tenho muita saudade, fez-me reaproximar de seus akadianos, rever a trilha
de Gilgamés. Aos mestres de Paris e da USP continuo, até hoje,
muito agradecido.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
O caro amigo François Laplantine foi meu cúmplice na
tentativa de aproximar nossas universidades, a UFBA e a Lyon
II. Quando nada, realizamos três ótimos seminários Lyon - Salvador: um lá e dois aqui.
Por longo tempo, abriguei-me à sombra de uma grande
árvore plantada por Thales de Azevedo. Exerci meu ofício de
professor em dois departamentos da Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da UFBA e mesmo aposentado ainda participo de um seu Programa de Pós-Graduação. Não vou citar todos
os bons colegas que tive e tenho, mas creio que celebrando nosso patriarca homenageio a turma inteira.
Permitam-me que celebre também a mais extravagante
das ciências sociais, a que continuo dedicado. Espero que meus
colegas não achem muito irreverente este elogio que lhe faço em
forma de parábola. É mesmo assim que vejo a Antropologia:
como a macaca que finalmente olhou para o próprio rabo e,
com o susto, passou por uma bela metamorfose. Ficou bonita,
embora desvairada. Tornou-se uma princesa sem trono, que por
não ter reino nem domínio algum frequenta as encruzilhadas:
reconheceu-se filha de Hermes e namorada de Exu. Tendo descoberto seu próprio etnocentrismo, ela já não se contenta em
ser um discurso ocidental sobre o resto do mundo. Ficou de
todo excêntrica. Com muito gosto, traiu os impérios onde teve
berço. É hoje uma estrangeira onde nasceu, e em qualquer lugar
onde se instale, erotizada pela saudade, sempre faminta de diálogo e cheia de dúvidas. Há quem a considere demasiado errante
e promíscua; há quem lhe reprove a mania de relativizar. Já eu
espero que ela continue assim: inquieta, desaforada e um tanto
escandalosa, herética, viciada em poesia.
Celebro também outra dama esquisita cujos delírios ainda
me fascinam. Caboclo da aldeia cachoeirana, malungo de terreiro, poeta de cordel, por causa do mestre Eudoro tornei-me
visitante de ilustres cenáculos. Eudoro mostrou-me a primeira
Academia, que era um jardim. Como tantos têm feito, ao longo de
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
séculos, procurei alimento no Banquete de que ainda se nutrem os
pensadores modernos, se está certo Whitehead. Para este, como
todos recordam, a filosofia que até hoje se faz cifra-se em comentários à margem de Platão. Será um exagero, por certo: eu o quis
transpor valendo-me da metáfora com que a soberba modéstia
de Ésquilo qualificou sua própria poesia, quando ele disse que os
criadores da tragédia se nutriam das migalhas do festim homérico. No banquete platônico, Eros foi celebrado, mas deixou a sala
ainda faminto, pois é insaciável. E exagerado. Por amor dele, fugi
da severa República de que o próprio Platão se exilou: afinal, era
poeta, nem ele mesmo o pôde negar. Relendo, há pouco, sua
sétima epístola (que talvez nem seja sua) me convenci de que o
grande filósofo, o primeiro acadêmico, nunca se ateve à letra de
seus teoremas. Hoje procuro filosofia que cante e dance, como
dizem que Parmênides fez quando o deslumbrou a revelação
do Ser, no termo de uma viagem arrebatadora em carro divino puxado por éguas sagazes para além do horizonte. Nessa
busca ainda prossigo, como diletante — título não desprezível,
segundo Schopenhauer. Ainda tento seguir os passos da Dama
esquisita, que sempre louvo, pedindo perdão pela ousadia aos
seus seguidores profissionais. Eu os admiro, mas uma coisa não
entendo: porque tanto se obstinam em decretar a morte de sua
amada e promover-lhe sucessivos enterros? Já deviam ter notado que ela sempre ressuscita. Peço de novo aos filósofos aqui
presentes que não se zanguem com meu atrevimento. Eu já disse
que os admiro e não quero, de modo nenhum, ser irreverente.
Juro pelas pernas de Diotima.
Após este elogio imprudente, sinto-me obrigado a mais
uma homenagem: devo-a aos alunos com que aprendi e aprendo. É claro que não posso relacionar suas numerosas turmas,
mas a todos me declaro agradecido. Felizmente continuo a beneficiar-me do contato com muitos deles. Agradeço também a
minhas filhas, Marina e Helena, e a meus netos, Carlos e Letícia,
que seguem cuidando de minha educação.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Não posso esquecer-me tampouco dos bravos companheiros de luta pela cidadania. Saúdo os colegas do Movimento Vozes de Salvador, do Grupo Hermes de Cultura e Promoção Social, de Koinonia, do Desocupa, do SOS Barra, da
nova Amabarra, do Movimento Nosso Bairro é Dois de Julho
e do Fórum A Cidade Também É Nossa. Este fórum a cujas
campanhas hoje me dedico de um modo especial reúne trinta e
nove associações mobilizadas em defesa de nossa urbe, empenhadas em proteger a princesa do Atlântico ferozmente maltratada, desfigurada, mutilada pela ganância infrene de quem
enxerga seu espaço como simples mercadoria. Saúdo quem
defende Salvador da rapina, do esbulho, da destruição de suas
áreas verdes, da venda imoral de seus espaços públicos, do sepultamento de seus rios urbanos, da cruel segregação que nela
cresce por obra de contumaz injustiça e de um vergonhoso sacrifício do planejamento urbano, entregue a empresas privadas
em prejuízo do interesse público. Saúdo quem, no país inteiro,
combate esse urbanismo de apartheid e defende o direito do
povo à cidade. Celebro com particular carinho os inconformados com a degradação galopante da Região Metropolitana de
Salvador e com as agressões brutais à Baía de Todos-os-Santos.
A propósito, peço a meu caro amigo Agostinho Muniz que
leve meu abraço aos sete jornalistas baianos processados por
exercer com brio a liberdade de imprensa. Solidarizo-me também com quantos, dentro e fora desta Academia, se obstinam
na defesa de nosso patrimônio histórico e resistem a um sistemático descaso para com nossas riquezas culturais. Abraço,
enfim, todos os que lutam contra abusos, desmandos e violências feitas a nosso povo.
São muitos os que assim homenageio. Imposssível nomeá-los a todos e louvá-los como bem merecem. Fiel a meu
método, escolho para os representar duas pessoas, duas mulheres admiráveis. Em nome de Todos os Santos da Bahia, bendigo Cristina Seixas, bendigo Hortênsia Pinho. Sua dignidade,
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
valor e inteligência as tornam símbolos do que nossa Bahia
tem de melhor.
Como sei que ambas gostam de música, quero associar-lhe
nessa homenagem dois dos Novos Baianos, uma dupla ilustre:
Carl von Hauenschild e Daniel Colina. Ficam eles a dever-lhes,
desde agora, um tango e um lied.
Estendo, por fim, minha saudação a quantos, pelo mundo afora, lutam por democracia verdadeira, com transparência
e participação efetiva do povo nos processos de planejamento
e gestão, na prática do governo responsável. Saúdo quem exige
respeito aos direitos humanos e pugna pela preservação do meio
ambiente. Festejo quem não se conforma com a desigualdade,
com a opressão e a injustiça.
Com este mote passo ao núcleo de minha louvação, agora dirigida, segundo a boa praxe, aos que me antecederam na
sede a mim destinada pela boa vontade dos membros desta
egrégia Academia.
O patrono da Cadeira que devo ocupar foi um cientista,
um brilhante médico e professor: Francisco Rodrigues da Silva,
que nasceu em 1831 aqui em Salvador e faleceu em Paris, em
1886. Homem erudito, escreveu tratados de Física e Química,
mas também se ocupou de educação. Tratou do que hoje chamamos de ensino fundamental e médio (primário e secundário,
na nomenclatura da época), assim como das escolas normais;
porém aplicou-se principalmente ao exame dos problemas que
em seu tempo afetavam o ensino médico. Com toda a franqueza,
criticou o despreparo dos alunos que lhe chegavam à Faculdade
de Medicina. Isso bem indica que ele tinha razão de preocupar-se com a formação preliminar dos estudantes, candidatos
ao curso no qual pontificou. Consciente do seu papel de mestre, examinou com rigorosa atenção o “Estado do Ensino Superior”, apontando os “vícios e lacunas de sua organização” e
preconizando as “reformas necessárias”. A seu critério, as que
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
se ensaiaram no seu tempo eram falhas e precipitadas. Travou
boa luta contra a burocracia dos regulamentos frouxos que davam espaço a práticas pedagógicas irresponsáveis. Vê-se bem
que era um homem sério, um docente digno. Com muita justiça
ele integrou o Conselho Superior de Instrução Pública, em que
teve papel de destaque. Experiência didática não lhe faltou: além
de ter ensinado Geometria e Trigonometria no Liceu Provincial,
ele ocupou duas cátedras na Faculdade de Medicina da Bahia,
de que veio a ser diretor. Era titular deste cargo quando faleceu.
Homem de prol, teve reconhecidos seus méritos: recebeu as comendas das Ordem da Rosa e da Ordem de Cristo. Sua atuação
na Campanha do Paraguai lhe valeu uma medalha. Respeitado
como poucos na profissão, ganhou fama também por seus dotes
de orador e ingressou na política: elegeu-se deputado à Assembleia Legislativa da Província.
Foi também um médico e um educador o primeiro a ocupar a Cadeira 27 desta Academia: o Dr. Frederico de Castro Rebelo, nascido em Salvador no ano de 1885 e falecido na mesma
cidade em 1928. De acordo com o Dr. José Tavares Neto, Castro
Rabelo inaugurou a cátedra de pediatria da Faculdade de Medicina da Bahia, onde se formou. De começo, ofereceu-se para
ensinar gratuitamente a matéria em que veio a especializar-se e
ainda trabalhou de graça no hospital da instituição. Numerosos
testemunhos dão conta de que este generoso clínico teve um
sucesso extraordinário na profissão: segundo Antonio Vianna,
ele era chamado até de “médico milagroso” e de “taumaturgo”.
O Dr. Martagão Gesteira o intitulava “clínico profeta” e “quase
divino”. Célebre por sua perícia, ele foi também muito festejado por sua abnegação. Chamaram-no de “médico dos pobres”,
porque dedicava parte de seu tempo a tratar dos necessitados,
de quem nada cobrava. Os escritos que deixou são basicamente
teses e ensaios no campo da ciência médica; mas, tal como o
patrono, ele também se preocupou com educação e abordou de
forma crítica as reformas pedagógicas ensaiadas em sua época.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Encontram-se ainda referências a seu talento musical e sua habilidade de desenhista, a que certamente associava muito bom
humor, pois gostava de caricaturar-se.
Louvo o patrono e o fundador com a lembrança do que os
gregos diziam: tal como os poetas e os cisnes, também os médicos vêm de Apolo, regedor das Musas. Pode confirmá-lo nosso
presidente, o escritor Aramis Ribeiro Costa, membro, também
ele, do venerável clã asclepíada.
O segundo acadêmico eleito para a Cadeira 27 foi Antonio Gonçalves Vianna Júnior. Soteropolitano, Antonio Vianna
(que era como assinava seus escritos) nasceu em 1984 e faleceu
na sua cidade natal em 1952. Ao contrário de seu aristocrático
antecessor e do abastado patrono, provinha da classe média. Fez
uma bela carreira de funcionário público, chegando a ocupar
altos postos. Considerava o jornalismo, ofício em que se distinguiu, “a síntese de todas as profissões”. Suas crônicas saborosas,
muitas delas reunidas no livro Casos e coisas da Bahia, são quasi
-etnográficas: retratam vivamente costumes da terra, tradições
baianas, tipos e festas populares da encantada Salvador do seu
tempo. Legou-nos, por exemplo, um cálido quadro do São João
desta capital, que na primeira metade do século passado pudera
ainda classificar-se como “rurbana”; do mesmo modo nos retratou seu ciclo de Reis e os festejos da Conceição, entre outros
eventos. Na verdade, ele veio a ser um de nossos mais notáveis
folcloristas — e ainda nos deixou uma continuadora ilustre, sua
filha Hildegardes Vianna, que também participou desta Academia, onde ecoa sua saudade. A meu ver, merece destaque a
produção lírica do melodioso bardo que foi Antonio Vianna,
inspirado por imagética e sensibilidade musical tipicamente simbolistas. Destaco seu perfeito domínio da forma soneto. Talvez
o mais conhecido dos seus poemas dessa classe seja o que leva
o título de Pesares e tem uma tessitura camoniana. Trata-se, a rigor, de um pastiche tão bem realizado que vai além do pastiche,
pois não lhe falta originalidade. (É o mesmo que acontece, por
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
exemplo, com as odes horacianas de Ricardo Reis, o heterônimo
epicurista de Assembléia Fernando Pessoa). Parece-me, contudo, que a maior parte dos sonetos de Vianna, quiçá os melhores,
evocam antes o estilo onírico, musical e caprichoso de um Cruz
e Sousa. Em alguns deles se percebe o mesmo tom de erotismo
sutil que enfeitiça os poemas sousianos.
A Antonio Vianna sucedeu nesta ilustre Cadeira Jaime
Tourinho Junqueira Aires, nascido em Salvador em 1901 e falecido na mesma cidade, em 1973. Oriundo de uma família tradicional do Recôncavo, passou a infância em Santo Amaro da Purificação. Transferindo-se bem cedo para a capital, formou-se em
Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da Bahia,
onde depois ocupou a cátedra de Direito Civil. Foi também Livre Docente da Faculdade de Direito da Universidade do Brasil
e destacou-se por sua pedagogia brilhante. Teve uma notável
carreira política: elegeu-se, por dois mandatos, deputado estadual constituinte e presidiu a Assembleia Legislativa da Bahia; nesta condição, por mais de uma vez ocupou o Governo interino do
Estado. Sua obra édita compõe-se basicamente de estudos jurídicos (dois ensaios contemplando problemas de filiação) e peças
de oratória, inclusive discursos pronunciados nesta Academia.
Sabe-se, porém, que ele era chegado à sátira. E tinha afinidades
com outras musas, mais amenas. No discurso com que o acolheu neste sodalício, Otávio Mangabeira, entre outras deliciosas
indiscrições, denunciou-lhe a feitura de um belo soneto. Acusou
também seu gosto secreto por serenatas e modinhas.
Ao jurista emérito e cantor episódico sucedeu-lhe Antônio Loureiro de Sousa, renomado jornalista nascido em Cachoeira no ano de 1913 e falecido em Salvador, em 1989. Na cidade
de Castro Alves, ainda bem jovem, ele fundou um jornal; em
Cachoeira destacou-se como redator de outro periódico; em
Salvador, teve uma atuação significativa e múltipla na imprensa,
em diferentes veículos: em A Tarde, sua seção crítica intitulada
“Autores e Livros” marcou época. Sua colaboração foi constante
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
e rica também nos periódicos Estado da Bahia e O Imparcial. Além
disso, ele integrou o Conselho Estadual de Cultura, a Associação
Baiana de Imprensa, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais da
Bahia, o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e o Instituto
Histórico de São Paulo. Foi ainda Diretor do Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Salvador e ocupou outros cargos
importantes para a vida cultural baiana. Tendo-se bacharelado
pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, nela exerceu a docência, vindo mais tarde a ensinar, também, na Escola de Biblioteconomia da mesma
instituição universitária. Com seu livro Baianos Ilustres, Antonio
Loureiro de Sousa obteve o prêmio Carlos de Laet da Academia
Brasileira de Letras. Escreveu ainda outras obras importantes,
a exemplo dos livros em que tratou de Gregório de Matos e de
Balzac. Merece destaque, também, sua erudita Notícia histórica de
Cachoeira. Em 1950, o cronista da Cidade Heroica atuou com
brilho no III Congresso Brasileiro de Escritores.
Devo falar agora de um grande homem que esta Academia ainda pranteia: o grapiuna James Amado, erudito a quem
muito deve a cultura nacional, pois ele a ilustrou como escritor
brilhante, crítico de arte, tradutor perito, príncipe dos editores, dedicado ao cultivo da inteligência e da liberdade, cidadão
exemplar. Nascido em Ilhéus em 1922, morreu nosso polígrafo
no ano passado, aqui em Salvador, depois de ter ocupado por
vinte e três anos a Cadeira 27 da Academia de Letras da Bahia.
Deixou o legado de uma obra muito rica e uma lacuna impossível de preencher. Formado pela Escola Livre de Sociologia
e Política de São Paulo, o saudoso escritor conviveu com uma
plêiade de intelectuais que o admiravam profundamente e conquistou, por seus muitos méritos, a estima do povo, o respeito
dos estudiosos. Esta Casa tem muito que lhe agradecer, pois
ele a enriqueceu com a extraordinária riqueza de seus escritos e
também com a inclusão de um genial conviva, oriundo de nosso passado. A Academia de Letras da Bahia pode já dizer que
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
incorpora a seu grêmio o gênio de Gregório de Matos Guerra,
desde quando um dos membros de seu sodalício resgatou-lhe
a obra numa edição primorosa. Assim o erudito Amado fez
volver a nossa terra um dos seus maiores escritores: trouxe
a nós sua poesia renovada, livre das peias da moral hipócrita
que a mutilava; reintegrou-a com apuro filológico, restaurou-a
com clarividência de sábio. É certamente uma graça do céu ter
conosco o Boca do Inferno — e nós devemos a James Amado
esta grande dádiva. Bastaria sua bela proeza de filólogo para
que ele fizesse jus ao reconhecimento dos acadêmicos baianos
e de todos os brasileiros. Todavia suas façanhas foram muito
além. Lembremos, para começar, outro feito semelhante: recorde-se mais um dom de sua Editora Janaína, que grandes
tesouros salvou do naufrágio. Como se sabe, ela fez emergir
de novo a poesia de Junqueira Freire. Veem bem os amigos
porque chamei o escritor a quem agora rendo homenagem de
príncipe dos editores. Sequer se avaliou ainda a grandeza do
trabalho realizado pelo Serviço de Informação Cultural concebido e implantado no Rio de Janeiro, na década de 1960, pelo
incansável Amado, com a colaboração de Miécio Tati: uma esplêndida máquina difusora de textos sobre livros, alcançando
a imprensa de todo o país. Não há como negar que estamos
falando de um produtor cultural incomum, prodigioso. E que
dizer do tradutor de mais de cinquenta livros que tantas obras
primas literárias tornou acessíveis aos brasileiros? Poucas instituições culturais terão feito tanto quanto ele para ilustrar nosso
povo. Mas bastaria para consagrá-lo sua própria obra literária.
Seu romance O chamado do mar e seu livro de contos intitulado
A Rosa e a sentinela conquistaram a admiração de grandes mestres da ficção no Brasil, a exemplo de Osman Lins, José Geraldo Vieira, Graciliano Ramos. Sua novela “O levante do posto”
foi muito esperada e louvada por quem logrou conhecê-la ainda em esboço. Em matéria de ficção, cabe dizê-lo um grande
escritor que escreveu pouco; só que seu pouco supera muitos.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Pode esta Casa orgulhar-se de ter abrigado expoentes de
uma família que contribuiu com fantástica riqueza para a literatura nacional. Jorge, Zélia, James, esses três de fato não nos deixaram: seguem comunicando viço e esplendor a sua Academia.
Desejo concluir este discurso com um agradecimento sincero. Premiando-me por duas vezes, esta Casa generosa acabou
por fazer-me acreditar que sou mesmo escritor. A ficção que eu
produzia per diletto, aproveitando os momentos de lazer, tornouse, agora, um dos focos principais da minha atividade intelectual.
A isso fui levado por seu estímulo. Como se não bastasse, Vossas
Senhorias fizeram-me acadêmico. Que mais posso dizer-lhes?
Só uma coisa: prezados confrades, queridas confreiras, aqui estou em lugar eminente, em alta sede colocado, um tanto perplexo. Mas a culpa é sua.
Muito obrigado. 1
Ordep Serra é graduado em letras e mestre em antropologia social pela
Universidade de Brasília, doutor em antropologia pela Universidade de
São Paulo. Dirigiu o Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural do Estado da Bahia e foi diretor-presidente da Fundação Cultural do Estado
da Bahia. É membro do Conselho de Cultura do Estado da Bahia. É autor de vários livros de ensaios. Como ficionista, venceu por duas vezes o
Concurso Nacional Academia de Letras da Bahia de Literatura, em 2008
com Sete portas, e em 2010 com Ronda — Oratório malungo. Eleito para a
Cadeira número 27 da ALB em 22 de maio de 2014.
Discurso de posse do acadêmico Ordep Serra na Cadeira número 27,
proferido em sessão solene, no Salão Nobre da Academia de Letras da
Bahia, em 4 de setembro de 2014.
336 ◄◄
DISCURSO DE RECEPÇÃO
A ORDEP SERRA
Luís Antonio Cajazeira Ramos
E
xcelentíssimos membros da mesa desta Sessão Solene, escritor Aramis Ribeiro Costa, presidente da Academia de
Letras da Bahia; professor Albino Rubim, secretário de cultura
do Estado da Bahia; professora e acadêmica Consuelo Pondé de
Sena, presidente do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia;
professor, acadêmico e cachoeirano João Carlos Salles, reitor
da Universidade Federal da Bahia; governador Waldir Pires. Senhoras e senhores acadêmicos, meus caros confrades. Familiares
do escritor e acadêmico Ordep Serra, em especial sua querida
companheira, Regina Serra. Amigas e amigos de Ordep Serra
presentes a esta cerimônia.
Hoje é o dia mais importante da história desta Academia
de Letras da Bahia. É um dia imortal. Um dia infinito. Ele teve
um início, mas não terá fim. Este dia começou quando o engenheiro Arlindo Fragoso, idealizador, organizador e fundador
desta casa de cultura, tomou posse da Cadeira 19, que pertencia
somente ao patrono, João Maurício Vanderley, Barão de Cotegipe, e ao fundador, Severino Vieira. Assim nasceu este dia: quando o patrono e o fundador de uma cadeira acadêmica acolheram,
pela primeira vez, um novo ocupante da cátedra. Quis o destino
que fosse ele, Arlindo Fragoso, a inaugurar esse congraçamento.
Ele, que firmara a solidão dos quarenta patronos. Ele, que estabelecera o diálogo dos patronos com os quarenta fundadores.
Ele, sim, a ele coube ser o primeiro sucessor de uma cadeira acadêmica, dando início a este dia de eterno congraçamento, cujas
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
horas, intermitentes, são contadas a cada sucessão nas quarenta
cadeiras imortais, a cada ingresso de um novo membro na comunidade acadêmica.
Este dia, portanto, permanece presente,chegando até
hoje, quando um novo acadêmico toma posse e assume posição
no silogeu, desta vez na Cadeira 27. Os ocupantes dessa cátedra,
o patrono, Francisco Rodrigues da Silva, o fundador, Frederico
Rabelo, e os sucessores, Antônio Vianna, Jayme Junqueira Ayres,
Antônio Loureiro de Souza e James Amado, estão no comando
desta sessão. Aliás, eles comandam todo o processo sucessório
da cadeira. Foram eles que saíram do conforto da eternidade
e procuraram os demais confrades, um a um, para sugerir-lhes
um nome, ou melhor, para convencê-los a aprovar o nome de
sua preferência. E assim construíram a unanimidade da eleição.
Depois, conversaram separadamente com o presidente Aramis
Ribeiro Costa para propor-lhe o nome do confrade que deveria
saudar o novato, porque eles, imersos na imortalidade, já não falam ao público, já não participam do burburinho da vida social.
E o nome que esses silentes, presentes e honoráveis senhores
indicaram foi o meu.
Eis-me aqui, confrade Ordep Serra, nesta noite que não é
noite, e sim dia claro, essa noite que é uma fração do dia luminoso e iluminado do congraçamento acadêmico. Eis-me aqui, indicado por seus antecessores da Cadeira 27 e aprovado por nosso
dileto presidente, para saudar o ingresso de Vossa Mercê neste
sodalício. Em geral, recepcionar um confrade é uma das mais
destacadas honrarias acadêmicas, uma prova de reconhecimento
e amizade. No particular, é para mim uma alegria das maiores
ter o prazer de estar aqui para falar de Ordep Serra, para dizer
do respeito e da admiração que esse ser humano especial merece
de todos nós. E que aqueles honoráveis senhores que o antecederam me permitam uma confissão: eu também confabulei, eu
também participei dessa trama. Orientado pela sabedoria que
deles emana, eu fui um leva e traz de sua inquestionável vontade.
338 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Talvez por isso eu tenha caído nas graças desses antepassados. E
espero estar à altura da missão com que me destacaram.
Começo a falar de Ordep Serra fazendo um sumário curricular de sua formação e de sua atuação universitária. Já sua vida
privada, a convivência familiar, as iniciações e descobertas da infância, as experiências da juventude e os questionamentos íntimos
da maturidade, eu prefiro deixar para seus biógrafos e para suas
memórias. Nosso cachoeirano graduou-se em letras pela Universidade de Brasília em 1967. Concluiu o mestrado em antropologia
em 1979, também pela Universidade de Brasília, com a dissertação Na trilha das crianças: os erês num terreiro angola, sendo orientado
pelo professor Roque de Barros Laraia. Doutorou-se em ciência
socialem 1997, agora pela Universidade de São Paulo, na área de
antropologia social, com a tese O reinado de Édipo, orientado pela
professora Haiganuch Sarian. Em 2012, fez o pós-doutorado em
letras na Universidade Federal da Bahia, no programa de literatura
e cultura, na linha de pesquisa sobre estudos de teorias e representações literárias e culturais, concentrando-se em criação literária,
sob a orientação da professora Antônia Torreão Herrera.
O professor Ordep Serra iniciou seu magistério no ensino médio, nas disciplinas de língua portuguesa, de literatura e
de introdução à filosofia, em escolas de educação formal, como
seu querido Colégio Antônio Vieira, em Salvador, e em cursos
pré-vestibulares, como o Curso Pré-Universitário de Brasília. No
ensino superior, exerceu a docência por mais de três décadas,
inicialmente na Universidade de Brasília, depois em Salvador,
aposentando-se como professor adjunto da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia,
onde foi chefe do departamento de antropologia e etnologia,
membro da congregação, membro do colegiado da pós-graduação em ciências sociais, do mestrado em sociologia, do conselho
do museu de arqueologia e etnologia, do conselho de ensino,
pesquisa e extensão e de sua câmara de extensão, além de ter
sido pró-reitor de extensão da universidade.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Na atividade docente universitária, ministrou diversas
disciplinas da graduação e da pós-graduação: tópicos em filosofia, introdução à sociologia, antropologia geral, teoria antropológica, antropologia da arte, antropologia simbólica, antropologia da religião, antropologia do negro brasileiro, territórios
negros, comunidades tradicionais, antropologia das sociedades
indígenas, etnografia, metodologia em antropologia social,
hermenêutica sócio-antropológica, teorias sociais contemporâneas, seminário de ciências sociais e de metodologia, ciências
sociais em saúde, prática de pesquisa em antropologia e em
sociologia. Na pesquisa acadêmica, desenvolveu estudos sobre
etnologia, etnicidade e relações raciais; patrimônio, linguagens
e memória social; religião e simbolismo. Foi ainda palestrante,
colaborador e coordenador de cursos e atividades de diversas
naturezas na extensão universitária.
Sua dedicada atuação como professor e pesquisador em
sociologia e antropologia, sua participação em congressos, simpósios e os mais variados encontros de profisionais das ciências sociais, seus serviços de monitoria, assessoria e consultoria
acadêmica, suas inúmeras publicações científicas e técnicas em
livros e revistas especializadas, enfim, seu intenso trabalho intelectual e sua produção acadêmica fazem dele um destacado
membro da comunidade científica brasileira nas áreas das humanidades. Seu primeiro livro publicado é uma ousadia do cientista
social com formação em literatura: A gesta de Gilgamesh, uma tradução de fragmentos da epopeia sumeriana fundadora da poesia
universal, um dos mais fecundos alicerces culturais do cadinho
de povos que deram origem às grandes civilizações do Oriente
Próximo e de todo o Ocidente.
Os livros seguintes de Ordep Serra são uma coleção de
primorosos ensaios sobre os temas culturais que mais o apaixonam, situados num terreno limítrofe entre a linguística, a literatura, a filosofia, a política, a história, a sociologia, a antropologia,
a etnologia e a religião, nos quais suas reflexões sobre a cultura
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
clássicada Ásia Menor e da Europa Mediterrânea, a herança africana, a herança indígena e as mais diversas manifestações da
cultura popular se encontram, se confrontam, se comparam,se
estranham, se entendem, se integram, dialogam e buscam conciliar uma compreensão do homem como ser social e agente de
cultura. Neste meu discurso, porém, não cabe fazer apreciação
de sua literatura científica, notadamente pelo incontornável fato
de que me faltam o conhecimento, a formação acadêmica, a fundamentação teórica, o instrumental metodológico, a experiência
prática e o discernimento crítico para tamanha pretensão.
Numa visão panorâmica, vale registrar ao menos os temas explorados pelo autor. Em O simbolismo da cultura, conceitos
como identidade, comportamento simbólico, produção simbólica, monumento, mito. Em Águas do rei, considerações históricas,
sociológicas, étnicas, linguísticas e religiosas de culturas africanas
e afro-brasileiras. Em Rumores de festa, uma apreciação do sagrado
e do profano nas festas cívicas, religiosas e mundanas de nossa
baianidade. Em O mundo das folhas, um estudo etnobotânico e linguístico sobre as plantas nos rituais do candomblé. Em Veredas,
o instigante tema da antropologia infernal, as viagens aos infernos e a consciência da morte em grandes obras da literatura. Em
Um tumulto de asas – Apocalipse no Xingu, um estudo comparativo
da mitologia xinguana, a partir do universo cultural dos índios
kamayurá. O Hino homérico a Deméter e o Hino homérico a Hermes
são dois livros de tradução de sua lavra helenística, ambos com
alentados estudos introdutórios de cunho antropológico, filológico e literário. Em sua tese vertida em livro, O reinado de Édipo,
um estudo antropológico sobre o mito de Édipo e suas significações na literatura, na psicanálise freudiana e nas ciências sociais,
um livro que se completa com outro, Rei Édipo, traduzido de
Sófocles. E o livro mais recente, Navegações da cabeça cortada, com
diversos textos centrados em temas da cultura grega clássica.
A formação acadêmica, o vasto campo de pesquisa e
produção literária e a inquietação intelectual de nosso confrade
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
indicam os caminhos de sua vinculação política com diversos
ambientes culturais da sociedade e os desdobramentos de sua
ativa ação social. No setor institucional, Ordep Serra é membro
da Associação Brasileira de Antropologia, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e da Sociedade Brasileira de
Estudos Clássicos. Dirigiu o Instituto do Patrimônio Artístico e
Cultural do Estado da Bahia e foi diretor-presidente da Fundação Cultural do Estado da Bahia. Atualmente, é membro titular
do Conselho de Cultura do Estado da Bahia, no qual acumula o
cargo de presidente da câmara de patrimônio histórico, artístico,
arqueológico e natural.
A participação associativa é uma marca da disposição de
Ordep Serra para colaborar na discussão da cidadania e da problemática social, com atuações efetivas e sempre consequentes.
Assim, é membro fundador da organização não governamental
Koinonia, Presença Ecumênica e Serviços, a qual visa ao diálogo
interreligioso e à consecução de projetos de promoção social
e de justiça social; é membro fundador da Associação Observabaía; é membro do grupo de pesquisa Encruzilhada dos Saberes; é fundador, primeiro coordenador e atual conselheiro do
Grupo Hermes de Cultura e Promoção Social; é coordenador
do Movimento Vozes de Salvador; e é membro do Fórum A
Cidade Também é Nossa, dentre outras associações.
A ligação visceral, sentimental e intelectual de Ordep
Serracom as múltiplas expressõese manifestações da cultura de
matriz africana faz dele um membro efetivo ou afetivo de uma
espantosa quantidade de grupos culturais e instituições sociais
e religiosas da Bahia Negra. Desde candomblés a comunidades
quilombolas, de afoxés a blocos de samba ou batucada, de grupos de capoeira às inúmeras associações culturais que vicejam
nos bairros de Salvador, nas cidades do Recôncavo e nas outras
regiões e territórios identitários do estado. Em todos esses lugares
largos Ordep Serra exerce, nem que sejam indiretamente, funções
políticas, simbólicas, administrativas, educacionais, religiosas e be342 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
neméritas, às vezes com a força suave e vigorosa de sua presença
física, mas sempre por ser uma referência como liderança intelectual de resistência cultural e de labuta permanente e incansável
pelo reconhecimento, pela valorização, pela preservação e pelo
desenvolvimento desse patrimônio de nossa imanência e de nossa transcendência.
Por tudo o que eu resumi até aqui de forma superficial e aligeirada, Ordep Serra já deveria estar compondo os quadros desta
agremiação. Porque numa academia de letras assentam-se não apenas escritores que produzem no campo da criação literária, como
ainda aqueles mestres cuja elaboração textual integra as tantas literaturas que transitam no universo das humanidades. Acontece que
Vosmicê é também um artista, confrade Ordep Serra! E não somente um artista diletante, que arrisca nas artes uma fuga prazerosa
da militância acadêmica, política e social. Suas incursões na música,
nas artes visuais, nas artes cênicas e na poesia são registros de uma
alma lírica engenhosa, com a disciplina técnica de um artista nato.
Seu oratório Descrição do martírio foi musicado por Milton Gomes
em 1965. Sua Louvação a Oxum foi musicada por Roberto Mendes
e gravada por Maria Bethânia em 1992. Em 2004, Carlos Gregório
gravou em vídeo seu trabalho Intolerância religiosa – Ameaça à paz.
Em 2006, alguns cordéis de sua autoria foram reunidos no livro
O encantamento de sua santidade – Canção de fogo. Um desses cordéis,
adaptado para o teatro por Carlos Gregório, foi encenado no Teatro dos Novos em 2003, preservando o título original tipicamente
cordelista: Bodas de mangue – A trágica história da gringa mal servida.
O flerte desta casa com Ordep Serra se transformou em
namoro quando foi aberto o envelope com o nome do vencedor do Prêmio Nacional de Literatura da Academia de Letras da
Bahia na categoria de contos em 2008. Seu livro Sete portas foi
o vencedor. Para muitos, seria uma surpresa. Naqueles textos
de ficção curta, o autor vertia da veia literária histórias de uma
gente simples de sua cidade natal, numa linguagem despojada e
carregada de sotaque, em que o épico e o lírico se condensavam
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
em tramas comezinhas, para representar a complexidade universal dos homens. Em 2010, um surpreendente e inédito bicampeonato sela firmemente o compromisso de Ordep Serra com a
literatura. Ele ganha mais um prêmio literário da Academia, na
categoria ficção com temas de matriz africana. O livro Ronda —
Oratório malungo, nas palavras do escritor, professor e acadêmico
Aleilton Fonseca, “coloca em evidência a voz plural que representa o universo afro-brasileiro, de forma efetiva, com alta carga
de significação”. O último texto trazido pelo autor a esta casa foi
a palestra Breve reflexão sobre os hinos órficos, proferida em sessão
ordinária no dia seis de junho de 2013, seguida de sua leitura
de alguns desses hinos traduzidos por ele diretamente do grego
clássico. Finalmente, em sessão eleitoral no dia 22 de maio de
2014, seu nome foi unanimemente indicado para a vaga deixada pelo saudoso confrade James Amado, com votos suficientes
para antecipar sua eleição.
E eis que chegamos a quatro de setembro de 2014, que não
é somente esta data: é um dia histórico e infinito, em que Ordep
Serra, indicado pelos antecessores, escolhido e conduzido pela admiração dos confrades, recebe a medalha e o diploma acadêmicos
e toma posse eterna da Cadeira 27 deste templo das letras baianas.
E, honrando a cátedra, acaba de dignificar a memória dos antecessores e narrar para todos nós sua emoção, seu orgulho, sua alegria.
Sobre a fala do acadêmico, que ouvimos há pouco, eu faço duas
observações. A primeira delas: o confrade fez uma longa lista de
agradecimentos. Quase todo seu discurso foi uma sucessão de nomes gratos, que lhe são caros. Quero crer que isso demonstra quão
amplo, quão profundo é o respeito do confrade pela vida humana,
quão intensa é a relação dele com as comunidades, as famílias e as
pessoas de sua convivência. E mais: quão generoso é seu coração.
A outra observação é sobre o final do discurso, quando ele disse aos acadêmicos: “A culpa é sua”. Quem lhe teria sugestionado
a crer que seu ingresso nesta comunidade acadêmica seria culpa
destes seus novos confrades? Qual nada! A culpa é sua, Ordep
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Serra! Vossa Mercê é o único culpado de ter dedicado a vida à
inteligência, à produção intelectual, à atenção à cultura. Nós aqui
fomos apenas seus juízes. Nós julgamos Vosmicê exemplarmente
e chegamos à sentença mais justa. E, assim, nós decidimos que
Você fosse condenado a uma pena inescapável: a imortalidade.
Parabéns, acadêmico. Parabéns, meu amigo. E muito obrigado pela confiança. Se os antepassados sopraram-lhe meu nome
para recepcioná-lo em nome de todos, sei que a decisão foi sua.
Devo-lhe uma, agora. Mas eu quero pagar agora mesmo. Portanto, venha, Ordep. Abrace Regina e venha comigo. Vamos sair deste mundo ilusório em que acordamos todos os dias quase que tão
somente para termos de conviver com as dores tenazes e as alegrias fugazes do cotidiano. Isso tudo é mentira, Ordep, tudo não
passa de engano dos sentidos e da mente. Vamos embora para o
mundo real e verdadeiro. Mas vamos preparados. Para isso, devemos primeiramente mergulhar em suas mais profundas lembranças, em sua memória de infância em Cachoeira, em suas andanças
pelo sertão e cidades da Bahia, em todo esse universo de cultura
e saber de seus entes queridos e respeitados, em seu catálogo de
observações das pessoas, das casas, das ruas, das praças, das feiras,
das roças, dos terreiros, das capoeiras e de toda sua geografia.
Pronto. Agora podemos seguir. E vamos cantar. Vamos
chamar. Vamos mandar descer. Antes, vamos afinar os instrumentos. A harpa, a lira, a flauta, a cítara. Os atabaques não podem
parar de bater. A sanfona comendo no centro. Eia que lá vêm as
crianças! Os efebos com seu aretê, os curumins buliçosos, os erês
endiabrados, os querubins com suas faces de beatitude. Vamos
pedir a eles que formem a primeira roda para dançar o quarup, pés
avançando firmes no mesmo ritmo: tum, tum, tum. Depois, vamos chamar. Vamos pedir pra descer. É certo que Eros e Exuvão
chegar logo, esses dois curiosos. Eros ficará à espreita, desejoso
do que está por vir. Exu subirá de volta, correndo, para avisar,
numa excitação só, enquanto os penetras se adiantam em atropelo: sátiros e sacis, ninfas e uiaras, centauros e mulas sem cabeça,
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
górgonas e curupiras, quimeras e boitatás, heróis e pretos velhos,
santos e caboclos, magos e eguns. Todos aqui, no salão espaçoso,
alegres, felizes, à espera da dádiva que vem do alto. Todos olhando
para cima e aguardando. Enquanto afesta não para. Acendem-se
as fogueiras. Soltam-se os rojões. Cresce a música. E todos riem, e
dançam, e cantam, e chamam para descer.
A algazarra é tamanha, é tanta, e tão sincera, e tão contagiante, que os olhos poderosos nunca vistos agora se voltam
para cá. E longe, onde estão, inalcançáveis, eles despertam. Mas
não há fúria ou desprezo em seus semblantes. Há somente ternura e compaixão. Nossa esperança, então, se agiganta. Sem dúvida, eles virão. Descerão com suas vestimentas deslumbrantes,
com suas armas, suas joias, seus adereços. Lá fora será completa
escuridão, porque eles trarão consigo toda a luz. E descerão resplandecentes. E o Orun ficará vazio. E o Olimpo ficará deserto.
Porque agora já é certo: todos eles virão. O corpo de Cristo
reconstruído e transfigurado numa grande pajelança. Deuses,
anjos e demônios, lado a lado com os homens, de mãos dadas,
numa ciranda mágica, elevando o canto a uma única bênção,
bença mãe, bença pai, uma só bênção, que se expande, se expande, expande, infinitamente, infinitamente...1
Luís Antonio Cajazeira Ramos é poeta, analista do Banco Central do
Brasil e advogado. Publicou cinco livros de poesia, além da participação em antologias. Recebeu o Prêmio Nacional Gregório de Mattos
da Academia de Letras da Bahia em 2000. Entre seus livros, estão
Temporal temporal (2002) e Mais que sempre (2007). É sócio do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e sócio fundador da Associação
Amigos do Teatro Castro Alves. Desde 2012 ocupa a Cadeira número
35 da ALB.
Discurso de recepção ao acadêmico Ordep Serra, empossado na Cadeira número 27, proferido em sessão solene, no Salão Nobre da Academia de Letras da Bahia, em 4 de setembro de 2014.
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DISCURSO DE POSSE
Urania Tourinho Peres
A infância de cada um é o romance
definitivo: uns o escrevem e outros não.
José Lezama Lima
A
qui estou para receber a Cadeira 40 desta Academia de Letras da Bahia, que foi por último ocupada pelo brilhantismo de Consuelo Novais Sampaio e, anteriormente, por figuras
igualmente notáveis da nossa cultura, Otávio Mangabeira e Manuel Pinto de Aguiar, tendo como patrono o jovem Francisco
Mangabeira. Poderia me interrogar: que mérito tenho eu para
aqui estar? Entretanto, sei que aqui me encontro por ter sido reconhecida, por terem me atribuído, o que talvez eu não houvesse
por mim mesma me atribuído: a condição de escritora, que me
abre as portas desta casa, casa que abriga as letras, e que sempre
admirei. Assim, a resposta antecede a pergunta, pois somos sempre constituídos pelo olhar de reconhecimento, prova de amor,
que recebemos do Outro, e pelas palavras que, ao longo da vida,
nos conferem e confirmam uma identidade. Deram-me a mão
para que aqui hoje estivesse, e sou por isso agradecida. Aqui,
confirmo a minha devoção à palavra. Aceito este dia como um
ritual de passagem e recebo este lugar como uma doação, uma
herança, uma herança exigente, e cumpre, então, bem usá-la e
desenvolvê-la.
Somos constituídos por palavras que nos chegam e marcam nosso corpo, nos impregnam e vão traçando caminhos,
imprimindo matizes e configurando nossa maneira de ser e vir
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
a ser, falados antes de nos tornarmos falantes. As palavras do
Outro nos dizem e nos assujeitam, sujeição necessária sem a
qual permaneceríamos no limbo da incomunicabilidade, no patamar da loucura. Em nossa chegada ao mundo, dizemos um
hipotético sim a um código preexistente, um código abrangente, suposto tudo significar, mas que não contém aquela palavra
única que, supostamente, nos significaria, que diria nossa singularidade. Essa palavra falta, e, estranhamente, essa falta é que
nos constitui em nossa dimensão desejante e nos impulsiona à
procura dos sinais, as marcas de nossa singularidade. Recebemos
um nome que define nossa filiação e nos insere no grupo a que
pertencemos. Esse nome nos indica, mas não nos significa, podendo, inclusive, a outros pertencer. Também o “eu”, ao qual recorremos quando queremos marcar a nossa presença, esse “eu”
é de todos. A genialidade do poeta assinalou, magistralmente,
ainda aos 17 anos, que “Eu é um Outro”. E saber chegara essa
verdade, tão precocemente, não teria afastado das palavras o
torturado Rimbaud? Ele abandonou a poesia pelo tráfico de
armas, trocou as letras pelo dinheiro, porém não perdeu a sua
condição de poeta maior, buscando revelar o enigma central da
condição humana. Afinal, quem somos e como escrevemos a
nossa existência? Uma interrogação a nortear nossas vidas, uma
interrogação crucial para um psicanalista. A condição de “ser”
pode chamar a si vários qualificativos, marcar uma pluralidade
de papéis que a vida nos confere. Todos nos dizem parcialmente,
nos inserem em uma multiplicidade, mas não atingem nossa singularidade, pois cada um de nós é singular, único, na sua maneira
de estar no mundo. Para dizer essa singularidade, as palavras
faltam, as palavras enganam, fazem promessas que não podem
cumprir e, por isso mesmo, seduzem, nos envolvem e nos aprisionam. Eu acredito que a sedução que as palavras exercem, ao
tempo em que não se deixam apropriar, é um dos fatores que
nos conduzem ao imperativo da criação, da arte e, seguramente, da escrita. Quanto mais tocado pelo enigma, maior a força
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
propulsora para o caminho do desvelamento. Em verdade, a interrogação sobre o enigma está na origem da busca criativa do
homem. O mistério joga o homem no religioso, na divindade; o
enigma o faz interrogar, enfrentar o real na sua impossibilidade
de ser dito. O artista luta contra essa impossibilidade e, por isso,
ele cria. Disse Cézanne: “Eu não pinto a realidade, eu crio”. Os
artistas são visionários, especialmente tocados pela insuficiência
que nos modela e, exatamente por isso, vão além, transcendem,
são inquietos, lutam contra o vazio da existência. E, nesse ponto, se encontram arte e psicanálise. A psicanálise é uma prática
transgressora, “o inconsciente é a hipótese de que não sonhamos apenas quando dormimos”. O inconsciente é uma eterna
busca, pois tudo é, mas pode ser também de uma outra maneira.
Todos os sentidos podem se transformar em outros sentidos. O
inconsciente nos liberta do aprisionamento das palavras, ele faz
pacto com a poesia.
Faço uma escolha: primeiro vou falar de meus antecessores, patrono e ocupantes dessa Cadeira 40 da Academia de
Letras da Bahia, e, em seguida, de mim falarei. Procurarei homenageá-los e tentarei encontrar um fio condutor que nos ligará
e que dará consistência à minha transitória permanência nesta
casa. Vou em busca de uma transmissão.
Inicio por Francisco Cavalcanti Mangabeira, o patrono.
Francisco Mangabeira, um jovem poeta. A vida ou o destino
não lhe permitiram envelhecer, a juventude marcou a sua existência. Aos 24 anos, a bordo de um ita, o São Salvador, partiu,
não apenas para uma viagem programada. Desejava voltar à sua
terra, à sua família e, sobretudo, abraçar o pai, mas, em verdade,
navegou para a viagem definitiva, “o longo sono sem sonhos”,
como ele acenou na dedicatória intitulada “Carta a um morto”,
de seu livro Tragédia épica.(1)
Morreu Francisco Mangabeira no mar, próximo a Gurupi.
Lamentou-se: “Morro sem abraçar meu pai”. Em São Luís do
Maranhão, recebeu sua primeira sepultura. Uma vida de poucos
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
anos mas, seguramente, intensa. No terceiro ano de medicina,
aos 18 anos, resolveu colaborar com o governo e partiu para dar
assistência aos feridos na Guerra de Canudos, servindo nos hospitais de sangue do Exército. Assim diria em uma das estrofes de
“Adeus”, poema de abertura de seu livro Tragédia épica:
Lá vão eles! Já tristíssimos lamentos
Se escutam... Um tremor agita os corações
Dos que ficam, ao ver com que fatal loucura
Vão em busca da glória ou, então, da sepultura
Este bando de heróis, homens feitos leões.(2)
Findo o conflito, retornou Francisco Mangabeira e concluiu o curso de medicina em 18 de dezembro de 1900. Inquieto,
aventureiro, festejado pela sua geração — não pela sua aplicação
à medicina, pois, segundo o seu biógrafo Almachio Diniz,(3) sofreu algumas reprovações, mas, sobretudo, pela sua produção
poética —, Francisco congregava com a juventude amante das
letras, dava vida e força ao Grêmio Literário do Instituto Oficial.
Diplomado, deixa sua terra natal e parte, segue para o
Amazonas, onde adere à Revolução Acriana, chegando a ser nomeado secretário da revolução pelos chefes revolucionários. A
poesia o acompanhava, e um poema seu tornou-se a letra do
Hino do Acre, que assim se inicia:
Que este sol a brilhar soberano
Sobre as matas que o veem com amor
Encha o peito de cada acriano
De nobreza, constância e valor...(4)
Na selva, exercendo a profissão, acabou por adoecer, e a
medicina foi impotente para curá-lo. Uma polinevrite palustre,
instalada em um corpo exausto e debilitado pelas precárias condições de vida, comprovou-lhe a insuficiência da sua profissão, da
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
sua prática clínica. Interpelado como doutor nos últimos instantes
de vida, respondeu: “Não sou doutor, sou poeta”, e exclamou:
“Como é que morre um poeta aos 25 anos!”(5)Aceitar a morte do
médico sim, mas não a do poeta, apelando, então, para a imortalidade da letra, a imortalidade da poesia. “Morreu no beliche 1
nº 106 camarote 40”, em 27 de janeiro de 1904.(6)O número 40
o acompanhou e o trouxe para esta casa, tornando-o patrono da
Cadeira 40.
A Tragédia épica, escrita em 1900, dedicada à Guerra de
Canudos, é considerada a sua obra mais significativa, pois nela
encontramos a sua sensibilidade poética confrontada com a indignação de uma guerra cruenta, uma selvageria humana, que,
lamentavelmente, prossegue, pois o homem não sabe viver sem
a guerra. Francisco Mangabeira nos transmite a seriedade de um
jovem comprometido com o sofrimento e a insensatez dos homens, traduzida pela sua sensibilidade de poeta.
Trago as palavras de Otávio Mangabeira, seu irmão, ditas
nesta casa, em 1954, para fazer a passagem do patrono ao primeiro ocupante da Cadeira 40:
Com uma tristeza que se reproduz sempre que o trago à lembrança, neste momento, sinto-a maior do que
nunca: vi-o pagar, aos vinte e quatro anos, o doloroso
tributo que a poesia bela demais para o mundo, paga
frequentemente à desventura.(7)
Otávio Mangabeira tornou-se o primeiro ocupante da Cadeira 40.
Otávio não escondia a melancolia que o acompanhou na
vida, pois as perdas lhe aconteceram muito precocemente: aos
dois anos, perdeu a mãe; aos 18 anos, a irmã Maria Augusta,
que fora sua mãe substituta, tomou a resolução de confinar-se
em um convento, tornando-se freira do Bom Pastor, o que, em
suas palavras foi um desgosto; e, aos 19 anos, perdeu o irmão
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
idealizado e modelo inatingível, “o maior, entre nós, na inteligência, sendo por outro lado, ao mesmo tempo, um primor de
coração; era a luz e a flor da casa”.(8)
O mundo esvaziou-se, a casa perdeu a luz e a flor, mas ele
soube encontrar o caminho de um luto que se transformou em
uma luta constante em busca de valores estáveis, pois desacreditava no efêmero, no transitório, e defendia a fé no eterno. Tornou-se um homem intimista, ainda que devotado à causa pública. Disse: “Quanto mais apuro a inanidade ou precariedade do
‘visível’ tanto mais acredito no ‘invisível’”,(9)declaração que não
deixa de assinalar uma decepção ou mesmo descrença de muitos
que o acompanharam na luta política. A evidência falava menos
que a crença e a força de suas convicções na fé. Mangabeira foi
um homem religioso.
Amou a Bahia como poucos, sua terra-mãe, e, quem sabe,
talvez por ter tão pequeno perdido a sua mãe biológica e afetiva,
tornou-se filho de nossa terra. São palavras suas em discurso
pronunciado quando de sua volta do exílio em 1934:
Para os que sabem o que é o amor filial, para os que
prezam como sagrado entre todos os sentimentos da
fidelidade ao berço em que nasceram, aos lares em
que se criaram, nada iguala como prêmio, mas ao
mesmo tempo como estímulo, ao carinho da bênção
materna. [...] a voz da terra natal, fortalecendo-nos, é
como a voz de Deus...(grifo nosso)(10)
Considerado por muitos um dos maiores estadistas da República, ocupou inúmeros cargos públicos, inclusive o governo
da Bahia. Privilegiamos, entretanto, a sua palavra, “a serenidade
de seu estilo”,(11)na medida em que consideramos que são mais
valiosas que cargos e prêmios.
Li o que me foi possível para retirar da leitura essas poucas
linhas, não porque fosse necessária tanta leitura, mas por ter sido
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
aprisionada pelas palavras desse homem que, até então, conhecia
à distância, como um grande político. Ele teve seu nome gravado em avenida e, agora, percebo que, entre muitas doações à
nossa terra, ele nos trouxe o mar por onde navegou, mergulhado
na tristeza, quando partiu para o exílio, mas, também, mergulhado em glórias, quando aportou em regresso. A Avenida Otávio
Mangabeira é das mais belas de nossa querida Salvador. Se, por
meio dela, ele integrou o mar à nossa terra, ela soube devolverlhe, dando-lhe a sua beleza e o sonoro movimento das ondas
como homenagem perpétua. O mar da Avenida Otávio Mangabeira não se deixa estragar pela ação demolidora dos homens.
Recebo da parte de Otávio Mangabeira, como legado, a
mestria no uso da palavra e o amor à terra-mãe, o amor à Bahia.
Continuamos em nossa esteira de transmissões. Manuel
Pinto de Aguiar, segundo ocupante desta Cadeira, encontrou, no
poema épico do jovem Francisco Mangabeira, a crueldade humana retratada pela narrativa da Guerra de Canudos, e foi sensível ao abalo produzido “nas tendências esteticistas do início
do século”.(12) Tanto a Tragédia épica, de Francisco Mangabeira,
como Os sertões, de Euclides da Cunha, imprimiram nas Letras a
necessidade de pensar o homem na sua vertente agressiva e destruidora. Retrata-se, então, o drama da terra e do homem brasileiro.(13) Para Pinto de Aguiar, a temática literária mudou, passou
a privilegiar uma temática centrada “nas coisas e nas gentes do
Brasil”, atitude a que chamou de panteísta.(14) O mundo viveria a
Primeira Guera Mundial, o mundo se revolucionava, e as artes
também. Na Bahia, a inquietação se materializava no chamado
movimento modernista, manifestado em dois distintos grupos
que se materializaram em revistas: o primeiro publicou Samba
e O Momento; o segundo grupo deu vida a Arco e Flexa, Mensário
de Cultura Moderna. Pinto de Aguiar ocupou o lugar de diretor
de Arco e Flexa, ofereceu sua casa para sede da revista e usou a
herança recebida do pai para ajudar na realização dos cinco números que lhe marcaram a existência.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Podemos acompanhar o menino solitário que encontrava nos livros o espaço livre de limites para o sonhar. Pequeno
leitor, assim como pequeno construtor, pois passava horas da
sua infância construindo pequenas cidades com pedaços de louças quebradas, que chegavam em caixotes para a loja do pai.
As letras, assim como o impulso construtor, reapareceram na
vida adulta, quando avaliamos não apenas sua produção literária,
mas, também, seu empenho em modificações em sua cidade,
pela construção de casas populares e de bairros, como o Rio
Vermelho. Sim, é verdade, Pinto de Aguiar se autodenominou
“salsaparrilha”, remédio para qualquer coisa. Talentoso, versátil
e empreendedor, dentre todas as suas conquistas e realizações,
ressaltou “a socialização da residência”,(15) enquanto esteve à
frente da Caixa Econômica, e a sua preocupação em tornar a
vida rural mais produtiva, com melhores condições de vida e
trabalho. Na impossibilidade de enumerar todos os cargos que
exerceu e todas as conquistas obtidas em sua preocupação pelo
desenvolvimento de nossa terra, destaquei as que de alguma maneira sintetizam a sua visão humanitária e progressista.
Entretanto, para deixá-lo, não posso encerrar sem trazer
o seu intenso amor ao livro. Pinto de Aguiar, além de grande
leitor, foi um bibliófilo exemplar e fundador da Editora Progresso, que dirigiu por 15 anos, durante os quais chegou a publicar
440 títulos, cumprindo a louvável missão de editar escritores de
nossa Bahia e de nos trazer importantes traduções de autores
estrangeiros. Esse homem, incansável na luta em prol de suas
realizações, não pode deixar de nos transmitir a intensidade de
sua força desejante.
A bola corta o espaço, parte de um, segue para o outro
e, finalmente, o salto e o corte preciso da pentacampeã baiana:
Consuelo Novais Sampaio. Meus olhos adolescentes contemplavam fascinados a figura esguia e ágil, de golpes certeiros: rainha
no voleibol. Impossível a previsão, naquele momento, do que o
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
futuro nos reservaria, mas uma certeza permanece: Consuelo foi
campeã em muitos momentos da vida. Mulher valente e lutadora
é o que todos confirmam; intelectual segura e criativa; e gostaria de acrescentar: elegante e carinhosa. Suas últimas palavras a
mim dirigidas foram: “Urania, você é muito carinhosa”. E eu lhe
respondi: ”Você também”. Ao tempo em que convivíamos, não
sei se vivemos o melhor de nosa amizade, mas assim é a vida,
sempre deixando os seus restos irrealizados.
Nasce Consuelo Novais “nos sertões de Jequié, crescendo alimentada com leite de cabra, carne de sol e pirão de leite,
saboreando suculentos umbus, ao tempo em que corria livre e
solta, por entre a vegetação rasteira do agreste”.(16) Assim, referese ela à sua entrada no mundo, em seu discurso de posse nesta
academia. Creio que essa entrada, aliás, como todas, definiu sua
disposição para o futuro e deu-lhe a força que a acompanhou.
Seguramente, Consuelo cumpriu a corrida livre e solta pela vida.
Sua árvore genealógica traz a presença de sua bisavó, linda índia
cariri, de longos cabelos e olhos negros, que foi enlaçada pelo bisavô, belo português louro de olhos azuis. Uma cena novelesca
de desejo e paixão. Assim, nasceu Dulce Novais, sua mãe muito
amada e admirada. Podemos, sem dificuldade, desenhar uma linhagem de mulheres guerreiras, que neste momento me entregam o bastão para dar prosseguimento a este caminho, agora
pelas letras. Gosto, e me sinto orgulhosa com esta doação, e em
mim reconheço, também, o meu lado guerreiro, na luta com a
palavra, na defesa da psicanálise e, consequentemente, da minoração do sofrimento humano.
Dulce Novais casou-se com Alarico Sampaio de Souza,
fazendeiro e comerciante, nascendo, então, Consuelo, que apenas desfrutou da companhia do pai durante três anos. Aos 19
anos, Dulce tornou-se viúva. Entretanto, a precocidade da perda não a submergiu em um luto estagnante, mas fez emergir a
mulher que soube vislumbrar a riqueza de uma vida sempre à
procura dos ideais de liberdade, e assim criou as quatro filhas —
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Consuelo, Aida, Niva e Ieda —, que com ela formavam um bravo quinteto de mulheres. Nossa homenageada passou a infância
entre o Rio de Janeiro e Salvador, sempre frequentando os melhores colégios e completando a educação com o aprendizado
de línguas, música e esporte. Estudou piano, acordeom, tênis,
a que se acrescentaria, mais tarde, o voleibol. Foi seu encontro
com o nosso acadêmico Luís Henrique Dias Tavares que selou a
sua escolha profissional e a fez optar pelos caminhos fascinantes
da historiografia. Iniciou o seu curso de formação na Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade Federal da Bahia
(UFBA), e o concluiu na Faculdade Nacional de Filosofia da
Universidade do Brasil. Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia, prosseguiu sua carreira indo buscar o
título de doutor na John Hopkins University e, posteriormente,
o pós-doutorado na University of California (UCLA), Los Angeles,
ambas nos Estados Unidos da América. Orgulhosa dos professores que encontrou, dedicou-se, como ela mesma confessou,
“quase à exaustão à História Colonial da América Latina”.(17)
Autora reconhecida por seus méritos, foi vencedora, em 2004,
da primeira edição do Prêmio Odebrecht de Pesquisa Histórica
— Clarival do Prado Valladares, permitindo-lhe desenvolver um
projeto de pesquisa que resultou no livro 50 anos de urbanização:
Salvador da Bahia no século XIX.(18) Consuelo foi incansável na
luta em preservar a memória do patrimônio cultural de nossa
terra patrimônio. Mãe de dois filhos, Paulo e Andrea, aos quais
muito amou e admirou.
Deixo meus antecessores e tomo a palavra como escritora. Se, neste momento, ocupo este espaço, é que, de fato, o
aceitei e tenho de falar a partir dele. Tenho de buscar o que
provocou em mim o apelo à palavra escrita, ao livro, e o apelo
a escrever a palavra, a escritura. O primeiro me reservou o papel de leitora, o segundo me trouxe ao lugar que aqui ocupo.
Entretanto, saio desses dois espaços, e vou para um terceiro:
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
o da palavra falada e da palavra escutada. Não tenho dúvida
de que a condição de psicanalista, a prática da psicanálise, este
conviver intenso com a palavra, deu corpo e exigência às três
posições que mencionei. Lacan, definiu o psicanalista como
um “artífice da palavra” e, já no final de sua vida, referiu-se
à interpretação, à sua operacidade, pela sua irmandade com
a poesia. Ou seja, abrindo as amarras do sentido, buscando
pela sonoridade o encontro com as homofonias, produzindo
sentido a partir do sem sentido, o inconsciente é justamente
esta possibilidade de outro sentido, atuando no pressuposto
da ausência de contradições. O psicanalista é um pesquisador,
um ser em busca, um sabedor, sobretudo, da insuficiência do
dizer. Ele perde a ingenuidade da prepotência da verdade, que
ele sabe ser inatingível. Exatamente por isso, Freud designou
de castração o conceito a marcar nossa insuficiência.
Perdemos a harmonia com o universo da natureza, uma
força instintiva a nos guiar, tornamo-nos falantes e insuficientes.
A falta, o vazio, a angústia, a culpa, nossa sexualidade errante
tornaram-se nossa herança maior. Entretanto, se, por um lado, a
palavra determinou nosso universo metaforizado e insuficiente,
por outro, constituiu-se e constitui-se como nossa força maior:
somos falantes, somos seres de palavras.
A psicanálise não é uma ciência, não tem a pretensão de
encontrar a verdade; não é, tampouco, uma religião, não nos
afirma o sentido da vida. Ela se situa nas bordas das práticas de
saber, daí sua proximidade com a arte.
Tentarei me apresentar, procurar os caminhos que aqui
me trouxeram. Tenho de voltar ao meu passado e traçar o fio
condutor que foi marcando, selando, configurando o meu fascínio pela palavra. Tenho de recorrer às lembranças, sabendo
que jamais elas dizem a suposta verdade do acontecido, pois são
sempre encobridoras, imperfeitas na sua transferência ao presente. Vou, então, buscar imagens, retratos, e reconstruir cenas
que possam me ajudar.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Cheguei ao mundo aproximadamente12 dias antes do esperado. Minha mãe, desejosa de que eu nascesse em Salvador,
embarcou no dia 22 de setembro em um ita para fazer a travessia Ilhéus-Bahia — teria sido o São Salvador, no qual morreu
Francisco Mangabeira? Um mar bravio com suas ondas gigantes
transformou a embarcação em um grande berço ondulante, antecipando um trabalho de parto que estava previsto para acontecer no início de outubro. Saímos do navio, minha mãe e eu,
em uma ambulância, que nos levaria à casa de minha avó, na
Rua Marquês de Caravelas. Acasos da vida fizeram com que, no
momento de nossa chegada, passasse pela rua uma enfermeira,
parteira inglesa, nursey chamada, e, assim, dei o meu primeiro
choro em vida nas mãos de uma britânica, que, durante um mês
ou mais, impôs uma rotina rigorosa sob o imperativo: “bebê fica
no berço”. E eu fiquei, independentemente de meus apelos e
dos desejos de minha mãe.
Começou então a canção da minha vida. Recebi o nome
de minha avó paterna, Urania Tourinho.
Somente muitos anos depois, dei-me conta de minha prematuridade, prematuridade essa que trouxe como consequência
ter nascido no dia em que Freud morria, em Londres, antecipando a morte, por uma eutanásia combinada entre ele e o seu
médico. A hora exata não sei, nem a em que ele morria, nem
a em que eu nascia, porém, ambos, no final da manhã, ambos
antecipando a hora. A essa coincidência, não fiquei indiferente. Quando dela tomei conhecimento, emocionei-me, mas nada
pode ser dito sobre ela. Os acontecimentos da vida são sempre
significados a posteriori, o que hoje posso pensar/dizer é que o
meu encontro com Freud, o seu texto, a sua escritura me marcaram de uma maneira contundente. Ele saía da vida, e eu chegava para admirá-lo, para reverenciá-lo. Teria Freud me enviado
a parteira inglesa? Freud morreu em Maresfield Garden, Londres.
Escutei dizerem que comecei a falar no fim de meu primeiro ano. Fui à procura de registros da infância: retratos. Selecionei
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alguns. O primeiro que aqui trago na memória me cativou, pois
tocou em uma das poucas certezas que tenho: a da importância
do olhar da criança, olhar que os anos de vida fazem desaparecer,
e de que, talvez, apenas os artistas conservem vestígios. Olhar
que transmite uma interrogação, um porquê sobre tudo o queé
visto descortinar-se à frente. Um olhar, quem sabe, de sideração.
O “porquê” que este olhar transmite e esconde é fundamental,
e sabemos que a criança pode acolher ou não o mundo que lhe
é oferecido e que a configurará. Um assentimento hipotético
e mítico para integrar, aceitar ou abdicar das leis que regem o
universo da linguagem, as leis as quais nos subordinamos como
seres de palavras. Se me detenho nesse olhar que foi meu, encontro o olhar, que ainda em mim vejo, de muita perplexidade,
de poucas certezas e com uma grande interrogação.
Três anos depois, em outro retrato, já me encontro sorridente, posando para a expectativa de uma família que me abrigava. Esses retratos que selecionei são importantes para mim.
Posso dizer que o instante que o primeiro captou conservo em
mim mais reservado, mais íntimo, mais escondido. O segundo
tem uma dimensão mais social, modelada. Lembro-me que o
sapatinho que usei para a fotografia era apertado, e o pé doía,
mas tinha de ser suportado nos instantes do retrato, pois ficava
tudo “bonitinho”. Hoje, penso nos sapatos apertados que carregamos vida afora e que temos de suportar. Dois retratos, então,
a revelar o que somos e o que mostramos ser.
Vivi em Ilhéus até os quatro anos de idade. Recordo-me
que ia todas as tardes passear na Praça Rui Barbosa, e sempre
vinha ao meu encontro um rapaz, que comigo brincava e me
cumprimentava: “Urania, dos olhos negros que nem as asas da
graúna”. Quem teria sido? Por que assim me falava e por que não
esqueci esse encontro? Nada sei, apenas que deixou em mim,
marcada, uma frase que me qualificava, que chamava a atenção
para o olhar, o negro em meus olhos, e eu nunca esqueci. Olhos
que lembravam as asas da graúna. Mas o que era a graúna? Eu
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
não sabia, mas a palavra ficou impressa em meu corpo e marcou
um olhar que voava e que ainda voa As palavras, como tatuagens, deixam marcas que não se apagam.
Foi dessa época o acontecimento maior da minha infância: a doença de meu pai, Mário Tourinho, agrônomo em Uruçuca. Pai querido e admirado. Fragilizado por um tratamento
médico inadequado, tornou-se receptivo a uma tuberculose
que o acompanhou durante toda a minha infância. Ele foi,
então, a mim interditado: não mais sentar em seu colo, abraçá-lo ou beijá-lo. Frente à minha incompreensão, minha mãe
respondia: “quando crescer, você vai compreender”. Cresci e
não compreendi, mas a frase em mim ficou, e a interrogação
sobre a incompreensão continuou e continua. Procuro sempre, ansiosamente, compreender a vida e seus acontecimentos,
ainda que saiba que não o conseguirei, pois compreensão não
há: o enigma nos constitui. Assim, ao completar quatro anos,
não recebi beijos, mas uma cartinha do meu pai, que guardo
comigo com veneração. O beijo transformou-se em palavras,
texto escrito em letra perfeita. A letra de meu pai era linda e
sempre me encantou. Essa carta não pôde ser respondida, e
me interrogo: teria o vazio da resposta acionado a pulsão à escrita? A nossa escrita, a quem responde? A quem se endereça?
Digo hoje, na tessitura do fio que privilegio, dentro da rede em
que se constituiu a minha vida, que seleciono o meu olhar na
procura de imagens, assim como procuro palavras para traduzir, metaforizar-se em entendimento, o que foi visto e o que
foi escutado. Imagens e palavras a exercer um fascínio que me
envolve e inebria.
Para Freud, é traumático tudo o que se recusa a ser traduzido, tudo o que não se insere no universo simbólico, tudo
aquilo a que a palavra é negada. Assim, as perdas e os traumas
marcam as nossas existências com um silêncio abismal. Talvez
sejamos mais seres de silêncios do que seres de palavras. Os psicanalistas e os artistas sabem disso.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
A doença do meu pai nos retirou da nossa circunstância
natal, ou seja, da família extensa e da Bahia; nos exilou. Fomos
para Lagoa Santa, Minas Gerais, em busca de um clima, um ar
purificante para um pulmão ferido. Essa temporada em Lagoa
Santa, que durou três anos, creio eu, foi muito forte para todos
nós. Deixamos uma família numerosa, Tourinho por parte de
pai, Risério de Carvalho por parte de mãe. Sobre minha mãe,
chamada Georgina, não encontro maneira de expressar, de dizer
a beleza e grandiosidade de sua alma. Talvez possa resumir, afirmando que nos amamos muito, e que o seu amor me transmitiu
uma coragem que me acompanhou e acompanha no desfilar da
minha vida. Ficamos, então, os quatro — e aqui acrescento o
meu irmão, meu grande companheiro na infância, também chamado Mário. Inicialmente, em uma casa, cercada por eucalitpos,
próxima à cidadezinha. Era um terreno imenso, com uma linda
vegetação e grandes canteiros de flores lilases e brancas que se
chamavam “bom-dia” e “boa-noite”. Meus companheiros, além
do meu irmão, eram: uma galinha, a quem chamei Gotas de Bineli; um galo brigão, a quem dei o nome de Heleno de Freitas;
e um casal de patinhos, Neguinho e Juraci. Mas era triste, tudo
muito silencioso, sob o peso de uma doença que se manifestava
quando minha mãe corria para aplicar uma injeção em meu pai,
momentos que o meu querido Manuel Bandeira, anos depois,
traduziu para mim:
Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
— Diga trinta e três.
— Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
— Respire.
...............................................................................
— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
e o pulmão direito infiltrado.
— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.(20)
Grande poeta, amigo e apaziguador. Visitei Bandeira aos
17 anos de idade. Ainda o vejo em seu apartamento cheio de
livros, vestido com um chamado robe de chambre. Perguntou-me o
nome completo e se tinha apelido. Enviou-me, pouco tempo depois, em um cartão da Academia Brasileira de Letras, escrito pela
sua letrinha, um poema que se encontra em Mafuá do malungo:
Urania junto a Maria,
Não há nome mais bonito:
A musa da Astronomia
Junto à mãe de Deus: Em ti
Se vê, Urania Maria,
Unir-se um a outro infinito,
O mito à sabedoria,
A vida ao seu outro lado,
Ou seja, tudo abreviado
Num dissílabo – Teti.(21)
Volto a Lagoa Santa, depois de passar pela minha vaidade... Volto às reuniões às 18 horas, hora do Ângelus, em que
os quatro, meu pai, minha mãe, meu irmão e eu, rezávamos
escutando a Ave-Maria transmitida por um rádio que conservo
até hoje. Desse período, teria muito o que dizer, mas vou ser
sintética e mencionar apenas quatro fatos importantes, quatro
cenas infantis. O primeiro, a presença de Maria, que trabalhava
na casa e passava os dias cantando Vicente Celestino. Com ela,
sem exagero, aprendi todas as músicas cantadas por ele. Cantávamos alto e com o desespero próprio da canção. O outro,
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
o temor pelos cangaceiros que diziam estar por perto e que
fazia com que minha mãe fechasse portas e janelas na hora do
Ângelus... O terceiro, a caixa de presentes que recebia em meu
aniversário, dos parentes da Bahia, e que continha um exagerado enxoval de roupas bordadas na Casa Stela, lápis, cadernos e
chocolates Balangandã. Seleciono a alegria pelos lápis e cadernos que compartia com meu irmão. E, por último, a existência
de uma árvore que, na época, para mim era grande, mas que
o retrato, hoje, diz ter sido pouco mais que um arbusto e que
me acolhia em um dos seus galhos, horas a fio do meu dia. O
meu retrato com essa árvore foi o terceiro que selecionei em
minha memória. Com ela eu conversava muito, e dizia o nome
que havia dado aos vestidos, que, por serem absolutamente
impróprios ao uso na circunstância em que eu vivia, se chamavam: “Encanto de beleza”, “Céu estrelado”, “Maravilha das
maravilhas”. Com essa árvore dei vazão à minha fantasia, um
mundo imaginário, absolutamente solidário às palavras. Com
essa árvore dei corpo e consistência ao fio, já quase uma corda,
que estou seguindo e que sei que me conduziu aonde me encontro. Com ela descobri que podemos criar um pensamento
secreto, um mundo fascinante, perigoso e absolutamente singular, frente à alienação que o outro nos provoca. Fascinante
por não conter limites e perigoso pela mesma razão.
Encerro o período de Lagoa Santa, dizendo que nos mudamos para uma casa linda aos meus olhos, próxima à lagoa,
onde ia tomar “banho de lagoa” e me divertir, e que acolheu a
minha família vinda da Bahia, que, em parte, foi nos visitar na
época da Primeira Comunhão minha e de meu irmão. Foi nessa época, aos sete, oito anos, que encontrei Monteiro Lobato.
Passsei a viver no Sítio do Picapau Amarelo. Adorava Emília,
Dona Benta, Tia Nastácia; Pedrinho e Narizinho eram meus
amigos; o Visconde de Sabugosa me divertia; Flor das Alturas
me enternecia; Peter Pan foi a minha primeira paixão. É verdade: me apaixonei por Peter Pan e com ele sonhava. O menino
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
que não queria crescer falou fundo à menina que guardava a
ideia e o sentimento de ter perdido a infância. Eu cantarolava sem parar, ainda que em silêncio, os versinhos: “Oh! que
saudades que tenho / Da aurora da minha vida, / Da minha
infância perdida... — eu trocava o “querida” da canção pela
perda sentida. Não, a minha infância não foi uma infância alegre, mas, seguramente, não foi perdida. Nenhuma infância é
perdida, na medida em que ela de fato nos constitui, e tudo o
que a ela se seguirá nada mais é que uma repetição metamorfoseada. Esta é uma lição central da psicanálise: o inconsciente
como repetição. A minha infância me confrontou com a gravidade da vida, e essa nunca me abandonou.
Fomos ao Rio de Janeiro, para meu pai submeter-se a uma
cirurgia delicada e violenta, que lhe arrancou o pulmão direito.
Meu pai esteve entre a vida e a morte. Eu acompanhava tudo,
sem saber exatamente o que eu estava acompanhando. Este não
saber, de alguma maneira sabendo, acompanhou a minha vida de
uma maneira profunda. Está aqui o inconsciente, este saber que
não se sabe, este saber que não se sabe saber.
Seguiu-se um período difícil, não mais em Lagoa Santa,
mas, em Belo Horizonte, onde frequentei o Grupo Escolar Barão do Rio Branco e, depois, o Colégio Sacré-Coeur de Marie, assistindo a uma convalescença dolorosa, carregada de crises de
angústia, as hoje denominadas de pânico, comuns a quem se
submete a cirurgias difíceis e atravessa um período entre a vida
e a morte. Meu irmão e eu fomos companheiros, brincávamos
com os animais, jogávamos botão juntos, e aspirávamos às vitórias do Botafogo, alegria de meu pai naquela difícil fase de vida.
Acabei por decorar o time campeão de 1948 e até hoje o sei escalar. Esse período em Belo Horizonte foi carregado de leitura
dos livros da Coleção Menina e Moça, da Livraria José Olympio
Editora. Eram livros de autores franceses, muitos deles traduzidos por Rachel de Queiroz; guardo comigo muitos exemplares.
Eu os adorava. Foi desse período a felicidade maior de minha
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
infância, o nascimento da minha irmã Regina, que veio para celebrar a recuperação da saúde de meu pai e trazer para mim a
alegria, a revitalização e uma das maiores provas da terapia do
amor. Voltamos para a Bahia, voltamos para a família. Regressamos a uma vida saudável. Creio, que o reencontro com o mar
nos transmitiu uma força prodigiosa.
Deixo a infância, abandono lembranças, interrompo caminhos e retomo a minha caminhada, procurando ser o mais
sintética possível, pois o destino estava já traçado e, exatamente
por isso, privilegiei a infância.
Fui estudar no Instituto Feminino da Bahia e lá encontrei
a primeira biblioteca que frequentei e, literalmente, devorei uma
coleção intitulada, se não me engano, Biblioteca das Moças. Lá
encontrei Rosa Virgínia Mattos e Silva, que se tornaria minha
amiga por toda a vida. Rosinha, como eu a chamava, tornou-se
uma autoridade em Língua Portuguesa, e em sua homenagem
foi realizado um congresso internacional de Linguística Histórica a que denominaram Rosae. Para esse congresso, escrevi um
trabalho no qual tentei mostrar a nossa trajetória conjunta com
a palavra. Ela se preocupou com o que era a palavra, e eu, com o
que a palavra produzia. Rosinha foi minha companheira de leituras, passava com ela as férias em Mar Grande, dividindo o tempo
entre a praia e a leitura na rede. Lembro-me que descobrimos
com paixão Guimarães Rosa, mas não posso deixar de dizer que
o primeiro “grande livro” que li, aos 14 anos, foi Anna Karenina,
presente de um primo diplomata, e logo depois mergulhei em
Guerra e paz. Passo rápido pela adolescência, não que não houvesse muito a dizer, mas, ao privilegiar a infância, sou coerente
com as minhas suposições de saber.
Segui para o Colégio Sophia Costa Pinto, pois para lá
iriam Sônia Coutinho e Daisy Schwab, amigas do bairro, com
as quais começava a me enturmar. Próxima ao colégio, bem defronte do atual Museu de Arte da Bahia, havia uma biblioteca
pública, espaço que fomentou, entre nós três, uma competição
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
feroz de leituras. Guardo ainda a emoção do encontro com A
educação sentimental, de Flaubert. O período do Sophia foi muito
intenso e bom, tão bom que muito chorei no meu último dia
de aula. Amizades e amores se misturaram, comandados pela
figura extraordinária de Dr. Tenório de Albuquerque, o diretor
querido, admirado e temido. Muitas saudades se enraizaram e
permaneceram.
Quero deter-me, por um instante, na minha amizade com
Sônia Coutinho e Carlos Nelson Coutinho, amigos irmãos com
os quais vivi o melhor de minha juventude. Sônia escrevia bem,
se destacava nas redações em sala de aula e tornou-se escritora
consagrada. Creio que com ela, em nossas intermináveis conversas, deixei brotar em mim o interesse pela complexidade da
alma humana, não mais a minha, como na infância, mas a do
outro. Não falávamos apenas dos livros e seus personagens, falávamos das nossas inquietações, nossos sofrimentos, nossas angústias diante da vida. E aí o texto de Sigmund Freud surgiu no
meu horizonte. Com Carlos Nelson, Carlito, dei vazão à minha
fascinação pela filosofia em nossas discussões intermináveis, ele
penetrando no materialismo dialético, eu encantada pelo existencialismo sartriano mesclado com o relativismo orteguiano.
A leitura de Ortega y Gasset foi importante e, posteriormente,
fiquei contente por saber do seu entusiasmo pelo texto freudiano. Ortega levou a psicanálise ao futuro grupo surrealista,
especialmente a Salvador Dalí. Carlito, sem dúvida, foi das melhores pessoas que conheci. A absurdidade da vida o retirou de
nossa companhia sem qualquer programação. A morte de Carlito, seguida da morte de Rosinha e de Sonia, e aqui acrescento
Johildo Athayde, Alberto Fiuza, Pedro Moacir Maia, Eduardo
Bustelo e Raquelita, me fizeram mergulhar em um luto intenso,
parte de mim partiu com eles. Sim, é verdade; nesses últimos
anos vivi um luto permanente, que já se esmaece pela pátina
da vida que o tempo tintura. É preciso saber viver os lutos e
poder transformá-los. Acrescento ainda uma imensa saudade
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
e a certeza do valor de uma grande amizade com Henrique
Oswald, Guita e José Mindlin, que também se foram, assim
como partiu o querido Pedro Nava e o poeta Haroldo de Campos, que me ajudou a navegar nas profundezas dos neologimos
lacanianos. É importante parar, pois a lista pode ficar muito
extensa, se deixo os amigos e entro na família: meu pai, minha
mãe, meus tios, minhas tias Uranita, Idá e Deda, Dinda e Dindo,
enfim, todos muito queridos.
O tempo passado na Faculdade de Filosofia da Universidade Federal da Bahia foi muito rico: lá tive aulas com José
Valladares, Antonio Luiz Machado Neto, que me encantavam, e
conheci Pedro Moacir Maia, que, como já me referi em texto que
escrevi quando de sua morte, foi um verdadeiro professor de
beleza. Pedro se surpreendia ao me ver lendo as poesias de Rainer Maria Rilke e tendo sempre comigo um exemplar de Marcel
Proust. Saíamos juntos da faculdade, ele trazia um livro ou uma
revista de arte para irmos, no ônibus, vendo e conversando e
explorando um universo precioso de beleza e sensibilidade.
Foi desse período o meu ingresso na Escola de Dança.
Aulas maravilhosas com a polonesa Yanka Rudzka, e mais a teoria que recebíamos pelas palavras de Hans Joachim Koellreutter,
Yulo Brandão, Martim Gonçalves, Domitila do Amaral, Júlio
Medaglia e muitos outros. Seguramente, um período de ouro da
Universidade Federal da Bahia e não apenas por um Magnífico
Reitor, mas sobretudo por um Reitor Magnifico: Edgard Santos.
Eu amava Dr. Edgard, como o chamávamos, por tudo o que
ele nos dava: concertos no Salão Nobre da Reitoria, teatro pela
Escola de Teatro, o Colóquio Internacional de Estudos Luso
-Brasileiros, o Fórum Universitário reunindo grandes professores de diferentes áreas. E foi nesse fórum que Fernando e eu
nos sentamos lado a lado, e assim continuamos, e resultou, para
nós, o início de uma relação amorosa que se prolongaria pelo
resto de nossas vidas. Casei-me com Fernando, casei-me com a
poesia. Cumprimos este ano 50 anos de casados. Tivemos dois
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
filhos, Daniel e Maria Fernanda, e três queridos netos, Paula,
João e Teresa. Maria Fernanda, hoje, docente da Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Daniel docente
de Filosofia em nossa Universidade Federal (UFBA). Não sei se
soube externar o meu amor, amá-los como os amava e amo, mas
guardo no meu íntimo o segredo de que os acho preciosos e,
sem avaliações, os admiro muito. Quero ainda dizer que, para a
nossa família, chegaram Moacyr Novaes e Rosa Gabriela, genro
e nora a me desafiarem na posição de sogra. São todos muito queridos. E o irmão que Regina me trouxe, também muito
querido, Fernando Jorge. E ainda sobrinhos e sobrinhas filhos,
e netos sobrinhos. A família é sempre para ser amada, e é pena
que nela também as dores se infiltrem.
Como prosseguir, pressionada pelo desejo narcisista de
continuar a desfilar os acontecimentos de minha vida, que, ao
ser narrada, revestiu-se de uma importância desmesurada, enganadora e vaidosa, mas, por outro lado, sendo admoestada, contestada, pela importância de me conter, de me calar e, por que
não dizer, o sentimento confuso da importância e da insignificância de tudo. Afinal, a quem interessa a nossa vida?
Não posso, entretanto, deixar de voltar à minha luta entusiasmada pela psicanálise. Sem dúvida, constituímos, aqui em Salvador, um grupo pensante que, seguramente, daria alegria a Freud.
Fomos privilegiados, e para isso muito contribuiu a natureza esplendorosa de nossa cidade, que nos facilitava a presença sobretudo de franceses e argentinos, os mais brilhantes, a nos ajudar no
mergulho em uma teoria às vezes espinhosa. Trago então a figura
de Emilio Rodrigué, cabeça analítica que se tornou escritor em
nossa terra, terra por ele escolhida para viver, e que nos acompanhou no percurso labirítico de nossos inconscientes. Tive a sorte
de fazer parte de um grupo aventureiro e que soube importar
o melhor da França e da Argentina para uma transmissão teórica. Viajamos, fundamos instituições, escrevemos e publicamos,
somos reconhecidos. Tenho, no Colégio de Psicanálise da Bahia,
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
que fundei e ajudei a crescer, o herdeiro, a prova maior de minha
dedicação e amor à psicanálise. Muitos amigos, muitos encontros
e, sobretudo, aqueles que a mim vieram para que juntos explorássemos as profundezas de suas almas, meus analisandos.
Releio o texto e me surpreendo pelo caminho que ele tomou, o percurso que realizou, a ênfase no sofrimento infantil,
lá onde as coisas acontecem. Poderia ter sido outro? Sim, poderia. Lagoa Santa poderia ter sido apenas um parágrafo, e toda a
riqueza de experiências, descobertas e desafios da juventude e
maturidade poderiam ter dominado. Poderia ter falado de meus
escritos, meus livros, já que aqui é uma casa de letras. Poderia
ter me detido no período negro da ditadura que enlutou toda a
minha geração e sacrificou Jorge Leal, companheiro da maior
pureza nas nossas lutas políticas. E na minha segunda passagem
pela Universidade Federal da Bahia: 15 anos vividos entre o Instituto de Orientação Vocacional, dirigido pelo Dr. Emílio Mira
y López, a sala de aula no Curso de Psicologia e, finalmente, na
Faculdade de Medicina, no Departamento de Psiquiatria, com a
lembrança dos companheiros e do querido Dr. Álvaro Rubim de
Pinho. Porém, sem determinação prévia, o discurso aconteceu,
me guiou e me deixa surpresa. É assim, somos guiados muito
mais do que guias. Para que tenha sido assim, é importante buscar as razões, mas tenho de terminar, não ousaria reformular; se
assim aconteceu, é que assim tinha de acontecer.
Quero, então, me despedir e dizer que os amigos, que são
muitos e muito queridos, não foram citados porque aqui ainda
estão, e isso é o melhor que podemos festejar: a alegria da presença no lugar da saudade da partida.
A Mário e Georgina, que me deram a vida em um ato de
amor, e a Fernando, Daniel e Maria Fernanda, que deram sentido à minha existência, o meu especial agradecimento.
Muito especialmente, agradeço a Aramis Ribeiro Costa,
cujo olhar sobre o meu texto o transformou em escrita festejada.
Muito obrigada.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
REFERÊNCIAS
n. 1 MANGABEIRA, Francisco. Tragédia épica: (Guerra de Canudos). Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2010
[1900]. p.3-4.
n. 2 Ibid., p.6.
n. 3 DINIZ, Almachio. Francisco Mangabeira, creação e crítica. Rio
de Janeiro: Tipografia da Escola Profissional Álvaro Baptista,1929. p.82.
n. 4 Seu poema foi composto em 5 de outubro de 1903, na localidade de Capatará, onde prestava serviços médicos no acampamento do Exército, e recebeu música do maestro amazonense
Mozart Donizetti. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/
wiki/Hino_do_Acre>. Acesso em: 16 set. 2014.
n. 5 DINIZ, 1929, p.202-203. Embora seu biógrafo mencione
25 anos, Otávio Mangabeira, seu irmão, como dito adiante, refere-se a 24 anos.
n. 6 Ibid., p.143.
n. 7 OLIVEIRA, Yves de. Otavio Mangabeira: alma e voz da República. Rio de Janeiro: Saga, 1971. p.21.
n. 8 Ibid, p.23.
n. 9 Ibid, p.33
n. 10 Otávio Mangabeira e a Bahia. Salvador: Empresa Gráfica da
Bahia, [19--]. p.16.
n. 11 Ibid.
n. 12 SAMPAIO, Consuelo Novais. Pinto de Aguiar, audacioso inovador. Salvador: P55, 2011. p.77.
n. 13 Ibid.
n. 14 Ibid.
n. 15 Ibid., p.143.
n. 16 SAMPAIO, Consuelo Novais. Recepção da Acadêmica
Consuelo Novais Sampaio em 26/11/1992. Revista da Academia
de Letras da Bahia. nº 44, Salvador, 2000, p. 329-348.
n. 17 Ibid. P. 12
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
n. 18 SAMPAIO, Consuelo Novais. 50 anos de urbanização: Salvador da Bahia no século XIX. Rio de Janeiro: Versal, 2005.
n. 19 BANDEIRA, Manuel. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1958. p.186.
n. 20 BANDEIRA, Manuel. Mafuá do malungo. In: ______. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 2007. p.340. 1
Urania Tourinho Peres é psicanalista e escritora. Fundou e dirige o
Colégio de Psicanálise da Bahia. É membro da école lacanienne de
psychanalyse, membro correspondente da Association Insistence, ambas de Paris, e A. E. pela Escuela Freudiana de Buenos Aires. Entre
suas publicações, estão Moisaico de Letras, ensaios de psicanálise (1999) e
Depressão e melancolia (2003). Organizou coletâneas de ensaios de psicanálise e assina artigos em livros e revistas especializados. Eleita em 24
de abril de 2014 para a Cadeira número 40 da ALB.
Discurso de posse da acadêmica Urania Tourinho Peres na Cadeira
número 40, proferido em sessão solene, no Salão Nobre da Academia
de Letras da Bahia, em 25 de setembro de 2014.
►► 371
DISCURSO DAS MÃOS DADAS
Recepção a Urania Tourinho Peres
Aramis Ribeiro Costa
S
enhora Acadêmica Urania Maria Tourinho Peres:
Na simbologia universal dos gestos, o caminhar de mãos dadas é aquele que mais inspira confiança e respeito, porque além
do companheirismo, da segurança, do afeto, da amizade ou do
amor que possa significar, representa a igualdade do andar, sem
que um ultrapasse o outro, avançando juntos e ao mesmo tempo
o caminho longo ou curto que tenham a percorrer.
É difícil saber quando terá surgido esse hábito de andarem as pessoas de mãos dadas, unidas pela energia que passam
num simples tocar de mãos. Sabe-se que é antigo e universal.
Mesmo naquelas civilizações que mais proíbem a aproximação
física em público, dão-se as mãos as pessoas nos seus andares
reservados, num respeitoso amparo ou num significativo afeto.
Mas não apenas os indivíduos. Também os ofícios, as ideias, as
teorias se dão as mãos, sinalizando, com confiança e respeito, a
ligação entre eles, além de buscarem o enriquecimento do que se
propõem a fazer ou demonstrar.
Dão-se as mãos, por exemplo, a literatura e a psicanálise,
e neste caso, parece-me, como irmãs diletas. Com enorme diferença de idade, de séculos, mas irmãs diletas, nascidas certamente da mesma necessidade.
Um escritor de prosa de ficção e um psicanalista encontram-se ambos no patamar vasto e fecundo das artes ou das atividades que trabalham a natureza humana, um a tentar recriar a
realidade, outro a buscar na escuridão o fiapo de luz que ilumina
►► 373
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
o espírito. A massa, o barro ou o bronze de suas esculturas é o
mesmo: a condição humana, que nos faz sofrer ou sorrir, que nos
limita e nos engrandece. Um poderá produzir uma página brilhante, que será lida cem anos depois — ou sempre; o outro dará ao
escritor uma razão a mais para escrever, ou escreverá ele próprio
um destino mais alto ou menos infeliz para o ser humano.
De qualquer forma, aqui e alhures, agora e sempre, dão-se
as mãos a psicanálise e a literatura em muitas estradas, caminhando juntas difíceis e sedutores caminhos, na busca da compreensão e da perenidade da perplexa criatura humana; Freud a
buscar nas velhas tragédias gregas os modelos imortais de suas
teorias, seu velho amigo e colega Schnitzler a criar tipos de comportamentos instigantes, antecipando nos seus enredos algumas
ideias do criador da psicanálise. Faces e perspectivas múltiplas de
um mesmo objetivo, observações, deduções e recriações de uma
mesma realidade.
Porém, há mais: para Freud, o inconsciente é a verdadeira
realidade psíquica, e sabemos todos o quanto dessa realidade
é posta na escrita da poesia e da prosa de ficção. Assim, a psicanálise e a literatura tornam-se, também aí, na descoberta do
inconsciente e na produção literária, revelações de uma mesma
realidade, a realidade interior mais profunda e maior, a que domina o consciente e as ações dos indivíduos e dos personagens.
Como se não bastasse, as academias de letras, essas instituições culturais que vão encontrar suas origens naquele alvorecer luminoso da civilização ocidental, que nos legou a Grécia
de Péricles e Aspásia, sempre entenderam a denominação “de
letras” no seu sentido mais amplo, abarcando as manifestações
da inteligência por meio da escrita de alto nível em todas as áreas, e não apenas na literatura. Dessa forma sempre entendeu
a academia de Richelieu, o primeiro paradigma; dessa maneira
sempre considerou a academia de Machado, o paradigma brasileiro. Desse modo tem sido na Academia de Letras da Bahia,
desde a fundação em 1917.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
De uma dessas formas, ou de ambas, entenderam nossos
pares, e aqui chegais, senhora acadêmica, na condição confortável e honrosa de uma votação consagradora e unânime, na sucessão, e não na substituição — porque nem aqui nem em lugar
algum, alguma criatura humana substitui outra — de uma mulher elegante e culta, de forte personalidade, mas de uma imensa
ternura, que tinha no estudo da História da Bahia e na preservação da nossa memória cultural os objetivos intelectuais da sua
vida: a nossa inesquecível Consuelo Novais Sampaio.
Uma votação consagradora e unânime que garantiu a esta
Casa a chave de ouro em nosso Quadro Social, na Cadeira 40.
Assim, na diversidade e nos paradoxais pontos de semelhança
que marcam as trajetórias imprevisíveis das Cadeiras acadêmicas, à rigorosa analista da história sucede nessa Cadeira uma
apaixonada analista da alma humana. A primeira psicanalista a
ter assento nesta Casa. Também elegante e culta, também de
forte personalidade, e também de uma imensa ternura. Porém
aqui estais, principalmente, e regimentalmente, senhora acadêmica, por serdes uma escritora, por colocar vossos conhecimentos e vossas ideias na forma escrita, a mais antiga e permanente
forma de fixação dos saberes humanos, e realizar essa tarefa no
alto nível que o nosso regimento exige.
Tenho diante de mim a vossa obra de escritora. Imagino,
diante dos vossos textos, e sabendo de vosso perfeccionismo e
de vosso rigor profissional, o quanto de tempo, de estudos, de
reflexões, foi consumido na elaboração dessa escrita límpida e
profunda, desses conceitos que vasculham, esquadrinham e tentam desvendar um universo jamais completamente desvendado.
Como os escritores de prosa de ficção, porém imbuída
de outros propósitos que não o da criação de personagens e
tramas, vejo-vos a se debater com as ações e as reações dos indivíduos, os comportamentos, as atitudes, os estados paralisantes
ou inibidores, as excitações, e, acima de tudo, os sentimentos e
as emoções, esses oceanos imensos e fundos que encharcam e
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
determinam os destinos humanos, a procurar dominá-los,entendê
-los, explicá-los ou resolvê-los em vossas páginas contidas e bem
escritas. Aqui vejo o luto, do qual nenhum de nós escapa. Ali a
melancolia. Adiante, a depressão — esse manto negro e espesso
que parece cair como uma noite interminável na alma e na vida.
Por toda a parte os medos, as fobias, as manias, os sentimentos
de culpa, as frustrações, os desejos, o pânico, e, como um descampado a perder de vista, numa vastidão que atinge espaço e
tempo, o anátema singular e perpétuo da criatura humana, da
simbólica expulsão do Éden aos finais imprevisíveis da própria
humanidade, o imenso desamparo.
A permear tudo isso, na vossa escrita das teorias psicanalistas, a vontade ou a determinação de vencer os estados negativos e perturbadores do pensamento. Afinal, quem somos? —
perguntaria o filósofo, com o semblante sereno ou angustiado,
ao psicanalista, enquanto o médico sorri como se soubesse a
resposta, e o escritor de ficção apenas imagina um bom enredo.
Uma obra escrita e organizada que não apenas resulta de
vossa atividade profissional, mas extrapola os limites do consultório e acompanha vossos passos pelo mundo, no intercâmbio permanente com os da vossa especialidade, no esforço de
aprender, concluir e ensinar dos congressos e das instituições. Já
se disse que a melhor maneira de aprender é ensinar; talvez por
isso os psicanalistas sabiamente explanem com tanto empenho e
tanto esmero suas teorias. De qualquer maneira, sempre se aventuram no labirinto, arriscando-se ao Minotauro, e jamais deixam
de procurar o fio de Ariadne.
Creio que iniciais a vossa experiência editorial organizando uma coletânea intitulada Melancolia, para a Biblioteca de
Psicopatologia Fundamental, uma coleção dirigida por Manoel
Tosta Berlinck. Nesse volume de 1996, publicado pela Editora
Escuta, de São Paulo, e escrito por mais três autores além de vós,
o vosso trabalho, o mais extenso, “Dúvida melancólica, dívida
melancólica, vida melancólica”, abre a coletânea, e o faz trazendo
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
como epígrafe o último quarteto do belo poema “Estátua falsa”,
de Mário de Sá-Carneiro, aquele que tão belamente exclama: “Sou
estrela ébria que perdeu os céus, / Sereia louca que deixou o mar;
/ Sou templo prestes a ruir sem deus, / Estátua falsa ainda erguida ao ar...”, como se quisésseis, desde o início, como vosso
mestre Sigmund, e vosso outro mestre Lacan, dar as mãos à literatura, para demonstrar a alma humana. Não poderia haver mais
belo nem mais consistente amparo.
Segue-se outra obra organizada, os anais do Primeiro
Congresso Internacional do Colégio de Psicanálise da Bahia,
que inclui o vosso texto “O inconsciente e a poesia”. Vede, senhora acadêmica, a reincidência esplêndida, que me faz retomar
inevitavelmente o fio condutor das mãos dadas, as mãos que se
procuram, se tocam, se enriquecem: sempre a literatura a permear, sugerir, inspirar ou exemplificar os vossos ensaios, numa
reiterada demonstração de que jamais tivestes receio de dar as
mãos às imaginações e aos versos, para explanar as teorias do
vosso ofício, pelo contrário, tomais por fundamento a percepção de Freud, de que os poetas e os escritores mostram e muitas
vezes antecipam o que a clínica ensina.
Em 1999, e também pela Editora Escuta, de São Paulo, é
que entregais ao público vosso primeiro livro de autora, não de
organizadora: Mosaico de letras, ensaios de psicanálise. Esse admirável
mosaico arrepanha a produção esparsa até aquele momento, e
põe, entre suas duas dezenas de preciosos ladrilhos de matizes
diversas — que, entretanto, exibem um entrosamento coerente
e harmônico —, evocações exemplificadoras dos artistas e das
artes, as mãos dadas, e agora também à pintura e ao cinema: de
Claudel, Camus e Joyce — entre outros poetas e escritores — a
literatura; de Leonardo da Vinci e Salvador Dali — a pintura; e de
Glauber, o impetuoso baiano Glauber, “esse vulcão” — o cinema.
Novas faces e perspectivas múltiplas de uma mesma realidade.
Daí por diante, a obra escrita, que já vinha sendo apresentada nos congressos e aparecendo em periódicos especializados,
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
como gotas de orvalho de vossa inteligência e de vossos conhecimentos, passa a ser cristalizada, de forma sistemática e frequente,
em livros de vossa autoria ou organizados por vós, com a vossa
importante participação de autora, integrando fundamentalmente
a vossa atividade profissional, o que vale dizer, a vossa vida.
Além de não caber, num aligeirado discurso de recepção,
seria uma temeridade de minha parte, arriscar-me a comentar
qualquer dessas obras. Há muito que os médicos, quando as patologias ultrapassam as fronteiras da psiquiatria, sensatamente
entregaram aos psicólogos, psicoterapeutas e psicanalistas a tarefa imensa de entender e explicar os comportamentos humanos. E os escritores de prosa de ficção não entendem nem explicam nada, apenas narram. Felizmente, para vos saudar, nesta
vossa chegada a esta Casa, basta-me mencionar os títulos das
vossas obras, e com isso estabelecer um roteiro de um trabalho
em andamento, porque a vossa escrita segue em obras que atualmente estão sendo elaboradas e levadas ao prelo, palavra antiga
e hoje inadequada, mas tão arraigada ainda ao vocabulário dos
que escrevem e editam.
Ao Mosaico de letras, seguiu-se, em 2001, também pela
Editora Escuta, de São Paulo, também para a Biblioteca de Psicopatologia Fundamental, um volume organizado, intitulado
Culpa. Aqui, além de organizadora, vosso texto abre o volume
interrogando: “Por que a Culpa?” É um tema instigante, instigante também para a literatura — não esqueçamos Raskólnikov, de Crime e castigo, do grande Dostoiévski —, e que retorna
com força na obra seguinte, no volumoso anais do Segundo
Congresso Internacional do Colégio de Psicanálise da Bahia,
também de 2001.
Em 2003, vindes com a vossa preciosa obra Depressão e
melancolia, por Jorge Zahar Editor, do Rio de Janeiro, dentro da
disputada coleção “Psicanálise Passo a Passo”, um texto que,
sem perda da qualidade literária ou técnica, é de muito agradável
leitura, e não apenas para os oficiais do ofício. Não foi por outro
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
motivo que esse livro se tornou imediatamente de ampla aceitação comercial, e já se encontra em terceira edição.
Em 2004, agora pela Editora Corrupio, publicais o volume organizado, Emílio Rodrigué, caçador de labirintos, e essa obra
pode ser vista, além do seu valor de conteúdo para os da vossa
especialidade, como o vosso tributo ao psicanalista argentino
que tanto contribuiu para a vossa formação de psicanalista.
Em 2005, participais do volume Obssessiva neurose, organizado por Manoel Tosta Berlink para a Biblioteca de Psicopatologia Fundamental, com o texto “Notas Sobre a Neurose Obsessiva em Freud e Lacan”, um texto extenso, profundo e fartamente
embasado, que desmente a modéstia do título.
Em 2007, lançais o volume organizado Frida Kahlo: dor e
arte, no qual, além da organização, o vosso texto, sempre o mais
extenso, é o que abre o volume e dá o título à coletânea.
Finalmente, na obra até aqui publicada, em 2011, o longo
e esclarecedor posfácio, tão extenso quanto o texto principal,
intitulado “Uma ferida a sangrar-lhe a alma”, ao clássico de Sigmund Freud, Luto e melancolia, numa esmerada edição em capa
dura da prestigiosa Cosacnaify, de São Paulo. Também esta uma
obra de grande aceitação de público, especializado e não.
Este o presumível roteiro dos trabalhos que vos trouxeram
a sentar-se na Cadeira 40, no qual eu incluiria ainda os vários textos inéditos em livro, quase todos apresentados em congressos e
publicados em periódicos, e que dariam outro belo volume, um
segundo mosaico de letras, tão rico e precioso quanto o primeiro, aquele que iniciou a vossa trajetória independente de autora.
É preciso observar que essa obra organizada e escrita, que
se desdobra com rigorosa qualidade em dez volumes, é também
ou principalmente o resultado de uma intensa atividade profissional e institucional, que envolve liderança e capacidade realizadora.
O precoce desejo de vos tornar psicanalista, numa terra
que não dispunha de formação e de profissionais nessa área, vos
levou, quando do vosso trabalho de psicóloga no Departamento
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
de Psiquiatria do Hospital Professor Edgar Santos, a constituir
grupos com o mesmo interesse e iniciar, com dedicados companheiros, situações e organismos de fundamental importância para
a implantação da psicanálise na Bahia. Foram eles a CLAPP, Clínica de Atendimento Psicoterápico e Psicanalista, o NEP, Núcleo
de Estudos Psicoterápicos, e o Colégio Freudiano da Bahia, atual
Colégio de Psicanálise da Bahia. Por meio dessas instituições pioneiras, foram trazidos de toda a parte, particularmente da França,
da Inglaterra e da Argentina, renomados psicanalistas ao nosso
estado, e aqui realizados cursos, palestras, encontros, entre eles
seis Jornadas de História da Psicanálise na Cidade de Cachoeira
sob vossa presidência, mas, principalmente, os dois importantes
congressos internacionais de psicanálise aqui referidos, ambos
do Colégio de Psicanálise da Bahia, ambos organizados e presididos por vós, o de1996 e o de 2001. A esses congressos seguiram-se os alentados anais também aqui mencionados, ambos
com vossa organização.
Essas iniciativas e atividades no solo baiano vos levaram,
por sua vez, a visitar outros centros de maior avanço nas atividades e práticas psicanalíticas, a participar, como expositora, de
jornadas, seminários e congressos, a se tornar conhecida e respeitada internacionalmente, membro da école lacanienne de psychanalyse, em Paris, membro correspondente da Association Insistence,
em Paris, e Analista da Escola, cujo título é A. E., pela Escuela
Freudiana de Buenos Aires.
Após essa enumeração de vossa obra e de vossas atividades profissionais, senhora acadêmica, eu bem gostaria, para
concluir esta saudação, de apresentar um mosaico, não de letras,
como no vosso admirável livro de ensaios, mas de aspectos da
vossa vida particular, onde guardais os vossos afetos e as vossas
particulares alegrias, e que nos trouxesse não a autora, não a realizadora, mas a vossa figura humana.
Não me é possível compor esse mosaico. Ainda que vos
tivesse acompanhado a vida, como alguns de nossos confrades,
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
que são vossos amigos desde os tempos da mocidade, os ladrilhos,
poucos, que pudesse juntar, jamais apresentariam as imagens, as
falas, as cores, os tons e as luzes das circunstâncias originais, tais
como nos foram trazidos em vosso discurso de posse, e que sugerem um tocante livro de memórias, que não deixarei de vos
cobrar. Apesar disso, e para que não se perca a intenção de
vos trazer para além de vossas atividades, arrisco lembrar, ou
imagino — afinal, para isso servem os ficcionistas —, apenas
algumas cenas.
Por exemplo, a menina de olhos negros como “as asas
da graúna”, mas certamente já observadores e reflexivos, filha
amorosa de Mário Tourinho, engenheiro agrônomo, e de dona
Georgina de Carvalho Tourinho, uma excepcional dona de casa
e talentosa pintora amadora, pais admirados e queridos, irmã de
Mário e de Regina, que economizou pacientemente moeda após
moeda num porquinho-mealheiro, e, um dia, resolutamente quebrou o porquinho para comprar um presente para a mãe.
Por exemplo, a adolescente que se encantava com os poemas de Bandeira, Drummond e Pessoa, que lia Flaubert, Tolstoi, Stendhal, Rilke, que tinha na literatura um de seus maiores
prazeres, e que, jovem, se sentiu particularmente inclinada para
a psicanálise ao mergulhar na leitura de Em busca do tempo perdido, de Proust. A viagem ao passado não exatamente perdido
do inesgotável Marcel contribuiu para impulsionar a seduzida
leitora à viagem profissional que faria por toda a vida às razões,
motivações e marcas do passado, o conhecimento do eu mais
profundo, que é a busca permanente da psicanálise.
Por exemplo, a cena já referida no vosso discurso de posse,
mas que não poderia faltar ao meu mosaico, a visita, aos dezessete
anos de idade, com amigas, ao admirado poeta Manoel Bandeira,
e o poema recebido dele, dias após, com a letrinha miúda do poeta, num cartão da Academia Brasileira, intitulado “Urania Maria”,
poema incluído no livro Mafuá do malungo, o que significa ter sido
imortalizada também nos versos do poeta imortal.
►► 381
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Por exemplo, a universitária de vários interesses, naquela
movimentada universidade do reitor Edgard Santos, uma época
singular da Bahia, a ouvir palestras sobre filosofia e teatro, a se
interessar, particularmente, pela dança.
Por exemplo, certa visita ao palácio da Reitoria da Universidade Federal da Bahia em companhia da amiga e escritora Sônia Coutinho, e a primeira visão a distância de três rapazes que já
eram conhecidos de nome, e eram admirados, porque declamavam com grande êxito poemas no Colégio da Bahia e editavam
uma revista chamada Mapa: Paulo Gil Soares, Glauber Rocha e
Fernando da Rocha Peres.
Por exemplo, tempos depois da cena anterior, e também
registrado em vosso discurso, o encontro com um desses moços,
o declamador das Jogralescas, o poeta alto, bonito e veemente,
como um Gregório de Mattos moderno, Fernando da Rocha Peres, que seria o vosso poeta particular, para sempre. O caminhar
de mãos dadas do amor, o caminhar de mãos dadas também da
psicanálise com a poesia.
Por exemplo, a mãe extremosa, na alegria da maternidade
de Daniel e Maria Fernanda.
Por exemplo, a amizade e a convivência do casal Urania
e Fernando com intelectuais notáveis, escritores e poetas, inúmeros, como Pedro Nava, José Mindlin, Carlos Drummond de
Andrade e Vinícius de Moraes, apenas para citar quatro dos mais
conhecidos, e que já se foram. À semelhança de Bandeira, o poeta de Itabira também vos escreveu um poema, este inédito.
Por exemplo, as viagens do casal pelo mundo, navegadores
de olhar agudo e abrangente, a descortinar insuspeitadas paisagens, a travar novos conhecimentos humanos, a visitar museus,
bibliotecas, livrarias, restaurantes finos, a escolher bons pratos, a
degustar bons vinhos, a colher impressões e registros enriquecedores de lugares e pessoas, com a preferência e o retorno constante a Portugal.
Por exemplo, a avó feliz de Paula, João e Tereza.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Basta. De fato, não me seria possível compor o pretendido mosaico. E para quê, se vós mesma já vos trouxestes inteira,
e com tanta emoção e tanta beleza, nas coisas ditas e na maneira
de dizer, nas lembranças e nos conceitos, na linguagem, na voz,
no olhar e nos gestos, na saudade e na gratidão imensa dessas
lembranças, em vosso discurso de posse?
Prefiro então trocar o irrealizado mosaico pela cena única desta noite de todas as festas, e contemplar-vos serenamente
sentada, merecidamente sentada numa das Cadeiras desta nobre
instituição quase centenária, que é a Academia de Letras da Bahia,
ao lado de vossos novos pares, ao lado de vosso poeta particular,
ostentando o colar de ouro do nosso reconhecimento.
Senhora acadêmica, estimada confreira, querida Urania:
Demo-nos as mãos, mais uma vez, e agora para sempre, a
literatura e a psicanálise, e confundamos todos os nossos sentimentos no amor às letras e ao imortal espírito humano.
Sede bem vinda.1
Aramis Ribeiro Costa é médico, também graduado em letras. É escritor, autor de duas dezenas de livros de ficção e poesia, entre eles
A assinatura perdida (1996), Baú dos inventados (2003), e Contos reunidos
(2010). Foi conselheiro do Conselho Estadual de Cultura da Bahia
(2011-2013). Presidiu a Academia de Letras da Bahia na gestão 20112013, sendo reeleito para o período 2013-2015. Desde 1999 ocupa a
Cadeira número 12 da ALB.
Discurso de recepção à acadêmica Urânia Tourinho Peres, empossada
na Cadeira número 40, proferido em sessão solene, no Salão Nobre da
Academia de Letras da Bahia, em 25 de setembro de 2014.
►► 383
DISCURSO DE POSSE
Guilherme Radel
S
enhoras e senhores,
Agradeço a presença de todos vocês que vieram abrilhantar e prestigiar esta festa. Ao tomar posse na Cadeira número 3
desta Academia, minha alma se enche de júbilo e meu coração
transborda de alegria. Estou emocionado.
Vou dar início à minha oração de posse louvando o fundador desta Casa.
Arlindo Fragoso foi uma figura notável. Deve estar entre
os 10 baianos que mais contribuíram para o desenvolvimento da
Bahia. Fundou o Instituo Politécnico da Bahia, a partir do qual,
fundou a Escola Politécnica, preocupado em dar condições de
soerguer a Bahia. Se cuidou da área técnica, não se descuidou da
área cultural. Fundou a Academia de Letras da Bahia. Se cuidou
de técnica e de cultura, não se descuidou de saúde. Fundou o
Clube de Natação e Regatas São Salvador. Mens sana in corpore
sano. Era um fundador. Fez estas fundações sem estar ligado ao
poder e cuidou delas como se fossem filhas.
Trabalhou na construção da estrada Madeira/Mamoré,
exerceu função no Ministério da Indústria e Comércio, onde foi
colega de Machado de Assis. Nas administrações do governador
José Joaquim Seabra, 1912/1916 e 1920/1924, Arlindo Fragoso
assumiu superpoderes como secretário de Viação e Obras Públicas. Foi o gestor, concebendo e fiscalizando, das obras do aterro
da Cidade Baixa, da Avenida Jequitaia, levando-a até a Calçada,
da Avenida Sete de Setembro, demolindo o que obstava seu traçado, levando-a da Praça da Sé até o fim da Avenida Oceânica,
►► 385
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
onde fica hoje a imagem do Cristo Redentor, e do quebramar
principal do Porto de Salvador, o do sul.
Arlindo Fragoso exerceu a profissão de engenheiro em
toda sua plenitude. Era engenheiro e cultivava as letras. Coisa
não muito comum ainda hoje. Haja vista que, dos 211 acadêmicos que passaram por esta casa, só 11 eram engenheiros.
Arlindo Fragoso, infelizmente, é pouco conhecido. Não
há divulgação de seus trabalhos. Parodiando Pirandello, poderse-ia dizer que Arlindo Fragoso é um personagem à procura de um
autor.
O patrono da Cadeira número 3 da Academia de Letras
da Bahia é Manuel Botelho de Oliveira (1636-1711). Nascido
na Bahia, Botelho era um homem abastado, usineiro, produtor
de açúcar, chegou a praticar agiotagem, mas sem grande usura,
cobrando juros a 6,25% ao ano.
Diplomou-se em Direito em Coimbra, onde foi colega de
Gregório de Matos. Foi poeta, publicando Música do parnaso ou
Música da poesia. Sua obra mais conhecida é o poema A Ilha de
Maré, onde em octetos bem metrificados e com rimas ricas, tece
louvores à beleza da ilha. São versos bem trabalhados, mas sem
os arroubos que só a juventude permite aos poetas.
O fundador, primeiro ocupante da Cadeira de número 3
da ALB foi Arthur de Sales, nascido em 7 de março de 1879 em
Salvador, Bahia. Foi poeta como o patrono. Na juventude fez
versos de excelente qualidade, mas, quando amadureceu, suas
poesias nasciam do conhecimento, da prática do instrumental
que o tempo lhe concedeu.
Aos 18 anos, sentou praça no Exército, e, pensando em
fazer carreira militar, matriculou-se na Escola Militar de Realengo. Vendo que não se adaptaria ao regime militar, voltou a Salvador e se matriculou na Escola Normal, onde se diplomou.
Aos 35 anos, escreveu Sub-umbra, seu melhor trabalho,
quando habitava no velho convento dos beneditinos na Abadia
de Brotas.
386 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Em 1908, foi nomeado bibliotecário da Escola Agrícola e,
em 1911, professor do Aprendizado Agrícola da Bahia.
Em 1973, a Secretaria de Educação e Cultura fez publicar a
Obra poética de Arthur de Sales, com prefácio de Hélio Simões, que
inclui sua magistral tradução de Macbeth de William Shakespeare.
Arthur de Sales escreveu o auto religioso Sangue mau e os
hinos de Nosso Senhor do Bonfim e de Nossa Senhora da Conceição da Praia. Se seus versos eram leves, sua prosa era pesada.
O prefácio que fez para sua tradução de Macbeth tem parágrafos
de página e meia.
Tendo levado toda a vida com dificuldades financeiras,
morreu praticamente na miséria em 27 de junho de 1952, laureado como o melhor poeta baiano do século XX.
Quem sucedeu Arthur de Sales foi Eloywaldo Chagas de
Oliveira, poeta como o antecessor. Eloywaldo Chagas publicou
livros, onde têm maior evidencia seus sonetos.
Eloywaldo Chagas diplomou-se em Engenharia Civil, mas
nunca exerceu a profissão, pois sua motivação maior era o ensino. Acumulou títulos universitários como doutor em Ciências
Físicas e Matemática, professor catedrático de Estatística, Economia Política e Finanças na Escola Politécnica da Bahia e da
Crítica dos Príncipios e Complementos de Matemática na Faculdade de Filosofia. Era docente livre da Faculdade de Ciências
Econômicas do Brasil.
Foi professor da disciplina Estatística, Economia Política
e Finanças na Escola Politécnica da UFBA até 1952, quando
tomou posse na Cadeira número 3 da ALB. Tendo assumido o
cargo de presidente do Instituto de Aposentadoria e Pensões
dos Comerciários (IAPC), não mais voltou a ensinar na Escola Politécnica, onde foi substituído por Humberto Lírio, outro
poeta. Quando Eloywaldo Chagas faleceu, quem o sucedeu na
Cadeira número 3 da ALB foi a historiadora Anna Amélia Vieira
Nascimento. Após três poetas, assumiu a Cadeira número 3 uma
historiadora. Sábia eleição.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Anna Amélia foi uma figura invulgar. Como pessoa humana, era conhecida pelo trato lhano, pela simplicidade. Era afável,
alegre. Como historiadora, era dona de um estilo sóbrio, claro e
conciso. Seus textos são lapidares. Lê-los é tomar uma aula de
estilo. Seus trabalhos são precisos e detalhados. Ela esmiuçava
os documentos na procura dos detalhes que comprovassem suas
assertivas. Como cidadã, se preocupou com o status inferior que
as mulheres tinham na sociedade de sua época. Uma condição
instituída de submissão.
Edivaldo Boaventura chama atenção para o que denominou de triângulo de Anna Amélia, que tinham os vértices no
Convento de Santa Clara do Desterro, na Faculdade de Letras e
na Academia de Letras da Bahia. Este triângulo virou um quadrilátero quando Ana Amélia assumiu as funções de diretora do
Arquivo Público do Estado da Bahia.
Sua obra O Convento do Desterro da Bahia estuda a vida
da instituição religiosa e aproveita para destacar a condição
patriarcal da família brasileira. Após esta obra, vem o alentado
Patriarcado e religião: as enclausuradas clarissas do Convento do Desterro da Bahia (1677-1890), que é essencial para que se possa conhecer a relação religiosa com a sociedade, a economia e a política da época colonial. A obra A postura escravocrata no convento
de religiosas, dá possibilidade a que melhor seja posicionado o
tema igreja e escravidão. Em seguida, Anna Amélia publicou
Letras de riscos e Carregações do comércio colonial da Bahia (16601730) e o destacado Dez freguesias da Cidade do Salvador, analisando aspectos sociais e urbanos do século XIX, ressaltando
o aspecto social da História. Esta obra é considerada o melhor
trabalho de Ana Amélia, opinião com a qual eu não concordo.
Penso que sua melhor obra é Patriarcado e religião, que evidencia
seu trabalho de pesquisadora, garimpeira de documentos. Vieram os trabalhos sobre a Santa Casa de Misericórdia, versando
sobre a formação de famílias de baixa renda, estrutura cristã
do matrimônio.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Anna Amélia organizou os arquivos da FIEB — Federação de Indústria do Estado da Bahia (1997), e os arquivos do
Tribunal de Justiça da Bahia (1990).
Anna Amélia foi a nona diretora do Arquivo Público do
Estado da Bahia. Esteve neste cargo por duas vezes, de 1979 a
1987 e de 1991 a 2002. Na sua administração, mudou o arquivo da
Rua Carlos Gomes para a Quinta do Tanque, que sofrera restauração no governo do confrade Roberto Santos, com base em projeto do confrade Paulo Ormindo, e lá equipou a instituição com
laboratório de restauração de documentos, desumidificadores e
outros equipamentos necessários para a conserva de um arquivo.
Construiu também anexos. Anna Amélia preparou, a pedido do
confrade Edivaldo Boaventura, a Lei de Proteção aos Arquivos
Públicos e Privados, criando o sistema estadual de arquivos.
Em 21 de agosto de 1991, Anna Amélia foi eleita para suceder Eloywaldo Chagas na Cadeira de número 3, com 23 votos,
tomando posse em 26 de março de 1992.
Anna Amélia enobreceu, por suas vida e obra, esta Casa.
Estou com 84 anos. Em pleno gozo da velhice. O cinema Glauber Rocha vende dois tipos de meia-entrada. Um para
estudante, a outra para a melhor idade. Suprema mordacidade. Jorge
Amado disse uma frase, que foi recolhida e divulgada por João
Ubaldo Ribeiro, que é a verdade mais verdadeira. Eu só aprendi
uma coisa com a velhice é que a velhice é uma desgraça. A natureza cobra
caro de quem passa do prazo de validade. Começam as dores.
Perdem-se tônus muscular, coordenação motora, olfato, paladar,
audição, visão. Perdem-se memória e outras cositas mais.
Estou com 84 anos, mas me considero um jovem escritor,
pois publiquei meus dois primeiros livros, Cuba libre e Aprendiz de fazendeiro, em 1998, há 16 anos, quando tinha 68 anos. O
lançamento destes dois livros foi inusitado, pois nunca se viu o
lançamento de dois livros numa mesma noite. Ele poderia ter
sido mais inusitado ainda, pois marcado para ter início às 18:00
horas, os livros só chegaram às 19:00.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Em quase tudo na vida, eu disse quase tudo, fazemos melhor as coisas na velhice. Vejam o caso de Shakespeare. Compare-se Romeu e Julieta e a Megera domada com Hamlet, Otelo e Macbeth. É de água para o vinho. Vejam o caso de Machado de
Assis. Faça-se uma comparação entre Iaiá Garcia, Helena e A mão
e a luva com Memorial de Ayres, Memórias póstumas de Brás Cubas e
Dom Casmurro. É de água para o vinho. Compare-se a escultura
de Michelangelo “A madona e o menino”, exposta numa igreja
em Bruges, na Bélgica, em que Maria ampara na coxa o Menino
Jesus, com sua escultura Lá pietá, exposta no Museu do Vaticano,
em que Maria tem no colo, inerme, inerte, morto, seu filho Jesus.
É de água para o vinho.
As melhores obras dos intelectuais geralmente são as
últimas. Moisés de Michelangelo, A morte do caixeiro viajante de
Arthur Miller, Os imperdoáveis de Clint Eastwood, a casa sobre a
queda d’água e o Museu Guggenheim, em Nova York de Frank
Lloyd Wright, Crítica da razão pura e Crítica da razão prática de
Kant, A montanha mágica de Thomas Mann, A moça com a argola
de pérola de Vermeer, os últimos três quartetos e a Sinfonia Coral
de Beethoven.
Façamos um parêntesis. O arquiduque escolheu Beethoven para abrir o ano musical de Viena, contra a opinião do diretor musical da Ópera de Viena, que o achou acabado depois
de sua pesada Oitava Sinfonia e dos seus últimos três quartetos.
Estes quartetos são considerados hoje o suprassumo da música
de câmara, mas, por serem revolucionários, não foram entendidos à época. Com seis meses, Beethoven não terminara a partitura da sinfonia. Faltando três meses para a abertura, Beethoven
pediu que fossem reforçados os metais, as madeiras e as cordas,
fossem contratados um tenor, um barítono, um baixo, uma soprano, uma mesossoprano, uma contralto e um coro com sessenta vozes. O diretor musical achou que Beethoven teria pirado. “Onde já se viu usar vozes em sinfonia?”. Foi ao arquiduque,
que o ordenou a conceder tudo que Beethoven pleiteasse. Assim
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
foi feito. No dia da abertura do ano musical de Viena, após a
execução da Nona Sinfonia de Beethoven, a plateia aplaudiu de
pé e metade chorava.
Os físicos, os matemáticos e os poetas fogem desta regra.
Newton, que nos deu, ainda jovem, as leis da gravitação e do
movimento, terminou seus dias tentando dar base científica à
Astrologia. Einstein, que nos deu a Teoria geral da relatividade, aos
35 anos, morreu sem mais nada adicionar ao seu grande trabalho. Euclides, que nos deu a Geometria, em que nos ofereceu os
teoremas, os corolários e os axiomas até hoje atuais, não fez
mais nada de importante até sua morte. Descartes que construiu a Geometria Analítica, introduzindo a Álgebra na Geometria
e permitindo a solução, das cônicas, dos problemas envolvendo
elipses, parábolas e hipérboles, ao amadurecer virou filósofo e
nos deu O discurso do método. Rimbaud, que, com seus versos no
A descida ao inferno, liberou a poesia das amarras da rima e da métrica, aos 30 anos passou à prática do comércio clandestino, no
norte da África, lá adoeceu e veio a falecer. Vinicius de Moraes,
o poetinha, poeta inspirado, após os 35 anos tornou-se milongueiro. João Cabral de Melo Neto escreveu, aos 32 anos Morte e vida
Severina, e, aos 42 anos, sua obra principal, a Educação pela pedra.
São 42 poesias, mas a que dá nome ao livro é a mais extraordinária. Sem mostrar a carpintaria, João Cabral, num construtivismo
singular, levanta sem becos, numa cadência que é racional, não
é emocional, mas que nos deixa envolver por lirismo surpreendente. João Cabral escreveu até sua morte, mas nunca mais fez
alguma coisa que se comparasse às poesias de Educação pela pedra.
Não cito Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira por
elas nunca terem alcançado um apogeu.
Em culinária, diríamos que estes 35 anos não são um prazo de validade, é o ponto de melhor consumo, indicação muito comum
dada a queijos e vinhos. Temos um bom exemplo no consumo de
cabrito. No semiárido brasileiro, só se abate o cabrito quando ele
chega aos três meses. Na Itália, Espanha e Portugal, este prazo
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
diminui para um mês. Há até um ditado português interessante
que diz: “Cabrito de um mês, porco de um ano, mulher de 23”.
Até os 68 anos, nunca me passou pela cabeça me tornar
escritor. Tinha escrito vários trabalhos técnicos, mas só tinha saído dessa seara em 1968, quando tinha 38 anos, e escrevi A carne
de sol. Só 30 anos depois saí de novo da seara técnica.
Ao iniciar meus estudos no 3º ano do curso de colégio,
no Colégio da Bahia, tinha que escolher uma profissão a seguir.
Naquela época, só havia três profissões que permitiam ascensão
social: médico, bacharel em direito e engenheiro. Quem tinha
facilidade com as letras fazia direito. Quem não tinha horror
a sangue fazia medicina. Quem tinha facilidade com os números fazia engenharia. Eu queria fazer vestibular para arquitetura,
mas, naquela época, seu curso não era reconhecido federalmente. Meus familiares me convenceram a fazer o vestibular para
a engenharia. Foi um conselho acertado. Tudo que fui e sou
agradeço à engenharia.
Só que minha mãe e eu não sabíamos que na prática de
engenharia eu viria a escrever tanto. Eram memorial descritivo, memórias de cálculo, especificações gerais, especificações
de materiais e equipamentos, relatório de inspeção, relatórios de
diligência, sugestão de editais, relatório mensal de progresso, relatórios finais.
Escrevi e escrevi muito. Escrevi e aprendi muito. Aprendi
que o texto só é perfeito se ele é claro, conciso e preciso. Para alcançar a clareza, a concisão e a precisão o texto deve ser feito na
ordem direta (sujeito — predicado — objeto ou complemento),
ter períodos curtos, não utilizar orações intercaladas explicativas,
usar a voz ativa e a forma afirmativa, usar poucos adjetivos e nenhuma locução adverbial de modo do tipo de forma adequada,
evitar ambiguidades, construir parágrafos curtos e usar a palavra
que melhor exprime o que se pensa.
Discordo de Carlos Drummond de Andrade quando ele
diz que “a procura da palavra é uma batalha perdida”. Acho que
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
a função maior do autor é achar a palavra que melhor exprima o
que se pretende transmitir a quem lê o seu texto.
Aprendi cedo a procurar a palavra adequada, a que melhor exprimisse o que pensava. Estive fazendo um relatório de
inspeção de uma obra e ao relatar o sentimento que senti ao ver
a má qualidade da construção, usei a palavra estupefato. Relendo o texto, achei que a palavra tinha possibilidade de ser vista
como cabotinismo. Tentei substituí-la por atônito, amedrontado,
assombrado, aterrorizado, estarrecido, espantado, perplexo ou
pasmo. Nenhuma tinha a força de estupefato, nenhuma expressava o que verdadeiramente eu sentira. Ficou estupefato.
Aprendi cedo que as palavras devem ser precisas para que
o texto seja claro.
Em 1954, ocorreram chuvas intensas por toda Bahia. Cidades inundadas, deslizamentos de terra nas estradas, pontes
caídas, rupturas em barragens, uma tragédia. Àquela época, eu
era estagiário no DNOCS e assisti Oyana Pedreira, que era o
diretor geral dar instruções a um topógrafo para, com urgência,
visitar as obras do Açude Ceriema para avaliar os estragos que
lá tinham ocorrido. Na sua volta, o topógrafo se apresentou a
Oyana Pedreira que estava ao lado de minha prancheta, onde
desenvolvia um projeto de um açude.
— E aí, Antônio, quais foram os estragos?
— Doutor Oyana a coisa é seria. Houve um grande deslizamento de terra no talude de jusante.
— E a estrutura do sangradouro sofreu?
— Sofreu.
— Fissura ou trincou?
— Doutor Oyana, eu não sei a diferença.
Então, ele explicou.
— Fissura é uma abertura pequena, quase um fio de cabelo. Trinca é uma abertura maior, quase uma rachadura.
— Então, foi trinca, doutor Oyana. Eu passei por dentro
dela montado num jumento.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Para obter sucesso na literatura de ficção — romance,
novela, conto — o escritor deve conhecer o assunto sobre o
qual pretende escrever, o ambiente, as pessoas, os costumes, a
linguagem, forma de alicerçar e dar realidade ao que se conta.
O escritor precisa ter dados. Dados que tenham aderência, congruência e coerência, principalmente coerência. O escritor passa
tempo tomando notas, notas que serão mais tarde aproveitadas.
O escritor vê os ambientes e sua geografia. Ele é o palco de
sua história. O escritor vivencia o labor, o trabalho que os seus
personagens assumirão na história. É certo que Bradbury não
precisou ir a Marte para escrever seu grande sucesso As crônicas
marcianas, mas Herman Melville escreveu Moby Dick após trabalhar três anos numa baleeira, pescando nos mares do Pacífico.
Joseph Conrad escreveu o Coração das trevas após passar três anos
comerciando marfim no Congo. Somerset Maugham escreveu
Servidão humana com o conhecimento da vida acadêmica, pois
fez o curso de medicina até o terceiro ano. Thomas Mann escreveu A montanha mágica, aproveitando a experiência de ter sido
paciente de um clinica tisiológica nos Alpes Suíços, e escreveu A
morte em Veneza após passar uma temporada de veraneio naquela cidade. Ernest Hemingway escreveu Por quem os sinos dobram,
com base em sua participação na Guerra Civil Espanhola, escreveu seu melhor conto, As neves do Kilimanjaro, aproveitando o
conhecimento adquirido nas diversas caçadas que fez na África
e escreve sua obra-prima, O velho e o mar por ter morado em
Havana, velejado e pescado por seus mares durante dez anos
e John Le Carré escreveu O espião que saiu do frio, conhecendo
bem o assunto por ter sido durante muitos anos agente secreto
britânico, trabalhando nas M6 e M15, agências de espionagem
que foram badaladas por James Bond. Nosso falecido confrade
Jorge Amado escreveu, a meu ver, seus três melhores livros, Terras do sem fim, São Jorge dos Ilhéus e Gabriela cravo e canela, por terem
como palco Ilhéus, cidade onde passou a juventude e conheceu
os Badaró, as terras adubadas de sangue, Nacib e o Bar Vesúvio.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Só não deixou escapar quem foi Gabriela com medo do ciúme
de Zélia Gattai.
Os dados podem ser memorizados, mas o melhor é tê-los
anotados.
Aprendi com meu tio Zezinho que é preciso ter os dados,
saber onde eles estão e saber usá-los, quando necessário.
Meu tio Zezinho morava em Jauá, onde tinha um coqueiral em quase uma légua de praia. Antes de enviuvar, morava em
Camaçari. Ao ficar viúvo, mudou-se com uma filha solteira para
Jauá. Passei com ele algumas férias.
Enquanto casado, era um homem de hábitos morigerados,
mas, quando se mudou para Jauá, segundo as más línguas, chegou a ter cerca de cem filhos com cerca de vinte mulheres.
Em Jauá, comíamos peixe todos os dias. Peixe de moqueca, de ensopado, escaldado, frito, ao forno, grelhado, sempre
acompanhado por feijão de leite e arroz de viúva.
Só escapávamos dessa dieta aos domingos, pois aos sábados meu tio trazia um paulista que era assado na panela.
Num desses sábados, quando eu acompanhava meu tio na sua
ida à Camaçari, ele montado em uma mula bem ajaezada e eu,
num pangaré, um garoto pulou à frente da mula em que meu
tio montava.
— Benção, meu pai — gritou o garoto.
Meu tio sofreou a mula, tirou do bolso superior do dóeman
uma pequena caderneta preta.
— Como é o nome de sua mãe? — perguntou meu tio.
— Joana.
Meu tio folheou a caderneta, procurando a folha Joana, e,
quando a achou, dirigiu-se ao garoto.
— Como é seu nome?
— Agapito.
Meu tio correu o dedo pelas linhas da folha e quando
achou Agapito foi solene.
— Deus o abençoe, meu filho.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Meu tio tinha os dados, sabia onde estavam e sabia usá-los.
Quero agradecer a todos vocês sua presença, aos meus
confrades por terem me eleito por unanimidade, a Joaci Góes
que foi quem me indicou para ocupar a vaga na Cadeira de número 3, aos meus familiares, que me apoiaram em tudo que fiz
de bom. Que Deus abençoe vocês todos. Muito obrigado.1
Guilherme Radel é engenheiro civil e engenheiro eletricista pela Escola Politécnica da Universidade Federal da Bahia, onde foi professor.
Estudioso da cozinha baiana, publicou A cozinha sertaneja da Bahia, A
cozinha praiana da Bahia, A cozinha africana da Bahia e A doçaria da Bahia.
Na ficção, entre outras obras, publicou romance A longa viagem. Eleito
no dia 5 de junho de 2014 para a Cadeira número 3 da ALB.
Discurso de posse do acadêmico Guilherme Radel na Cadeira número 3, proferido de improviso em sessão solene, no Salão Nobre da
Academia de Letras da Bahia, em 9 de outubro de 2014. Gravado, o
improviso foi posteriormente escrito pelo próprio autor.
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DISCURSO DE RECEPÇÃO
A GUILHERME RADEL
Joaci Góes
G
uilherme Requião Radel passa a ser o membro desta Academia de mais difícil enquadramento intelectual-temático. Se escolhermos, ao acaso, alguns dos ilustres confrades que
temos diante dos olhos, logo nos vêm à mente um ou mais atributos que respondem,prioritariamente,pelo papel exponencial
que desempenham em nosso meio,razão maior do seu ingresso
nesta casa.
Com Guilherme Radel esta tendência se amplia, tal a diversidade dos assuntos do seu permanente interesse, sobre os
quais produziu trabalhos de fôlego. De fato, não são poucos os
feitos que compõem a impressionante biografia intelectual deste
baiano que se nos afigura como um dos maiores polígrafos brasileiros. Radel é polígrafo no que a palavra tem de mais exigente,
consoante a teoria literária que restringe a aplicação do conceitoa
quem aborda diferentes temas, com superior qualidade. Trata-se
de ofício que requer inteligência múltipla, vasta erudição, grande
capacidade analítica e curiosidade visceral, desembocando, tudo
isso, em sólida formação cultural, perífrase para significar capacidade de pensar sistêmico. Some-se a todos esses atributos,
a fidelidade que dedica aos três hábitos do caráter: 1°— proatividade, postura de tomar nas próprias mãos, as rédeas do seu
destino; 2°— agir com base em projetos e 3°— valorização do
tempo. A lição de Goethe, sem dúvida, foi por ele exemplarmente aprendida: “o maior de todos os erros é o de permitir que
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
as coisas menores impeçam a realização das maiores”. De fato,
sem o desenvolvimento do hábito de valorizar sistematicamente o tempo, destinando-o a atividades relevantes, não teria sido
possível a Guilherme Radel realizar obra tão prodigiosa.
Personalidade renascentista, Radel, ignorando a impossibilidade do ambicioso projeto a que se dedicou, desde cedo,
de amealhar a totalidade do saber humano, nos mais diferentes
domínios das ciências da natureza e do espírito, na sua tentativa
de chegar às estrelas, alcançou um ponto muito alto no meio do
caminho. Essa olímpica trajetória intelectual não impediu que o
jovem Guilherme se afirmasse, na prática do esporte amador,
como personalidade de proa das esquadras itapagipanas que representaram a Bahia em torneios municipais, estaduais e nacionais de voleibol, futebol e remo.
Desde há muito, observamos a lentidão com que nosso
mundo cultural se rende ao reconhecimento do singular valor
intelectual de Radel, de um modo que nos evoca a afirmação,
revestida de justificado orgulho, com que o Mestre Orlando
Gomes nos dizia ser ele o único intelectual baiano a granjear
notoriedade nacional sem sair da Bahia. Como afirmamos desta
Tribuna, ao saudar o pranteado confrade João Ubaldo Ribeiro, festejados intelectuais de nossa terra torciam o nariz quando
os presenteávamos com seus livros, quando ele ainda vivia na
Bahia. Depois de consagrado pela crítica internacional e nacional, nessa ordem, Ubaldo passou a ser tratado como gênio pelos
mesmos que subestimavam a qualidade de sua obra.
Essa submissão aos padrões estabelecidos na corte é, desde sempre, a marca maior do comportamento provinciano.
Entre os grandes polígrafos brasileiros, avultam os nomes marcantes dos baianos Afrânio Peixoto e Pedro Calmon.
Afrânio nasceu em 1876, em Lençóis, e faleceu em 1947, tendo vivido, portanto, 71 anos. Calmon, nascido em 1902, em
Amargosa, e morto em 1985, viveu quase 83 anos. Radel, nascido em fevereiro de 1930, continua lépido, fagueiro e dedicado à
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
finalização de seu monumental dicionário dos verbos da língua
portuguesa, com o que alarga, ainda, mais a diversidade de sua
rica produção.
Diferentemente de Pedro Calmon e Afrânio Peixoto que,
desde cedo, saíram da Boa Terra atraídos pelas luzes da metrópole, Radel cedeu ao feitiço e aos apelos emocionais do berço
esplêndido e permaneceu na Bahia, onde se realizou plenamente, enquanto percebia, sem jamais se indignar, que santo de casa
não faz milagre, como ensina a sabedoria popular.
Façamos, então, uma retrospectiva, à vol d´oiseaux, dos
feitos que tornam Radel um dos maiores polígrafos brasileiros,
com predicados que o habilitam a integrar as melhores academias do mundo.
Até ser consagrado como Professor Emérito da Universidade Federal da Bahia, este professor da mais importante escola
de engenharia do Nordeste brasileiro percorreu uma longa avenida de notáveis realizações, na teoria e na práxis, em campos
tão distintos como a engenharia sanitária, o direito administrativo, a agropecuária, a culinária, a história, o romance, a crônica
de costumes e de viagens, o teatro, a memorialística, a língua
portuguesa. Poeta bissexto, Radel recusa-se a arrolar a poesia em
seu acervo literário.
Ele ensinou Topografia, Instalações Domiciliares, Hidráulica e Obras Hidráulicas, tendo chefiado o Departamento de Hidráulica e Saneamento da UFBA. Seu espírito de liderança levou-o
a presidir a Associação dos Professores Universitários da Bahia.
Conferencista destacado em congressos sobre abastecimento
d’água, dentro e fora do Brasil, sua atuação profissional faz dele
um dos mais respeitados especialistas no campo da engenharia
sanitária em todo o País. Na Bahia, seu nome está associado a
praticamente tudo que se fez no estado, no campo do saneamento
básico, nos últimos 50 anos, de que são prova os trabalhos que
projetou, fiscalizou ou realizou nas regiões de Salvador, Itaparica, Camaçari, Teodoro Sampaio, Feira de Santana, Ilhéus, Jequié,
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Brumado, Andaraí. Obras como o Sistema Adutor de Pedra
do Cavalo, as barragens do Joanes e de Ipitanga integram o seu
currículo. Fora da Bahia respondeu por trabalhos nos estados do
Amazonas, Maranhão, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Minas Gerais,
Espírito Santo, São Paulo e Paraná. No exterior realizou trabalhos
para a Costa Rica e o Peru. Pode-se dizer, sem medo de errar, que
o seu trabalho como engenheiro sanitarista representa uma das
maiores contribuições individuais ao conforto e à promoção da
saúde dos baianos e dos brasileiros.
Entre os inúmeros trabalhos técnicos que publicou, incluem-se vários de viés literário entre os quais Política setorial de
saneamento dentro dos problemas ambientais urbanos, O rio São Francisco:
a questão da transposição, O aquecimento global, Modelo agropecuário resistente às secas, A Barbará não virou homem e Alvinho foi para o céu, e
o clássico A obra pública ou um dos diálogos que Platão não escreveu, em
que desenvolve um diálogo maiêutico entre Sócrates e seu imaginário discípulo Ascórbius, às onze da manhã, em plena ágora
ateniense, para alcançar o perfeito entendimento do que seria o
melhor preço ou a proposta mais vantajosa. Nada se escreveu de
mais esclarecedor sobre a momentosa questão, fonte dos superfaturamentos que esfolam o contribuinte brasileiro e escandalizam o mundo moderno, levando à bancarrota empresas como a
Petrobras e a Eletrobras.
É grande o acervo de obras com que Radel afirma o seu
nome nos meios técnicos nacionais, a exemplo de:
• “Esvaziamento de um reservatório por tubulações
longas” — trabalho publicado no boletim da Seção
Bahia da ABES e pela revista Saneamento.
• “O buster e a sua aplicação” — trabalho apresentado
no IV Congresso Brasileiro de Engenharia Sanitária,
em Brasília e publicado pela revista Saneamento.
• “Uma experiência de assentamento de tubulações
plásticas em rede distribuidora de água” — trabalho
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•
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apresentado no V Congresso Brasileiro de Engenharia Sanitária, em Recife, premiado na 3ª. Comissão, e
publicado na revista Engenharia Sanitária.
“Uma experiência de execução de uma linha adutora em concreto armado moldado in loco” — trabalho
apresentado no V Congresso Brasileiro de Engenharia Sanitária, em Recife.
“Conveniência da utilização de tubos plásticos de
PVC rígido em rede distribuidora de água” – trabalho
apresentado em simpósio patrocinado pelo Centro
Tecnológico de Saneamento Básico, em São Paulo, e
publicado pelo CETESB e pela revista Abes-BA.
“A obra pública ou um dos diálogos que Platão não
escreveu” – trabalho apresentado no VI Congresso
Brasileiro de Engenharia Sanitária, em São Paulo, e
publicado nos Anais do VI Congresso e na revista Abes
-BA e em brochura pela Barbará, Civilit e Promon.
“Posicionamento de E.T.A. em sistema de abastecimento de água de pequenas comunidades” – apresentado no VII Congresso Brasileiro de Engenharia
Sanitária, no Rio de Janeiro, Interamericano de Engenharia Sanitária, em Buenos Aires. Publicado na revista Engenharia Sanitária, vol. 15, nº 1, janeiro e março
de 1976.
“Diagnóstico de sistemas de abastecimento de água
existentes” – apresentado no X Congresso Brasileiro de
Engenharia Sanitária, em Manaus, em janeiro de 1979.
“Bases para uma política de águas regional – Uma experiência no Nordeste Brasileiro”, apresentado no X
Congresso Brasileiro de Engenharia Sanitária, em Manaus, em janeiro de 1979.
“Modelo agropecuário resistente às secas” — apresentado no XII Congresso de Engenharia Sanitária,
em Camboriú-SC, em novembro de 1983.
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• “A Barbará não virou lobisomem e Alvinho foi para o
Céu” – apresentado no XV Congresso de Engenharia
Sanitária em Belém-PA, em setembro de 1989.
• “Política setorial de saneamento dentro do tema problemas ambientais urbanos” — ECO-URBS-92, Rio
de Janeiro, RJ, 1992.
• “Relatório do painel ‘As Condições Sanitárias dos Países do Terceiro Mundo’” — na ECO-RIO, Rio de
Janeiro, RJ, 1992.
• “O Rio São Francisco: a questão da transposição” —
Vanguarda Rural no. 3, abril-maio/1995.
• “Aula inaugural dos cursos da Universidade Federal da
Bahia — O aquecimento global” — março de 2007,
Salvador, BA.
3.4. CULINÁRIA
• A carne de sol, com 26 páginas.
• A cozinha sertaneja da Bahia, em 2ª edição, com 504 páginas.
• A cozinha praiana da Bahia, preparando 2ª edição, com
280 páginas.
• A cozinha africana da Bahia, com 479 páginas.
3.5. ROMANCE
• A longa viagem, com 393 páginas.
3.6. MEMÓRIA
• Mamãe e eu no paraíso, com 377 páginas.
• 80 casos vividos, com 283 páginas.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
3.7. TEATRO
• A partida (drama em 2 atos).
3.8. LINGUA PORTUGUESA
• Dicionário Radel (14.501 verbos da língua portuguesa)
1º Volume: Morfologia e sintaxe, conjugações, concordância verbal, regência verbal, com 425 páginas.
2º. Volume: (em preparo)
Água de beber, camará, a história do abastecimento d´água,
desde a chegada de Tomé de Souza, abrangendo o Brasil Colônia, Império e República, recentemente editada pela Assembleia
Legislativa, que se afirma como a mais importante editora do
Estado da Bahia, evidencia o protagonismo de Teodoro Sampaio, Saturnino de Brito e Guilherme Radel, como as personalidades de nosso abastecimento hídrico.
De sua experiência como pecuarista, nasceu o livro
Aprendiz de fazendeiro, em que ensina como otimizar os recursos
do semiárido para a bovinocultura e a caprinocultura, campo em
que se destaca como dos maiores criadores do Brasil. A dedicatória com que nos distinguiu nesta obra constitui a mais apertada síntese de nossa vida. Escreveu ele: “Ao querido amigo Joaci
Góes que fugiu da caatinga para não ficar com o pescoço torto
de tanto olhar para o céu”.
De sua visita a Cuba resultou o delicioso Cuba libre, do
mesmo nível ou superior a tudo de melhor que já se escreveu
sobre a famosa ilha caribenha, inclusive o produzido no início
da década de 1960 por Jean-Paul Sartre, Furacão sobre Cuba, e
Anatomia de uma revolução, de Paul M. Sweezy e Leo Huberman.
Estimulado pelo êxito do opúsculo de 26 páginas, A carne de sol, Radel, no melhor espírito de Câmara Cascudo, pesquisou ao longo de meio século, para escrever as 1263 páginas que
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
compõem a já clássica trilogia sobre a culinária baiana: A cozinha
sertaneja da Bahia, A cozinha praiana da Bahia e A cozinha africana da
Bahia. Às suas expensas, visitou países africanos e vários estados
brasileiros para exaurir os fundamentos histórico-geográficos e
sócio-antropológicos de nossa culinária. Os historiadores sabem
da importância da alimentação como prodigiosa fonte para os
estudos da História.
Como memorialista, Radel nos legou Mamãe e eu no paraíso
e 80 casos vividos, com que celebrou a passagem de oito décadas
de vida.
A partida, drama em dois atos, é o produto de sua incursão
no teatro.
O segundo e último volume do seu magnum opus, Dicionário
Radel, em que disseca a morfologia, sintaxe, conjugação, concordância e regência de 14.501 verbos da língua portuguesa, é
o épico trabalho a que tem dedicado substancial parcela do seu
tempo. O primeiro já veio a lume.
Em 2011, Radel surpreendeu o mundo literário com a
publicação pela Assembleia Legislativa do romance A longa viagem, com avaliação crítica de João Cezar Piorobon e do médico
e ficcionista Aramis Ribeiro Costa, presidente da Academia de
Letras da Bahia, que concluiu sua avaliação, sustentando que se
trata de “um romance denso e surpreendente, na forma e no
conteúdo, que acaba levando o leitor, de fato, a uma longa viagem no plano de uma boa literatura”.
Já se encontra no prelo seu novo livro intitulado Raízes
da culinária baiana, abordagem sociológica, histórica, econômica, étnica e
antropológica de um dos esteios da cultura da Bahia, monumental pela
erudição das fontes que foi buscar em paciente vilegiatura, às
suas expensas, em países como Moçambique, África do Sul, Angola, Congo, Nigéria e Portugal, bem como nos estados brasileiros de Minas Gerais, Goiás, Maranhão, Ceará, Rio Grande do
Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, e Sergipe. Entre os historiadores em que bebeu, destacam-se o padre Fernão Cardim,
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Gabriel Soares de Souza, Luís dos Santos Vilhena, o inglês James
Wetherell, Manuel Querino, Hildegardes Vianna, Roger Bastide,
Kátia Queiroz Mattoso e Luís da Câmara Cascudo. Tudo isso
sem mencionar sua aguda observação da cena contemporânea
da culinária baiana.
Íntegro, por excelência, Radel é uma personalidade singularmente afetuosa, como atestam familiares e sua numerosa
legião de amigos e admiradores.
Que nos orgulhemos os baianos, em geral, e os membros
desta Academia, em particular, ao recebermos nosso confrade
benjamim: o engenheiro civil e eletricista, Guilherme Requião
Radel, filho de Gustavo Gesteira Radel e Maria da Glória Requião Radel, marido da engenheira civil Luzia, sua colega de graduação universitária, musa e esteio de toda a vida, pai de cinco
filhos e avô de seis netos, é o maior polígrafo vivo do Brasil.
Seja bem vindo, querido confrade, à convivência amena na
casa de Arlindo Fragoso!1
Joaci Góes é bacharel em direito, escritor, orador, político, empresário
e consultor educacional. Foi deputado federal constituinte em 1988,
tendo sido o relator do Código de Defesa do Consumidor. Entre outras
obras, publicou os ensaios A força da vocação no desenvolvimento das pessoas
e dos povos (2009), e (as) 51 personalidades (mais) marcantes do Brasil (2014).
Desde 2009 ocupa a Cadeira número 7 da ALB.
Discurso de recepção ao acadêmico Guilherme Radel, empossado na
Cadeira número 3, proferido de improviso em sessão solene, no Salão
Nobre da Academia de Letras da Bahia, em 9 de outubro de 2014.
Gravado, o improviso foi escrito posteriormente pelo próprio autor.
►► 405
A INVENÇÃO DO ESCRITOR
Discurso de posse
joão carlos salles
1.
F
ilosofar é dizer o óbvio, ou melhor, é saber como dizer o
óbvio. É claro que nossa obviedade sempre está encoberta
por muitos considerandos, mesmo quando agarrada à superfície
das coisas. Por isso, a filosofia tanto guarda o gosto profundo
da evidência, da prova, da demonstração, quanto jamais desconhece o fino sentido da ambiguidade. Conservados esses polos,
entre o mais trivial e o deveras ambíguo, se feliz o filósofo, a
demonstração não se descola do mundo e a ambiguidade não
desanda em mero equívoco.1
Ora, uma tensão como essa só se pode manter mediante
um jogo reiterado de recomeços, de novas considerações, quando tudo já pareceria esclarecido. O que o filósofo então cultiva é
um senso agudo de modalidades, matizando e sopesando enunciados dispostos entre a contingência e a necessidade, pois todo
discurso filosófico tem de seu exatamente o dom de provocar
desvios, por meio dos quais voltamos a nossas certezas e as testamos, ou seja, testamos os direitos e a qualidade dos argumentos, do processo constante de justificar a palavra pela palavra,
proposições por outras proposições, em meio ao mundo que,
sempre à espreita, nos solicita e desafia.
1
Cf. Merleau-Ponty, Éloge de la philosophie, Paris, Gallimard, 2008.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Ao constituir-se, ao ter a necessidade de justificação
como marca, nosso discurso obriga-se ao outro. Mesmo o mais
solitário dos discursos filosóficos guarda a possibilidade da humanidade inteira e, logo, inaugura um espaço de convívio, de
sorte que o fazer da filosofia, agressivo ou não, é sempre um
exercício, voluntário ou inadvertido, de tolerância. Por óbvio,
então, o lugar da filosofia é o do cultivo da palavra, sendo seu
exercício, entre a frieza da razão e a liberdade da imaginação,
próximo das ciências e das letras, e delas igualmente distante. Cálculo e aventura, atenta ao mundo e à razão, à lógica e
ao imprevisível, o instrumento da filosofia não é a régua, o
compasso, nem sequer o astrolábio concreto, mas sim a ideia
mesma do astrolábio.
2.
Filósofos podem definir seu trabalho de muitas formas,
sempre procurando traduzir uma tensão constitutiva. Agradame, é claro, a ideia wittgensteiniana, bastante sóbria, de que a
filosofia é tão somente a gramática do necessário e do possível,
em cujos limites se distinguem o significativo (o que pode ser
dito pela ciência, mas nada tem de relevante) e o relevante, o
que toca enfim os valores mais elevados e pode inclusive unir
ética e estética, mas, não obstante, é inefável. Qualquer o modo,
porém, a medida da filosofia não aceita concessões, a ponto de
se dizer também, simples e gravemente, como a resistir ao apelo mundano e à opinião do comum dos homens, que filosofar
não seria outra coisa que aprender a morrer. Primeiro, diriam,
porque o estudo e a contemplação nos separariam do corpo,
em experiência talvez próxima à da morte, ou talvez, segundo,
porque de toda busca da sabedoria resultaria não termos mais
receio de morrer.2
2
Cf. Montaigne, “De como filosofar é aprender a morrer”.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
A ideia não expressa, na origem, uma mera posição religiosa, mesmo que se formule em consonância com a tradição
grega e logo com a vindoura tradição cristã. Ela reflete antes, no
contexto dos diálogos platônicos, uma necessidade epistemológica, qual seja, a ideia de que o conhecimento, tendo sua possibilidade lógica em um reconhecimento, solicitaria uma alma
imortal, a jungir em sua operação mais simples o mundo das
ideias e esse nosso mundo das sombras.
O máximo e emblemático exemplo dessa definição da filosofia seria a morte de Sócrates, tal como relatada no Fédon.
A morte aparece então como retorno à dimensão da alma, ao
mundo imaterial e imortal das ideias. Por isso mesmo, nenhum
temor haveria em abandonar o corpo. Sócrates até recrimina os
circunstantes que desatam a chorar quando o veneno começa a
fazer efeito, e lembra enfim, como sintoma de continuidade da
vida, a manutenção de seu compromisso com suas dívidas, que
a morte não faz cessar. Em suas últimas palavras, solicita a um
discípulo: “— Críton, devemos um galo a Asclépio; não esqueça
de pagar essa dívida”.
Uma leitura piedosa do episódio, decerto enigmático, sugeriria que, se a vida conduz sem clemência à morte, o viver do
filósofo teria o condão de fazer a morte conduzir-nos à verdadeira vida. Sócrates não é tão piedoso. Exercita sim, ao final ou
ao começo, uma ironia de preço elevado. A ironia de reverenciar
ao final um dos deuses por cuja suposta descrença teria sido
levado à condenação. A ironia performática de aceitar a condenação que rejeita, o veredito que nega, de colher sua identidade
como ateniense no juízo de quem não representa a cidade. Podendo fugir, aceita afirmar sua identidade como grego, como
ateniense, como filósofo, desafiando os juízes à própria crueldade: mesmo que tivesse que morrer várias vezes, não deixaria
de filosofar. Como a dizer (com Fernando Pessoa, é claro) um
último sortilégio:
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Morra quem sou, mas quem me fiz e havia,
Anônima presença que se beija,
Carne do meu abstrato amor cativo,
Seja a morte de mim em que revivo;
E tal qual fui, não sendo nada, eu seja!3
3.
Vale a pena reter da imagem socrática, porque caro à linhagem filosófica a que me vinculo, o gesto de um conhecimento irmanado a um traço moral, a recusa em separar reflexão
lógica e posição ética. Não por acaso, podemos ver Ludwig Wittgenstein, jovem e atormentado por seus fantasmas, caminhando pelos aposentos de Bertrand Russell, horas a fio em agitado
silêncio. Estaria pensando sobre lógica ou sobre seus pecados?
— As duas coisas, responde a Russell.
Lógica e ética não se separam, determinando-se uma pelos limites da outra. Entretanto, se aprender a morrer é reencontrar ou descobrir uma identidade, nisso residindo o exercício próprio do filosofar, o que lhes trago é uma proposta talvez
mais insossa e ingente, para a qual, todavia, considero-me muito
habilitado, pois arrasto a esta Academia um ser andrajoso, que
estes trajes mal escondem. Trago-lhes, pois, bem menos que um
filósofo completo: apenas um profissional da filosofia, um que
aceita acompanhar com colegas professores e alunos conjuntos
de textos, de variada ordem, sem medo dos paradoxos que pode
explicitar ou de contradições que deve combater, pois sabe ser
mais digno dar vazão a paradoxos do que guarida a preconceitos.
E nesse ofício descobri, após muito refletir, ser mais característico de mim e desse modo, digamos, empirista de fazer filosofia
um gesto oposto ao da morte, mas que, ao fim e ao cabo, não
deixa de ser o mesmo.
3
Fernando Pessoa, “O último sortilégio”.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Uma ideia comum a todo meu trabalho, que aqui associo
ao ofício de nascer tantas vezes, é a de não ter constituída, de
uma vez por todas, antes do mundo, uma identidade. Não é causal minha simpatia por filosofias que, como a marxista, fazem
a consciência depender da existência, ou veem o eu como um
mero feixe de características por si externas, na tradição do maior
filósofo de língua inglesa, David Hume, ou sabem ser a própria
noção de indivíduo uma construção histórica, uma invenção da
modernidade, não sendo o indivíduo anterior à sociedade que o
constitui. E sempre, como a conciliar a exigência mais radical de
objetividade científica com uma ainda mais profunda de quase
hiperespiritualidade, podemos dizer com Durkheim, descartando leituras ingênuas, que
o pensamento coletivo metamorfoseia tudo aquilo que
toca. Ele mistura os reinos, confunde os contrários, inverte aquilo que se poderia tomar como a hierarquia natural
dos seres, nivela as diferenças, diferencia os semelhantes,
numa palavra, substitui o mundo que nos é revelado pelos
sentidos por um outro mundo absolutamente diferente,
que não é mais que a sombra projetada pelos ideais que
ele constrói.4
Da mesma forma, no que se refere à constituição do espaço lógico, cujos limites cabe investigar com Wittgenstein,
seja em uma perspectiva universal, por meio da qual se separam de uma vez por todas o dizível e o inefável, seja em uma
perspectiva gramatical, que não recusa o solo áspero em que
jogos de linguagem se decantam em específicas formas de
vida, inclino-me às posições que não reconhecem no anímico o princípio constitutivo da significação. A lógica não deve
desandar em teoria do conhecimento, mesmo segundo uma
Durkheim, Sociologia e Filosofia, Rio de Janeiro, Forense, 1970,
p. 112.
4
►► 411
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
perspectiva universal. Também a significação, ao fim e ao cabo,
se dá no mundo, não podendo dispensar critérios externos,
nem contornar a materialidade das palavras e menos ainda as
ações por que se fixam os sentidos, não havendo, stricto sensu,
um homem interior, uma vez que “o homem está no mundo, é
no mundo que ele se conhece”.5
Sem predicados previamente pendurados no trapézio do
cérebro ou prestes a despertar, colocamo-nos antes de iniciar
o jogo da verdade e do falso, como se pudéssemos habitar a
dimensão das condições do sentido e, nessa atmosfera rarefeita, pudéssemos ainda escolher entre os predicados possíveis,
pequenos retalhos, e compor com eles uma colcha de fuxicos,
na tradição dos Salles do Recôncavo. Minha proposta é simples
e óbvia, e cópia conforme a todo meu trabalho. Filosofar, em
verdade, é aprender a nascer. Em sendo assim, inventar a própria identidade não é reencontrar uma escolha anterior a nossa existência, um pensamento anterior à linguagem, mas antes
deixar que a existência mesma nos surpreenda e que escolhas
se fixem na linguagem, único meio por que se podem inventar
essências e liberdades.
4.
Posições filosóficas condensam-se em estilos. De minha
parte, professor de filosofia, creio mais ter cacoetes, vícios, que
vejo tramados por minhas circunstâncias e escolhas, a desenharem sim um ponto de resistência, uma repetição, que apenas
com boa vontade chamaríamos de estilo. Listo alguns de seus
traços, aqueles que julgo controlar.
Primeiro, a preferência por imagens que guardam a presença do trabalho manual, o que é perceptível, para bom enCf. Merleau-Ponty, “Prefácio” à Phénoménologie de la perception, Paris,
Gallimard, 1945, p. v.
5
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
tendedor, até nos mais simples gestos, quando falo em público
ou quando cismo calado. Eis que, com as mãos, apalpo, sopeso,
costuro, agarro, teço, meço, prendo os fios de rendas de bilro,
componho palavras destinadas ao prelo. Não duvido que seja
uma herança do curso de datilografia e mecanografia feito aos
dez anos na Escola Dactilográfica Nossa Senhora de Fátima, e
de cedo ter aprendido artes tipográficas com o venerando Prof.
Raimundo Cerqueira, sendo naturais tanto a queda pelas fontes
serifadas (e não pelas cursivas) quanto o desejo juvenil de um
dia tornar-me um “datilógrafo com redação própria”. Com mais
nobreza, essa herança alimenta a boa imagem empirista da razão
como um cálculo, que se faz pelo manipular de pedras e letras,
de modo que, sem sinais sensíveis, não haveria pensamento, mas
também, em aspecto menos elevado, alimenta o apego à materialidade imagética da palavra, que me leva a resistir a reformas
ortográficas e me fez sentir a supressão do trema como a perda
de um parente próximo.
Segundo, meu modo de escrever, de caso pensado, é lacunar. Alguns, que gostam de ser guiados, lhe sentem mesmo
a falta de palavras. Considero, porém, instigantes os zeugmas
semânticos e mais vivos pensamentos que, como em aforismos,
precisam completar-se no leitor. Não acredito que realize a contento essa exigência, mas essa é a matriz pura da filosofia de
Wittgenstein, que certa feita, como a lançar um desafio, afirmou
que a filosofia deveria realmente ser escrita como uma forma de
composição poética.6 Assim, o verdadeiro filósofo é um Dichter
e não um simples Schriftsteller.
Como me coloco na condição de professor de filosofia,
espécie de antessala da verdadeira filosofia, costumo espalhar
‘poréns’ e ‘portantos’ em meus textos, salpico ‘todavias’ e ‘por
conseguintes’, como a amarrar o texto ao rés do chão, deixando-o
Cf. Wittgenstein, Vermischte Bemerkungen, Frankfurt am Main,
Suhrkamp, 1984, p. 483.
6
►► 413
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
estendido entre as ciências e as letras. É uma medida de proteção.
Soube que, recentemente, meu orientador de doutorado, Arley
Ramos Moreno, maior especialista em Wittgenstein de nosso
país, declarou que meus textos exemplificariam um casamento
bem sucedido entre argumentação e poesia. Entendi logo, entre
grato e surpreso, que ele fizera o maior elogio wittgensteiniano
— descartável embora, também o sabia, por ter vindo de um
orientador e amigo.
Fixo o ponto, contudo, por ele enunciar o elemento máximo da nossa ambição. Sei que Arley, com sua autoridade, ao
lançar em público esse elogio, está dizendo pouco e demasiado.
Concede-me, afinal, a cláusula mínima que justifica o fazer filosófico wittgensteiniano. Não que tenha vergonha de ser escritor,
mas tenho sim senso de proporção. Exatamente por pudor (e
não para não desandar em poesia – algo condenável apenas em
meios acadêmicos superficiais), tenho o vezo das conjunções,
em especial, as adversativas, mas aceito ser essa arte de encobrimento ela própria uma arte de composição, de tecido, de trabalho de pano da costa, de desejo de controlar o deslocamento
entre o datilógrafo e o escritor.
E ouso ver nesse traço de estilo, letra comprimida no
muro, um projeto de filosofia. Tenho a firme convicção de que
a língua portuguesa é sim propícia à mais refinada elaboração
filosófica, apesar da evidência contrária de muitos dos textos
publicados. É preciso, porém, saber procurar para além dos
textos profissionais e ter uma pauta que ultrapassa a também
necessária produção de papers. Assim, da mesma forma que O
Alienista estava muito à frente da ciência psicológica do seu
tempo, wittgensteinianos precisam enriquecer o vocabulário
com Claro enigma e Mensagem, como filósofos alemães fizeram
com Hölderlin ou Hebel. Para pensar com nossa linguagem,
precisamos estar atentos à economia verbal de O Guardador
de rebanhos, havendo sim muita metafísica em não pensar em
nada; e precisamos reconhecer o quão longe ainda estamos da
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Invenção de Orfeu. E, com um olhar assim, facilmente perceberemos, por exemplo, que em O Cão sem plumas expandiu-se o
jogo da predicação para além do que pode suportar qualquer
de nossos livros de lógica.
Terceiro, as palavras não devem aparecer em uma frase
como crianças em roupa de domingo, apertadas e tolhidas
em seus movimentos, a menos, é claro, que seja um texto de
domingo, que todas as crianças assim o estejam e, por isso, em
meio à missa, sejam ainda crianças, mostrem sua força, sua rebeldia, e gritem, quando lhes convenha. Nada mais simpático
então que um ‘outrossim’ puxando a cadeira de um ‘deveras’,
os dois sobremaneira excitados e muito à vontade em seus
trajes de missa, acompanhados de vocábulos raros, mas contentes por terem sido despertos no lugar certo – por vezes,
deslocados do pretenso lugar natural. Por isso, não há por
que estranhar um ‘esconso’, um ‘especioso’, um ‘eludir’ ou
um ‘delir’ qualquer perdido em meus textos, ou construções
pouco usitadas. Espero, aliás, com a salvaguarda que hoje me
é concedida, não mais precisar recitar Drummond ou Pessoa
para conceder direito de cidadania a vocábulos ou estruturas
que andam soltos em nossa poesia e podem sim ser caros à
precisa navegação filosófica, mesmo ao preço de impregnar a
escrita com o barroco um tanto afetado do recôncavo. Paciência. Sou do início do século passado, e de Cachoeira, cidade de
mais de 100 jornais em sua história, alguns de longa existência, centro de letras e de contradições, dispondo-se, muita vez,
entre monumentos e ruínas.7 Como descreve Gerson Pereira
Quem, como eu, ao longo de mais de 10 anos, cantou seu hino, composto pelo maestro Tranquilino Bastos, mal pode evitar inclinações
hiperbólicas, oposições conceituais e exageros cívicos: “Mocidade vibrante e altaneira! / Revivei, constelada de sóis! / Toda glória de nossa
Cachoeira, / De teus filhos amados soldados e heróis! / Daquele sangue bendito, que deram nossos avós. / Ao prélio, em transe inaudito,
/ Ainda existe e ferve em nós! Em nós!”
7
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
dos Santos, não é uma cidade qualquer, mais uma no cenário
da Bahia, mas sim a Cachoeira mística e majestosa, de lonjuras
votivas, cheia da lembrança dos tempos e dos seus correspondentes olvidos.8 Uma Cachoeira que certamente não mais
existe e, não obstante, é ainda minha neblina, ponto cego,
quem sabe, do meu estilo.
5.
Filosofar, retomo e insisto, é aprender a nascer. E digo
isso com autoridade, se não como filósofo, como especialista em
nascimentos. Tendo tido tantas mães, estando uma delas aqui
presente, minha mãe Maria Cardozo; tendo experimentado em
vida tantos trabalhos de parto, julgo poder reivindicar esse lugar
de especialista como o mais adequado para a conversão do olhar
por que me torno membro desta Academia e ouso unir meu
nome aos de meus confrades e confreiras. Quis primeiro trazerlhes uma voz própria, uma que lhes justificasse em parte a escolha, esclarecendo o que julgo ser lícito pedir de um profissional
da filosofia de extração wittgensteiniana. Preciso agora vindicar
o sentido de ocupar a Cadeira de número 32, que tem como
patrono André Pinto Rebouças, como fundador Theodoro Fernandes Sampaio, e como sucessores Isaías Alves de Almeida,
Zitelmann José Santos de Oliva e Gerson Pereira dos Santos. E
tendo assim esses guias, modelos, companhias, preciso rememorar, brevemente, alguns nascimentos anteriores.
Nasci, pela primeira vez, em Cachoeira, em maio de 1962
— um prematuro de menos de sete meses e mais de três quilos
e quinhentos gramas, filho de Wanderley e Leda Lícia. Tive
de nascer de novo, na casa de Divaldo e Guiminha, no mesmo sobrado da praça da aclamação que figura ao fundo de
Cf. Gerson Pereira dos Santos, O solitário ofício de julgar, Belo Horizonte, Ciência Jurídica, 2006.
8
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
um tambor Soledade caído no quadro de Antonio Parreiras,
mas onze meses depois, quando Leda tomou sua própria vida
e entrou decidida como um pássaro no espelho. Cedo, a paixão pelas letras. Afinal, a herança mais perceptível deixada por
Leda, além de uma neblina de silêncio e preconceito, foi um
caderno em que copiara muitas poesias, de Castro Alves a simbolistas, versos condoreiros ou líricos, passando por parnasianos e por versos edificantes, como os sobre o indefectível cão
veludo.9 Dieta difícil. Nenhum Drummond, nenhum Bandeira,
nenhum Pessoa, até os 13 anos!
Voltei a nascer em 1975, tal o impacto que em minha vida
teve a mudança para Salvador para completar os estudos secundários. Fiz a oitava série e o colegial no 2 de Julho, e descobri uma
Salvador plena de movimentações culturais e políticas. UFBA e
ICBA, Kafka e Brecht, Drummond e Cassiano, Pessoa e Murilo
Mendes. A dieta poética ampliou-se bastante, e contemplou até
mesmo um poeta bissexto como o filósofo Bento Prado Júnior,
que primeiro li em uma antologia de poetas brasileiros e surpreendi pessoalmente por lhe recitar de cor um poema de inteiro
sabor filosófico de antes de 1964, poema bem ao encontro de
minhas posições sobre a linguagem. Saber esse poema, admito,
o surpreendeu mais que minhas considerações sobre cores em
Hume e Wittgenstein, e talvez eu deva a esse acaso minha inserção na filosofia nacional:
Não sou eu quem o diz!
Mas este corpo estranho pulsa em mim
Como um coração, não meu, mas de alguém
Composto de outras fibras, outras carnes
Versos de Luiz Guimarães, com sua conhecida primeira estrofe: “Eu
tive um cão. Chamava-se Veludo: / Magro, asqueroso, revoltante,
imundo, / Para dizer numa palavra tudo /Foi o mais feio cão que
houve no mundo”.
9
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Que não estas humanas. Quem me obriga
Será antes a dor, que, incrustada
Em meu ser, já se não distingue da
Composição escassa de meu corpo,
Veículo insolúvel que a transporta,
Anjo ou dor ou enfim força alheia ao
Arbítrio da vontade, nem sequer
Válida no restrito território
Que sou, a mim me impinges a palavra:
Impõe-se o canto à boca que o articula.10
Além de literatura e poesia, vieram, enfim, como seria de
esperar, Huberman, Plekhanov, Lenin e, é claro, Marx, ao lado
de um bom punhado de textos clandestinos. Logo, como esgarçado em várias direções, me vi macrobiótico e marxista, convivendo com a contracultura e com a militância, e esta enfim
imperou, inclusive com novo nome. Nasci então como Afonso,
nome que escolhi para novo batismo ao ser recrutado para a
Ação Popular Marxista Leninista, em 1977. Militante, produzia
também textos clandestinos ou panfletos, tendo em casa, escondido, meu próprio mimeógrafo e todos os sonhos do mundo.
Foram cinco anos dos mais intensos, tendo por companheiro
de luta mais próximo e afim Jorge Almeida, sobrinho de Isaías
Alves de Almeida. Tempos intensos, nos quais, entre a teoria e
a prática, cumprido um ciclo, formulei minhas próprias críticas
à concepção leninista de partido, enquanto me encantava, em
diálogo com Ubirajara Rebouças e Fernando Rego, com um repertório filosófico mais extenso.
Bento Prado Jr., in A. T. Alves (org.), Antologia de Poetas Brasileiros,
São Paulo, Logos, 1964, p. 241.
10
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Essa passagem no tempo, em 1981, é das mais significativas. Migrei da economia para a filosofia, da militância para a Universidade e casei com Elisabete Santos, que, desde então, tem sido
meu horizonte e a pedra de toque de meus pensamentos. Deixei
a organização, mas não a perspectiva política marcadamente de
esquerda. Perdi o bonde, mas não a esperança. E continuei gauche
na vida, mas como dedicado estudante e professor de filosofia.
Para dizer numa palavra tudo, a disciplina e a energia do militante
se voltaram para a Universidade Federal da Bahia, instituição a que
tudo devo, em medida que jamais serei capaz de retribuir, pois é
meu lugar de formação, de professor, pesquisador e gestor, tendo
sido chefe de departamento, coordenador do programa de Filosofia, presidente da ANPOF, coordenador de pesquisa, diretor
da FFCH, presidente da Sociedade Interamericana de Filosofia e,
enfim, como todos sabem, reitor, como resultado daquela construção coletiva, conhecida de todos. Permitam-me homenagear os
muitos colegas que participaram ou participam dessa trajetória de
trabalho e gestão na UFBA, pela menção a um companheiro, meu
amigo Paulo César Miguez de Oliveira.
6.
Esse sucinto resumo de alguns nascimentos permite-me
agora aproximar minha trajetória pessoal daquela dos confrades da Cadeira 32. Começo pelo mais próximo, por Gerson Pereira dos Santos, filho de Mata de São João, bacharel, jornalista,
juiz de direito, professor, desembargador, escritor, tradutor. A
UFBA também foi, em grande parte, sua casa, tendo sido professor e mesmo diretor da Faculdade de Direito, de 1975 a
1979. Nesses anos, estivemos certamente em campos políticos
distintos. Caso tivéssemos convivido, teríamos estado provavelmente em conflito. Entretanto, passado o momento, bem
que poderíamos doravante contrapor nossos gostos literários,
sendo bastante rica sua leitura de clássicos e contemporâneos.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
O repertório é mesmo espantoso. Seu filho, Luis Marinho,
trouxe-me o especial testemunho de seu último ano — o melhor, diz ele, de suas vidas em comum. Grande conversador, seu
tema favorito era mesmo a literatura: Faulkner, Wilson e Durrell;
Hermann Broch e Charles Morgan; Joyce, Tolstoi e Nabokov.
Sabia ver o mundo pela neblina da literatura (e do cigarro). Deixara a UFBA com grande relutância pela necessidade de se dedicar ao judiciário e a uma fina e constante reflexão sobre direito
penal, que, a seu ver, apresentaria as maiores dificuldades ou os
dilemas humanos mais intensos.
O texto sempre carregado de citações apaixonadas, rebuscado ao limite do gongórico, é uma sua marca pessoal, um traço
de identidade, pois julgava que, forçado a simplificar a expressão, nela não mais se reconheceria. E a literatura, sorvida em
grandes goles, além de lhe cultivar e mesmo rebuscar o estilo,
também se lhe afigurava essencial para que o ofício solitário de
julgar não o desterrasse do mundo e dos vetores da cultura de
nossos dias, com a lição (que, de resto, vale para qualquer cientista ou filósofo profissional) da necessária atenção à literatura,
no sopesar de qualquer argumento ou decisão.
Com o nome de Zitelmann de Oliva, a UFBA tem todo
destaque. Esse militante anti-fascista, comunista depois convertido ao catolicismo pelas mãos de beneditinos como Dom Timóteo, foi o braço direito e o esquerdo de Miguel Calmon, que
lhe tinha total confiança. Como chefe de gabinete da Reitoria,
foi sim seu grande e direto administrador, arrumando a casa e,
depois, preparando com finura a lista sucessória que conduziu
ao reitorado de Roberto Santos.
Complexo e múltiplo, gregário e polêmico, Zitelmann viveu com intensidade a militância no partidão e a decepção própria dos exilados da era pós-Stalin. Viveu entre pessoas raras,
talentosas, no olho do furacão de decisões públicas ou pessoais.
Gestor de sucesso, intelectual e prático, envolto em trabalho e
amizades, seja na UFBA, seja depois como um bem sucedido
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
executivo do Banco Econômico, como gerente das Artes Gráficas, ou como um dos fundadores do Jornal da Bahia. Zitelmann
conseguia ser, ao mesmo tempo, dogmático e aberto. Por exemplo, como me relatou sua filha Maria Thereza, sendo crítico do
marxismo que antes abraçara, nunca impediu que seus filhos
participassem de manifestações contra a ditadura, e ele mesmo,
em seu discurso de posse na Academia, em 1968, não deixou de
honrar os melhores princípios democráticos.
Ao lado dessa presença pública, temos o cultor refinado
das letras e das artes, amante da beleza e amigo dos artistas,
tendo sido um colecionador capaz de reconhecer o talento dos
novos e de renovar o prazer pelos mais consagrados. Vale o
registro de sua coleção de vias sacras, das quais chegou a ter
14, pois talvez, quero acreditar, estivesse ele a sinalizar, pelo
contraste com o exemplo sublime do cristo, a comum trajetória
dos que se convertem e, no desmedido do paradoxo, passam a
submeter suas vidas terrenas a um investimento cotidiano em
valores elevados.
7.
Com Isaías Alves, Theodoro Sampaio e André Rebouças,
nós nos aproximamos de uma dimensão quase mitológica. Não
são mais apenas pessoas, são tipos ideais.
Senão vejamos. Aluno de Ernesto Carneiro Ribeiro, ao
vir de Santo Antônio de Jesus para Salvador, Isaías Alves de
Almeida se destaca como professor, Secretário de Educação,
líder universitário, administrador. Com formação sólida, no
Brasil e nos Estados Unidos, destaca-se como pesquisador,
mas também como homem da prática educacional, da construção de instituições. No mesmo ano em que foi eleito para a
Academia, em 1941, criou a Faculdade de Filosofia da Bahia,
um dos pilares essenciais e necessários à constituição da Universidade Federal da Bahia, tendo se originado da Faculdade
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
de Filosofia muitas das nossas atuais unidades universitárias, a
exemplo da Matemática, da Física, das Letras, da Educação e
a própria Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, da qual
vim a ser Diretor.
Podemos ver o homem no modo como reverencia seus
antecessores. Assim, é também Isaías, no que projeta de valores,
que flagramos em sua homenagem a André Rebouças e Theodoro Sampaio.
Ambos engenheiros e patriotas — descreve Isaías —, [ambos] devotados à construção e à defesa da nacionalidade,
demarcando a terra, levantando rios, explorando estradas,
perfurando túneis, saneando cidades, canalizando águas e
dessedentando populações, construindo portos, revendo
as fundações de fortalezas, ambos sociólogos e historiadores, economistas e humanistas, ambos geógrafos e naturalistas, deixaram esses dois brasileiros um imperecível
padrão de dignidade humana, que edificará a juventude, no
decorrer das gerações.11
Isaías escolhe bem as palavras, torna André e Theodoro modelos à sua própria semelhança, e assim lhes destaca a
devoção, o nacionalismo, a ação, o humanismo, o patriotismo,
ocultando no elogio o lema mesmo da Faculdade de Filosofia que acabara de fundar: “Cultiva com tradição a juventude
brasileira”.
Como não enxergar uma grata simetria no fato de ser eleito acadêmico e reitor da UFBA neste mesmo ano, assim como
Isaías Alves foi eleito acadêmico no ano em que fundou a Faculdade de Filosofia da Bahia? Vendo o discurso longo, belo e
detalhado, e insubstituível na descrição de André e Theodoro,
vem-me o pensamento de que meus antecessores tinham sim
Isaías Alves, Discurso de posse, Revista da Academia de Letras da Bahia,
Anos XI e XII, 1940-1941, Vol. VII, p. 209.
11
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
mais talento... e mais tempo. E sei bem que minha contribuição
para a UFBA nunca será tão importante quanto o foi a de Isaías,
que lhe assentou uma pedra fundamental. Não posso emular-lhe
a medida elevada, mas não será menor o empenho, e já neste
instante, reconheço traços de identidade, que trazem e juntam
predicados a uma substância antes informe, como que abençoando minha chegada a esta casa.
Tive primeiro notícia de Theodoro Sampaio, devo confessar, pelo trabalho competente de meu amigo José Carlos
Barreto de Santana, quando juntos, com Olival Freire à frente,
Robinson Tenório e outros colegas, lutamos pela implantação
do Programa de Ensino, Filosofia e História das Ciências. Natural de Santo Amaro, Theodoro é um dos mais destacados
intelectuais brasileiros, sendo célebre, entre tantos trabalhos e
temas, por sua vasta erudição geográfica e histórica, seus trabalhos sobre as bandeiras paulistas na formação do território
nacional, bem como por sua sensibilidade para os saberes indígenas, tendo aberto a seu amigo Euclides da Cunha o veio de
pesquisa dos sertões. Podemos bem dizer que seus trabalhos
abrem um programa de investigação que está longe de se ter
esgotado, recortando objetos e temas que, ademais, exigem fôlego multidisciplinar.
8.
Com André Pinto Rebouças, filho de Cachoeira, aproximo-me ainda mais do meu próprio centro, de minha álgebra,
como se com nosso patrono reencontrasse sonhos e fantasmas. Ao lado de Theodoro, nosso patrono é, com efeito, um
verdadeiro modelo. Engenheiro, inventor, gestor, poliglota,
amigo e incentivador da carreira de Carlos Gomes, líder abolicionista, André Rebouças ajudou a criar a Sociedade Brasileira
contra a escravidão, ao lado de Joaquim Nabuco, José do Patrocínio e outros. Tendo se exilado na Europa, após a queda
►► 423
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
do Império, aceita um emprego em Luanda e, posteriormente,
tudo indica, dá fim à própria vida em Funchal, na Ilha da Madeira, em 1898.
Não posso deixar de ver um bom sinal em ter como patrono um cachoeirano dessa envergadura. Com tal patrono, essa cadeira promete-nos trabalhadores incansáveis — e já me vejo, de
todos, o mais preguiçoso. Só a lista de seus feitos e sucessos em
inúmeras e difíceis missões pode cansar o comum dos mortais.
Tenho de corrigir isso, tenho de empenhar-me ainda mais, pois
reparo que, no limite da dedicação, são um modelo de entrega ao
trabalho, que lhes serve às vezes de consolo até para a depressão,
como o afirma André Rebouças em carta a um amigo, pouco
antes de sua morte talvez voluntária:
Já lhe disse que só venço a dor e a saudade, aprofundando
infinitos cálculos matemáticos. Você verá cadernos e cadernos cheios das mais curiosas Curvas e Superfícies, com
equações de coeficientes impossíveis a desafiar a paciência
de 30 Beneditinos.12
De minha parte, como não deliciar-me com a coincidência
de ter sido eleito, pela primeira vez, presidente da Associação
Nacional de Pós-Graduação em Filosofia exatamente na Avenida Rebouças, no Centro Rebouças, que, em São Paulo, homenageiam nosso patrono — fato que marcou com tinta indelével
minha carreira e, com o grande apoio dos colegas do Departamento de Filosofia da UFBA, contribuiu para mudar a face do
trabalho profissional de filosofia em nosso Estado, com a realização em Salvador de grandes encontros de filosofia.
Não foi uma escolha trivial para a comunidade de filosofia. E foram muitas e justas as resistências, a começar pelas minhas. Como fazer deslocar-se para o nordeste, onde nunca estivera, e ainda para outra geração um cargo antes ocupado, entre
12
Isaías Alves, Discurso de posse, p. 220.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
outros, por José Arthur Giannotti, Marilena Chauí, Oswaldo
Giacoia e Bento Prado Júnior? Que imenso risco, diziam, sendo eu o primeiro a concordar. Só posso hoje ter por certo,
sem mentira e muito verdadeiro, que, naquelas noites distantes
de 2002, André Rebouças confabulou com Theodoro Sampaio
para ajudar um conterrâneo. Como me chamou a atenção Olival Freire, a Rua Teodoro Sampaio corre paralela à Avenida
Rebouças no coração de São Paulo, como tatuagens simbólicas, de modo que esses dois engenheiros negros e baianos, de
talento e força ímpar, lembram diariamente aos paulistas que,
não importando o jogo das forças econômicas e políticas, a
Bahia continua o centro do universo.
Pois bem, durante quase uma semana, começava os dias
sendo lembrado como o melhor nome e, ante resistências tantas,
dormia tranquilo pensando não mais ser o candidato. Durante
a noite, porém, com toda certeza, André e Theodoro refaziam
as contas, recompunham os planos, faziam campanha, retomavam o trabalho de parto, sendo eu eleito então, com amplíssima
maioria, e depois reconduzido na Bahia por aclamação, tendo
feito também meu sucessor.
9.
Se mesmo a morte voluntária tem sua medida social, imaginem os nascimentos. André, Theodoro e Isaías descrevem um
arco para esta Cadeira, a partir de Cachoeira até Salvador. Temos
uma Cadeira de homens práticos, de metafísicos que carregam
pedras, divididos entre as ideias e a ação, militantes, políticos,
gestores, educadores, como convertidos que sabem o peso da
conversão, com certo toque de barroco, no limite do gongórico,
pois que, no Recôncavo, sabemos bem a gravidade das vias sacras entre o demasiado humano e o divino, entre o grotesco e o
sublime. No Recôncavo, mesmo o simples, o estilo mais ático,
tende ao barroco.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Concluo agradecendo a alguns confrades e confreiras,
pois, vejam todos, meu primeiro livro, O claro e o obscuro, começa
nesta Academia. Editado por Claudius Portugal, não viria à luz
sem a generosidade de Myriam Fraga, tendo sido o texto apresentado a ela, em 1989, por Fernando da Rocha Peres.
Escrevi então, na casa dos 20 e poucos anos, referindome ao lugar vazio do leitor, ao texto da leitura: “Pouco importa quem sou. Muitos já estiveram neste mesmo caminho, neste
mesmo começo.” Ao mesmo tempo, já fazia da leitura o começo
mesmo da escrita, pois não pensamos, salvo contra uma tradição, que alimentamos e negamos. Por isso, concluía:
Agora posso suspeitar: fosse infinita nossa energia e, com
que prazer, infinitamente nos iludiria. Milhares de portas,
milhares de pistas, milhares de letras — nenhuma o alcança. Nenhum dos caminhos e todos dele fazem parte. (...)
Efêmero e eterno, pessoal e outro, ilude-nos com suas manifestações — identidades do finito e do infinito. (...) Sem
compreender, retomo minha inútil e deliciosa mística. Em
minhas mãos, ponho o mistério em exercício. Faço nascer
o inacessível texto.13
Estar aqui faz parte da indagação sobre minha própria
identidade. É a soma derradeira, creio eu, de vários nascimentos,
de tentativas diversas de invenção. Posso errar e certamente errarei muitas vezes, mas não por me faltarem os melhores modelos,
por não poder escolher entre os melhores predicados, por não
ter os melhores confrades e confreiras. Agora que vou nascer
de novo, já me apontam quem posso ser, que linguagem posso
usar. Não estou aguardando em um buraco, sem determinações,
podendo ocorrer em qualquer parte e, logo, em nenhuma. Não
me vejo no desamparo de Alice:
13
João Carlos Salles, O Claro e o Obscuro, p. 93-95.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Não, já resolvi – exaspera-se Alice —: se eu sou Mabel
[que é tão burrinha], então vou ficar aqui embaixo mesmo!
Não adianta botarem a cabeça e pedirem: “Suba outra vez,
querida!” Só vou levantar a cabeça e dizer: “Quem é que
eu sou? Digam primeiro, e se eu gostar de ser a tal pessoa,
então subo. Se não, fico aqui embaixo mesmo até que eu
seja outra pessoa...”14
Tudo antecede o parto. Barulho e silêncio. Preciso assim
dizer da minha gratidão aos operários da maiêutica. Agradeço
agora aos companheiros silenciosos que, ano passado, me sondaram e urdiram minha chegada. Meu agradecimento, portanto,
aos que cometeram a temeridade da escolha e, ainda mais grave,
a da campanha. Fiz o que pude, neste discurso, para diminuirlhes a falha.
Agradeço a gentileza e a boa condução de nosso presidente, Aramis Ribeiro Costa, ao tempo que registro minha alegria
por vê-lo proferir um perfeito e exemplar performativo.
Agradeço a visita de Cajazeira Ramos a nosso grupo de
pesquisa, por uma razão especial. Se fui feliz na tese principal
deste discurso, se consegui mostrar um laço necessário entre o
labor filosófico e o poético, talvez, Cajazeira, você entenda agora
como nos fez um grande cumprimento ao se sentir instado a
declamar para nós um poema.
Não farei outras menções a acadêmicos, exceto uma, importantíssima. Quero registrar que, além dos patronos invisíveis,
esta Casa tem um anjo zeloso, que cuida simplesmente de forma
e conteúdo, que estimula e corrige. Como grande mestre, ajuda
a ver. Refiro-me, é claro, ao mestre Edivaldo Boaventura, que
muito me ajudou e orientou neste discurso, sem que ele seja
culpado por qualquer de minhas construções.
Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas, São Paulo, Summus Editorial, 1980, p. 49.
14
►► 427
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
E Edivaldo tinha toda razão em se preocupar. Sinto ameaçadas a escrita e a leitura desde a eleição para a Academia,
como se doravante não mais pudesse estar sozinho, e cada palavra quisesse resistir ou esconder-se, como objeto perdido ou
criança malina, e tudo se dissesse em tom esconso. Cada frase
agora desafia e exige mais, na proporção, quero crer, de quanto
prezo os nomes, a história e a obra dos confrades e confreiras
que ora me acolhem.
Por outro lado, tenho a escrita enfim liberta. Entendi que
esse importante diploma, entre outras coisas, me dá o direito
de ser simples ou gongórico, de inventar o escritor e encontrar
a escrita adequada ao labor e ao diálogo filosófico. Devo tomar
posições, definir-me. Agora tenho um lugar definitivo de fala,
e nesse lugar, e nesse eu, que nunca senti importar, não mais
estarei sozinho.
Após muitos sofrimentos, muitos partos, tenho aprendido a nascer cada vez melhor e na melhor companhia. Vocês aqui dão brilho a este momento, amigos de nossa UFBA,
amigos os mais chegados, familiares queridos, confrades e
confreiras da Academia de Ciências e da Academia de Letras
da Bahia. Que testemunhem, pois, este definitivo nascimento,
por que retorno a minha terra, da qual certamente nunca hei
de ter saído.
Se sempre lutei para conter ou diminuir a força das procissões em meus textos, o cheiro do incenso, a marcha da
irmandade da Boa Morte, o canto das Verônicas nas procissões do Senhor dos Passos, os enigmas dos contos vindos
dos terreiros, o colorido de mandús e cabeçorras, as melodias
e ritmos da Minerva e da Lira, agora estou liberado. Eis que
nasço mais uma vez, pelas mãos hábeis de meus confrades
e confreiras, recolhendo num instante as escolhas passadas
e futuras, pois filosofar, contrariamente ao que afirma a tradição, é isso, como quis demonstrar. Filosofar é aprender a
nascer, com a madureza e a candura de saber “ter o pasmo
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
essencial / Que tem a criança se, ao nascer, / Reparasse que
nascera deveras...”15
No momento então deste meu derradeiro nascimento,
digo a meu mestre, meu amigo, Paulo Costa Lima, Papa Paulo,16
estas minhas últimas ou primeiras palavras:
— Paulo, agora é com você, paga o galo que devemos
você bem sabe a quem.17
15
16
Fernando Pessoa, O Guardador de Rebanhos.
A quem cabia a saudação ao novo acadêmico.
João Carlos Salles é mestre em ciências sociais, doutor em filosofia,
professor da Universidade Federal da Bahia. Foi diretor da Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas e é o atual reitor da Universidade
Federal da Bahia. Entre outros livros, publicou A gramática das cores em
Wittgenstein (2002), O retrato do vermelho e outros ensaios (2006), e O cético e
o enxadrista: significação e experiência em Wittgenstein (2012). Eleito no dia 3
de julho de 2014 para a Cadeira número 32 da ALB.
Discurso de posse do acadêmico João Carlos Salles na Cadeira número 32, proferido em sessão solene, no Salão Nobre da Academia de
Letras da Bahia, em 6 de novembro de 2014.
►► 429
DISCURSO DE RECEPÇÃO A
JOÃO CARLOS SALLES
Paulo Costa Lima
Dessa forma, à luz de seu labor, fazer filosofia implica um esforço
argumentativo,
mas também um esforço em favor da palavra.
João Carlos Salles
1. Introdução Sostenuto: Sintaxe e semântica
da recepção
Comecemos pelo cerne da questão. A relação entre filosofia e escritura. (Pois não se trata de um filósofo que também escreve; trata-se de um filósofo que se constitui como tal no campo da escrita, e isso afeta ambos, filosofia e escritura). Vejamos o
gesto de abertura do livro Secos & molhados de João Carlos Salles:
A crônica não é meu forte. Assim, devia ter recusado o
convite carinhoso de Bob Fernandes para escrever no Terra Magazine. Por fraqueza, por vaidade, ou simplesmente
por incapacidade doentia de dizer ‘não’, aceitei. E logo me
vi aturdido pelo gênero, que, de tão flexível, tem exigências
as mais severas.
O parágrafo atesta aquilo que o autor nega — sua capacidade de entender o gênero como poucos, sua capacidade de
brincar com as ideias. E não é apenas humor, é o gosto pela
►► 431
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
sutileza, se é que não são a mesma coisa. Gosto pela distinção
fina entre isso e quase isso, habilidade de surpreender o leitor
com a aproximação inesperada entre flexibilidade e rigidez, a
rigidez da flexibilidade — facilmente transitaria para a flexibilidade da rigidez. Em suma, falando que não entende de crônica,
João consegue não apenas evocar o seu estilo, como também
torcê-lo na direção de um torvelinho filosófico e literário. Pode?
Pode sim, e não pára por aí:
Uma coluna, afinal, nos convida a ser rasos, a deslizar por
uma superfície. Pouco importa a máscara que escolhemos.
Todo e qualquer relevo não deve ser mais que uma ilusão
de ótica, e assustadora a ideia de profundidade.
Touché.
2.
Confesso que sou navegador de primeiras águas na arte de
perpetrar discursos de recepção, estou mais para bardo compositor, membro de uma comunidade linguística, melhor, comunidade de afetos e perceptos que se alimenta da possibilidade de
reconfigurar experiências a serem ouvidas, não aceitando nada
como princípios previamente declarados.
Não devo calar a voz que insiste em dialogar com aquele
que discursa, no momento em que o faz. Essa voz quer saber
que música será essa? Qual sua forma e propósito, seu devaneio
e seu estribilho? Será minueto ou rondó? Essa voz quer saber
todas essas coisas por que considera a ocasião muito especial,
muito honrosa, e deveras sente a responsabilidade que encerra.
Mas qual encerra? Isso aqui não é o Hino da Bandeira.
A semântica e a sintaxe da recepção. A principal quadra:
os feitos de quem é recepcionado. (fez isso, fez isso, fez aquilo)
Mas quando a prosa é boa e sustentável, no sentido ecológico
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
da mente humana, vamos aos poucos percebendo uma outra
dimensão para além dos feitos: aquilo que o recepcionado é, sua
natureza, seu estilo e seu caráter.
Há uma terceira dimensão: avanços interpretativos, por
exemplo, o que isso significa do ponto de vista da Academia, tal
como entende aquele que recepciona. Qual o papel que o ilustre
recém-chegado pode e deve vir a representar em nosso meio?
E ainda uma quarta dimensão, que é da ordem do encontro. Simplesmente a experiência vivida e compartilhada de dialogar e de encontrar os caminhos e os termos dessa tradução
de vida em discurso. Talvez seja a hora de lembrar a humildade
do discurso, tão menor do que a vida e trajetória que o sustentam, a rigor, apenas um hip-hurra florido para uma ocasião
festiva.
E sobre sintaxe, nada fala? Insiste a tal voz e co-autora.
Ora, a sintaxe está posta, e assim pretende permanecer, com
poucas conjugações da segunda pessoa do plural, embora reconheça que são elegantes e pomposas. Mas, convém lembrar, o
que pode ser dito, pode ser dito claramente.
2. Allegro com brio: Um feito discursivo recente
Posso economizar nos volteios de linguagem, mas não
posso economizar em esclarecer meus termos. Qual a semântica da recepção? De onde falo? O que é uma pessoa, para que
possamos melhor recebê-la? Meu ilustre recipiendário dedicou
grande afinco em ocasião recente, sua Posse como Magnífico
Reitor da UFBA, buscando deslindar o que era a UFBA. Foi
um discurso brilhante que tomo como ponto de convergência
nessa longa série de feitos, que vistos daqui, o direcionam para
a nossa acolhida.
Ao longo de todas as décadas que acompanho a vida na
Universidade, e tendo assistido muitas outras solenidades de
posse na Reitoria, devo registrar que nunca vi alguém fazer isso.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
É um momento em que se toma como pressuposto o que é a
Universidade, e fala-se a partir desse pressuposto oculto. Mas
não João Carlos Salles Pires da Silva.
O discurso manteve cerca de 800 pessoas atentas e participativas, acompanhando cada passo lógico esboçado, cada virada
de mesa das expectativas de significação1. Ao tomar esse caminho discursivo, João buscava desnaturalizar a ideia de universidade. Desnaturalizar a ingerência de todo um aparato lógico
conceitual que se esconde por trás da forma da própria pergunta
“o que é uma Universidade?”. Essa pergunta absorve todas as
inhanhas possíveis de uma forma de pensar que nos diz que a
Universidade seria uma coisa, entre tantas outras que nos cercam. Mas não, diz João, a Universidade é mais da ordem de um
sujeito do que de uma coisa.
Alguns passos adiante, ele dirá que não se trata de um
sujeito abstrato, suspenso em alguma epistemologia vaporosa. Esse sujeito é coletivo, somos nós, e o que dela fazemos. E
como toda instituição em sociedade, a Universidade “deve justificar seu direito à existência”2— e tal missão comporta o desafio de lidar com as vicissitudes desse sujeito coletivo. Não pode
haver pensamento mais concreto, práxis que seja, a iluminar as
perspectivas que este reitor traça para a Universidade Federal da
Bahia. A visão de que as pessoas são o maior patrimônio possível, e de que é preciso ouvi-las, é preciso dialogar e construir
caminhos de sinergia e emancipação. E apesar da concretude, o
desafio remete à delicadeza do cristal.
Havia um rapaz em pé, ao meu lado, provavelmente um estudante de
final de curso. Não sei bem de qual área ele vinha, mas imaginei que
seria da área da saúde. Depois de um certo tempo, disse para o colega
do outro lado: “é discurso de filósofo, mas é muito bom”.
2
Essa a lição de Fichte, nos afirma Salles (2006, p. 213).
1
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
3. Refrão 1
Pelo menos dois valores emergem com muita força da
análise desse momento: a inteligência crítica e a coragem de
desenhar o próprio caminho. Não são manifestações isoladas, se
espalham pela obra e pela trajetória deste que acolhemos hoje.
Escutem o seguinte:
Filosofar é, enfim, preciso por significar viver ainda mais
intensamente. A precisão, a exatidão, nesse caso, nunca é
renúncia à aventura. É antes aventura que se sabe profunda e comedida, uma vez que, nela, o pensamento não se
furta ao caminho laborioso do conceito. Com isso, ao longo da história da filosofia, renova-se o desafio singular de
uma navegação que se pretenda exata, sem deixar contudo
de alimentar-se da inexatidão mesma da vida.
Novamente somos conduzidos pelo autor ao núcleo dramático de um paradoxo, na medida em que exatidão e inexatidão
se retroalimentam.
4. Rondó e Stretto: Diferentes séries de eventos
atravessam esse feito discursivo
E eis aqui então o meu método: O discurso de posse na
Reitoria deve ser colocado em perspectiva. Não apenas uma,
mas várias. Todas as linhas de vida de João convergem neste
ponto, e o constituem. Tal como na forma musical, as seções de
refrão e de episódio vão construindo camadas de significação
que modelam o todo.
De forma mais imediata, devemos acentuar que sendo
um discurso de posse, aconteceu como (i) culminância de um
longo processo eleitoral propositivo que mobilizou a Universidade, que envolveu dezenas e dezenas de encontros, debates,
lapidação de ideias e caminhos, plasmação de parcerias e de
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
divergências, artimanhas e contra-artimanhas, ignição de ideais. E tudo isso ecoou na fala inaugural. Mas também muitas
outras séries:
ii) Ora, João não tomou posse sozinho; também discursou
o menino de Cachoeira, onde foi plasmado o seu modo de ver
o mundo;
iii) e também o jovem recém-chegado a Salvador e mergulhado em descobrir o campo da vida, e o perfil cultural da
cidade, o militante de esquerda no ocaso da ditadura;
iv) o estudante de economia que se descobre apaixonado
pela filosofia;
v) o professor que começou pelo ensino de Lógica;
vi) aquele que fez de Durkheim seu objeto de mestrado,
ou seja, que esculpiu nas Ciências Sociais seu objeto filosófico;
vii) e que descobriu a paixão pelo modo de filosofar de
Wittgenstein e se afastou de Salvador para um brilhante doutorado na Universidade de Campinas;
viii) o professor que retorna e enfrenta a lacuna histórica
da construção de uma plataforma de pós-graduação em filosofia
na UFBA (mestrado e doutorado);
ix) mas que também se envolve com as Pró-Reitorias de
Extensão e de Pesquisa (na qual exerceu o cargo de coordenador
de pesquisa da UFBA);
x) o pesquisador que se torna o primeiro presidente baiano da prestigiosa ANPOF por dois mandatos, e após isso assume a presidência da Sociedade Interamericana de Filosofia;
xi) o diretor da Faculdade de Filosofia, merecedor da
confiança de toda sua comunidade, não apenas pelo que fez,
mas especialmente pelo que conseguiu agregar, estimular, levar
a fazer;
xii) o escritor de muitos textos, autor de inúmeros percursos de reflexão;
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
5. Primeiro Episódio: filosofia e gestão
Como dissemos, todas essas perspectivas atravessam o
feito discursivo, garantindo a complexidade daquele momento.
Não se constrói um estilo de pensar impunemente. O discurso de posse remete a um longo processo de formação como
pensador filósofo. Quando pondera sobre “o que é a UFBA”,
João Carlos Salles expõe sua orientação wittgensteiniana de uma
preocupação maior com as condições de construção de sentido,
do que com a delimitação do campo das verdades. E eis que
aponta assim para um estilo de gestão que não se apressa em
ultrapassar todos os ‘nós conceituais’ que as próprias práticas
de gestão fazem emergir — como se a mera eficácia pudesse
curá-los. Não é bem assim, reflete João: “como se pode enxergar
esse problema de forma que se torne solúvel?” — como tratar
não apenas das respostas no campo da eficácia, mas também no
campo do desatamento de nós, da terapia de desatar nós conceituais ou mesmo institucionais? Que instituição é essa, onde
reside a capacidade de se reinventar o que seja uma universidade,
reinventar a partir das pessoas, de sua capacidade crítica e de
vinculação aos melhores ideais?
6. Refrão 2
Os valores também são células geradoras. Já mencionamos a inteligência crítica, a coragem e o humor — humor filosofante, como bem mostramos.
A filosofia é escrita. E o filósofo, esse ser da palavra, nunca
escreve apenas para si mesmo. A imagem do pensamento
como um diálogo que, travado consigo mesmo, pudesse
dispensar a linguagem, é talvez pouco mais que uma fantasia absurda.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Da inteligência crítica para o amor à profundidade — “resolver suas aporias, vencer indigência conceitual e preconceitos,
e enfrentar, ao fim e ao cabo, o olhar enviesado dos seus leitores...” Da coragem para a liberdade. E a liberdade é um valor
político. A dimensão política da presença de João Carlos Salles.
Do humor à sutileza mais fina. Em suma, os valores vão se diversificando uns em outros.
7. Segundo Episódio: coração de filósofo
João nasceu e foi criado até os 13 anos em Cachoeira. Mudou-se para Salvador no começo da década de 70, sendo matriculado no Colégio Dois de Julho. Aos poucos vai descobrindo a
cidade grande e como bem fraseou Mariluce Moura em recente
entrevista do BahiaCiência:
...as novas formas aventurosas de estar no mundo. Experimentará um certo modo de ser hippie, a macrobiótica e
uns tantos percursos até a militância estudantil e a participação na Ação Popular Marxista Leninista, a AP, que alguns jovens idealistas buscam reorganizar em 1977, depois
de a organização ter sido destroçada em 1973.
Mas é também da convivência no movimento estudantil
que nasce a relação frondosa com Maria Elisabete Pereira dos
Santos, Bete Santos, sua alma gêmea desde 1981. Dez anos depois, nascerá Pedro, e a família estará assim composta. Embora
João Carlos Salles tenha começado seus estudos na Faculdade
de Economia, foi aos poucos percebendo que seu coração batia
em outro lugar, em São Lázaro. Começou Economia em 1979,
e acabou filósofo em 1986. E aí acontece algo bastante especial. Durante a graduação, João Carlos aproximou-se bastante
do professor Ubirajara Rebouças, um dos melhores pensadores
e pedagogos que a UFBA já acolheu.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Que pessoa excepcional. Teve um papel importantíssimo
na plasmação de referenciais para a Universidade que se estruturava ao final do período da ditadura. Exemplo de conduta. Atenção para o coletivo. E eis aí um importante ponto de entrelaçamento com o perfil de João Carlos Salles. Pois, bem sabemos, a
Universidade é lugar de construção e difusão de conhecimento,
e sua ferramenta mais potente é da ordem da transferência. Não
há pesquisa nem ensino que se sustentem sem o amor à Causa
— ponto que João mesmo registra e elabora como ninguém em
seu ensaio Ubirajara Rebouças (1937-2001).
Pois então, esse professor de filosofia, mais especificamente de Lógica, sempre muito cioso das responsabilidades daí
advindas, sempre muito respeitado por suas opiniões acadêmicas, e sempre muito exigente, resolve então convidar João Carlos
Salles para assumir a sua disciplina. Ora, ninguém imaginaria que
Ubirajara Rebouças fizesse isso, confiando sua disciplina a um
jovem filósofo recém-formado.
8. Refrão 3
Aqui neste refrão, e tendo Ubirajara Rebouças como inspiração, o valor a ser abstraído é, sem dúvida, a amizade, ou
melhor, a capacidade de ser amigo, de entender o outro. Não
preciso de argumentos para desfiar essa proposição — o auditório está repleto deles, que agora me vêem e me escutam. E,
no caso, este discurso, além de recepção, também é testemunho.
“A amizade como uma espécie de concórdia, mas uma concórdia que não repousa na identidade de opiniões”3 — a amizade
como plataforma de diálogo e de compartilhamento da própria
diferença de perspectiva que cada um vive, amizade e respeito.
Ora, todos sabem da importância da amizade para a filosofia. E
bem sabemos, João é amigo e é filósofo, e com isso, não estou
3
Tal como está no Abbagnano, verbete ‘Amizade’.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
dizendo que ame as pessoas da mesma forma que os conceitos
— muito mais os conceitos, brincando... — resto convicto de
que foi o modelo da amizade que o impulsionou para a filosofia,
ou seja, que o aporte dos conceitos herda em João as estruturas
que foram desenvolvidas lá na cidade heroica, na relação com as
pessoas e com as coisas do seu tempo.
Algum biógrafo futuro, ainda escreverá o capítulo sobre a
presença de Cachoeira no modo de pensar de João Carlos Salles
— deixo aqui a porta entreaberta para tal empreitada, fazendo
ecoar algo da sua deliciosa crônica A máquina de escrever e o progresso — Salles (2009):
Não consta do meu lattes, mas tenho diploma de datilografia e mecanografia pela Escola Dactilográfica Nossa
Senhora de Fátima (...) Sem muitas opções em minha terra
(a Cachoeira de mais de 100 jornais) cheguei a entalhar
madeira para xilogravuras, e, com o professor Raimundo,
aprendi bastante bem a compor páginas para a impressão
tipográfica. O trabalho árduo da composição, suspeito, interfere até hoje em minha escrita (...)
Obsoleto, portanto, e talvez desconfiado em demasia. De
fato, se não me falha a memória, não vi lá muita graça na
TV a cores. Com os aparelhos de vídeocassete, lembro que
pensei: isso não vai dar certo. Depois tive a mesma sensação com os CDs e, acreditem, com a União Europeia (...)
E talvez por simples apego ou puro conservadorismo recebo a nova da reforma ortográfica como o relato de um
genocídio e me despeço do trema como se perdesse um
parente próximo.
9. Terceiro Episódio: Durkheim
Bem, o fato é que não havia mestrado em Filosofia na
UFBA, João caminha para fazê-lo em Ciências Sociais, com
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
orientação de Ubirajara Rebouças. Retornando a esse cenário
teórico em seu ensaio recente Sobre fatos e valores (Salles, 2013, p.
105-116) João comenta como Durkheim em seu Juízos de valor
e juízos de realidade, “com falsa modéstia e simulada inocência”,
num encontro internacional de filosofia, pretende mostrar como
a sociologia “seria enfim a resposta completa a todos os problemas da filosofia”. A análise de João vai acabar revelando um projeto que permitisse à sociologia “aparecer como estudo da invenção
do sujeito como indivíduo, e, logo, como uma invenção superior
da modernidade, que portanto representa”. E como interpreta em
seguida, “um tanto a mais de positivismo (...) salga-nos e estraga a
comida. Com efeito, a moral não pode ser reduzida à causalidade
e a dimensão ética parece guardar independência (mesmo relativa)
da produção coletiva de valores”. Parece importante salientar o
quanto essa escola interpretativa de Durkheim preparou o terreno
para o desafio posterior do encontro com Wittgenstein.
10.Quarto Episódio: O Doutorado em Campinas com
Arley Ramos Moreno
Neste episódio vamos resgatar o João que se aproxima do
doutorado, que imagina objetos de estudo, e que se aproxima de
Arley Ramos Moreno como orientando na construção de sua
tese, A Gramática das Cores em Wittgenstein — Salles (2002, p.22).
Para Moreno, trata-se
...de uma análise minuciosa e completa do tema das cores
em Wittgenstein, aliás, a mais completa e minuciosa até
agora publicada, que acompanha os principais passos da
evolução do pensamento do filósofo a esse respeito, retraçando, com isso, a evolução de tantos outros conceitos
ligados à concepção de linguagem e de filosofia.
Há nessa declaração o atestado da integração e do diálogo profundo entre João e Arley. E há nesses dois curiosos
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
adjetivos — completa e minuciosa — uma leitura de características do próprio autor, na medida em que projeta qualidades em sua obra. É que essa completude, esse amor pela
abrangência, e ao mesmo tempo pelo detalhe, figuram como
dois valores joaninos por excelência.
E sobre a aventura que Wittgenstein representa, depois
de esboçar em alguns traços o “drama filosófico (...) de refletir sobre as relações nebulosas” entre o empírico e o inteligível,
ou, para usar sua expressão, “o abismo parmediano”, acrescenta
Moreno que:
...a atividade filosófica adequada à nova tarefa será concebida como descrição gramatical, ou, ainda, como análise
conceitual a ser realizada através descrições de palavras,
para exibir, ao olhar, usos dos conceitos, seus sentidos (...)
a apresentação da prática conceitual com que estamos bastante familiarizados, mas que, frequentemente, por causa
mesmo de tal familiaridade, passa-nos desapercebida.
Trata-se ainda da coragem de
(...) escapar do realismo, escapar do idealismo do sujeito
puro kantiano, assim como do sujeito intencional husserliano (...) evitando a construção de um sistema filosófico
de teses a respeito dessas certezas...
Temperado pelo envolvimento nas atividades de resistência ao final da ditadura, e trazendo consigo a herança de resistência e de desafio do povo de Cachoeira, João ingressa na filosofia e vai fazer sua morada nesse sofisticado movimento que
se constitui em torno da ideia “de uma fenomenologia como
análise conceitual”.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
11.Refrão 4
Celebra-se aqui os valores que o próprio Arley Moreno
apontou: a busca polifônica de completude, portanto, abrangência e detalhe. O traço aparece em muitos lugares, mas devemos aproveitar a oportunidade para apontar um outro valor,
sem o qual nem uma das direções seria possível, trata-se da persistência. A persistência não pela persistência, e sim pelo compromisso com a completude e a abrangência — algumas outras
vezes a persistência como coragem, como decisão de empacar e
não arredar pé. Essa tríade (persistência, abrangência e detalhe)
acompanha a trajetória de João, como pensador, como professor
e como liderança universitária. Mas, não se creia aqui, que essa
engrenagem da persistência trabalhe em favor de uma visão mais
e mais carregada. Bem ao contrário, o seu destino parece ser a
leveza. Vejam se não estou certo, julgando pelo relato confessional abaixo — Salles (2009):
Com meus amigos, vejo agora, devo ter me reconciliado
com minha trajetória pessoal, tendo recuperado uma possível leveza, após anos de militância política cerrada e algo
carrancuda. Com eles, percebi talvez que não adiantava me
cobrar tanto, pois nunca poderia mesmo, estar mais próximo
do núcleo central da história do que já tinha estado outrora,
quando, com quatro ou cinco anos, da janela de um sobrado
em Cachoeira, fiz xixi em Carlos Lacerda e comitiva.
Teleologia e xixi numa mesma frase. Esse é o velho João.
12. Quinto Episódio: João na UFBA após
o doutorado (I)
A partir desse ponto, sou testemunha ocular da presença
e atuação diferenciadas de João Carlos Salles na Universidade
Federal da Bahia. Foi, aliás, quando nos conhecemos; quando
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
estava como pró-reitor de Extensão da UFBA, no âmbito das
atividades do Programa UFBA em Campo e ACC-Atividade
Curricular em Comunidade. O UFBA em Campo começou
como uma forma de dinamizar a Extensão, mas acabou mostrando ser uma luta para conceber e deixar nascer uma outra
universidade, e isso numa época de vacas magras e de um verdadeiro desmonte da universidade pública brasileira — exigia
mudar muitas coisas, porque ignorava as fronteiras tradicionais
entre os ‘de dentro’ e os ‘de fora’, colocava em jogo outras dinâmicas de relacionamento com a questão do conhecimento. Luta
e movimento, diga-se de passagem, apoiados por muitos e muitos professores que entendiam e se solidarizam com as direções
ali estabelecidas, mas também pouco entendidos e até mesmo
barrados por outros.
Foi mais ou menos esse o ambiente que trouxe João Carlos Salles à Pró-Reitoria de Extensão. Ele entendeu e se solidarizou de forma imediata com aquele movimento. Trouxe para a
roda outros professores e estudantes de filosofia. Contribuiu de
maneira decisiva com a formulação conceitual da Extensão:
a extensão não é sobretudo o que se faz fora, mas o lugar
onde se mostra o que está dentro, onde se cifra, em suma,
o que é ser Universidade. A extensão desafia a setorialidade, solicita inteireza (...) Em suma, a extensão, decidindo-se dentro, solicitando a quebra das especializações, é
uma função definidora, porquanto ensina a Universidade
a realizar sua essência e mesmo a desconhecer fronteiras.
O conceito de inteireza ainda guarda a mesma potência do
tempo de sua criação — ainda exerce com sutileza sua função de
desconstruir essa oposição fictícia entre o dentro e o fora, pois
nos fala de uma dinâmica, do desafio de cifrar o que seja Universidade, em qualquer tempo e lugar.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
13.Sexto Episódio: João na UFBA após
o doutorado (II)
E não basta criar, é preciso buscar reconhecimento nacional e internacional. Pois é o que será claramente atingido a partir
da eleição de João Carlos Salles para a presidência da ANPOF,
entre 2004 e 2008, justamente uma época de consolidação do
mestrado na direção da criação do doutorado.
A lista de ex-presidentes da ANPOF é bastante restrita,
são cerca de dez nomes de peso tais como Bento Prado Junior,
Oswaldo Giacoia, Marilena Chauí. Nenhum deles de alguma
universidade do norte, nordeste ou centro-oeste, apenas João
Carlos Salles, da UFBA. Esse é um feito de grandes proporções,
até mesmo pois, de forma absolutamente inusitada, este presidente baiano da ANPOF foi reconduzido, ficando quatro anos
como liderança da área. Claro que para quem assistiu os Encontros da ANPOF aqui realizados, nas dependências do Centro
de Convenções do Othon, a presença estonteante de filósofos
por toda a parte, centenas de trabalhos apresentados, encontros
diversos, intensa programação cultural — para quem viu tudo
isso, a escolha foi bastante previsível.
E o curioso é que só depois de testado nessa arena nacional, mostrando-se capaz de articular todo esse movimento,
é que João Carlos Salles assume a diretoria de sua Unidade, a
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas — um lugar reconhecido por todos na Universidade como de difícil administração, com uma área enorme a manter, com vizinhanças
diversificadas, e internamente com diversos núcleos distintos
de interesse acadêmico.
Pouco a pouco, as feições de FFCH foram sendo transformadas. A face mais visível estava no próprio território de
São Lázaro, novas edificações, ambientes de natureza universitária, convivência mais tranquila. Porém, o melhor indicador
aparece durante o processo eleitoral para reitor da UFBA. Não
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
apenas pela votação maciça que aquela Unidade trouxe para
a eleição de João, mas também pelos diversos depoimentos
prestados, que davam conta de um diretor que não se opunha
à diferença, que articulava grupos de pensamento e orientação
muito distintos, encontrando pontos comuns de interesse e de
articulação. Esse, assim me parece, o ponto mais importante
de toda esta conjuntura.
14.Refrão
Na pauta dos valores, o que temos aqui é justamente essa
capacidade de agregação, e uma atitude que projeta o ego não
como plataforma de si mesmo, e sim como plataforma de algo
mais. Mas, bem sabemos, essa capacidade de agregação não é
algo solto que se estabelece por si mesma — responde a valores
maiores ainda, o respeito à liberdade de pensamento, e sendo assim, a ética como fio narrativo que tece tanto o cotidiano
como a longa duração.
15. Sétimo Episódio: filosofia e escritura, o cerne da
questão
Estamos aqui reunidos em torno da ideia do nosso fundador Arlindo Fragoso— ‘o encontro das literaturas’. Ora, quem
quiser estudar e abordar de perto esse encontro entre filosofia
e escritura, que é um dos grandes temas que perpassam a obra
de João Carlos Salles deve ler com todo cuidado o ensaio “Ubirajara Rebouças (1937-2001)”, incluído em sua coletânea Secos
e molhados (2009). É que ali, esse emaranhado de relações, esse
conglomerado de atrações e repulsas (na medida em que filosofia e cultura não formam um amálgama, como nos diz o próprio
João), portanto, essa plataforma de comércio e estranhamento
entre filosofia e escritura ganha um contorno muito especial,
pois tingida pelo valor da memória que pretende exaltar, pela
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
amizade, pela gratidão e pelo dever, afinal é um filósofo que
homenageia outro. João traça com linhas de vai e vem o perfil de
seu querido mestre:
Militante e analista sensato; coerente e constante em sua
paixão marxista, mas leitor fiel de Aristóteles e de toda filosofia; idealista, malgrado eventuais fracassos; administrador, quando preferiria talvez o recolhimento da leitura (...)
Misto de combatente e de apaixonado, de ser forte e frágil,
a Ubirajara nenhuma imagem parcial calharia por completo, despertando-lhe antes o riso. Sabia-se difícil, quando
todos nós também o sabíamos fácil, gregário, acolhedor
(...)
Ubirajara foi militante. Sobrepunha à sua trajetória pessoal
seu compromisso com a causa, quer do socialismo, quer
da Universidade.
João enfrenta o desafio de dizer o que é uma pessoa! O
que descrevo, um tanto aligeiradamente como ‘vai e vem’, é essa
técnica de construir um painel de imagens e de referências, de
organizar um turbilhão de experiências dinâmicas (estados de
coisas?!) como polifonia linear no discurso.
Filosofia e escritura, eis assim, o nome dessa avenida de
interlocução, e ao mesmo tempo essa interface de criação que
abre um sem número de temas que habitam a obra em tela, e
que mesmo os poucos exemplos absorvidos por este discurso já fazem pesar o suficiente. Mais instigante ainda: no lado
filosofia do binômio, é de filosofia da linguagem que estamos
tratando. Se alguém é reconhecido como tendo produzido a
mais completa e minuciosa abordagem de certos escritos do
grande filósofo da linguagem dos nossos tempos, o que dizer
dos critérios que passa a abrigar em sua própria escritura? Eis
a questão.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
João Carlos Salles já publicou 27 artigos em revistas acadêmicas, tendo iniciado em 1989. Também publicou seis livros:
O claro e o obscuro (1989), a Filosofia de Durkheim (1998), A gramática das cores (2002), O retrato do vermelho e outros ensaios (2006), Secos
e molhados (2009), O cético e o enxadrista (2012), além do estabelecimento de texto, tradução e notas das Anotações sobre as cores de
Ludwig Wittgenstein (2009). São também 13 livros organizados
e 20 capítulos de livros. Para arredondar tudo isso, recorremos
ao próprio autor, quando diz:
Mesmo quando me aproximo da lógica, mesmo quando
me inicio nesse processo pela visão de Wittgenstein, que
me ajuda nos trabalhos de lógica, o que tenho é uma aproximação marcada por um cuidado intenso com a palavra.
Recentemente, soube que meu orientador de doutorado,
Arley Moreno, em um colóquio, mencionou esse contato
entre poesia e argumentação em meus textos. Esse contato
é característico e estranho, e muito contente e grato com
a menção de Arley, devo admitir que, para o bem e para o
mal, ele tem razão (...) Acho que é isso que me faz agora
membro da Academia de Letras da Bahia.
16.Sétimo Episódio: Chegada e permanência na ALB
Como poderia esta Casa, cuja missão é de representação
da cultura, pelo viés do encontro profícuo entre literaturas, almejar a abrangência sem a presença da Filosofia? Mesmo sem levar em conta as qualidades que a produção de João reverbera, há
entre nós a necessidade da presença da Filosofia — assim como
da História, da Arquitetura, da Religião, das Artes, da Psicanálise
e da própria Teoria da Literatura — tudo isso como construção
das letras, e também como diálogo com o veio da arte literária.
Precisamos renovar a nossa capacidade de responder, do
ponto de vista complexo desse encontro de literaturas, o que
é, e o que pode ser cultura, o que pode ser cultura na Bahia. Se
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
tivemos um passado rico de possibilidades, e tivemos também
cristalizações de respostas que se transformaram mesmo em
plataformas do imaginário da Bahia, afetando a tudo e a todos,
o que dizer de hoje, e de amanhã? Que espécie de imaginário
devemos ajudar a construir dessa Bahia que herdamos das gerações passadas, no momento em que esta Casa se avizinha de seu
centenário, em 2017, momento de celebração do passado, mas
também, de forma especial, momento de projetar o futuro, de
imaginar os próximos cem anos.
Mais ainda comparece quando levamos em conta que
também estamos diante do reitor, e que, no que diz respeito aos
próximos quatro anos, estamos também lidando com a questão
da ligação e diálogo entre Academia e Universidade. Que avenidas de diálogo se oferecem como oportunidades de criação
nessa interface? Que interessante perspectiva de construção de
sinergia, e de realização de altos estudos!
17.Oitavo Episódio: Conclusão, último Refrão.
Pois então, acadêmico João Carlos Salles, sinta-se acolhido
por esta Casa que o recebe com o mais alto apreço por aquilo
que você produziu e por aquilo que você representa. De todos os valores que atravessaram esse discurso, dois deles ficaram guardados esperando o momento oportuno. Para além da
coragem, da inteligência, do humor, da persistência, e de todas
as coisas aqui mencionadas, há um valor que norteia o seu caminho. Falo da utopia e o cito mais uma vez:
O sentimento utópico é, então, simples: biscoito fino
para todos!
A utopia lógica da incompletude da própria filosofia, o
sonho de uma universidade de excelência e popular, a luta por
uma sociedade menos desigual e menos injusta. A utopia que
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
é também amor da emancipação, do outro e de si mesmo. E,
sendo assim, não se trata de um valor isolado, que sonha com
coisas impossíveis. Não, é sonho que se sonha junto, é trama
para construir novas realidades, e é, sobretudo, uma espécie de
alegria que comparece em muitos pontos de sua trajetória, e
que foi tão bem expressa em sua recente formulação — “a alegria de ser UFBA”, e a partir deste momento, a alegria, nossa e
sua, de pertencer a esta Casa quase centenária, de participar do
seu destino. Portanto: Viva João Carlos Salles! E viva a Academia de Letras da Bahia!
REFERÊNCIAS
SALLES, J. C. A gramática das cores em Wittgenstein. Campinas, UNICAMP, Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência, 2002.
______ . O retrato do vermelho e outros ensaios. Salvador, Quarteto Editora, 2006.
______ . Secos e molhados. Salvador, Quarteto Editora, 2009.
______ . O cético e o enxadrista: significação e experiência em Wittgenstein.
Salvador, Quarteto Editora, 2012.
“Um filósofo quer sacudir a Universidade”, entrevista de João Carlos
Salles a Mariluce Moura, BahiaCiência, disponível em http://bahiaciencia.com.br/2014/10/um-filosofo-quer-sacudir-a-ufba/ , acessado
em 17.11.2014.4
Paulo Costa Lima é músico, compositor, pesquisador, escritor e professor. Foi diretor da Escola de Música da Universidade Federal da
Bahia, pró-reitor da UFBA e presidente da Fundação Gregório de
Mattos. Publicou cinco livros e vários artigos e ensaios. É membro da
Academia Brasileira de Música e da Academia de Ciências da Bahia.
Desde 2009 ocupa a Cadeira número 8 da ALB.
Discurso de recepção ao acadêmico João Carlos Salles, empossado na
Cadeira número 32, proferido em sessão solene, no Salão Nobre da
Academia de Letras da Bahia, em 6 de novembro de 2014.
450 ◄◄
EDIVALDO M. BOAVENTURA
Oitenta anos do acadêmico
Luís Antonio Cajazeira Ramos
M
eu chanceler.
Estamos diante de um incômodo dilema. O que esperar
de um discurso de celebração dos 80 anos de idade de alguém?
Creio que todos pediriam ao orador que, de forma criativa e
agradável, lembrasse em breves palavras a genealogia da pessoa festejada, suas raízes socioculturais, sua formação escolar,
um pouco de sua vida privada e muito de sua vida pública, as
escolhas acadêmicas, os caminhos profissionais, a produção intelectual, as inserções institucionais, as intervenções sociais, as
realizações. Mas nosso homenageado é Edivaldo M. Boaventura. Eis aí o problema. Se eu for sumariar, apenas sumariar,
listar as realizações do bem-venturoso confrade, inescapavelmente eu ocuparei ou mesmo ultrapassarei o tempo razoável
pelo qual deve estender-se um discurso de qualquer natureza.
Como contornar esse problema? Como vencer a encruzilhada? Sinceramente, não sei. Na dúvida, prefiro afastar-me da
via meramente curricular; ignoro o caminho fácil de agradar os
ouvintes com eventuais causos pitorescos de sua aventura de
vida; preservo-me de seguir a oportunista pista de minha relação pessoal com o dileto amigo; e escolho avançar pela bem
sinalizada estrada suavemente retilínea de sua rica, proveitosa e
admirável biografia. Resumidamente, é claro, superficialmente,
em pequenos saltos, até onde o fôlego nos conduza.
Edivaldo Machado Boaventura nasceu em Feira de Santana, em 10 de dezembro de 1933. Nasceu, portanto, onde nasce
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
o sertão. É o mais velho dos quatro filhos do Sr. Osvaldo Abreu
Boaventura e da Sra. Edith Machado Boaventura. Seu Osvaldo foi um bem-sucedido empresário feirense no comércio e na
pequena indústria, trazendo no sangue não somente a capacidade empreendedora do pai, o negociante e gestor municipal
José Alves Boaventura, entusiasmado presidente da Sociedade
Filarmônica 25 de Março, como também a tenacidade da mãe,
dona Lídia Abreu de Oliveira Boaventura, a amada e idolatrada
avó Dinda, cuja altivez de notável figura feminina, que se destacava na sociedade local, marcou a infância do neto Didi. A
mãe de Edivaldo, dona Edith, herdeira de ricas e tradicionais
famílias dos municípios de Castro Alves e de São Gonçalo dos
Campos, era professora primária e uma dedicada e ilustre colaboradora de instituições religiosas e sociais de cunho caritativo,
estendendo para a ação comunitária a piedade e a fé transmitidas pela mãe, a austera dona Amélia Barreiros Machado, viúva
de João Sampaio Machado.
De início, Osvaldo e Edith residiram numa casa simples
da Praça da Catedral, mudando-se depois para a Praça da República, fixando-se a seguir numa chácara próxima ao estabelecimento comercial do chefe da família. Na amenidade de uma
vida familiar sem sobressaltos, honesta, coesa, amorosa, amistosa, participativa, laboriosa e tenaz, formou-se a personalidade
de nosso Edivaldo, sob o constante apoio, companheirismo e
incentivo do pai e o exemplo especular de uma mãe educadora
e amante da leitura, que conciliava a vida familiar e suas ações
pedagógicas de cidadania e amor ao próximo.
O universo da primeira metade da infância foi para Didi
a casa da Praça da Catedral e suas vizinhanças. No jardim de
infância da Escola Normal Rural, esteve sob os cuidados da
professora Amelinha Simões, prima de seu pai. Tratando-se de
Edivaldo M. Boaventura, o fato mais marcante desses anos não
foi outro senão um ato cívico: o plantio de uma muda no dia
mundial da árvore, no Horto Froes da Mota, na Rua da Aurora,
452 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
naquele 21 de setembro que abria a primavera de seus cinco
ou seis anos de idade. A alfabetização, iniciada em casa pela
mãe, foi retomada e concluída pela persistente madre alagoana Maria Nazaré Andrade na escola primária do Asilo Nossa
Senhora de Lourdes, o antigo orfanato do padre Ovídio Alves
de São Boaventura e sua irmã Teolinda, que fora ocupado em
1903 por freiras sacramentinas francesas e era mantido pela
irmandade. Madre Nazaré também iniciou o pupilo no ofício
de coroinha, para acompanhar a missa do padre Mário Pessoa
na capela da instituição.
A infância se completou na residência da Praça da República, a poucos passos da escola. A Segunda Guerra Mundial
acontecia bem ali em frente de casa, com soldados recebendo
treinamento militar na praça, o armazém de fumo transmudado
em quartel, casas ocupadas pelo exército, a cidade alvoroçada
pelas fardas e armas e pela excitação de notícias das terras beligerantes e longínquas, no auge ufanista da ditadura Vargas. Enquanto isso, nosso infante seguia o curso primário, tumultuado
por problemas hepáticos que o levariam a perder o ano em 1942.
Desligou-se da escola sacramentina e passou a estudar na escola da professora Helena de Assis Suzart. Em 1946, no último
semestre letivo do curso primário, seu pai matriculou-o como
interno do Colégio Antônio Vieira, em Salvador. No final do
ano, prestou o concurso de admissão ao ginásio, sendo aprovado, permanecendo na instituição jesuíta.
Desde 1943, no início de sua puberdade, sua família se
mudara para a espaçosa, ventilada, arborizada, aprazível e distante chácara. A partir de 1946, a adolescência dividia-se entre os
estudos em Salvador e as férias escolares em sua querida Feira de
Santana. Se nas férias o rapazote renovava os vínculos da amizade e da vida social no Feira Tênis Clube, então dirigido por seu
genitor, no colégio o estudante despertava definitivamente para
o cultivo do binômio que até hoje norteia sua vida: o livro e a
leitura. É dessa época, por incentivo do padre Campos, o salto
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
do prazer das leituras infantis para a admiração por Humberto
de Campos, José de Alencar, Ferreira de Castro e o poeta de sua
vida inteira: Castro Alves. Por influência do erudito padre Mariano Pinho, estabeleceu contato com a literatura portuguesa de
Camões, Antônio Vieira, Manuel Bernardes, Guerra Junqueiro e
do baiano Rui Barbosa.
As bases intelectuais, morais e religiosas firmadas no ambiente familiar dos Boaventura foram reforçadas no Colégio
Antônio Vieira, instituição criada em 1911 por padres jesuítas
expulsos de Portugal durante o período em que reinava um explosivo sentimento anticlerical na nascente república lusitana.
O jovem Edivaldo recebeu dos padres portugueses uma sólida
formação filosófica e científica de matiz humanista, bem como
se deixou impregnar pela doutrina católica dos jesuítas, vindo
daí, talvez, sua afinidade com o papel de educador como uma
verdadeira catequese pedagógica e uma missão de vida. Também participou ativamente da vida escolar extraclasse. Além de
experiências no coral e no teatro, dirigiu o grêmio estudantil,
garbosamente denominado Academia Vieirense de Letras, e
integrou duas instituições vinculadas à igreja, a Congregação
Mariana e a Juventude Estudantil Católica. Desses tempos do
Vieira, que vão desde o final do primário à conclusão do curso
colegial, de 1946 a 1953, nosso eterno estudante guarda lembranças imantadas na memória e algumas amizades duradouras, como Paulo Ormindo de Azevedo, Ângelo Calmon de Sá
e o saudoso compadre Luiz Navarro de Britto. É ainda nessa
época que brota o interesse e a admiração pela cultura portuguesa, enraizando fundo e projetando frutos do insuspeito
amor a Portugal.
Nosso disciplinado e prestante cidadão aceitou de bom
grado cumprir o serviço militar obrigatório, facilitado pela opção de frequentar o Centro de Preparação de Oficiais da Reserva, a elite dos alistados, por estar cursando o ensino médio. Sem
dúvida, a conscrição foi um alento a seu espírito cívico e uma
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
experiência intensa de aprendizado de valores e práticas úteis à
vida cotidiana. Por outro lado, porém, as obrigações da caserna
foram um transtorno em sua formação escolar. Frequentou o
quartel por dois anos, o primeiro deles paralelamente ao terceiro ano colegial. Premido pela jornada estafante, não obteve
classificação no vestibular para o curso de direito. Incontinenti,
prestou novos exames e cursou um ano de ciências sociais na
antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da jovem Universidade Federal da Bahia, conjuntamente com a conclusão do
CPOR. No ano seguinte, ingressou na tão almejada Faculdade
de Direito, centro das tradições liberais republicanas e fórum
do caloroso embate de pensamentos e correntes ideológicas da
juventude baiana.
Ser aluno da UFBA nos cursos de ciências sociais em 1954
e de direito entre 1955 e 1959, durante o inigualável reitorado
de Edgard Santos, foi um dos mais expressivos privilégios de
sua trajetória. O magnífico professor-gestor não apenas fundou
a universidade, como também ampliou seus horizontes acadêmicos com novos cursos e revolucionou a relação da instituição
com os alunos, dando primazia aos cuidados com o corpo discente, a tal ponto que, ironia das ironias, terminou sendo destituído do cargo, pressionado pelas organizações estudantis. A
Faculdade de Direito era dirigida com não menos brilho pelo
professor e vice-reitor Orlando Gomes, que conduziu com
firmeza ímpar a federalização da tradicional escola jurídica, a
construção da nova sede no bairro do Canela, a organização da
biblioteca com ampliação do acervo, a modernização do curso e
a criação do doutorado, dentre outras realizações.
Em recente e ainda inédita entrevista ao jornalista Sérgio Mattos, nosso bacharel revela que o curso de direito lhe foi
uma incomensurável alegria, um verdadeiro deslumbramento.
Esse relato encantado inicia-se pela citação nominal dos mestres. Logo no primeiro ano, Nelson Sampaio, Josaphat Marinho, Adalício Nogueira, Aloysio de Carvalho Filho, Aderbal da
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Cunha Gonçalves e Augusto Alexandre Machado, aos quais se
seguiram, a cada ano, até a formatura, outros venerandos catedráticos, como Pedro Manso Cabral, Carlos Fraga, Antônio Matos, Elson Gottschalk, Lafayette Pondé, Gilberto Valente, Lafayette Spínola, Luiz de Pinho Pedreira da Silva, Albérico Fraga,
Adhemar Raimundo da Silva, Auto José de Castro e o médico
Estácio de Lima.
O pensamento, o comportamento e a vocação de Edivaldo M. Boaventura ganharam feições definitivas na renovada
Faculdade de Direito da Bahia. Não se furtou a participar da
União dos Estudantes da Bahia e da União Nacional dos Estudantes, constituindo um grupo de nacionalistas com Nailton
Santos, Antônio Cabral de Andrade, Raimundo Bonfim, relacionando-se com as lideranças estudantis de todas as vertentes
ideológicas da época, cujo palco era o Centro Acadêmico Rui
Barbosa. De um lado, Gabino Kruschewsky, Jorge Medauar,
Nemésio Sales e, de outro, Eliel Martins, Mário Albiani, Remy
de Souza. Nada, porém, o afastava da independência e da noção da justa medida que até hoje orientam seus passos. Trouxe
para o ambiente acadêmico a militância religiosa do movimento Ação Católica, juntamente com os colegas Margarida Silva
Costa, Edna Saback Cohim, Carlos Brandão da Silva e estudantes de vários cursos, como Leão Gomes de ciências econômicas, Elza Figueiredo e Moema Parente de filosofia, Haroldo
Lima de engenharia, o seminarista José Hamilton Barros e tantos outros, chegando a ser um dos coordenadores da Juventude Universitária Católica até a formatura. Depois de diplomado, afastou-se da Ação Católica, de cujo seio se alimentaria
a Ação Popular, movimento político de ativa participação na
resistência ao regime militar.
A vida de estudante de direito foi pontuada por diversos
envolvimentos acadêmicos. Frequentador assíduo da biblioteca, tornou-se amigo da bibliotecária Esmeralda Maria de Aragão, a quem credita os fundamentos de seus conhecimentos no
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
campo da pesquisa e das referências bibliográficas. No penúltimo ano do curso inscreveu-se como solicitador acadêmico da
Ordem dos Advogados do Brasil. Nesse mesmo ano de 1958,
foi o orador da entrega da beca de desembargador ao professor Aderbal da Cunha Gonçalves, ofertada pelos estudantes,
inaugurando assim sua festejada verve de orador oficial de tantas e quantas instituições às quais cumulativamente se vincula.
No ano da formatura, estagiou na Procuradoria Regional do
Trabalho, o que já sinalizava sua futura atividade profissional
como juiz do trabalho concursado desde o ano seguinte. Fez
um segundo estágio na Comissão de Planejamento Econômico, criada por Rômulo Almeida, e o curso de Introdução aos
Problemas do Brasil, coordenado por Machado Neto para o
Instituto Superior de Estudos Brasileiros, diversificando assim
seus interesses acadêmicos e profissionais.
Seu primeiro artigo publicado foi “Cidade e habitação:
aspectos teóricos e verificação da problemática habitacional da
cidade do Salvador”, incluído na 14ª edição da revista Ângulos,
em 1959, ao qual se seguiram colaborações relacionadas ao enquadramento sindical e outros tópicos de direito do trabalho.
A revista Ângulos foi e ainda é uma publicação dos acadêmicos
de direito da UFBA. Foi criada para fomentar e divulgar a produção científica, opinativa e literária dos estudantes, revelando
nomes como Florisvaldo Mattos, João Ubaldo Ribeiro, Glauber Rocha, David Salles, Jair Gramacho, Fred Souza Castro,
Jomard de Britto, Geraldo Fidelis Sarno, Navarro de Britto,
João Eurico Matta e outros mais que viriam a ser expressivos
autores das letras baianas.
A formatura da Turma Clóvis Beviláqua foi em 10 de outubro de 1959, na semana seguinte ao centenário do jurista e
filósofo positivista cearense, filho de padre como o conterrâneo
José de Alencar e autor do projeto do antigo e longevo Código Civil Brasileiro. Edivaldo Machado Boaventura foi o orador
ao paraninfo Aderbal da Cunha Gonçalves. Naquela cerimônia
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
inesquecível, em que o orador honrava a escolha da turma pelo
querido e admirado professor de direito civil, seus olhos marejados de emoção buscavam apoio na incontida felicidade dos colegas Gabino Kruschewsky, Eliel Martins, Sônia de Aguiar Nunes,
João Américo Bulcão Fróes, Remy de Souza, Maria José de Oliveira, Lúcia Oliveira Angeiras, Wenceslau Unapetinga, Nemésio
Sales, Thomas Bacelar, Rômulo Galvão, José Osório Reis, Ademar Martins Bento Gomes, Frederico Augusto Lassère, Rogério
Rego, Joaquim Artur Pedreira Franco, Raimundo Medrado Primo, Eurípedes Brito Cunha, Juracy Magalhães Júnior.
Em 1960, imediatamente após o encerramento da graduação, começou a advogar, abraçou a docência na Escola de
Serviço Social da Bahia, que logo seria incorporada à Universidade Católica de Salvador, iniciou o doutorado pela livre-docência da UFBA, foi aprovado no concurso para juiz do trabalho, passou a escrever com frequência no Jornal da Bahia,
associou-se ao Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, e
chegamos, meu chanceler, às inúmeras bifurcações da estrada
biográfica que escolhi sobrevoar com este monomotor de limitada autonomia de voo que conduz minha pena. Resta-me
pousar no meio da encruzilhada e externar minha perplexidade. Ecce homo. Por onde vou? Que senda trilhar? Como tecer
num único cordel tamanha vida?
Minha primeira e óbvia escolha é pôr os pés no chão,
pegar um veículo terrestre qualquer e dirigir-me à continuação de seus estudos, ora vertidos à pesquisa e à publicação de
textos e livros. A confreira Edith Mendes da Gama e Abreu,
no discurso de saudação quando da posse de Edivaldo M. Boaventura na Cadeira 39 deste sodalício, não conteve a admiração
pelo precoce talento culto e pela gloriosa exceção de seus inacreditáveis mais de cinquenta trabalhos e títulos já publicados
nos escassos 37 anos de idade. Hoje sua obra são volumes e
volumes de uma enciclopédia de humanidades, com estudos
das ciências do direito, da economia, da filosofia, da política,
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
da sociologia, da administração, da pedagogia, da educação, da
literatura, da memória, dos relatos de viagens, do universo da
cultura de um entusiástico cosmopolita.
Volto ao entroncamento para pegar a bifurcação da via
dos estudos, que avançaram em novas titulações acadêmicas. O
doutorado na UFBA com a tese “Incentivos ao desenvolvimento regional”, os cursos na Universidade de Paris e no Instituto da
América Latina, a participação na Escola de Verão de Harvard,
iniciando o relacionamento com universidades dos Estados Unidos e do Canadá, o estágio no Instituto Internacional de Planejamento da Educação, vinculado à Unesco, a realização do mestrado e do doutorado em educação pela Universidade Estadual
da Pensilvânia, respectivamente com a dissertação “A estrutura
legal da educação brasileira” e a tese de PhD “Um estudo das
funções e das responsabilidades do Conselho Estadual de Educação da Bahia, Brasil, de 1963 a 1975”, e o pós-doutorado na
Universidade de Quebec.
Um desvio paralelo à pista principal revela outras titulações de natureza associativa e honorífica. É membro de quase
todas as academias e agremiações culturais do estado, como a
Academia de Letras, a Academia de Letras Jurídicas, a Academia
de Educação, a Academia de Ciências, o Instituto Genealógico e
o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. É membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, da Academia Brasileira
de Educação, da Academia Portuguesa da História, da Ordem
do Santo Sepulcro e da Confraria da Barraida de Portugal. É
doutor honoris causa da Universidade Estadual da Bahia e foi distinguido com incontáveis prêmios, troféus, comendas e medalhas, como a Machado de Assis, a Maria Quitéria, a do Patriarca
e a da Cruz de Malta, além de títulos de cidadão honorário de
vários municípios da Bahia.
Inevitavelmente, perco-me no intricado de suas atividades profissionais. Desisto de entender o fluxo desse trânsito e
enfrento resignado o congestionamento de trabalhos sucessivos,
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
superpostos, aparentemente díspares, porém integrados, com resultados eficazes e duradouros. Acho uma brecha, disparo em velocidade e avanço todos os sinais: foi advogado, juiz do trabalho,
técnico de desenvolvimento econômico da Superintendência do
Desenvolvimento do Nordeste, professor de direito administrativo, de direito constitucional, de ciência política, de ciência
das finanças, de economia política, de direito social, de estrutura e funcionamento do ensino, de metodologia da pesquisa,
na Escola de Serviço Social da Bahia, na Escola de Administração, na Faculdade de Direito, na Faculdade de Educação, implantou a assessoria de planejamento da reforma universitária
no reitorado de Roberto Santos, ajudou a fundar a Faculdade
de Educação, foi membro e presidente do Conselho Estadual
de Educação, foi secretário de educação e cultura no governo
de Luiz Viana Filho, iniciou as escolas polivalentes, implantou
as faculdades de formação de professores, concluiu os centros
integrados de educação, participou da criação da Universidade
Estadual de Feira de Santana, criou o Parque Histórico Castro
Alves, integrou e coordenou o programa de mestrado em educação da UFBA, participou da criação da Associação Nacional
de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação, trabalhou com
sistemas e estruturas de ensino, planejamento, metodologia da
pesquisa e história da educação, foi membro do Conselho de
Coordenação da UFBA, compôs e presidiu a Câmara de Ensino de Pós-Graduação e Pesquisa, voltou a dirigir a Secretaria
de Educação no governo de João Durval Carneiro, promoveu
a interiorização da educação superior estadual, criou e dirigiu a
Universidade do Estado da Bahia, impulsionou a Universidade
Estadual do Sudoeste da Bahia, apoiou a criação da Universidade Estadual de Santa Cruz, aumentou consideravelmente o
número de escolas e expandiu a educação básica, implantou
os estudos africanos na escola baiana, criou o Parque Estadual
de Canudos, coordenou a criação do doutorado em educação
da UFBA, foi diretor-geral do jornal A Tarde, onde assinou
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
por muitos anos a coluna Educação, ensina e orienta pesquisa
no programa de mestrado e doutorado em desenvolvimento
regional e urbano da Universidade Salvador e no mestrado interdisciplinar da Fundação Visconde de Cairu. Com mais de
50 anos de magistério, continua ensinando e orientando teses
e dissertações.
Freio bruscamente para não cair no imponderável abismo
do futuro. Olho para trás e vejo um país de realizações. Invademe um misto de tristeza e saudade, alegria e júbilo, conforto
e gratidão. Neste momento, rememoro passagens do discurso
de posse de nosso camarada na cátedra de Francisco de Castro
e de Clementino Fraga neste silogeu, ao dirigir a juventude de
sua palavra ao presidente José Calasans. Logo na abertura, revela os dois primeiros impulsos fortes, ardentes e irresistíveis
experimentados pela consciência: ser universitário e tornar-se
acadêmico. Tomo a liberdade de afirmar inarredavelmente que
a Academia de Letras da Bahia é o segundo lar de Edivaldo M.
Boaventura. Membro efetivo, atual vice-decano, membro benfeitor, ex-presidente, ele é a expressão viva e mais evidente do
binômio de valores que devem orientar o mandato vitalício de
um membro desta casa: memória e convivência.
Livro e leitura, universidade e academia, memória e convivência fazem dele um ícone do binômio que melhor se lhe
ajusta: educador e cidadão do mundo. A Bahia e o mundo, terras
lusófonas e culturas estrangeiras. Edivaldo M. Boaventura traz a
cidade dos homens no espírito e o sertão no coração.
Num último apelo, tentando fazer-me levitar na invisibilidade, pisando em pétalas de rosas sem feri-las, invado timidamente, respeitosamente, a trilha conjugal de nosso amoroso
confrade. Testemunho a beleza da jovem estudante de letras
Solange sendo cortejada pelo fascinado acadêmico de direito,
ouço o pedido oficial de noivado dirigido ao Sr. Pedro Tenório
de Albuquerque, sento-me ao lado do casal no sofá do futuro
sogro, faço coro aos hinos litúrgicos e aos cantos corais na
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
missa matrimonial celebrada por Dom Jerônimo de Sá Cavalcante no Mosteiro de São Bento, brindo aos recém-casados e...
paro por aqui. Mais de 50 anos depois, o amor se reafirma diuturnamente e renasce a cada manhã. Minha chanceler Solange
do Rego Boaventura é a companheira que confirma a máxima do grande homem. Da filha mais velha, a administradora
e educadora Lídia, assim batizada pela saudade da avó Dinda,
sou amigo há pouco tempo. Do filho do meio, o publicitário,
ator e cantor Daniel, sou um de seus inumeráveis fãs. Não
conheci o mais novo, o veterinário Pedro, filho amado, brutalmente apartado desta vida, uma chaga aberta no coração dos
pais e dos irmãos. E por enquanto são quatro netas, que lhe
garantem a mais nobre das virtudes ensinadas pelo mestre dos
mestres: a esperança.
Só eu me vejo desesperançado e prostro-me impotente
diante da impossível tarefa a que me propus. A vaidade e a estultice fizeram-me acreditar que em rápidas palavras eu seria capaz de esboçar a vida assombrosamente plena dos oitenta anos
vertiginosos de nosso homenageado. Meu consolo é que falhei
onde qualquer um falharia. Num ímpeto, eu ensaio um acanhado pedido de desculpas a meu chanceler, aos doutos ouvintes,
a tantos amigos aqui presentes, mas as palavras morrem sem
coragem antes de ser pronunciadas. Volto-me suplicante para o
improvável outro e peço ajuda. Logo eu, um impenitente ateu.
Finjo-me de místico e aposto na cordial tolerância do bonachão Edivaldo, para com minha imaginação despachar um ebó
no olho dessa engrisilha, que abrisse os caminhos e revelasse o
mistério de sua interdisciplinaridade. Um galo velho que ainda
canta, uma farofa de maturi, uma garrafa do melhor tinto. Mas
a verdade é que eu me sinto pobre no uso do artifício retórico
de divisar um caminho cheio de bifurcações, numa desajeitada
alegoria por sobre a tão batida metáfora da estrada da vida e
que tão, tão somente disfarça minhas limitações e a claudicante
didática de minha explanação.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
E logo ali, diante de nós, serenamente, sabiamente, permanece Edivaldo M. Boaventura, com o olhar modulador com
que se doa, desvendando o sorriso da vida, na integridade una
e indivisível de seu caminho, seu único caminho, desde cedo
iluminado pelo Espírito Santo.
O que haveria de mais brilhante?
Muito obrigado.1
Luís Antonio Cajazeira Ramos é poeta, analista do Banco Central do
Brasil e advogado. Publicou cinco livros de poesia: Tudo muito pouco
(1983), Fiat breu (1996), Como se (1999), Temporal temporal (2002) e Mais
que sempre (2007). Participa de diversas antologias de poesia publicadas
no Brasil, em Portugal e na França, inclusive com poemas traduzidos
para o espanhol, o inglês, o francês e o alemão. Colabora com poemas, resenhas e outros artigos em revistas literárias e jornais. Recebeu
menção honrosa no Prêmio Nacional Cruz e Sousa da Fundação Catarinense de Cultura em 1998. Foi o vencedor do Prêmio Nacional
Gregório de Mattos da Academia de Letras da Bahia em 2000. É sócio
do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e sócio fundador da Associação Amigos do Teatro Castro Alves. Desde 2012 ocupa a Cadeira
número 35 da Academia de Letras da Bahia.
Discurso em homenagem ao octogésimo aniversário do acadêmico
Edivaldo M. Boaventura, proferido no Salão Nobre, em sessão especial da Academia de Letras da Bahia no dia 25 de março de 2014.
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DIVERSOS
Efemérides 2014
Janeiro
22 — Luto oficial pela morte da acadêmica Anna Amélia Vieira
Nascimento, ocupante da Cadeira número 3. Diante do corpo,
falou, em nome da Academia de Letras da Bahia, o presidente
Aramis Ribeiro Costa.
Março
05— Luto oficial pela morte do acadêmico Gerson Pereira dos
Santos, ocupante da Cadeira número 32. Diante do corpo, falou,
em nome da Academia de Letras da Bahia, o presidente Aramis
Ribeiro Costa.
20— 18hs. —Sessão especial de abertura do novo ano acadêmico, com a presença do secretário de cultura do Estado da Bahia,
Antônio Albino Canelas Rubim, compreendendo a solenidade: 1) Palavras iniciais do presidente da Academia de Letras da
Bahia, Aramis Ribeiro Costa. 2) Inauguração, no Auditório Magalhães Neto, Salão Nobre da instituição, da Placa dos Fundadores da Academia de Letras da Bahia, sendo orador o acadêmico
Edivaldo M. Boaventura. 3) Registro do centenário, em vida, de
nascimento do acadêmico Clóvis Álvares Lima (11-03-1914/1103-2014), ocupante da Cadeira número 22, sendo orador o acadêmico Aleilton Fonseca. 4) Lançamento do Anuário da Academia de Letras da Bahia, 02/2014.
25 — 17hs. — Sessão especial em homenagem aos 80 anos de
vida do acadêmico Edivaldo M. Boaventura, sendo orador o acadêmico Luís Antonio Cajazeira Ramos. Após a sessão, ocorreu o
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
lançamento do livro Portugal, um denso país, pela Quarteto Editora,
de autoria do acadêmico homenageado.
26 — 16hs. — Lançamento do Selo Editorial João Ubaldo Ribeiro, no Auditório Magalhães Neto, pela Fundação Gregório
de Mattos, órgão vinculado à Secretaria de Desenvolvimento,
Turismo e Cultura da prefeitura de Salvador. Foram oradores
o presidente da Academia de Letras da Bahia, Aramis Ribeiro
Costa, o presidente da Fundação Gregório da Mattos, Fernando
Guerreiro, o secretário de Desenvolvimento, Turismo e Cultura
de Salvador, Guilherme Bellintanni, senhora Emília Ribeiro, filha do escritor e acadêmico homenageado, João Ubaldo Ribeiro,
representando o pai, ausente do país, e o prefeito da Cidade do
Salvador, Antônio Carlos Peixoto de Magalhães Neto. Compôs
ainda a mesa a vice-prefeita, Célia Sacramento.
27 — 17hs. — Sessão ordinária regimental a que compareceram
os acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Luís Antonio
Cajazeira Ramos, Fernando da Rocha Peres, Edivaldo M. Boaventura, Aleilton Fonseca, Paulo Costa Lima, Myriam Fraga,
João Eurico Matta e Joaci Góes. Pauta: depoimentos informais
em homenagem póstuma aos acadêmicos James Amado, Anna
Amélia Vieira Nascimento e Gerson Pereira dos Santos.
27 — 18hs. — Sessão ordinária a que compareceram os acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Luís Antonio Cajazeira Ramos, Fernando da Rocha Peres, Edivaldo M. Boaventura,
Aleilton Fonseca, Paulo Costa Lima, Myriam Fraga, João Eurico
Matta e Joaci Góes. Pauta: conversas informais sobre futuros
candidatos às vagas existentes para membro efetivo.
Abril
03 — 17hs. — Sessão especial de homenagem póstuma ao acadêmico James Amado (1922-2013), sendo oradora a acadêmica
Myriam Fraga. Representou a família do homenageado o sobrinho João Jorge Amado. O presidente Aramis Ribeiro Costa,
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
cumprindo o regimento, declarou vaga a Cadeira número 27,
cujo patrono é Francisco Rodrigues da Silva e cujo último ocupante foi o acadêmico James Amado.
10 — 17hs. — Sessão especial de homenagem póstuma à acadêmica Anna Amélia Vieira Nascimento (1930-2014), sendo orador o acadêmico Edivaldo M. Boaventura. Após a fala do orador
oficial da sessão, foi concedida a palavra à diretora do Arquivo
Público da Bahia, Maria Tereza Navarro de Britto Matos, para
o seu depoimento. Em nome da família, agradeceu a filha da
homenageada, Anna Guiomar Vieira Nascimento. O presidente
Aramis Ribeiro Costa, cumprindo o regimento, declarou vaga a
Cadeira número 3, cujo patrono é Manuel Botelho de Oliveira e
cujo último ocupante foi a acadêmica Anna Amélia Vieira Nascimento.
24 — 17hs. — Sessão ordinária a que compareceram os acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Hélio Pólvora, Gláucia Lemos, Samuel Celestino, Consuelo Pondé de Sena, Waldir
Freitas Oliveira, Evelina Hoisel, Roberto Santos, Joaci Góes,
Cleise Mendes, Ruy Espinheira Filho, Dom Emanuel d’Able do
Amaral, Maria Stella de Azevedo Santos, Florisvaldo Mattos,
Fernando da Rocha Peres, Francisco Senna, José Carlos Capinan, Myriam Fraga, Edivaldo M. Boaventura, Aleilton Fonseca,
Luís Antonio Cajazeira Ramos, Paulo Costa Lima, João Eurico
Matta e Carlos Ribeiro, para indicação de candidatos à vaga na
Cadeira número 40, de que foi a última ocupante a acadêmica
Consuelo Novais Sampaio, tendo sido eleita, por obter 24 votos,
Urania Tourinho Peres. A eleita compareceu à sede da Academia
e declarou aceitar a eleição.
Maio
08 — 18hs. — Lançamento da Revista da Academia de Letras da
Bahia nº52, com a presença do secretário de cultura do Estado da
Bahia, Antônio Albino Canelas Rubim. Na ocasião, discursaram o
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
presidente da Academia, Aramis Ribeiro Costa, o secretário Albino Rubim, o acadêmico Florisvaldo Mattos, diretor da Revista, o
acadêmico Aleilton Fonseca, produtor, o acadêmico Luís Antonio Cajazeira Ramos, revisor editorial, e o acadêmico Edivaldo
M. Boaventura, ex-presidente.
15 — 17hs. —Sessão especial de homenagem póstuma ao acadêmico Gerson Pereira dos Santos (1932-2014), sendo orador
o acadêmico João Eurico Matta. Após a fala do orador oficial
da sessão, foi concedida a palavra ao ex-governador da Bahia,
acadêmico Roberto Santos, ao desembargador Luiz Fernando
Lima, representante do Tribunal de Justiça da Bahia, e ao advogado Antônio Luiz Calmon Teixeira, presidente do Instituto dos Advogados da Bahia. Sentou-se à mesa representando a
família, o filho do homenageado, Gerson Luís Marinho Pereira. Agradeceu em nome da família o advogado Luiz Humberto
Maron Agle. O presidente Aramis Ribeiro Costa, cumprindo o
regimento, declarou vaga a Cadeira número 32, cujo patrono é
André Rebouças e cujo último ocupante foi o acadêmico Gerson Pereira dos Santos.
22 — 17hs. — Sessão ordinária a que compareceram os acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Samuel Celestino,
Consuelo Pondé de Sena, Florisvaldo Mattos, Carlos Ribeiro,
Evelina Hoisel, Ruy Espinheira Filho, Fernando da Rocha Peres, Roberto Santos, Gláucia Lemos, Cleise Mendes, Aleilton
Fonseca, Joaci Góes, Luís Antonio Cajazeira Ramos, José Carlos
Capinan, Edivaldo M. Boaventura, Myriam Fraga, Paulo Costa
Lima, João Eurico Matta, Francisco Senna e Hélio Pólvora, para
indicação de candidatos à vaga na Cadeira número 27, de que foi
o último ocupante o acadêmico James Amado, tendo sido eleito,
com aprovação da assembleia, por obter o número de votos necessário, o candidato único Ordep Serra. O eleito compareceu à
sede da Academia e declarou aceitar a eleição.
27 — 17hs. — Sessão ordinária a que compareceram os acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Roberto Santos,
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Consuelo Pondé de Sena, Dom Emanuel d’Able do Amaral,
Paulo Ormindo de Azevedo, Evelina Hoisel, Luís Antonio
Cajazeira Ramos, João Eurico Matta, Joaci Góes, Paulo Costa Lima, Aleilton Fonseca, Florisvaldo Mattos, Gláucia Lemos
e Carlos Ribeiro, para eleição de membros correspondentes.
Lidos e discutidos as pareceres das comissões sobre candidatos já anteriormente apresentados, foram eleitos os seguintes
membros correspondentes: o escritor franco-paraguaio Alain
Saint-Saëns, a escritora argentina Maria Pugliese e o escritor
baiano Paulo Fernando de Moraes Farias, residente há décadas
na Inglaterra.
29 — 17hs. — Sessão ordinária a que compareceram os acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Francisco Sena, Gláucia Lemos, Aleilton Fonseca e Luís Antonio Cajazeira Ramos,
tendo como convidados especiais os professores Maria Lígia
Lordello de Magalhães, Carmem Maria Mettig Rocha e Marcelo
Augusto Rocha, para palestra do acadêmico Francisco Sena, em
homenagem aos centenários de nascimento da educadora Olga
Pereira Mettig e do arquiteto Diógenes Rebouças.
Junho
05 — 17hs. — Sessão ordinária a que compareceram os acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Aleilton Fonseca,
Samuel Celestino, Evelina Hoisel, Carlos Ribeiro, Cleise Mendes, Gláucia Lemos, Armando Avena, Luís Antonio Cajazeira
Ramos, Paulo Furtado, Geraldo Machado, João Carlos Teixeira
Gomes, Roberto Santos, Francisco Senna, João Eurico Matta,
Yeda Pessoa de Castro, Dom Emanuel d’Able do Amaral, Joaci
Góes, Maria Stella de Azevedo Santos, Consuelo Pondé de Sena,
Fernando da Rocha Peres, Myriam Fraga, Paulo Costa Lima,
Edivaldo M. Boaventura, para indicação de candidatos à vaga
na Cadeira número 3, de que foi a última ocupante a acadêmica
Anna Amélia Vieira Nascimento, tendo sido eleito, por obter 23
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
votos, Guilherme Radel. O eleito compareceu à sede da Academia e declarou aceitar a eleição.
Registro histórico: a ALB teve sua programação interrompida
no restante do mês de junho, em decorrência das paralisações e
impedimentos por Copa do Mundo no Brasil, festejos juninos, e
feriado de Corpus Cristi.
Julho
03 — 17hs. — Sessão ordinária a que compareceram os acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Samuel Celestino,
Gláucia Lemos, Roberto Santos, Evelina Hoisel, Ruy Espinheira Filho, Florisvaldo Mattos, Edivaldo M. Boaventura, Cleise
Mendes, Myriam Fraga, Paulo Furtado, João Carlos Teixeira
Gomes, Joaci Góes, Aleilton Fonseca, João Eurico Matta, Carlos Ribeiro, Dom Emanuel d’Able do Amaral, José Carlos Capinam, Francisco Senna, Consuelo Pondé de Sena, Paulo Costa
Lima, Geraldo Machado, Armando Avena, Luís Antonio Cajazeira Ramos e Paulo Ormindo de Azevedo, para indicação de
candidatos à vaga na Cadeira número 32, de que foi o último
ocupante o acadêmico Gerson Pereira dos Santos, tendo sido
eleito, por obter 25 votos, João Carlos Salles Pires da Silva.
O eleito compareceu à sede da Academia e declarou aceitar a
eleição.
10 — 17hs. — Sessão especial em homenagem ao bicentenário
de nascimento do patrono da Cadeira número 17, Antônio Ferrão Moniz de Aragão (1813-2013), sendo orador o acadêmico
João Eurico Matta.
17 — 17hs. — Reunião de diretoria com participação dos demais acadêmicos. Pauta: a) prestação de contas, financeira e administrativa; b) segurança da sede da Academia; c) pintura externa da sede; d) o que ocorrer.
18 – Luto oficial pela morte do acadêmico João Ubaldo Ribeiro,
ocupante da Cadeira número 9, ocorrida no Rio de Janeiro.
472 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
24 — 17hs. — Sessão ordinária regimental a que compareceram os acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Gláucia
Lemos, Edivaldo M. Boaventura, Evelina Hoisel, Luís Antonio
Cajazeira Ramos, Ruy Espinheira Filho, João Eurico Matta, Geraldo Machado, Joaci Góes, Myriam Fraga, Carlos Ribeiro, Florisvaldo Mattos e o membro correspondente Cyro de Mattos.
Pauta: depoimentos informais em homenagem póstuma ao acadêmico João Ubaldo Ribeiro.
29 — 19hs. — Sessão especial aberta ao público e aos meios de
comunicação, transmitida ao vivo pela TV Educativa da Bahia e
pelo portal da internet do IRDEB, aberta pelo acadêmico Aramis Ribeiro Costa, presidente da Academia de Letras da Bahia,
coordenada e mediada pelo acadêmico Luís Antonio Cajazeira
Ramos, com a participação de personalidades de todos os segmentos da cultura baiana, para o encontro com os candidatos ao
governo do Estado da Bahia, com o tema Uma Política Cultural
para o Estado da Bahia. Participaram os candidatos Paulo Souto (DEM), Rui Costa (PT), Lídice da Mata (PSB), Renata Mallet (PSTU), Marcos Mendes (PSOL) e Rogério da Luz (PRTB).
Além dos acadêmicos, de escritores e artistas, da imprensa, do
numeroso público, estiveram presentes o secretário de Cultura
da Bahia, Albino Rubim, o secretário de Desenvolvimento, Turismo e Cultura municipal de Salvador, Guilherme Bellintanni,
o presidente da Fundação Gregório de Mattos, Fernando Guerreiro, os deputados federais Antônio Imbassahy e Jutahy Magalhães Júnior, o ex-governador Waldir Pires, e os candidatos ao
senado e a vice-governador da Bahia.
31 — 17hs. — Sessão ordinária a que estiveram presentes os
acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Ruy Espinheira
Filho, Myriam Fraga, Fernando da Rocha Peres, João Eurico
Matta, Luís Antonio Cajazeira Ramos, o membro correspondente Cyro de Mattos e a acadêmica eleita Urania Tourinho
Peres, além de convidados, para fala dos acadêmicos Ruy Espinheira Filho e Luís Antonio Cajazeira Ramos, em homenagem
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
póstuma ao poeta, ensaísta e membro da Academia Brasileira
de Letras, Ivan Junqueira.
Agosto
11 — 17hs. — Reunião do presidente da Academia de Letras
da Bahia, Aramis Ribeiro Costa, com a comissão julgadora do
Prêmio Nacional de Literatura Academia de Letras da Bahia —
Poesia 2013, patrocinado pela Petrobras e pela Braskem, formada pelos acadêmicos Ruy Espinheira Filho, Myriam Fraga e
Fernando da Rocha Peres. Em meio a quatrocentos e trinta e
sete concorrentes de todo o país, a comissão julgadora concluiu
por conceder o prêmio ao original “Na Pata do Cavalo Há Sete
Abismos”, assinado pelo pseudônimo Ulisses Filho. Aberto,
pelo presidente Aramis Ribeiro Costa, o envelope lacrado, identificou-se como vencedora Clarisse Moreira de Macedo, sendo
a mesma comunicada imediatamente desse resultado, por telefone, pelo presidente. Houve igualmente imediata comunicação
para os patrocinadores do concurso e a imprensa, tendo sido
o resultado anunciado com destaque no mesmo dia no site da
Academia.
14 — 17hs. — Sessão Ordinária a que estiveram presentes os
acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Gláucia Lemos,
Florisvaldo Mattos, Evelina Hoisel, Myriam Fraga, João Eurico Matta, Edivaldo M. Boaventura, Fernando da Rocha Peres,
a acadêmica eleita Urania Tourinho Peres e convidados, para a
palestra do acadêmico Fernando da Rocha Peres, tendo como
tema “De Avião na Terceira Idade”.
26 — 17hs. — Abertura oficial do Curso Jorge Amado 2014 —
IV Colóquio Internacional de Literatura Brasileira, curso anual
da programação da Academia de Letras da Bahia em parceria
com a Fundação Casa de Jorge Amado, com a coordenação
geral da acadêmica Myriam Fraga, neste ano trazendo o título geral “Literatura e Política”. Palavras iniciais do presidente
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
da Academia de Letras da Bahia, Aramis Ribeiro Costa. Conferência do professor Eduardo Assis Duarte (UFMG): “Jorge Amado na era dos extremos”. Lançamento do livro: Jorge
Amado — Cacau: a volta ao mundo em 80 anos, organizado pelos
acadêmicos Myriam Fraga, Aleilton Fonseca e Evelina Hoisel.
27 — Curso Jorge Amado 2014 — IV Colóquio Internacional
de Literatura Brasileira. 14h30 Sessões de comunicações, 1 e 2.
17hs. Mesa redonda, coordenada pela acadêmica Evelina Hoisel:
Márcia Rios (UNEB), “Os Subterrâneos da liberdade: lembrar para
não esquecer”; Paulo Silva (UNEB), “O romancista como historiador: Jorge amado e a história”; Sayonara Amaral (UNEB),
“Jorge Amado, autor de prefácios”.
28 — Curso Jorge Amado 2014 — IV Colóquio Internacional de
Literatura Brasileira. 14h30 Sessões de comunicações 3 e 4. 17h40.
Mesa redonda, coordenada pelo acadêmico Aleilton Fonseca: Marcos Silva (USP), “Jorge Amado e a crítica da denominação Os subterrâneos da liberdade e Tenda dos milagres”; Gustavo Ribeiro (UFBA),
“Sob o signo da exceção: Jorge Amado, Graciliano Ramos e além”;
Ana Rosa Ramos (UFBA), “Revolução e liberdade”. Lançamento
do livro: Visitações à obra literária de Judith Grossmann, organizado por
Lígia Telles e Evelina Hoisel, editado pela EDUFBA.
29 — Curso Jorge Amado 2014 — IV Colóquio Internacional
de Literatura Brasileira. Encerramento, sob o título “A amizade
é o sal da vida”, dito de Jorge Amado. Depoimento de Paloma
Amado em homenagem póstuma a João Ubaldo Ribeiro. Apresentação musical.
Setembro
02 — 18hs — Lançamento do romance Os ventos gemedores, de
Cyro de Mattos, Editora Letra Selvagem. Palavras iniciais do
presidente Aramis Ribeiro Costa, fala de apresentação do acadêmico vice-presidente João Eurico Matta, fala do editor Nicodemos Sena e palavras finais do autor Cyro de Mattos.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
04 — 20hs — Sessão solene de posse do escritor Ordep Serra na
Cadeira número 27, de que foi o último ocupante o acadêmico
James Amado e que tem como patrono Francisco Rodrigues da
Silva, sendo saudado pelo acadêmico Luís Antonio Cajazeira Ramos. Estiveram presentes à solenidade, compondo a mesa alta
ao lado do presidente da Academia, o secretário de Cultura do
Estado da Bahia, Antônio Albino Canelas Rubim, o ex-governador da Bahia, Waldir Pires, o reitor da Universidade Federal da
Bahia, João Carlos Salles e a presidente do Instituto Geográfico
e Histórico da Bahia, Consuelo Pondé de Sena.
09 — 17hs — Sessão especial de homenagem póstuma ao acadêmico João Ubaldo Ribeiro (1941-2014), sendo orador o acadêmico Joaci Góes. Esteve presente a filha do acadêmico homenageado, Emília Ribeiro. O presidente Aramis Ribeiro Costa,
cumprindo o regimento, declarou vaga a Cadeira número 9, que
tem como patrono Antonio Ferreira França, e teve como último
ocupante João Ubaldo Ribeiro.
11 — 17hs — Sessão ordinária a que compareceram os acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Carlos Ribeiro, Luís
Antonio Cajazeira Ramos, Ordep Serra, Edivaldo M. Boaventura e João Eurico Matta, além de convidados, para as palestras
dos freis Walter Schreiber, OFM, teólogo e guardião do Convento São Francisco do Salvador, e Marcos Almeida, professor
e pesquisador de história da instituição, com o tema: “O acervo
bibliográfico do Convento São Francisco: raridade ameaçada
de extinção”.
18 — 17hs — Sessão especial para inauguração de placa do Auditório Magalhães Netto, em homenagem aos Patronos da Academia de Letras da Bahia, sendo orador o acadêmico Edivaldo M.
Boaventura. A placa foi descerrada pelos acadêmicos presentes:
Aramis Ribeiro Costa (presidente), Roberto Santos, Fernando da
Rocha Peres, Edivaldo M. Boaventura, Carlos Ribeiro, Myriam
Fraga, Luís Antonio Cajazeira Ramos, Glaucia Lemos, Ordep Serra, Florisvaldo Mattos, João Eurico Matta e Evelina Hoisel.
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
22 — 19hs — Solenidade de abertura do V Seminário Internacional Acolhendo as Línguas Africanas — Línguas e Culturas
Negro-africanas e Novas tecnologias, da Universidade Estadual
da Bahia, coordenado pela professora e acadêmica Yeda Pessoa
de Castro.
23 — 17hs — Sessão especial de posse do membro correspondente Alain Saint-Saëns, sendo saudado pelo acadêmico Aleilton
Fonseca.
24 — 20hs — Sessão solene de posse da escritora Urania Maria
Tourinho Peres na Cadeira número 40, de que foi o último ocupante a acadêmica Consuelo Novais Sampaio e que tem como
patrono Francisco Cavalcanti Mangabeira, sendo saudada pelo
acadêmico Aramis Ribeiro Costa. Compuseram a mesa, ao lado
do presidente da Academia, o secretário de Cultura do Estado
da Bahia, Albino Rubim, o reitor da Universidade Federal da
Bahia, João Carlos Salles, o ex-governador da Bahia e acadêmico, Roberto Santos, e o arquiabade do mosteiro de São Bento e
acadêmico, Dom Emanuel d’Able do Amaral.
Outubro
02 — 17hs — Sessão ordinária a que estiveram presentes os
acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Yeda Pessoa de
Castro, João Eurico Matta, Dom Emanuel d’Able do Amaral,
Evelina Hoisel, Cleise Mendes, Ordep Serra, Myriam Fraga,
Paulo Ormindo de Azevedo, Edivaldo M. Boaventura, Fernando
da Rocha Peres e Urania Tourinho Peres, além de convidados,
para a fala dos acadêmicos Urania Tourinho Peres e Fernando
da Rocha Peres em homenagem ao centenário de nascimento do
bibliófilo, membro da Academia Brasileira de Letras e membro
correspondente da Academia de Letras da Bahia, José Mindlin
(1914-2014).
09 — 20hs — Sessão solene de posse do escritor Guilherme Requião Radel na Cadeira número 3, de que foi o último ocupante
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
a acadêmica Anna Amélia Vieira Nascimento e que tem como
patrono Manuel Botelho de Oliveira, sendo saudado pelo acadêmico Joaci Góes. Esteve presente à solenidade, compondo a
mesa alta, o secretário de Cultura do Estado da Bahia, Antônio
Albino Canelas Rubim.
14 — 18hs. — Lançamento dos volumes 5, 6 e 7 da Coleção
Mestres da Literatura Baiana, parceria editorial da Assembleia
Legislativa da Bahia com a Academia de Letras da Bahia: Os
cabras do coronel, O reduto e Remanso da valentia, de Wilson Lins.
Na ocasião, discursaram o presidente da Academia de Letras da
Bahia, Aramis Ribeiro Costa, o presidente da Assembleia Legislativa da Bahia, Marcelo Nilo, e a neta de Wilson Lins, Verônica
Lins de Albuquerque.
16 — 17hs. — Sessão especial em comemoração ao centenário
de nascimento do acadêmico Nelson de Souza Sampaio (19142014), sendo orador o acadêmico Joaci Góes.
21 — Abertura oficial do Curso Castro Alves 2014 — IX Colóquio de Literatura Baiana, evento anual da Academia de Letras
da Bahia, coordenado pelo acadêmico Aleilton Fonseca, integrando o Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários
— ProgEL/UEFS. 14h30 às 16h30 — Sessões de comunicações sobre temas, autores e obras da literatura baiana. 16h30 —
Palavra do presidente da Academia de Letras da Bahia, Aramis
Ribeiro Costa. 16h45 — Homenagem ao centenário de nascimento da poeta baiana Jacinta Passos (1914–2014), com conferência da filha da autora homenageada, professora e ensaísta
Janaína Amado: “Jacinta Passos, cem anos de poesia”. 17h45 —
Mesa Redonda coordenada pelo poeta e acadêmico Luís Antonio Cajazeira Ramos, intitulada “A poesia na Bahia: experiências,
vivências e escritas”, com depoimento dos poetas e acadêmicos
Myriam Fraga e José Carlos Capinan.
22 — Curso Castro Alves 2014 — IX Colóquio de Literatura
Baiana. 14h30 às 16h30 — Sessões de comunicações sobre temas, autores e obras da literatura baiana. 16h30 — Mesa redonda
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
coordenada pela professora e ensaísta Rosana Ribeiro Patrício, intitulada “O conto na Bahia: experiências, vivências e escritas”,
com depoimento dos escritores e acadêmicos Gláucia Lemos e
Ordep Serra.
23 — Curso Castro Alves 2014 — IX Colóquio de Literatura Baiana. 14h30 às 16h30 — Sessões de Comunicações sobre
temas, autores e obras da literatura baiana. 16h30 — Mesa redonda coordenada pela professora Antônia Torreão Herrera,
intitulada “O romance na Bahia: experiências, vivências e escritas”, com depoimentos do escritor e acadêmico Carlos Ribeiro
e da escritora Adelice Souza. 17h30 — Conferência de encerramento do curso, presidida pelo acadêmico Aleilton Fonseca, da
professora, ensaísta e acadêmica Evelina de Carvalho Sá Hoisel,
com o tema “Castro Alves: entrelaçando cenas de amor”. 18h00
— Apresentação musical: lançamento do CD Tupynanjazz, com
Sérgio de Ramos (voz e violão) e Victtor Marx Carinhanha (percussão). Palavras finais do coordenador do curso, acadêmico
Aleilton Fonseca, e do presidente da Academia de Letras da
Bahia, Aramis Ribeiro Costa.
28 — 18hs — Entrega do Prêmio Nacional Academia de Letras da Bahia de Literatura — Poesia 2013, patrocinado pela
Petrobras e pela Braskem, com troféu, prêmio em dinheiro no
valor de vinte mil reais, e obra editada pela Editora 7Letras, do
Rio de Janeiro, à poeta Clarissa Moreira de Macedo, seguida do
lançamento do livro Na pata do cavalo há sete abismos, ganhador
do prêmio. Na ocasião, discursaram o presidente da Academia
de Letras da Bahia, Aramis Ribeiro Costa, a gerente de Atendimento e Articulação Regional/Nordeste, Aurecy Costa Leite,
representando a patrocinadora Petrobras, a gerente de Relações
Institucionais/Desenvolvimento Sustentável, Flávia Veiga, representando a patrocinadora Braskem, e a autora premiada, Clarissa Macedo.
30 — 17hs — Sessão ordinária a que compareceram os acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Samuel Celestino,
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Evelina Hoisel, Gláucia Lemos, João Carlos Teixeira Gomes,
Edivaldo M. Boaventura, Ruy Espinheira Filho, Guilherme Radel, Cleise Mendes, Luís Antonio Cajazeira Ramos, Roberto
Santos, Paulo Ormindo de Azevedo, Carlos Ribeiro, Joaci Góes,
Aleilton Fonseca, Dom Emanuel d’Able do Amaral, Paulo Costa Lima, Florisvaldo Mattos, Ordep Serra, João Eurico Matta,
Armando Avena, Geraldo Machado, Myriam Fraga, Urania Tourinho Peres e Fernando da Rocha Peres, para indicação de candidatos à vaga na Cadeira número 9, de que foi o último ocupante
o acadêmico João Ubaldo Ribeiro, tendo sido eleito, por obter
25 votos, Antônio Torres. O eleito, que mora no Rio de Janeiro, foi imediatamente comunicado de sua eleição, pelo telefone,
pelo presidente Aramis Ribeiro Costa, havendo, também pelo
telefone, no sistema de viva-voz, para ser ouvido pelos demais
acadêmicos, declarado aceitar com muito gosto a eleição.
Novembro
06 — 20hs. — Sessão solene de posse do escritor João Carlos
Salles na Cadeira número 32, de que foi o último ocupante o
acadêmico Gerson Pereira dos Santos e que tem como patrono
André Pinto Rebouças, sendo saudado pelo acadêmico Paulo
Costa Lima.
11 — 18hs. — Lançamento do volume 8 da Coleção Mestres da
Literatura Baiana, parceira editorial da Assembleia Legislativa da
Bahia com a Academia de Letras da Bahia: Histórias da gente baiana, de Vasconcelos Maia. Na ocasião, discursaram o presidente
da Academia de Letras da Bahia, Aramis Ribeiro Costa, o assessor para assuntos de cultura da Assembleia Legislativa da Bahia,
Délio Pinheiro, representando o presidente da Assembleia, Marcelo Nilo, e o filho de Vasconcelos Maia, Cláudio Maia.
13 — 17hs. — Sessão ordinária a que compareceram os acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), João Eurico Matta,
Gláucia Lemos, Evelina Hoisel, Luís Antonio Cajazeira Ramos,
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Florisvaldo Mattos, Paulo Ormindo de Azevedo, e mais os senhores José Ailton de Lira, diretor de Relações Institucionais
Oi Bahia/Sergipe, Maria Auxiliadora Caino, analista de Relações
Institucionais Oi Bahia, Luciano Simões de Souza, diretor do
Núcleo de Gestão da CIPÓ — Comunicação Interativa, Isabel
Gouvêa, coordenadora da Oi Kabum! Escola de Arte e Tecnologia de Salvador / Cipó-Comunicação Interativa, e Vagner Brás,
fotógrafo do Núcleo de Comunicação da Oi Kabum! Salvador,
além de convidados, com a seguinte pauta: 1) Exposição sobre
o programa Oi Futuro, seu uso da antiga sede da Academia de
Letras da Bahia no Terreiro de Jesus, da qual é inquilino, e seus
projetos culturais. 2) Fala dos acadêmicos sobre seus arquivos
pessoais. 3) O arquivo da Academia de Letras da Bahia e os arquivos pessoais dos acadêmicos.
18 — 17hs. — Sessão especial compreendendo a seguinte solenidade: 1) Inauguração de placa, no Salão Nobre Magalhães
Neto, em homenagem à Academia Brasílica dos Esquecidos,
primeira academia de letras do Brasil, fundada na Cidade do Salvador em 1724, havendo discursado o presidente da Academia
de Letras da Bahia, Aramis Ribeiro Costa, e descerrado a placa o
secretário de Cultura do Estado da Bahia, Antonio Albino Canelas Rubim. 2) Prestação de contas da gestão do secretário de
Cultura do Estado da Bahia, Antonio Albino Canelas Rubim.
20 — 17hs. — Sessão ordinária a que compareceram os acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Evelina Hoisel, Urania
Tourinho Peres, Myriam Fraga, Luís Antonio Cajazeira Ramos,
Carlos Ribeiro e Fernando da Rocha Peres, além de convidados, para palestra do acadêmico Fernando da Rocha Peres com
o tema “Uma Brasiliana na Bahia”, e fala da acadêmica Urania
Tourinho Peres, com o tema “Palavras Escritas”.
27 — 17hs. — Assembleia Geral estatutária, à qual compareceram os acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente), Paulo Ormindo de Azevedo, Guilherme Radel, Geraldo Machado, Carlos
Ribeiro, Cleise Mendes, Joaci Góes, Paulo Costa Lima, Myriam
►► 481
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Fraga, Gláucia Lemos, João Eurico Matta, Ruy Espinheira Filho,
Aleilton Fonseca, Samuel Celestino, Francisco Senna, Roberto
Santos, Ordep Serra, Florisvaldo Mattos, Evelina Hoisel, e D.
Emanuel d’Able do Amaral, para eleição de diretoria para o biênio 2015/2017, sendo eleita por unanimidade a seguinte chapa: presidente, Evelina de Carvalho Sá Hoisel; vice-presidente,
Myriam Fraga; 1º secretário, Carlos Ribeiro; 2º secretário, Ordep
Serra; 1º tesoureiro, D. Emanuel D’Able do Amaral; 2º tesoureiro, Gláucia Lemos; diretor da Revista, Fernando da Rocha Peres;
diretor da Biblioteca, Edivaldo M. Boaventura; diretor do Arquivo, Paulo Ormindo de Azevedo; diretor de Informática, Paulo
Costa Lima; Conselho Editorial: Aramis Ribeiro Costa, Aleilton
Fonseca, Florisvaldo Mattos. Conselho de Contas e Patrimônio:
João Eurico Matta, Geraldo Machado, Joaci Góes.
Dezembro
11 — 17hs. — Reunião de diretoria — encontro com a diretoria
eleita para o biênio 2015-2017, para informações e esclarecimentos sobre a ALB. Estiveram presentes os acadêmicos Aramis Ribeiro Costa (presidente atual e conselheiro editorial eleito), Evelina Hoisel (primeira secretária atual e presidente eleita), João
Eurico Matta (vice-presidente atual e conselheiro de contas e
patrimônio eleito), Myriam Fraga (conselheira editorial atual e
vice-presidente eleita), Gláucia Lemos (segunda secretária atual e segunda tesoureira eleita), D. Emanuel d’Able do Amaral
(diretor da Biblioteca atual e primeiro tesoureiro eleito), Carlos
Ribeiro (diretor de Informática atual e primeiro secretário eleito), Aleilton Fonseca (conselheiro de contas e patrimônio atual e
conselheiro editorial eleito) e Geraldo Machado (conselheiro de
contas e patrimônio eleito).
16 — 18hs. — Lançamento do volume 9 da Coleção Mestres da
Literatura Baiana, parceria editorial da Assembleia Legislativa da
Bahia com a Academia de Letras da Bahia: O Telefone dos mortos,
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
de João Carlos Teixeira Gomes. Na ocasião discursaram o presidente da Academia de Letras da Bahia, Aramis Ribeiro Costa,
o assessor para assuntos de cultura da Assembleia Legislativa do
Estado da Bahia, Délio Pinheiro, e o autor João Carlos Teixeira
Gomes.
18 — 18hs. — Entrega do Prêmio Conjunto de Obra — Academia de Letras da Bahia/Eletrogóes — 2014 ao historiador João
José Reis. Na ocasião discursaram o presidente Aramis Ribeiro
Costa, o acadêmico Fernando da Rocha Peres e o autor homenageado, agradecendo a homenagem e doando sua obra em livros à Biblioteca da Academia de Letras da Bahia. O presidente
registrou doação em louça antiga e preciosa à Academia, pela
desembargadora Adélia Marelin. Em seguida, deu por inaugurada placa no Salão Nobre da ALB, Auditório Magalhães Netto,
em homenagem à Academia Brasílica dos Renascidos, segunda
academia de letras da Bahia, fundada na Cidade do Salvador em
6 de junho de 1759, quarta e última placa, a compor, com a dos
Fundadores da Academia de Letras da Bahia, a dos Patronos da
Academia de Letras da Bahia, e a em homenagem à Academia
Brasílica dos Esquecidos, o tributo da instituição à sua própria
história e à história das academias de letras na Bahia e no Brasil. Continuando, o presidente relatou, em breves palavras, as
atividades da Academia de Letras da Bahia durante o ano de
2014, agradecendo, ao final, a todos, acadêmicos, funcionários
e amigos da Academia, o apoio e a confiança recebidos em seus
dois mandatos à frente da ALB, pedindo a todos que esse apoio
e essa confiança sejam transferidos, em dobro, a partir de março,
para a próxima presidente, acadêmica Evelina Hoisel. Seguiu-se
a confraternização de Natal e de final de ano entre acadêmicos,
funcionários e amigos da Academia.
►► 483
Quadro social da ALB1
Cadeira 1
Patrono: Frei Vicente de Salvador
Fundador: José de Oliveira Campos
2º Titular: Júlio Afrânio Peixoto (Afrânio Peixoto), fundador da
Cadeira 25, por transferência consentida pela Academia.
3º Titular: José Wanderley de Araújo Pinho
Titular atual:
Luís Henrique Dias Tavares
Posse em 14.06.1968
Cadeira 2
Patrono: Gregório de Mattos e Guerra (Gregório de Mattos)
Fundador: Aloysio Lopes Pereira de Carvalho (Lulu Parola)
2º Titular: Luis Viana Filho
Titular atual:
Paulo Ormindo David de Azevedo
(Paulo Ormindo de Azevedo)
Posse em 20.06.1991
Cadeira 3
Patrono: Manuel Botelho de Oliveira
Fundador: Arthur Gonçalves de Salles (Arthur de Salles)
2º Titular: Eloywaldo Chagas de Oliveira
3º Titular: Anna Amélia Vieira Nascimento
N. do E.: O quadro dos titulares da Academia de Letras da Bahia
foi originalmente elaborado pelo acadêmico Renato Berbert de Castro
(1924 – 1999).
1
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Titular atual:
Guilherme Requião Radel
(Guilherme Radel)
Posse em 09.10.2014
Cadeira 4
Patrono: Sebastião da Rocha Pita
Fundador: Braz Hermenegildo do Amaral (Braz do Amaral)
2º Titular: João da Costa Pinto Dantas Júnior
3º Titular: Jayme de Sá Menezes
Titular atual:
Geraldo Magalhães Machado
(Geraldo Machado)
Posse em 31.10.2003
Cadeira 5
Patrono: Luís Antônio de Oliveira Mendes
Fundador: Carlos Chiacchio
2º Titular: Antônio Luís Cavalcanti Albuquerque de Barros Barreto (Barros Barreto)
3º Titular: Carlos Benjamin de Viveiros
4º Titular: José Silveira
5º Titular: Guido José da Costa Guerra (Guido Guerra)
Titular atual:
Carlos Jesus Ribeiro
(Carlos Ribeiro)
Posse em 31.05.2007
Cadeira 6
Patrono: Alexandre Rodrigues Ferreira
Fundador: Manoel Augusto Pirajá da Silva (Pirajá da Silva)
2º Titular: Thales Olímpio Góes de Azevedo (Thales de Azevedo)
3º Titular: Lucas Moreira Neves (Dom Lucas Cardeal Moreira
Neves)
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Titular atual:
Cleise Furtado Mendes
(Cleise Mendes)
Posse em 15.04.2004.
Cadeira 7
Patrono: José da Silva Lisboa, Visconde de Cayru
Fundador: Ernesto Carneiro Ribeiro (Carneiro Ribeiro)
2º Titular: Francisco Borges de Barros
3º Titular: Aloísio de Carvalho Filho. Eleito para a Cadeira 26,
permutou esta, obtendo acordo da Academia, pela Cadeira 7,
com monsenhor Francisco de Paiva Marques, quando ambos
ainda não empossados.
4º Titular: Nelson de Souza Sampaio (Nelson Sampaio)
5º Titular: Pedro Moacir Maia
Titular atual:
Joaci Fonseca de Góes
(Joaci Góes)
Posse em 24.09.2009
Cadeira 8
Patrono: Cipriano José Barata de Almeida (Cipriano Barata)
Fundador: Luís Anselmo da Fonseca
2º Titular: Francisco Peixoto de Magalhães Netto (Magalhães
Netto)
3º Titular: Adriano de Azevedo Pondé (Adriano Pondé)
4º Titular: Ary Guimarães
Titular atual:
Paulo Costa Lima
Posse em 17.12.2009
Cadeira 9
Patrono: Antônio Ferreira França
Fundador: José Alfredo de Campos França
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
2º Titular: Edgard Ribeiro Sanches
3º Titular: Antônio Luís Machado Neto (Machado Neto)
4º Titular: Cláudio de Andrade Veiga (Cláudio Veiga)
5º Titular: João Ubaldo Osório Pimentel Ribeiro (João Ubaldo
Ribeiro)
Titular atual:
Antonio Torres (ainda não empossado).
Eleito em 30.10.2014
Cadeira 10
Patrono: José Lino dos Santos Coutinho
Fundador: Antônio Moniz Sodré de Aragão
2º Titular: Altamirando Alves da Silva Requião (Altamirando Requião)
Titular atual:
Gaspar Sadoc da Natividade
(Monsenhor Gaspar Sadoc)
Posse em 16.10.1990
Cadeira 11
Patrono: Francisco Gê Acaiaba de Montezuma, Visconde de Jequitinhonha
Fundador: Antonio Ferrão Moniz de Aragão (Antonio Moniz)
2º Titular: Otávio Torres
3º Titular: Oldegar Franco Vieira
Titular atual:
Yeda Antonita Pessoa de Castro
(Yeda Pessoa de Castro)
Posse em 10.04.2008
Cadeira 12
Patrono: Miguel Calmon du Pin e Almeida, Marquês de Abrantes
Fundador: Miguel Calmon du Pin e Almeida
2º Titular: Alberto Francisco de Assis (Alberto de Assis)
3º Titular: Affonso Ruy de Sousa (Affonso Ruy)
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
4º Titular: Itazil Benício dos Santos
Titular atual:
Aramis de Almada Ribeiro Costa
(Aramis Ribeiro Costa)
Posse em 25.11.1999
Cadeira 13
Patrono: Francisco Moniz Barreto
Fundador: Egas Moniz Barreto de Aragão (Pethion de Villar)
2º Titular: Afonso de Castro Rebelo Filho
3º Titular: Walter Raulino da Silveira (Walter da Silveira)
4º Titular: Odorico Montenegro Tavares da Silva (Odorico Tavares)
5º Titular: Luís Fernando Seixas de Macedo Costa (Luís Fernando Macedo Costa)
Titular atual:
Myriam de Castro Lima Fraga
(Myriam Fraga)
Posse em 30.07.1985
Cadeira 14
Patrono: Francisco Gonçalves Martins, Visconde de São Lourenço
Fundador: Bernardino José de Sousa (Bernardino de Sousa)
2º Titular: Alberto Alves Silva (Alberto Silva)
3º Titular: Edgard Rego Santos (Edgard Santos)
4º Titular: Raul Batista de Almeida
5º Titular: Carlos Vasconcelos Maia (Vasconcelos Maia)
6º Titular. Epaminondas Costalima
Titular atual:
Gláucia Maria de Lemos Leal
(Gláucia Lemos)
Posse em 21.10.2010
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Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Cadeira 15
Patrono: Ângelo Moniz da Silva Ferraz,, Barão de Uruguaiana
Fundador: Otaviano Moniz Barreto
2º Titular: Hélio Gomes Simões (Hélio Simões)
Titular atual:
João Carlos Oliveira Teixeira Gomes Fonseca
(João Carlos Teixeira Gomes)
Posse em 08.06.1989
Cadeira 16
Patrono: José Tomáz Nabuco de Araújo
Fundador: Eduardo Godinho Espínola
2º Titular: Orlando Gomes dos Santos (Orlando Gomes)
Titular atual:
João Eurico Matta
Posse em 10.05.1989
Cadeira 17
Patrono: Antônio Ferrão Moniz de Aragão
Fundador: Gonçalo Moniz Sodré de Aragão (Gonçalo Moniz)
2º Titular: Leopoldo Braga
3º Titular: Carlos Eduardo da Rocha
Titular atual:
Ruy Alberto d’Assis Espinheira Filho
(Ruy Espinheira Filho)
Posse em 15.09.2000
Cadeira 18
Patrono: Zacarias de Góes e Vasconcelos
Fundador: José Joaquim Seabra (J.J. Seabra)
2º Titular: Augusto Alexandre Machado
3º Titular: Avelar Brandão Vilela (Dom Avelar Brandão Vilela)
Titular atual:
Waldir Freitas Oliveira
490 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Posse em 27.10.1987
Cadeira 19
Patrono: João Maurício Vanderley, Barão de Cotegipe
Fundador: Severino dos Santos Vieira (Severino Vieira)
2º Titular: Arlindo Coelho Fragoso (Arlindo Fragoso). Fundador da Cadeira 41, criada em caráter provisório, transferiu-se
para esta, após a morte de Severino Vieira, ocorrida a 27 de setembro de 1917, a fim de que fosse extinta a temporária.
3º Titular: Deraldo Dias de Morais
4º Titular: Guilherme Antônio Freire de Andrade Filho
5º Titular: Godofredo Rebelo de Figueiredo Filho (Godofredo
Filho)
Titular atual:
Cid José Teixeira Cavalcante
(Cid Teixeira)
Posse em 25.03.1993
Cadeira 20
Patrono: Augusto Teixeira de Freitas (Teixeira de Freitas)
Fundador: Carlos Gonçalves Fernandes Ribeiro (Carlos Ribeiro)
2º Titular: Epaminondas Berbert de Castro
3º Titular: Lafayette Ferreira Spínola (Lafayette Spínola)
4º Titular: Ivan Americano da Costa
5º Titular: Joaquim Alves da Cruz Rios (Cruz Rios)
Titular atual:
Aleilton Santana da Fonseca
(Aleilton Fonseca)
Posse em 15.04.2005
Cadeira 21
Patrono: Francisco Bonifácio de Abreu, Barão da Vila da Barra
Fundador: Filinto Justiniano Ferreira Barros
2º Titular: Estácio Luís Valente de Lima (Estácio de Lima)
►► 491
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
3º Titular: Jorge Amado
4º titular: Zélia Gattai Amado (Zélia Gattai)
Titular atual:
Antonio Brasileiro Borges
(Antônio Brasileiro)
Posse em 10.06.2010
Cadeira 22
Patrono: José Maria da Silva Paranhos, Visconde do Rio Branco
Fundador: Ruy Barbosa de Oliveira (Ruy Barbosa)
2º Titular: Ernesto Carneiro Ribeiro Filho
3º Titular: Aloísio Henrique de Barros Porto
Titular atual:
Clóvis Álvares Lima
(Clóvis Lima)
Posse em 08.05.1980
Cadeira 23
Patrono: Antônio Januário de Faria
Fundador: João Américo Garcez Fróes
2º Titular: Jorge Calmon Moniz de Bittencourt (Jorge Calmon)
Titular atual:
Samuel Celestino Silva Filho
(Samuel Celestino)
Posse em 21.08.2008
Cadeira 24
Patrono: Demétrio Ciríaco Tourinho (Demétrio Tourinho)
Fundador: Luís Pinto de Carvalho (Pinto de Carvalho)
2º Titular: Luís Menezes Monteiro da Costa (Luís Monteiro)
3º Titular: Renato Berbert de Castro
Titular atual:
Francisco Soares Senna
(Francisco Senna)
492 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Posse em 27.04.2000
Cadeira 25
Patrono: Pedro Eunápio da Silva Deiró (Eunápio Deiró)
Fundador: Júlio Afrânio Peixoto (Afrânio Peixoto). Com o consentimento da Academia, transferiu-se para a Cadeira 1 após a
morte de seu fundador, José de Oliveira Campos.
2º Titular: Francisco Hermano Santana (Hermano Santana)
3º Titular: Raimundo de Sousa Brito (Raimundo Brito)
4º Titular: Luís Augusto Fraga Navarro de Brito (Navarro de
Brito)
Titular atual:
Fernando da Rocha Peres
Posse em 16.06.1988
Cadeira 26
Patrono: Antônio de Macedo Costa (Dom Antônio de Macedo Costa)
Fundador: José Cupertino de Lacerda (Padre José Cupertino de
Lacerda)
2º Titular: Alberto Moreira Rabelo (Alberto Rabelo), único
membro da Academia que faleceu antes de tomar posse, sendo
legitimado na Cadeira postumamente, por decisão da diretoria.
3º Titular: Monsenhor Francisco de Paiva Marques (Monsenhor
Paiva Marques)
Eleito para a Cadeira 7, permutou esta pela Cadeira 26, com Aloísio de Carvalho Filho, quando ambos ainda não empossados.
4º titular: César Augusto de Araújo (César de Araújo)
Titular atual:
Roberto Figueira Santos
(Roberto Santos)
Posse em 10.08.1971
Cadeira 27
Patrono: Francisco Rodrigues da Silva
►► 493
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Fundador: Frederico de Castro Rebelo (Frederico Rabelo)
2º Titular: Antônio Gonçalves Vianna Júnior (Antônio Vianna)
3º Titular: Jayme Tourinho Junqueira Ayres (Jayme Junqueira
Ayres)
4º Titular: Antônio Loureiro de Souza
5º: Titular: James Amado
Titular atual:
Ordep José Trindade Serra
(Ordep Serra)
Posse em 04.09.2014
Cadeira 28
Patrono: Luís José Junqueira Freire (Junqueira Freire)
Fundador: Francisco Torquato Bahia da Silva Araújo
2º Titular: Homero Pires de Oliveira e Silva
3º Titular: José Calasans Brandão da Silva (José Calasans)
Titular atual:
Consuelo Pondé de Sena
Posse em 14.03.2002
Cadeira 29
Patrono: Agrário de Souza Menezes (Agrário Menezes)
Fundador: Antônio Alexandre Borges dos Reis (Borges dos
Reis)
2º Titular: Manços Chastinet Contreiras (Manços Chastinet)
3º Titular: Colombo Moreira Spínola (Colombo Spínola)
4º Titular: Jorge Faria Góes
Titular atual:
Hélio Pólvora de Almeida
(Hélio Pólvora)
Posse em 08.03.1994
Cadeira 30
Patrono: Joaquim Monteiro Caminhoá
494 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Fundador: Antônio do Prado Valadares (Prado Valadares). Permutou a cadeira com Roberto José Correia (Roberto Correia),
titular da Cadeira 38.
2º Titular: Roberto José Correia (Roberto Correia)
3º Titular: Alfredo Vieira Pimentel
4º Titular: Nestor Duarte Guimarães (Nestor Duarte)
5º Titular: Josaphat Ramos Marinho (Josaphat Marinho)
Titular atual:
Paulo Roberto Bastos Furtado
(Paulo Furtado)
Posse em 24.04.2003
Cadeira 31
Patrono: Belarmino Barreto
Fundador: Ernesto Simões da Silva Freitas Filho (Simões Filho)
2º Titular: José Luís de Carvalho Filho (Carvalho Filho)
Titular atual:
Florisvaldo Moreira de Mattos
(Florisvaldo Mattos)
Posse em 23.11.1995
Cadeira 32
Patrono: André Pinto Rebouças (André Rebouças)
Fundador: Teodoro Fernandes Sampaio (Theodoro Sampaio)
2º Titular: Isaías Alves de Almeida (Isaías Alves)
3º Titular: Zitelmann José Santos de Oliva (Zitelmann de Oliva)
4º Titular: Gerson Pereira dos Santos
Titular atual:
João Carlos Salles Pires da Silva
(João Carlos Salles)
Posse em 06.11.2014
Cadeira 33
Patrono: Antônio Frederico de Castro Alves (Castro Alves)
►► 495
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Fundador: Francisco Xavier Ferreira Marques (Xavier Marques)
2º Titular: Heitor Praguer Fróes. Tomou posse em 15 de novembro de 1931, na Cadeira 34, transferindo-se para esta, após a
morte de Xavier Marques.
3º Titular: Waldemar Magalhães Mattos (Waldemar Mattos)
4º Titular: Ubiratan Castro de Araújo (Ubiratan Castro)
Titular atual:
Maria Stella de Azevedo Santos
(Mãe Stella de Oxossi)
Posse em 12.09.2013
Cadeira 34
Patrono: Domingos Guedes Cabral
Fundador: José Virgílio da Silva Lemos (Virgílio de Lemos)
2º Titular: Heitor Pragues Fróes. Transferiu-se para a Cadeira
33, depois do desaparecimento de Xavier Marques
3º Titular: Adalício Coelho Nogueira (Adalício Nogueira)
4º Titular: Walfrido Moraes de Lima (Walfrido Moraes)
Titular atual:
Evelina de Carvalho Sá Hoisel
(Evelina Hoisel)
Posse em 27.10.2005
Cadeira 35
Patrono: Manoel Vitorino Pereira (Manoel Vitorino)
Fundador: Antônio Pacífico Pereira
2º Titular: Afonso Costa
3º Titular: Rui Santos
4º Titular. Rubem Rodrigues Nogueira (Rubem Nogueira)
5º Titular: João da Costa Falcão (João Falcão)
Titular atual:
Luís Antonio Cajazeira Ramos
Posse em 02.08.2012
496 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Cadeira 36
Patrono: Joaquim Jerônimo Fernandes da Cunha (Fernandes da Cunha)
Fundador: Afonso de Castro Rebelo
2º Titular: Monsenhor Manuel de Aquino Barbosa (Padre Manuel Barbosa)
3º Titular: Hildegardes Cantolino Vianna (Hildegardes Vianna)
Titular atual:
José Carlos Capinan
Posse em 17.08.2006
Cadeira 37
Patrono: João Batista de Castro Rebelo Júnior
Fundador: Almachio Diniz Gonçalves (Almachio Diniz)
2º Titular: Edith Mendes da Gama e Abreu
3º Titular. Antonio Carlos Peixoto de Magalhães (Antônio Carlos Magalhães)
Titular atual:
Emanuel d’Able do Amaral
(Dom Emanuel d’Able do Amaral)
Posse em 28.05.2009
Cadeira 38
Patrono: Alfredo Tomé de Brito (Alfredo Brito)
Fundador: Oscar Freire de Carvalho
2º Titular: Roberto José Correia (Roberto Correia). Permutou
sua cadeira com Prado Valadares, fundador da Cadeira 30.
3º Titular: Antônio do Prado Valadares (Prado Valadares)
4º Titular: Cristiano Alberto Müller (Cristiano Müller)
5º Titular: Wilson Mascarenhas Lins de Albuquerque (Wilson
Lins)
Titular atual:
Armando Avena Filho
(Armando Avena)
►► 497
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Posse em 28.04.2005
Cadeira 39
Patrono: Francisco de Castro
Fundador: Clementino Rocha Fraga Júnior (Clementino Fraga)
Titular atual:
Edivaldo Machado Boaventura
(Edivaldo M. Boaventura)
Posse em 06.08.1971
Cadeira 40
Patrono: Francisco Cavalcanti Mangabeira (Francisco Mangabeira)
Fundador: Octavio Cavalcanti Mangabeira (Octavio Mangabeira)
2º Titular: Manoel Pinto de Aguiar
3º Titular: Consuelo Novais Sampaio
Titular atual:
Urania Maria Tourinho Peres
(Urania Tourinho Peres)
Posse em 25.09.2014
Obs.:
Cadeira 41
Criada em caráter provisório para que Arlindo Fragoso, idealizador e organizador da Academia, não lhe ficasse de fora, devendo ser extinta com o falecimento de qualquer um dos 41
fundadores. Patrono: Manuel Alves Branco, Visconde de Caravelas (2º). Fundador Arlindo Coelho Fragoso (Arlindo Fragoso).
Com a morte de Severino Vieira, em 27 de setembro de 1917,
para a sua Cadeira, de número 19, foi transferido Arlindo Fragoso, e supressa a cadeira provisória.
498 ◄◄
Endereços dos acadêmicos
Aleilton Fonseca
Rua Rubem Berta, 267-402 — Pituba
41820-040 — Salvador/BA
( (71) 3345-1519 / 8717 7128
[email protected]
Antonio Brasileiro
Rua Alto do Paraná, 300 — Bairro Sim
44042-000 — Feira de Santana/BA
( (75) 3625-8512
[email protected]
Antonio Torres
Rua Estrada da União Industrial, 12600
Condomínio Mirantes do Sol Nascente, C- 37,
25750-226, Itaipava - Rio de Janeiro
[email protected]
Aramis Ribeiro Costa
Rua Piauí, 439, Cond. Vela Branca, ap. 1103
Pituba, 41830-280, Salvador - Bahia
( 3240 4969 / 9984 1165
[email protected]
►► 499
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Armando Avena
Rua Waldemar Falcão, 1965
Ed. Top Hill, ap. 702 Norte
40295-010, Salvador - Bahia
( 3272-2960 / 9994-3000
[email protected]
Carlos Ribeiro
Rua do Timbó, 680
Ed. Villa Etruska, ap. 503
Caminho das Árvores
41820-660, Salvador – Bahia
( 3011-7019/ 9153- 4908
[email protected]
Cid Teixeira
Rua das Violetas, 85 — Pituba
41810-080 — Salvador/BA
( (71) 3452-7402
[email protected]
Cleise Mendes
Rua Marechal Floriano, 357
Ed. Casa Grande, ap. 302, Canela
40110-010, Salvador - Bahia
( 3337-0312 / 9198-6165
[email protected]
Clóvis Lima
Avenida Sete de Setembro, 750
Ed. Santo Amaro, ap. 404, Mercês
40060-001, Salvador, Bahia
( 3329 4178
500 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Consuelo Pondé de Sena
Avenida. Princesa Leopoldina, 288
Ed. Princesa Leopoldina ap. 301,
Graça, 40150-080, Salvador - Bahia
( 3492-6365 / 8777-5415
[email protected]
Dom Emanuel d’Able do Amaral
Largo São Bento, 01 Centro
41205-220, Salvador - Bahia
( 2106-5272 /8151-1053
[email protected]
Edivaldo M. Boaventura
Rua Dr. José Carlos, 99, Acupe de Brotas
Cond. Parque das Mangueiras, ap. 801,
40290-040, Salvador - Bahia
( 3276 1242 / 8818 6199
[email protected]
Evelina Hoisel
Rua Mons. Gaspar Sadoc, 48, Jardim de Alá
41750-200, Salvador -Bahia
( 3343 5789 / 9968 7625
[email protected]
Fernando da Rocha Peres
Avenida Sete, 2901, Ladeira da Barra,
Cond. Solar das Mangueiras, Ala Norte, ap. 202,
40130-000 Salvador-Bahia
( 3336 3670 / 9956 7880
[email protected]
►► 501
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Florisvaldo Mattos
Rua Sócrates Guanaes Gomes, 107
Ed. Paço Real, ap. 801,
Cidade Jardim, 40296-720, Salvador - Bahia
( 3353 9785 / 9986-2848
[email protected]
Francisco Senna
Rua Prof. Milton Oliveira, 73
Ed. Palazzo Anacapri, ap. 202
Barra, 40.140-100, Salvador - Bahia
( 9967-0685
[email protected]
Geraldo Machado
Rua Edith Mendes da Gama e Abreu, 300
Ed. Port Saint James, ap.1403,
41815-010 Itaigara, Salvador - Bahia
( 3353-5350 / 9976-7033
[email protected]
Gláucia Lemos
Rua Ceará, 853, ap. 203, Pituba
4l830-450, Salvador-Bahia
( 3240-3688/8199-1803
[email protected]
Guilherme Radel
Av. Euclides da Cunha, 12
Ed. Carlos Crivelli, ap. 102, Graça
40150121 Salvador - Bahia
502 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Hélio Pólvora
Avenida Sete de Setembro, 1862
Ed. Portão do Mar, ap. 1202,
Corredor da Vitória, 40080-004, Salvador - Bahia
( 3337-0169
[email protected]
Joaci Góes
Rua Alceu Amoroso Lima, 172
Ed. Office & Pool, 8º andar
41.820-770, Caminho das Arvores, Salvador - Bahia
( 3444-2308 / 8814-3631
[email protected]
João Carlos Salles
Rua Pe. Camilo Torrend, 145, ap. 202
Ed. Barra dos Coqueiros, Federação
40210-650, Salvador - Bahia
( 3247-6119
[email protected]
João Carlos Teixeira Gomes
Rua Espírito Santo, 15
Ed. Espírito Santo ap. 802, Pituba
41830-120, Salvador- Bahia
( 3240-1712
[email protected]
João Eurico Matta
Rua Afonso Celso, nº 301
Ed. Concórdia, ap. 302, Barra
40.140-080 Salvador - Bahia
( 3247-0869/9143-6908
[email protected]
►► 503
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
José Carlos Capinan
Rua Tamoios, 96, Rio Vermelho
41940-040, Salvador - Bahia
( 3345-2080 / 9955-1410
[email protected]
Luís Antonio Cajazeira Ramos
Rua Érico Veríssimo, 34
Ed. Itapitanga, ap. 401, Itaigara
41815-340, Salvador - Bahia
( 3345-6969/8861-1515
[email protected]
Luís Henrique Dias Tavares
Rua do Ébano, 159 ap. 802,
Ed. Henri Matisse, Caminho das Árvores
41820-370, Salvador - Bahia
( 3245-3524
[email protected]
Mãe Stella de Oxóssi
Rua Direta de São Gonçalo do Retiro, 557
São Gonçalo do Retiro, 41185-055, Salvador - Bahia
( 3247-2967
[email protected]
Monsenhor Gaspar Sadoc
Rua Crispo de Aguiar, 10
Ed. Hermelinda, ap. 102, Vitória
40080-310, Salvador - Bahia
( 3336-0346
504 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Myriam Fraga
Rua Waldemar Falcão, 761
Ed. Parque das Árvores, ap. 301, Brotas
40295-001, Salvador - Bahia
( 3356-4611 / 8151-1413
fundaçã[email protected]
Ordep Serra
Rua Barão de Itapoan, 142
Ed. Barravento, ap. 202, Barra
40140060, Salvador – Bahia
( 8869-1531
Paulo Costa Lima
Rua Sabino Silva, 282
Ed. Saint Mathieu, ap. 401, Jardim Apipema
40155-250, Salvador – Bahia
( 8832-1545 /3235-5676
[email protected]
Paulo Furtado
Av. Orlando Gomes, Condomínio Parque Costa Verde
Quadra H, Lote 3, 41650-120, Salvador - Bahia
( 3367-9481 / 9158-3414
[email protected]
Paulo Ormindo de Azevedo
Rua João da Silva Campos, 1132, Itaigara
41840-060 Salvador - Bahia
( 3358-7571 / 8816 5262
[email protected]
►► 505
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Roberto Santos
Rua Basílio Catalá de Castro, Quinta do Candeal
Quadra B, lote 19 - 40280-550, Salvador - Bahia
( 3276 5759 / 9115 9532
[email protected]
Ruy Espinheira Filho
Caixa Postal 10333
41520-970, Salvador - Bahia
( 3287 2225/9973-8711
[email protected]
Samuel Celestino
Rua do Ébano, 159
Ed. Henri Matisse, ap.1301, Caminho das Árvores
41820-370, Salvador - Bahia
( 3341-4485 / 3359-7741
[email protected]
Urania Tourinho Peres
Avenida Sete, 2901, Ladeira da Barra,
Cond. Solar das Mangueiras, Ala Norte, ap. 202,
40130-000 Salvador - Bahia
( 3336 3670 / 9956 7880
[email protected]
Waldir Freitas Oliveira
Rua Tiradentes, 52, Abrantes
42840-000, Camaçari - Bahia
( 3623 1434 / 9968-2989
[email protected]
506 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Yeda Pessoa de Castro
Rua Antonio da Silva Coelho, 151
ap. 705, Jardim Armação
41750-040, Salvador - Bahia
( 3461-9033 / 8138-4865
[email protected]
Membros correspondentes:
Alain Saint-Saëns
Centro de Investigaciones Académicas,
Universidad del Norte,
Avenida Artigas y Calle Juan de Salázar,
Asunción - Paraguay
[email protected]
Antonella Rita Roscilli
Via Giacomo Barzelloti, 7
00136 Roma - Itália
[email protected]
Antonio Carlos Secchin
Av. Atlântica, 2112, aptº801
Copacabana 22021001 Rio de Janeiro – RJ
( (21) 2236-1112
[email protected]
Ático Frota Villas-Boas da Mota
Rua Dr. Manoel Vitorino, 411 – Coité
46500-000 – Macaúbas – Bahia
( (77) 3473-1292
[email protected]
►► 507
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Cyro de Mattos
Travessa Rosenaide, 40 / 101 – Zildolândia
45600-395 – Itabuna – Bahia
( (73) 3211-1902 /(73) 88461883
[email protected]
Dominique Stoenesco
26 bis, allée Guy Mocquet
94170 — Le Perreux-sur-Marne — France
((003133) 1 48 72 16 56 / (003133) 06 08 65 50 23
[email protected]
Franklin W. Knight
2902 W. Strathmore Avenue
Baltimore, Maryland 21209 — USA
Glória Kaiser
Dr. Robert Siegerst, 15
A 8010 – Graz
Áustria – Europa
[email protected]
Helena Parente Cunha
Rua das Laranjeiras, 280/200
22240-001 – Rio de Janeiro - RJ
[email protected]
Isa Maria Carneiro Gonçalves
Rua Milton Melo, 413 – Santa Mônica
Feira de Santana – Bahia 44050-560
( (75) 3625-2416
[email protected]
508 ◄◄
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015
Luiz Alberto de Vianna Moniz Bandeira
Reilinger Strasse, 19, D
68789 — Deutschland
Jorge Raul da Silva Preto
Rua dos Sobreiros, 233 3º, D.t
Edifício Vistamar - Costa da Guia
2750611 Cascais – Portugal
( (00351) 214821717
[email protected]
Luiz Alberto Vianna Moniz Bandeira
Reilinger Strasse, 19, D – 68789
Deutschland – Alemanha
Maria Beltrão
Rua Prudente de Moraes, 1179, COB. 01
Ipanema – Rio de janeiro – RJ
( (21) 2247-4180
mcmcbeltrã[email protected]
Rita Olivieri-Godet
24, Avenue Sergent Maginot
35000 Rennes, France
( 02 99 67 35 02
[email protected]
Vamireh Chacon
Universidade de Brasília
Instituto de Ciência Política
70910-900
►► 509
A Revista da Academia de Letras da Bahia nº 53
Foi publicada em março de 2015
Ano do centenário de nascimento dos acadêmicos
Oldegar Franco Vieira, Josaphat Marinho, Jorge Calmon
e José Calasans
E do escritor e acadêmico Adonias Filho
Presidente da ALB
Aramis Ribeiro Costa Diretor da Revista
Florisvaldo Mattos Conselho Editorial Fernando da Rocha Peres
Myriam Fraga
Ruy Espinheira Filho
Produção editorial
Aramis Ribeiro Costa Editoração e arte final Elimarcos Santana
Serviço editorial
Via Litterarum Editora