Ravel no céu

Transcrição

Ravel no céu
Publicado em L. Waizbort (org.), A ousadia crítica. Londrina, Editora da Universidade Estadual de
Londrina, 1998, pp. 342-365. ISBN 85-7216-145-7
Ravel no céu
Leopoldo Waizbort
E vão seguindo em fantasia
A viagem-sonho da heroína
No país de assombro e magia
Em alegre charla com os bichos.
E crêem um pouco na utopia.
C.L. Dogson, aliás Lewis Carroll,
em um livrinho sobre as aventuras de uma certa Alice.
A questão que gostaria de formular neste texto é a seguinte: conversava Ravel com as
plantas e os animais? Sabia ele a linguagem secreta dos bichos? Para responder a isso, que reputo
uma questão difícil, é preciso dar uma vista d'olhos em uma de suas obras, L'Enfant et les Sortilèges
1
.
O cenário é une pièce à la champagne, donnant sur un jardin. [...] C'est l'après-midi. A
tarde é a hora por excelência das crianças brincarem quando, após o tempo dos deveres e lições,
elas podem se deliciar com o sol quente, que penetra pelos interiores e se espraia pelas janelas, e
que ilumina os parques e jardins, sempre sob a vigilância discreta, mas sempre atenta, da Miss
inglesa. A ela cabe zelar, não totalmente distante do olhar de Maman, pelo momento em que
convém voltar para casa.
"[...] conhecendo a essência de Ravel, L'Enfant et les sortilèges deve ser a sua obraprima. Nela cada compasso está infantilmente envolto em magia, mas basta uma palavra
de sua terra natal [...] para colocar novamente em ação, com todos os seus antigos
direitos e privilégios, a milhares de vezes sufocada natureza. O que disso restará não
pode ser profetizado. Mas, talvez, mais tarde, numa outra ordem das coisas, ainda há de
se poder ouvir, no minueto da Sonatina, com quanta beleza se conseguiu um dia compor
o entardecer às cinco horas. A mesa está posta, as crianças vão sendo chamadas, já
ressoa o gongo, elas o escutam e ainda brincam mais uma rodada antes de se reunirem
ao grupo que está na varanda. Até se livrarem disso, lá fora já ficou frio, e elas precisam
ficar dentro." 2
Os personagens de L'Enfant et les Sortilèges demonstram a relação única que une os
humanos com as plantas, os objetos e, sobretudo, os bichos; essa relação é a restauração dos antigos
direitos de uma natureza ainda não dominada. Basta ver a lista dos personagens da operazinha --chamada, por seu criador, de "fantaisie lyrique":
L'Enfant
Maman
1
Maurice Ravel, L'Enfant et les Sortilèges. Fantaisie Lyrique. Poème de Colette. Paris, Durand & Cie., s.d. A obra foi
composta entre 1920 e 1925 e teve sua première no Théatre de Monte Carlo, em março de 1925. No correr do texto, as
passagens em itálico, quando não assinaladas, provêm desta peça; a numeração segue a partitura.
2
T.W. Adorno, "Ravel" in G. Cohn (org.), Theodor W. Adorno. São Paulo, Ática, 1986, p. 166.
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La Bergère
La Tasse Chinoise
Le Feu
La Princesse
La Chatte
La Libellule
Le Rossignol
La Chauve-Souris
La Chouette
L'Écureuil
Une Pastourelle
Un Patre
Le Fauteuil
L'Horloge Comtoise
La Théière (Wedgwood noir)
Le Petit Vieillard
Le Chat
Un Arbre
La Rainette
Le Banc
Le Canapé
Le Pouf
La Chaise de Paille
Les Chiffres
Les Pastoures
Les Patres
Les Rainettes
Les Bêtes
Les Arbres
Todos esses personagens se comportam como seres humanos, com suas paixões, desejos e
sofrimentos, embora à primeira vista apenas dois deles, a criança e sua mãe, pudessem ser assim
considerados. Apenas à primeira vista, pois não demora muito para que a mágica do compositor dê
vida a todos eles. Esse ato de mágica é a aura que impregna a operazinha de Ravel; é dele que
provém o encanto único, porque impregnado de uma tristeza triste, do fundinho da alma, que torna
L'Enfant et les Sortilèges tão belo, dessa beleza triste que respiramos em certos entardeceres de
outono.
Quando se fala em sortilégio, pensamos no feiticeiro que, com sua magia, a tudo encanta; o
encantamento de Ravel é aquele toque que, ao resvalar nas coisas, lhes dá vida. Os móveis ganham
vida, a chaleira e a xícara; o fogo e as cinzas; os desenhos e personagens dos livros começam a se
mexer e falar, e também pensar; o que era vivo nos contos de fadas transmigra para o nosso mundo.
É inclusive por isso que a atmosfera da fantasia de Ravel é aparentada aos contos de fadas: porque
ele os traz, com suas mãos delicadas, para este mundo.
Isto nos remete diretamente para a afinidade de Ravel com os contos de fadas, com um
mundo de fantasia em tudo diferente deste mundo. E com o mundo das crianças, que é o único
pedaço deste mundo que faz questão de permanecer ligado àquele outro mundo. Como sabemos
todos nós, Ravel também sempre fez questão de permanecer no mundo dos contos de fadas e das
crianças. Quem não se lembra de Ma Mère L'Oye? 3
3
Assim como se contam suas fábulas às crianças, que ouvem entre o êxtase e a excitação, são as crianças que tocam e
ouvem os sons de mamãe gansa. Ma Mère l'Oye é música a partir de La Fontaine, e isto indica que o motivo da
composição já está dado como um motivo infantil, mas de que os adultos também querem participar e compreender,
cheios de prazer. O mundo das crianças provoca a imaginação de Ravel; mais que isso, é o próprio mundo da
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O enredo de L'Enfant et les Sortilèges é muito simples, e embora seja atribuído a Collete,
de fato provém antes de tudo de Ravel. Tem início com o menino emburrado e rebelde, maldoso e
mal-criado, que desafia a mãe e, posto de castigo, põe o quarto de pernas para o ar. Ele est pris
d'une frénésie de perversité (Nr. 7): quebra as louças, machuca seu esquilo de estimação, puxa o
rabo do gato, brinca com o fogo e as achas de carvão da lareira, destrói o papel de parede, desmonta
o pêndulo do relógio, desfolha e rasga seus livros e cadernos de lição e --- a cada destruição --grita, triunfante: Hourrah!
Começa então o encantamento 4, quando tudo e todos ganham vida e vão mostrando à
criança, a cada vez, as conseqüências de suas artes e maldades; os sortilégios vão afligir o menino
até o fim, até a redenção final, que é a reconciliação com Maman.
A primeira das danças, que aparecerão recorrentes ao longo da operazinha, é a sarabande
do Fauteuil e da Bergère, um Lento maestoso que, anunciado pelo contra-fagote solista, dá logo
lugar ao piano, que irá acompanhar os móveis dançantes e falantes. A partitura do piano na
sarabanda é uma peça que vale por si só; nela Ravel revive a antiga dança, tal como fizera no
Tombeau e em tantas outras peças --- desde o seu não menos que magnífico Menuet antique. 5 Ao
final da dança, tendo sido chamados pelos protagonistas, entram rapidamente em cena Le Banc, Le
Canapé, Le Pouf e La Chaise de paille. Então, no mais agudo contraste com a lentidão da
sarabanda, que corresponde ao peso e à dificuldade dos móveis em se moverem (esta mesma uma
peripécia do compositor!), vem o Allegro vivo, em que o relógio mutilado tece sua ladainha de
lamentações. O menino fica "imóvel de estupor" (o metrônomo pula de 44 do Lento maestoso para
168 do Allegro vivo). O ritmo frenético da música do relógio --- ding... ding...ding... --- é
acompanhado por uma gesticulação também frenética, acompanhada, por sua vez, pela sofisticada
percussão. É a percussão, alías, que permite uma passagem criativa para a cena seguinte, onde, aí
sim, temos uma obra-prima de Ravel, onde, dentre outras dimensões, a percussão conjugará um
máximo de efeito com a maior economia de meios. Trata-se do dueto da xícara com a chaleira, um
fox-trot falsificado com melódica oriental, também ela falsificada mediante um pentatonalismo
"chinoise", que nada mais é que pura "chinoiserie". Mas o inglês impagável da chaleira --- que
remete, sem dúvida alguma, à Miss inglesa que toma conta das crianças no jardim --- dialoga com o
chinês onomatopaico da xícara, pura diversão e brincadeira.
A linguagem dos bichos, das plantas e das coisas é, já há muito, um problema para os
lingüistas e os filósofos, e muitos já quebraram a cabeça tentando resolver, e entender um pouco, os
enigmas desse problema tão assombroso. Creio que pouca atenção se deu à contribuição de Ravel
nesse tópico que, como se pode ver pelo canto da taça chinesa (dentre outros que ainda aparecerão),
tem algo a dizer a esse respeito:
Kengçafou, Mahjong
imaginação do compositor. Assim como o que é estranho: o jazz, a música dos hebreus, de Madagascar, de Espanha, o
tango. Aqui seria preciso revolver a diferença do estranho e o exótico. Quando a música de Ravel passa do estranho
para o exótico, ela perde toda a sua força. Talvez seja justamente essa passagem a mais adequada para uma démarche
na obra do compositor. Sob o fascínio e a magia do estranho, sua música atinge sua verdadeira expressão. Sob o
domínio do exótico, ela tende aos fogos de artifício. Creio que a duplicidade da música de Ravel espelha a
ambigüidade, que diz respeito a sua fisionomia social: um mesmo compositor que escreve a Sonata para violino e
violoncelo e o Concerto para a mão esquerda.
4
Saôul de dévastation, il va tomber essoufflé entre les bras d'un grand fauteuil couvert d'une housse à fleurs. Mais, ô
surprise! le bras du fauteuil s'écartent, le siège se dérobe, et le Fauteuil, clopinant lourdement comme une énorme
crapaud, s'éloigne. (Nr. 16)
5
A categoria do "antigo" em Ravel tem a ver com uma época burguesa que sente o chão tremer sob seus pés e, assim,
acolhe como modelo formas e modos do Ancien Régime. Ao mesmo tempo, é preciso ter em vista que a simbiose entre
burguesia e nobreza, na França (N. Elias), é fundamental para que se possa compreender a fisionomia de Ravel (assim
como, se poderia dizer, de Proust). Isto demarca, inclusive, seu caráter "francês", embora a autodenominação "musicien
français" não tenha sido sua. Os nexos da simbiose explicariam, talvez (e caberia explorar), a nostalgia pelo clássico, de
que Le Tombeau de Couperin é a mais bela expressão. Caberia também explorar esse elemento nas Valses nobles et
sentimentales, onde o próprio "nobre" já aponta para o problema.
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Kengçafou, Puis'kongkongpranpa
Çaohrâ, Çaohrâ, Çaohrâ, Caskara, harakiri,
Sessue Hayakawa! Hâ! Hâ! Hâ!
Çaohrâ, Çaohrâ, Hâ!
Çaohrâ, Çaohrâ, Çaohrâ toujours l'air chinoâ.
O uso dos falsetes, dos portamentos, dos glissandos (vocais e instrumentais, embaralhando os
registros); a utilização da celesta, assim como o belo solo do primeiro trombone (Nr. 33),
acompanhado pelas trompas, divididas e orquestradas com a maior perfeição (o tratamento dos
metais na passagem é, sem favor, brilhante) --- é nisto que se vê porque Ravel é um compositor tão
extremado (para o bem e para o mal), e portanto tão assíduo aos superlativos.
Ao terminar o fox-trot, o menino está "aterrado" (Nr. 37); o sol se põe cada vez mais,
compondo um entardecer avermelhado. L'Enfant frissonne de peur et de solitude. A criança,
amedrontada, (J'ai peur, j'ai peur! Nr. 49) procura, correndo, aproximar-se do fogo, mas também
ele ganha vida e repudia o menino malvado e traquinas. O fogo, dançando, vai, pouco a pouco,
esvaecendo, restam algumas achas de carvão e, por fim, a escuridão se aproxima.
No lusco-fusco, já sem saber bem se o que vê está ou não lá, se é verdade ou visão, sonho
ou vigília, ele vê surgir diante de si todo um cortejo de pastores e pastoras, carneiros, cães e outros
bichos que, estampados no papel de parede, se descolam e ganham vida. Ravel escreveu um coro de
pastores e pastoras, singelo e etéreo, acompanhados de une musique naïve de pipeaux e de
tambourins (Nr. 50, Moderato), evocando antigas canções francesas, como em um balé neoclássico
em miniatura. E como nas antigas óperas, a dança é acompanhada de um balé de todos os
personagens envolvidos... e os solos de oboé e clarinete também querem reviver a sonoridade
anasalada das antigas madeiras. A figura rítmica constante, marcada pelos pequenos tímpanos em ré
(uma exigência da partitura), acompanha toda a passagem em 2/4: colcheia pontuada e
semicolcheia; duas colcheias; colcheia e duas semi-colcheias; duas colcheias.
Terminada a dança, todos se vão e o menino fica só, em lágrimas. Então, de uma folha de
um dos livros rasgados e picados, surge a Princesa dos contos de fadas, uma princesa que terá sua
ária como nas grandes óperas e, no entremeio, estabelecerá um dueto único com a flauta --- uma
dessas combinações sonoras e melódicas singulares, que Ravel, e Debussy, realizaram em suas
Sonatas.
Também o mundo dos sonhos se mistura na fantasia de Ravel. Os sortilégios do menino
transcorrem em um mundo que é real e de sonho, onde de fato já não se sabe muito bem se é sonho
ou não, porque essa classificação se esvae por entre o pentatonismo recorrente da pauta 6. A
princesa do conto de fadas predileto da criança, com a qual ele sonha ao dormir e ao despertar,
canta em dueto com a flauta (Nr. 70, Lento):
Helás! petit ami trop faible.
Que peux-tu pour moi?
Sait-on la durée dún rêve?
Mon songe était si long, si long,
Que peut-être à la fin du songe,
C'eût été le Prince au Cimier d'aurore!
6
Como se percebe, não é aqui o lugar para uma discussão dos elementos mais técnicos do procedimento composicional
da fantasia lírica. Apenas para não deixar passar em branco a questão principal, a do uso da dissonância --- que, como
já discuti alhures ("Estilo musical da liberdade" in Kriterion, vol. 33, Nr. 85, 1992, pp. 31-48), significa em mesma
medida polifonia ---, cito rapidamente Adorno: "A harmonia impressionista foi desenvolvida, especialmente por Ravel,
no sentido de uma autonomização da dissonância." (T.W. Adorno, Gesammelte Schriften. Frankfurt/M, Suhrkamp,
1984, vol. 18, pp. 74-75). Isto se deu, entretanto, para utilizar uma expressão do mesmo Adorno, por meio de uma
"casta espiritualidade", temperada de ironia (cf. Adorno, Gesammelte Schriften, op. cit., vol. 19, p. 231). O que é mais
do que evidente se pensarmos a dissonância em sua dimensão polifônica que, embora não seja aqui destrinchada, está
por detrás de toda a obra.
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Mas nesse sonho tão longo, seria possível saber onde ele termina? E, assim, seria possível saber
quem é o príncipe, e se ele está no mundo da vigília ou do sonho? E seria possível prolongar para a
eternidade a presença da Princesa?
Por mais próxima que a felicidade pareça estar, e a felicidade, para a criança, é viver para
sempre em meio aos seus amigos dos contos de fadas, e para o menino não há felicidade maior do
que defender sua princesa tão amada, que é toda e nada mais que encanto, mesmo então toda a sua
força e vontade nada são e nada podem: une force invisible aspire la Princesse que disparaît sous
la terre (Nr. 72). As forças ctônicas, mais que tudo envoltas em mistérios insondáveis, conduzem o
destino já traçado da Princesa.
A criança folheia, deseperada, os livros destruídos, mas não há como trazer a Princesa de
volta. A despeito disso, ao revolver as folhas esparramadas pelo chão, são os números do livro de
matemática que começam a se levantar e a rodear o menino. Aparece então um pequeno ancião, que
marche à tout petits pas dansé, en récitant des bribes de problèmes (Nr. 75), que vai rapidamente se
revelar como sendo a Aritmética. Mas que Aritmética!
É um coro de crianças que desempenha o papel dos números. As contas que os números e a
aritmética cantam --- Quatre et quat'dix-huit, Onze et six vingt-cinq, [...] Sept fois neuf trent'trois
[...] Trois fois neuf? Trent'trois. Deux fois six? vingt-sept [...] Deux fois six trente et un! Quatre e
sept cinquant'neuf! --- são um mundo de brincadeira e fantasia, onde tudo pode ser, onde todos os
resultados valem. Não é à toa que Ravel escreveu a cantoria dos números e da aritmética como uma
"Ronde Folle", uma "ciranda maluca" (Nr. 87). É puro nonsense, uma outra lógica, um outro
mundo, onde as contas são diferentes, onde as coisas podem ser como queremos. Tamanho
nonsense, tamanha ciranda maluca deixam o menino completamente aturdido, em meio a um
accelerando que culmina em um Prestissimo alucinante (Nr. 92).
Segue-se uma das cenas mais conhecidas da operazinha, o dueto da gata e do gato, que
pode ser entendido, também, como uma outra contribuição magistral de Ravel para aquelas
questões da linguagem dos bichos.
O tratamento camerístico do início do dueto, com o solo de contrabaixo, já anuncia os
glissandos com que será composto o duo miado dos gatos, somado ao tratamento em continuidade
da tessitura das cordas (contrabaixo, violoncelo, viola e violino). No dueto, os glissandos das vozes
são acompanhados pelos glissandos das cordas 7; e são esses glissandos, que crescem no tratamento
7
Vale a pena destacar aqui um parágrafo do Doktor Faustus de T. Mann (fala Zeitblom): "Citarei um exemplo que
sempre assustou sobremodo minha temerosa mente de humanista e nunca deixou de ser alvo do ódio e do escárnio de
uma crítica hostil. Mas antes terei de fazer uma pequena digressão: nós todos sabemos que o primeiro objetivo da
Música, sua mais antiga conquista, tem sido o processo de desnaturar o som, de conservar numa única tonalidade o
canto, que originalmente se limitara a uivos primitivos de homens primevos, através de todos os degraus sonoros, e de
arrancar ao caos o sistema das notas. Entende-se, claro, que uma ordem reguladora, normativa dos sons era a condição
prévia e a primeira manifestação daquilo que para nós significa música. Nela se manteve, por assim dizer: como
atavismo naturalista, como resquício bárbaro de dias pré-musicais, o glissando, esse recurso que por razões culturais
deve ser usado com máxima parcimônia. Sempre me senti inclinado a reputá-lo demoníaco, anticultural, e até
desumano. Não quero afirmar que Leverkühn haja tido uma preferência por esses sons deslizantes. Empregou-os,
contudo, com extraordinária freqüência, pelo menos na obra em apreço, o Apocalipsis, cujas cenas terríficas realmente
propiciam as mais tentadoras e também as mais legítimas oportunidades para a utilização desse recurso selvagem. Quão
horripilante não é o efeito daqueles glissandi dos trombones, na passagem em que as quatro vozes do altar dão a ordem
de soltar os quatro anjos exterminadores, para que ceifem cavaleiros e montarias, o Imperador, o Papa e um terço da
Humanidade! Nesse momento, os glissandi representam o tema, ao percorrerem as sete posições da vara do
instrumento. O ululo como tema --- que horror! E quanto pânico acústico não emana dos glissandi dos timbales, que o
compositor prescreve repetidas vezes! Esse efeito de tons ou sons é obtido, quando, durante o rufo, manipula-se a
afinação automática do timbale a pedal, passando de uma tonalidade a outra. O resultado é sumamente impressionante.
Mas o mais horripilante de tudo é a aplicação do glissando à voz humana, que todavia fora o primeiro objeto de
ordenamento regulador dos tons e da libertação do estado primordial dos ululos arrastados através de todas as notas da
gama. Com o glissando, retorna-se, pois, a essa fase primitiva, tal como faz o coro do Apocalipsis por ocasião do
rompimento do sétimo solo, quando o sol se tinge de preto, a lua sangra e os barcos naufragam, na pavorosa descrição
das vozes que clamam." T. Mann, Doutor Fausto. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, pp. 505-506. Ed. alemã:
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camerístico-orquestral rumo ao tutti, que realizam a passagem do interior para o jardim. Será
seguindo os gatos, em seu vai-e-vem coquete do jogo da sedução, que o menino irá para o jardim,
onde transcorrerá todo o restante da ação.
Ao chegar ao exterior (Nr. 100), o menino encontra o jardim completamente iluminado
pela lua cheia, e os bichos lá fora em completa euforia. Ele fica maravilhado (Ah, quelle joie de te
retrouver, Jardim!) --- chamaria a atenção para o uso, pelo compositor, da flûte à coulisse; a paleta
orquestral, adensada ao extremo pelas cordas, marca sem deixar dúvidas a passagem para o novo
cenário, ao mesmo tempo em que já o vai povoando, pela variedade instrumental e sonora, com os
novos personagens que o habitam ---, mas basta tocar na primeira árvore do jardim, para esta
começar a gemer de dor. O menino malvado a havia machucado durante o dia, e da ferida ainda
corre a seiva perdida. Logo todas as árvores do jardim se juntam, gémissant et se balançant,
condenando o menino, cujo prazer é rasgar e ferir, impiedoso e insensível, as plantas.
Vem então, em tempo de uma valsa lenta --- e não há como não se lembrar de umas valsas
nobres e sentimentais ---- o vai-e-vem das libélulas e mariposas, representadas nos arpejos do
piano, fugazes e esvoaçantes. Tem lugar então a "Valse américaine", "dança das libélulas e das
mariposas" (Nr. 107). Logo o rouxinol também começa a entoar seu canto, e a seguir a saparia entra
em coro.
Voando de cá para lá, de lá para cá, a libélula procura, desesperada, sua companheira, e
pergunta aos quatro ventos onde ela está. O menino percebe, só então, que a libélula procurada é
aquela mesma que ele prendeu, com a ponta de um alfinete, contra a parede... Imediatamente
começa a ciranda dos morcegos (Ronde des Chauve-Souris, Nr. 113, bem rápida); é no diálogo com
o morcego que o menino percebe que os animais também têm mãe, e isto o faz lembrar, pela
primeira vez desde o início da operazinha, que ele também tem sua mãe, de quem fizera pouco caso,
desobedecera e desprezara.
Aos poucos, a saparia vai saindo do brejo, pondo a cabeça e as mãos para fora da lagoa e
tem início a "Dança das Rãs" (Nr. 122-128). Ao final da dança, reaparece o esquilo ferido, que
explica a uma rã o que é a jaula onde ele vivia aprisionado. O menino se apressa em replicar que a
jaula servia para que o esquilo pudesse ser melhor admirado... Ao que o esquilinho responde, cheio
de sarcasmo:
Oui, c'était pour mes beaux yeux!
Sais-tu ce qu'ils reflétaint, mes beaux yeux?
Le ciel libre, le vent libre, mes libres frères,
au bond sûr comme un vol...
Regarde donc ce qu' ils reflétaint
mes beaux yeux tout moroitants de larmes!
Pendant qu'il parle, le jardin se peuple d'écureuils bondissants. Leurs jeux, leurs caresses,
suspendus en l'air, n'inquiètent pas ceux des Rainettes au-dessous. Un couple de libellules, enlacé,
se disjoint, s'accole. Un groupe de Sphinx du laurier-rose les imite. Le jardin, palpitant d'ailes,
rutilant d'écureuils, est un paradis de tendresse et de joie animales.
Tem início a armação do final da fantasia lírica de Ravel, com a reunião de todos os
animais no jardim. Apesar disso, o menino vai se sentindo cada vez mais só: os bichos se amam e se
entendem, mas não dão bola para ele. Ils m'oublient...Je suis seul... E, então, chama pela mãe...
como que a reconhecer que assim não pode ser.
O pedido de socorro à mamãe é o sinal para que todos os bichos e as árvores entoem em
conjunto um coro, acusando o menino de todas as suas artes e maldades. Eles cercam o menino e o
provocam, ameaçam-no, são tomados por um frenesi, todos eles querem punir o menino e, com
isso, instaura-se uma confusão geral, em que todos brigam entre si para ver a quem caberá castigar a
criança. Nisso ecoa um grito do esquilo ferido. O menino, para a surpresa de todos, apressa-se em
fazer um curativo no esquilinho. Está dado o passo para o seu perdão e sua redenção. O menino
Doktor Faustus. Frankfurt-am-Main, S. Fischer, 1987, pp. 373-374. Discuti a questão em Aufklärung musical.
Dissertação de mestrado, FFLCH-USP, 1991.
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desmaia de cansaço e tensão. Todos os bichos se voltam para ele, preocupados. Onde, e como,
podemos salvá-lo? Um dos bichos aponta para a casa: C'est là qu'est le secours! Todos os bichos se
juntam e vão levando o menino, desfalecido, em direção à casa, chamando pela mãe. O menino
desperta, uma luz se acende por detrás das vidraças; a lua irradia, como nunca, une clarté pure
sobre o jardim. Os bichos se afastam, deixam a criança já às portas de casa; ele abre os braços e
clama pela mãe.
L'Enfant et les Sortilèges é não uma revolta da natureza, como se poderia pensar em
virtude do fato de que, na história, os animais e plantas se revoltam contra a maldade da criança.
Entretanto, essa revolta, no plano do enredo, não pode ser confundida com o que de fato se mostra
por detrás dela: não a revolta da natureza dominada e instrumentalizada, mas o retorno mágico a um
tempo anterior, anterior à dominação da natureza. A idéia de que os bichos se amam e se entendem
é cheia de implicações: ela aponta para uma natureza pacificada --- ou melhor, em estado de paz
originária ---, uma terra sem mal, anterior à chegada do homem dominador. Ravel compõe, neste
mundo, um outro mundo, em tudo diferente. O absolutamente outro é encontrado no passado,
embora mágico.
A comunicação dos animais implica em uma linguagem que todos falam, anterior à Torre
de Babel, uma linguagem do Paraíso. Não é, justamente, o jardim de L'enfant et les Sortilèges uma
imagem do Paraíso, antes do Pecado Original? A proximidade com as crianças também toca aqui:
elas são as que permanecem inocentes, neste mundo louco, alucinado e sem sentido; elas são o que
restou da pureza em um mundo impuro.
Excurso
Há aqui vários elementos para compreendermos a fisionomia de Ravel. A figura do
compositor celibatário não é a menos importante, pois implica em um relacionamento com uma
estrutura familiar forte e autoritária 8. Embora possa parecer estranho, isto toca um aspecto do
caráter social de Ravel. "'No mundo civilizado', diz Taine, as principais necessidades de um homem
são 'um ofício e um lar'. É também um meio de escapar ao domínio dos pais e de levar uma vida
independente." 9 O ofício escolhido sempre esteve, salvo muito raras exceções, em relação de
enorme tensão com a vida no mundo. Ravel se increve em um campo em algo semelhante ao de
Flaubert, descrito por Bourdieu. A relação com o público é difícil, e não menos com os colegas de
ofício; ao mesmo tempo, o mecenato do Estado, que parece ser imprescindível (pense-se nos
enormes esforços pelo Prix de Rome), nunca se concretiza. O lar, assim, ganha um peso enorme,
como instância de verdadeiro reconhecimento e plenitude; todas as energias que são direcionadas,
em um certo registro, para a composição, afluem, em outro, para o interior. É nesse sentido,
inclusive, que se pode qualificar sua música de música de interior. A necessidade do lar está na
relação mais íntima com o enorme peso dado às relações familiares: o pai, a mãe e o irmão são,
sem qualquer possível competidor, os núcleos em torno dos quais a vida de Ravel se orienta. O pai,
o inventor excêntrico e genial, mas não completamente reconhecido, é aquele que estimula o filho
músico; a mãe, a presença sempre presente, a confiança e segurança (e me abstenho de explorar os
paralelos tão evidentes com a figura da mãe em L'Enfant); o irmão, o único que o acompanha por
toda a vida. Seria de se perguntar se o custo do ofício --- não há como não se lembrar de Leverkühn
--- é a vida confinada nos pequenos círculos, na família e, por fim, a doença.
Com isto, ademais, temos claramente delineado o problema do interior burguês, e da
sociabilidade que lhe é correlata 10. O interior, a configuração arquitetônica e decorativa da
interioridade, é o refúgio e paraíso do burguês, o único espaço onde ele reina absolutamente
8
Cf. M. Horkheimer e T.W. Adorno (orgs.), Temas básicos da sociologia. 2a. ed., São Paulo, Cultrix, 1978, pp. 132 ss.
M. Perrot, "Os atores" in M. Perrot (org.), História da vida privada IV. Da Revolução Francesa à Primeira Guerra. São
Paulo, Cia. das Letras, 1991, p. 134
10
Discuti um pouco do assunto em Vamos ler Georg Simmel? Tese de doutorado, FFLCH-USP, 1996.
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9
soberano, protegido dos perigos do mundo exterior. A casa --- assim como a família --- é uma
proteção, e em Ravel isto é muito claro, seja nas habitações parisienses, seja na casa em Montfortl'Amaury, nos arredores de Paris, para onde Ravel se retira após a Guerra e a morte da mãe 11.
Quanto mais Ravel se separa da família, mais importante se torna o interior.
Apesar de muito conhecida, vale a pena reproduzir algo da sociologia do interior de Walter
Benjamin, que é em tudo pertinente para o nosso compositor.
"A oposição entre o espaço da vida e os locais de trabalho aparece pela primeira vez
para o homem privado. O espaço da vida constitui-se em interior. O escritório é o seu
complemento. O homem privado, que no escritório leva em conta a realidade, pede ao
interior para ser mantido em suas ilusões. Essa necessidade é tanto mais urgente, quanto
ele não pensa em ampliar as suas reflexões acerca dos negócios à reflexões acerca da
sociedade. Na configuração de seu mundo interior, ele reprime ambas. Dele evadem as
fantasmagorias do interior. Este representa para o homem privado o universo. Nele, ele
reúne o distante e o passado. Seu salão é um camarote no teatro do mundo. [...] / O
interior é o refúgio da arte. O colecionador é o verdadeiro ocupante do interior. Ele
toma para si a apoteose/transfiguração das coisas. Cabe-lhe o trabalho de Sísifo de,
mediante a sua posse das coisas, despi-las de seu caráter de mercadoria. Mas ele lhes
atribui apenas o valor do amor, ao invés do valor de uso. O colecionador sonha não só
com um mundo passado ou distante, senão que sonha ao mesmo tempo com um mundo
melhor, no qual os homens na verdade são munidos com tão poucas das coisas que
precisam como no mundo cotidiano, mas as coisas estão livres da servidão de serem
úteis. / O interior é não só o universo do homem privado, mas também seu estojo. Morar
significa deixar rastros. No interior eles são acentuados. Inventam-se colchas e fronhas,
caixas e estojos em abundância, nos quais se imprimem os traços dos objetos de uso
cotidiano. Também os traços do morador imprimem-se no interior." 12
Interessa-me aqui menos comentar o texto de Benjamin do que aproximá-lo rapidamente de uma
descrição que temos do interior em Ravel.
"The homes that Ravel furnished for himself in Paris and in Montfort-l'Amaury are full
of riddles, grotesque notions, and arbitrary collections of treasures and trash. [...]
Gradually the house [em Montfort-l'Amaury, LW] acquired a profile. Ravel sketched
out his own wallpapers, had his chairs decorated by brandind in the style of the turn of
the century, painted the marble of the fireplace with odd designs, and began to colect
crazy and trashy objects, including Gothic ashtrays, pieces of fake Chinese porcelain,
and a mechanical nightingale that sang when it was wound up. The dimensions of the
house were small, so the forniture had to be small as well --- quite suitable to the master
of the house. The list of contents remind one of an out-of-place child's nursery. It was a
playhouse set up by a spirit of fantasy. / Ravel gave his microcosmic inclinations free
rein even the garden. He provided himself with dwarf plants, miniature tree, and small
shrubs, such as are cultivated in Japan. One would imagine oneself in a dream of
Jonathan Swift or in the fairy tale of Tom Thumb. Even the piano was covered with
unusual things. Ilumination was provided by two imposing metal lamps with the pressed
milk-glass globes of the belle époque. Snuffboxes and all sorts of little containers of
uncertain origin lay about. A tremendous feather, wich might have come from an ostrich
or a swan, was stuck in the inkwell. The corners were fitted with cabinets with several
11
Não é nenhuma mera coincidência o fato de que o ambiente de L'Enfant et les Sortilèges, o interior das cenas iniciais
e o jardim das finais, pareça muito semelhante à villa de Ravel em Montfort-l'Amaury, intitulada pelo proprietário "Le
Belvedère", onde a operazinha foi composta praticamente por inteiro.
12
W. Benjamin, Gesammelte Schriften. Frankfurt/M, Suhrkamp, 1991, vol. V.1, pp. 52-53, tb. 67-69.
183
shelves filled with knickknacks of Meissen and French manufacture --- some pretty,
some ridiculous. Only the large wide-framed picture of his mother (frontispiece) gazed,
serious and proud, on the 'Curiosity Shop' her son had collected for himself." 13
O interior é o espaço povoado pelo compositor, onde ele imprime seus gostos e desejos,
preferências e manias. A individualidade única se espelha e realiza no interior. Este é elaborado em
seus mínimos detalhes, e em todos eles a mão e o olhar do habitante deixam seus vestígios. A partir
disso, é possível encontrar muitas correspondências, que caberia desenvolver; veja-se apenas esta
passagem de Baudelaire: "une chambre qui ressemble à une rêverie, une chambre véritablement
spirituelle... Les meubles ont des formes allongées, prostrées, alanguies. Les meubles ont l'air de
rêver; ont les dirait doués d'une vie sonambulique, comme le végétal et le minéral." 14 Isto pode ser
facilmente relacionado tanto à morada do compositor, como ao cenário e os personagens de
L'Enfant et les Sortilèges.
O compositor-colecionador é apaixonado por bric-a-brac, pelos objetos ornamentais os
mais estranhos e bizzarros. Todos os visitantes de "Le Belvedère" impressionavam-se com a
disparidade, exagero e gosto das coisas cuidadosa e amorosamente reunidas pelo compositor. O
interior é o locus por excelência do colecionador, envolto por seus objetos mais queridos. Até
mesmo a sociabilidade dos pequenos círculos poderia ser vista sob esse prisma, como uma coleção
de convidados que o colecionador junta ao seu redor: eles são poucos, exclusivos, escolhidos a dedo
pelo anfitrião, que teme qualquer desequilíbrio nas relações do círculo. Se a sociabilidade da família
parece ter sido tão feliz --- pai, mãe e irmão são, sem dúvida alguma, as figuras humanas mais
importantes para Ravel ---, parece que os esforços do compositor celibatário concentraram-se em
conseguir rearticular um Ersatz do círculo primeiro, à medida em que ele ia se desfazendo pelas
mortes dos pais.
A casa de Ravel parece uma casa de sonho, que por sua vez está próxima da casa dos
contos de fadas. E então já não há mais dúvidas de que estamos no ambiente de L'Enfant et les
Sortilèges 15. Tal ambiente, tão encantador e envolto em mistério, é especialmente propício às
viagens, e é então que começam as viagens ao redor dos quartos; quanto mais povoados pelo
estranho e pelo diverso, tal como o faz a coleção, mais rica e emocionante a viagem pelo interior.
Naturalmente, tal viagem é também uma descoberta, e o que se descobre é a subjetividade do seu
habitante. É por essa razão, inclusive, que as "invitations au voyage" não são feitas a qualquer um,
mas apenas aos amigos que penetram no círculo mais íntimo da sociabilidade.
O local para tal recolhimento e sossego não poderia ser melhor. A necessidade imperiosa
de abandonar a vida nervosa da Paris agitada e cada vez mais frenética é contrabalançada pela
distância de Montfort-l'Amaury, em rápida conexão com a metrópole, permanecendo perto o
suficiente para, sempre que preciso, rapidamente alcançá-la. A tensão e ambigüidade entre o refúgio
e a imersão no movimento da cidade deixou rastros na música de Ravel; mesmo no interior de
L'Enfant et les Sortilèges, é possível perceber algo disto na contraposição da aparição dos pastores e
pastoras e na intervenção mais-do-que-frenética do relógio 16. Também aqui a sociologia da cidade
grande e moderna pode ter algo a dizer:
13
H.H. Stuckenschmidt, Maurice Ravel. Variations on his Life and Work. Philadelphia etc., Chilton, 1968, pp. XII,
193-194.
14
C. Baudelaire apud W. Benjamin, Gesammelte Schriften, op. cit., vol. V.2, p. 687. O texto de Baudelaire provém de
Le spleen de Paris ("La chambre double").
15
Em um curto fragmento sobre Ravel, Adorno chamou a atenção para o fato de que o objeto de desejo da música de
Ravel está situado não no exterior, mas no interior, e habita os próprios sonhos do compositor. Isto aponta para aquela
diluição entre o sono e a vigília a que fiz menção; aponta também para a continuidade casa de sonho - casa de contos de
fadas. Cf. T.W. Adorno, Gesammelte Schriften, op. cit., vol. 18, pp. 273-274.
16
O que poderia ser explorado, no âmbito do procedimento composicional, sob a chave da "Motorik". Para não
mencionar a obra mais conhecida do compositor, lembro o "perpetuum mobile" da Sonata para violino e piano.
184
"E isto conduz a, em sentido estrito, individualização espiritual dos atributos anímicos,
que a cidade, em função de sua magnitude, propicia. Há uma série de causas para tanto.
Inicialmente a dificuldade em fazer valer a própria personalidade nas dimensões da vida
na cidade grande. Onde a intensificação quantitativa de significação e energia chega ao
seu limite, apela-se à singularização qualitativa a fim de, mediante a excitação da
sensibilidade para a diferença, ganhar para si de algum modo a consciência do círculo
social. O que leva então finalmente às mais tendenciosas esquisitices, às extravagâncias
típicas da cidade grande como o exclusivismo, o capricho, a pretensão, cujo sentido não
está mais absolutamente nos conteúdos dessas condutas, mas sim apenas na sua forma
de ser diferente, de se salientar, e com isso de se tornar notado --- para muitas naturezas,
por fim, o único meio, através do desvio pela consciência dos outros, de preservar para
si alguma espécie de autovalorização e a consciência de que ocupa um lugar." 17
Essa necessidade de distinção e individualização, característica da cidade grande, encontra no
interior o seu refúgio. É certo que ela não se limita ao interior, mas nele ela consegue reinar. No
final do século, o "dandy" no registro estético e o "snob" no registro social são a encarnação mais
perfeita dessa figura. Em certa medida, é uma figura característica do fin-de-siècle, e que perdura
até Ravel e Proust (aqui sucumbo à aproximação, que evitava ao máximo); quem sabe algo da
biografia do compositor, conhece o quanto estes registros --- o dandy, o apache --- são
significativos em Ravel 18. O tema, importante, leva-nos muito mais longe do que convém e, por
comodidade, utilizo um retrato já pintado:
"De origem britânica e essência aristocrática, o dandismo toma a distinção como o
próprio princípio de seu funcionamento. [...] ele exacerba a diferença numa sociedade
que tende à massificação. [...] Anti-igualitário, ele gostaria de recriar uma aristocracia
que certamente não seria a do dinheiro ou a da linhagem, mas a de um temperamento --'nasce-se' dândi --- e de um estilo. / Homem público, o dândi, ator do teatro urbano,
protege sua individualidade por trás da máscara de uma aparência que ele tenta tornar
indecifrável. Ele alimenta o gosto da ilusão e do disfarce, tem um agudo senso dos
detalhes e dos acessórios [...]. Um dândi é 'um homem que usa roupas [...]. Ele vive para
se vestir.' (Carlyle) [...] O dandismo é uma ética, uma concepção da vida que eleva o
celibato e a vagabundagem ao nível de uma resistência consciente." 19
Haveria muito a explorar na sobreposição de Ravel a este retrato. Indecifrável, a existência pessoal
de Ravel era em muito desconhecida até pelos mais próximos. O senso dos detalhes foi
transformado em força produtiva no seu compor 20. O cuidado, e mesmo obsessão de Ravel com as
roupas despertava a atenção dos amigos. E, melhor que "vagabundagem", é a idéia de "ociosidade"
que também se torna força produtiva em Ravel, como se verá logo mais. E o colecionador,
17
G. Simmel, "Die Großstädte und das Geistesleben" in Das Individuum und die Freiheit. Frankfurt/M, Fischer, 1993,
p. 202.
18
Registros estes que serão retomados por Walter Benjamin como configurações do flaneur. Por conta disto, todo o
amplo complexo benjaminiano em torno de Baudelaire e das passagens de Paris fornece amplos materiais para se
pensar Ravel.
19
M. Perrot, "Os atores", op. cit., pp. 296-298. Ver tb. W. Benjamin, Gesammelte Schriften, op. cit., vol. I.2, pp. 599600.
20
A atenção para os menores detalhes; a precisão no tratamento orquestral (embora não queira, aqui, repetir a fórmula
de Stravinsky, aquela do "relojoeiro suíço"); a sensibilidade das mínimas passagens e das mais delicadas transições; o
tratamento vocal magistral nas diferentes partes; tudo isto converge no que uma das biógrafas de Ravel, Madeleine
Gross, escreveu: "Ravel was accurate in every detail. Small in frame and stature, he always dressed his slender body in
the latest and most fashionable mode. No effort was too much for him to make to produce the effect he wanted, wether
in working out an awkward detail in a composition, or accomplishing a harmony between his cravat, his soks, his
handkerchief and the pattern of a suit of clothes he was wearing." Apud H.H. Stuckenschmidt, Maurice Ravel, op. cit.,
p. 223. Ademais, seria naturalmente possível relacionar moda e moderno também em Ravel.
185
excêntrico, não seria também uma das faces deste tipo social? É precisamente no colecionar que se
increve a aproximação com as crianças, que são as maiores colecionadoras que há. Colecionar é
uma persistência da infância e, colecionando, Ravel continuou criança 21. Ele parece ter
compreendido como ninguém a idéia de que "o que realizamos na vida é pouco mais que a tentativa
de recuperar a infância." 22 Seu modo muito próprio de fazê-lo foi não deixar esgarçar jamais os
laços da vida adulta com a infância, e é disto que nasce alguma música sua.
Resta falar algo do jardim. Ele é a contraparte do interior da moradia. Também ele é
decorado cuidadosamente, também ele é um espaço de tranqüilidade e beleza. Mas o jardim
também é ambíguo, pois já representa um passo em direção ao exterior. Não é o jardim, em
L'Enfant et les Sortilèges, habitado por seres estranhos e amedrontadores? Naturalmente, o jardim
está conformado no hábito da interioridade burguesa; "nos meados do século XIX, o jardim se
tornou um elemento fundamental da vida burguesa. A natureza domesticada, cercada por árvores e
sebes, assegurava a tranqüilidade da vida privada e proporcionava um quadro ideal para a vida em
família." 23 O que não significava que ele fosse um espaço completamente livre de perigos; é
justamente isto que Ravel vai explorar na operazinha. Seu final, contudo, mostra que mesmo o
jardim é um espaço no qual se pode confiar.
Fim do excurso
A infância é um tempo em que todas as coisas se antropomorfizam. Todos os bichos, todas
as coisas têm sua forma própria, todos falam uma linguagem própria e, contudo, todos se entendem
entre si. A criança fala e brinca com eles; eles realizam a idéia de uma linguagem não só universal,
mas de uma linguagem na qual todos realmente se entendem. Talvez isso seja realmente a definição
do que é a infância. Entretanto, temos aqui, em mesma medida, o elemento mimético com que se
constituem as obras de arte.
"A racionalidade das obras de arte só se torna espírito se ela se afunda no que está no
pólo oposto. A divergência do construtivo e do mimético, que não é aplanada por
nenhuma obra de arte, por assim dizer o pecado original do espírito estético, tem seu
correlato no elemento de infantilidade e tolice [Albernen] e de palhaçada, que mesmo as
obras mais importantes trazem consigo [...]. A infantilidade e tolice [Albernheit] é o
resíduo mimético na arte, o preço de sua impermeabilidade. [...] Aquele momento,
enquanto resíduo de algo impenetrável, bárbaro, que é estranho à forma, torna-se ao
mesmo tempo o pior na arte, se ele não é refletido nela enquanto elemento da forma.
[...] Não obstante, os momentos de infantilidade e tolice [albernen] das obras de arte são
os mais próximos de suas camadas sem intenção e por isso, nas grandes obras, são
também o seu segredo. [...] No elemento de palhaçada a arte relembra, consolada, a préhistória no mundo animal pretérito. Os macacos antropomorfos no zoológico realizam
em comum o que equivale aos atos do palhaço. A conivência das crianças com os
palhaços é a mesma que com o arte --- que os adultos lhes negam ---, não menos do que
com os animais. O gênero humano não conseguiu recalcar tão completamente a sua
semelhança com os animais, de tal modo que ele não a possa reconhecer subitamente e
com isso ser inundado de felicidade; a linguagem das criancinhas e dos animais parece
identificar-se." 24
21
Também aqui W. Benjamin fornece amplos materiais de investigação, p. ex. Gesammelte Schriften, op. cit., vol. V.1,
pp. 269-280, assim como nos vários escritos sobre a infância.
22
T.W. Adorno, Gesammelte Schriften, op. cit., vol. 10.2, p. 697.
23
C. Hall, "Sweet Home" in M. Perrot (org.), História da via privada IV, op. cit., pp. 69-70.
24
T.W. Adorno, Ästhetische Theorie. 8a. ed., Frankfurt/M, Suhrkamp, 1986, pp. 181-182. O texto é difícil e ainda
aguarda uma versão mais correta.
186
E Ravel compartilha com ambos, com as crianças e os animais, essa mesma linguagem que, secreta,
é o segredo de sua arte. 25 Este segredo acena também para o jogo, para um estrato lúdico que
repousa na obra e que a adensa, e está na maior proximidade com a felicidade; e esse elemento de
jogo aponta, também ele, para as crianças e os animais. 26 Todas estas são dimensões, ou estratos,
que repousam na operazinha de Ravel, e convergem na expressão da obra de arte.
Ravel gostava de brincar com as crianças e os bichos em mais de um sentido, porque isso
migrou para a composição (aqui seria possível explorar a relação com Satie). O gosto pelas
brincadeiras passa da vida "real" para a composição. Por que não compor brincando? Por que não
fazer da música uma brincadeira? Quem não se lembra da dedicatória das Valses nobles e
sentimentales: "le plaisir delicieux et toujours nouveau d'une occupation inutile"? Entretanto, seria
um erro pensar que essa famosa dedicatória pudesse ser explicada pela idéia da arte pela arte.
Antes, trata-se da recusa em aceitar que o prazer deva estar submetido à utilidade --- o que, note-se
en passant, é exatamente o que Benjamin assinalava, tanto a respeito da relação do colecionador
com seus objetos, como na caracterização do flaneur como o "ocioso que sonha" 27 (esta mesma é
uma caracterização que já remete às crianças e à infância: quem pode desfrutar tanto da ociosidade
como as crianças, quem pode sonhar tão livremente?). Na recusa sempre constante da utilidade,
Ravel permanece uma criança, brincando pelo prazer de brincar.
Talvez valesse a pena tentar explorar algo acerca da felicidade. Os animais representam e
realizam um calor que os homens perderam. É por essa razão que, quando Ravel fala das crianças e
dos animais, ele fala de um mundo perdido, e essa é a exata medida de sua utopia: um mundo onde
há calor humano --- um calor que os homens já perderam e ainda é encontradiço nesse mundo de
fantasia povoado por bichos, plantas, coisas vivas e crianças. ---, e onde a frieza fica de fora. O
enigma dessa música de Ravel é este: que, sendo música burguesa, protesta no seu mais íntimo
contra "a frieza, o princípio básico da subjetividade burguesa" 28. Para fazer isso, ele se utiliza dos
animais, plantas e objetos, fazendo-os viver uma vida que é por completo diferente daquela vida
que não vive. Ou, como disse Carlos Drummond de Andrade com mais propriedade e poesia: 29
Eis meu pobre elefante
pronto para sair
à procura de amigos
num mundo enfastiado
que já não crê nos bichos
e duvida das coisas.
Ei-lo, massa imponente
e frágil, que se abana
e move lentamente
a pele costurada
onde há flores de pano
e nuvens, alusões
a um mundo mais poético
25
"The realm of his imagination remained all his life a specially personal kind of children's nursery, peopled by fairytale characters, magicians, strange animals with human ways, and fabulous creatures from Arabia, China, and Africa. It
is a world of fantasy where humans can share in the marvels, the delights, and the surprise of the world beyond reality,
the realm of wonders, of boundaries that disappear. / Ravel entered and inhabited this world of magic with his eyes
wide open and with complete understanding of it. He was able to lay his hands on the objects in it, to model their
mythical figures to his own measure, to dress them in gay garments, decorate them with rich ornament, wich he himself
had conjured up out of sound and rhythm in music." H.H. Stuckenschmidt, Maurice Ravel, op. cit., p. 10.
26
"O jogo é, no conceito de arte, o momento mediante o qual ela se eleva de modo imediato sobre a imediaticidade da
práxis e de seus fins. Mas, ao mesmo tempo, o jogo está represado no que está para trás, na infância e até mesmo na
animalidade." Adorno, Ästhetische Theorie, op. cit., p. 469.
27
W. Benjamin, Gesammelte Schriften, op. cit., vol. V.1, p. 525, ver tb. vol V.2, pp. 961-970.
28
T.W. Adorno, Negative Dialektik. 4a. ed., Frankfurt/M, Suhrkamp, 1985, p. 356.
29
Carlos Drummond de Andrade, "O Elefante" in Nova Reunião. Rio de Janeiro, J. Olympio/INL, 1983, vol. 1, p. 163.
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onde o amor reagrupa
as formas naturais.
Por saber conversar com os animais, um dom que é preciso qualificar de mágico, 30 Ravel jamais
deixou de ser criança.
Há ainda um outro poema, de Manuel Bandeira, intitulado "Mozart no céu" 31 --- dentre
todos os compositores o mais próximo de Ravel ---, que pede para ser aproximado do compositor de
L'Enfant et les Sortilèges.
No dia 5 de dezembro de 1791 Wolfgang Amadeus Mozart entrou no céu, como um artista de
[circo, fazendo piruetas extraordinárias sobre um mirabolante cavalo branco.
Os anjinhos atônitos diziam: Que foi? Que não foi?
Melodias jamais ouvidas voavam nas linhas suplementares superiores da pauta.
Um momento se suspendeu a contemplação inefável.
A Virgem beijou-o na testa
E desde então Wolfgang Amadeus Mozart foi o mais moço dos anjos.
O que vemos abaixo é a imagem de Ravel chegando no céu, escoltado por duas de suas amigas
libélulas.
30
"He carried on the conversations he loved: with animals, with doves, and, most of all, with the cats, twelve of wich
came to see him off when he made an excursion to Fez." H.H. Stuckenschmidt, Maurice Ravel, op. cit., p. 245. "He had
an uncommom gift of mimicry and could reproduce bird calls and animal voices with singular realism. If anyone paid
him a compliment, he would cover up his pleasure and his embarrassment by turning aside with a comical bird or
animal call." Idem, p. 223.
31
Manuel Bandeira, Poesias. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1955, p. 285.
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